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LEILA BABY

de MARIO BORTOLOTTO

Cena um

A televisão está ligada. um noticiário qualquer falando de São Paulo. O telefone


toca.

LEILA - Mamãe? Oi mamãe, que ótimo que a senhora ligou. Eu tava


justamente tentando ligar pra aí. Ai mamãe, que ótimo, mamãe, que ótimo... Eu
tô um pouco rouca...não, não é nada. Friagem, a noite paulista...não, o que é isso
mãe?
Não...Eu não saio a noite, praticamente não saio a noite...claro, eu sei que é
perigoso..., é a janela, eu esqueço a janela aberta, é por isso...não mamãe, a
janela não tem problema, eu moro no décimo andar, não dá pra ninguém entrar
pela janela...só o Homem Aranha, né mãe? ...quem é o Homem Aranha?...não é
ninguém mamãe, é só uma brincadeirinha minha...

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Não, tá tudo ótimo...o cursinho é ótimo, acho que é o melhor cursinho do país: os
professores são brilhantes, nossa mamãe como eles são geniais, todos eles. E eu
já tenho uma porção de amigos, universitários, pessoas ótimas, com mente
arejada, idéias novas, ai mamãe eles são ótimos. A senhora sabe, eu tenho muita
facilidade em fazer amigos, eu não sei o que acontece, as pessoas gostam de mim,
simplesmente elas gostam de mim, eu acho ótimo...é, simpatia, acho que é isso,
eu sou bastante simpática, sociável, mas eu acho...ótimo. E o papai? Ele tá
legal?

Ouve-se o barulho da campainha

LEILA - Tão tocando a campainha, mamãe, espera um minutinho só.

Atende a porta. Aparece Otávio. Usa jaqueta velha, calça puída e óculos escuros.
Calça coturnos.

OTÁVIO - Tô sem lugar pra dormir. Será que dá pra ficar por aí?

LEILA - Dormir? Como assim, dormir?

OTÁVIO - Dormir, você sabe, dormir.

LEILA - Mas eu nem te conheço.

OTÁVIO - Acho que não.

LEILA - Quem é você? Quer dizer, sei lá. Ai que estranho.

OTÁVIO - O telefone tá fora do gancho.

LEILA - É minha mãe, eu tava falando com ela quando você tocou a
campainha.

OTÁVIO - E aí?

LEILA - O que?

OTÁVIO - Eu posso entrar?

LEILA - É que...não sei...Meu Deus, minha mãe...

Leila corre esbaforida até o telefone. Pega o telefone tomando o cuidado de tapar o
bocal.

LEILA (para Otávio) - Ah...eu...entra.

Otávio entra.

LEILA (ao telefone) - Alô mamãe, era o zelador. Não, era um problema banal,
algo a ver com as chaves, bobagem. O pessoal daqui é muito cuidadoso, muito

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organizado. É legal, né mamãe? Isso faz com que nos sintamos protegidos. É
muito bom... bom, mamãe, um beijo grande, dê um beijo no papai por mim,
sim? Tchau, eu ligo amanhã. Tchau. Durma com os anjos.

Leila desliga o telefone. Fica olhando Otávio.

OTÁVIO - Eu tô mal.

LEILA - É grave?

OTÁVIO - Não! É só um porre.

LEILA - Isso acontece sempre?

OTÁVIO - Freqüentemente...constantemente...quase que ininterruptamente.

LEILA - Deve ser emocionante.

OTÁVIO - Não. É monótono.

LEILA - Como é que você subiu? O porteiro não costuma deixar pessoas
estranhas subirem.

OTÁVIO - Você tem cerveja aí?

LEILA - Como?

OTÁVIO - Cerveja. Ah, merda, cê sabe o que eu quero dizer.

LEILA - Não, não tenho cerveja. Não tenho cerveja não.

OTÁVIO - E vinho?

LEILA - É claro que não. Imagina. Imagina se eu tenho vinho em casa, já


pensou se a minha mãe vem me visitar e encontra vinho na geladeira, ela...

OTÁVIO - Eu vou descer e buscar...

LEILA - Você vai embora?

OTÁVIO - Sei lá.

LEILA - Eu posso buscar pra você! Quer dizer, eu tenho mesmo que descer
pra comprar algumas coisas, objetos pessoais, aí eu posso aproveitar e trazer um
litro de vinho pra você.

OTÁVIO - Tudo bem. Faz isso.

OTÁVIO - E aí?

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LEILA - Aí?

OTÁVIO - Você não ia descer?

LEILA - Claro...Olha , se o telefone tocar, você por favor não atende, tá? É
que pode ser minha mãe ligando de novo, você entende? Ela liga constantemente.
Já pensou o que ela pode vir a imaginar se você atender o telefone, ela é capaz de
imaginar coisas terríveis, escabrosas mesmo. Você não conhece a minha mãe.

OTÁVIO - Que idade?

LEILA - Dezenove. Dezenove anos eu tenho. Idade ótima, né?

OTÁVIO - A sua mãe.

LEILA - Cinqüenta. Cinqüenta primaveras.

OTÁVIO - Olha, se você quiser, eu posso buscar o vinho.

LEILA - Não, eu vou, eu tenho mesmo que descer, eu... eu já vou ...

OTÁVIO - Então tá.

LEILA - Ah! só mais uma coisa. É que ...meus amigos...eu tenho muitos
amigos.

OTÁVIO - (irônico) Que legal!

LEILA - É, eles são ótimos. Eles sempre aparecem por aqui à noite pra gente
conversar, ouvir música. De vez em quando eles trazem violão, a gente fica
cantando músicas do Zeca Baleiro, do Chico César, do Lenine, do Arnaldo
Antunes...

OTÁVIO - Do Tom Zé.

LEILA - Nossa, é isso mesmo.

OTÁVIO - São universitários.

LEILA - Ai meu Deus, que perspicácia. Você vai adorá-los. Eles são
maravilhosos.

OTÁVIO - É. Eles me parecem mesmo...uns puta mala.

LEILA - Uns..não! Meus amigos são bárbaros.

OTÁVIO - Sobre aquele litro de vinho...

LEILA - Eu vou buscar...

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LEILA - Então... se alguém bater na porta...

OTÁVIO - Eu abro!

LEILA - É. Você abre. Então tá, eu vou descer. Até daqui a pouco. Fica a
vontade.

Otávio senta na cama e tira os coturnos lentamente sem tirar os olhos de Leila.

OTÁVIO - Eu tô a vontade.

LEILA - Então tá.

Leila sai. Otávio fica sozinho. Olha com desprezo as capas de discos e com
desinteresse o porta-retrato com a foto dos pais de Leila. Mexe na bolsa de escola
de Leila e pega um chocolate.

Leila volta.

LEILA (bate na porta) - Ei. (Pra si) Ai meu Deus, eu não perguntei o nome
dele. Que loucura, como é que pode? Ei rapaz, sou eu. Eu (Pra si) droga, eu
também não disse meu nome. Meu Deus o que está acontecendo comigo? Ei
rapaz, abre a porta, sou eu, a gentil senhorita que o está abrigando.

OTÁVIO (empurra a porta) - Ela ta aberta. Eu não fechei.

LEILA (entrando) - Mas você não fechou a porta? É perigoso. Você não é
de São Paulo. De onde você é? É muito perigoso deixar a porta aberta.
Perigosíssimo. É muito perigoso.

OTÁVIO (sentado no colchão comendo o chocolate) - Senta aí. Relaxa. Fica


a vontade. A casa é sua. Quer um pedaço?

LEILA - Não, obrigada. Eu não como antes de dormir.

OTÁVIO - Ah, você vai dormir.

LEILA - Pretendo. Sinceramente pretendo.

OTÁVIO - Trouxe o vinho?

LEILA - Claro. Tá aqui.

Leila entrega a garrafa para Otávio que tira um saca rolhas do bolso da jaqueta e
começa a abrir o vinho. Leila senta-se na frente dele e fica olhando com interesse
meio que infantil.

LEILA - Não me lembro de ter perguntado o seu nome.

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OTÁVIO - Você não perguntou.

