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SERIE INICIAGAO CIENTIFICA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE CIENCIAS SOCIAIS LABORATORIO DE PESQUISA SOCIAL Ariana Timbé Motta Carlos Pires Madeira Emesto Aranha Andrade José Renato Perpétuo Pontes Luciana Gongalves de Carvalho Paulo Castiglioni Lara Fotografando a Moradia Popular no Rio de Janeiro N°6 1995 ‘Alunos integrantes do Nucleo Audiovisual de Documentagao - NAVEDOC do Laboratério de Pesquisa Social Prof* orientadora: Ana Maria Galano Editoragao grafica: Regina Céli Kochi Rio de Janeiro, agosto de 1995 SUMARIO Fotografando a Moradia Popular no Rio de Janeiro: um projeto experimental Ana Maria Galano...0.........scssseeesee 3 A Lei e os Costumes numa Favela da Zona Sul do Rio de Janeiro Ernesto Aranha Andrade, Ariana Timbé Motta, Paulo Castiglioni Lara......11 7 a vo Utilizagao do Espago Privado e Coletivo num Cortigo Carioca Carlos Pires Madeira, José Renato Perpétuo Pontes... 30 Retrato Falado de um Loteamento Periférico Luciana Gongalves de Carvalho. 23D Fotografando a Moradia Popular no Rio de Janeiro: a um projeto experimental Prof Ana Maria Galano “fotografando" do titulo deste projeto nunca teve intencao metaférica. Desde 0 inicio, pretendeu-se utilizar fotografias durante diferentes etapas do proceso de investigagdo. Talvez tenha sido pretensto demasiada querer associar (a) registro fotografico exigindo de capacitagdo técnica; (b) levantamento e andlise critica de bibliografia sobre usos de imagens fixas, sobre varios tipos de moradia popular e questdes relativas ao tema; (c) observagao e entrevistas, para efetuar o treinamento em praticas de pesquisa de alunos de graduagdo. Em certos momentos duvidei que conseguissemos chegar aos resultados expostos nesta publicagdo. E claro no entanto que trazem as marcas de um trabalho experimental : Fotografando a Moradia Popular nd Rio de Janeiro foi o primeiro projeto de pesquisa em que se envolveu conjunto dos alunos integrantes do Nicleo Audiovisual de Documentagao e marcou o inicio de suas atividades sistematicas de Iniciagao Cientifica, No Rumo da Moradia Popular © tema da moradia popular impés-se devido a um conjunto de circunstincias que enumero para esclarecer o proprio andamento do projeto. Em 1990, uma aluna do Mestrado em Sociologia e um aluno recém- graduado em Ciéncias Sociais manifestavam interesse em estudar respectivamente "moradores de rua" (Martins, 1993) e transformagdes na arquitetura de vilas operdrias. Alguns alunos de graduacio também faziam tentativas de aproximagao de moradores de outros tipos de habitago popular. Quase sempre, no entanto, cionais nfo estavam na origem daquelas tentativas © s6 progressivamente questdes hi Machado, professor do vieram a tornar-se 0 objeto de seus estudos. Luis Antoni Departamento de Ciéncias Sociais, aceitou participar da discussio dos relatos, observagdes ¢ problemas que 0s alunos traziam de suas incursdes por favelas, cortigos ¢ loteamentos periféricos. Paralelamente as discussdes, L.AMachado ministrou a disciplina Sociologia Urbana no curso de graduagao em Ciéncias Sociais, a qual assistiram alunos interessados pela moradia popular. Foi durante discussdes em seminarios do Nucleo e em sala de aula que se definiram as quest&es dos trés sub-projetos abaixo relacionados 1- A Lei e os Costumes numa Favela da Zona Sul do Rio de Janciro Movido por grande exasperagaio com o resultado da eleigo presidencial de 1989, quando Fernando Collor foi eleito, 0 aluno de graduago Ernesto Aranha Andrade subiu 0 morro, literalmente, com 0 objetivo de entendér o voto popular ou, pelo menos, 0 de moradores de uma favela da Zona Sul do Rio de Janeiro, Ao fim de alguns meses, ¢ bastante desanimado, contou-nos que a conjuntura politica nacional nfo empolgava os moradores Em resumo, nio se falava de "politica", Mas, para descobrir isso, conhecera pessoas, tomara cerveja com uns e outros, ¢ assistira reunides da Associagio de Moradores da favela. O ie de lista de desenrolar das reunides aborrecialhe particularpente: havia uma esp chamada por nimeros - correspondentes aos de “lotes" - e os habitantes apresentavam questdes pendentes em seus "lotes” respectivos. A partir do relato acerca daquelas reunides propusemos a Ernesto Aranha Andrade que tentasse ir além do aborrecimento com alguma coisa que Ihe parecia " burocratica", procurasse entender como um certo modo de proceder tornara-se rotineiro ¢ os significados que poderiam ter a referida rotina. Ariana Timbé Mota ¢ Paulo Castiglioni Lara, alunos de graduagio em Ciéncias Sociais, que, a principio, apenas acompanhariam 0 trabalho de campo, acabaram responsaveis por grande parte do tratamento dos dados coletados e da redago do texto para _publicagio. 