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Liberdade e poder regulamentar GERALDO ATALIBA Professor nas Faculdades de Direito da ‘Universidade de Sio Paulo ¢ Univer- sidade Catdlica de Sao Paulo, SUMARIO | — Tripartic2o do poder ll — Competencias do Executive e iiberdace Ill — Assento constitucional da competéncia reguiamentar IV — Definigéo de regulamento Andlise dos termos da definigao V — Bases constitucionais da competéncia regulamentar a) Hierarquia b) Responsabilidade do Presidente da Repillica ¢) Limites constitucionais ao Regulamento 1) Soparagdo de Poderes 2) Regulamento auténomo Isonomia Legalidade VI — Destinatérios das normas juridicas 1) Dinamica da aplicacdo do Direlto 2) Leis cujo destinatario 0 Poder Executive 8) 0 argumento a fortiori 4) Panorama atual 5) Unicidade de fonte do Direito ‘Vil — Gonctuséo | — TRIPARTIGAO DO PODER Os textos constitucionais brasileiros tradicionalmente consagram — como principio fundamental do nosso sistema juridico — o da tripartigao. do poder. Este encerra formula de contengao e disciplina do exercicio do ‘Tese apresentada na Vill Conferéncia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (Manaus — 18 a 22 de malo de 1980) e aprovada por unanimidade. R. Brasilia a. 17 m, 66 abr./jun. 1980 4s poder estatal ¢ aparece como expressao funcional do principio republica- no, cujos postulados basicos encontram eficécia nessa formulagao. Ao fazé-lo, tem em mira nao uma organizagao racional do aparelho estatal, mas sim evitar o arbitrio, assegurar o governo das leis e dar garan- Ha ante oe individual, nas tigées sempre lucidas de JOSAPHAT M 0. Estes postulados — traduzidos em preceitos basilares de nossa ordem juridica — repousam na distingdo aristotélica entre normas gerais ¢ atos de aplicagao do direito; no discernimento tomista entre justiga distributiva e comutativa e nas concepgdes de MONTESQUIEU, informadoras do cons- titucionalismo, instaurado pelas revolugdes francesa e americana. $6 nesse contexto se compreende a estima que, desde 1824, se tem entre nés pelo principio da tegalidade. $6 com rigorosa consideragao des- sa motivagao, é possivel conhecer adequadamente o sentido, contetido @ alcance da legalidade, no Brasil, coma ensina RAUL MACHADO HORTA (A Autonomia de Estado-Membro no Direito Constitucional Brasileiro, pag. 73 © segs.). No nosso direito, a lei nado 6 simplesmente o ato inaugural @ primeiro, inovador da ordem juridica, emanado do Poder Legislativo, érgao vertical do Estado e titular da representagao popular por exceléncia (cf. OSWALDO A. BANDEIRA DE MELLO, Principios Gerais de Direito Administrativo, v. |, pag. 98). E mais que isso: a lei 6, no direito constitucional brasileiro, necessa- riamente genérica, abstrata e irretroativa. Tal como prevista nos nossos sucessivos textos constitucionais, ela 6 sempre “necessaria”, como a qua- lificou CIRNE LIMA, com isso querendo significar que nenhuma outra ma- nifestagao estatal, judiciéria ou administrativa Ihe pode suprir a auséncia, seja nos casos constitucionalmente explicitos, que se requer, seja para criar obrigagdo. dever, encargo ou onus para os siiditos do Estado (RUY CIRNE LIMA, Principios de Direito Administrative, 42 ed., pag. 37). A ela séo submetidos nao s6 os cidadaos @ habitantes do territério do Estado, mas também os governantes e o proprio Estado. Dada a absoluta indelegabilidade das fungées verticais (art. 69, pa- ragrafo Unico, da Constituigao} do Estado, e os requintes do texto cons- titucional, 9 saudoso PONTES DE MIRANDA cunhou a expressdo legall- dade, para distinguir 0 suave e programéatico principio do direito cons- titucional comparado e sublinhar a rigidez, estreiteza_e imperatividade com que nés o Consagramos (Comentarios & Constituig¢go de 1967 com a Emenda n? 1/69, v. |, pag. 272). No contexto do nosso sistema constitucional, o modo exigente como foi posto © principio da legalidade melhor faz valorizado 0 conceito de Estado de Direito, tal como concebido por BALLADORE PALLIERI, ao defini-lo como “aquele que se submete & lei e a jurisdigao independente e imparcial” (Diritto Costituzionale, 3% ed., Mildo, Ed. Giufiré, pag. 85). a6 R. Ink, legisl. Brasil 17 n. 66 abr./jun. 1980 Efetivamente — é observacdo do notavel constitucionalista de Milaéo — de muito pouco valeria o Estado obedecer a Ii, se pudesse manipula-la seja na elaboragao, seja na aplicagao. Tanto mais indcuo seria o principio, se nao existisse 0 mecanismo de controle jurisdicional da aco administrativa, como exposto magistral- mente por SEABRA FAGUNDES. Do que se vé que a existéncia de um Judiciario auténomo e indepen- dente (e, pois, imparcial) € consectario necessdrio da legalitariedade, por ser a Gnica garantia de sua eficdcia. € nesse contexto sistematico que se deve intentar alcangar a com- preenso dos institutos de governo e seus instrumentos, tal como deli- neados no texto constitucional. Na contormidade dessa perspectiva € que se postula focalizar ade- quadamente a consideragdo das competéncias executivas, dentre as quais a regulamentar se sobressai por peculiaridades singulares. ll — COMPETENCIAS DO EXECUTIVO E LIBERDADE A estrita disciplina que os nossos textos constitucionais tradicional- mente deram & faculdade regulamentar do Executivo decorre de rigida concepgdo da separagdo de poderes, que entre nés sempre prevaleceu, certamente como reagao aos abusos do arbitrio e onerosos erros que se ensejaram nos periodos discricionarios que a histéria de nossas institui- des conheceu. Tanto isso 6 exato que toda constituinte democratica restaura 0 es- quema, na sua pureza. E a deterioragao do regime constitucional sempre se manifesta por desequilibrios neste setor. Ndo tolera a nossa Constituic&éo que o Executivo exerga nenhum tipo de competéncia normativa inaugural, nem mesmo em matéria adminis- trativa. Essa seara foi categoricamente reservada aos 6rgaos da repre- sontagdo popular. E a sistemética é cerrada, inflexivel. Se a tal conclusao no for levado 0 intérprete, pela leitura das disposigdes que delineiam a competéncia regulamentar, certamente esbarrara no principio da legali- dade, tal como formulado: ninguém, nenhuma pessoa, nenhum sujeito de direito poderd ser constrangido por norma que nao emane do legislador. Os atos do Executive (com a estrita excegaio do decreto-lei e da lei delegada) ndo obrigam sendo aos subordinados hierarquicos da autori- dade que os emanou. Tal sistema, dizemos, completa a tripartigao do poder e fixa os con- fins — para reforcé-la — de sua eficacia, precisamente porque sublinha e reforga a legalidade, no sentido de legalitariedade, ta! como exposta por PONTES DE MIRANDA. O Ultimo desideratum do constituinte, nesse passo, foi o de assegurar a liberdade, pondo-a a salvo, fora do alcance do Executivo. Ro Inf, fegi @. 17 n, 66 abr./jun. 1980 a7 Assim, as diversas projegdes da liberdade juridica — tal como onimo- damente garantida pela Constituigaéo —- ficam resguardadas contra os. atos administrativos, que se hdo de limitar a fiel, estrita, rigorosa e exata aplicagdo da lei. Esse € 0 querer inequivoco do constituinte. Tal designio claro e inso- fismavel ja tem tradigao mais do que sesquicentenaria, no Brasil. Tudo que o contravenha 6 injuridico, 6 repugnante ao nosso siste- ma. Deve ser ignorado pelos administrados, repelido pelos tribunais, pu- nido pelo Congresso (Assembiéias Legislativas, Camaras de Vereadores) como agressao aos valores institucionais maiores consagrados na Cons- tituigao. E tal 6 a forga ideal, sociolégica e politica desses valores que, quan- do por desgraca tivemos que conhecer — ao longo de nosso processo histérico — atos de arbitrio, praticados por grupos que empolgaram as alavancas do poder, estes sempre buscaram dar aparéncia de legitimida- de e tolerancia social aos esbulhos praticados, invocando esses mesmos valores e querendo fazer crer que em nome deles se propunha um hiato transitério @ sua vigéncia. Com efeito, todos os golpes de estado se pretendem justificar ale- gando seus promotores a necessidade de restauragao plena dos valores constitucionais; e sempre se afirma a transitoriedade do periodo arbi- trario, Nao fossem instituigées arraigadas no sentir popular (ainda que nem sempre plenamente consciente); nao fossem instituigdes de valor abso- luto, altamente estimaveis entre nés; nado fossem expressées de nossa cultura e de nossa profunda e generalizada aspiracdo, e certamente nao teriam sobrevivido, a tantas e tao desastrosas vicissitudes, ao longo des- tes 150 anos. Cumpre sublinhar que a disciplina constitucional tem em mira, pre- cipuamente, limitar 9 Estado, conté-lo no exercicio do poder, assegurar os direitos individuais e garantir que 0 uso de suas competéncias pelos 6rgaos publicos se faga na forma do direito para busca das finalidades juridicamente previstas e promover os valores normativamente consa- grados. E como fulcro de tudo — pedra de toque do sistema, chave de ab6- bada de toda a construgao normativa — sempre esta a liberdade humana, como direito fundamental do homem e do cidad&o, com as denotagdes que a expressdo velo ganhando ao longo dos dois séculos percorridos, desde que foi cunhada pelos revolucionarios franceses. Estudar o regulamento 6, nessa perspectiva mais ampla, estudar os limites A agao executiva, em confronto com a liberdade. O ponto de equilibrio institucional esta no conciliar adequadamente essa competéncia estatal, com a liberdade. Como pode aquela desen- volver-se, sem ferir ou restringir este magno valor. 