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HEYMANN - Memórias Da Elite - Arquivos, Instituições e Projetos Memoriais
HEYMANN - Memórias Da Elite - Arquivos, Instituições e Projetos Memoriais
dossiê
arquivos, instituições e projetos memoriais
Resumo Abstract
O texto discute processos de instituciona- The article discusses the institutionaliza-
lização de trajetórias de membros da elite, tion of elite´s members trajectories, seeking
buscando iluminar os investimentos de to shed a light upon the investments made
que são objeto os acervos pessoais desses in their personal document collections. The
personagens. A idéia é analisar o papel de idea is to analyze the role of memory insti-
instituições de memória na atribuição de tutions in the attribution of “historical val-
“valor histórico” aos acervos sob sua guar- ue” to the document collections under their
da, atentando para os efeitos dessa dinâ- guard, considering the effects of this dy-
mica na construção de recursos simbólicos namic in the construction of symbolic re-
de legitimação e consagração associados sources of legitimation and reconnaissance
às trajetórias dos homens públicos, bem associated to the public men´s trajectories,
como aos próprios projetos institucionais as well as to the institutional projects de-
que tomam essas memórias como foco de voted to their memories. Seeking support in
investimento. Recorrendo a alguns casos some concrete cases, the text aims at de-
concretos, o texto pretende desnaturalizar naturalizing the preservationist discourse
o discurso preservacionista que justifica a that justify the creation of memory places
criação desses lugares de memória e vê-los and look to them as strategies to update the
como estratégias de atualização do capital social actor´s political capital.
político dos atores sociais em jogo.
Palavras-chave Keywords
Memória. Acervo. Elite política. Lugar de Memory. Archive. Political elite. Sites of
memória. Darcy Ribeiro. Fernando Henrique memory. Darcy Ribeiro. Fernando Henri-
Cardoso. que Cardoso.
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1 Introdução qual o foco é colocado sobre uma traje-
tória pessoal. Se tomarmos esses luga-
Nas últimas décadas, assistimos a uma res de memória na acepção que lhes con-
intensificação dos investimentos na me- feriu Pierre Nora (1984) – lugares fun-
mória, fenômeno que já foi analisado co- cionais, simbólicos e materiais – pode-
mo uma reação à aceleração do tempo pre- mos elencar uma variedade de institui-
sente e à perda de referenciais por parte das ções, celebrações e dispositivos, dos me-
coletividades (NORA, 1984). Essa inten- moriais às biografias, dos livros didáti-
sificação já foi explicada, também, como cos aos monumentos, por meio dos quais,
um fenômeno associado à crise das gran- de maneira geral, as elites registram, ce-
des narrativas homogeneizantes e à va- lebram e preservam a sua memória.
lorização das experiências de grupos so- Se, nos últimos anos, seria legítimo afir-
ciais até então silenciados, cujas memó- mar que grupos de elite tradicionais tiveram
rias não encontravam meios de expres- que ceder espaço a novos sujeitos políticos
são na cena pública. Nessa última chave, no que diz respeito aos lugares e às políti-
por um lado, novos espaços foram erigi- cas de memória, nada nos autoriza a pen-
dos para a preservação de um passado tor- sar que elas foram excluídas do movimen-
nado mais plural e diversificado e, por ou- to geral de valorização do passado e de ‘ar-
tro, movimentos de valorização de memó- dente obrigação’ do patrimônio (HARTOG,
rias traumáticas, ligadas a crimes e viola- 2006, p. 266), com suas exigências de con-
ções, resultaram de lutas empreendidas por servação, de reabilitação, e de comemora-
grupos atingidos visando à assunção, por ção. Nesse sentido, ainda que a disputa por
parte do Estado e da sociedade, de um “de- recursos e reconhecimento social possa ter
ver” com relação a essa memória (LALIEU, recrudescido, em um contexto de prolifera-
2001; KATTAN, 2002; HEYMANN, 2007). ção de discursos memoriais, espaços vol-
Segundo o historiador Henry Rousso tados para a preservação da memória das
(1998), um sistema de referências teria se elites continuam a ser criados, benefician-
imposto nos últimos anos, tendo como cen- do-se, junto a outros segmentos, do dis-
tro a memória, transformada em valor. Nes- curso generalizado de “culto” à memória.