2- Utilizagio do Espago Privado e Coletivo num Cortico Carioca Foi a partir de forte impressao plastica, imediatamente registrada em foto, que José Renato Perpétuo Pontes, entio aluno do curso de graduagao em Comunicagio, da UFRJ, nos anunciou seu interesse por estudar a utilizagao do espago de cortigos do centro do Rio de Janeiro, Com éle, Carlos Pires Madeira, aluno da graduagiio em Ciéncias Sociais, compos a dupla que, por recomendagio de L.A.Machado, langou-se na reconstituigio do tipo-ideal * de cortigo da virada do século 20 e sua comparagio a um cortico do atual fim de século; STS SUC R CSS S SSSR SUES RESUS CEES ESE ESSEC EEL ULL UEESS 3 - Retrato Falado de um Loteamento Periférico Finalmente, Edna Mendes, aluna da graduagio em Ciéncias Sociais, disse-nos que ja conhecia moradores de um loteamento vizinho ao conjunto habitacional onde residia, na Zona Oeste. O loteamento representava ento para a aluna um concentrado de caréncias, Leituras sobre loteamentos e periferias, e conversas com moradores, deslocaram seu cixo de atengdo para as vantagens comparativas que os moradores do loteamento identificavam em seu local de residéncia, Ainda assim, os efeitos da proximidadc € do habito revelaram-se a0 vermos suas primeiras fotos : no loteamento, havia criago de animais e pequenas plantagoes; caminhos irregulares, largos e arborizados, como os de areas rurais, a que ela nunca se referia nem os via. O desenvolvimento deste sub-projeto ja estava bastante adiantado quando Luciana Gongalves de Carvalho veio a participar dele. Sua estranheza inicial com a paisagem e os costumes logo trouxe npvos elementos para a analise de priticas culturais do lugar. Mas, quando se viu obrigada a conduzir sozinha a investigacao, ressentiu- se de sua insergao tardia na equipe do projeto. Todos estes alunos frequentaram seus respectivos locais de investigagao durante periodos de aproximadamente 2 anos. treinamento de Iniciagio Cientifica através destes projetos compreendeu alunos cursando diferentes periodos do curso de graduacio em Ciéncias Sociais Para evitar que o treinamento se interrompesse & medida que os alunos concluissem a graduagio, propus que trabalhassem em duplas integradas por alunos de niveis diferentes.Ainda assim, o inevitavel "desfalque" nas duplas - alguns alunos afastaram- se do projeto ao ingressar em cursos de pés-graduagdo (Emesto Aranha Andrade, no curso de Pés-Graduagio em Antropologia, da UFRGS; José Renato Perpétuo Pontes ¢ Luciana Gongaves Carvalho, no curso de Pés-Graduagdo em Sociologia, do IFCS/UFRJ) ou ao comegar atividades profissionais (Edna Mendes, Secretaria de Assuntos Sociais, de municipio da Baixada Fluminense) - levou a rupturas de contactos ja estabelecidos ou a dificeis adaptagdes a estilos muito pessoais de trabalho. Da Fotografia Os alunos que procuravam integrar-se ao Nuicleo Audiovisual de Documentagao tinham marcado interesse por trabalhar com imagens, 0 que em geral significava fazer fotos e videos; discutir questées muito diversas sobre linguagens e meios de comunicagio audiovisuais, Embora nio exclusiva, a énfase na fotografia decorreu de fatos de natureza diferente: 0 apdio dado por Howard Becker (Becker 1981;1986), durante sua estadia no Brasil em 1990, & iniciativa de associar treinamento em pesquisa sociolégica, priticas de anilise e produgio fotografica; o interésse suscitado pela iniciativa entre fotdgrafos brasileiros, em particular Milton Guran (Guran 1992), que dispuseram-se a fazer palestras ¢ participar de seminérios; a instalago de um laboratorio fotografico e a disponibilidade de recursos para aquisigio de filme, papel e produtos quimicos, gracas ao financiamento do programa Universidade Nova, do MEC, e do Programa de Iniciagao Cientifica, pela Fundagéo Ford. A principio sob a forma de seminario do Nucleo Audiovisual de Documentago ¢, depois, como disciplina optativa do curso de graduagio em Ciéncias Sociais, orientei a discussio de textos (ver Anexo) sobre usos de fotografias em pesquis: sociolégicas, exercicios de andlise de fotos de arquivo e de documentagao fotografica simultanea ao processo de observagao dos projetos do Fotografando a Moradia Popular no Rio de Janeiro, ‘Um nico curso de iniciagio a técnicas fotograficas foi ministrado por Paulo Castiglioni Lara, aluno integrante do Nicleo. Alguns alunos ja tinham conhecimentos iniciais © procuraram seguir cursos profissionalizantes, como 0 do SENAC. Outros faziam fotos ha bastante tempo e abriram novas perspectivas de aprendizado através de sua participagio em congressos promovidos por associagdes de fotdgrafos. De resto, a possibilidade de acesso permanente a um laboratério razoavelmente equipado contribuiu para que adquirissem empiricamente habilidades para fazer o que s6 se aprende mesmo com a pritica 6 PULSES SSESSSSSSED Das muitas observagdes possiveis sobre o uso de fotografias ao longo do desenvolvimento dos sub- projetos de pesquisa, destaco apenas as relativas a suas préprias reflexes nos textos a seguir apresentados: ‘© a surpresa provocada pelo fato de que ao fazer fotos em locais e de pessoas que nio conheciam previamente muitas vezes virem facilitado seu acesso a éles, em lugar de intimidar ou atrair hostilidade, como temiam; * a constatagio do prazer com o fato de ser fotografado e, face a recursos materiais limitados, os problemas decorrentes de pedidos de exemplares de fotos pessoais; ‘© questées éticas relativas a identificagdo de entrevistados, ou de quaisquer pessoas entrando no enquadramento das fotos, suscitadas pelo dificil anonimato de quem é fotografado; © questdes éticas relativas & objetividade da informago ¢ do registro fotografico, quando entrevistados solicitavam que suas fotos fossent feitas em condigies diferentes ( roupas, calgados, penteados, locais,etc) das de sua vida quotidiana; * a