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de MARIO BORTOLOTTO
Cena um
LEILA BABY 1
Não, tá tudo ótimo...o cursinho é ótimo, acho que é o melhor cursinho do país: os
professores são brilhantes, nossa mamãe como eles são geniais, todos eles. E eu
já tenho uma porção de amigos, universitários, pessoas ótimas, com mente
arejada, idéias novas, ai mamãe eles são ótimos. A senhora sabe, eu tenho muita
facilidade em fazer amigos, eu não sei o que acontece, as pessoas gostam de mim,
simplesmente elas gostam de mim, eu acho ótimo...é, simpatia, acho que é isso,
eu sou bastante simpática, sociável, mas eu acho...ótimo. E o papai? Ele tá
legal?
Atende a porta. Aparece Otávio. Usa jaqueta velha, calça puída e óculos escuros.
Calça coturnos.
OTÁVIO - Tô sem lugar pra dormir. Será que dá pra ficar por aí?
LEILA - É minha mãe, eu tava falando com ela quando você tocou a
campainha.
OTÁVIO - E aí?
LEILA - O que?
Leila corre esbaforida até o telefone. Pega o telefone tomando o cuidado de tapar o
bocal.
Otávio entra.
LEILA (ao telefone) - Alô mamãe, era o zelador. Não, era um problema banal,
algo a ver com as chaves, bobagem. O pessoal daqui é muito cuidadoso, muito
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organizado. É legal, né mamãe? Isso faz com que nos sintamos protegidos. É
muito bom... bom, mamãe, um beijo grande, dê um beijo no papai por mim,
sim? Tchau, eu ligo amanhã. Tchau. Durma com os anjos.
OTÁVIO - Eu tô mal.
LEILA - É grave?
LEILA - Como é que você subiu? O porteiro não costuma deixar pessoas
estranhas subirem.
LEILA - Como?
OTÁVIO - E vinho?
LEILA - Eu posso buscar pra você! Quer dizer, eu tenho mesmo que descer
pra comprar algumas coisas, objetos pessoais, aí eu posso aproveitar e trazer um
litro de vinho pra você.
OTÁVIO - E aí?
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LEILA - Aí?
LEILA - Claro...Olha , se o telefone tocar, você por favor não atende, tá? É
que pode ser minha mãe ligando de novo, você entende? Ela liga constantemente.
Já pensou o que ela pode vir a imaginar se você atender o telefone, ela é capaz de
imaginar coisas terríveis, escabrosas mesmo. Você não conhece a minha mãe.
LEILA - Não, eu vou, eu tenho mesmo que descer, eu... eu já vou ...
LEILA - Ah! só mais uma coisa. É que ...meus amigos...eu tenho muitos
amigos.
LEILA - É, eles são ótimos. Eles sempre aparecem por aqui à noite pra gente
conversar, ouvir música. De vez em quando eles trazem violão, a gente fica
cantando músicas do Zeca Baleiro, do Chico César, do Lenine, do Arnaldo
Antunes...
LEILA - Ai meu Deus, que perspicácia. Você vai adorá-los. Eles são
maravilhosos.
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LEILA - Então... se alguém bater na porta...
OTÁVIO - Eu abro!
LEILA - É. Você abre. Então tá, eu vou descer. Até daqui a pouco. Fica a
vontade.
Otávio senta na cama e tira os coturnos lentamente sem tirar os olhos de Leila.
OTÁVIO - Eu tô a vontade.
Leila sai. Otávio fica sozinho. Olha com desprezo as capas de discos e com
desinteresse o porta-retrato com a foto dos pais de Leila. Mexe na bolsa de escola
de Leila e pega um chocolate.
Leila volta.
LEILA (bate na porta) - Ei. (Pra si) Ai meu Deus, eu não perguntei o nome
dele. Que loucura, como é que pode? Ei rapaz, sou eu. Eu (Pra si) droga, eu
também não disse meu nome. Meu Deus o que está acontecendo comigo? Ei
rapaz, abre a porta, sou eu, a gentil senhorita que o está abrigando.