17m. 66 abe./jun. ae R, Inf, legial. Brasilia Ill! — ASSENTO CONSTITUCIONAL DA COMPETENCIA REGULAMENTAR Funda-se, imediatamente, na 2? parte do item Ill do art. 81 a compe- tencia regulamentar do Presidente da Republica. Assim se redige: “art, 81 — Compete privativamente ao Presidente da Re- public Ill — sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execugao.” ‘Ao contrério do que ingenuamente pode supor 0 leigo, ao ler essa disposigao, o preceito nado tem o sentido de conceder ampla faculdade, nem de outorgar competéncia irrestrita ao Executivo. Nao. Se, como visto, a faculdade de tracgar regras dirigidas ao organismo administrative seu subordinado — para dispd-lo de modo a melhor asse- gurar a aplicagdo das leis administrativas, concedida ao Chefe do Exe- cutivo — 6 conatural a fungao de cabega do ramo executivo do governo e inerente a seu poder hierarquico, bem como correspectivo de sua res- ponsabilidade politica e funcional, j4 se vé que a digéo da 2% parte do item III do art. 81, para néo ser considerada um expletivo inécuo, s6 pode ter sentido limitativo. A redagao dada — consoante com a tradigéo do nosso direite cons- titucional patenteia, evidencia e explicita a visceral subordinagdo do re- gulamento & lei. Por isso assinalou CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO: “Seu objetivo precipue — conatural as conquistas politicas que se substanciam no Estado moderno — é precisamente 0 de tmpedir que o Executivo possa estabelecer, por ato seu, res- trigdes a liberdade e a propriedade dos individuos.” (RDP, v. 53.) Efetivamente, sua digdo restritiva tem em mira delimitar e restringir a faculdade, cortando qualquer veleidade no sentido de fazé-la (ou per- mitir entendé-la) mais extansa ou ampla que o sugerido pela finalidade de assegurar a fiel execugao das leis administrativas. Efetivamente, se a cldusula constitucional nao existisse, como corre em muitas Constituigdes semelhantes @ nossa, ndo se negaria, por isso, a existéncia da facuidade regulamentar. Pelo contrétio, ela poderia ser entendida mais ampla do que resulta do nosso texto positivo. Sua presenga, da ordenagao consti 86 encontra explicagao, no contexto sistematico lonal, como uma restrigao. IV — DEFINICAO DE REGULAMENTO Regulamento 6 ato administrativo normativo, veiculado por decreto, expedido no exercicio da fungéo regulamentar, contendo disposig6es, R. Inf. legis!. Brasitie a. 17 n. 66 obr./jun. 1980 a9 dirigidas aos subordinados do editor, regulando (disciptinando) 0 modo de aplicagao das leis administrativas, cuja execugdo lhe incumbe. Anélise dos termos da definigéo Ato administrative — Trata-se de ato juridico subordinado a lel e versando matéria Inserida no Ambito da administragao publica. Portanto, matéria constitucionalmente entregue ao Poder Executivo. Juridicamente, administrar 6 aplicar a lei de oficio, na ligéo arguta de SEABRA FA- |UNDES. Dai a natureza administrativa do ato regulamentar. Daf o regime ju- tidico que se Ihe aplica: regime juridico administrativo. No desenvolvi- mento das consideragées em torno do tema, vai ficando evidente um trago distintivo entre o regulamento e a lei: embora ambos sejam nor- mas, a lei tem cunho inaugural, inovador — € o regulamento é ato menor, inferior, de aplicagéo. E ato secundario e, pois, meramente administra- tivo, na categorizagao precisa de CIRNE LIMA. Normativo — O regulamento é em regra genérico e abstrato. Inter- cede entre 0 comando da norma — sempre que tenha cabimento — e os atos de aplicacéo da mesma. Compée um dos degraus na escala decres- cente de concregéo do direito, na categorizago Kelseniana, nisso acata- da por TERSIO SAMPAIO FERRAZ, Nesse sentido, 6 genérico e abstrato. Genérico, porque regula um género de atos; abstrato, porque, quando editado, 6 presumido, inspira- do por consideragdes que transcendem necessariamente os casos indi- viduais. Na sua edigdo, abstrai o editor qualquer pessoa particular, fixan- do-se na contempla¢ao abstrata de um modelo ou padrao dos fatos sus- ceptiveis de ocorrerem. Meditando sobre esta caracteristica, CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO observou que “a generalidade da lei e seu carater abstrato ensancham particularizagées gradativas quando nao tém em mira a espe- cificidade de situagées insuscetiveis de redugdo a um padrao qualquer” (RDP, v. 53). Por isso esse autor salienta a “necessidade tanto de disposigées procedimentais, quanto de regras que assegurem tratamento isonémico @ massa de contribuintes, sem as quais a margem de discri¢&o adminis- trativa (que irrompe pela compreensivel auséncia de minudéncias legais) ensejaria tratamentos dispares, incompativeis quer com a boa ordem administrativa, quer com a igualdade a que fazem jus os contribuintes” (RDP, 53). Veiculado por decreto — A competéncia regulamentar do Chefe do Executivo se manifesta por decreto. O instrumento juridico que necessariamente ha de veicular as normas regulamentares — ex vi do disposto no art. 81, Ill, do texto constitucional rr) R, Inf, legist, Brasilia . 17 m. 66 jun, 1980 — 6 0 decreto, suprema manifestagao juridica normativa do Chefe do Poder Executivo. Assim como 0 préprio texto constitucional designa por acérdaos as decisdes dos Tribunais; assim como batiza de leis os atos do Congresso; assim também da aos. atos que veiculam manifestagdes da faculdade regulamentar 0 nome de decretos. Decreto 6 a forma (veiculo) de manifestagao da vontade do Chefe do Executivo. Quando essa manifestagdo se dé no exercicio da competéncia regulamentar, tem-se o decreto regulamentar. Dessa consideragao se vé que decreto 6 a forma, o continente. Re- gulamento 6 a matéria, o contetdo. € muito importante notar quo © rogime juridico dos decretos regula- mentares s6 pode ser dessumido da Constituigao. Todas as contribuigdes do direito comparado sao inserviveis, porque essa competéncia, em cada Estado, é regulada de um modo; em cada contexto tem uma dimensao. A divulgagdo inadvertida que aqui se tem feito da doutrina estrangeira s6 tem contribuido para baralhar os espiritos e fomentar os abusos, exces- sos e arbitrariedades do Estado. Expedido no exercicio da fun¢ao regulamentar — O Chefe do Exe- cutivo recebe da Constituigdo diversas competéncias (art. 81): adminis- trativas; de governo; de chefia; de tutela de interesses; de colaboracéo com o Legislativo; majestaticas; de zelo pela ordem e seguranga do Pais; de condugdo da politica exterior etc. Dentre tais fungdes, a admi- nistrativa corresponde ao comand, lideranga e chefia do aparelho admi- nisirativo do Estado (v. J. A. OLIVEIRA BARACHO, Regimes Politicos, pag. 156). € precisamente como instrumento desse comando que surge a fun- go regulamentar, a qual “‘s6 irrompe... quando a lei a ser cumprida reclama a interferéncia da administragaéo, como requisito de sua apli- cacao” (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, RDP, v. 53). Contendo disposigées destinadas aos subordinados do editor — O editor 6 0 Chefe do Poder Executivo. Pelo regulamento ele expede or- dens a todos os seus subordinados. Os precipuos destinatarios dos re- gulamentos so os subordinados do editor, que sobre oles tem poder hierarquico. S6 indiretamente pode atingir os administrados. Dai o asset SERGIO FERRAZ no sentido de que “‘o regulamento 6 um ato de externa, ou seja, sua normatividade n&o obriga tao apenas a administra- gdo que por ele se autolimita, mas confere direito piblico subjetivo invo- cével pelo particular” (9 Estudos de Direito, pag. 105). Os administrados s6 sao sujeitos aos preceitos regulamentares, na medida em que, pela lei, devam tratar com os servidores publicos, 6 s6 R. Inf, legist. Brasilia o. 17 n. 66 nessa medida. Os administrados n@o séo subordinados ao Chefe do Po- der Executivo. Nao devem acatamento as suas ordens. E que em se tratando de regra juridica de direito formal, 0 regula- mento ndo pode ir além da edi¢do de regras que indiquem a maneira de ser observada a regra juridica (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, RDP, v. 53). Os administrados s&o titulares do direito pUblico subjetivo a s6 se- rem constrangidos pela lei (art. 153, § 29). © regulamento nao pode criar obrigagao para terceiros, que nao os subordinados hierdrquicos do Chefe do Poder Executivo que o editou. © regulamento emanado do Presidente da Repiblica obriga so aos servidores da Unido. Nao obriga os Estados nem os Municipios, nem os administrados da prépria Unido, que sO sdo obrigados pela lei. Observa com propriedade CELSO BASTOS 0 enderego precipuo des- sé instrumento: “Fundados na atividade administrativa, os regulamentos séo atos voltados 4 ordenagado da prépria m&quina burocratica da Administragdo.” (Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 1979, 2? ed., pag. 177.) E somente considerando adequadamente essa perspsctiva teleolé- gica que se faz possivel apreender as balizas dessa faculdade adminis- trativa. S6 se 6 colhido por regulamento, na medida em que se 6 posto na contingéncia de se relacionar com uma repartigao publica, cuja agao a ele esteja sujeita. Efetivamente, os ndo servidores séo colhidos pelos preceitos regula- mentares, somente quando a lei os obriga a relacionar-se com um drgao piblico. E somente sao atingidos (0s sujeitos néo subordinados hierar- quicamente ao editor) por via indireta, na medida em que os servidores em 0 acatando, comportarem-se desta ou daquela maneira. Esse 6 0 ponto mais importante, mais delicado — e mais debatido — de todo o tema. © magno desafio que se pée aos exegetas esté precisamente em precisar os limites em que terceiros (inclusive administrados) sao colhi- dos pelos preceitos regulamentares. Toda vez que a lei cria um direito ou estabelece condi¢des para o exercicio de outro contemplando pessoas alhsias a administragéo, 6 necesséria uma norma sua complementar, regulamentando-a @ dispondo a forma pela qual a administragdo publica dard as providéncias que Ihe incumbem, pata a plena reallzagao da vontade legal. Ora, isto € felto pelo regulamento que, além de preencher