conversio do ato de fotografar e de fotos ampliadas em meio de afirmagio de identidade - " alunos fazendo um trabalho de pesquisa para a Universidade " - em situagdes de tensa desconfianga e ameaca de contlito; * (0 uso de fotografias durante entrevistas agilizando seu desenrolar: por um lado, quem chega com fotos, demonstra que, de algum modo, ja conhece locais ¢ priticas sobre os quais quer conversar; por outro, a leitura, ou versio do contetido, das fotos pelo entrevistado pode suscitar questdes até entio imprevistas, © as fotos produzidas a partir da incitagdo de moradores - focalizando locais ou praticas, utilizando angulos ¢ enquadramentos sugeridos por éles - levaram & redagio de textos que contrastam com os resultados obtidos através de entrevistas convencionais gravadas. A medida em que os alunos ampliavam sua cultura visual e que aumentava o numero de. fotos que produziam, tornaram-se mais exigentes com a qualidade, intensidade, impacto, interésse,etc de sua produgao fotogrifica. Apesar disso, 0 aproveitamento das fotos como fonte de informagdes sobre o tema e a questio estudados nao se deu espontanea € automaticamente, Ao contrério, o treino para a leitura das fotos pelo proprio autor revelou as mesmas dificuldades que o treino da expresso verbal ¢ o da redagao de textos. Talvez, neste caso, seja inevitavel a competigao entre linguagens, mas isso j é outro assunto, Tanto mais que, em 1994, acrescentou-se ao projeto icial de pesquisa a realizagdo do documentério em video E por aqui vou ficando..( NAVEDOC/CPM/UERJ) que, por sua ver, veio suscitar outras questdes sobre a relagdo entre suporte material, linguagem ¢ apreensio de realidades subjetivas. ‘A curiosa origem da motivasdo pela problematica habitacional, ou da evolugéo neste rumo, ¢ as diferentes atividades de ensina sobre " usos da imagem e pesquisas em Ciéncias Sociais" foram consignadas por tres razBes, A primeira : a longa duragao do Projeto (1990-1994), uma vez que os alunos iniciaram leituras sobre moradia popular ao mesmo tempo em que, aos poucos, definiam seus objetos de estudo. A segunda : as eventuais vantagens de uma orientag#o quase pessoal dos alunos, de um certo desaffo que consttuiu a definigao progressiva de objetos de estudo em seminérios e em sala de aula, de uma quase aventura de manter trés sub-projetos simulténcamente, etc revelam-se hoje incompativeis com a institucionalizagdo do processo de Iniciaglo Cientifica. A terceira: 0 interesse que possa ter 0 registro de uma experiéncia que, se por s atraente, pelo mesmo motivo requer a descoberta de procedit stematicos € fotineiros para a Iniiago Cientifica, sem que se perca o gosto pela produgio de conhecimento, sua expresso em palavras e imagens. Sem a cooperagio de L.A. Machado, € sua conhecida competéncia no trato da problematica da hat 40 urbana, nfo teria sido possivel conduzir este conjunto de investigagdes. Cabe-me, no entanto, a responsabilidade pela condugio do Projeto em seus érros e acertos. FFT S CSCS SSE EUUUEUUUUEL. o Anexo Bibliografia de seminarios e cursos : . Agee, James e Walker Evans 1988. Let Us Now Praise Famous Men. Boston: Houghton Mifflin Barthes, Roland 1984. A Cémara Clara. Rio de Janeiro; Nova Fronteira Becker, Howard S. 1981. Exploring Society Photographically. Illinois: Northwerstern University Press 1986. Doing Things Together. Illinois: Northwerstern University Press - Benjamin, Walter. 1983. "L' ocuvre d'art a l'ére de sa ee technique" in Essais 1935-1940 Paris: Ed. Denoel 1985. " Pequena Historia da Fotografia" in Favio R. Kothe (org,) Walter Benjamin, Sao Paulo : Ed. Atica - Bourdieu, Pierre ef al. 1965. Un Art Moyen: essai sur les usages sociawe de la photographie. Pats: Les Editions de Minuit . Collier, John, Jr. 1967. Visual Anthropology: Photography as a Research Method. New York : Halt, Rinehart and Winston - Cunha, Manuela Carneiro da 1988. "Olhar escravo, ser olhado" in Paulo Cesar Azevedo e Mat io Lissovsky ( orgs.) . Freund, Giséle 1974. Photographie et société. Paris: Editions du Seuil » Guran, Milton 1987. 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Geralmente referida por seus moradores apenas pelo nome de Cabritos a favela tem peculiariedades como 0 fato de suas trés principais vias de acesso (Ladeira dos Tabajaras, Rua Euclides da Rocha e Rua Real Grandeza) serem pavimentadas e contarem com diversos servicos publicos como energia elétrica, rede telefonica, rede de agua ¢ esgoto, além de transporte por “kombis” para a subida e descida, Tais caracteftsticas fazem alguns moradores dizerem de seu local de habitagao que é “favela de classe média”, Depois de constatarmos ter havido um periodo de intenso contato entre moradores da Favela dos Cabritos ¢ instituigdes que Ihes deram assessoria (Obra Social da Paréquia Santa Cruz de Copacabana; Associagio dos Moradores do Morro dos Cabritos; Centro de Defesa dos Direitos Humanos - Bento Rubifo) decidimos estudar a atuagio daqueles agentes e introdugao de encaminhamentos técnicos e/ou juridicos, como meio de solucionar problemas relativos a moradia. O primeiro contato com moradores da favela foi estabelecido por Ernesto Aranha Andrade em 1990, Em seguida, nés, Ariana Timbé Mota e Paulo Ca: glioni Lara, também alunos de graduagao em Ciéncias Sociais, comegamos