LEILA (entrando) - Mas você não fechou a porta? É perigoso. Você não é
de São Paulo. De onde você é? É muito perigoso deixar a porta aberta.
Perigosíssimo. É muito perigoso.
Leila entrega a garrafa para Otávio que tira um saca rolhas do bolso da jaqueta e
começa a abrir o vinho. Leila senta-se na frente dele e fica olhando com interesse
meio que infantil.
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OTÁVIO - Você não perguntou.
Otávio olha para ela com absoluto desprezo. Consegue tirar a rolha da garrafa.
Dá um longo gole.
LEILA - Eu acho tão carinhoso da parte deles. E o seu? Como é seu nome?
OTÁVIO - É.
LEILA (incrédula) - Não, não é. Claro que não é. Imagina. Claro que não é.
LEILA - Eu não vou fazer isso não. Vai molhar meu carpete.
Hesita um pouco mas acaba por entrar na brincadeira. Faz pose de rainha que
vai sagrar o cavaleiro.
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Leila despeja o vinho na cabeça de Otávio que bebe e lambe o que lhe escorre pelo
rosto. Otávio então se levanta calmamente e fica olhando Leila que o olha com
nítido interesse e uma alegria quase que infantil. Ele toma o litro de volta e dá um
grande gole.
OTÁVIO - Lusco-fusco.
LEILA - Eu sabia. Eu tinha certeza que essa era a cor de seus olhos.
OTÁVIO - Tigre.
LEILA - Tigre?
LEILA - Ah!
LEILA - É normal?
OTÁVIO - É.
Otávio deita espalhando o seu corpo displicentemente por quase toda a dimensão
do colchão.
LEILA - Não. Quer dizer, eu tenho medo do escuro. Sempre durmo de luz
acesa. Sempre.
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OTÁVIO - Ok.
Leila ajoelha-se no colchão e fica olhando Otávio por um tempo com uma
curiosidade infantil.
OTÁVIO - É chato!
Leila espera um pouco. Otávio vira para o outro lado tentando se ajeitar o mais
longe possível de Leila.
Leila desliga. Volta a colocar o telefone no chão ao lado do colchão. Otávio está
quase dormindo. Leila apresenta sinais de que está incomodada. Vai se
aproximando de Otávio. Chega bem perto dele. Quase encosta sua boca na orelha
de Otávio.
LEILA (falando baixo contrastando com o grito que havia dado) - Quero
dizer, você sempre bate na porta de pessoas que você não conhece e pede a elas
pra deixarem você dormir?
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OTÁVIO (desanimado e incrédulo) - Nada.
OTÁVIO - Universitários.
LEILA - Universitários.
LEILA - Olha aqui, rapaz, você parece que me entendeu mal. Eu apenas
disse que acho você interessante. Só isso.
OTÁVIO - Eu acho que de tanto estudar e ouvir música popular, esses seus
amiguinhos universitários ficaram todos brochas e que você ainda é virgem.
LEILA (ainda mais ofendida) - Imagina! Que ousadia! Eu não lhe dei
liberdade pra deduzir nada a respeito de minha vida íntima. E quanto aos meus
amigos universitários, são todos ótimas pessoas, eles me entusiasmam a ser um
deles. E eu ainda não sou uma universitária, estou fazendo cursinho. Sou uma
pré-vestibulanda.
LEILA - Pré-vestibulanda?
Leila levanta e anda até o porta Cds. Traz ele para perto do colchão.
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OTÁVIO (deitado apontando com o dedo do pé e ainda protegendo a cabeça
com o travesseiro) - Esse aí.
LEILA - Ai, que excêntrico! É o primeiro cara que conheço que diz que não
gosta da Marisa. Meu Deus, como você é diferente.
