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Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 1

Fora do Arraial
Hanseníase e instituições asilares
em Santa Catarina (1940-1950)
2|Débora Michels Mattos

Universidade do Estado de Santa Catarina


Prof. Dr. Antônio Heronaldo de Souza
Reitor
Prof. Dr. Marcus Tomasi
Vice-Reitor
Prof. Dr. Mayco Morais Nunes
Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Comunidade
Prof. Dr. Emerson Cesar de Campos
Diretor geral do Centro de Ciências Humanas e da Educação
Prof. Dr. Fábio Napoleão
Diretor de extensão do Centro de Ciências Humanas e da Educação
Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso
Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros – NEAB/UDESC

Conselho Editorial

Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso


Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
Profª. Drª. Claudia Mortari Malavota
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC
Prof. Msc. Willian Robson Soares Lucindo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP
Profª. Drª. Maria Helena P. T. Machado
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo/SP
Profª. Drª. Maria Lúcia de Barros Mott
Instituto Butantan/SP
Profª. Drª. Yara Nogueira Monteiro
Instituto de Saúde/SP

Secretaria e Colaboração Técnica

Profª. Msc. Karla Leandro Rascke


Doutoranda em História pela PUC-SP

Colaboração Técnica

Ana Júlia Pacheco


Graduanda em História pela UDESC
Mariana Schlickmann
Mestranda em História pela UFMG
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Débora Michels Mattoso

Fora do Arraial
Hanseníase e instituições asilares
em Santa Catarina (1940-1950)

Itajaí - 2014
4|Débora Michels Mattos

Editores
José Isaías Venera
José Roberto Severino
Ivana Bittencourt dos Santos Severino

www.editoracasaaberta.com.br
contato@editoracasaaberta.com.br
Rua Lauro Müller, n. 83, Centro, Itajaí - CEP. 88301.400
Fone/Fax: (47) 30455815

M470f Mattos, Débora Michels,


Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em
Santa Catarina (1940 – 1950) / Débora Michels Mattos. -
Itajaí : NEAB ; Casa Aberta Editora, 2013.
340 p. : il. retrs.

Bibliografia: P. 297-315
ISBN: 978-85-62459-46-7

1. Hanseníase. 2. Doenças. 3. Asilos – Santa Catarina. II.


Título.

CDU: 616-002.73

Claudia Bittencourt Berlim - CRB 14/964

Revisão:
karla Leandro Rascke

Projeto Gráfico, Diagramação e Capa


J. I. Venera
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À mãe e à tia Valéria


À vó e ao vô...
...e para aqueles que fazem parte desta história.
6|Débora Michels Mattos
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Agradecimentos

Este trabalho não teria sido possível, em primeiro lugar,


sem o vínculo estabelecido com o Programa de Pós-
Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Tão
pouco, sem a bolsa de estudos concedida pelo CNPQ,
fundamental à execução de grande parte desta pesquisa. A
estas duas instituições, o meu mais sincero agradecimento.
À Professora Dra. Maria Helena Pereira Toledo Machado,
cuja oportunidade oferecida na realização desta pesquisa, seus
ensinamentos, bem como toda a confiança em mim
depositada, transformaram-se em importantes alicerces à
elaboração deste estudo.
À Maria Lucia Mott (in memorian) e à Yara Nogueira
Monteiro, por terem aceitado avaliar este trabalho e, através
de questionamentos e sugestões, oferecido importantes
contribuições teóricas.
Ao NEAB/UDESC e ao Paulino de Jesus Francisco Cardoso,
grande mestre e amigo, pessoa para eternamente se admirar.
Obrigada, querido, por ter possibilitado a publicação deste
livro...
Aos funcionários do Hospital Santa Teresa de Dermatologia
Sanitária: José Augusto, João Batista, Jane e Dr. Roberto, pelos
depoimentos, conversas e fontes concedidas.
À Dra. Heloisa Helena, especialista em hanseníase, pelos
esclarecimentos concedidos.
À Congregação Franciscana de São José, em especial à
Irmã Inês, pelo material emprestado e intermediação de
contatos.
8|Débora Michels Mattos

