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Convénios interestaduais e isengdes do Imposto sobre Circulagao de Mercadorias GERALDO ATALIBA Professor nas Faculdades de Direlto da Universidade de 3, Paulo e Uni- yersidads Catélica de 0. Paulo. O maior defeito do “sistema” constitucional tributario vigente esta na sua aplicagao pratica, Antes de nés, ja CARVALHO PINTO formulava idén- Uca apreclagao, retalivamente av sistema da Carta de 1987 (Discriminagao tle Rendas). Se a Constituic¢do ndo 6 posta em pralica, nao é observada, cen- sura merecem os atos que a desacatam e nao o proprio texto. Us desconcertos, perplexidades, alrilus, enganus e desyastes se dao no plano da aplicagéo e nao no plano das normas constitucionais. O que é preciso 6 reformular a legislacao infraconstitucional e sobretudo dar efeti- vidade aos principios constitucionais. CONVENIOS INTERESTADUAIS Expressivu casu est4 na disposigag constitucional que prevé que “oo isengées do ICM serdo concedidas ou revogadas nos termos fixados em con- vénios celebrados e ratificados pelos Estados, segundo o disposto em lei complementar” (§ 6° do art. 23). R. Inf. fegisl. Brasilie o. 17 n, 65 jan./mar, 1980. 127 A pratica desse principio tio importante tem sido tragica e alarman- temente desastrosa, sob a perspectiva juridico-constitucional. Se, por absur- do, convencionassem tacitamente Executivos e Legislativos federal e esta- duais, magistratura, contribuintes e estudiosos em desobedecer frontalmen- te a Constituicdo e ignorar-the solenemente as exigéncias, 0 efeito nao se- ria diverso, nao seria outro. Nao se pode interpretar o preceito constitucional isoladamente, igno- rando-se sua insergio sistemAtica. A contemplagao da Arvore nao pode toldar a visdo da floresta. Nao é possivel apegar-se a um texto avulso, com abstra- a0 do comtexto em que Inseriao. Quem assim age incide na censura de que sio passiveis quaisquer leigos quando se péem a interpretar, sem ne- nhum critério, uma radiografia ou o projeto de uma maquina, um esquema de circuito eletrénico oa um sistema iuridico, Em todas estas hipdteses. s6 o especialista, munido de critérios e instrumental cientifico, pode “inter- pretar”. A Sinterpretagia” primfria que so tem foita desso precsito constitu. cional se ressente de desconsideragio grave pelo cardter sistemdtico do Direito. Este exige a interpretagéo harménica de todas as normas do sis- tema, em consonancia com seus principios. Disso decorre a necessidade de consideracao coordenada dos diversos mandamentos, necessariamente concilidveis, em suas exigénclas, dada a harmonia intrinseea necessdria inerente ao sistema constitucional. Sabe o jurista que nao deve obedecer a um s6 comando juridico de cada vez, mas que intmeros comandos devem ser atendidos concomitante e con- jugadamente. Alias, qualquer recruta, mesmo analfabeto, j4 sabe que deve obedecer simultaneamente @ diversos comandos, conciliando-thes as exigéneias. Se se ordena que marche e, logo depois, que preste continéncia, nao para de marchar para atender ao novo comando. Desde que concilidveis, acata-os concomitantemente. Nao cessa a obedidncia do modesto soldado a um co- mando, a pretexto de obedecer a outro, salvo se se tratar de ordens in- compativeis. Dos juristas espera-se que tenham, no minimo, o discernimente dos re- crutas, Que acatem as recomendagdes da ciéncia hermenéutiea pelo menos com 0 sonso de coordenagiio dos ginastas. Quc mancjem as técnicas cage ticas pelo menos como o fazem, com aparente naturalidade, até mesmo os jogadores de futebol. 128 R. Inf, fegisl. Brasilic a, 17 n. G5 jon./mar, 1980 INCONSTITUCIONALIDADE DOS CONVENIOS Sio inconstitucionais todos os “convénios” pretensamente celebrados pelos secretarios de Fazenda dos Estados, a pretexto de cumprir o preceito constitucional supracitado. E o sdo porque os intérpretes da Carta Cons- titucional pretenderam obedecer a um mandamento constitucional com abetragdo do sistema constitucional ¢ suas exigéncias fundameatais, Sub a escusa de por em pratica 0 modesto § 69 do art. 23, desobedeceram sos princ{pios basilares e fundamentais do sistema. A curioca © toratolégica praxe atual, fundada cm norma perempta ¢ natimorta, consiste em os secretirios de Fazenda se reunirem, assinarem um documento batizado de convénio e submeterem-no 4 aprovagio dos chefes do Executivo dos seus Estados, mediante decreto. E com isto supdem todos — num fantastico “jogo de faz-de-conta” —_ que a Carta Magna foi obedecida, Cada “convénio”, cada “aprovacao”, cada aplicagao é um atentado a ciéncia, uma afronta as nossas instituigdes. Nem escusa os atores dessa imensa farsa a invocagdo da Lei Complementar n? 24, visceralmente incons- titucional. Exige 0 texto constitucional que os convénios sejam “‘celebrados” pelos Estados e, depois, “ratificados”. A celebragio cabe ao Executivo. A ratifi- cago ao Poder Legislativo. “Estado” nao é Executivo. O Estado se represen- ta pela Executive. mas delibera mediante harménica atuagio deste cam o Legislativo. Nem tem propésito que um auxiliar do governador, o secreta- rio de Fazenda, celebre um negécio e o governador o ratifique. Nao foi isso que quis dizer a Carta Magna. Nem mesmo falta de disciplina expressa (lei cumplementar prevista uo § 0° dv art, 25), cuusomante com os cannes cons- titucionais, justificaria inconstitucionalidades. E a lei complementar haveré de adotar os principios do Direito Internacional sugeridos pela adogiio dos termos “convénio”, “celebragio” e¢ “ratificacdo”, que nfo expressam lin- Suagem contabilistica, nem terminologia vazia, mas institutos juridicos con- sagrados nas relagées entre Estados, sejam eles soberanos ou federados. Desde HOLMES, é assente a diretriz segundo a qual entre um preceito constitucional e uma norma inferior, discrepantes, nao pode o intérprete ti- tubear: acata o primeiro, desconsiderando 0 segundo. O procedimento vigente viola o principio da independéncia e harmonia dos Podercs (Const. art. 10, VI, ©), importa usurpagau de prercugativas do Legislativo, desconsidera 0 préprio preceito que se alega aplicar, vilipendia principios prestigiados pelo sistema constitucional e postos como funda- a. 17 n, 65 jan./mar. 1980 129 mentais do regime e relega escancaradamente o principio da legalidade da tributacdo e, via de conseqiiéncia, da isengao (v. SOUTO MAIOR BORGES, leengdae Trihutiriae, pag. 44), reverse daquola A isengao, sendo uma exclusao de incidéncia tributéria legalmente qualifieada —- na proficiente ligio do douto jurista pernambucano SOUTO MAIOR BORGES (op. cit., pag. 184) —, é obediente ao princfpio da legali- dade tanto quanto a regra da incidéncia, enfatiza-o bem esse mestre. A semelhanga dos tratados internacionais que se convertem em direito interno pela ratificagao do Congresso, os convénios — sinénimo absolute de iratado, segundo o acatado internacionalista MAROTTA RANGEL — inte- restaduais s6 podem preencher as exigéncias do principio da legalidade se ratificados pelo Poder Legislativo estadual. Isto é, alias, imediata decorrén- cia do principio da relag3o do administragio . magictralmonte oxposto por RUY CIRNE LIMA — que nio consente que 0 Executivo possa deliberar nio realizar receita tributaria, imperativamente criada por lei. Nao é dado, no nosso sistema, 4 Administragio deixar de obedecer a lei ou decidir obe- decé-la s6 parcialmente. O consagrado SEABRA FAGUNDES enfatiza que, “sendo a funcdo administrativa — que constitui o objeto das atividades da administracao piblica — esseucialuente realizadora du Direltu, nau se pode compreen- der seja exercida sem que haja texto legal autorizando-a ou além dos li- mites deste” (OQ Controle dos Ates Administratives pelo Poder Judicidrio, 4? ed., pag. 101), 0 que poe de manifesto o alcance do principio da legalidade, No nosso sistema, principio esse que ndo pode ser ignorado sob pretexto de obediéncia a qualquer outro preceito constitucional. Por isso, s6 pode ser valido e eficaz o convénio “ratificado” — como o quer o Texto Magno — pelos Legislativos estaduais. Convénio é contrato; Executivo néo pode contratar sem pronunciamento parlamentar prévio ou ratificatério. O Executivo no é o Estado. B érgao do Estado. 86 a conju- gacdo das expressdes volitivas do Legislativa e do Fxeentiva sin “vontade” do Estado, Nao é dado ao Executivo, no nosso sistema, obedecer ou nao as leis. Nao é facultado ao Executivo, no Brasil, contratar a rendneia a uma pre- tensao tributdria. $6 a lei — vale dizer: s6 0 Legislativo — pode autorizar a redugio ou supressio da hipdtese de incidéncia tributdria. Comete crime de responsabilidade o chefe do Executivo estadual que, a pretexto de obedecer Jel complementar manitesta @ tlagrantemente in- constitucional, desacata o Poder Legislative e prejudica as receitas publi- cas, deixando de exigir tributo que a lei estadual impée seja arrecadado. 130 R. inf, logisl. Gravilia a. 17 n, 65 jon./mar. 1980

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