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MEMÓRIAS DA ELITE:

dossiê
arquivos, instituições e projetos memoriais

Luciana Quillet Heymann

Resumo Abstract
O texto discute processos de instituciona- The article discusses the institutionaliza-
lização de trajetórias de membros da elite, tion of elite´s members trajectories, seeking
buscando iluminar os investimentos de to shed a light upon the investments made
que são objeto os acervos pessoais desses in their personal document collections. The
personagens. A idéia é analisar o papel de idea is to analyze the role of memory insti-
instituições de memória na atribuição de tutions in the attribution of “historical val-
“valor histórico” aos acervos sob sua guar- ue” to the document collections under their
da, atentando para os efeitos dessa dinâ- guard, considering the effects of this dy-
mica na construção de recursos simbólicos namic in the construction of symbolic re-
de legitimação e consagração associados sources of legitimation and reconnaissance
às trajetórias dos homens públicos, bem associated to the public men´s trajectories,
como aos próprios projetos institucionais as well as to the institutional projects de-
que tomam essas memórias como foco de voted to their memories. Seeking support in
investimento. Recorrendo a alguns casos some concrete cases, the text aims at de-
concretos, o texto pretende desnaturalizar naturalizing the preservationist discourse
o discurso preservacionista que justifica a that justify the creation of memory places
criação desses lugares de memória e vê-los and look to them as strategies to update the
como estratégias de atualização do capital social actor´s political capital.
político dos atores sociais em jogo.

Palavras-chave Keywords
Memória. Acervo. Elite política. Lugar de Memory. Archive. Political elite. Sites of
memória. Darcy Ribeiro. Fernando Henrique memory. Darcy Ribeiro. Fernando Henri-
Cardoso. que Cardoso.

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1 Introdução qual o foco é colocado sobre uma traje-
tória pessoal. Se tomarmos esses luga-
Nas últimas décadas, assistimos a uma res de memória na acepção que lhes con-
intensificação dos investimentos na me- feriu Pierre Nora (1984) – lugares fun-
mória, fenômeno que já foi analisado co- cionais, simbólicos e materiais – pode-
mo uma reação à aceleração do tempo pre- mos elencar uma variedade de institui-
sente e à perda de referenciais por parte das ções, celebrações e dispositivos, dos me-
coletividades (NORA, 1984). Essa inten- moriais às biografias, dos livros didáti-
sificação já foi explicada, também, como cos aos monumentos, por meio dos quais,
um fenômeno associado à crise das gran- de maneira geral, as elites registram, ce-
des narrativas homogeneizantes e à va- lebram e preservam a sua memória.
lorização das experiências de grupos so- Se, nos últimos anos, seria legítimo afir-
ciais até então silenciados, cujas memó- mar que grupos de elite tradicionais tiveram
rias não encontravam meios de expres- que ceder espaço a novos sujeitos políticos
são na cena pública. Nessa última chave, no que diz respeito aos lugares e às políti-
por um lado, novos espaços foram erigi- cas de memória, nada nos autoriza a pen-
dos para a preservação de um passado tor- sar que elas foram excluídas do movimen-
nado mais plural e diversificado e, por ou- to geral de valorização do passado e de ‘ar-
tro, movimentos de valorização de memó- dente obrigação’ do patrimônio (HARTOG,
rias traumáticas, ligadas a crimes e viola- 2006, p. 266), com suas exigências de con-
ções, resultaram de lutas empreendidas por servação, de reabilitação, e de comemora-
grupos atingidos visando à assunção, por ção. Nesse sentido, ainda que a disputa por
parte do Estado e da sociedade, de um “de- recursos e reconhecimento social possa ter
ver” com relação a essa memória (LALIEU, recrudescido, em um contexto de prolifera-
2001; KATTAN, 2002; HEYMANN, 2007). ção de discursos memoriais, espaços vol-
Segundo o historiador Henry Rousso tados para a preservação da memória das
(1998), um sistema de referências teria se elites continuam a ser criados, benefician-
imposto nos últimos anos, tendo como cen- do-se, junto a outros segmentos, do dis-
tro a memória, transformada em valor. Nes- curso generalizado de “culto” à memória.
sa nova conjuntura, lembrar-se - por parte Nesse texto, nossa atenção estará volta-
do indivíduo ou do grupo - teria se asso- da para instituições de memória consagra-
ciado a uma postura positiva, enquanto o das à elite política, com destaque para os
esquecimento teria se tornado socialmen- processos de conversão de acervos pesso-
te inaceitável, sistema cujo corolário se- ais em “patrimônio”. Especial atenção será
ria a interdição a qualquer destruição, vis- dada ao papel desempenhado por essas ins-
ta doravante como “suspeita”, bem como a tituições na produção e na atualização de
multiplicação de políticas memoriais leva- uma noção de legado associada a um per-
das a cabo por governos e grupos sociais. sonagem e à sua trajetória. Em outras pa-
As elites sempre erigiram lugares pa- lavras, tomaremos a organização de luga-
ra preservar a sua memória, tanto co- res de memória como uma modalidade de
letivamente, em espaços e manifesta- invenção discursiva desses legados, aten-
ções consagrados a determinados gru- tando para diferentes estratégias e recursos
pos, como individualmente, situação na mobilizados nesses empreendimentos, en-

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tre os quais se destaca o investimento nos alguns membros da elite política. Com es-
acervos e em seu valor de “testemunho”. se movimento, a idéia é sugerir caminhos
Já foi observado que o movimento ge- de pesquisa que, com foco nos acervos e
ral de valorização da memória e o inves- na memória, ajudem a iluminar estratégias
timento nos acervos a ele associado vem de aquisição de capital simbólico por par-
produzindo um “desejo de arquivo” (AR- te dos homens públicos e seus herdeiros,
TIÈRES, 2005, p. 6), um desejo que apon- bem como mecanismos concretos por meio
ta não apenas para uma multiplicação e dos quais a memória histórica é construída.
uma especialização de locais de arquiva-
mento, alterando a paisagem arquivística, 2 A elite nas instituições de memória
mas também para uma nova relação da so-
ciedade com os arquivos, uma relação que, Seria impossível tentar dar conta do
doravante, não envolve apenas historiado- campo das instituições de memória volta-
res e arquivistas, mas sinaliza para uma va- das para a elite, no Brasil, sobretudo se in-
lorização mais generalizada desses artefa- cluirmos nessa categorização os museus,
tos. Uma dimensão importante desse pro- cujo papel na monumentalização da memó-
cesso residiria no fato de tal “reconfigura- ria de membros da elite já foi objeto de estu-
ção” do arquivo no espaço público - que do (ABREU, 1996). Nos limites desse artigo,
inclui, sem dúvida, uma dimensão de de- vamos privilegiar as instituições voltadas
mocratização dos espaços de arquivamen- para acervos documentais (que também es-
to -, não significar a sua dessacralização. tão presentes nos museus, vale lembrar, ain-
Ao contrário, em torno do arquivo, como da que esse tipo de acervo seja preferencial-
em torno da memória, novos cultos esta- mente depositado em instituições arquivís-
riam se desenvolvendo a partir da idéia de ticas ou até em bibliotecas) e, dentro desse
que “tudo é arquivo” e deve ser conservado. vasto campo, aquelas que explicitamente se
Os arquivos pessoais de homens públicos definem como espaços dedicados à memória
ocupam lugar de destaque em projetos ins- de determinado grupo ou membro das eli-
titucionais voltados para a preservação da tes. Não vamos nos ocupar, portanto, de ins-
“memória nacional”; projetos que, ao mes- tituições cujo propósito declarado seja o de
mo tempo em que valorizam o “patrimô- preservar a memória administrativa do país
nio” do qual são depositários, os instituem (caso do Arquivo Nacional e, por extensão,
como meios de acesso “autênticos” e “fide- dos arquivos estaduais e municipais), ainda
dignos” ao legado que pretendem preservar. que a guarda dos documentos que resultam
O texto pretende caminhar de uma pers- das atividades desenvolvidas pelos órgãos
pectiva mais geral para uma mais etnográ- de governo possa ser vista, também, como
fica. Inicialmente, abordaremos procedi- um mecanismo de preservação da memória
mentos de transferência de arquivos pesso- das elites dirigentes. Também não estamos
ais para instituições de guarda, discutindo considerando, para os objetivos desse tex-
algumas situações concretas de “produção” to, a guarda de arquivos privados, institu-
de memórias associadas a personagens da cionais ou pessoais, nessas instituições pú-
vida pública brasileira. A seguir, buscare- blicas, ainda que seja comum encontrar fun-
mos descrever modalidades diferenciadas dos documentais dessa natureza nos espaços
de gestão e de apresentação de legados de dedicados à “memória da Nação”.1