sa nova conjuntura, lembrar-se - por parte Nesse texto, nossa atenção estará volta-
do indivíduo ou do grupo - teria se asso- da para instituições de memória consagra-
ciado a uma postura positiva, enquanto o das à elite política, com destaque para os
esquecimento teria se tornado socialmen- processos de conversão de acervos pesso-
te inaceitável, sistema cujo corolário se- ais em “patrimônio”. Especial atenção será
ria a interdição a qualquer destruição, vis- dada ao papel desempenhado por essas ins-
ta doravante como “suspeita”, bem como a tituições na produção e na atualização de
multiplicação de políticas memoriais leva- uma noção de legado associada a um per-
das a cabo por governos e grupos sociais. sonagem e à sua trajetória. Em outras pa-
As elites sempre erigiram lugares pa- lavras, tomaremos a organização de luga-
ra preservar a sua memória, tanto co- res de memória como uma modalidade de
letivamente, em espaços e manifesta- invenção discursiva desses legados, aten-
ções consagrados a determinados gru- tando para diferentes estratégias e recursos
pos, como individualmente, situação na mobilizados nesses empreendimentos, en-
Memórias da elite 79
Nesse ponto, vale lembrar que o reco- zação que vai do arquivo à instituição, já
lhimento de arquivos privados não é regu- que possuir determinados arquivos confe-
lado por dispositivo legal - diferentemen- re prestígio, funcionando como elemento
te do que ocorre com os arquivos de natu- de legitimação institucional. Dessa forma,
reza pública, cuja tutela pertence ao Estado instituições arquivísticas e centros de do-
-, o que coloca em jogo a questão do des- cumentação funcionam como espaços pri-
tino de cada arquivo privado.2 Seu encami- vilegiados de avaliação e de atribuição de
nhamento a uma instituição de guarda de- “valor” aos acervos, já que são instituições
penderá, assim, em primeiro lugar, do de- voltadas para a preservação daquelas me-
sejo do proprietário – no caso de um ar- mórias reconhecidas como “históricas”.
quivo pessoal, o próprio titular ou um her- No universo das instituições - arquivos,
deiro; no caso de um arquivo institucional, centros de documentação, institutos, funda-
o(s) proprietário(s) - de fazer uma doação ções - dedicadas especificamente à memó-
ou de vender o acervo a uma instituição ar- ria das elites, seria possível propor uma dis-
quivística ou, nos casos em que em que is- tinção entre dois modelos: aquelas que abri-
so se mostra factível, criar uma instituição gam mais de um arquivo ou fundo docu-
para abrigá-lo. mental e que se definem como espaços de
No caso do encaminhamento a uma ins- guarda de acervos particulares relativos a
tituição de guarda, o destino do arquivo se- uma área específica de atuação ou conhe-
rá definido por meio de uma negociação cimento e, por outro, aquelas dedicadas à
envolvendo proprietário e instituição. Nes- memória de um personagem, cuja linha de
se sentido, para fazer a passagem do do- acervo tem como referência exclusiva, ou
mínio privado ao público, o acervo tem de como eixo de sentido, a trajetória de um
ser oferecido pelo primeiro no mercado de único indivíduo.
bens culturais e ser aceito, um gesto que se- Ainda que possam existir instituições
rá tão mais legitimador do seu capital sim- dedicadas à memória de quaisquer seg-
bólico quanto maior prestígio tiver a ins- mentos da elite, tradicionalmente, no Bra-
tituição. Ou o arquivo poderá ter sua doa- sil, as instituições de memória que abri-
ção ou compra sugeridas e mesmo solicita- gam acervos pessoais concentram-se em
das, evidenciando-se assim o capital de que três áreas: política, ciência e literatura.3
é dotado. Neste caso, opera-se uma valori- No primeiro caso, seria possível citar, por
1. Arquivos (ou fundos) privados são conjuntos de documentos produzidos e acumulados por entidade co-
letiva de direito privado, família ou pessoa física. (Cf. http://www.arquivonacional.gov.br/download/dic_
term_arq.pdf )
2. A definição e regulamentações relativas aos arquivos públicos e privados se encontra na Lei n. 8.159,
de 8 de janeiro de 1991, conhecida como “Lei de Arquivos” e no Decreto 4.073, de 3 de janeiro de 2002,
que a regulamenta.