a acompanhi-lo. Mas, no final de 1992, quando Ernesto afastou-se do projeto, ao ingressar no curso de Mestrado em Antropologia da UFRGS, nao pudemos mais voltar a favela. S6 éramos identificados como pesquisadores enquanto estivamos em sua “companhia. Mas, além de seu afastamento, outro fato determinou o fim do trabalho de campo: a favela foi se tornando um local onde ocorriam cada vez mais episddios violentos, aparecendo na imprensa frequentes noticias sobre confrontos armados entre policiais traficantes, 1, Introdugio Os primeiros registros de favelas no Rio de Janeiro datam da segunda metade do século pasado. O crescimento do nimero de favelas nos anos 30 tem sido atribuido & caréncia de habitagSes para migrantes, ao baixo valor das areas de encosta e a demanda de miio-de-obra necesséria & industrializagiio que se intensificava, Nos anos 40, acentua-se consideravelmente a expansio das favelas, ¢ predomina uma politica de sua manutengdo funcional. Este quadro prolonga-se até fins dos anos 50 (Martins, 1990). O periodo de 1962 a 1973 caracteriza-se pelgs grandes remogdes de favelas da Zona Sul e a transferéncia de sua popula¢ao para conjuntos habitacionais periféricos. Praticas Fepressivas coibem a mobilizagdo dos favelados removidos ou ameacados de remogao. O Decreto 670 de 15/06/67 prevé a intervengo da Secretaria de Servicos Sociai restringindo construgéo de novas moradias e atrelando as Associagdes de Moradores as Regides Administrativas. H4 no entanto projetos de educagio popular, entendidos como instrumentos de organizagao de formas de resisténcia, que desenvolvem-se ao longo deste periodo de ameagas e remogdes efetivas (Valla, 1981). Com o processo de “redemocratizagao”, ocorrido a partir do final dos anos 70, a urbanizagao das favelas ganha viabilidade através da atuacio de varios movimentos da sociedade civil. Destaca-se aqui o trabalho da Pastoral de Favelas da Zonia Sul que atuou, inicialmente, na favela do Vidigal (Valla, 1981). Cabe ainda acrescentar iniciativas do poder Piiblico, tal como o projeto-piloto de urbanizagao da favela de Bras de Pina, transformando- aem “bairro”, ainda no final da década de 60, A constituigiio de favelas criou zonas urbanas “ilegais” (Bank, 1980) e suscitou praticas que infringem normas juridicas, tanto em areas invadidas quanto em areas urbanizadas pela iniciativa privada, Isto denota a tolerancia do Estado, ou sua inoperancia, oS SESSSSSCESSSEECS que acabou criando uma situagio de pluralismo juridico, de maneira consensual ou contraditoria (Valla, 1981). O projeto A lei e os costumes numa favela da Zona Sul do Rio de Janeiro buscou compreender como, numa época em que no mais se cogitava remover favelas, moradores ¢ ituigbes da sociedade civil se articularam na tentativa de fazer reconhecer junto ao poder imidade de ocupagio de certos espagos ¢ de reivindicagdes de servigos ¢ piblico, a legit itos, O estudo pretende indicar momentos eni que diversos agentes - a Associagio de Moradores, a Igreja Catélica e uma ONG, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubio (CDDH-BR) - atuaram na favela, dos Cabritos, verificando a existéncia de diferentes respostas por parte dos moradores, conforme os tipos de instituigées e sua forma de trabalho. 2. A urbanizacio da favela dos Cabritos Ariana Timbs - julho/1991 Em 1991, as construgées em alvenaria ja predominavam. Questdes ligadas 4 Icgalizaciio da propriedade do solo tornaram-se prementes com a evolugiio da madeira para a alvenaria, B } espaco da Favela dos Cabritos possui estrutura que pretende delimitar tanto areas fisicas quanto esferas de poder, em vista de uma urbanizagao organizada. A favela é dividida em lotes, que se subdividem em condominios, cada um administrado por um morador com fo do valor das contas de agua e luz entre cargo de sindico. Ele é responsavel pela distri todas as casas, pois so ha um medidor destes servicos em cada mticleo (como também sio chamados 0s condominios). José Renato - novembro!1990 isto espacial em condominios ou nicleos ¢ as diferentes formas de atuagio das instituigdes acentuaram, por vezes, a diferenciagdo das casas da favela. Esta forma de organizago enfrenta problemas de varias ordens: a eventual ineficdcia de sindicos, invasdes de terrenos contiguos por proprietarios vizinhos, ocupagi indébita das areas de servidao constituidas por um espaco minimo de 1,5m entre as casas; a freqiiente inexisténcia de comprovantes. de pagamento ou de documentos que atestem a propriedade privada de terrenos. ‘A compra, venda ou heranga de terrenos e/ou iméveis, os processos de usucapido, a atuagdo dos érgios piblicos em servicos de saneamento basico, eletrificagdo, contengao de uM SELESSSSSVVUTVTSSUUUUS ‘Asiana Timbs - julo/1991 encostas € projetos especificos de construgdo de moradias, lixciras, caixas d°égua, pavimentagio de caminhos, ete slo episédios em que confrontam-se tanto a precariedade legal da favela enquanto espago sécio-juridico, as diferentes concepgdes de assessoria das instituigdes exteriores, quanto a diversidade de reagdes dos moradores da favela, que também nfo constituem um universo homogéneo. Muitas vezes ha dificuldades na comercializagéo de iméveis por mecanismos legais; é freqdentemente invidvel o recurso fiscalizago publica para a solugo de problemas suscitados pelo processo de urbanizagao € ocorrem fendmenos de selegdo e exclusio de moratlores tanto pelos drgios publicos, quanto pelas assessorias ao privilegiarem “casos” que acreditam devem ser encaminhados “a luta” Em um dos condominios, construgi0 do 2° piso de uma casa. O andar superior além de evitar os problemas de medigdo de terreno, {do comuns quanto se quer aumentar a drca da casa, ¢ uma altemativa a restrita rea de servidto 7 condon Is A busca de parametros relativamente rigidos por parte de técnicos das instituigdes exteriores, procurando definir critérios para solucionar impasses © orientar novas edificagdes, revela-se fragil e com diversos pontos de estrangulamento. 