esta fungao, ainda tem a vir- 52 R. Inf. fegisl, Brasilia a. 17 m. 66 abr./jun. 1980 tude de — desde que observados os mandamentos legais — obrigar aos terceiros, tornando nao sé possiveis, como faceis, as relagdes @ o entro- samento entre a maquina administrativa e estes. Regulando o modo de aplicagao das leis — Como o regulamento & ato subordinado a lei, nao Ihe pode ampliar o contetido, nem restringi-lo. Sua especifica finalidade nao 6 — como pensam leigos jornatisticamente informados — completar a lei, nem explied-la (fungao dos juristas), nem minudencié-la, mas dispor sobre a maneira pela qual os agentes adminis- trativos iréo, com fidelidade e exacdo, fazé-la cumprida, providenciar sua efetiva aplicagaéo, assegurar a eficacia de seus mandamentos. A finalidade dessa modalidade regulamentar é 0 aparelhamento dos meios concretos para sua execugao (SERGIO FERRAZ, op. loc. cit.). Daf o somente ser comportavel regulamentagao de leis_administra- tivas. SO estas dizem respeito & administragéo (LAFAYETTE PONDE, “Novas Perspectivas do Direito Administrativo”, Rev. PUC-SP, XLV, fasc. 89). Os preceitos regulamentares iréo dispor que érgaos, em que condi- des, com quais meios, mediante quais instrumentos, iro ser mobiliza- dos para dar vida aos preceitos legais. Iréo disciplinar come sera melhor assegurada a fiel execugao da vontade legal, pela administragéo publica (evidentemente, o regulamento federal o dir, s6 para a administragéo federal; 0 estadual para a administragao do Estado; o municipal, na 6rbita do Municipio). Iréo dizer que agentes piblicos seréo responsdvels por garantir a eficdcia plena de lei, Essa responsabilidade fica na esfera do Executivo. Consubstancia-se a responsabilidade dos servidores no dever de responder (e corresponde submissao as sangées disciplinares) perante os escaldes hierarquicos Internos da Administragao, até 0 escalfio maximo, © Chefe do Poder Executive. Isto porque a responsabilidade Ultima, pe- rante 0 Legislative e o Judiclario — pela fiel observancia e acatamento das leis administrativas — é do proprio Chefe do Executivo. Comete ele crime de responsabilidade quando no thes assegura (2s leis adminis- trativas) fiel observancia (art. 82, VIll), na medida em que esta depender de seus subordinados (art. 81, |), sobre os quais tem poder hierarquico pleno, precisamente como instrumento de eficléncia de comando. Disso se vé que as responsabilidades dos funcionarios e servidores nao exclui, mas se coordena com a do Chefe do Executivo. Nesse sentido, o regulamento pode ser inovador: pode criar deveres e obrigagdes para os subordinades ao editor (funciondrios, servidores agentes pUblicos) cu para os érgaos sujeitos 4 sua tutela (autarquias, fundagdes ptblicas, sociedades mistas, empresas publicas e até conces- siondrias), desde que esses deveres € obrigagées sejam instrumentais do fiel cumprimento das leis. R. Inf, legisl. Brasil a, 17 n. 66 abr./jun, 1980 53 it 9s terceiros néo subordinados, nem tutelados, s6 devem obedién- cia a lei. Indiretamente, porém, obedeceréo ao regulamento, ao tratarem com os subordinados sujeitos as regras regulamentares, S6 por via reflexa 0 segulamente os atinge. Em reveréncia a esse manifesto designio constitucional e respelto aos direltos assim estabelecidos, 0 regulamento nado pode dispor que o administrado 6 proibido de, p. ex., tratar com uma repartig¢éo a horas x, nem que deve fazé-lo a hora y- A redago adequada 6 a que diga que a reparti¢do esté aberta e fun- cionando no hordrio z. Fica assim saliente que sé reflexamente os admi- nistrados foram colhidos. Em outras palavras: 0 administrado investido num direito, por uma fei, ao dirigir-se a uma reparti¢ao, somente podera tratar, no horario fixa- do por regulamento, com 0 érgao também nele previsto, na pessoa dos servidores escalados, usando os formuldérios regularmente prescritos. Na medida em que os agentes publicos — pela subordinagao hierarquica — sao constrangidos por essas regras, o terceiro que com eles trate a elas se deve contormar. Aplicagéo das eis administrativas — S6 as leis administrativas com- portam regulamentagdo. A Constituigéo néo consente que se regulamente lei néo administrativa (como oportunamente se tentaré demonstrar). 0 Chefe do Executivo sé 6 responsavel pela execucdo das leis admi- nistrativas; néo de outras. Se a faculdade regulamentar é contrapartida da responsabilidade dele, nos seus limites ha de se conter. Sé cabe regulamento em matéria que vai ser objeto de agdo admi- nistrativa ou desta depende. O sistema sé requer ou admite regulamento, como instrumento de adaptagfio ou ordenagdo do aparelho administra- tivo, tendo em vista, exatamente, a criagdo de condigées para a fiel exe- cugao das leis. Dai a absoluta e irremovivel impossibilidade de regulamentagao de leis nao administrativas, como oportunamente observado por SERGIO “Por isso que, como assentado, a justificagado Ultima do poder regulamentar reside no dever de administrar inerente & Administra¢ao, 0 Ambito de sua incidéncia esté limitado aos campos do direito em que Ihe caiba atuar” (op. cit,). © &mbito do regulamento € a administragao. OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO frisa que suas regras sao “referentes a organizagao @ ado do Estado, enquanto poder publico” (Principios Gerais de Direito Administrative, Ed. Forense, v. |, 2% ed., pAg. 303, 1979) @ assinala que “Nao de ter por conteddo regras organicas e processuals destinadas a por em execugao os principios institucionais estabelecidos por lei, ou normas em desenvolvimento dos preceitos constantes da lei, expressos 54 R. Int. legisl. Brasilia @. 17 n, 66 abr./jun. 1980 ou implicitos, dentro da drbita por ela circunscrita, isto 6, das diretrizes, em pormenor, por ela determinadas” {op. cit., pag. 314). ‘Cuja execugo incumbe ao Chefe do Executive — Nao s4o todas as leis administrativas cuja execugaéo incumbe ao Chefe do Executive. Mas 86 aquelas cuja inexecugao Ihe acarreta responsabilidade (art. 82, Vil). {E dbvio que esta observagao considera cada Chefe do Executivo, em relagdo as suas responsabilidades, na esfera de pessoa publica poli- tica de que 6 érgao). Se a lei criar entidades auténomas {com base na Constituigéo} sem submeté-las a tutela do Chefe do Executivo, este nao tera responsabi- lidade pelo cumprimento das leis cuja execugéio venha a incumbir a es- sas entidades; nem, por isso mesmo, poderd disciplinar a forma pela qual cumprirao as leis, ou 0 modo pelo qual operarao. Isto é matéria das chamadas disposigées autonémicas (CIRNE LIMA, Principios, pag. 40). € 0 caso, por exemplo, da Ordem dos Advogados, que, na qualidade de entidade disciplinar da fungdéo publica exercida pelos profissionais da advocacia, nao se pode sujeitar a nenhum tipo de tutela ou controle. Embora a legislagéo que rege essa entidade seja de cunho administrativo, @ responsabilidade pela eventual inobservancia dessa lei, por seus desti- natarios, nao seré imputvel, jamais — nem mesmo por omissio — ao Presidente da Republica. Ora, se ele ndo 6 responsavel pelo cumprimento dessa tei, ndo pode sobre essa autarquia exercer tutela, nem dispor como ela ira executar a sua lei organica. Outro exemplo 6 do IPC — Instituto de Previdéncia dos Congres- sistas —, autarquia federal, criada por lei da Unido, mas subordinada & tu- tela da Mesa do Congresso e destinada a prover a previdéncia de seus servidores e atuais ex-membros. Embora essa atividade seja administra- tiva, ndo esta sujeita a tutela, vigilancia ou superviséo do Chefe do Exe- cutivo. Logo, falece-lhe competéncia para regulamentar a lei organica dessa autarquia. Outro expressivo exemplo esta nos organismos dos contenciosos (funcional, tributdrio e previdencidrio) a serem criados pela lei (art. 203). Se a lei néo Ihe der ensanchas, 0 Chefe do Executive néo podera dispor regulamentarmente como esses organismos irio cumpri-la. A Constituigao indica claramente que os quer auténomos, independentes, como condigéo de imparcialidade. E mais um caso de Iei cuja execucao nao incumbe ao Chefe do Executivo. V — BASES CONSTITUCIONAIS DA COMPETENCIA REGULAMENTAR A exata compreensao dos limites, Ambito, finalidades e regime juri- dico do regulamento, no direito brasileiro, 6 alcangavel pelo estudo dos principios constitucionais que informam a fungdo executiva, da qual o regulamento 6 a expressdo mais conspicua. R. Inf, legisl, Brosifia 0. 17 n, 66 obr./jun. 1980 5S So fundamentos sistematicos da faculdade regulamentar — previs~ ta no mandamento do art. 81, Ill — cuja compreensdo permite melhor desvendar seu regime juridico, o principio hierérquico {art. 73, combina- do com 0 81) e a responsabilidade do Chefe do Executivo (art. 82). Funcionam como seus timites 0 principio da tripartigio do poder (art. 69), a isonomia (art. 153, § 19) @ a legalidade (art. 153, § 2°). a) Hierarquia € 0 poder hierrquico do Chefe do Executivo que serve de principal explicagéo e suporte para a faculdade regulamentar. Como maxima au- toridade administrativa, ele fixa as pautas de acordo com as quais seus subordinados desempenhardo suas competéncias e deveres prescritos em lei, O regulamento — nessa medida — é 0 instrumento normativo do “poder de instrugdo” do Chefe do Executivo, tal como balizado por CIRNE LIMA {ob. cit., pag. 71). “Com fundamento no poder hierérquico, o Chefe do Pader Executive restringe os comportamentos dos agentes publicos 6 especifica, para os agentes da Administracdo, a maneira de pro- ceder. Assim, uniformiza processual @ materialmente os compor- tamentos a serem adotados em face dos critérios que elege 6 das pautas que estabelece para os érgdos e agentes administrativos” (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, RDP, v. 53). O poder hierérquico 6 como que a contrapartida da responsabilidade do Chefe do Executivo, pela fiel execugao das leis. “Realmente, a faculdade regulamentar constitui um atributo proprio, inerente ao exercicio da atividade administrativa, em ca- rater majoritario conferida ao Poder Executive. Com esta ressal- va, talvez se pudesse admitir a teoria da determinagdo legal ou constitucional: como a Constituigéo nao s6 atribua determina- das faculdades ao Poder Incumbido da tarefa administrativa, mas também, e sobretudo, Ihe determine o dever de agir, implicita- mente Ihe confere as potestades necessdrias ao desempenho desse dever” (SERGIO FERRAZ, ob. cit.). Se ele 6 obrigado a agir, se tem os encargos administrativos sobre seus ombros, em ultima inst&ncia, se nao se pode omitir, nem ficar inerte, se 6 0 derradeiro e maior responsdvel (art. 82, Vil) pela observancia da legistagao administrativa, ha de dispor dos msios para desincumbir-se agilmente, prontamente, eficientemente desses deveres e encargos. A exposig¢ao do contetdo do principio hierarquico, feita por CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, bem revela seu alcance: “A relagdo hierarquica 6 um vinculo de autoridade que une, através de graus sucessives, todos os érgaos da Administragao 56 R. Inf, fegisl, Brositio 0. 