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Nesse ponto, vale lembrar que o reco- zação que vai do arquivo à instituição, já
lhimento de arquivos privados não é regu- que possuir determinados arquivos confe-
lado por dispositivo legal - diferentemen- re prestígio, funcionando como elemento
te do que ocorre com os arquivos de natu- de legitimação institucional. Dessa forma,
reza pública, cuja tutela pertence ao Estado instituições arquivísticas e centros de do-
-, o que coloca em jogo a questão do des- cumentação funcionam como espaços pri-
tino de cada arquivo privado.2 Seu encami- vilegiados de avaliação e de atribuição de
nhamento a uma instituição de guarda de- “valor” aos acervos, já que são instituições
penderá, assim, em primeiro lugar, do de- voltadas para a preservação daquelas me-
sejo do proprietário – no caso de um ar- mórias reconhecidas como “históricas”.
quivo pessoal, o próprio titular ou um her- No universo das instituições - arquivos,
deiro; no caso de um arquivo institucional, centros de documentação, institutos, funda-
o(s) proprietário(s) - de fazer uma doação ções - dedicadas especificamente à memó-
ou de vender o acervo a uma instituição ar- ria das elites, seria possível propor uma dis-
quivística ou, nos casos em que em que is- tinção entre dois modelos: aquelas que abri-
so se mostra factível, criar uma instituição gam mais de um arquivo ou fundo docu-
para abrigá-lo. mental e que se definem como espaços de
No caso do encaminhamento a uma ins- guarda de acervos particulares relativos a
tituição de guarda, o destino do arquivo se- uma área específica de atuação ou conhe-
rá definido por meio de uma negociação cimento e, por outro, aquelas dedicadas à
envolvendo proprietário e instituição. Nes- memória de um personagem, cuja linha de
se sentido, para fazer a passagem do do- acervo tem como referência exclusiva, ou
mínio privado ao público, o acervo tem de como eixo de sentido, a trajetória de um
ser oferecido pelo primeiro no mercado de único indivíduo.
bens culturais e ser aceito, um gesto que se- Ainda que possam existir instituições
rá tão mais legitimador do seu capital sim- dedicadas à memória de quaisquer seg-
bólico quanto maior prestígio tiver a ins- mentos da elite, tradicionalmente, no Bra-
tituição. Ou o arquivo poderá ter sua doa- sil, as instituições de memória que abri-
ção ou compra sugeridas e mesmo solicita- gam acervos pessoais concentram-se em
das, evidenciando-se assim o capital de que três áreas: política, ciência e literatura.3
é dotado. Neste caso, opera-se uma valori- No primeiro caso, seria possível citar, por

1. Arquivos (ou fundos) privados são conjuntos de documentos produzidos e acumulados por entidade co-
letiva de direito privado, família ou pessoa física. (Cf. http://www.arquivonacional.gov.br/download/dic_
term_arq.pdf )
2. A definição e regulamentações relativas aos arquivos públicos e privados se encontra na Lei n. 8.159,
de 8 de janeiro de 1991, conhecida como “Lei de Arquivos” e no Decreto 4.073, de 3 de janeiro de 2002,
que a regulamenta.
3. Essa especialização de locais de arquivamento encontra paralelo na própria definição de arquivos pes-
soais. Em obra consagrada no campo da Arquivologia, lê-se: “A conceituação de arquivos pessoais está
embutida na própria definição geral de arquivos privados, quando se afirma tratar-se de papéis produzi-
dos/recebidos por entidades ou pessoas físicas de direito privado. (...) São papéis ligados à vida familiar,
civil, profissional e à produção política e/ou intelectual, científica, artística de estadistas, políticos, artis-
tas, literatos, cientistas etc.” (ver BELOTTO,2004, p. 256, grifo nosso).

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exemplo, o Instituto Histórico e Geográfi- mo unidades voltadas especificamente pa-
co Brasileiro, localizado no Rio de Janeiro ra a preservação da memória literária bra-
(bem como os Institutos Históricos e Geo- sileira. A mais emblemática é, sem dúvida,
gráficos estaduais e municipais, criados à a Academia Brasileira de Letras, situada no
semelhança do primeiro), cujo acervo reú- Rio de Janeiro, cujo acervo é composto pe-
ne “valioso patrimônio documental: docu- lo Arquivo dos Acadêmicos e pelo Arqui-
mentos manuscritos, oficiais e particula- vo Institucional.7 Chama atenção o fato de
res, entre raríssimos, interessantes (sátiras a ABL manter no Arquivo dos Acadêmicos
políticas), sobretudo importantes ao co- conjuntos documentais relativos a todos os
nhecimento da história brasileira”, consti- seus membros, ou seja, além dos arquivos
tuído por mais de uma centena de arqui- pessoais doados pelos titulares que decidem
vos e coleções particulares.4 encaminhar seus acervos para a instituição,
Para as elites científicas, duas institui- a própria ABL se encarrega de constituir
ções são referência no Rio de Janeiro. O Ar- “coleções pessoais” para aqueles acadêmi-
quivo História da Ciência, unidade do Mu- cos que, por alguma razão, não destinaram
seu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), seus documentos à Academia. Essa política
que “se dedica à preservação de parte da institucional remete à “obrigação” de reve-
memória científica brasileira” e possui um renciar a trajetória de todos os seus mem-
acervo composto por cerca de trinta arqui- bros, vivos e mortos, mas também à impor-
vos pessoais de cientistas e alguns arquivos tância, para a ABL, de ser reconhecida como
de instituições ligadas à ciência e à tecno- espaço dedicado à guarda e preservação da
logia5 , e a Casa de Oswaldo Cruz, unidade “memória” literária brasileira. Esse investi-
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Nes- mento pode ser atestado pela implantação,
se caso, o acervo arquivístico, composto por em 1997, no âmbito das comemorações pe-
mais de uma centena de fundos e coleções é lo centenário de sua fundação, do Centro
definido como “repositório singular da me- de Memória da ABL, visto como uma forma
mória e da história da saúde no Brasil”. A de ampliar a visibilidade da instituição e de
Casa abriga arquivos de cientistas, sanita- atrair um maior número de pesquisadores.
ristas, médicos e técnicos que participaram (OLIVEIRA, 2009)
da formulação e execução de políticas pú- Não parece casual que essa preocupação
blicas na área da saúde, merecendo desta- tenha emergido no final dos anos 1990, pe-
que os arquivos de Oswaldo Cruz, patrono ríodo que já foi caracterizado como de “in-
da Fiocruz, e de Carlos Chagas.6 flação” (HUYSSEN, 2000) e de “saturação”
No campo das Letras, seria necessário ci- (ROBIN, 2003) de memórias. A despeito das
tar algumas instituições que se definem co- demais funções exercidas pela Academia,

4. Cf. http://www.ihgb.org.br/acervo3.php (acesso em 1/5/2011).


5. Cf. http://www.mast.br/nav_h03.htm (acesso em 1/5/2011).
6. Cf. http://www.coc.fiocruz.br/patrimonio/index.php?option=com_content&view=article&id=90&Item
id=85 (acesso em 1/5/2011).
7. Outras instituições são o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, instalado na Fundação Casa de Rui
Barbosa, no Rio de Janeiro; o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ligado à USP, e o Acervo de Escritores
Mineiros da Faculdade de Letras da UFMG, em Belo Horizonte.