3, Associngiio e Assessorias Destacamos trés periodos que representam diferentes formas de atuagio frente aos problemas da moradia. . 3.1, Da ocupagdo inicial do Morro dos Cabritos & primeira associagao, A ocupagio da area conhecida como Morro dos Cabritos remontaria ao tempo de Império, quando foram construidas duas ruas - a Ladeira do Barroso, atual Ladeira dos Tabajaras; ¢ 0 Caminho do Boi, atual Rua Euclidds da Rocha - ¢ um hospital militar, Os habitantes iniciais teriam sido descendentes de escravos da Fazenda Peixoto e imigrantes - portugueses na maioria - que ali se fixaram depois de construidas as vias de acesso. Posteriormente, chegaram migrantes nordestinos. Assim se teria originado 0 agrupamento, segundo entrevista concedida em 1990 pelo presidente da Associagiio dos Moradores do ‘Morro dos Cabritos, que também nos falou sobre a historia da Associagao. “Desde 1966, existia uma Associagdo que era no atual micleo 600 da Rua Euclides da Rocha, Era a “Pré-Melhoramento” da rua, mas sb trabathava no micleo 600. Nao queria saber de mais nada no morro”. ‘Nao havia ameagas a posse do terreno e da moradia; a atuagdo dos moradores junto 0 poder publico se limitava a busca de melhorias na infra-estrutura da favela Neste periodo, quando 0 morro ainda era pouco povoado, seus terrenos estavam longe de tornar-se alvo de especulagdo imobiliaria, Conversando com uma moradora, pudemos perceber alteragdes do significado atribuido aos espacos do morro. Ela lamentava ter vendido “muito barato” um terreno que hoje se localiza numa rca nobre da favela, Junto +a valorizagdo de cértos locais do morro, novos significados passaram a ser atribuidos ao espago, em particular o de um bem imével comercializvel. 6 3.2. Assessorias conjuntas (1981-1990) O periodo das grandes remogdes de favelas no Rio de Janeiro, que ocorreu em fins dos anos 60 (Valla, 1981), nao atingiu a area do Morro dos Cabritos. A partir dos anos 80, houve no entanto algumas tentativas isoladas de despejos, as quais reagiram moradores e a Tgreja, através da Pastoral de Favelas, e posteriormente 0 Centro de Defesa dos Direitos Humanos - Bento Rubiéo (CDDH-BR). As interyengdes da Igreja ¢ da ONG pretenderam resistir a pressio imobiliéria advinda do aumento da procura da favela como local de moradia. Nesta época, dita de “abertura democritica”, os movimentos populares voltam a se organizar e ganhar forga. Em 1981, uma festa comemorativa do dia das macs, a qual compareceram moradores, representantes da Paréqtlia Sta. Cruz de Copacabana e da Escola de Samba Unidos da Vila Rica, é apontada por entrevistados como 0 marco inicial do trabalho coletive, Depois daquela comemoragao, criou-se 0 Grupo de Trabalho Comunitério (GTC) - formado pela Associagiio de Moradores, Escola de Samba Vila Rica ¢ Obra Social da Igreja - que subdividiu-se em comissdes: lixo, satide, educagao, transporte, etc: As reunides do GTC ocorriam nas dependéncias da capela, que esta situada ao lado da quadra da Escola de Samba, por sua vez, também cedida pela pardquia “Comecamos a desenvolver uma série de trabalhos, correr atras, fazer reivindicagées, ir & prefeitura, ir a tudo quanto é canto... A “Associagdo de Moradores envia documentagéo, xerox, fotografias e encaminha, solicitando verbas para a comunidade...” (entrevista, 1990), Ainda neste periodo foram reformulados os estatutos da Associacao de Moradores que, em 1985, passou a abranger varios nicleos da favela: “ .deixou de ser a Associagdo Pré-Melhoramentos da Rua Enclides da Rocha para ser a Associacdo dos Moradores do Morro dos Cabritos... E abrange agora ndo sé a Rua Euclides da Rocha, como toda a Ladeira dos Tabajaras... Pega geograficamente os trés morros.” (entrevista, 1990). 7 Antes ainda de formar-se esta nova Associagao, 0 projeto “Cada Familia um Lote”(1982), do primeiro Governo Leone! Brizola, previa a doagdo do terreno a quem gio das favelas (Valla, construisse em alvenaria e constitui a tendéncia principal de urb: 1981). © acesso aos beneficios do projeto era condicionado 4 delimitagao de totes; a insergao dos lotes em micleos e a organizagio de nicleos sob regime condominial. Houve proprietarios legais de certos lotes que tentaram impedir a construgao em alvenaria ¢ até mesmo despejar moradores. Em 1987, a Associago de Moradores articulada com a Igreja e com técnicos (advogados, arquitetos, desenhistas e engenheiros interessados em trabalhar com movimentos populares) fundam 0 Centro de Defesa dos Direitos Humanos - Bento Rubiao (CDDH-BR) e “lutam na justica”, como dizem os moradores, pela legalizagao da posse dos