3. Essa especialização de locais de arquivamento encontra paralelo na própria definição de arquivos pes-
soais. Em obra consagrada no campo da Arquivologia, lê-se: “A conceituação de arquivos pessoais está
embutida na própria definição geral de arquivos privados, quando se afirma tratar-se de papéis produzi-
dos/recebidos por entidades ou pessoas físicas de direito privado. (...) São papéis ligados à vida familiar,
civil, profissional e à produção política e/ou intelectual, científica, artística de estadistas, políticos, artis-
tas, literatos, cientistas etc.” (ver BELOTTO,2004, p. 256, grifo nosso).
Memórias da elite 81
que se define como uma instituição volta- enchidos” por acervos documentais. Vamos
da para “a cultura da língua e da literatura nos deter em alguns casos particulares, cen-
nacional”, ela tem investido na imagem de trando nossa atenção em projetos voltados
instituição de memória que reúne, preser- para a memória de personagens da elite po-
va e disponibiliza acervos de interesse pa- lítica brasileira contemporânea.
ra a pesquisa histórica.8 As duas dimensões,
evidentemente, não são antagônicas, mui- 3 Os lugares dos arquivos
to pelo contrário: a “recuperação” e a “pre- e os arquivos nos lugares
servação” da memória - termos recorrentes
nesse tipo de projeto- se justificam pela ne- A possibilidade de criar uma instituição
cessidade de proteger a “literatura nacional” para abrigar um arquivo pessoal específico
e a de tornar disponíveis fontes que alimen- coloca em jogo o prestígio do titular ou de
tem estudos e pesquisas nesse campo. Estes, seus “herdeiros” - entendidos aqui não ape-
por sua vez, acabam por confirmar a ima- nas como familiares, mas também como de-
gem de instituição de referência projetada positários da herança memorial do persona-
pelos dirigentes da ABL. gem. O sucesso do projeto institucional de-
Todas as instituições mencionadas cons- penderá do capital político dos agentes en-
tituem “lugares de memória” das elites. Na volvidos e das redes de relações que consi-
verdade, cada uma dessas instituições po- gam mobilizar em torno do empreendimen-
deria servir de base a um estudo específi- to. O discurso articulado nesses contextos
co, que buscasse perscrutar as histórias e os recorre sempre à “retórica da perda”, para
agentes envolvidos na criação de cada uma usar a feliz expressão de Gonçalves (1996),
delas, os formatos institucionais adotados, segundo a qual o presente é narrado como
as formas de colecionamento e de captação uma situação de perda progressiva e inexo-
de acervos privilegiadas, os critérios esta- rável em relação à qual ganham sentido as
belecidos para definir o que pode integrar práticas de colecionamento e exposição. As
cada um dos espaços, as estratégias de fi- iniciativas voltadas para a preservação de
nanciamento, os mecanismos de divulgação arquivos pessoais de homens públicos cha-
das atividades, enfim, uma série de aspectos marão sempre atenção para a “necessidade”
que, ao explicarem a natureza e o funciona- de recuperação desses acervos, para o ris-
mento de tais entidades, ajudariam a ilumi- co da perda e do esquecimento, e para a im-
nar mecanismos de legitimação institucio- portância dessa recuperação para a “memó-
nal, de consagração de trajetórias conside- ria nacional”, categoria na qual cumpre in-
radas “exemplares” e, finalmente, de cons- cluir a memória do titular e os objetos que a
trução da memória histórica no país. simbolizam.
Não é nossa intenção apresentar um pai- Alguns exemplos podem ser úteis para
nel institucional, mas chamar atenção para iluminar possibilidades e estratégias de ação
um investimento generalizado e crescente associadas à institucionalização da memó-
na constituição de espaços memoriais “pre- ria de determinados homens públicos. No
9. Para uma análise do processo de doação do arquivo à FGV ver Nedel (2010).
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é bom frisar, a existência de um acervo é con- e como uma escola de governo. Na verda-
dição fundamental para o sucesso do projeto, de, essas dimensões se informam reciproca-
e entre os acervos que podem evocar a traje- mente: o legado, consubstanciado no acer-
tória de um indivíduo – fotografias oriundas vo, ao preservar a memória de Covas, con-
de agências de publicidade ou de imprensa, fere legitimidade à escola que propaga o seu
recortes de jornais, coleções de documentos ideário, enquanto essa última atualiza e dis-
doados por terceiros - o arquivo pessoal ocu- semina a trajetória do homem público, res-
pa um lugar de destaque. Quanto mais “origi- significando a sua memória.