17 m, 66 abr./jun, 1980 Central, subordinando escalonadamente os inferiores aos supe- riores. © 6érg4o que se encontra na cupula do sistema dirige os que se acham no grau imediato; estes, por sua vez, comandam sobre 0 grau sucessivo, e assim por diante, até atingir os derra- deiros inferiores. Esta relagao unificadora — tipica do sistema de centralizagéo — significa, em ultima andlise, que o 6rgao supremo comanda toda a administragdo, de tal forma que sua vontade se impde desde os mais altos até os infimos escalées, passando através de varios niveis ou elos de uma Corrente,” (Natureza © Regime Juridico das Autarquias, Ed. Revista dos Tri- bunais, pag. 100.) b} Responsabilidade do Presidente da Republica No regime presidencialista que adotamos, a Constituigéo entrega ao Presidente da Repiiblica o Poder Executivo (art. 73), encarregando-o de tarefas politicas, diplomaticas, militares, governamentais, administrati- vas etc. ‘Ao carregar a esse agente politico tio grande soma de poderes, competéncia e encargos, investindo-o da Chefia do Executivo, outorga- Ihe indmeros e variados instrumentos de agdo (art, 81) que ele pessoal- mente deve manejar, tornando-os eficazes. Dentre esses, 0 maximo poder hierarquico na esfera administrativa (art. 81, |), bem como instrumentos normativos que o habilitem a disciplinar rigorosamente o vastissimo apa- relho administrativo sob seu comando, bem como providenciar eficaz- mente no sentido de que esse imenso e complexo organismo se capacite a assegurar cabal, rigoroso e fiel cumprimento a todas as leis adminis- tativas (art. 81, Ill, 28 parte, e V). Se ele 6 0 responsavel pelo fie! cumprimento das leis (obviamente, das lels administrativas) e se estas atribuem Onus, direitos, encargos, tarefas e deveres & administragdo pUblica e se esta 6 subordinada ao Chefe do Executivo, parece dbvio que este pode ditar critérios e normas sobre a forma de o imenso e gigantesco aparelho (administragdo publica federal) dar flel execucdo a lel. Na verdade, uma vis&o objetiva prontamente revela o equilibrio har- ménico do sistema delineado. Seria absurdo dar ao drgdo tao grande poder, sem sancionar seu nao uso ou abuso. Por outro lado, seria ilégico atribuir-lhe responsabi- lidade téo grave e ampla, sem Ihe conceder os instrumentos para bem se desincumbir dela. Por isso, se Ihe dé enormes poderes. Em contrapartida, a Constitui- 80 © responsabiliza por qualquer abuso, desvio, mau uso ou ndo uso de suas competéncias (art. 82). R. Inf. tegisl. Bras a. 17 ». 66 obr./jun. 1980 37 No que ao tema interessa, a Constituigdo sanciona o descumprimento das leis com a suspensdo da fungao, durante o processo de responsa- bilidade (art. 83) e perda do cargo, se julgada procedente a acusagéo (art. 82, |, e pardgrato Unico). Se o fundamento da faculdade regulamentar esté no poder hierdr- quico, sua justificagéo repousa na responsabilidade do Chefe do Exe- cutive pelo cumprimento das leis. E ébvio que o Presidente da Republica nao é responsdvel pela obser- vancia de toda e qualquer lei. Embora 0 texto constitucional, em sua digdo literal, faga reteréncia ao cumprimento das leis (art. 82, Vil), a interpretagdo sistematica exige que se entenda que a responsabilidade se circunscreve as leis, cujo destinataria seja o Chefe do Executivo, como hierarca maximo da admi- nistragdo. Isto porque a competéncia regulamentar 6 um poder-dever, na concepgao, hoje universalizada, de SANTI ROMANO. Dai o impor-se a inteligéncia no sentido de que sua responsabilidade se limita as leis cuja execugao Ihe incumbe. Leis administrativas, portanto. Ele nao 6 nem pode ser responsdvel pelo cumprimento das leis processuais, cujos destinatérios sao os érgdos do Poder Judicidrio. Nem pelo cumprimento das leis civis, cujos destinatarios sao “as pessoas co- muns, nas suas relagdes privadas”. Nem pelas leis trabalhistas, comer- ciais etc. No caso de descumprimento dessas leis, as sangées sistematicas 880 voltadas para os destinatarios. A ordem juridica atinge com sua reagao outros sujeitos, que nao o Presidente da Republica; prescreve outros modos e procedimentos para garantir a eficdcia dessas leis, sempre pelo acesso ao Judiciério dos lesados pela sua desobediéncia (v. capitulo VI deste estudo). A administragéo e seu chefe ficam inteiramente a quo desses fend- menos. Por isso no 6 responsavel pelo que nessas dreas se passe. Nem Fecebe ordinance power para mediar entre os preceitos legais e seus destinatarios, em matéria que ndo administrativa (e, assim mesmo, sé federal). (Este tema sera retomado no capitulo VI.) Na descricéo dessa trama sistemdtica, se vé a profunda coeréncia do texto constitucional ¢ a perfeita harmonia do sistema juridico, ao tragar tal esquema. $6 ha responsabilidade do Chefe do Executivo pela obediéncia as lels administrativas. Destas, s6 aquelas cuja execugdo Ihe incumbe (pre- sidente, as federais; governador, as estaduais; prefeito, as municipais). Em compensagao, sua faculdade regulamentar (competéncia para expedir normas juridicas obrigatérias) se circunscreve a estes casos. 58 ° R. Inf. legisl. Bros 8. 17», 66 abr./iun. 1980 © ambito dessas normas 6 restrito sistematicamente & esfera da prépria administragao (Poder Executivo), além de circunscrever-se as balizas contidas na lei. & que o Chefe do Executivo se faz destinatério das leis administra- tivas, na medida em que — detendo o poder hierarquico e os poderes de comando do organismo burocrético — 6 apto a exercer seus poderes de modo a assegurar que tal organismo, do modo mais eficaz, dé fie! cumprimento a lel. Para que néo sé ndo se omita, mas principalmente se empenhe no prudente, oportuno e adequado uso desse conjunto harménico de fa- culdades, a Constituigao 0 torna responsavel pela exagao na obediéncia a tais leis e sanciona o descumprimento de modo tao drastico e severo. Quanto aos administrados, nao sao destinatérios dos regulamentos, no sentido de que estes néo podem criar-Ihes deveres, obrigagdes @ encargos. Tais constrangimentos s6 da lei podem defluir (art. 153, § 29). Nao quer isso dizer que devamos ser indiferentes aos regulamentos, ou que estes ndo possam tocar nossas esferas juridicas. Por via obliqua, indiretamente, na medida em que tenhamos, em decorréncia da lel, de tratar com os érgdos da administragao, seremos colhidos pelos preceitos requiamentares. Mas s6 nessa medida. E tudo que exceda tal evidente circunscrigdo sistemética é inconstitucional. c) Limites constitucionais ao regulamento Cuidemos aqui dos limites sistemdticos, para tentarmos elaboracdo que ponha em relevo os contornos constitucionais dessa importante fa- culdade executiva. 1) Separago de poderes A tripartigao do poder (como a quer denominar ATALIBA NOGUEIRA) ou separac¢éo de poderes (como a designa geralmente a doutrina), tal como posta pelo mandamento do art. 6? da Constituigdo, postula 4reas préprias e exclusivas de agdéo, para cada conjunto de drgaos estatais, destarte investidos de competéncia para atos de poder dentro de uma rea resultante de cortes verticais no campo de atribuigdes estatais. A independéncia reciproca preconizada pelo citado mandamento pos- tula, pois, que cada qual desempenhe suas atribuigées livremente, 20 mesmo tempo sem interferir na area dos demais, e sem deles sofrer ingeréncia. A harmonia propée que cada poder, circunscrevendo-se as suas com- peténcias, coopere com os demais, troque mensagens, concorra para compor os atos complexos e preste a colaboracaéo ou obediéncia, em cada caso, como resulta das regras constitucionais. R, Inf. legis!. Brosilie a. 17 n. 66 abr./jun. 1980 59 Dal j& se vé que o regulamento executive néo pode se dirigir a 6rgdos ou agentes do Judiciario e do Legislative. Estes dardo interpre- tag4o e aplicagaéo a Constituigaéo e as leis como melhor \hes parega, sujeitos as conseqiiéncias constitucionais e legais, no caso de desobe- diéncia, mediante os mecanismos normativamente dispostos, os quais excluem absolutamente a intermediagéo do regulamento executivo. Assim como nenhuma norma desta natureza pode ser dirigida a ér- gaos legislativos ou judiciarios, também nao pode dispor, nem mesmo indiretamente, sobre relagdes juridicas passivels de serem suscitadas, @ propésito, por decorréncia ou por ocasido do exercicio de suas atri- buigdes, por esses drgéos ou agentes. No principio constitucional da separagao de poderes, também, esté um peremptério limite materia! ao regulamento: nao pode ele pér fim a controvérsias, em torno da aplicacdo do direito, de modo definitive (que