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que se define como uma instituição volta- enchidos” por acervos documentais. Vamos
da para “a cultura da língua e da literatura nos deter em alguns casos particulares, cen-
nacional”, ela tem investido na imagem de trando nossa atenção em projetos voltados
instituição de memória que reúne, preser- para a memória de personagens da elite po-
va e disponibiliza acervos de interesse pa- lítica brasileira contemporânea.
ra a pesquisa histórica.8 As duas dimensões,
evidentemente, não são antagônicas, mui- 3 Os lugares dos arquivos
to pelo contrário: a “recuperação” e a “pre- e os arquivos nos lugares
servação” da memória - termos recorrentes
nesse tipo de projeto- se justificam pela ne- A possibilidade de criar uma instituição
cessidade de proteger a “literatura nacional” para abrigar um arquivo pessoal específico
e a de tornar disponíveis fontes que alimen- coloca em jogo o prestígio do titular ou de
tem estudos e pesquisas nesse campo. Estes, seus “herdeiros” - entendidos aqui não ape-
por sua vez, acabam por confirmar a ima- nas como familiares, mas também como de-
gem de instituição de referência projetada positários da herança memorial do persona-
pelos dirigentes da ABL. gem. O sucesso do projeto institucional de-
Todas as instituições mencionadas cons- penderá do capital político dos agentes en-
tituem “lugares de memória” das elites. Na volvidos e das redes de relações que consi-
verdade, cada uma dessas instituições po- gam mobilizar em torno do empreendimen-
deria servir de base a um estudo específi- to. O discurso articulado nesses contextos
co, que buscasse perscrutar as histórias e os recorre sempre à “retórica da perda”, para
agentes envolvidos na criação de cada uma usar a feliz expressão de Gonçalves (1996),
delas, os formatos institucionais adotados, segundo a qual o presente é narrado como
as formas de colecionamento e de captação uma situação de perda progressiva e inexo-
de acervos privilegiadas, os critérios esta- rável em relação à qual ganham sentido as
belecidos para definir o que pode integrar práticas de colecionamento e exposição. As
cada um dos espaços, as estratégias de fi- iniciativas voltadas para a preservação de
nanciamento, os mecanismos de divulgação arquivos pessoais de homens públicos cha-
das atividades, enfim, uma série de aspectos marão sempre atenção para a “necessidade”
que, ao explicarem a natureza e o funciona- de recuperação desses acervos, para o ris-
mento de tais entidades, ajudariam a ilumi- co da perda e do esquecimento, e para a im-
nar mecanismos de legitimação institucio- portância dessa recuperação para a “memó-
nal, de consagração de trajetórias conside- ria nacional”, categoria na qual cumpre in-
radas “exemplares” e, finalmente, de cons- cluir a memória do titular e os objetos que a
trução da memória histórica no país. simbolizam.
Não é nossa intenção apresentar um pai- Alguns exemplos podem ser úteis para
nel institucional, mas chamar atenção para iluminar possibilidades e estratégias de ação
um investimento generalizado e crescente associadas à institucionalização da memó-
na constituição de espaços memoriais “pre- ria de determinados homens públicos. No

8. Cf. http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5 (acesso em 14/5/2011).

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primeiro caso, os limites individuais e tem- doados à FGV nos anos seguintes, e as pes-
porais inicialmente estabelecidos pelo acer- quisas iniciadas nesse acervo deram origem
vo cuja preservação serviu de justificativa a uma vasta produção acadêmica. O Centro
para o empreendimento foram extrapola- tornou-se referência para pesquisadores in-
dos, diluindo-se em grande medida o cará- teressados na história recente do país e, ao
ter personalista do projeto; em outros, mais mesmo tempo, ganhou respeitabilidade jun-
recentes, a persona do titular parece mais to à elite política, sendo visto como destino
incontornável. almejado para o arquivo pessoal de muitos
Pode ocorrer de um arquivo pessoal ser homens públicos. Por outro lado, a criação e
acolhido por uma instituição cuja relação a trajetória do CPDOC mudaram o perfil da
com o titular antecede a doação, caso, por FGV, que passou a contar com uma unidade
exemplo, do arquivo de Getulio Vargas, do- voltada para o campo da história, agregan-
ado por sua filha, Alzira Vargas do Ama- do, por sua vez, ao seu capital institucional,
ral Peixoto à Fundação Getulio Vargas, em o diferencial de preservar “bens públicos”
1973, dezenove anos após a morte de seu de valor para a memória nacional.
pai, e quando a FGV já contava com quase Dessa brevíssima história, importa re-
trinta anos de existência. Nesse caso, a re- ter o fato de que o arquivo Getulio Vargas,
cepção do arquivo de Vargas, presidente da por iniciativa de suas herdeiras, tornou-se o
República que criou a FGV como instituição germe de um projeto institucional duradou-
central de um projeto administrativo colo- ro. Nesse caso, a doação e a organização
cado em curso pelo governo, remete ao ca- do arquivo não serviram apenas à pesquisa
pital simbólico do arquivo do ex-presiden- acadêmica, mas constituíram a base de uma
te, às conexões históricas com a instituição, série de projetos editoriais e de divulgação
bem como aos contatos da doadora com os histórica, que alimentaram o capital insti-
dirigentes da Fundação.9 Embora não fosse tucional do Centro e o capital, acadêmico e
uma instituição arquivística, a FGV concor- social, dos agentes envolvidos nessas ini-
dou em criar um centro de pesquisa e docu- ciativas. Nesse mesmo movimento, o capital
mentação para abrigar o acervo, o Centro de simbólico do arquivo e do próprio persona-
Pesquisa e Documentação de História Con- gem era atualizado.10
temporânea do Brasil (CPDOC), que seria di- Mas há casos, também, em que o acervo
rigido pela filha de Alzira, a socióloga Celi- de um dado personagem é a razão de ser da
na Vargas do Amaral Peixoto. criação de uma instituição. Aqui, não se tra-
A idéia era que, a partir da doação do ta de acomodar registros documentais a um
arquivo de Vargas e tendo à frente sua ne- espaço já existente – seja integrando-o a um
ta, o Centro conseguiria atrair arquivos de acervo maior, seja criando um ambiente novo
ex-ministros e colaboradores, permitindo para abrigá-lo dentro de uma estrutura insti-
constituir um acervo que alimentasse novas tucional anterior – mas de fundar uma ins-
análises sobre a história recente do Brasil. tituição cuja missão será preservar e valori-
Isso de fato ocorreu. Vários arquivos foram zar o “legado” do personagem. Nesses casos,