nal”, “único” e “pessoal” o acervo, mais fortes Um dos eixos da Fundação é o seu Cen-
os argumentos que justificam a sua preserva- tro de Memória, instalado em 2007, a par-
ção, organização e acesso. tir da execução do projeto “Cultura, Políti-
O exemplo da Fundação Mário Covas ca e Cidadania – organização da memória
(FMC), inaugurada em abril de 2001, um Covas”, que contou com apoio da Lei Rou-
ano após a sua morte, pode ser interessante anet. Além de organizar e tornar disponí-
para pensarmos tanto nas vicissitudes que vel o arquivo Mario Covas, o Centro de Me-
podem marcar a constituição de um arqui- mória tem como metas desenvolver projetos
vo pessoal como no lugar de destaque que culturais e educativos, montar exposições, e
ele assume em projetos memoriais. Criada incentivar ações que visem à preservação de
por meio de doações de mais de mil pesso- acervos relevantes para a história brasileira.
as físicas e jurídicas, a FMC tem como pa- A memória de Covas, imediatamente
trimônio o arquivo de Covas e outros docu- após sua morte, foi investida por parte de
mentos doados por terceiros, como fitas de seus antigos colaboradores (secretários de
vídeo, fotos e objetos. Sua missão é: “Con- governo, assessores, secretários particula-
tribuir para a valorização da cidadania, pa- res) do capital associado à noção de “lega-
ra o aperfeiçoamento da gestão pública se- do”, cuja preservação deveria ser garanti-
gundo os princípios da inovação, da ética da mediante a mobilização de recursos e a
e da probidade administrativa, estimular e execução de projetos, o mais importante de-
apoiar iniciativas de ação comunitária e di- les sendo a criação da própria Fundação. No
fundir o ideário de Mario Covas para as no- entanto, vale a pena investir um pouco na
vas gerações”.11 A Fundação tem, portanto, história do arquivo Mario Covas.
dimensão memorial e política, pretenden- O grupo que se articulava em torno do
do atuar como gestora do legado de Covas governador, antes do agravamento da sua
10. Para ficar apenas nas exposições realizadas pelo CPDOC em torno da figura de Vargas, que contaram
com a sua curadoria ou consultoria histórica, há que mencionar: A Revolução de 30 (1980), Revolução de
32, a fotografia e a política (1982), Getúlio Vargas, 1983 (pelo centenário de nascimento de Vargas), Es-
tado Novo: a construção de uma imagem (1997), Getúlio Vargas (exposição permanente no Memorial Ge-
túlio Vargas, em Volta Redonda, 1999), Eu, Getúlio (consultoria histórica, 1999), Volta Redonda, uma de-
cisão política (exposição permanente no Memorial Getúlio Vargas, em Volta Redonda, 2001) e as mais re-
centes, montadas no cinqüentenário do suicídio, em 2004, Getúlio – Presidente do Brasil (curadoria, no
Museu da República) e Getúlio e o Rio (curadoria iconográfica, no Memorial Getúlio Vargas, no Rio de Ja-
neiro).
11. Cf. http://www.fundacaomariocovas.org.br/ (acesso em 14/5/2011).
12. Apenas três anos após deixar a Presidência, FHC publicou um livro de mais de 600 páginas, A arte da po-
lítica: a história que vivi, além de The accidental President of Brazil: a memoir, publicado apenas nos Estados
Unidos, com prefácio de Bill Clinton, e Cartas a um jovem político: para construir um país melhor.
13. Os acervos de presidentes da República, desde 1991, são objeto da Lei n. 8.394, que “dispõe sobre a
preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República e dá
outras providências”. Segundo esse dispositivo legal, tais acervos são considerados de interesse público, o
que, na prática, significa que, em caso de venda, a União deve ter prioridade na compra, e que os acervos
não podem ser alienados para o exterior sem manifestação expressa da União. Ainda que incentive a pre-
servação e disponibilização desses acervos, não há nenhuma menção à criação de instituições voltadas pa-
ra sua guarda. A decisão sobre o destino de tais acervos permanece como responsabilidade dos titulares
ou seus herdeiros legais.