LEILA - O meu nome é Leila. Mas lá no cursinho o pessoal me chama de


Leila Baby. Não é bonitinho?

Otávio olha para ela com absoluto desprezo. Consegue tirar a rolha da garrafa.
Dá um longo gole.

LEILA - Eu acho tão carinhoso da parte deles. E o seu? Como é seu nome?

OTÁVIO - Eu tenho cara de que?

LEILA - Ah! Não sei...Fred. Não. Fred não...Eduardo. Não. Eduardo


também não. Otávio. É. Otávio.

OTÁVIO - Ok. Otávio.

LEILA (espantada) - O seu nome é Otávio?

OTÁVIO - É.

LEILA (incrédula) - Não, não é. Claro que não é. Imagina. Claro que não é.

OTÁVIO - Agora é. Me batiza aí.

Otávio entrega o litro de vinho para Leila.

LEILA (segurando hesitantemente o litro de vinho) - Batizar?

Otávio ajoelha como um cavaleiro prestes a ser sagrado.

OTÁVIO - É. Despeja o vinho na minha cabeça. Diz umas palavras mágicas


e aí eu fico sendo Otávio.

LEILA - Ai, que louco! Com vinho?

OTÁVIO - Com vinho!

LEILA - Eu não vou fazer isso não. Vai molhar meu carpete.

OTÁVIO - Eu não deixo cair uma gota. Vai despeja aí.

Hesita um pouco mas acaba por entrar na brincadeira. Faz pose de rainha que
vai sagrar o cavaleiro.

LEILA - De agora em diante, por minha vontade, minha soberana vontade,


serás chamado Otávio. Otávio, o bêbado oficial da Rainha Leila I. Imbuída de
meus poderes eu te batizo Otávio. Doravante assim será.

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Leila despeja o vinho na cabeça de Otávio que bebe e lambe o que lhe escorre pelo
rosto. Otávio então se levanta calmamente e fica olhando Leila que o olha com
nítido interesse e uma alegria quase que infantil. Ele toma o litro de volta e dá um
grande gole.

LEILA - Qual a cor de seus olhos?

OTÁVIO - Lusco-fusco.

LEILA - Como é que é?

Otávio tira os óculos escuros.

LEILA - Eu sabia. Eu tinha certeza que essa era a cor de seus olhos.

Otávio volta a colocar os óculos escuros.

LEILA - Que signo você é? Eu sou gêmeos.

OTÁVIO - Tigre.

LEILA - Tigre?

OTÁVIO - No horóscopo chinês!

LEILA - Ah!

Otávio volta a se sentar no colchão. Dá um gole no vinho e o coloca de lado.

OTÁVIO - Olha, eu vou dormir. Perigas eu começar a roncar, fungar, ter


espasmos, plantar bananeira e sair rastejando por aí cantando "Coração de
Estudante", mas não liga não, tá? É normal!

LEILA - É normal?

OTÁVIO - É.

Otávio deita espalhando o seu corpo displicentemente por quase toda a dimensão
do colchão.

LEILA - Então você vai dormir? Eu também vou dormir.

OTÁVIO - Ótimo. Apaga a luz.

LEILA - Não. Quer dizer, eu tenho medo do escuro. Sempre durmo de luz
acesa. Sempre.

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OTÁVIO - Ok.

Leila ajoelha-se no colchão e fica olhando Otávio por um tempo com uma
curiosidade infantil.

LEILA (falando maternalmente) - Você já tá dormindo?

OTÁVIO (enfastiado) - Jáááá.

LEILA (rindo) - Ai, como você é engraçado.

OTÁVIO (cínico) - He-he-he.

LEILA (pegando o telefone do lado do colchão) - Eu vou ligar pra minha


mãe. Lembrei que esqueci de falar sobre um problema pra ela. Vou ligar. Você
não se incomoda, né?

OTÁVIO - É chato!

LEILA - Que é isso? É rápido.

Leila espera um pouco. Otávio vira para o outro lado tentando se ajeitar o mais
longe possível de Leila.

LEILA - Alô mamãe? É a Leilinha! Não, tá tudo bem. É que eu esqueci de


dizer que...tem apostila nova... pois é... fala pro papai pra ele mandar a nova
parcela. Era só isso mamãe...Claro que eu tô bem. Você não precisa se
preocupar. Tchau mamãe, eu ligo amanhã. Tchau. Durma com os anjinhos.

Leila desliga. Volta a colocar o telefone no chão ao lado do colchão. Otávio está
quase dormindo. Leila apresenta sinais de que está incomodada. Vai se
aproximando de Otávio. Chega bem perto dele. Quase encosta sua boca na orelha
de Otávio.

LEILA (gritando) - Escuta. Você sempre faz isso?

Otávio levanta a cabeça assustado e mal humorado.

LEILA (falando baixo contrastando com o grito que havia dado) - Quero
dizer, você sempre bate na porta de pessoas que você não conhece e pede a elas
pra deixarem você dormir?

OTÁVIO - É o meu método preferido.

LEILA - E sempre dá certo?

OTÁVIO - Depende muito do Q.I de quem abre a porta.

LEILA - O que você quer dizer com isso?

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OTÁVIO (desanimado e incrédulo) - Nada.

LEILA - Você é estranho. Muito estranho. Estranhíssimo...mas é bastante


bonito! Quer dizer, é que eu gosto de homem assim como você, cabelo
despenteado, barba por fazer, não sei, eu gosto, meus amigos são diferentes.

OTÁVIO - Universitários.

LEILA - Universitários.

OTÁVIO - Deita aqui...perto de mim.

Leila levanta-se do colchão visivelmente ofendida.

LEILA - Olha aqui, rapaz, você parece que me entendeu mal. Eu apenas
disse que acho você interessante. Só isso.

OTÁVIO - Eu acho que você é virgem.

LEILA - Como é que é?

OTÁVIO - Eu acho que de tanto estudar e ouvir música popular, esses seus
amiguinhos universitários ficaram todos brochas e que você ainda é virgem.

LEILA (ainda mais ofendida) - Imagina! Que ousadia! Eu não lhe dei
liberdade pra deduzir nada a respeito de minha vida íntima. E quanto aos meus
amigos universitários, são todos ótimas pessoas, eles me entusiasmam a ser um
deles. E eu ainda não sou uma universitária, estou fazendo cursinho. Sou uma
pré-vestibulanda.

OTÁVIO - Tá na cara que é.

LEILA - Pré-vestibulanda?

OTÁVIO (categórico) - Virgem.

LEILA - Meus Deus, você só pensa nisso. Você é um doente.

OTÁVIO - Sou só um cara de porre que tá querendo dormir. Boa noite.

Otávio volta a deitar e tenta cobrir a cabeça com o travesseiro. Leila


inconformada, ajoelha no colchão ao lado dele.

LEILA (falando estridentemente) - Boa Noite? Como boa-noite? Vai me


deixar aqui falando sozinha? Escuta, você não quer ouvir música?

Leila levanta e anda até o porta Cds. Traz ele para perto do colchão.

LEILA - Eu tenho alguns Cds ótimos. Escolhe um.

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OTÁVIO (deitado apontando com o dedo do pé e ainda protegendo a cabeça
com o travesseiro) - Esse aí.

LEILA - Carlinhos Brown. Ai, adoro o Brown.

OTÁVIO - Não. Esse outro aí, ó.

Otávio volta a apontar com o dedão do pé sem olhar para os Cds.

LEILA - Chico Sciense. Ai, o Chico Sciense é maravilhoso. Adoro a Nação


Zumbi. Eu e minha turma adoramos toda a turma do Mangue Beat. Eles são
ótimos.

OTÁVIO (apontando novamente com o pé) -- Eu tô falando desse outro Cd.

LEILA (impaciente) - Mas de que Cd você tá falando? Ai meu Deus, como


você é indeciso. A sugestão musical fica por minha conta, ok? Vamos
ouvirrrrr...MARISA MOOOONTE.

Otávio tira o travesseiro de cima da cabeça e olha para Leila incrédulo.