9. Para uma análise do processo de doação do arquivo à FGV ver Nedel (2010).

Memórias da elite 83
é bom frisar, a existência de um acervo é con- e como uma escola de governo. Na verda-
dição fundamental para o sucesso do projeto, de, essas dimensões se informam reciproca-
e entre os acervos que podem evocar a traje- mente: o legado, consubstanciado no acer-
tória de um indivíduo – fotografias oriundas vo, ao preservar a memória de Covas, con-
de agências de publicidade ou de imprensa, fere legitimidade à escola que propaga o seu
recortes de jornais, coleções de documentos ideário, enquanto essa última atualiza e dis-
doados por terceiros - o arquivo pessoal ocu- semina a trajetória do homem público, res-
pa um lugar de destaque. Quanto mais “origi- significando a sua memória.
nal”, “único” e “pessoal” o acervo, mais fortes Um dos eixos da Fundação é o seu Cen-
os argumentos que justificam a sua preserva- tro de Memória, instalado em 2007, a par-
ção, organização e acesso. tir da execução do projeto “Cultura, Políti-
O exemplo da Fundação Mário Covas ca e Cidadania – organização da memória
(FMC), inaugurada em abril de 2001, um Covas”, que contou com apoio da Lei Rou-
ano após a sua morte, pode ser interessante anet. Além de organizar e tornar disponí-
para pensarmos tanto nas vicissitudes que vel o arquivo Mario Covas, o Centro de Me-
podem marcar a constituição de um arqui- mória tem como metas desenvolver projetos
vo pessoal como no lugar de destaque que culturais e educativos, montar exposições, e
ele assume em projetos memoriais. Criada incentivar ações que visem à preservação de
por meio de doações de mais de mil pesso- acervos relevantes para a história brasileira.
as físicas e jurídicas, a FMC tem como pa- A memória de Covas, imediatamente
trimônio o arquivo de Covas e outros docu- após sua morte, foi investida por parte de
mentos doados por terceiros, como fitas de seus antigos colaboradores (secretários de
vídeo, fotos e objetos. Sua missão é: “Con- governo, assessores, secretários particula-
tribuir para a valorização da cidadania, pa- res) do capital associado à noção de “lega-
ra o aperfeiçoamento da gestão pública se- do”, cuja preservação deveria ser garanti-
gundo os princípios da inovação, da ética da mediante a mobilização de recursos e a
e da probidade administrativa, estimular e execução de projetos, o mais importante de-
apoiar iniciativas de ação comunitária e di- les sendo a criação da própria Fundação. No
fundir o ideário de Mario Covas para as no- entanto, vale a pena investir um pouco na
vas gerações”.11 A Fundação tem, portanto, história do arquivo Mario Covas.
dimensão memorial e política, pretenden- O grupo que se articulava em torno do
do atuar como gestora do legado de Covas governador, antes do agravamento da sua

10. Para ficar apenas nas exposições realizadas pelo CPDOC em torno da figura de Vargas, que contaram
com a sua curadoria ou consultoria histórica, há que mencionar: A Revolução de 30 (1980), Revolução de
32, a fotografia e a política (1982), Getúlio Vargas, 1983 (pelo centenário de nascimento de Vargas), Es-
tado Novo: a construção de uma imagem (1997), Getúlio Vargas (exposição permanente no Memorial Ge-
túlio Vargas, em Volta Redonda, 1999), Eu, Getúlio (consultoria histórica, 1999), Volta Redonda, uma de-
cisão política (exposição permanente no Memorial Getúlio Vargas, em Volta Redonda, 2001) e as mais re-
centes, montadas no cinqüentenário do suicídio, em 2004, Getúlio – Presidente do Brasil (curadoria, no
Museu da República) e Getúlio e o Rio (curadoria iconográfica, no Memorial Getúlio Vargas, no Rio de Ja-
neiro).
11. Cf. http://www.fundacaomariocovas.org.br/ (acesso em 14/5/2011).

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doença e de sua morte, trabalhava com vis- reforçar as justificativas para a sua preser-
tas à candidatura de Covas à Presidência vação. O fato do arquivo não ter sido acu-
da República. Como ele próprio nunca ha- mulado pelo próprio titular – critério essen-
via se preocupado em acumular documen- cial para a identificação do conjunto como
tos, sua assessoria política trabalhava en- “arquivo pessoal” – foi apagado. A morte
tão para constituir um arquivo que cobrisse de Covas dignificou o acervo, e sua institu-
toda a sua trajetória, desde a vereança em cionalização, aos olhos de seus colaborado-
Santos. Um setor especialmente organiza- res, tornou-se a melhor forma de preservar
do no Palácio dos Bandeirantes se ocupa- o seu legado e de dar continuidade ao pro-
va de pesquisar, localizar e reproduzir do- jeto político que ele havia capitaneado.
cumentos que estivessem arquivados em Se, nos dois casos citados, Vargas e Co-
órgãos públicos ou guardados com tercei- vas, a criação de espaços memoriais foi
ros. A idéia era criar uma “memória polí- protagonizada por herdeiros, nos dois ca-
tica” que pudesse ser mobilizada em uma sos a seguir os projetos institucionais foram
futura campanha presidencial. A morte de concebidos e iniciados pelos próprios titu-
Covas frustrou as expectativas desse grupo lares, que assumiram, eles próprios, o dis-
que, no entanto, conseguiu operar a con- curso do “legado”.
versão do projeto político-partidário em
projeto “político-memorialístico”: o que era 4 Fernando Henrique Cardoso e o iFHC
um acervo dotado de “valor político” para a
disputa eleitoral tornou-se um acervo dota- No caso de Fernando Henrique Cardo-
do de “valor histórico”. so, a criação de um instituto para abrigar
Não se deve perder de vista que os in- o seu acervo, bem como a publicação de li-
vestimentos na memória - projetos institu- vros analisando a sua trajetória política fo-
cionais, comemorações, homenagens -, vi- ram tarefas que o ex-presidente assumiu
sam ancorar no passado as posições que os pessoalmente.12 O Instituto Fernando Hen-
protagonistas desses investimentos ocupam rique Cardoso (iFHC) é o seu projeto desde
no presente ou pretendem ocupar no futu- que deixou a Presidência da República. Na
ro, sejam eles os próprios titulares ou não. realidade, o projeto teve início bem antes,
O acervo documental reunido pela assesso- durante seu primeiro mandato como presi-
ria de Covas foi convertido em arquivo pes- dente, quando o destino de seu arquivo co-
soal de modo a valorizar a documentação e meçou a preocupá-lo.13 Data de 1996 a rea-

12. Apenas três anos após deixar a Presidência, FHC publicou um livro de mais de 600 páginas, A arte da po-
lítica: a história que vivi, além de The accidental President of Brazil: a memoir, publicado apenas nos Estados
Unidos, com prefácio de Bill Clinton, e Cartas a um jovem político: para construir um país melhor.
13. Os acervos de presidentes da República, desde 1991, são objeto da Lei n. 8.394, que “dispõe sobre a
preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República e dá
outras providências”. Segundo esse dispositivo legal, tais acervos são considerados de interesse público, o
que, na prática, significa que, em caso de venda, a União deve ter prioridade na compra, e que os acervos
não podem ser alienados para o exterior sem manifestação expressa da União. Ainda que incentive a pre-
servação e disponibilização desses acervos, não há nenhuma menção à criação de instituições voltadas pa-
ra sua guarda. A decisão sobre o destino de tais acervos permanece como responsabilidade dos titulares
ou seus herdeiros legais.