isto é préprio da decisao judicial); nem pode inovar inauguralmente a ordem juridica. E préprio da lei o criar, extinguir ou modificar normativamente direl- tos, de modo inauguralmente inovador. S6 0 érgao legislativo, no nosso sistema, tem competéncia para modificar, no plano normative, a ordem Juridica. $6 os érgdos representativos podem instaurar ou suprimir direi- tos ou situagdes genéricas e abstratas. “Onde se estabelecem — alteram ou extinquem direitos, ndo ha regulamentos —- ha abuso do poder requlamentar, inva- s&0 da competéncia legislativa’” (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, RDP, v. 53). Daf a impossibilidade de existéncia, no nosso sistema, de regulamen- tos auténomos. Estes tém cabimento em sistemas como o francés, onde a0 Executivo se reservam dreas de atuagao normativa. Aqui, do modo como se decidiu, pelo constituinte, estabelecer corte vertical, radical nas fungées estatais, 6 forgoso reconhecer que a uni- versalidade da legislagao corresponde a inferioridade normativa neces- séria do regulamento, Efetivamente, a lei tudo pode (nos limites constitu- cionais) e sobre tudo dispée. Nao ha area ou seara que se seqiiestre ao legislador. Com excegao dos interna corporis, a lei nao conhece vedagao material a seu campo da acgao. Disso resulta a necessidade da lei — como, com felicidade, quali- ficou este principio RUY CIRNE LIMA — ao lado de sua exclusividade (na arguta observa¢ao de ALBERTO XAVIER) e, como decorréncia necas- sdria, sua superioridade (reiterada, confirmada e sublinhada pela digdo da parte final do item Il! do art. 81 da Constituigdo: para sua fie! execugdo). Donde a impossibilidade material de o regulamento suprir a eventual omisséo do legislador, ou pretender completar sua obra, onde ela tenha sido insuficiente. Isso que é possivel no direito constitucional comparado, é inadmissivel no direito brasileiro, 60 R. Inf. tegisl, Brat 1. 17 n. 66 abr./jun, 1980 Coerente e harménico que é — até, como mostra RECASENS SICHES, por forca de premissa epistemolégica da dogmatica juridica — 0 sistema juridico, tal concepg&o sé se reforga pela consideragao de que se, nem por ato de vontade expresso e inequivoco, o legislador pode delegar atri- buigdes (pardgrafo nico do art. 6°), com maior razéo 0 exercicio de com- peténcia normativa inaugural (prépria da lei, portanto) pelo Executivo (sem- pre repugnante) 6 vedado mais evidentemente, quando nao seja invoca- do expressamente pelo legislador, mas, desempenhado a titulo de sanar- Ihe omissao ou suprir-Ihe lacuna. 2) Regulamento auténomo € até ridiculo que um brasileiro, tratando da faculdade regulamentar, & luz do nosso direito, abra um tépico sob tal designagdo. Tao ridiculo como seria criar um capitulo sobre a inspiragéo de ALAH na agao dos seus delegados-governantes. Nos dois casos, a finalidade de mengdo seria afirmar 0 nao cabimento do prdéprio estudo, pela inexisténcia de reco- nhecimento constitucional a esses institutos. S6 quem haja estudado muito o direito persa ou paquistanés; 36 quem se haja embebido embriagadoramente das instituicées islamicas; 's6 quem nunca tenha perpassado os olhos pelas Constituigoes brasileiras, desde 1824, pode invocar o Corao como regra positiva, entre nés, ou as diretrizes de ALAH ou de MAOME, para o exercicio das fungdes politicas, constitucionalmente reguladas. © mesmo se diga do regulamento auténomo. Diante de um texto constitucional que prescreve que o regulamento s6 se justifica para a fiel execugao das leis (art. 81, Il!, 22 parte), mencionar a idéia de regulamento auténomo, neste contexto, 6 gesto de grande ousadia. Cogitar disso, no Brasil, principalmente de 1891 para c4, é destruir, arrasar, negar a triparti¢éo do poder. € recusar-Ihe 0 reconhecimento de seu cunho de pedra basilar, ou chave de abébada do sistema. Os regulamentos auténomos (ou independentes) “... correspondem a0 exercicio da prerrogativa de legisla a ele reconhecida, com base no direito constitucional", na autorizada exposigéo de OSWALDO ARANHA DE MELLO (Principlos Gerais de Diraito Administrativo, Ed. Forense, V. |, 28 ed. Rio, pag. 303). $6 quem desconhega o que significa legislar, s6 quem ignore que no Brasil o Executivo naéo tem essa faculdade (com as ressalvas dos arts. 52 e 55 — que, por excepcionais, confirmam a regra); so quem nao faga a mais remota idéia do conceito de Constituigdo pode ler textos de doutrina estrangeira (especialmente francesa) com a pretensdo de expé-los aqui. Na Carta Magna vigente, o principio da legalidade (art. 153, § 29) tem “nao apenas o carater de preceito impositivo, mas também o de esteio para a contengao de intemperangas estatais” (CELSO ANTONIO BAN- R, Inf. tegist, Brosilia a. 17 mn. 66 abr./jun. 1980 or DEIRA DE MELLO, RDP, v. 53), 2s quais 0 proprio texto ndo quis deixar Para o intérprete deduzir, nao! Ja deixou dito de modo explicito (art. 81, Ill, 2? parte: “regulamentos para a sua’’ (da lei) fiel execugéo). H4, entre nés, diferenga entre lei e regulamento, no Brasil. “A distingao deles segundo a matéria”, diz 0 citado mestre, “esté em que a lei inova originariamente na ordem juridica, en= quanto o regulamento nao a altera”... “& fonte primaria do Di- reito, ao passo que o regulamento 6 fonte secundaria, inferior”, segundo CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (RDP v. 53). Na Franga, os regulamentos auténomos — nao sé possivels, mas até mesmo requeridos pelo texto constitucional — estao no plano da lei, dela se distinguindo pela érea de abrangéncia. Entre nds “evidentemente, 0 regulamento mais nao podera fazer além de expedir comandos intra legem, pois nem contra, nem extra, nem praeter, nem ultra legem caber-lhe-4 introduzir qualquer determinagao. Sobretudo, no direito brasileiro — ante os preceptivos reiteradamente citados —, 6 evidente tal limitagao” (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, RDP, v. 53) No Brasil, na verdade, os administrados sé sao obrigados a fazer ou nao fazer em virtude da lei (art. 153, § 29). E sé devem obediéncia a regulamento que disponha medida tendente a garantir, a “assegurar a fiel observancia” da lei (art. 81, Ill, 29 parte). Fie! quer dizer fidedigna, estrita, leal, correta, absoluta. Por isso a unanimidade dos doutrinadores patrios pode dizer, com trangiilidade, que o regulamento nao cria a obrigagdo ou dever que j4 nao esteja na lei. Em outras palavras: por virtude prépria, 0 regulamento no obriga ninguém. Os escritores que defendem a possibilidade do reguiamento auté- nomo, no Brasil, usam s6 argumentos sociolégicos, ideolégicos (totalité- rios), econdmicos. E expdem o que é dbvio, evidente e irresistivel... na Franga, ou alhures; mas que, aqui, ¢ ilicito punivel como crime de respon- ‘sabilidade (art. 82, Vil). Isonomiz principio constitucional da isonomia funciona positivamente, no que a0 regulamento concerne, erigindo-o em instrumento de sua plena reali- zagao, até as mais remotas conseqiiéncias. Efetivamente, cada agente administrative, ao aplicar a lei (obviamen- te administrativa) aos casos concretos — em hipéteses de competéncia discricionéria, como qualificado com rigor e acerto por VICTOR NUNES —, procederd a variagées, ainda que dentro dos parametros da pauta legal. Com isso a isonomia de tratamento a que tém direito os adminis- a R. Inf, legisl, Brosilia @. 17 n. 66 abr./jun. 1980 trados pode ficar comprometide. Dai o cabimento e, as vezes, até mesmo a necessidade do regulamento, para evitar desigualdade. Por outro lado — e ja negativamente — nas suas exigéncias estéo pe- remptérios e insuperdveis limites & discrigdo regulamentar. Quem melhor estudou a igualdade, no Brasil, foi também quem expos valor instrumental do regulamento como seu favorecedor (CELSO ANTO- NIO BANDEIRA DE MELLO, RDP, v. 53). Na esfera discricionérla aberta pelo legislador ao Executivo, vai servir de pauta e critério que a demarcam e serve de suporte valorativo de suas manifestagdes a isonomia, atuando em plenitude com o vigor € a forca propria do principio, como o quer o inclito AGUSTIN GORDILLO. De tudo que neste estudo se disse sobre as exigéncias do principio da isonomia, enquanto refletidas na agdo administrativa, importa sobre- maneira deixar enfaticamente sublinhado que o regulamento deve neces- sariamente realizé-las (as exigéncias) em sua plenitude. Como isso é de- corréncia de imperativo constiucional capital, 6 forgoso reconhecer que sera nulo o reguiamento que de modo direto ou indireto, imediato ou me- diato, as contravenha. Legalidade Como sé se compreende 0 regulamento, no seu perfil juridico, em confronto com 0 principio da legalidade, e como este € 0 fulcro de toda a construcao s'stematica da Constituigdo, este tema 6, na verdade, ex- posto, examinado e estudado em todos os topicos deste estudo. A legalidade & princfpio basico de todo o nosso sistema. Nele ocupa posigdo nuclear. Donde sua fora oxpraiar-sc a todos os confins do siste- ma, de mado peremptoriamente exigente, como ficou demonstrado ma- gistralmente por SEABRA FAGUNDES (Controle. .., cit., pag. 100). Convém recordar classica lig&o do portentoso publicista portenho AGUSTIN GORDILLO: mos entonces que los principios de derecho publico contenidos en la Constitucién son normas juridicas, pero no s6lo eso: mientras que la norma es un marco dentro del qual existe una cierta libertad, el principio tiene sustancia integral. La norma es limite, el principio es limite y contenido. La norma da a la ley facultad de interpretarla o aplicarla en mas de un sentido, y el acto administrativo la facultad de interpretar ta ley en més de un sentido; pero el principio establece una direc cidn estimativa, un sentido axioldgico, de valoracién, de espiritu. EI principio exige que tanto fa ley como el acto administrativo respecten sus limites