Você está na página 1de 2

Artista Wanda Pimentel pouco falava, mas a sua obra é a

antítese do silêncio
Pintora carioca, que morreu nesta semana, deixa legado de pinturas vibrantes e que eram críticas
aos rumos do Brasil
28.dez.2019 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA

Raphael Fonseca

Em entrevista realizada em 2012, a artista carioca Wanda Pimenteldisse: “Sou uma


pessoa que compensa o pouco falar com um olhar demorado e atento”. Ao pesquisar a
respeito de sua obra, poucas são, efetivamente, as entrevistas encontradas —e diversos
dos textos críticos a seu respeito partem desse suposto silêncio de suas obras.

A artista morreu no último dia 23, no Rio de Janeiro, aos 76 anos. Sua morte só foi
divulgada nesta sexta (27) sem informações sobre a causa.

Nascida em 1943, ela foi aluna de Ivan Serpano Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro entre 1964 e 1968. Nesse momento cheio de turbulências decorrentes da
ditadura, a instituição era espaço de grande experimentação nas artes visuais e tinha
como alguns de seus alunos nomes como Antonio Dias, Cildo Meireles e Rubens
Gerchman.

Wanda era das poucas artistas mulheres que frequentavam essas aulas e, aos poucos,
ganhava atenção de público e crítica participando de exposições icônicas como a 1ª
Bienal da Bahia (1967), o Salão da Bússola (1969), a 11ª Bienal de São Paulo (1971) e
diversas edições do Panorama da Arte Brasileira (1970, 1972 e 1973).

Quando observamos as icônicas obras de sua primeira década de produção, nosso


olhar é convidado a se surpreender com os detalhes trazidos.

Na sua primeira grande série de trabalhos, “Envolvimento”, produzidos em sua


maioria entre 1968 e 1969, ambientes coloridos construídos geometricamente com o
uso da cor são ocupados por fragmentos de corpos femininos —um quarto, um carro,
uma cozinha, um banheiro? Suspeitamos esses serem alguns dos lugares, mas a sua
representação nunca se dá de maneira objetiva e explícita.

Alguns objetos contribuem com a leitura: chaleira, garfo, faca e pratos nos fazem
suspeitar que se trata de uma cozinha. Sobre esse cenário tão associado às mulheres,
porém, um corpo parece se impor —de quem são as pernas? Seria a imagem um sonho
ou haveria qualquer caráter performático por trás da composição?

Wanda pede que corpo e olhar estejam atentos ao que se passa nessas cenas; da
mesma maneira que os objetos só existem em relação ao sujeito, é necessário que o
público se envolva com essas imagens —seja quanto a sua forma, seja quanto ao seu
lastro cultural.

Já uma série posterior, “Bueiros”, de 1970, chama a atenção pelo seu caráter
igualmente experimental. É composta por objetos de madeira que imitam diversos
tipos de bueiros de rua —dos gradeados feitos para escoar a chuva até os grandes de
esgoto que escondem o que há por baixo.

É no filme “Wanda Pimentel”, de Antonio Carlos da Fontoura, de 1972, que esses


objetos ganham configuração política: são mostrados no aterro do Flamengo. No auge
do governo ditatorial, mostrar esses bueiros de madeira em uma região próxima do
Monumento aos Pracinhas —outro marco militar do Rio— era um ato efêmero e ao
mesmo tempo crítico quanto ao rumo do país.

Eis que a obra da artista saía da esfera doméstica e se dirigia à rua: seria “silêncio” a
palavra mais adequada para se dirigir à sua pesquisa?

Seu compromisso com a pintura e com a cor foi constante nas cinco décadas de
carreira e sempre em diálogo com os limites entre a imitação e a abstração —vide seu
interesse posterior em formas que remetem a portas, janelas, escadas, grades e sólidos.
Recentemente, em sua última individual com trabalhos inéditos, em 2015, a artista
apresentou séries de trabalhos dedicados à gestualidade e a temas florais.

A produção de Wanda é essencial não só para se refletir sobre artistas mulheres, mas
para compreender a produção pictórica no país. Questões caras ao período militar,
como a noção de privacidade, domesticidade e espaço público são fulcrais para sua
poética. Por todas essas razões, a obra da artista é essencial para a história da arte não
só no Brasil, mas no nível global.

Raphael Fonseca é curador do MAC Niterói e pesquisador nas áreas de história da arte, crítica,
curadoria e educação

Você também pode gostar