LEILA (entusiasmadíssima) - Ai, eu acho a Marisa fantástica, genial,


maravilhosa. A Marisa é tudo, uma unanimidade nacional. Todo mundo adora a
Marisa. Eu acho a Marisa divina, esplêndida. A Marisa é show. O que você acha
da Marisa ?

OTÁVIO - Uma puta mala.

LEILA - Ai, que excêntrico! É o primeiro cara que conheço que diz que não
gosta da Marisa. Meu Deus, como você é diferente.

Otávio levanta-se do colchão totalmente desolado e fica olhando para Leila.

LEILA - É que... é uma experiência nova pra mim. Todas as pessoas que
conheço, quer dizer, as pessoas do meu círculo de amizades, todas elas gostam
da Marisa. Eu preciso apresentar você pros meus amigos, preciso mesmo. Acho
que eles vão adorar você. É claro, a principio vão achar você um pouco excêntrico
e tal, mas vão adorar você.

OTÁVIO - E eu vou odiá-los. Aliás, eu já os odeio. Odeio por antecipação.


Acho todos eles uns... puta mala.

LEILA (cínica) - O seu vocabulário é muito rico e variado. E sua


concordância verbal é invejável.

Otávio visivelmente cansado anda em direção a janela. Leila vai atrás dele.

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LEILA - Eu pretendo prestar pra jornalismo, sabe? Eu não sei, sei lá, acho
jornalismo fascinante. Tá em mim, você entende? Jornalismo tá em mim. No
colégio minhas redações eram ótimas, eu arrasava. Os professores não se
cansavam de me elogiar. Eu escrevo muito bem, e além de tudo eu acho
jornalismo uma profissão que oferece condições de atuação, quero dizer de real
atuação dentro da sociedade. Você me entende? Você consegue me entender?

OTÁVIO (olhando pela janela e bocejando) - Eu tô fazendo um esforço


enorme.

LEILA - Nós jornalistas podemos mudar realmente alguma coisa na ordem


do dia. Meu Deus, eu estou falando como se já fosse uma. Pois é, eu acho isso.

OTÁVIO (desanimado) - Olha aí. O sol já tá aparecendo e nada da gente


dormir.

LEILA - E eu vou ter que ir pro cursinho. É longe a beça. Tenho que pegar
ônibus, depois metrô, depois ônibus. É horrível...

LEILA (sinceramente penalizada) - E você não dormiu.

OTÁVIO (conformado) - Pois é.

LEILA (maternal) - Olha, faz o seguinte...dorme. Quer dizer, eu vou e você


fica...dormindo.

Otávio não esboça a menor reação.

LEILA (esperançosa) - Você fica, né?

OTÁVIO (desdenhosamente) - Não sei.

LEILA (infantil) - Não. Fica sim. A gente ainda tem tanto pra conversar, eu
queria te conhecer melhor... ou você tem algum compromisso agora de manhã?

OTÁVIO - Nenhum.

LEILA - Então...fiiiica
.
OTÁVIO - Eu não sei.

LEILA - Olha, eu vou fazer o seguinte.

Leila gira a chave abrindo, e tira ela da porta.

LEILA - Eu vou deixar a porta trancada, assim eu sei que você não vai
poder ir embora.

OTÁVIO - Eu pulo a janela.

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LEILA - Dééécimo andar.

OTÁVIO - Eu pulo.

LEILA (cética) - Ah, não pula. O que é isso? Décimo andar. Não tem como
pular, que loucura. Tchau. Eu vou indo. Vou deixar a porta trancada. Tchau.

Leila abre a porta e vai saindo. Otávio volta-se para ela.

OTÁVIO - Eu queria te confessar uma coisa.

Leila fica parada na porta aberta olhando para Otávio.

LEILA (zombeteira) - Ora vejam, o Sr. Mistério vai fazer a sua primeira
confissão do dia. Ok, vamos lá, sou toda ouvidos.

Otávio anda até o meio da sala.

OTÁVIO - Sou piromaníaco e um suicida em potencial.

LEILA - O que você quer dizer com isso?

OTÁVIO - Que eu toco fogo nessa kitchenete e pulo a janela.

LEILA (incrédula) - Ah, imagina que você faz isso, imagina. Eu vou deixar a
porta trancada mesmo.Tchau, Otávio. Se o telefone tocar, você não atende.

Leila sai e o telefone toca..

Cena dois

Otávio está sentado no parapeito da janela com as pernas pra fora. Seu corpo
balança perigosamente. A porta da kitchenete se abre. Leila entra e fica
apavorada quando vê Otávio sentado na janela. Ela fica parada na porta sem
conseguir se mexer. Traz nas mãos além da bolsa e das apostilas um pacote de
supermercado.

LEILA (gritando) - Otávio, o que você está fazendo aí?

Otávio não responde. Leila coloca o pacote, a bolsa e as apostilas no chão e anda
hesitantemente em direção a janela.

LEILA (maternal) - Pelo amor de Deus, Otávio, sai dessa janela, vai, é muito
perigoso. Você pode cair.

OTÁVIO - É.

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LEILA (apreensiva) - Otávio, eu tô falando sério. Você tá me deixando
nervosa. Se é comum pra você ficar sentado na janela de apartamentos no décimo
andar, não é comum pra mim ficar assistindo pessoas fazendo isto,
principalmente na minha janela. Ah, Otávio, por favor, desce daí. Vem pra cá,
vem.

Leila fica bem perto de Otávio.

OTÁVIO - O que será que acontece se eu cair lá embaixo?

LEILA - Você morre. É evidente.

OTÁVIO - Sei. E daí?

LEILA (impaciente) - E daí... e daí o que Otávio?

OTÁVIO - O que será que acontece depois?

LEILA - Depois?

OTÁVIO - É. Depois. Será que dá um black-out? Será que nossa alma sai
fora? Será que ela fica bundando por aí? Será que vai ter algo pra fazer depois ou
a vida eterna é uma eterna cossação de saco? Ou será que a gente vai trabalhar
pesado nas ferrovias do além pra pagar as sujeiras que andamos aprontando por
aqui? O que é que você acha?

LEILA (perdendo a paciência) - O que eu acho? Olha, eu acho... eu acho


que você tem que sair dessa janela e parar de falar tanta besteira. Que papo mais
funesto. Prefiro você quando fica calado.

OTÁVIO - Ok.

Otávio sai da janela. Pula no chão. Passa por Leila sem sequer olhar para ela.
Fica de costas para Leila.

LEILA (arrependida) - Ah, me desculpa. Fala sim. Eu queria ouvir você


falar.

Otávio não esboça nenhuma reação. Leila anda até o meio da sala.

LEILA - É que você me deixa nervosa com essa conversa de morte, o que
acontece depois. Puxa, eu sou tão jovem, tão cheia de vida, não quero pensar
nessas coisas. Tenho tanta coisa pra fazer, pra realizar, tantos sonhos. Você não
vai falar mais?

Otávio não responde. Ele sequer se mexe. Leila anda até ele. Fica bem perto dele.

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LEILA (chorosa) - Ah, fala sim. Droga. Olha, Otávio, cê ficou chateado
comigo? Ficou sim. Eu te magoei, né? Ai, eu não queria isso, juro que eu não
queria.

Leila pega o pacote de supermercado que havia deixado no chão. Anda até o meio
da sala, senta no chão e abre o pacote.

LEILA - Olha, eu comprei algumas coisas na rua, achei que ia ser legal.

Leila vai tirando suas compras uma por uma animadamente e mostrando para
Otávio que sequer se dá ao trabalho de olhar para ela.

LEILA - Olha...pêssego em calda, você gosta? Não? É gostoso. Sucrilhos da


kellogs? Também não? Gelatina, eu posso fazer gelatina. Você gosta de gelatina?
Gatorade? Também não? É saudável. Eu adoro.

Leila, derrotada, tira então um litro de vinho de dentro do pacote.

LEILA - E trouxe também...um litro de vinho...você quer?

Otávio volta-se para ela vagarosamente. Anda até o meio da sala e pega o litro de
vinho da mão de Leila. Tira o saca-rolhas de dentro da jaqueta.