LEILA - É que... é uma experiência nova pra mim. Todas as pessoas que
conheço, quer dizer, as pessoas do meu círculo de amizades, todas elas gostam
da Marisa. Eu preciso apresentar você pros meus amigos, preciso mesmo. Acho
que eles vão adorar você. É claro, a principio vão achar você um pouco excêntrico
e tal, mas vão adorar você.
Otávio visivelmente cansado anda em direção a janela. Leila vai atrás dele.
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LEILA - Eu pretendo prestar pra jornalismo, sabe? Eu não sei, sei lá, acho
jornalismo fascinante. Tá em mim, você entende? Jornalismo tá em mim. No
colégio minhas redações eram ótimas, eu arrasava. Os professores não se
cansavam de me elogiar. Eu escrevo muito bem, e além de tudo eu acho
jornalismo uma profissão que oferece condições de atuação, quero dizer de real
atuação dentro da sociedade. Você me entende? Você consegue me entender?
LEILA - E eu vou ter que ir pro cursinho. É longe a beça. Tenho que pegar
ônibus, depois metrô, depois ônibus. É horrível...
LEILA (infantil) - Não. Fica sim. A gente ainda tem tanto pra conversar, eu
queria te conhecer melhor... ou você tem algum compromisso agora de manhã?
OTÁVIO - Nenhum.
LEILA - Então...fiiiica
.
OTÁVIO - Eu não sei.
LEILA - Eu vou deixar a porta trancada, assim eu sei que você não vai
poder ir embora.
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LEILA - Dééécimo andar.
OTÁVIO - Eu pulo.
LEILA (cética) - Ah, não pula. O que é isso? Décimo andar. Não tem como
pular, que loucura. Tchau. Eu vou indo. Vou deixar a porta trancada. Tchau.
LEILA (zombeteira) - Ora vejam, o Sr. Mistério vai fazer a sua primeira
confissão do dia. Ok, vamos lá, sou toda ouvidos.
LEILA (incrédula) - Ah, imagina que você faz isso, imagina. Eu vou deixar a
porta trancada mesmo.Tchau, Otávio. Se o telefone tocar, você não atende.
Cena dois
Otávio está sentado no parapeito da janela com as pernas pra fora. Seu corpo
balança perigosamente. A porta da kitchenete se abre. Leila entra e fica
apavorada quando vê Otávio sentado na janela. Ela fica parada na porta sem
conseguir se mexer. Traz nas mãos além da bolsa e das apostilas um pacote de
supermercado.
Otávio não responde. Leila coloca o pacote, a bolsa e as apostilas no chão e anda
hesitantemente em direção a janela.
LEILA (maternal) - Pelo amor de Deus, Otávio, sai dessa janela, vai, é muito
perigoso. Você pode cair.
OTÁVIO - É.
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LEILA (apreensiva) - Otávio, eu tô falando sério. Você tá me deixando
nervosa. Se é comum pra você ficar sentado na janela de apartamentos no décimo
andar, não é comum pra mim ficar assistindo pessoas fazendo isto,
principalmente na minha janela. Ah, Otávio, por favor, desce daí. Vem pra cá,
vem.
LEILA - Depois?
OTÁVIO - É. Depois. Será que dá um black-out? Será que nossa alma sai
fora? Será que ela fica bundando por aí? Será que vai ter algo pra fazer depois ou
a vida eterna é uma eterna cossação de saco? Ou será que a gente vai trabalhar
pesado nas ferrovias do além pra pagar as sujeiras que andamos aprontando por
aqui? O que é que você acha?
OTÁVIO - Ok.
Otávio sai da janela. Pula no chão. Passa por Leila sem sequer olhar para ela.
Fica de costas para Leila.
Otávio não esboça nenhuma reação. Leila anda até o meio da sala.
LEILA - É que você me deixa nervosa com essa conversa de morte, o que
acontece depois. Puxa, eu sou tão jovem, tão cheia de vida, não quero pensar
nessas coisas. Tenho tanta coisa pra fazer, pra realizar, tantos sonhos. Você não
vai falar mais?