terrenos com base nas benfeitorias. Estas, comprpvadas por recibos ou testemunho, so passiveis de pagamento por parte do proprietirio apés 0 prazo de um (1) ano e um (1) dia. Caso haja negociago, promessa de compra e venda, pode-se evitar a “justica”. Ao fim de cinco (5) anos e um (1) dia e nao havendo conflito em torno das benfeitorias na negociagao, ‘© morador pode entrar com processo de usucapiao ganhar o terreno. Alguns moradores conseguiram legalizar a posse de seu terreno no micleo da Rua Euclides da Rocha, 830, Muitos solicitaram usucapiio outros beneficiaram-se de desapropriagdes feitas pelo poder executivo, Porém, em varios casos, 0 CDDH-BR enfrentou dificuldades para efetivar a “racionalizacio” do espago (delimitagao de lotes © coristituigao de nicleos): havia disparidade entre medidas “concretas” e legais, o que era agravado pela inviabilidade de realizar qualquer operagio (reforma, construgao, compra, venda) sem que os iméveis estivessem devidamente registrados. Como uma operacio depende da outra, ¢ vice-versa, no eram raros os conflitos entre advogados e engenheiros e moradores, jé que muitas vezes a atuago daqueles profissionais traziam problemas até entio ignorados pelos habitantes. A Igreja, personificada pelo Padre ftalo Carvalho, conseguiu concluir importantes obras de saneamento e construgao de casas no lote 19 da Rua Euclides da Rocha, através da 18 ‘Até 1990 construiram-se também caixas d’Agua e lixeiras coletivas, muitos delas em regime de mutirao. Pa -_) Lixeira coletiva construida pela A.M. ‘mas, nunca utilizada devido ao habito de se jogar 0 lixo encosta abaixo - segundo o presidente da Associ de Moradorcs cm 1992, Este é exemple das divergéncias entre alguns trabathos das. instituigées © assessores c, as respostas dos moradores, . Paulo Castiglioni Lara - outubro/1992 Este periodo de atividade de assessori: conjuntas revelou a ocorréncia de acontecimentos semelhantes aos observados por Eduardo Carvalho (Carvalho, 1990) ao analisar categorias extra-legais utilizadas nos processos de reintegragio de posse movidos Por assessorias juridicas a movimentos de base nas favelas cariocas. Carvalho constatou que diferentes perfis sociais, culturais e politico-i Jeolégicos de assessores permitiram a Ocorréncia a um trabalho criativo, em que muitas vezes respeitavam-se priticas populares, conseguia-se instaurar um trabalho particip ntizador”. No entanto, 0 19 pSSSSSSCCELSTCELULS | autor, ressalta o que chama de “discurso mimético”, ou seja a capacidade que tém os moradores de, utilizarem argumentos e expressdes dos diferentes assessores em circunstancias aleatérias. Por outro lado, Carvalho também assinala que “nem sempre ficava explicita a existéncia de diferentes projetos dos assessores sob um mesmo jargio de trabalho comunitario.”, O caminho da individualizagao (1991-1993) Nesta etapa chamada de “caminho da individualizacdo”, ocorre a dispersio dos trés tipos de trabalho. O Padre ftalo Coelho, da Pastoral das Favelas adoece, afasta-se ¢ vem a falecer em 1991. Seus substitutos nfo revelaram-se tio interessados pela questio habitacional na favela. O presidente da Associagio de Moradores, depois de dois mandatos sucessivos, pede afastamento para disputar cargos eletivos, primeiro como candidato a deputado estadual e, em seguida, para vereador. O CDDH-BR, isolado e com dificuldades financeiras, interrompe a maioria de suas atividades no morro. Em 1991, 0 novo presidente da Associagio de Moradores (¢ ex-presidente da antiga Associagdo Pré-Melhoramentos da Euclides da Rocha 600), embora criticasse muito a Resto anterior, reafirmava o discurso do trabalho comunitério articulado a outros agentes ‘mas que, por sua vez, também eram muito censurados. Passa a cons objetivo prioritario da Associagdo 0 de aumentar a participagdo dos membros nas reunides, recadastrar e filiar mais moradores. Os diretores falavam a respeito da busca de unio, estimulada pela realizagao da festa junina de 1992, como hé dez anos passados. A insisténcia do presidente para que os moradores “‘tirassem” uma carteirinha da ‘Associagao - que certficaria a fliagdo - expressava uma tentativa de fortalecer a instituigdo, estabelecendo ainda que formalmente uma maior integracao entre associasio e moradores, buscando estimular sua participagdo e seu sentimento de pertencerem a uma coletividade, buscando uma alternativa a transitoriedade das assessorias | As reunides' da Associag&o realizavam-se no mesmo local - as dependéncias da capela - em que ocorreram as das assessorias conjuntas. Tal espaco fisico abrigou assim 20 mer SEEELELELESES diversas priticas e discursos ao longo dos periodos que descrevemos. Agora, as reuniées pareciam “esvaziadas” em relagio as do passado. O presidente dirigia-se a poucas pessoas que levavam problemas os mais diversos, como intrigas pessoais e rixas com vizinhos. O fato de os moradores nfo se sentirem co-responsaveis pela administragio da Associag’o de Moradores parece-nos ter contribuido para a adogao de solugdes individuais. Os moradores nao se organizaram mais coletivamente, nem realizavam mais trabalhos comunitérios, mutirdes para obras, etc., excluindo-se as praticas habituais de ajuda mitua entre vizinhos, parentes e amigos, Em 1992, tornara-se praticamente inexistente a atuagio