y ademés tengan su mismo contenido, si- gan su misma direccién, realicen su mismo espfritu.” R. Inf, fegisl, Brasilia a, 17 n. 66 abr./jun. 1980 63 Dai comentar CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO: “Violar um principio 6 muito mais grave que transgredir uma norma. A desatengao ao principio implica ofensa nado apenas a um especifico mandamento obrigatério, mas a too o sistema de comandos. E a mais grave forma de ilegalidade ou inconsti- tucionalidade, conforme 0 escalao do principio violado, porque representa insurgéncia contra todo o sistema, subversdo de seus valores fundamentais, contumélia irremissivel a seu arcabougo légico € corrosao de sua estrutura mestra.” (ADP, v. 53.) Prossegue esse autor: “Q cantetde estimative que nele se contém ultrapassa até mesmo 0 rigor de sua clarissima letra, para assumir a fungéo de tonica do sistema, vetor axiolégico que deve iluminar a andlise @ a inteligéncia de quaisquer regras editadas pelo Estado.” Para concluir: “Donde, defender a inteireza deste principio da legalidade implica defender a integridade do sistema constitucional como um todo, na medida em que assim se protege a parte mais vulne- ravel da cidadela protetora dos individuos e da ordenagdo pir blica nacional.” As balizas positivas e negativas do regulamento esto, por sua prépria natureza, na lei. Esta 6 que estabelece o Ambito maior ou menor da dis- cricionariedade administrativa, em todos os casos. £ que"... a0 Exe- cutivo incumbe atuar nos estritos limites da legalidade. E 0 legistador que fornece as balizas de sua conduta”, na li¢aéo de MICHEL TEMER ("0 veto parcial no sistema constitucional brasileiro”, Rev. Procuradoria-Geral — E.S.P., v. 12). N&o bastasse a conatural superioridade hierarquica da lei sobre os atos normativos menores, ai esta o texto expresso da Constituigéo, a prescrever que 0 regulamento s6 se valida, como meio de assegurar 4 fiel aplicagdo da lei (excelente exposigéo do tema se contém na obra de ROQUE CARRAZZA, O Regulamento no Direito Tributério Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, SP, 1980). Resulta evidente, disso, que esta nao s6 0 conforma e delimita, fi- xando-lhe o ambito de eficdcia, como ainda Ihe condiciona o conteiido. Nao basta, perante o nosso direito constitucional, que o regulamento sirva a lei. Ao contrario dos demais sistemas, 0 nosso regulamento hé de ser-lhe estritamente fiel, rigorosamente contido no circulo que o legisla~ dor haja tragado. Destas consideragdes resulta ser inconstitucional o reguiamento nao 86 quando amplia ou restringe o que na lei se contém, como ainda quan- do dispde sobre matérias em que a fie! execugdo da lei ndo o requeira. Com maior razéo, 6 inconstitucional quando a lei haja sido bastante, ou quando nao haja preceito de lei (regulamento auténomo). 7 R. Inf. legist, Brosilia a. 17 n. 66 /jun. 1980 © principio da legalidade, consagrado pelo § 2° do art. 153 da Carta Constitucional vigente, ¢ aplicavel a todo o direito publico. SEABRA FA- GUNDES sintetiza muito oportuna e rigorosamente seu significado: “Todas as atividades da administragao publica sao limitadas peta subordinagdo a ordem juridica, ou seja, 4 legalidade. Qualquer medida que tome o Poder Administrativo, em face de determinada situagao individual, sem preceito de lei que a autorize, ou excedendo 0 ambito de permiss&o da lei, sera injuri- dica. Essa integral submisséo da administragao publica a lei constitui 0 denominado principio da legalidade, aceito univer- salmente, e é uma conseqiiéncia do sistema de legislacao escrita e da propria natureza da fungao administrativa. Por outro lado, istrativa, que cons- titui o objeto das atividades da publica administragao, essencial- mente realizadora do direito, ndo se pode compreender seja exercida sem que haja texto legal autorizando-a ou além dos Ii- mites deste” (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciario, 42 ed. 1967, Forense, Rio, pags. 100/101). i dizer GELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO: “Este 6 0 meio — unico por sinal — capaz, em termos ju- ridico-politicos, de acautelar a liberdade individual. Vale dizer: reserva-se ao corpo legislativo, escolhido pelo povo, o poder de tragar as normas que interferem com a liberdade e a proprie- dade dos individuos, negando-se absolutamente ao Executivo qualidade juridica para estabelecé-las e Impd-las em definitivo” RDP, v. 53). o 2. VI — DESTINATARIOS DAS NORMAS JURIDICAS As normas juridicas genericamente sao voltadas para toda a comu- nidade social. De seu cunho obrigatério, resulta a respeitabilidade de seus efeitos por parte de todos, inclusive dos préprios érgaos do poder. Cada norma, porém, se volta para um especifico circulo de sujeitos, que sdo imediatamente atingides por seus preceitos. Dal a possibilidade técnica de construgées juridicas que conduzem a identificagao dos titulares dos direitos que as normas criam, e dos sujei- tos que, reciprocamente, ficam na posigéo de devedor (precisamente de- vedores de comportamentos positivos, negativos ou abstentivos). Dessa circunstancia decorre a observacdo de LOURIVAL VILANOVA quanto as formas de ordenar os comportamentos humanos, modais deénti- cos, assumidas pelos preceitos juridicos (As Estruturas Légicas e o Sis- tema do Direito Positivo, pag. 35). R, inf, I Brasilia @. 17». 66 abr./jun. 1980 65 Por isso se pode sempre cogitar da util categoria dos destinatérios da lei, como as pessoas cujos comportamentos s4o colhidos pela esfera de eficécia de cada norma juridica, segundo suas fungées normativas, tal como concebidas por KELSEN (Théorie Pure du Droit, pdg. 107). © probiema dos destinatarios (diretos ou indiretos, primarios ou se- cundérios) “... conserva sua importanc . como ponto de convergén- cia de néo poucos outros problemas..." no sdbio dizer do patriarca da atual gerago de publicistas italianos, SANTI ROMANO (Frammenti di un Dizionario Giuridico, Giuffré, Mi 1947, pag. 135). E destinatério da norma o sujeito cujo comportamento 6 visado pre- cipuamente por ela. Para néo incidir nas censuras de SANTI ROMANO, néo supervaloriza- mos 0 alcance da categoria, nem ignoramos que a comunidade, como um todo — inclusive o Estado que a abriga e personifica — é a principal des- tinatéria da ordenagdo juridica global, una e incidivel. Isso, a nosso ver, nao exclui que certos preceitos se destinem a certos sujeitos precipua- mente (sujeitos esses que se identificam pela circunstancia de suporta- rem a execugdo especifica da norma). Assim, de modo geral, pode-se dizer que os destinatarios do direito do trabalho séo patroes e empregados, enquanto tais, isto €, como par- ticipes das relagoes de trabalho. Sao destinatarios do direito comercial os comerciantes, no desen- volvimento de sua atividade mercantil. Sao destinatarios do direito civil todas as pessoas, nas suas relagdes comuns {art. 1.9 do Cédigo Civil: “Este Cédigo regula os direitos e obrigagdes de ordem privada concer- nentes as pessoas, aos bens e as suas relagdes"). Ou, como didatica- mente 0 dizia VICENTE RAO, sem fazer concessdes em matéria de rigor cientifico: “Esse cédigo se destina a reger as relagdes comuns entre as pessoas privadas.”” Os destinatarios da lei processual so os érgtios do Poder Judiciario e as partes perante ele atuando, enquanto partes. Os destinatérios do direito administrativo sdo administragaéo e admi- nistrados, nas suas relagées reciprocas. Destinatérios da lei tributdria so fisco e contribuinte (e terceiros en- volvidos) nas relagées juridicas estabelecidas a propésito do exercicio da tributagao, Destinatario do direito constitucional séo 0 Estado e seus stditos {cidad&o @ terceiros investidos, pela prépria Constituicdo, em direitos). 9s agentes politicos e os servidores publicos, enquanto tais. Os destinatarios das normas se fazem devedores dos comportamen- tos neles prescritos, sob pena de aplicagaéo das respectivas sangdes. 66 R. Inf. legisl. Brasilia @. 17 n. 66 abr./jun, 1980 De modo geral, a aplicag#o das normas 6 feita pelos préprios desti- natarios. Eles 6 que Ihes asseguram sua especifica eficdcia, aplicando- as concretamente, Como sao aplicadas as leis, pelos seus destinatarios? Pelo modo mais singelo: conformando seus comportamentos as exi- géncias imperativas que nelas se contém. A cada dia, a toda hora, estdo os comerciantes a aplicar o direito co- mercial, na sua atividade mercantil, aos contratos que celebram, aos ne- gécios que realizam. Sempre e ininterruptamente, empregadores e empregados aplicam o direito do trabalho ao contratar ou ao executar a lei ou os contratos de trabalho nela repousantes. & pelo normal desempenho de suas atividades juridicamente reguladas que aplicam e dao eficacia @ lei os seus desti- natérios. Constantemente os érgdos judiciais e partes aplicam 0 direito judi- cidrio, pautando esses comportamentos pelos preceitos nele contidos. Na nossa vida comum privada, a todo instante estamos dando eficd- cia e aplicacao a lei civil, nas nossas relagées com nossos familiares, vizinhos etc. Quanto ao direito constitucional, o Estado, existindo e funcionando the da vida, aplica-o; e o cidad&o o vivifica exercendo as suas prerroga- tivas constitucionais. 