Otávio não responde. Ele sequer se mexe. Leila anda até ele. Fica bem perto dele.
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LEILA (chorosa) - Ah, fala sim. Droga. Olha, Otávio, cê ficou chateado
comigo? Ficou sim. Eu te magoei, né? Ai, eu não queria isso, juro que eu não
queria.
Leila pega o pacote de supermercado que havia deixado no chão. Anda até o meio
da sala, senta no chão e abre o pacote.
LEILA - Olha, eu comprei algumas coisas na rua, achei que ia ser legal.
Leila vai tirando suas compras uma por uma animadamente e mostrando para
Otávio que sequer se dá ao trabalho de olhar para ela.
Otávio volta-se para ela vagarosamente. Anda até o meio da sala e pega o litro de
vinho da mão de Leila. Tira o saca-rolhas de dentro da jaqueta.
LEILA - Ah, o que é isso? Achei que você tava querendo beber. Te deixei
trancado aqui a manhã toda, sem nada pra beber, sei lá . Acho que você é o tipo
de cara que não gosta de ficar sóbrio por muito tempo, não é?
OTÁVIO - Éééé.
LEILA - Eu também trouxe uns livros. Comprei alguns pra você. Não
sei, acho que você gostaria de ler, sabe, de repente eu saio pro cursinho e você
fica aí sem nada pra fazer, sei lá, são livros ótimos, olha...
Leila tira do pacote alguns livros. Otávio não consegue acreditar no que está
vendo e ouvindo. Ela trouxe uma lista de best-sellers abomináveis.
LEILA - Ah, Otávio, puxa, eu não sei nada sobre você. Como é que eu
poderia adivinhar seu gosto literário?
OTÁVIO - Você deve me achar um puta panaca pra me trazer essa merda
toda.
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OTÁVIO - Geralmente as pessoas gostam de merda.
OTÁVIO - Você já parou pra pensar quantos bêbados tem nessa cidade?
OTÁVIO - Milhares.
LEILA - Mi-lhõõões.
LEILA - Pra que? Ora que pergunta! Porque eles são legais. Você vai gostar
deles. Os meus amigos são ótimos. Eu já te falei sobre meus amigos, né?
LEILA - Não, é claro que não. Eles fizeram uma festa surpresa pra mim. Ai,
foi tão bom, eu me emocionei, sabe, me emocionei. Me emocionei mesmo, chorei
de alegria, puxa, foi ótimo. Me deram presentes, aí nós cantamos, dançamos, nos
beijamos, nos abraçamos.
OTÁVIO - Me diz uma coisa, Leila. Será que teve mesmo essa festa
surpresa?
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OTÁVIO - Ou será que ninguém se lembrou do seu aniversário a não ser, é
claro, a pentelha da sua mãe que ficou ligando pra cá a noite toda. Sabe o que eu
acho? Que você ficou sozinha tentando ler essas merdas que você lê, assistindo
essa merda dessa televisão, ouvindo essas merdas desses teus discos sozinha
dentro dessa merda dessa tua kitchenete.
LEILA – (ofendida) Ora, porque é aqui que eu tenho que me realizar, vou
prestar vestibular, entrar pra faculdade, vou ser uma grande jornalista, trabalhar
num grande jornal. Eu tenho todo um projeto de vida, Otávio.
OTÁVIO - Os seus amiguinhos vão rir de você, vão descobrir o quanto você
é fraca, seus pais vão ficar decepcionados, a vizinhança toda vai comentar. Vai
ser um grande fiasco.
LEILA - Não é nada disso. Eu fico porque eu quero ser alguém, eu quero
significar algo, eu não quero passar a minha vida em vão, eu não quero ficar
como você batendo de porta em porta mendigando um lugar pra dormir.
(Fica um grande silêncio. Leila percebe que pegou pesado. Se arrepende no ato.
Otávio permanece calado não demonstrando nenhuma emoção identificável.)
OTÁVIO - Não. A sua mãe sabe que você estuda de manhã, não sabe?