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lização de uma pesquisa ampla cujo objeti- de seu país. Pode-se imaginar, ainda, que a
vo era subsidiar a decisão quanto ao forma- projeção de uma identidade com o estadis-
to que deveria assumir a instituição que iria ta cuja trajetória se confunde com a con-
abrigá-lo (HEYMANN, 2009). Por indicação solidação da democracia portuguesa e com
do então presidente, a assessora do gabinete quem Fernando Henrique escreveu O mun-
da Secretaria Geral da Presidência da Repú- do em português: um diálogo possa ter exer-
blica visitou instituições brasileiras detento- cido influência na decisão de tomar a Fun-
ras de arquivos de ex-presidentes e institui- dação Mário Soares como parâmetro para a
ções estrangeiras.14 A viagem internacional criação do Instituto.
teve como primeiro destino os Estados Uni- A inauguração do IFHC ocorreu em 22
dos e as bibliotecas presidenciais (John F. de maio de 2004, em um seminário inter-
Kennedy, em Boston; Lyndon B. Johnson, nacional que reuniu políticos e intelectu-
em Austin; Jimmy Carter, em Atlanta; Ge- ais nacionais e estrangeiros, entre os quais
orge Bush, pai, em College Station, no Te- Bill Clinton e Manuel Castells. As palavras
xas, e Ronald Reagan, em Simi Valley, na de Fernando Henrique confirmam a opção
Califórnia), depois a França, onde o Arqui- por um perfil “duplo”: “Quis que ele fos-
vo Nacional e o Instituto François Mitterand se não só um centro de memória históri-
foram visitados e, por último, Portugal e a ca, mas também um lugar de debates sobre
Fundação Mário Soares (FMS), considerada a democracia e o desenvolvimento, duas
a melhor alternativa. causas com as quais estive envolvido des-
Segundo Fernando Henrique, a Funda- de muito cedo. Desempenhando um ou ou-
ção Mário Soares pareceu mais apropria- tro papel, a missão do Instituto para mim é
da como modelo de instituição do ponto uma só: contribuir para ampliar a compre-
de vista de suas dimensões, menores e mais ensão e disseminar conhecimento sobre o
adaptadas à realidade brasileira se compa- país e seus desafios, com os olhos abertos
radas às das bibliotecas presidenciais nor- para o mundo.”15
te-americanas, verdadeiros monumentos, Sem pretender analisar o acervo FHC,
aonde “eles guardam tudo” (HEYMANN, bastante rico e complexo, gostaria de cha-
2009, p. 57). Além disso, seu perfil pare- mar atenção para um único ponto. A orga-
cia adequar-se perfeitamente aos propósi- nização do arquivo dividiu a documentação
tos de Fernando Henrique: a Fundação Má- em três grandes conjuntos: período pré-pre-
rio Soares, mais do que um lugar de memó- sidencial, período presidencial e período
ria, um centro de documentação, é um es- pós-presidencial. Essa “ordem”, reproduzida
paço de debate sobre temas contemporâne- no Guia dos Arquivos disponível no site do
os, um think tank por meio do qual Mário iFHC, coloca como centro de sua atuação a
Soares mantém-se presente na cena pública Presidência da República, produzindo a im-
14. No Brasil, foram visitadas a Fundação José Sarney, no Maranhão; o Memorial Juscelino Kubitschek,
em Brasília, que, à época, não continha o acervo documental do ex-presidente, mas apenas seu túmulo e
uma pequena exposição; o CPDOC, o Museu da República e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), no Rio de Janeiro. (Cf. Entrevista de Danielle Ardaillon concedida à autora em 12/01/2007).
15. Cf. http://www.ifhc.org.br/index.php?module=conteudo&class=fixo&event=ver&id_conteudo=8
(acesso em 14/5/2011).
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do, o patrimônio que se encontra sob sua tar fazendo nascer mais uma instituição ve-
guarda atua como lastro, qualificando, de tusta: Fundação Getúlio Vargas, Fundação
maneira simbólica e material, o empreendi- Roberto Marinho. A minha seria uma po-
mento institucional. bre fundaçãozinha Zé da Silva, sem poder e
Um último projeto será mencionado nes- sem dinheiro para crescer e florescer. Qual
sa breve reflexão. Nesse caso, foi a proximi- seria o seu propósito? Louvar-me, dizendo
dade da morte e o desejo de ultrapassar a fi- que eu fui bonito e inteligente? Gosto mui-
nitude e o esquecimento que ela encerra que to de elogios, mas não tanto que me dis-