1} Dinamica da aplicagao do direito Que prevé, porém, o sistema juridico, para os raros e estatisticamen- te excepcionais casos em que os comportamentos dos destinatarios dis- crepam do preceituado no direito, contrastam com suas exigéncias man- damentais? Nas sociedades civilizadas — desde que superados os tempos do exercicio forgado das proprias razées e ultrapassado 0 periodo da justica privada, com a assungdo, pelo Estado, do monopélio do uso dos instru- mentos de coagao — em todos os casos de dissidios em torno da apli- cago do direito, devem os interessados pedir ao Judiciétio que ponha termo & contenda, aplicando 0 sistema juridico, mediante um julgamento em que se defina qual exatamente o direito aplicdvel ao caso (CELSO BASTOS, Curso de Direito Constitucional, pag. 178). Em todas as hipéteses, com a tinica excegao do direito administrativo — por motivos que logo se evidenciaraéo —, entre o comando da lei e o destinatario, ndo se pode interpor nenhum outro critério relacional, Nao cabe a intermediagado de nenhum dérgao, pessoa ou fungao publica ou pri- vada. A lei cria imediatamente os direitos, estabelece os deveres, engendra as obrigagdes. R, Inf, logisl, Brasilia a. 17 n. 66 ebr./jun. 1980 7 Desde o instante em que incida a lei — pela ocorréncia dos fatos previstos em sua hipétese — os seus destinatérios j& sao investidos em direitos e deveres, j4 se envolucram em relagées juridicas. Quando muito, em uma ou outra hipétese requer-se um ato declaratério. Nao mais. Qualquer norma infrategal, portanto, que pretenda intermediar entre 0 comando legal e o seu destinatdrio ou ampliar& o seu conteddo, sentido e alcance, ou o reduzir4. Estas duas alternativas s4o incomportéveis no nosso sistema. Estas consideragdes impdem, portanto, verificar a impossibilidade de regulamentagao das leis civis, processuais, comerciais, trabalhistas, penais etc. Apoiado em Idénticas razdes CELSO BASTOS sustenta: “Dai ser impossivel a regulamentagdo de leis como o cé- digo civil, penal etc., que nao envolvam qualquer participacao. da administragdo no cumprimento de suas normas” (Curso de Direito Constituclonal, 2? ed., pag. 177; tal 6, outrossim, 0 pensa- mento de SERGIO FERRAZ, op. cit.) Os destinatérios — no nosso sistema — recebem direta e imediata- mente os seus comandos, interpretam-nos e os aplicam diretamente, ar- cando com as conseqiiéncias de suas decisées. No caso de conflito de interpretacao entre os destinatarios, o sistema prevé o necessério e obri- gatério recurso ao Judiciério como Unica forma de solugae do litigio (até mesmo os casos de desforgo imediato nao deixam de ficar sob a censura judicial, embora posteriormente). 2) Leis cujo destinatério 6 © Poder Executive No nosso sistema juridico — que consagra como principio baésico o da tripartigao do Poder — adotou-se estrita formulagdo que confere ao Poder Executivo a condigao de destinatério por exceléncia das leis de direito administrative. Estas estabelecem em seu favor uma série de di- reitos e pretenses, bem como deveres e obrigagdes diante dos admi- nistrados. € evidente que tais direitos s&o titularizados pelo Estado; porém, a Constituigao prescreve que o seu ramo executive — da expressiva lin- guagem do direito norte-americano — 6 o érgdo que o representa, quando a matéria da lei 6 administrativa. A peculiar disciplina constitucional do relacionamento entre o Estado © os cidadaos (e terceiros, também titulares dos direitos individuais) 6 ainda o mecanismo de freios e contrapesos, que peia o Executivo, engen- dra peculiaridades que ensejam e mesmo postulam a intermediagao de preceitos regulamantares entre a lei e os seus destinatérios (administra- 0 e administrados). Outras vezes, 0 destinatério da lei 6 © administrado, enquanto tal. 68 R. Inf, legisl. Brosilia a, 17 m. 66 obr./jun. 1980 Nesses casos, também, se faz sentir a oportunidade de preceitos, con- vencionalmente designados regulamentares, em yirtyde de provecta tra- digao. Como estas normas tém significativa importancla no sistema juridico e engendram miltiplas relagdes entre administragdo ¢ administrados, im- porta conhecer-Ihe o regime constitucional, em seus tragos basicos e im- plicagdes fundamentais. 3) O argumento a fortiori Nem se escusa 0 abuso consistente na edicgdo de decreto regulamen- tar excessivo da sua esfera propria, com o argumento de que o Presi- dente da Republica pode expedir decretos-leis e, pois, podendo o mais, cortamente pode o menos (v., a propésito, ROQUE CARRAZZA, O Regu- lamento..., cit.) Tal primrio argumento nao mereceria sequer consideragao, nao fosse © estado critico e alarmante de nossa jurisprudéncia (v. nosso Decreto-Lel na Constituig&o, Ed. Revista dos Tribunais, S. Paulo). A prevalecer esse nivel primario de argumentacao, entao poder-se-ia dizer que 0 Supremo Tribunal Federal, j4 que pode modificar decisdes de outros tribunais do Pais, com maior razao poderia condenar, em instancia origindria, qualquer pessoa, sem processo, as penas maximas. O Legislative — nessa ordem de raciocinio — j4 que pode fazer leis, poderia praticar atos administrativos quaisquer, bem como revogé-los @ modificd-los ainda praticar atos judiciais. .. Nem se alegue que hé excesso de formaligmo indtil, quando se pro- pGe exegese estrita ao regime juridico da faculdade regulamentar, como © fizemos. VICTOR NUNES LEAL — com sua autoridade de mestre do direito pu- blico e magistrado consagrado de nossa Suprema Corte —, a propésito da diferenga de regimes juridicos entre o decreto-lei e o decreto regula- mentar, no regime francamente autocratico de 37, j4 lecionava: “No tocante, porém, a distingao entre lei @ regulamento, isto 6, para se saber se o Presidente da Republica, podendo expedir sobre © mesmo assunto um decreto-lei ou um regulamento, pro- mulgou uma norma legal ou uma simples norma regutamentar, 6 imprescindivel a invocagéio da competéncia constitucional. So o Presidente expede normas com fundamento nos arts. 11 ou 74, a, tais normas serio consideradas apenas regulamentares, @ a sua obrigatoriedade fica na dependéncia de confronto com as disposigdes legais em vigor. Se, entretanto, a competéncia in- vocada for a dos arts. 12, 13, 14 e 180, teremos normas legais, cuja aplicagdo sé poderé ser negada por motivo de inconstitu- cionalidade” (Problemas de Direito Pdblico, Ed. Forense, pag. 69). 17 nm, 66 abr./jun. 1980 69 4) Panorama atual Tal 6 a catadura tedrica do tema. Esse 6 seu delineamento tedrico. Al suas linhas mestras. Entre suas postulagées e exigéncias e a nossa pratica efetiva ha uma distancia abissal. Nesse espago grassam indiferenga, acomodagao, omis- 840, ignorancia, complacéncia e conformismo. Como consegiléncia, os direitos expressivos da liberdade juridica sfio postergados, negados, condicionados, sufocados e anulados pelo Executivo. © Legislative assiste as usurpagdes aparantemente impotente, des- crente da forga que ha de haurir na representagaéo de que é titular. As classes juridicas desanimaram da luta pela valorizagdo das instituigdes, renunciando & sua missdo, salvo honrosas excegdes (6 o caso da OAB). O povo parece ja nao crer na restauragao dos valores constitucionais. O Judiciério, tolerante — quando nao conivente — nao se preocupa mais com o cunho sacro da sua missdo precipua de assegurar a supremacia da Constituicao. Nos centros de estudo juridico limitam-se docentes e discipulos a cultivar uma destreza técnica pedestre e mesquinha, como se fosse pos- sivel aos pedreiros ignorar que a perfeic¢déo de uma parede depende vis- ceralmente dos alicerces sobre que a mesma repousa. E nesse clima morno dissolvem-se as instituigdes, construidas a tio duras penas, ao longo de tanto tempo, de modo to arduo. Multiplicam-se érgaos administrativos arrogando-se fungdo regula- mentar, mas de fato, na realidade, exercendo fungdo legislativa. Reiteram- se delegagées inconstitucionais, por parte do Legislativo. Multiplicam-se usurpagées de fun¢ao pelo Executive, com freqién- cia assustadoramente crescente. Com tudo isso, desaparecem as salvaguardas da liberdade, que, des- sarte, deixa de ser direito, para se transformar numa concess4o, numa outorga precéria, instével e, por isso, revogavel ao talante dos grupos que episodicamente empolgam o poder, por mecanismos n&o institucionais {no sentido lidimo dessa palavra, conspurcada na nossa pratica e sofrendo diabélico processo seméntico). Todas as deformagées e abusos — que nossa pratica enseja desgra- gadamente ver —- decorrem de um actmulo de fatores que insta superar, para restabelecer 0 prestigio da ordem juridica e a restauragdo do clima de segurancga e liberdade a que legitimamente aspiramos; a que temos direito como povo. Primeiramente, salientem-se as gravissimas deficiéncias do nosso en- sino juridico, onde ao lado do despreparo de pretensos professores, se desenvolve, com a complacéncia das classes juridicas, um curriculo que, 70 R. Inf, legisl, Brasilia a. 17 n. 66 abr./jun. 1980 entre outros graves defeitos, prevé o ensino de s6 um ano de direlto cons- titucional, ao lado de 4 anos de direito clvil, 3 anos de direito processual, 3 anos de direito comercial, inumeros de pratica forense e inutilidades enganosas, que sé se prestam para obscurecer os valores institucionais basicos. Ao lado disso, o clima de desanimo, descrédito e sentido de inutili- dade de qualquer esforgo, decorrente dos regimes de arbitrio, que carac- terizaram os periodos discriciondrios que tém pontilhado nossa evolugdo institucional. Também tem influenciado negativamente 0 conhecimento e aplicacao do nosso direito constitucional uma falsa valorizagao do direito comparado. Ao conirério de se meditar sobre o direito estrangeiro, para fecundar um estudo critico de nossas instituigdes, escritores apressados transplantam sem critério institutos, problemas e solugées que nada tém a ver com nosso texto. S6é assim se explica o prestigio da corrente que estuda o regula- mento auténomo, instituigdo que ndo pode existir no Brasil, 4 luz de nossas sucessivas Constituigées. Nessa ordem de idéias, surge a teoria, amparada pelo direito positivo de outros paises, de Executivo forte, de tao desastrosos e deletérios efeitos na nossa pratica constitucional e na nossa jurisprudéncia. Isto tudo forma o pano de fundo dos preconceitos interpretativos, que AGUSTIN GORDILLO denuncia com tanta propriedade, ao expor as ‘‘teo- rias estadistas do direito piblico”, no seu excelente Principios Gerais de Direito Publico (Ed. Revista dos Tribunais, S. Paulo, 1977, pag. 50). 