LEILA - Eu não estou falando da minha mãe. Outra pessoa poderia ter
ligado.
LEILA - Ora, uma porção de gente. Amigos, você sabe, eu tenho muuuitos
amigos.
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OTÁVIO - Tem? Puxa, você nunca me falou sobre eles.
LEILA - E você?
OTÁVIO - Eu?
OTÁVIO - Eu como.
(Leila desliga o telefone como se acabasse de cometer um grande crime. Olha para
Otávio que sorri cínico.)
(O sorriso no rosto de Otávio desaparece por completo dando lugar para uma
expressão de derrota.)
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LEILA - Você quer tomar um suco? Eu faço.
OTÁVIO - Ir aonde?
OTÁVIO - Duvido.
LEILA - Vaaaamos?
(Leila solta um gritinho de felicidade. Gira a chave na porta e puxa Otávio pelo
braço.)
LEILA - Impossível. Meus amigos são divertidíssimos, papo ótimo. Você vai
adorar.
Bar. Os personagens Mário, Sérgio e Mirian podem ser apenas voz em off.
Fica a critério do diretor.
LEILA - Oi gente.
MARIO, SÉRGIO E MIRIAM - E aí, Leila, como é que é? Tudo bem? Legal
te ver.
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OTÁVIO - É. Ela me falou que vocês gostam de pagar umas cervejas pras
pessoas...
LEILA - Greve?
MIRIAN - Isso nos prejudica deveras, mas por outro lado temos de apoiar
os nossos professores. O que você acha Otávio?
MÁRIO - Lastimável.
SÉRGIO - Analisando por esse contexto mais amplo, eu acho que a Miriam
tem razão. Nós ainda não estamos preparados para lidar com a liberdade plena.
MIRIAN - Quer tomar uma cerveja?! Toma no bar. Universidade é local pra
estudar.
MÁRIO - Que absurdo! Que raciocínio mais reacionário! Você não acha
Leila?
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LEILA - Refrigerante ainda tá liberado, né?!
SÉRGIO - Era?!
SÉRGIO - Eu descobri uma FM que toca direto Roberto Carlos, não é ótimo
isso?
MÁRIO - Pelo amor de Deus, Sérgio! Não apela. Roberto Carlos é horrível!
OTÁVIO - O Caetano falar bosta não é novidade, né? Mas aí ele se superou,
né?
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OTÁVIO - É a quinta cerveja.
LEILA - Ah, eu adoro o Caetano, acho ele assim, sempre novo. É ótimo o
Caetano, né?
MIRIAN - Eu acho que tá meio na moda hoje em dia falar mal do Caetano.
É chique falar mal do Caetano. Não tem nada a ver. O Caetano é genial. Ele e o
Carlinhos Brown.
SÉRGIO - O Gil.
MIRIAN - Pois é, o Gil. Acho que a gente tinha que lavar a boca pra falar
desses caras. A gente tem mais é que reverenciar a monumentalidade da obra
deles. A contribuição inestimável que eles deram à música popular brasileira.
SÉRGIO - Eu vi um show dele que a cada compasso ele beijava a boca dos
músicos.
MIRIAN - É meio esquisito, né? Sei lá, o cara tem dois filhos...
SÉRGIO - É genial.
SÉRGIO - E a questão...
MIRIAN - Péra aí, Sérgio, péra aí. Gente, vocês já leram a Catherine Millet?
É bárbara! É uma critica de arte francesa conceituadissima que escandalizou
meio mundo quando escreveu um livro contando as putarias em que ela andou
metida.
MIRIAN - Essa mulher foi uma revelação pra mim. Depois que eu li tô
encanando que sexo grupal pode ser uma legal.
Otávio no limite de sua paciência, puxa Leila pelo braço.e os dois saem.
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Porta de uma danceteria.
LEILA - Puxa, Otávio, deixa de ser assim tão anti-social. Tem alguns
amigos meus aí dentro.
OTÁVIO - Não!