impulsionaram o projeto memorial. ponha a criar uma máquina de elogiar, co-
mo aquelas que os monges do Himalaia têm
5 Darcy Ribeiro e a FUNDAR para rezar pedalando.
Acabei caindo em mim de que precisava
A Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR) mesmo criar a tal Fundação Darcy Ribeiro –
foi oficialmente instituída em janeiro de FUNDAR. Tenho mesmo que transferir a al-
1996, cerca de um ano antes da morte de guém ou a alguma instituição tarefas que,
seu fundador, mas tem uma história que bem ou mal, eu venho cumprindo a vida in-
começa alguns anos antes, quando Darcy teira e que, sem mim aí para cuidar delas, fi-
Ribeiro, ao saber que estava gravemen- cariam aos azares do acaso. (...)18
te doente, decide criar uma instituição ca-
paz de dar continuidade ao trabalho que vi- A análise das minutas de estatuto da
nha desenvolvendo. A Fundação deveria se Fundação indica que, durante a fase de pla-
concentrar na execução de projetos que vi- nejamento, o patrimônio da instituição foi
sassem os seguintes objetivos: a solidarie- sendo ampliado, passando a abarcar – além
dade aos povos indígenas e caboclos brasi- dos direitos autorais das obras de Darcy –
leiros; a defesa da Amazônia e do Pantanal; sua biblioteca, objetos de arte e móveis. A
o desenvolvimento artístico do país; o pla- inclusão dos direitos autorais das obras de
nejamento e implantação de universidades, sua primeira mulher, a antropóloga Berta
bem como a reforma das já existentes; a re- Gleiser Ribeiro, bem como de sua bibliote-
novação da rede pública de ensino, a elabo- ca e outros bens móveis, foi feita à mão em
ração de currículos e a produção de filmes uma das versões do documento, sinalizando
educativos para 1º. e 2º. graus; a promoção que a idéia de uma instituição que abrigasse
de ensino à distância e, finalmente, a reedi- o acervo dos dois foi sendo formatada com
ção das obras de Darcy Ribeiro. o tempo. A menção explícita aos arquivos
O projeto da Fundação parecia estar cen- de Darcy e Berta Ribeiro, a serem instalados
trado na continuidade do “legado” político- na sede da Fundação “para uso acadêmico”,
-ideológico de Darcy, como atesta de forma aparece pela primeira vez em uma versão do
clara um documento de seu arquivo pessoal: estatuto de 1995.
Quando me sugeriram criar uma Fundação Chama atenção o fato do arquivo pesso-
com meu nome, a idéia me deu medo de es- al de Darcy não aparecer nos primórdios do
18. Esse documento, sem data, integra o dossiê “FUNDAR” do Arquivo Darcy Ribeiro. A pesquisa no ar-
quivo foi realizada no contexto da elaboração de minha tese de doutorado, “De arquivo pessoal a patri-
mônio nacional: reflexões acerca da construção social do ‘legado’ de Darcy Ribeiro”.
19. As informações sobre a visão de Darcy a respeito de sua biblioteca e de seu arquivo nos foram pres-
tadas por sua segunda mulher, Claudia Zarvos, em 6/6/2008. Segundo ela, Darcy não vislumbrava no ar-
quivo “um valor em si”, ou um patrimônio que pudesse interessar à posteridade.
20. A Fundação Darcy Ribeiro assinou dois convênios com o objetivo de prover recursos para a organiza-
ção do arquivo: o primeiro com a Faperj, em 2000, e o segundo com a Fundação Cesgranrio, em 2002. Já
em 2008, a FUNDAR encaminhou ao Conselho Nacional de Arquivos – CONARQ a solicitação de classifi-
cação dos arquivos Darcy e Berta Ribeiro como “arquivos privados de interesse público e social”, obtendo
pareceres técnicos favoráveis à classificação. Nesse mesmo ano, um projeto de digitalização dos dois ar-
quivos foi encaminhado ao BNDES para concorrer a um edital voltado para a área de acervos, tendo sido
contemplado.