das assessorias, embora continuasse havendo um correspondente do CDDH-BR. Porém, o mais significative de uma nova atitude entre os moradores era a procura individual de técnicos ¢ advogados. Nao houve nenhum tipo de reagio reivindicatéria frente & progressiva redugo das assessorias, Algumag modalidades de encaminhamentos “externos” foram incorporadas, mas no no sentido “comunitério” 2 que se referiam os lideres da Associagéo de Moradores, os antigos representantes da Obra Social e os integrantes do CDDH-BR. A busca dos servigos de um advogado segue os mesmos moldes de compra de servigos de um profissional liberal pela classe média, embora a pregos mais reduzidos. E, por fim, 0 discurso dos moradores ¢ influenciado pela mentalidade do profissional liberal, que trata a moradia como um bem imobilidrio. A moradia torna-se privilégio de quem detém'uma melhor posi¢io econdmica. _4. A Fotografia no Trabalho de Campo A utilizago da fotografia em nossa pesquisa foi um entre outros meios para nos aproximarmos do universo investigado, A presenga da méquina fotogrifica, 0 ato de fotografar e as proprias fotos nos ajudaram a compreender methor como éramos vistos pelos moradores e como estes se viam, a © que diziam sobre 0 espago social que é 8 favela e, como poderiamos represeniar este espago través da fotografia, tal como ele se apresentava a nossa vista © # dos moradores. Na apresentagio deste trabalho, dissemos que ramos identificados como pesquisadores, por sermos vistos com Emesto. Mas também éramos reconhecidos como pesquisadores devido a nosso interesse em fotografar a favela, Sendo assim, 0 ato de fotografar cumpriu o papel de instrumento de acesso ao campo de investigagzo Nosso trinsito na favela foi de inicio restrito, no por qualquer imposico de s“qutoridades intemas”, mas por nosso foco de observagdo concentrar-se na Associagio dos Moradores. Ainda assim, mais do que 0 desconhecimento do espago fisico da favela, outros obsticulos se antepunham a uma possivel naturalidade em caminhar para o reconhecimento daquele espago. Apos tomarmos a “kombi”, que fazia lotagko @ entrada da Ladeira dos Tabajaras, subiamos até a Rua Euclides da Rocha, saltando na diregao da Associacdo dos Moradores cou da casa de Dona E., vice-presidente da Associagio até concluirmos 0 trabalho de campo: Dona E. tomou-se nosso principal elo de ligago com os moradores, uma vez, que devemos acla a apresentagdo de quase todos aqueles que entrevistamos ‘Um dia, ao pararmos mum bar, antes de seguir para a reunido da Associagio de Moradores, fomos interpelados por um homem mulato de uns 30 a 40 anos. Queria saber 0 que faziamos ali, Naquele instante, tivemos a nitida sensagio de que mo éramos mals simplesmente algumas pessoas um estabelecimento comercial, ramos estranhos que precisavam ser identificados € esclarecer a razio de nossa presenga, Dissemos que ‘estivamos fazendo uma pesquisa para a universdade ¢, !ogo em seguida, mencionamos Dona E, Por coincidéncia, traziamos naquele dia fotos que jé haviam sido amplindas ¢ < esolvemos mostré-las. A medida que as via, 0 homem demonstrou surpresa com as imagens, buscando decifrar que locais eram exatamente aqueles. Talvez também o surpreendesse ver a favela em preto € branco. Se, momentos antes, gramos percebidos como estranhos ou intrusos, apos ver as fotos, o homem ja dizia que nés conheciamos tudo, éramos “intimos” do lugar Para aquele 2 SEDSSCSCECCESUULLES morador ver aquelas fotografias foi também a ocasiio de tomar conhecimento dos locais onde tinhamos estado, constatar nossa “entrada” na favela ¢, talvez, que “entrivamos” de uma forma diferente da que supunha inicialmente. Quando assistiamos a reunides da Associagdo de Moradores, alguns deles acercavam-se de nés, contando “seus casos”, os jé referidos problemas de compra e venda de terrenos, medigio de lotes €, por vezes, conflitos com 0 sindico do niicleo, Nesses momentos, tentévamos esclarecer-Ihes porque estivamos ali e como nossa presenga ligava- se a um projeto de pesquisa. Néo demonstravam nenhum interesse que nos estimulasse a continuar nossa “explicagao”. Eramos estudantes fazendo um trabalho e isso era suficiente para que se deixassem observar e até buscassem uma aproximacao. Esta “nio-compreensio” teve papel determinante no caminho percorrido pela fotografia. Quando fotografavamos, éramos sempretguiados por alguém. Nao conhecendo a favela, seguiamos a pessoa que nos levava a fotografar 0 que considerava ser de nosso interesse, Foi num destes episddios que percebemos 0 hiato entre 0 que pretendiamos fotografar e para onde éramos conduzidos. Numa manhi de domingo de sol, fomos a casa de Dona E. aproveitando a luz para fotografar, ja que era mais freqiiente irmos a favela a noite. A casa, que fora construida acima do bar de seu irmio, tinha quarto, cozinha e banheiro, Dona E. morava ai com o filho. Apés termos conversado um pouco, Dona E. perguntou se ndo gostariamos de ir tirar fotografias,.Fomos até a entrada dos lotes e comegamos a subir. Até certo ponto, degraus; depois, apenas a terra e os caminhos ja abertos pelos que passam ali para chegarem até suas casas. 