OTÁVIO - Você não disse que tem amigos seus aí dentro? Então!...
LEILA - Por isso mesmo, pega mal eu chegar sozinha. Vai parecer que eu
não tinha com quem vir. Vai todo mundo ficar falando. Ah, vai Otávio, vamos
entrar, eu pago.
OTÁVIO - Com essa grana que você vai gastar pra entrar aí, a gente podia
comprar um litro de vinho.
LEILA - Deixa pra lá, eu preciso falar com meus amigos que tão aí dentro.
LEILA - Otávio.
È uma boate gay. Público GLS óbvio. Música tecno muito alta. Os dois têm que
falar muito alto pra se fazerem ouvir.
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LEILA - Não é ótimo?
LEILA - É claro que é, Otávio. Relaxa e curte. Olha lá o meu amigo drag
queen. Ele sempre vem vestido daquele jeito. Vem montado.
LEILA - Ai, que gostoso, tanta gente bonita, exótica, diferente, alegre.
Vamos dançar, Otávio?
OTÁVIO - Não.
LEILA - Pô, Otávio, sair com você não tem graça nenhuma. É um tédio.
OTÁVIO - Satisfeita?
LEILA - Deixa pra lá, Otávio. Eu tenho uma idéia ótima. Vamos ao cinema.
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OTÁVIO - Assistir o que?
Vernissage.
LEILA - Não sei se você conseguiu notar, Otávio, mas esta é uma exposição
de arte. Se você não tem sensibilidade para apreciar obras de arte de extremo
bom gosto como essas que estão a sua frente, então por favor, deleite-se com o
vinho que está sendo oferecido no coquetel e me deixe apreciar sossegada a
exposição. Ai, Meu Deus, como é deslumbrante, que versatilidade de cores!
OTÁVIO - Pra mim parece ser tudo igual. Acho que é um desses pintores
egocêntricos que pintam o rabo dele em todos os quadros.
LEILA - Ah, aquele senhor me parece ser o marchand. Por favor, meu
senhor, trata-se do marchand?
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LEILA - Ah, sim. É o seu debut. É um calouro em exposições.
LEILA - Claro.
LEILA - Lindíssimo!
OTÁVIO - E ele vai ter coragem de vir aqui? Na certa vai se manter
anônimo.
LEILA - Por favor, o senhor desculpe o Otávio. É que ele bebeu demais.
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MARCHAND - Praticamente tudo. Apesar de ser muito difícil para ele
vender o seu trabalho. A senhorita entende, uma obra de arte tem um valor
estimativo.
OTÁVIO - Olha aí cara, se você falar mais dois minutos ela compra a
metade dessas bostas aí.
LEILA - Otávio, por favor, você não vê que não fez outra coisa hoje a não
ser ser indelicado.
OTÁVIO - Porra, Leila, isso é perda de tempo. Esses quadros são horríveis.
O cara deve ter pintado essas merdas com o pincel enfiado no rabo. Da janela da
sua kitchenete eu vejo coisas muito mais bonitas.
OTÁVIO - Aí, ô peroba. Se você não fechar essa sua boca de porra, eu
quebro uma dessas merdas com falos em ascensão na tua cabeça, ok?
LEILA - Meu Deus, Otávio, vamos embora, senão você acaba tocando fogo
nos quadros.
OTÁVIO - É uma boa idéia. Aliás, eu já disse pra você que eu sou
piromaníaco, não disse?
Já fora da Vernissage
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OTÁVIO - Não começa a me bajular não, ta?
LEILA - Eu quero saber onde você vai. Eu te falei alguma coisa que te
magoou?
OTÁVIO - Você ainda não viu nada. Vai atravessar a rua ou não vai?
OTÁVIO - É puta louca sim. Passa por cima dela, seu bosta.
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LEILA - Otávio, de que lado você está?
Ela vê ele dobrando uma esquina. Ela dobra a esquina atrás dele. Vê ele entrando
dentro de uma igreja. Vai atrás dele. Entra dentro da igreja.