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gia e da educação, o arquivo tem alimenta- tor a sua atuação, mostrando-lhe “a com-
do uma série de projetos desenvolvidos pe- plexidade, a rugosidade do real”. (CARDO-
la FUNDAR nos últimos anos. Na linha edi- SO, 2006, p.13). A distância de propósitos
torial, a Fundação propôs a publicação de – “comover” e “explicar” - e estilos entre os
mais de uma dezena de livros com base no dois livros é enorme, bem como a nature-
material dos acervos de Darcy e Berta. Al- za dos dois acervos e das instituições que os
guns são projetos do próprio titular, como abrigam, para não falar em trajetórias e es-
os quatro volumes de Os Cronistas France- tilos políticos. Não é nossa intenção, para
ses, projeto iniciado nos anos 1980, cujos finalizar esse artigo, comparar os dois pro-
originais encontram-se no arquivo e que, jetos memoriais, mas apenas sugerir que as
após diversas tentativas, foram publicados imagens projetadas por seus titulares para si
em 2009.21 Há propostas, ainda, para a pu- próprios contaminam e informam as visões
blicação de coletâneas de documentos - au- de “legado” alimentadas por suas institui-
las, cartas do exílio, prefácios que Darcy ções de memória. As identidades da FUN-
escreveu para inúmeras publicações, arti- DAR e do iFHC incorporam e reproduzem as
gos e diários de campo inéditos – deixan- personas de seus fundadores, colocando li-
do entrever o potencial do arquivo para a mites à associação tradicional entre institu-
geração de produtos que atualizam o “lega- cionalização e impessoalidade.
do” de Darcy ao mesmo tempo em que im- Nas palavras de Paulo Ribeiro, sobrinho
pulsionam e dão visibilidade ao acervo e à de Darcy e atual presidente da FUNDAR, o
Fundação. Não é demais lembrar que a no- tio teria planejado a Fundação com a idéia
ção de legado alimenta a memória dos mor- de aglutinar um grupo de pessoas que ele
tos aos quais se associa, mas a titularidade considerava capazes de dar continuidade às
das ações empreendidas em seus nomes e os suas “lutas”. Ao comentar as suas motiva-
dividendos que sejam capazes de produzir ções, Paulo assim se expressa:
pertencem aos vivos. Darcy tinha uma preocupação permanente, o
tempo todo ele falava assim: ‘Quantos mul-
6 Legados contrastivos tiplicadores eu vou deixar? Eu estou multi-
plicando uma luta que foi de Anísio [Teixei-
Darcy escreveu as suas Confissões, cien- ra]; eu sou um dos multiplicadores da idéia
te de que a morte se aproximava, para sa- de [Cândido Mariano da Silva] Rondon, e
ber e sentir como chegou a ser o que era, quem é que vai continuar essa luta? Quantos
buscando comover os seus leitores. (RIBEI- eu vou deixar?’22
RO, 1997, p. 11). Fernando Henrique escre-
veu Arte da política: a história que vivi, ao Para Paulo Ribeiro, para fazer jus ao
deixar a Presidência, mas planejando man- projeto de Darcy, a FUNDAR deve reunir
ter-se na cena pública, para explicar ao lei- pessoas que, tendo trabalhado com ele, ten-
21. O primeiro volume da coleção Os Franceses no Brasil foi publicado em setembro de 2009, sob o títu-
lo Nicolas Durand de Villegagnon e outros (1542-1569):correspondência.
(http://finsdetardespoeticas.blogspot.com/2009/09/fundacao-darcy-ribeiro-lanca-colecao-os.html. Acesso
em 10/02/2011).
22. Entrevista de Paulo Ribeiro concedida à autora em 27/05/2008.
23. Na entrevista, Paulo menciona a singularidade intelectual do tio, aproximando-a do atributo da ousa-
dia, entendida tanto como falta de limite à imaginação sociológica como no sentido da coragem de en-
frentar os padrões acadêmicos: “No Brasil, não teve nenhum intelectual – é lógico que vários serviram de
alicerce a ele – com tamanha ousadia. ‘Eu vou explicar para o mundo inteiro por que o mundo é tal co-
mo é.’ E ele explica a humanidade inteira. Depois, explica o que aconteceu com a América Latina (...) e de-
pois explica o Brasil: por que nós estamos nessa situação. Não teve ninguém, nenhum intelectual – eu não
conheço –, que teve essa ousadia, não é?.(...) Porque a crítica, dentro da área acadêmica, é muito grande.”