5) Unicidade de tonte do direito Uma notavel garantia que aos administrados oferece nosso sistema constitucional esté na objetividade com que se trata da questao das fon- tes do direito. Resulta claro da leitura do texto constitucional — em beneficio da seguranga dos cidaddos @ terceiros submetidos & ordenagao estatal — que 6 0 Legislativo pode emanar normas genéricas e abstratas conten- do preceitos vinculantes. Por outro lado, a tessitura democratica infor- mativa do processo de formagao das leis garante ndo sé ampla discussao dos projetos, com sua conseqiiente publicidade, como possibilidade de colaboragao, critica, adverténcia e organizagéo de movimentos de es- Clarecimento ou mesmo pressdo sobre os legistadores. E 0 processo con- traditério ou dialogal de elaboragdo do direito, a que to enfaticamente sa tefere FRANCO MONTORO, Isto se deve passar de tal maneira que jamais possam sobreviver sur- presa, desigualdade e menos ainda arbitrarledade, contidas no bojo das leis (v. ALBERTO XAVIER, Os Principios da Legalidade e Tipicidade da Tributag&o, Ed. Revista dos Tribunais, S. Paulo, 1978). Completa o quadro a circunstancia de haver um sistema estabelecido de controle judiciario da constitucionalidade das leis. R. Inf, legisl, Brasilia a. 17 m. 66 abr./jun. 1980 71 Por esse modo, se pretende ver realizado na sua plenitude o essen- cialmente postulado pelo principio republicano, posto como rigidissimo alicerce de todo o sistema (art. 1°, combinado com art. 47, § 19). Nesse contexto, ao administrado — para saber de seus direitos e de- veres — basta estar atento ds Unicas fontes normativas do direito: os 61- gaos legislativos, federal, estadual e municipal. Quanto aos regulamentos, sabe-se que sé as leis administrativas que 0s comportam ou requeiram poderao ser deles objeto; e assim mesmo, 86 nos seus estritos limites. Nessa esfera objetiva, segura e@ simples, devia movimentar-se de- sembaragada e tranqiilamente o administrado, exercendo sem risco de surpresa seus direitos concernentes a vida, liberdade e propriedade. Operacionalmente, assim, a pedra de toque de sua tranqillidade cida- da deve estar na unicidade de fontes normativas e conseqiiente unicidade de normas delas promanadas (unicidade por pessoa juridica de capacida- de politica: uma s6 fonte, na Unido: 0 Congresso; uma sé fonte nos Es- tados: Assembléia; uma s6 fonte no Municipio: Camara de Vereadores). Pois, que nos oferece a prdtica do nosso sistema? Que se vé da vi- véncia diuturna? Legislam, e néo s6 em matéria administrativa, inumeros 6rgdos, tais como conselhos, comissées, departamentos etc. Usurpam fungao tegislativa autarquias, empresas pUblicas e outras pessoas da administragao indireta. Delega-se abusivamente faculdades normativas Inaugurals a toda sor te de érgdos ¢ funcionérios. JA néo sabe o administrado donde virfo os préximos constrangimentos. Os deveres se multiplicam. Os comandos se contradizem, se superpdem, se somam. O administrado se sente Inseguro, indefeso. A multiplicidade o sur- preende. Desaparece toda veleidade de participagdo. Nao ha sequer apa- réncia de lealdade do Estado, no fazé-lo saber do que se trama, que se the pretende, quo se Ihe vai exigir. Nesse clima, desaparece qualquer idéia de direito. Nao se pode falar em sistema, Nao cabe cogitar de coeréncia. Muita vez o administrado sé toma conhecimento de uma pretenséo administrativa, ao ser punido, por violagao de um preceito de cuja existéncia nem sequer tinha possibili- dade de desconfiar. Com isso se inibe o produtor; se castiga a iniciativa; se sufoca a critica: se anula a simples vontade de colaborag4o. Assim se aniquila a liberdade, precisamente o bem juridico em torno do qual se erigiu a pré- pria nogao de Constituigao. A Unica certeza, nesse clima destruidor, 6 a do agigantamento do arbitrio, desenvoltura da prepoténcia, animagaéo da desigualdade, da cor- Tupgdo, da concussao, do peculato. 72 R. Inf. legisf, Brosilia a. 17 n. 66 obr./jun. 1980 Nessa balbirdia, a critica, a colaboracao néo cabem. A deslealdade da auloridade, acostumada A impunidade, se faz regra. Desaparece a legalidade, olvida-se a relagdo de administragao. Desvanece-se o espirito republicano. Nesse clima, 0 direito a informagéo — consectério da liberdade de imprensa — perde o sentido; o controle parlamentar perde eficdcia; o contraste judicial se amesquinha. Dar combate ao arbitrio, conter a forga desregrada do Executivo, moderar a agdo despotica da administragao (tarefa hercilea) parece im- possivel e inutil. Impossivel pelo vulto, complexidade e penetragao dos vicios. Inutil porque tudo isso é mera conseqiiéncia, simples sintoma. © grande mal, fulcro de todo esse desconcerto, esta na impunidade das usurpagées primeiras, na acomodac4o do Leg'slativo, omisso no seu dever de vigilancia, e na autocastragao do Judiciét ao recusar-se a pér em primeiro lugar, como de seu dever, o assegurar a supremacia da Constituigéo. Vil — CONCLUSAO Gonceder — como nossa infeliz pratica o vem fazendo — a compe- téncia regulamentar o prestigio que vimos concedendo, no Brasil, de 30 anos para ¢4, 6 retornar aos padrdes absolutistas, ¢ regredir & concen- tragéo de poderes, com total rejeigéo dos principios e instituigdes que fomos penosamente conquistando, ao longo de 4rdua e cruenta luta ja sesquicentendria. Cruas, porém argutas, as consideragoes que AGUSTIN GORDILLO tece sobre a crise do direito piblico que vamos conhecendo, tese essa que se desenvolve paralelamente a intensificagao do despotismo e desen- voltura do arbitrio. Sua meditagdo nos atinge a todos, cada qual na medida de sua res- ponsabilidade. Por isso, atinge os magistrados mais candentemente: eles tém maior responsabilidade nisso. Escreve ele, no seu Principios Gerais de Direito Pablico, cuja tradugdo tivemos a honra de prefaciar: “Neste aspecto pode encontrar-se amitide — em livros, deci- sdes, acérdaos — variados reflexos de uma certa insensibilidade humana e uma certa insensibilidade em relagao a Justiga. Quando quem analisa a controvérsia concreta entre o individuo e o Estado se deixa levar pela comodidade da solucdo negativa para o pri- meiro; quando na duvida condena, resolvendo contra o particular ou administrado; quando na dificuldade do problema juridico se absiém de aborda-lo e o resolve, favoravelmente, ao poder pi- blico, certo de que essa simples circunstancia the da alguma cor de legalidade; quando cria, propaga e desenvolve supostas teo- rias que sem fundamento nem andlise dao estes e aqueles pode- res ao Estado; quando desconfia, evita @ nega os argumentos que em certo caso parecem reconhecer um Ambito de liberdade; R. Inf. togisl. B @. 17 n. 66 obr./ju 980 73 quando como os débeis se inclinam para o sol dos poderosos — no caso o Estado — entdo, esta sendo destruida uma das mais belas e essenciais tarefas do Direito Publico; a protegdo da liber- dade humana. Mais tamentavelmente ainda é que essas atitudes nao cos- tumam ser defendidas; ninguém diz abertamente que o Estado & tudo e o individuo nada; ninguém pensa assim, serlamente. Inclusive & possivel que se expresse com veeméncia sobre os abusos dos poderes publicos, e o respeito as garantias indivi- duais... porém de que vale essa eloqiiéncia, se quando se tra- ta de dar uma solugaéo a um problema concreto — ha uma pe- quena questéo que no decide a vida e a morte do individuo, mas que representa um verdadeiro conflito entre autoridade e individuo — s&o esquecidas as declamag6es @ se resolve fa- cilmente que esse individuo nesse caso nao tem razéo? De que valem aqueles principlos, se a seguir em cada matéria e questéo de pormenor, se esquece, contradiz e destréi? Este é um dos principais problemas politicos que afetam o Direito Publico.” Escreveu Seabra Fagundes, no seu cléssico controle que “o direito escrito, tendo a sua mais forte razéo de ser na necessidade de exclulr © arbitrio do desenvolvimento das relagdes socia‘s, pressupde necessa- riamente timitagdo de atividades, segundo os seus textos... sendo a fungdo administrativa... essencialmente realizadora do direito, néo se pode compreender seja exercida sem que haja texto legal autorizando-a, ou além dos limites deste” (pag. 107). Expedir regulamento sem lei (ou contra a lei) 6 atentar contra a Cons- io (art. 82, Vil). Acaté-lo, sem resistir, 6 compactuar com a nega- go da ordem juridica. Aplicd-lo, 0 Judiciério, importa consagrar o despotismo e nagar o préprio fundamento de sua majestade, destruir a propria norma que Ihe atribui a misséo sagrada de velar pela Constituigao. A vista do exposto, sugerimos que a Ordem dos Advogados do Brasil, reunida em Congresso, denuncie como atentatério da liberdade e demais direitos assegurados na Constituigao os regulamentos inconstitucionais do Chefe do Executivo: as usurpagdes de fungao legislativa, ou (0 que 6 mais grave) as delegacoes legislativas que se vém multiplicando assustadora- mente: as omissdes do Legislativo, no elaborar leis que preencham as verdadeiras necessidades sociais e administrativas e leis que assegurem Punigao aos excessos denunciados; aos advogados, assessores juridicos, consultores e demais exercentes de fungées juridicas que denunciem, se insurjam, resistam aos abusos manifestados a propdsito de cada caso concreto; ao Judicidrio, para que assuma, até as ultimas conseqiiéncias, a fungao de guardiao da Constituicaéo e dispensador da protec&o das leis a todos que batam as suas portas. E aos formadores da consciéncia juridica, que déem a devida énfase ao estudo do direito constitucional. Th R. Inf, legisl. Bras 17 n. 66 abr./jun, 1980

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