LEILA - Otávio, onde é que você tá? O que é que você veio fazer aqui?
Otávio, me perdoa. Olha, eu vou comprar aquele litro de vinho. Tá tudo bem.
Otávio, você tá aí em cima? É você que tá aí Otávio?
LEILA - Meu Deus! que estranho! Pensei mesmo que você ia prum puteiro.
O que você veio fazer aqui?
OTÁVIO - É uma tara minha. Eu sempre quis estuprar uma garota dentro
de uma igreja, aí na hora que eu fosse gozar, tocava o sino.
OTÁVIO - Medo?
LEILA - Medo de que você fosse embora, quer dizer, sei lá.
OTÁVIO - O tempo.
LEILA - O que?
LEILA - Otávio...
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OTÁVIO - Fica quietinha. Não fala nada. Só ouve.
LEILA - Nada!
OTÁVIO - Eu posso parecer niilista, mas não é por aí. Sou só um cético de
saco cheio arrastando minha cabeça bêbada por aí, fascinado por ponteiros de
relógio. O tempo.
LEILA - Otávio...
OTÁVIO - O que é?
LEILA - Meu Deus, que guitarra mais bonita. Espera aí. Não fala não.
Deixa eu adivinhar. Herbert Vianna.
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OTÁVIO - É a sua mãe!
LEILA - Como você pode ter tanta certeza? Pode ser um amigo.
Otávio sorri.
Leila olha para Otávio que não esboça nenhuma reação. Ela ruboriza meio
envergonhada.
LEILA - É claro que eu acho que vou passar, aliás, acho não, eu vou
passar, é claro que eu vou passar. Já passei. Já me considero uma universitária.
Estou muito bem preparada, Otávio. Quando eu me formar, eu quero ver se
consigo emprego assim num jornal bem legal, importante, ou então na televisão
tipo correspondente internacional, sei lá. Ou quem sabe a revista Veja, é, ia ser
legal trabalhar na Veja, sei lá. Acho que depois que eu estiver na faculdade eu
posso optar melhor. Sabe, a faculdade vai me abrir a cabeça em vários sentidos.
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OTÁVIO - Puta que pariu.
LEILA - Mudei sim. É claro que eu mudei. Mudei muito. Ai, eu tô tão feliz.
A gente precisa comemorar a minha felicidade. Vamos sair Otávio? Olha só. Tem
uma festa na casa do Ricardinho...
OTÁVIO - Esquece, Leila. Tô sem saco pra agüentar seus amigos hoje.
LEILA - Ah, por favor Otávio, eu tô tão feliz hoje, não vai estragar isso.
Vamos lá, faz isso por mim.
OTÁVIO - Não.
OTÁVIO - Não.
LEILA - Eu tenho uma amiga que trabalha no Café Piu Piu, no Bexiga...
OTÁVIO - Aí, Leila, eu tenho uma idéia melhor. A gente vai radicalizar.
Vamos fazer um troço diferente hoje. Algo jamais pensado. Vamos fazer o
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seguinte. Você desce, compra dois litros de vinho, uma caixa de latinhas de
cerveja, traz pra cá e eu fico bebendo e ouvindo você falar o que vai fazer quando
se tornar uma grande jornalista, ok?
OTÁVIO - Ok, pode sair. Quem é que tá te segurando aqui? Eu? Eu mal
consigo me segurar.
LEILA - Eu quero sair com você, Otávio. E não adianta você ficar me
olhando assim. Não vai dar certo. Eu não vou descer, comprar vinho e cerveja e
passar mais uma noite trancada aqui dentro, não vou. Decididamente não vou.
Não vou. Não vou. (pausa) Merda, eu tenho uma amiga feminista que me
enforcava se me visse fazendo isso. Merda, merda.
Abre a porta, fula, e sai por ela, fechando a porta atrás de si e resmungando.
Leila tira os olhos da lista e levanta a cabeça olhando para Otávio como se
buscasse ajuda.