Memórias da elite 85
lização de uma pesquisa ampla cujo objeti- de seu país. Pode-se imaginar, ainda, que a
vo era subsidiar a decisão quanto ao forma- projeção de uma identidade com o estadis-
to que deveria assumir a instituição que iria ta cuja trajetória se confunde com a con-
abrigá-lo (HEYMANN, 2009). Por indicação solidação da democracia portuguesa e com
do então presidente, a assessora do gabinete quem Fernando Henrique escreveu O mun-
da Secretaria Geral da Presidência da Repú- do em português: um diálogo possa ter exer-
blica visitou instituições brasileiras detento- cido influência na decisão de tomar a Fun-
ras de arquivos de ex-presidentes e institui- dação Mário Soares como parâmetro para a
ções estrangeiras.14 A viagem internacional criação do Instituto.
teve como primeiro destino os Estados Uni- A inauguração do IFHC ocorreu em 22
dos e as bibliotecas presidenciais (John F. de maio de 2004, em um seminário inter-
Kennedy, em Boston; Lyndon B. Johnson, nacional que reuniu políticos e intelectu-
em Austin; Jimmy Carter, em Atlanta; Ge- ais nacionais e estrangeiros, entre os quais
orge Bush, pai, em College Station, no Te- Bill Clinton e Manuel Castells. As palavras
xas, e Ronald Reagan, em Simi Valley, na de Fernando Henrique confirmam a opção
Califórnia), depois a França, onde o Arqui- por um perfil “duplo”: “Quis que ele fos-
vo Nacional e o Instituto François Mitterand se não só um centro de memória históri-
foram visitados e, por último, Portugal e a ca, mas também um lugar de debates sobre
Fundação Mário Soares (FMS), considerada a democracia e o desenvolvimento, duas
a melhor alternativa. causas com as quais estive envolvido des-
Segundo Fernando Henrique, a Funda- de muito cedo. Desempenhando um ou ou-
ção Mário Soares pareceu mais apropria- tro papel, a missão do Instituto para mim é
da como modelo de instituição do ponto uma só: contribuir para ampliar a compre-
de vista de suas dimensões, menores e mais ensão e disseminar conhecimento sobre o
adaptadas à realidade brasileira se compa- país e seus desafios, com os olhos abertos
radas às das bibliotecas presidenciais nor- para o mundo.”15
te-americanas, verdadeiros monumentos, Sem pretender analisar o acervo FHC,
aonde “eles guardam tudo” (HEYMANN, bastante rico e complexo, gostaria de cha-
2009, p. 57). Além disso, seu perfil pare- mar atenção para um único ponto. A orga-
cia adequar-se perfeitamente aos propósi- nização do arquivo dividiu a documentação
tos de Fernando Henrique: a Fundação Má- em três grandes conjuntos: período pré-pre-
rio Soares, mais do que um lugar de memó- sidencial, período presidencial e período
ria, um centro de documentação, é um es- pós-presidencial. Essa “ordem”, reproduzida
paço de debate sobre temas contemporâne- no Guia dos Arquivos disponível no site do
os, um think tank por meio do qual Mário iFHC, coloca como centro de sua atuação a
Soares mantém-se presente na cena pública Presidência da República, produzindo a im-

14. No Brasil, foram visitadas a Fundação José Sarney, no Maranhão; o Memorial Juscelino Kubitschek,
em Brasília, que, à época, não continha o acervo documental do ex-presidente, mas apenas seu túmulo e
uma pequena exposição; o CPDOC, o Museu da República e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), no Rio de Janeiro. (Cf. Entrevista de Danielle Ardaillon concedida à autora em 12/01/2007).
15. Cf. http://www.ifhc.org.br/index.php?module=conteudo&class=fixo&event=ver&id_conteudo=8
(acesso em 14/5/2011).

86 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011


pressão de que tudo o que vem antes é uma tro das Comunicações de janeiro de 1995 até
preparação para esse momento. Essa classi- seu falecimento, em abril de 1998. O desejo
ficação, que é também uma forma de nar- de Fernando Henrique, expresso no site do
rar a vida do titular, produz uma linearida- Instituto, é incorporar arquivos e coleções
de que sabemos construída ex post facto. Ao documentais de pessoas que compuseram
produzir esse ordenamento, a classificação seus dois governos (1995-2002).16 Com es-
dota a narrativa de um sentido dado des- sas aquisições, naturalmente, o capital insti-
de o início, assemelhando-se à estrutura do tucional do iFHC se ampliaria, consolidan-
discurso hagiográfico, analisado por Certe- do-se sua vocação de instituição de guar-
au (2002, p. 273): “Enquanto que a biogra- da da memória histórica do país. A inten-
fia visa colocar uma evolução e, portanto, ção de reunir arquivos de seu período de go-
as diferenças, a hagiografia postula que tu- verno pode também ser interpretada como
do é dado na origem com uma “vocação”, uma tentativa de consolidação de um espaço
com uma “eleição” ou como nas vidas da que, sob a chancela “FHC”, funcionaria co-
Antiguidade, com um ethos inicial.” mo local de referência e identificação de um
Se os perigos associados à “ilusão bio- determinado grupo político. Não se pode es-
gráfica” (BOURDIEU, 1989), à lógica de ra- quecer que o Instituto é o projeto de Fernan-
cionalização das trajetórias de vida, há tem- do Henrique hoje. Com uma intensa progra-
pos coloca questionamentos aos estudos mação de debates sobre temas da atualida-
que, no campo das ciências sociais, traba- de brasileira, latino-americana e internacio-
lham com autobiografias e biografias, tais nal, o iFHC atualiza a presença do ex-presi-
críticas muitas vezes não alcançam os ar- dente na cena pública, e a reunião de acer-
quivos pessoais e seus enquadramentos. vos de outros personagens de destaque sob
Talvez por força das associações que ainda a égide do Instituto só faria aumentar o ca-
prevalecem entre arquivo e vestígio do pas- pital da instituição e o capital social de seu
sado, por força de um olhar que, em algu- fundador.17
ma medida, naturaliza a fonte documental Instituições criadas para preservar a me-
- ainda que critique o documento seguindo mória têm sempre caráter político, na medi-
os cânones da disciplina histórica – não se da em que a memória é instrumento capaz
observa, de maneira geral, atenção ao tipo de criar identidades, de produzir um discur-
de narrativa tácita que os arquivos pesso- so sobre o passado e projetar perspectivas
ais podem construir e que as divisões do ar- para o futuro. A memória confere legitimi-
quivo Fernando Henrique tão bem expressa. dade ao projeto institucional e aos agentes
Além do arquivo do ex-presidente, o que a ele se dedicam. Para além dessa di-
acervo compreende, ainda, o arquivo pes- mensão, o iFHC – assim como a Fundação
soal de Ruth Cardoso (1930-2008) e docu- Mario Covas - visa, explicitamente, à inter-
mentos do arquivo de Sergio Motta, minis- venção no campo da política. Nesse senti-

16. Cf. http://www.ifhc.org.br/index.php?module=conteudo&class=fixo&event=ver&id_conteudo=564


(acesso em 14/5/2011).
17. A relação de debates realizados no iFHC está disponível na site do Instituto, sendo possível verificar a
diversidade de temáticas e o grande número de palestrantes convidados. Cf. http://www.ifhc.org.br/index.
php?module=conteudo&class=debate (acesso em 15/5/2001).