OTÁVIO - Acho que você tem sensibilidade.

LEILA - Ah, o que é isso? Achei que você tava querendo beber. Te deixei
trancado aqui a manhã toda, sem nada pra beber, sei lá . Acho que você é o tipo
de cara que não gosta de ficar sóbrio por muito tempo, não é?

OTÁVIO - Éééé.

LEILA - Eu também trouxe uns livros. Comprei alguns pra você. Não
sei, acho que você gostaria de ler, sabe, de repente eu saio pro cursinho e você
fica aí sem nada pra fazer, sei lá, são livros ótimos, olha...

Leila tira do pacote alguns livros. Otávio não consegue acreditar no que está
vendo e ouvindo. Ela trouxe uma lista de best-sellers abomináveis.

LEILA - E então, o que você acha? Não são ótimos?

OTÁVIO - Retiro o que eu disse sobre sensibilidade.

LEILA - Ah, Otávio, puxa, eu não sei nada sobre você. Como é que eu
poderia adivinhar seu gosto literário?

OTÁVIO - Você deve me achar um puta panaca pra me trazer essa merda
toda.

LEILA - Não é isso. É que geralmente as pessoas gostam destes livros.

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OTÁVIO - Geralmente as pessoas gostam de merda.

LEILA - Que tipo de livro você gosta?

OTAVIO - A Bíblia e “Como emagrecer comendo”.

LEILA - Ah, por favor, Otávio.

OTÁVIO - Você já parou pra pensar quantos bêbados tem nessa cidade?

LEILA - Uma porção.

OTÁVIO - Milhares.

LEILA - Mi-lhõõões.

OTÁVIO - Também nem tanto assim, né?

LEILA - Você precisa conhecer meus amigos.

OTÁVIO - Pra que?

LEILA - Pra que? Ora que pergunta! Porque eles são legais. Você vai gostar
deles. Os meus amigos são ótimos. Eu já te falei sobre meus amigos, né?

OTÁVIO (entediado) - É seu assunto preferido.

LEILA - É porque eu gosto muito deles, entende Otávio? Eu gosto muito


deles e eles me adoram! Eles simplesmente me adoram. É tão legal, é tão
saudável essa reciprocidade. Puxa. Sabe que no meu aniversário... sabe o que
eles fizeram no meu aniversário, Otávio?

OTÁVIO - Se esqueceram dele.

LEILA - Não, é claro que não. Eles fizeram uma festa surpresa pra mim. Ai,
foi tão bom, eu me emocionei, sabe, me emocionei. Me emocionei mesmo, chorei
de alegria, puxa, foi ótimo. Me deram presentes, aí nós cantamos, dançamos, nos
beijamos, nos abraçamos.

OTÁVIO - E tudo terminou numa grande, apoteótica e amigável suruba.

LEILA - Como você é doente, Otávio. Você só pensa nessas coisas.

OTÁVIO - Me diz uma coisa, Leila. Será que teve mesmo essa festa
surpresa?

LEILA - É claro, imagina.

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OTÁVIO - Ou será que ninguém se lembrou do seu aniversário a não ser, é
claro, a pentelha da sua mãe que ficou ligando pra cá a noite toda. Sabe o que eu
acho? Que você ficou sozinha tentando ler essas merdas que você lê, assistindo
essa merda dessa televisão, ouvindo essas merdas desses teus discos sozinha
dentro dessa merda dessa tua kitchenete.

LEILA - Como você é cruel, Otávio.

OTÁVIO - Você se perturba quando derrubam o seu castelinho de areia,


né?

LEILA - Você me assusta, essa cidade me assusta, as pessoas, as luzes, os


carros. As vezes eu penso em voltar pra Piracicaba.

OTÁVIO - (com sotaque piracicabano) E “purque” é que não “vorta”?

LEILA – (ofendida) Ora, porque é aqui que eu tenho que me realizar, vou
prestar vestibular, entrar pra faculdade, vou ser uma grande jornalista, trabalhar
num grande jornal. Eu tenho todo um projeto de vida, Otávio.

OTÁVIO - Você não volta porque vai pegar mal.

LEILA - Como assim?

OTÁVIO - Os seus amiguinhos vão rir de você, vão descobrir o quanto você
é fraca, seus pais vão ficar decepcionados, a vizinhança toda vai comentar. Vai
ser um grande fiasco.

LEILA - Não é nada disso. Eu fico porque eu quero ser alguém, eu quero
significar algo, eu não quero passar a minha vida em vão, eu não quero ficar
como você batendo de porta em porta mendigando um lugar pra dormir.

(Fica um grande silêncio. Leila percebe que pegou pesado. Se arrepende no ato.
Otávio permanece calado não demonstrando nenhuma emoção identificável.)

LEILA - Ah, desculpa, eu não queria dizer isso. Me perdoa, Otávio.

OTÁVIO - Deixa pra lá. Você não conseguiu me magoar não.

LEILA - Ninguém ligou?

OTÁVIO - Não. A sua mãe sabe que você estuda de manhã, não sabe?

LEILA - Eu não estou falando da minha mãe. Outra pessoa poderia ter
ligado.

OTÁVIO - Quem mais iria ligar pra você?

LEILA - Ora, uma porção de gente. Amigos, você sabe, eu tenho muuuitos
amigos.

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OTÁVIO - Tem? Puxa, você nunca me falou sobre eles.

LEILA - As pessoas se interessam por mim, Otávio. Elas se interessam por


mim.

OTÁVIO - Que legal!

LEILA - E você?

OTÁVIO - Eu?

LEILA - É. Como é que você me vê?...Como mulher?...É, pode ser como


mulher.

OTÁVIO - Eu como.

LEILA - Como é que é?

OTÁVIO - É isso. Sem traumas, sem remorsos, sem nenhuma espécie de


arrependimento...eu vou aí... eu como.

LEILA - Você é...é...é...odioso, Otávio.

Toca o telefone. Atende o telefone sem olhar para Otávio.

LEILA - Alô...oi Mamãe...não, claro que eu ia ligar... é que eu acabei de


chegar...desculpa mamãe...não, tá tudo muito bem...muito mesmo...ah, o papai
já mandou o dinheiro...ai, que ótimo... a senhora vai vir no final de semana?
- É que...bem mamãe...é que neste final de semana eu não vou ficar em casa...
quer dizer, eu não pretendia ficar...vou passar o final de semana estudando na
casa da Sílvia...é mamãe...não dá pra senhora vir no outro final de
semana?...saudades? Ora mamãe, eu também tô com saudades, muitas
saudades...
- Mas é que eu já tinha marcado com a Sílvia...fica difícil agora... a senhora me
entende...tá, então tá...tá mamãe...no outro final de semana então...ok...tchau
mamãe...é claro que eu ligo amanhã...tchau...mil beijos...outros pro
papai...tchau.

(Leila desliga o telefone como se acabasse de cometer um grande crime. Olha para
Otávio que sorri cínico.)

LEILA - Era a mamãe.

(O sorriso no rosto de Otávio desaparece por completo dando lugar para uma
expressão de derrota.)

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LEILA - Você quer tomar um suco? Eu faço.

OTÁVIO - Não, eu me preocupo com a minha saúde.

LEILA - Então...vamos sair...que tal hein?

OTÁVIO - Ir aonde?

LEILA - A gente pode ir a um barzinho ótimo onde meus amigos se


encontram.

OTÁVIO - Tô fora. Eu gosto de beber sozinho.

LEILA - Puxa Otávio, vem comigo, você vai se divertir.

OTÁVIO - Duvido.

LEILA - Os meus amigos são ótimos, universitários.

OTÁVIO - Eu conheço essa fauna.

LEILA - Vaaaamos?

OTÁVIO - Ok...mas já vou avisando...se eles me chatearem, eu vomito na


mesa.

(Leila solta um gritinho de felicidade. Gira a chave na porta e puxa Otávio pelo
braço.)

LEILA - Impossível. Meus amigos são divertidíssimos, papo ótimo. Você vai
adorar.

(Os dois saem. A porta é fechada.)