OTÁVIO - É uma série de nomes. Ousaria até dizer que é uma lista.
LEILA - Otávio, eu não entendo, eu fiz tudo certo, eu tinha certeza que ia
passar.
OTÁVIO - Não se preocupa não. Todo ano sai uma lista dessa. Na próxima
o teu nome aparece.
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LEILA - Da minha turma só eu que não passei, Otávio. Com que cara eu
vou sair na rua agora? Meu Deus, que injustiça. Eu estudei tanto, eu tava tão
bem preparada. Meu Deus, eu tô desesperada.
LEILA - Será que você não entende, Otávio? O quanto eu alimentei essa
vontade de entrar pra faculdade? Será que você não entende que passar no
vestibular se tornou a coisa mais importante da minha vida?
LEILA - Não é assim, Otávio. Existem outras coisas importantes pra mim.
Existem meus pais, existe... você.
LEILA - Eu não tenho coragem. Como é que eu vou ligar pra ela e dizer que
eu reprovei no vestibular? Como? Me ajuda, Otávio.
LEILA - Sei lá, diz alguma coisa reconfortante, me ajuda a sair dessa.
LEILA - Como é que você pode ser tão insensível? Bem que meus amigos
sempre me falaram que você era um sujeito antipático, mau caráter, e que eu não
devia confiar em você, mas eu nunca quis ouvir ninguém.
OTÁVIO - Vai começar a chorar agora, é? Que saco. Cadê seus amigos?
Por que você não procura eles?
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OTÁVIO (gritando ainda mais) - Quer parar de gritar? Se tem uma coisa
que eu detesto é histeria.
OTÁVIO (gritando) - Para de pedir desculpa. Teu problema é esse, você fala
demais, você faz besteira demais, você pede desculpa demais, você faz uma
porrada de coisas que não devia fazer e faz demais.
LEILA - Eu não tenho mais nenhuma perspectiva, Otávio. O que vai ser de
mim? O que é que eu vou fazer?
LEILA (irritada e gritando) - Por que você é tão egoísta, Otávio? Você não vê
que eu tô sofrendo? Você é egocêntrico, narcisista, individualista, você só se
preocupa com seu umbigo.
OTÁVIO (calmo) - Nem com ele, baby, nem com ele. Mais uma vez você
errou.
LEILA - Eu acho que eu vou ouvir um pouco de música, sei lá. acho que
pode ajudar, né? Não sei, eu queria esquecer. Só por um momento. Eu sei lá. Tô
sem chão. Não sei o que fazer.
LEILA - Meu Deus, Otávio. Esse aparelho é meu, os cds são meus.
LEILA - Me diz uma coisa... aquela noite que você bateu na minha porta, a
noite que você apareceu. Se eu não tivesse deixado você entrar, o que você teria
feito?
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LEILA (com lágrimas nos olhos) - Meu Deus, Otávio, se eu sou tão
insignificante assim, porque você não foi embora?
LEILA - Como eu fui idiota, eu achei que significava alguma coisa pra você.
Teve um momento até que eu achei...Meu Deus.
LEILA - Acabou.
OTÁVIO - Acabou?
Otávio vai até ela. Leila está sentada na janela na mesma posição que Otávio
estava no início da cena dois. Ela deixou o litro de vinho ao lado dela. Otavio se
aproxima e estende a mão. Leila sorri e também lhe estende a mão. Otávio pega o
vinho e dá as costas pra ela. Senta-se longe e continua tomando vinho. Leila
pula. Otavio levanta-se e vai até a janela, senta-se no parapeito, bebe o último
gole e olha para baixo, depois para a platéia.
O telefone toca. Otávio levante-se e vai até ele. Não atende. Vira o porta-retrato
para a platéia. Nele está a foto dos pais de Leila. Otávio sai. A luz fica apenas no
porta retrato e no telefone que continua tocando.
.
Um blues lento e dolorido começa a tocar.
FIM
LEILA BABY 35