2B Asiana Timbé -julho/1991 © ponto de vista do alto do morro. Asiana Timbé - julho/1991 Construgio da laje de uma das poucas casas localizadas no alto do morro. Pr ‘A vegetagao era densa, 0 mato alto e a dificuldade de equilibrar-se ainda maior. Mas era a vista que Dona E. satisfeita me apresentava - uma ampla visio, do bairro de Copacabana, uma favela que ainda apresentava reas verdes € 0 azul do mar. Fotografei 0 que Dona E, me mostrava, tentando tornar compativeis os seus © nossos interesses. A exuberdncia do verde, a quase auséncia de casas ¢ a possibilidade de visualizar a divisto em lotes, quando olhando de cima. A visio do mar de Copacabana e 0 contraste entre os grandes prédios e a favela. Asiana Timbs -julho/1991 2s Quando chegamos a sua casa, Dona E, contou alegre a Ernesto que Princesa havia aparecido em varias fotos. Princesa era sua cachorrinha, que corria a nossa frente quando subjamos a encosta do morro e entrara de fato em varios enquadramentos. Para Dona E, a maquina fotogréfica tornava possivel registrar o belo. Nosso objeto fotografico e 0 cariter documental, que buscavamos imprimir as fotos, articularam-se a uma de suas representagdes da favela e também da fotografia, Para Dona E., 0 registro fotogrifico de uma imagem devia ser agradivel aos sentidos. Através de tal associagao, Dona E. também afirmava que a favela, seu local de moradia, possuia caracteristicas a serem apreciadas, Uma delas, a vista do alto - do bairro e do mar - constituia-se em uma bela imagem sendo, por isso, passivel de ser fotografada, A bela vista c, por conseguinte, a expectativa de bela imagem, foi uma das condiges para que Dona E, empreendesse 0 caminho para a subida. Dentro da vasta gama de elementos visuais da favela, escolhera aqueles que melhor se adequavam ao que ela acreditlva deveria ser 0 contetido imagético da fotografia, Na tiltima visita do trabalho de campo, no final de 1992, o entio presidente da Associago de Moradores nos concedeu entrevista e, simultaneamente nos conduziu pela favela mostrando algumas obras de perfodos anteriores e locais que abrigaram trabalhos resultantes de atividades das assessorias. A foto da lixeira (p. 17), por exemplo, s6 assume significado na pesquisa por ter sido realizada a pedido do proprio presidente da Associagiio de Moradores, além de ilustrar a disparidade entre projetos dos assessores e habitos dos moradores. O fato de os moradores no utilizarem a lixeira coletiva, preferindo jogar 0 lixo encosta abaixo,, foi narrado pelo presidente no momento da foto e reafirmado por Dona E., a vice-presidente, quando Ihe ‘relatamos 0 que haviamos fotografado. Na mesma ocasiio, tirando fotos da antiga Associagio Pré-Melhoramentos (a " seguir), o presidente nos mostrou a lavanderia que funcionava em seu interior, © que fora construida por uma empresa. durante seu mandato. A lavanderia jé encontrava-se entéo ‘desativada visto 0 prédio estar ocupado por quatro familias que ai passaram a residir. 26 Paulo Castigo - outubro/1992 © ato de fotografar propiciou uma nova dinimica para a obtencdo de dados. O \ simples procedimento de entrevista, direcionada ou no, provavelmente no permitiria 0 acesso a conhecimentos obtidos ao longo do caminho em diregio as “fotos”. A medida que caminhava pela favela, o presidente da Associagao ia revendo lugares e nos falava a respeito deles. Tal rememorago no é a mesma que ocorre quando nio se esta frente a0 que se observa. Ao chegarmos a lavanderia, ele acabou por pedir licenga aos moradores que li ~gesidiam, para que vissemos ‘uns tanques que ainda restavam. As familias tinham sub- dividido 0 espaco interior da ex-lavanderia com lengéis pendurados. O que o presidente via, © conjunto de elementos que pontuavam sua narrativa, ele os reorganizava em sua meméria de modo a thes atribuir sentido(s), precisando melhor nosso foco de observagao. De inicio, esperavamos que a fotografia nos trouxesse resultados durante a realizagio do trabalho de campo. Nunca conseguimos utiliz-la como instrumento para a obtengio sistematica de dados (Collier, 1973), nem sequer conseguimos estabelecer um roteiro prévio para sua utilizagdo. Conseguimos no entanto produzir fotos que expressam visualmente caracteristicas da favela, e mudangas acorridas, que estio relacionadas no texto. Descobrimos também alguns meios de obter acesso a representagées de moradores atravé da fotografia. Certamente ndo esgotamos as possi mas comegamos a entender sua potencialidade no processo de construc&o de conhecimentos lidades do uso de fotos em pesquisas durante e depois de efetuar o trabalho de campo. Bibliografia Bank, Gloria, 1980, “Experiéncia de urbanizagio de favelas”. In: Licia do Prado Valladares (0rg.) Habitagdo em questdo, Rio de Janeiro, Zahar. Blay, Eva Alterman. 1979, “Habitagio: a politica e 0 habitante”. In: A lula pelo espago. Petrépolis, Vozes Caldeira, Tereza Pires do Rio. 1984. “Imagem e poder da sociedade”. In: A politica dos outros, Sao Paulo, Brasiliense, Carvalho, Eduardo. 1990. “Direitos e Necessidades: a questao fundiaria e a justiga no Rio de Janeiro”. IPPUR/UFRI. Falco, Joaquim Arruda, 1984, Conflito de Direito de Propriedade: invasii's urhanas. Forense, Rio de Janeiro. IPLAN-Rio, Pasta 014, 1981. Jacobi, Pedro. 1987. “Movimentos sociais urbanos no Brasil: Reflexao sobre a literatura nos anos 70 ¢ 80”. In: BIB 23, Rio de Janeiro. Jornal do Brasil. 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