Bar. Os personagens Mário, Sérgio e Mirian podem ser apenas voz em off.
Fica a critério do diretor.

LEILA - Oi gente.

MARIO, SÉRGIO E MIRIAM - E aí, Leila, como é que é? Tudo bem? Legal
te ver.

LEILA - Ah, eu queria apresentar pra vocês um amigo meu, o Otávio...

MARIO, SÉRGIO E MIRIAM - E aí Otávio? Como é que é? Legal?

LEILA - O Otávio tava louco pra conhecer vocês.

LEILA BABY 18
OTÁVIO - É. Ela me falou que vocês gostam de pagar umas cervejas pras
pessoas...

LEILA - Ah, o que é isso? O Otávio brinca demais. E então gente?

SÉRGIO - Pois é Leila, a gente tava aqui justamente discutindo a questão


da greve.

LEILA - Greve?

MÁRIO - Você não sabia? A universidade tá de greve. Mó bosta.

MIRIAN - O que eu acho muito justo levando-se em conta o desprezível


salário dos nossos professores.

LEILA - Então os professores estão em greve?

SÉRGIO - Isso. Por isso a universidade está parada.

MIRIAN - Isso nos prejudica deveras, mas por outro lado temos de apoiar
os nossos professores. O que você acha Otávio?

OTÁVIO - Eu não sei. Eu não consigo raciocinar direito antes da quinta


cerveja.

LEILA - Ele é muito espirituoso.

SÉRGIO - É uma qualidade invejável. Mas...gente, e a questão da cerveja


no Campus?

MÁRIO - Lastimável.

LEILA - O que aconteceu?

MÁRIO - Não deixam mais a gente tomar cerveja no Campus.

LEILA - Mas que absurdo!

MIRIAN - Olha, gente, eu discordo de vocês. Eu acho que se eles começam


deixando tomar cerveja no Campus, daqui a pouco tem neguinho fumando
maconha, transando, tudo na maior legalidade. Vai virar uma zona.

SÉRGIO - Analisando por esse contexto mais amplo, eu acho que a Miriam
tem razão. Nós ainda não estamos preparados para lidar com a liberdade plena.

MIRIAN - Quer tomar uma cerveja?! Toma no bar. Universidade é local pra
estudar.

MÁRIO - Que absurdo! Que raciocínio mais reacionário! Você não acha
Leila?

LEILA BABY 19
LEILA - Refrigerante ainda tá liberado, né?!

MÁRIO - Porra, Leila!

SÉRGIO - Mas gente, vamos mudar de assunto? E a questão da rádio FM?

MÁRIO - Só toca bosta.

SÉRGIO - Também não é assim. Existem rádios alternativas rolando coisas


ótimas.

MÁRIO - É, mas na maioria delas é um cocô só.

MIRIAN - Olha, Mário, eu tenho que discordar de você de novo. Não é


assim, absolutamente. Digo isso porque dias atrás eu estava ouvindo uma rádio
FM e ela tocou toda uma seleção de músicas da Cássia Eller.

LEILA - Ai, gente, o Cássia era ótima, né? Adorava ela.

SÉRGIO - Era?!

LEILA - Ué, ela não morreu?

SÉRGIO - Eu acredito, Leila, que se a arte de uma pessoa sobrevive, ela


também sobrevive.

MIRIAN - Agora você falou tudo, Sérgio.

LEILA - Eles não são ótimos?

SÉRGIO - Eu descobri uma FM que toca direto Roberto Carlos, não é ótimo
isso?

MÁRIO - Pelo amor de Deus, Sérgio! Não apela. Roberto Carlos é horrível!

SÉRGIO - Não é assim, Mário.

MIRIAN - Acho que aí a gente entra na questão do popular. É. Roberto


Carlos é popular.

SÉRGIO - Claro, eu tenho uma tia lá em Londrina, no Paraná que compra


disco dele todo ano. Coisa de louco. Tem tudo do Roberto.

MIRIAN - A gente tem de reconhecer o valor do Roberto. Aliás, o Caetano já


nos abria os olhos nesse sentido há anos atrás quando dizia na música "Baby"...

MIRIAN - "Você precisa ouvir aquela canção do Roberto..."

OTÁVIO - O Caetano falar bosta não é novidade, né? Mas aí ele se superou,
né?

LEILA BABY 20
OTÁVIO - É a quinta cerveja.

SÉRGIO - Mas, gente, e a questão do Caetano?

LEILA - Ah, eu adoro o Caetano, acho ele assim, sempre novo. É ótimo o
Caetano, né?

MIRIAN - Eu acho que tá meio na moda hoje em dia falar mal do Caetano.
É chique falar mal do Caetano. Não tem nada a ver. O Caetano é genial. Ele e o
Carlinhos Brown.

SÉRGIO - O Gil.

MIRIAN - Pois é, o Gil. Acho que a gente tinha que lavar a boca pra falar
desses caras. A gente tem mais é que reverenciar a monumentalidade da obra
deles. A contribuição inestimável que eles deram à música popular brasileira.

MÁRIO - Olha, eu acho uma puta duma viadagem esse negócio do


Caetano ficar beijando todo mundo na boca.

SÉRGIO - Eu vi um show dele que a cada compasso ele beijava a boca dos
músicos.

MIRIAN - É meio esquisito, né? Sei lá, o cara tem dois filhos...

MÁRIO - É, mas o Caetano é genial...

SÉRGIO - É genial.

MIRIAN - Eu amo o Caetano.

SÉRGIO - E a questão...

MIRIAN - Péra aí, Sérgio, péra aí. Gente, vocês já leram a Catherine Millet?
É bárbara! É uma critica de arte francesa conceituadissima que escandalizou
meio mundo quando escreveu um livro contando as putarias em que ela andou
metida.

MÁRIO - Você quer dizer, onde andaram metendo nela.

MIRIAN - Essa mulher foi uma revelação pra mim. Depois que eu li tô
encanando que sexo grupal pode ser uma legal.

MÁRIO - Isso é uma proposta?

Otávio no limite de sua paciência, puxa Leila pelo braço.e os dois saem.

LEILA BABY 21
Porta de uma danceteria.

LEILA - Ah, Otávio, vamos entrar?

OTÁVIO - Não tô a fim de entrar aí não.

LEILA - Puxa, Otávio, deixa de ser assim tão anti-social. Tem alguns
amigos meus aí dentro.

OTÁVIO - Agora é que eu não entro mesmo.

LEILA - Ah, Otávio, vamos lá.

OTÁVIO - Não!

LEILA - Fica chato eu entrar sozinha, Otávio.

OTÁVIO - Você não disse que tem amigos seus aí dentro? Então!...

LEILA - Por isso mesmo, pega mal eu chegar sozinha. Vai parecer que eu
não tinha com quem vir. Vai todo mundo ficar falando. Ah, vai Otávio, vamos
entrar, eu pago.

OTÁVIO - Com essa grana que você vai gastar pra entrar aí, a gente podia
comprar um litro de vinho.

LEILA - Eu tenho mais dinheiro. Depois a gente compra um litro de vinho.

OTÁVIO - Ótimo, a gente não entra aí e compra dois litros de vinho.

LEILA - Puxa, Otávio, você vai ficar aqui fora, "out"?

OTÁVIO - Como é que é?

LEILA - Deixa pra lá, eu preciso falar com meus amigos que tão aí dentro.

OTÁVIO - Chama esses puto na porta.

LEILA - Otávio.

OTÁVIO - Tá legal, só que se me encher o saco, eu vou embora.

LEILA - Ai, que ótimo, você vai adorar.

Leila puxa Otávio pelo braço em direção a entrada da boate.

È uma boate gay. Público GLS óbvio. Música tecno muito alta. Os dois têm que
falar muito alto pra se fazerem ouvir.

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LEILA - Não é ótimo?

OTÁVIO - Você tá louca, Leila. Isso aqui é uma boate gay.

LEILA - É claro que é, Otávio. Relaxa e curte. Olha lá o meu amigo drag
queen. Ele sempre vem vestido daquele jeito. Vem montado.