Memórias da elite 87
do, o patrimônio que se encontra sob sua tar fazendo nascer mais uma instituição ve-
guarda atua como lastro, qualificando, de tusta: Fundação Getúlio Vargas, Fundação
maneira simbólica e material, o empreendi- Roberto Marinho. A minha seria uma po-
mento institucional. bre fundaçãozinha Zé da Silva, sem poder e
Um último projeto será mencionado nes- sem dinheiro para crescer e florescer. Qual
sa breve reflexão. Nesse caso, foi a proximi- seria o seu propósito? Louvar-me, dizendo
dade da morte e o desejo de ultrapassar a fi- que eu fui bonito e inteligente? Gosto mui-
nitude e o esquecimento que ela encerra que to de elogios, mas não tanto que me dis-
impulsionaram o projeto memorial. ponha a criar uma máquina de elogiar, co-
mo aquelas que os monges do Himalaia têm
5 Darcy Ribeiro e a FUNDAR para rezar pedalando.
Acabei caindo em mim de que precisava
A Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR) mesmo criar a tal Fundação Darcy Ribeiro –
foi oficialmente instituída em janeiro de FUNDAR. Tenho mesmo que transferir a al-
1996, cerca de um ano antes da morte de guém ou a alguma instituição tarefas que,
seu fundador, mas tem uma história que bem ou mal, eu venho cumprindo a vida in-
começa alguns anos antes, quando Darcy teira e que, sem mim aí para cuidar delas, fi-
Ribeiro, ao saber que estava gravemen- cariam aos azares do acaso. (...)18
te doente, decide criar uma instituição ca-
paz de dar continuidade ao trabalho que vi- A análise das minutas de estatuto da
nha desenvolvendo. A Fundação deveria se Fundação indica que, durante a fase de pla-
concentrar na execução de projetos que vi- nejamento, o patrimônio da instituição foi
sassem os seguintes objetivos: a solidarie- sendo ampliado, passando a abarcar – além
dade aos povos indígenas e caboclos brasi- dos direitos autorais das obras de Darcy –
leiros; a defesa da Amazônia e do Pantanal; sua biblioteca, objetos de arte e móveis. A
o desenvolvimento artístico do país; o pla- inclusão dos direitos autorais das obras de
nejamento e implantação de universidades, sua primeira mulher, a antropóloga Berta
bem como a reforma das já existentes; a re- Gleiser Ribeiro, bem como de sua bibliote-
novação da rede pública de ensino, a elabo- ca e outros bens móveis, foi feita à mão em
ração de currículos e a produção de filmes uma das versões do documento, sinalizando
educativos para 1º. e 2º. graus; a promoção que a idéia de uma instituição que abrigasse
de ensino à distância e, finalmente, a reedi- o acervo dos dois foi sendo formatada com
ção das obras de Darcy Ribeiro. o tempo. A menção explícita aos arquivos
O projeto da Fundação parecia estar cen- de Darcy e Berta Ribeiro, a serem instalados
trado na continuidade do “legado” político- na sede da Fundação “para uso acadêmico”,
-ideológico de Darcy, como atesta de forma aparece pela primeira vez em uma versão do
clara um documento de seu arquivo pessoal: estatuto de 1995.
Quando me sugeriram criar uma Fundação Chama atenção o fato do arquivo pesso-
com meu nome, a idéia me deu medo de es- al de Darcy não aparecer nos primórdios do

18. Esse documento, sem data, integra o dossiê “FUNDAR” do Arquivo Darcy Ribeiro. A pesquisa no ar-
quivo foi realizada no contexto da elaboração de minha tese de doutorado, “De arquivo pessoal a patri-
mônio nacional: reflexões acerca da construção social do ‘legado’ de Darcy Ribeiro”.

88 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011


projeto institucional, voltado para a reedi- tentativas de controlar a imponderabilidade
ção de suas obras e para o desenvolvimen- que cerca a interpretação histórica.
to de projetos. O mesmo não acontecia, po- Essa preocupação não parece ser prer-
rém, com sua biblioteca que, a seus olhos, rogativa de Darcy. É o próprio Fernando
tinha grande importância: por meio de seus Henrique Cardoso quem a expressa de for-
20 mil livros Darcy considerava que se- ma clara e contundente: “Talvez seja essa a
ria possível reconstituir os caminhos da sua sensação agônica a pagar por quem se lan-
formação. Essa perspectiva explicaria o de- ça na vida pública: o juízo que conta é o da
sejo, várias vezes declarado, de que sua bi- História, e a ele os personagens não assis-
blioteca não fosse desmembrada após a sua tem. Quando a grande mestra dos homens
morte, bem como as démarches para com- sentencia, o veredicto recai nos mortos.”
prar os volumes que estariam faltando pa- (CARDOSO, 2006, p. 24). Escrever autobio-
ra torná-la completa e fiel às suas referên- grafias e investir em projetos memoriais
cias teóricas.19 surgem, nessa perspectiva, como estratégias
A despeito de definir-se como ‘homem das quais os homens públicos lançam mão
de ação’, Darcy lamentava não ser reconhe- para lidar com a apreensão causada pela in-
cido como intelectual e homem de idéias: determinação dos juízos históricos.
‘Temo muito ser recordado no futuro mais Se Darcy Ribeiro, a princípio, não via
por meus empreendimentos que por minhas seus documentos como um acervo dotado de
idéias, o que será uma injustiça’ (RIBEIRO, “valor”, o interesse expresso por pesquisa-
1997, p. 521). Nesse trecho, escrito em 1996, dores de diversas áreas em consultar a docu-
quando a proximidade da morte o motivara, mentação, após a morte do titular, e a pos-
também, a escrever um livro de memórias, siblidade de angariar recursos para o desen-
fica clara a preocupação com a forma como volvimento de projetos que tinham o arqui-
seria lembrado e o desejo de ser reconhecido vo como objeto deixou claro para os diri-
como intelectual. Mais do que isso, Darcy gentes da FUNDAR o capital simbólico asso-
expressa o sentimento de impotência na de- ciado ao acervo.20 Eles logo perceberam que,
finição da memória que seu nome evocaria por meio da preservação e disponibilização
quando ele não mais pudesse assumir o pro- do arquivo, seria possível não apenas apro-
tagonismo de sua própria interpretação. A ximar a Fundação da comunidade acadêmi-
criação da FUNDAR, a escrita de suas me- ca, mas aumentar o capital institucional.
mórias e o cuidado com sua biblioteca po- Além de fonte de pesquisa valoriza-
dem ser interpretados, nesse contexto, como da nos campos da história, da antropolo-

19. As informações sobre a visão de Darcy a respeito de sua biblioteca e de seu arquivo nos foram pres-
tadas por sua segunda mulher, Claudia Zarvos, em 6/6/2008. Segundo ela, Darcy não vislumbrava no ar-
quivo “um valor em si”, ou um patrimônio que pudesse interessar à posteridade.
20. A Fundação Darcy Ribeiro assinou dois convênios com o objetivo de prover recursos para a organiza-
ção do arquivo: o primeiro com a Faperj, em 2000, e o segundo com a Fundação Cesgranrio, em 2002. Já
em 2008, a FUNDAR encaminhou ao Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ a solicitação de classifi-
cação dos arquivos Darcy e Berta Ribeiro como “arquivos privados de interesse público e social”, obtendo
pareceres técnicos favoráveis à classificação. Nesse mesmo ano, um projeto de digitalização dos dois ar-
quivos foi encaminhado ao BNDES para concorrer a um edital voltado para a área de acervos, tendo sido
contemplado.