Memórias da elite 91
gendas que identifiquem ou contextualizem tar os legados e, por conseguinte, em dife-
as peças. Tudo está disposto como se o dono rentes culturas de instituições a eles dedica-
da casa pudesse chegar a qualquer momen- das. Levando em consideração que todo in-
to. Essa pessoalidade tem efeitos na gestão e vestimento na construção de um legado se-
nos usos dos documentos do arquivo, vistos gue um padrão geral que confere protago-
mais como fonte de inspiração para a atua- nismo à ação do personagem ao qual se as-
ção da Fundação do que como material de socia, ou seja, partindo da premissa de que
natureza histórica. existe sempre uma centralidade atribuída à
Nesse ponto, pode ser sugestivo lançar sua trajetória, seria possível distinguir for-
mão das reflexões do historiador Stephen mas diferentes de evocação da memória. No
Greenblatt (1991) a respeito de dois mo- caso de Darcy Ribeiro, a ênfase está no self,
dos distintos de exibição das obras de arte no gesto criador, na singularidade. É o cará-
– uma centrada na ressonância e outra no ter excepcional do personagem, a sua “pai-
“maravilhamento” (wonder) – para, a par- xão” que ocupa a cena, havendo pouco es-
tir daí, propor duas formas distintas de re- paço para o contexto e para as contingên-
presentação institucional dos legados. Pa- cias. Darcy era e continua sendo represen-
ra Greenblatt, a idéia de ressonância está li- tado como a fonte de onde emana a energia
gada a uma forma de exibição dos objetos que impulsiona os seus seguidores, é o “ma-
que evoca o universo mais amplo de rela- ravilhamento”, a admiração, que alimenta o
ções sociais e de forças culturais das quais o seu legado.
objeto teria emergido e em relação às quais, No caso de outros personagens que cria-
no contexto de exibição, ele seria o repre- ram uma instituição para abrigar o seu acer-
sentante. Por “maravilhamento”, o autor vo, ou que foram objeto desse tipo de inves-
pretende designar a modalidade de apresen- timento, ainda que haja sempre a constru-
tação que mantém o expectador focado no ção de um protagonismo, a ênfase pode es-
objeto, restrito aos seus limites, com o obje- tar mais no contexto, nos vínculos sociais
tivo de produzir um sentido de singularida- e na historicidade da ação. Fernando Hen-
de e de encantamento. No primeiro caso, a rique Cardoso, por exemplo, ao construir a
idéia é provocar no expectador a consciên- sua imagem como estadista – e não como
cia da construção histórica e culturalmente gênio – parece apontar diretamente para o
contingente dos objetos, é chamar atenção contexto, para as condições dadas pela sua
para os processos de negociação e escolha época, para a capacidade de negociação e
que resultaram nas práticas representacio- de articulação que o distinguiria como ho-
nais em exibição; no segundo, a força esta- mem público. Por meio de Fernando Henri-
ria centrada no poder visual de cada obra, que e de seu arquivo é a conjuntura e o con-
na exaltação do seu carisma e da geniali- texto que se descortinam.
dade artística do seu criador. A ressonân- O desejo do ex-presidente, de incorpo-
cia dá acesso a toda uma época e todo um rar ao acervo do iFHC arquivos e coleções
contexto no qual o objeto foi criado; o “ma- de políticos que participaram da vida públi-
ravilhamento” mantém o expectador focado ca brasileira entre 1995 e 2002 também si-
unicamente no objeto. naliza para uma ênfase no contexto, para
Essa distinção pode ser interessante pa- a “complementaridade” que existiria entre
ra pensar em diferentes modos de represen- esses acervos. O “modelo” do CPDOC, ins-
24. Pomian (1984, p. 74) sugere que reis, imperadores, o papa ou o presidente de uma república são, eles
próprios, “homens-semióforos”, cujo papel é representar o invisível: “Em geral, quanto mais alto se está
situado na hierarquia dos representantes do invisível, maior é o número de semióforos de que se está ro-
deado e maior também o seu valor.”
Memórias da elite 93
capacidade de análise da realidade, de arti- Nota sobre a autora
culação e negociação.
Luciana Quillet Heymann é doutora em Socio-
Os acervos, como vimos, são objetos logia pelo IUPERJ, professora da Escola de Ci-
centrais de projetos institucionais de dife- ências Sociais e do Programa de Pós-Graduação
rentes formatos e matizes e sua “produção” em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC),
nos ambientes institucionais nos quais são ambos da FGV. Coordena o Programa de Histó-
preservados deve ser levada em considera- ria Oral do CPDOC/FGV. Tem desenvolvido suas
ção. Nesse sentido, a cultura e a estrutura reflexões no campo da sociologia da memória,
institucionais nas quais são construídas – da construção social dos acervos, e das políticas
mais do que preservadas – as memórias da memoriais.
elite podem constituir um material rico para
pesquisas interessadas nos mecanismos pe-
los quais se constrói a grandeza dos homens
políticos.
Memórias da elite 95
96 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011