OTÁVIO - Ah, ele já vem montado, né?

LEILA - Ai, que gostoso, tanta gente bonita, exótica, diferente, alegre.
Vamos dançar, Otávio?

OTÁVIO - Não.

LEILA - Vamos lá naquele canto.

OTÁVIO - Já disse que não tô a fim, Leila. Cacete.

LEILA - Pô, Otávio, sair com você não tem graça nenhuma. É um tédio.

Leila se afasta um pouco de Otávio e fica dançando sozinha.

OTÁVIO - Satisfeita?

Leila continua dançando totalmente alheia a Otávio.

OTÁVIO - Dançou bastante?

OTÁVIO - Vou cair fora.

Otávio sai andando com Leila sobre os ombros.

LEILA - Espera Otávio. Espera aí.

LEILA - É um amigo meu. Ele é um pouco impetuoso, né?

LEILA - Puxa Otávio, como você é chato.

OTÁVIO - Chato é ficar lá dentro agüentando aquelas músicas chatas e os


seus amigos bichas.

LEILA - Eles não são bichas. São GLS.

OTÁVIO - Como é que é?

LEILA - Deixa pra lá, Otávio. Eu tenho uma idéia ótima. Vamos ao cinema.

LEILA BABY 23
OTÁVIO - Assistir o que?

LEILA - Um filme ótimo. Você vai adorar.

Cinema. Leila assiste a um filme interessadíssima. Em off, ouve-se os diálogos do


filme que deve ser um filme francês ou iraniano, do tipo que Leila iria adorar e
Otávio morreria de tédio. Otavio dorme ao seu lado.

Vernissage.

LEILA - Enfim a pintura pós-moderna.

OTÁVIO - O que que a gente tá fazendo aqui, Leila?

LEILA - Não sei se você conseguiu notar, Otávio, mas esta é uma exposição
de arte. Se você não tem sensibilidade para apreciar obras de arte de extremo
bom gosto como essas que estão a sua frente, então por favor, deleite-se com o
vinho que está sendo oferecido no coquetel e me deixe apreciar sossegada a
exposição. Ai, Meu Deus, como é deslumbrante, que versatilidade de cores!

OTÁVIO - Pra mim parece ser tudo igual. Acho que é um desses pintores
egocêntricos que pintam o rabo dele em todos os quadros.

LEILA - Ah, aquele senhor me parece ser o marchand. Por favor, meu
senhor, trata-se do marchand?

MARCHAND (Pode ser em off, novamente fica a critério do diretor) -


Correto, senhorita.

LEILA - Estou deslumbrada.

MARCHAND - Não é para menos. São pinturas deslumbrantes.

LEILA - Neste quadro, em especial nota-se claras influências minimalistas.

MARCHAND - São as influências mais modernas de um artista em total


sintonia com o seu tempo. Note por exemplo o expressionismo profundo deste
com o fundo predominantemente negro contrastando com a beleza de um falo em
ascensão.

OTÁVIO - Cara, cê tá falando sério?

MARCHAND - Por favor, senhorita, trata-se de seu acompanhante?

LEILA BABY 24
LEILA - Ah, sim. É o seu debut. É um calouro em exposições.

MARCHAND - Não me parece ser uma pessoa de sensibilidade apurada. A


senhorita deveria escolher melhor os seus acompanhantes.

LEILA - Claro.

MARCHAND - Mas note por exemplo, senhorita, neste quadro o que


o nosso artista conseguiu, quero dizer o efeito que ele conseguiu com a simples
combinação de cores na trajetória do rosa ao rosa fúcsia ao lilás.

LEILA - Lindíssimo!

MARCHAND - Belo, belo!

OTÁVIO - Bebe aí, esse vinho não é dos piores não.

LEILA - Por favor,Otávio.

MARCHAND - Meu Deus, quanta indelicadeza. A senhorita me desculpe,


mas o cidadão que a acompanha é deveras rústico.

LEILA - É. Ele não é dos mais educados.

MARCHAND - Atente agora para essa fusão de cenas. O homem no seu


estado mais primitivo em plena tragédia urbana. Rocambolesco, não?

OTÁVIO - O autor deve ter mandado um release e esse sujeito decorou.

LEILA - Meu Deus, Otávio. Não seja tão deselegante.


.
LEILA - Adoraria conhecer o autor dessas obras.

MARCHAND - Ele está para chegar.

OTÁVIO - E ele vai ter coragem de vir aqui? Na certa vai se manter
anônimo.

MARCHAND - Eu estou começando achar que este sujeito é perigoso.

OTÁVIO - É mesmo? E eu tô começando a achar que você deve ser comida


desse pintor aí.

LEILA - Otávio, pelo amor de Deus.

LEILA - Por favor, o senhor desculpe o Otávio. É que ele bebeu demais.

OTÁVIO - Porra, eu mal comecei.

LEILA - Na certa já está tudo vendido.

LEILA BABY 25
MARCHAND - Praticamente tudo. Apesar de ser muito difícil para ele
vender o seu trabalho. A senhorita entende, uma obra de arte tem um valor
estimativo.

LEILA - Claro, claro.

OTÁVIO - Olha aí cara, se você falar mais dois minutos ela compra a
metade dessas bostas aí.

LEILA - Otávio, por favor, você não vê que não fez outra coisa hoje a não
ser ser indelicado.

OTÁVIO - Porra, Leila, isso é perda de tempo. Esses quadros são horríveis.
O cara deve ter pintado essas merdas com o pincel enfiado no rabo. Da janela da
sua kitchenete eu vejo coisas muito mais bonitas.

MARCHAND = Oh! my God, que discrepância. Esse sujeito é pré-histórico.

OTÁVIO - Aí, ô peroba. Se você não fechar essa sua boca de porra, eu
quebro uma dessas merdas com falos em ascensão na tua cabeça, ok?

LEILA - Meu Deus, Otávio, vamos embora, senão você acaba tocando fogo
nos quadros.

OTÁVIO - É uma boa idéia. Aliás, eu já disse pra você que eu sou
piromaníaco, não disse?

LEILA - O senhor me desculpe, ele bebeu demais, sempre acontece quando


ele bebe. Quando sóbrio trata-se de uma pessoa de extrema sensibilidade.

MARCHAND - Custo a acreditar.

LEILA - Vamos embora, Otávio.

OTÁVIO - É claro que eu vou. Puta vinho de merda.

Já fora da Vernissage

LEILA - Otávio, por que isso?

OTÁVIO - Por que o que?

LEILA - Por que você faz essas coisas?

OTÁVIO - Que tipo de coisas? O que cê tá falando?

LEILA - Você é preconceituoso, machista, sexista e homofóbico.

LEILA BABY 26
OTÁVIO - Não começa a me bajular não, ta?

LEILA - Você trata mal as pessoas!

OTÁVIO - Vamos tomar um vinho?

LEILA - Por que você bebe tanto?

OTÁVIO - Porque eu nunca bebo o suficiente.

LEILA - Você tá sempre mal-humorado, com raiva do mundo. Puxa, Otávio,


para com isso. Por que você faz assim? Por que você tá sempre ofendendo as
pessoas?

OTÁVIO - Você quer saber de uma coisa? Eu vou andar.

LEILA - Não. Espera aí Otávio. Onde você vai?

OTÁVIO - Vou prum puteiro. Vê se não me segue.

LEILA - Não me deixa aqui falando sozinha. Otávio, volta aqui.

OTÁVIO - Que droga, cê quer largar do meu pé?

LEILA - Eu quero saber onde você vai. Eu te falei alguma coisa que te
magoou?

OTÁVIO - Ah, vai pra puta que te pariu.


Aliás, é isso mesmo. Por que você não telefona pra ela?

LEILA - Otávio, para com isso!

OTÁVIO - Procura os teus amiguinhos brochas e vai discutir com eles a


questão da decadência do pau na literatura do Saramago.

LEILA - Meu Deus, como você é grosso!

OTÁVIO - Você ainda não viu nada. Vai atravessar a rua ou não vai?

Barulho de tráfego. Carros buzinando

MOTORISTA DO CARRO (OFF) - Sai da frente, sua puta louca.