Memórias da elite 89
gia e da educação, o arquivo tem alimenta- tor a sua atuação, mostrando-lhe “a com-
do uma série de projetos desenvolvidos pe- plexidade, a rugosidade do real”. (CARDO-
la FUNDAR nos últimos anos. Na linha edi- SO, 2006, p.13). A distância de propósitos
torial, a Fundação propôs a publicação de – “comover” e “explicar” - e estilos entre os
mais de uma dezena de livros com base no dois livros é enorme, bem como a nature-
material dos acervos de Darcy e Berta. Al- za dos dois acervos e das instituições que os
guns são projetos do próprio titular, como abrigam, para não falar em trajetórias e es-
os quatro volumes de Os Cronistas France- tilos políticos. Não é nossa intenção, para
ses, projeto iniciado nos anos 1980, cujos finalizar esse artigo, comparar os dois pro-
originais encontram-se no arquivo e que, jetos memoriais, mas apenas sugerir que as
após diversas tentativas, foram publicados imagens projetadas por seus titulares para si
em 2009.21 Há propostas, ainda, para a pu- próprios contaminam e informam as visões
blicação de coletâneas de documentos - au- de “legado” alimentadas por suas institui-
las, cartas do exílio, prefácios que Darcy ções de memória. As identidades da FUN-
escreveu para inúmeras publicações, arti- DAR e do iFHC incorporam e reproduzem as
gos e diários de campo inéditos – deixan- personas de seus fundadores, colocando li-
do entrever o potencial do arquivo para a mites à associação tradicional entre institu-
geração de produtos que atualizam o “lega- cionalização e impessoalidade.
do” de Darcy ao mesmo tempo em que im- Nas palavras de Paulo Ribeiro, sobrinho
pulsionam e dão visibilidade ao acervo e à de Darcy e atual presidente da FUNDAR, o
Fundação. Não é demais lembrar que a no- tio teria planejado a Fundação com a idéia
ção de legado alimenta a memória dos mor- de aglutinar um grupo de pessoas que ele
tos aos quais se associa, mas a titularidade considerava capazes de dar continuidade às
das ações empreendidas em seus nomes e os suas “lutas”. Ao comentar as suas motiva-
dividendos que sejam capazes de produzir ções, Paulo assim se expressa:
pertencem aos vivos. Darcy tinha uma preocupação permanente, o
tempo todo ele falava assim: ‘Quantos mul-
6 Legados contrastivos tiplicadores eu vou deixar? Eu estou multi-
plicando uma luta que foi de Anísio [Teixei-
Darcy escreveu as suas Confissões, cien- ra]; eu sou um dos multiplicadores da idéia
te de que a morte se aproximava, para sa- de [Cândido Mariano da Silva] Rondon, e
ber e sentir como chegou a ser o que era, quem é que vai continuar essa luta? Quantos
buscando comover os seus leitores. (RIBEI- eu vou deixar?’22
RO, 1997, p. 11). Fernando Henrique escre-
veu Arte da política: a história que vivi, ao Para Paulo Ribeiro, para fazer jus ao
deixar a Presidência, mas planejando man- projeto de Darcy, a FUNDAR deve reunir
ter-se na cena pública, para explicar ao lei- pessoas que, tendo trabalhado com ele, ten-

21. O primeiro volume da coleção Os Franceses no Brasil foi publicado em setembro de 2009, sob o títu-
lo Nicolas Durand de Villegagnon e outros (1542-1569):correspondência.
(http://finsdetardespoeticas.blogspot.com/2009/09/fundacao-darcy-ribeiro-lanca-colecao-os.html. Acesso
em 10/02/2011).
22. Entrevista de Paulo Ribeiro concedida à autora em 27/05/2008.

90 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011


do participado de seus projetos, permanece- dou a FUNDAR à sua semelhança, trans-
ram, de alguma forma, imbuídas das suas feriu-lhe as suas tarefas, e até hoje parece
idéias. Essa imagem nos dá acesso a uma di- prevalecer a lealdade a essa marca original,
mensão importante da cultura institucional o que significa tanto uma agenda como um
da FUNDAR: a mesma “paixão” exigida pa- estilo de trabalho.
ra trabalhar com Darcy, uma paixão que ti- A Fundação reúne antigos colaborado-
nha nele a sua origem e que “contaminava” res, que lembram Darcy “todo dia”, que são
aqueles que participavam de seus projetos, movidos pelas suas paixões e buscam recu-
continua a ser exigida, hoje, de quem traba- perar os seus projetos. A partir do momen-
lha na Fundação. to em que a morte fecha definitivamente o
Eu acho que pelo menos o sonho da uto- leque dos possíveis modos de expressão da
pia está vivo aqui dentro. E as pessoas que sua personalidade, a memória de Darcy se
trabalham aqui, se não tiverem tesão e pai- torna lição, diretriz, pois tudo o que ele dis-
xão não conseguem trabalhar. (...) Eu falo se e fez tem a sua marca, e deve ser conti-
que é paixão. A nossa missão é a educação? nuado. Há, portanto, uma “literalidade” no
Não. Nós temos uma paixão pela educação e legado de Darcy, tal como ele é vivenciado
compromisso histórico com isso. E o exem- na FUNDAR.
plo dele, vivo, extremamente vivo. Todo dia O depoimento de Paulo Ribeiro revela
ele é lembrado aqui, dezenas de vezes ele um padrão de institucionalização que carre-
é lembrado. ‘E aquele projeto, você lembra ga uma forte dose de afetividade: a dimen-
que ele falou isso?’ são pública do empreendimento, nesse caso,
não garante impessoalidade. Ao contrário,
A “presença” de Darcy na FUNDAR, sua a FUNDAR, além de não poder ser “vetus-
constante lembrança, mais do que sim- ta” sob o risco de trair o seu fundador, tem
ples fonte de inspiração, parece confor- muito, até hoje, de familiar, de pessoal, ca-
mar o ambiente de uma instituição na qual racterísticas que são reforçadas pelo fato de
a singularidade de Darcy, a sua “genialida- funcionar em uma casa cercada de árvores,
de”, é relembrada e reconhecida cotidiana- em Santa Teresa, cujas paredes são cober-
mente.23 A sua “presença” alimenta um am- tas pela biblioteca de Darcy e Berta Ribei-
biente institucional que se define na chave ro, e cujo salão é composto de móveis, qua-
da paixão: a paixão que Darcy devotava a dros e várias peças de cultura popular que
seus projetos e que caracterizou a sua ima- pertenceram a Darcy. Seu retrato, sorrindo
gem e o seu padrão de atuação pública con- em uma foto de grandes dimensões, parece
tinua a impulsionar a sua Fundação, pois recepcionar o visitante. Não há tratamen-
constitui parte do seu “legado”. Darcy mol- to musealizado do ambiente, vitrines ou le-

23. Na entrevista, Paulo menciona a singularidade intelectual do tio, aproximando-a do atributo da ousa-
dia, entendida tanto como falta de limite à imaginação sociológica como no sentido da coragem de en-
frentar os padrões acadêmicos: “No Brasil, não teve nenhum intelectual – é lógico que vários serviram de
alicerce a ele – com tamanha ousadia. ‘Eu vou explicar para o mundo inteiro por que o mundo é tal co-
mo é.’ E ele explica a humanidade inteira. Depois, explica o que aconteceu com a América Latina (...) e de-
pois explica o Brasil: por que nós estamos nessa situação. Não teve ninguém, nenhum intelectual – eu não
conheço –, que teve essa ousadia, não é?.(...) Porque a crítica, dentro da área acadêmica, é muito grande.”