LEILA - Puta louca? Escuta aqui, seu...

OTÁVIO - É puta louca sim. Passa por cima dela, seu bosta.

LEILA BABY 27
LEILA - Otávio, de que lado você está?

OTÁVIO - Atravessa a rua de uma vez, piranha desgraçada.

Otávio sai andando pela calçada.

LEILA - Otávio, me espera.

Ela vê ele dobrando uma esquina. Ela dobra a esquina atrás dele. Vê ele entrando
dentro de uma igreja. Vai atrás dele. Entra dentro da igreja.

LEILA - Otávio, onde é que você tá? O que é que você veio fazer aqui?
Otávio, me perdoa. Olha, eu vou comprar aquele litro de vinho. Tá tudo bem.
Otávio, você tá aí em cima? É você que tá aí Otávio?

Chega até em cima e vê Otávio, ele está surpreendentemente calmo e sereno.

LEILA - Meu Deus! que estranho! Pensei mesmo que você ia prum puteiro.
O que você veio fazer aqui?

OTÁVIO - É uma tara minha. Eu sempre quis estuprar uma garota dentro
de uma igreja, aí na hora que eu fosse gozar, tocava o sino.

Leila fica ruborizada. Otávio se volta calmamente para ela.

OTÁVIO - Você é mesmo uma pentelha. Por que você me seguiu?

LEILA - Fiquei com medo.

OTÁVIO - Medo?

LEILA - Medo de que você fosse embora, quer dizer, sei lá.

OTÁVIO - O tempo.

LEILA - O que?

OTÁVIO - Tempo. Ampulheta, relógio, sol, lua, rugas, reumatismo.

LEILA - O que você tá falando?

OTÁVIO - Tempo. É um troço que me incomoda.

LEILA - Otávio...

Otávio leva o dedo ao lábio calmamente.

LEILA BABY 28
OTÁVIO - Fica quietinha. Não fala nada. Só ouve.

Otávio anda um pouco como se estivesse curtindo o silêncio.

OTÁVIO - O que você tá ouvindo?

LEILA - Nada!

OTÁVIO - É. Não se ouve praticamente nada. Aqui em cima não se ouve


praticamente nada. Eu sempre venho pra cá. Eu gosto daqui. Aqui em cima onde
o mundo pode me esquecer e eu posso fazer de conta que o mundo não existe,
pois aqui em cima nada me incomoda. Só o tempo. Esse sino bate de seis em seis
horas. Você entende? Quando ele bate, eu me toco de que o tempo tá passando...

LEILA - E isso te assusta?

OTÁVIO - Me incomoda. Me incomoda esse estado de ignorância, essa


inércia perante os ponteiros do relógio. As verdades imutáveis de anos atrás são
mentiras inquestionáveis hoje. O tempo tá passando e quem é que explica o
tempo? As minhas rugas, os ponteiros do relógio, o sol, a lua, o sino. Por que
vocês correm tanto atrás da vida se tudo na vida é questão de tempo?

LEILA - Eu não te entendo.

OTÁVIO - Eu posso parecer niilista, mas não é por aí. Sou só um cético de
saco cheio arrastando minha cabeça bêbada por aí, fascinado por ponteiros de
relógio. O tempo.

LEILA - Otávio...

OTÁVIO - O que é?

LEILA - Faz amor comigo.

Kitchenete. Som de Guitarra. Blues

LEILA - Meu Deus, que guitarra mais bonita. Espera aí. Não fala não.
Deixa eu adivinhar. Herbert Vianna.

OTÁVIO - Porra, Leila. Isso é Blues, caralho.

LEILA - Mas bem que podia ser Herbert Vianna.

O telefone toca. Leila desliga o aparelho antes de atender o telefone.

LEILA BABY 29
OTÁVIO - É a sua mãe!

LEILA - Como você pode ter tanta certeza? Pode ser um amigo.

OTÁVIO - É a sua mãe!

LEILA - Pode ser um amigo.

Leila atende o telefone.

LEILA - Alô? ...Mamãe?

Otávio sorri.

LEILA - Eu tava pensando na senhora...Por que eu não liguei hoje? Ora


mamãe, eu ia ligar...eu sei que a senhora se preocupa quando eu não ligo...
bobagem né mamãe.. eu já sou uma mulher...

Leila olha para Otávio que não esboça nenhuma reação. Ela ruboriza meio
envergonhada.

LEILA - Quer dizer...uma mulher assim, tenho dezenove anos...já sei me


cuidar mamãe...bobagem mesmo...ah, mamãe, o vestibular começa nesse final
de semana...é claro que eu vou passar, mamãe, estou hiper bem preparada... a
senhora já pode me considerar uma caloura em comunicação...vou, claro que eu
vou aí comemorar...não precisa uma festa também, né, mamãe? Que
exagero...que exagero da parte da senhora... imagina, uma festa... mas
mamãe...tá, mamãe, tá, mamãe, tá, mas uma festa simples tá? Poucas
pessoas...é, algo bem íntimo...tá mamãe, tá ... eu ligo amanhã bem cedinho, fica
tranqüila, tchau, um beijo enorme... tchau mamãe. (desliga o telefone) Ai, o
vestibular começa domingo, eu tô numa expectativa. É, tô um pouco tensa. Sabe,
Otávio, tô um pouco tensa. Tô com medo de ficar nervosa. Vou comprar um
chocolate, sei lá. Diz que é bom pra gente não ficar nervosa, né?

OTÁVIO - Você acha que vai passar?

LEILA - É claro que eu acho que vou passar, aliás, acho não, eu vou
passar, é claro que eu vou passar. Já passei. Já me considero uma universitária.
Estou muito bem preparada, Otávio. Quando eu me formar, eu quero ver se
consigo emprego assim num jornal bem legal, importante, ou então na televisão
tipo correspondente internacional, sei lá. Ou quem sabe a revista Veja, é, ia ser
legal trabalhar na Veja, sei lá. Acho que depois que eu estiver na faculdade eu
posso optar melhor. Sabe, a faculdade vai me abrir a cabeça em vários sentidos.

OTÁVIO - Você acha mesmo?

LEILA - Claro, eu analiso pelos meus amigos, cabeças ótimas, idéias


lúcidas...

LEILA BABY 30
OTÁVIO - Puta que pariu.

LEILA - Ah, Otávio, você também me abriu bastante a cabeça. Antes de te


conhecer acho que eu era assim meio boba. Agora eu mudei um pouco, né?

OTÁVIO - Não sei não.

LEILA - Mudei sim. É claro que eu mudei. Mudei muito. Ai, eu tô tão feliz.
A gente precisa comemorar a minha felicidade. Vamos sair Otávio? Olha só. Tem
uma festa na casa do Ricardinho...

OTÁVIO - Esquece, Leila. Tô sem saco pra agüentar seus amigos hoje.

LEILA - Ah, por favor Otávio, eu tô tão feliz hoje, não vai estragar isso.
Vamos lá, faz isso por mim.

OTÁVIO - Tá achando que eu sou de algum movimento de solidariedade, é?


Eu não sou a fim de fazer nada por ninguém não.

LEILA - Nem por mim?

OTÁVIO - Não.

LEILA - Tá, então vamos...

OTÁVIO - Não.

LEILA - E se a gente fosse...

OTÁVIO - Também não.

LEILA - Eu tenho uma amiga que trabalha no Café Piu Piu, no Bexiga...

OTÁVIO - Eu não gosto de café.

LEILA - Puxa, Otávio, acho que você ia gostar...

OTÁVIO - Da sua amiga?

LEILA - Você é tão engraçadinho, Otávio. Olha, de lá a gente podia sair e


comer...

OTÁVIO - A sua amiga.

LEILA - Otávio, você tem aquilo que eu chamo de senso de humor


inconveniente.

OTÁVIO - Aí, Leila, eu tenho uma idéia melhor. A gente vai radicalizar.
Vamos fazer um troço diferente hoje. Algo jamais pensado. Vamos fazer o

LEILA BABY 31
seguinte. Você desce, compra dois litros de vinho, uma caixa de latinhas de
cerveja, traz pra cá e eu fico bebendo e ouvindo você falar o que vai fazer quando
se tornar uma grande jornalista, ok?

LEILA - Otávio, a gente ficou o dia inteiro aqui trancados.

OTÁVIO - E daí? Eu sou chegado numa reclusão.

LEILA - Mas eu não. Eu gosto de viver, gosto de sair, conversar com


pessoas, me divertir. Puxa, Otávio, eu não suporto ficar trancada aqui dentro o
dia inteiro.

OTÁVIO - Ok, pode sair. Quem é que tá te segurando aqui? Eu? Eu mal
consigo me segurar.

LEILA - Eu quero sair com você, Otávio. E não adianta você ficar me
olhando assim. Não vai dar certo. Eu não vou descer, comprar vinho e cerveja e
passar mais uma noite trancada aqui dentro, não vou. Decididamente não vou.
Não vou. Não vou. (pausa) Merda, eu tenho uma amiga feminista que me
enforcava se me visse fazendo isso. Merda, merda.

Abre a porta, fula, e sai por ela, fechando a porta atrás de si e resmungando.

(Já é outra cena. Há uma passagem de tempo)

LEILA (lendo) - Laura Santana...Leandro Paes Ribeiro...Lenita...

Leila tira os olhos da lista e levanta a cabeça olhando para Otávio como se
buscasse ajuda.

LEILA - Você percebeu, Otávio?

OTÁVIO - É uma série de nomes. Ousaria até dizer que é uma lista.

LEILA (desesperada) - É uma lista.

OTÁVIO - E o seu nome não está aí.

LEILA - É a lista dos aprovados pelo vestibular em Comunicação, Otávio, e o


meu nome não está aqui.

OTÁVIO - É, não tá mesmo.

LEILA - Otávio, eu não entendo, eu fiz tudo certo, eu tinha certeza que ia
passar.

OTÁVIO - Não se preocupa não. Todo ano sai uma lista dessa. Na próxima
o teu nome aparece.

LEILA BABY 32
LEILA - Da minha turma só eu que não passei, Otávio. Com que cara eu
vou sair na rua agora? Meu Deus, que injustiça. Eu estudei tanto, eu tava tão
bem preparada. Meu Deus, eu tô desesperada.

OTÁVIO - Quer parar de chilique? Milhares de pessoa reprovam no


vestibular. Cadê a sua solidariedade para com os outros reprovados? Cê não tá
sozinha não.

LEILA - Será que você não entende, Otávio? O quanto eu alimentei essa
vontade de entrar pra faculdade? Será que você não entende que passar no
vestibular se tornou a coisa mais importante da minha vida?

OTÁVIO - Ou a única coisa importante da sua vida. É, o seu mundo


sempre foi muito pequeno mesmo.

LEILA - Não é assim, Otávio. Existem outras coisas importantes pra mim.
Existem meus pais, existe... você.

OTÁVIO - Eu? Não, eu não. Me tira fora dessa lista. Eu tô aqui de


passagem.

LEILA - Não fala assim comigo, Otávio. Eu tô precisando agora de uma


palavra de consolo, sei lá, eu tô precisando de um ombro pra poder chorar...

OTÁVIO - Liga pra sua mãe.

LEILA - Eu não tenho coragem. Como é que eu vou ligar pra ela e dizer que
eu reprovei no vestibular? Como? Me ajuda, Otávio.

OTÁVIO - Ajudar? Ajudar como?

LEILA - Sei lá, diz alguma coisa reconfortante, me ajuda a sair dessa.

Otávio olha para o litro de vinho que está em suas mãos.

OTÁVIO - O vinho tá acabando.

LEILA - Como é que você pode ser tão insensível? Bem que meus amigos
sempre me falaram que você era um sujeito antipático, mau caráter, e que eu não
devia confiar em você, mas eu nunca quis ouvir ninguém.

Leila esboça um início de choro.

OTÁVIO - Vai começar a chorar agora, é? Que saco. Cadê seus amigos?
Por que você não procura eles?

LEILA (gritando) - Eu tô morrendo de vergonha, Otávio.

LEILA BABY 33
OTÁVIO (gritando ainda mais) - Quer parar de gritar? Se tem uma coisa
que eu detesto é histeria.

LEILA (humilde) - Me desculpa, eu tô nervosa.

OTÁVIO (gritando) - Para de pedir desculpa. Teu problema é esse, você fala
demais, você faz besteira demais, você pede desculpa demais, você faz uma
porrada de coisas que não devia fazer e faz demais.

LEILA - Eu não tenho mais nenhuma perspectiva, Otávio. O que vai ser de
mim? O que é que eu vou fazer?

OTÁVIO - Por que você não desce e compra um litro de vinho?

LEILA (irritada e gritando) - Por que você é tão egoísta, Otávio? Você não vê
que eu tô sofrendo? Você é egocêntrico, narcisista, individualista, você só se
preocupa com seu umbigo.

OTÁVIO (calmo) - Nem com ele, baby, nem com ele. Mais uma vez você
errou.

LEILA - Eu acho que eu vou ouvir um pouco de música, sei lá. acho que
pode ajudar, né? Não sei, eu queria esquecer. Só por um momento. Eu sei lá. Tô
sem chão. Não sei o que fazer.

OTÁVIO - Não vai ouvir essas bosta aí não.

Otávio toma o cd que estava na mão dela. É um cd do Nando Reis.

OTÁVIO - Eu embebedei a vitrola. Agora ela só é a fim de tocar blues.

LEILA - Meu Deus, Otávio. Esse aparelho é meu, os cds são meus.

OTÁVIO - E a paciência é minha. Eu tô muito sóbrio pra conseguir ouvir


Nando Reis. Aliás tem que estar muito bêbado pra ouvir uma merda dessa. Uma
noite dessas eu tava tão bêbado que eu fiquei ouvindo Milton Nascimento e
pensando que era James Brown só porque os dois são negão. Bem que eu tava
achando meio esquisito aquele cd do James Brown. Caralho.

LEILA (implorando) - Otávio, faz alguma coisa por mim.

OTÁVIO - Você é tão insignificante.

LEILA - Me diz uma coisa... aquela noite que você bateu na minha porta, a
noite que você apareceu. Se eu não tivesse deixado você entrar, o que você teria
feito?

OTÁVIO - Teria batido na porta ao lado.

LEILA BABY 34
LEILA (com lágrimas nos olhos) - Meu Deus, Otávio, se eu sou tão
insignificante assim, porque você não foi embora?

OTÁVIO - Você não mandou.

LEILA - Como eu fui idiota, eu achei que significava alguma coisa pra você.
Teve um momento até que eu achei...Meu Deus.

OTÁVIO - É. Você é uma panaca mesmo.

LEILA - Acabou.

OTÁVIO - Acabou?

LEILA - É. Acabou tudo.

OTÁVIO - O que você tá pensando em fazer?

LEILA (bebe um gole de vinho) - Algo de definitivo.

OTÁVIO (incrédulo) - Péra aí. Cê tá pensando em pular? Você tá pensando


em pular do décimo andar?

LEILA - E existe mais alguma perspectiva? Me responde, Otávio, existe?

Otávio vai até ela. Leila está sentada na janela na mesma posição que Otávio
estava no início da cena dois. Ela deixou o litro de vinho ao lado dela. Otavio se
aproxima e estende a mão. Leila sorri e também lhe estende a mão. Otávio pega o
vinho e dá as costas pra ela. Senta-se longe e continua tomando vinho. Leila
pula. Otavio levanta-se e vai até a janela, senta-se no parapeito, bebe o último
gole e olha para baixo, depois para a platéia.

OTÁVIO - E agora? Quem limpa a Kitchenete?

O telefone toca. Otávio levante-se e vai até ele. Não atende. Vira o porta-retrato
para a platéia. Nele está a foto dos pais de Leila. Otávio sai. A luz fica apenas no
porta retrato e no telefone que continua tocando.
.
Um blues lento e dolorido começa a tocar.

FIM

LEILA BABY 35

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