Memórias da elite 91
gendas que identifiquem ou contextualizem tar os legados e, por conseguinte, em dife-
as peças. Tudo está disposto como se o dono rentes culturas de instituições a eles dedica-
da casa pudesse chegar a qualquer momen- das. Levando em consideração que todo in-
to. Essa pessoalidade tem efeitos na gestão e vestimento na construção de um legado se-
nos usos dos documentos do arquivo, vistos gue um padrão geral que confere protago-
mais como fonte de inspiração para a atua- nismo à ação do personagem ao qual se as-
ção da Fundação do que como material de socia, ou seja, partindo da premissa de que
natureza histórica. existe sempre uma centralidade atribuída à
Nesse ponto, pode ser sugestivo lançar sua trajetória, seria possível distinguir for-
mão das reflexões do historiador Stephen mas diferentes de evocação da memória. No
Greenblatt (1991) a respeito de dois mo- caso de Darcy Ribeiro, a ênfase está no self,
dos distintos de exibição das obras de arte no gesto criador, na singularidade. É o cará-
– uma centrada na ressonância e outra no ter excepcional do personagem, a sua “pai-
“maravilhamento” (wonder) – para, a par- xão” que ocupa a cena, havendo pouco es-
tir daí, propor duas formas distintas de re- paço para o contexto e para as contingên-
presentação institucional dos legados. Pa- cias. Darcy era e continua sendo represen-
ra Greenblatt, a idéia de ressonância está li- tado como a fonte de onde emana a energia
gada a uma forma de exibição dos objetos que impulsiona os seus seguidores, é o “ma-
que evoca o universo mais amplo de rela- ravilhamento”, a admiração, que alimenta o
ções sociais e de forças culturais das quais o seu legado.
objeto teria emergido e em relação às quais, No caso de outros personagens que cria-
no contexto de exibição, ele seria o repre- ram uma instituição para abrigar o seu acer-
sentante. Por “maravilhamento”, o autor vo, ou que foram objeto desse tipo de inves-
pretende designar a modalidade de apresen- timento, ainda que haja sempre a constru-
tação que mantém o expectador focado no ção de um protagonismo, a ênfase pode es-
objeto, restrito aos seus limites, com o obje- tar mais no contexto, nos vínculos sociais
tivo de produzir um sentido de singularida- e na historicidade da ação. Fernando Hen-
de e de encantamento. No primeiro caso, a rique Cardoso, por exemplo, ao construir a
idéia é provocar no expectador a consciên- sua imagem como estadista – e não como
cia da construção histórica e culturalmente gênio – parece apontar diretamente para o
contingente dos objetos, é chamar atenção contexto, para as condições dadas pela sua
para os processos de negociação e escolha época, para a capacidade de negociação e
que resultaram nas práticas representacio- de articulação que o distinguiria como ho-
nais em exibição; no segundo, a força esta- mem público. Por meio de Fernando Henri-
ria centrada no poder visual de cada obra, que e de seu arquivo é a conjuntura e o con-
na exaltação do seu carisma e da geniali- texto que se descortinam.
dade artística do seu criador. A ressonân- O desejo do ex-presidente, de incorpo-
cia dá acesso a toda uma época e todo um rar ao acervo do iFHC arquivos e coleções
contexto no qual o objeto foi criado; o “ma- de políticos que participaram da vida públi-
ravilhamento” mantém o expectador focado ca brasileira entre 1995 e 2002 também si-
unicamente no objeto. naliza para uma ênfase no contexto, para
Essa distinção pode ser interessante pa- a “complementaridade” que existiria entre
ra pensar em diferentes modos de represen- esses acervos. O “modelo” do CPDOC, ins-

92 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011


tituição que reuniu um importante acervo alizam o intercâmbio entre o expectador e
de arquivos pessoais de homens públicos e duas dimensões do “invisível”, um tempo
se constituiu em referência nacional para o passado e as esferas de poder. O que as pe-
estudo da “Era Vargas”, pode estar no ho- ças cuidadosamente exibidas atestam, antes
rizonte de Fernando Henrique. Dentro des- de qualquer coisa, é o prestígio de Fernando
sa modesta tipologia, o CPDOC poderia ser Henrique, suas relações pessoais, sua pró-
visto também como um “lugar de memória” pria condição de “semióforo” por meio do
que aciona a ressonância: o arquivo de Var- qual se pode aceder a várias dimensões da
gas sempre foi representado como ponto de história e da memória nacionais.24
partida para um acervo maior, que lhe seria Uma comparação entre o iFHC e a FUN-
complementar e por meio do qual seria pos- DAR teria que levar em conta diferenças or-
sível aceder ao contexto político-social bra- ganizacionais e orçamentária que separam
sileiro dos anos 1930-1950. as duas instituições, bem como o fato do
Um passeio pelo Instituto Fernando Hen- iFHC contar, ainda, com o prestígio de seu
rique Cardoso, localizado no Edifício CGI- instituidor, que trabalha na sede do Insti-
Esplanada, no vale do Anhangabaú, no cen- tuto e congrega um grupo de colaborado-
tro de São Paulo, onde ocupa um andar e res, entre os quais vários empresários, que
dois subsolos revela, em primeiro lugar, o ajudam a levantar fundos para a instituição.
investimento substantivo na elegante e só- Assumir uma perspectiva de análise compa-
bria decoração do espaço dedicado às ativi- rativa exigiria um investimento que não te-
dades da instituição e na infra-estrutura das mos a pretensão de realizar. No momento,
áreas de armazenamento, dotadas de exce- interessa-nos apenas apontar para um con-
lentes condições de preservação documen- traste entre as duas instituições capaz de
tal. Na área social do Instituto, vitrines com iluminar distintas perspectivas que atuam
documentos e peças tridimensionais, perfei- na gestão e na representação desses dois le-
tamente identificadas por legendas e placas, gados pessoais.
sinalizam o “valor histórico” do acervo que Evidentemente, esse contraste deve ser
é ali custodiado. matizado: o acervo de Darcy Ribeiro permi-
Os objetos acumulados pelo ex-presi- te restituir contextos políticos e intelectuais
dente – sobretudo cartas recebidas de perso- mais amplos, e o acervo de Fernando Henri-
nalidades nacionais e internacionais e pre- que constrói a sua centralidade em momen-
sentes ganhos de chefes de Estado em via- tos importantes da história brasileira. Esta-
gens oficiais – funcionam como os “semió- mos querendo chamar atenção, no entanto,
foros” analisados por Pomian (1984), ou se- para ênfases distintas, para formas de repre-
ja, objetos que, tendo perdido seu valor de sentar os legados que reforçam, em um caso,
uso, foram dotados de valor simbólico e fa- a “excepcionalidade”, mantendo o foco no
zem a mediação entre o mundo “visível” e o objeto único do qual emana a força criado-
“invisível”. As peças expostas no iFHC re- ra; em outro, a “excelência”, garantidora da

24. Pomian (1984, p. 74) sugere que reis, imperadores, o papa ou o presidente de uma república são, eles
próprios, “homens-semióforos”, cujo papel é representar o invisível: “Em geral, quanto mais alto se está
situado na hierarquia dos representantes do invisível, maior é o número de semióforos de que se está ro-
deado e maior também o seu valor.”

Memórias da elite 93
capacidade de análise da realidade, de arti- Nota sobre a autora
culação e negociação.
Luciana Quillet Heymann é doutora em Socio-
Os acervos, como vimos, são objetos logia pelo IUPERJ, professora da Escola de Ci-
centrais de projetos institucionais de dife- ências Sociais e do Programa de Pós-Graduação
rentes formatos e matizes e sua “produção” em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC),
nos ambientes institucionais nos quais são ambos da FGV. Coordena o Programa de Histó-
preservados deve ser levada em considera- ria Oral do CPDOC/FGV. Tem desenvolvido suas
ção. Nesse sentido, a cultura e a estrutura reflexões no campo da sociologia da memória,
institucionais nas quais são construídas – da construção social dos acervos, e das políticas
mais do que preservadas – as memórias da memoriais.
elite podem constituir um material rico para
pesquisas interessadas nos mecanismos pe-
los quais se constrói a grandeza dos homens
políticos.

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