À Direção do Educandário Santa Catarina, pela confiança


em ceder tão preciosa documentação.
Aos funcionários do setor de obras raras da Biblioteca
Pública de Florianópolis e do Arquivo Público do Estado de
Santa Catarina, por toda a colaboração.
Aos funcionários do Instituto Lauro Souza Lima, pela
prestimosidade em disponibilizar, à distância, fontes
documentais imprescindíveis a este estudo.
À Astrid, pela receptividade, as conversas e os materiais
concedidos.
Aos egressos do Hospital Santa Teresa e do Educandário
Santa Catarina, seus parentes e todos os que se
disponibilizaram a conceder depoimentos, mesmo não sendo
tarefa fácil de se realizar. Se não menciono seus nomes aqui,
é por discrição. Saibam, contudo, que este trabalho é dedicado
a vocês. Suas memórias estão inclusas em cada uma das linhas
aqui traçadas.
Aos meus pais, pelo auxílio, educação e vida. Obrigada
por vocês terem sido os meus pais. Amo os dois.
À Marília e ao Eudes, meus outros dois pais, pelo
acolhimento e incentivo contínuos.
Aos colegas Miranda e Silvia, pelos diálogos e
esclarecimentos.
À minha grande amiga Ale e ao Cris, sempre hospitaleiros
e dispostos a levantar de madrugada para me buscar na parada
do ônibus em São Paulo.
À Vera e ao Dante pela ajuda na compra do computador
sem o qual eu teria de me resignar a escrever estas páginas
numa Olivetti mecânica.
A Agnes, pela oferta de abrigo continuamente; e ao
Vadinho e ao Tine, por tantas vezes me levaram ao
Educandário e ao Hospital Santa Teresa para a realização das
entrevistas.
Ao Nem e à Marcinha, pelas conversas e por me
presentearem com um gravador.
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À Samanta Lopes Bergé, excelente fotógrafa que me


concedeu algumas imagens particulares.
Ao Tomas e à Bi, pela constante companhia e os momentos
de distração, entre um parágrafo e outro. E por qual razão
não agradecer também ao Frido, cuja presença foi importante
nos vários momentos de revisão deste trabalho?
Peço permissão para agradecer e me desculpar àqueles
que aqui não foram nominados, pessoas que estiveram
presentes e que, semelhante a todos os demais, participaram
de forma direta ou indireta desta pesquisa.
Por fim, agradeço ao Sandro, grande companheiro e amor,
principal responsável pela transformação de uma ideia em
algo de fato; crítico, amigo, paciente, colaborador, alguém
que soube como ninguém me ensinar a caminhar, mas,
sobretudo, alguém cuja presença foi marcada pela ternura.
10|Débora Michels Mattos
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Corrigir a crença popular de que a lepra é praga


bíblica e de que o doente é maldito. Esta crença
prejudica e estigmatiza o doente, fazendo-o ocultar a
doença e impedindo-lhe de solicitar auxílio médico,
aumentado o perigo para o público.
(Abrão Rotberg)
12|Débora Michels Mattos
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Sumário

Prefácio 15
Sobre a pesquisa documental 21
Introdução 29
Primeira parte:
A hanseníase na história 37
Capítulo 1
Considerações sobre a enfermidade 39
Capítulo 2
A hanseníase no Brasil 63
Segunda parte:
A marcha de triunfo 91
Capítulo 3
A Campanha Nacional contra a “Lepra” 93
Capítulo 4
O combate em Santa Catarina 123
Terceira parte:
O confinamento dos enfermos 163
Capítulo 5
O Hospital Colônia Santa Teresa 165
Fotografias 217
Quarta parte:
O alijamento dos saudáveis 225
14|Débora Michels Mattos

Capítulo 6
O Educandário Santa Catarina 227

Fotografias 287

Considerações finais 291

Referências e fontes 295

Anexos 315
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Prefácio
Dizia Walter Benjamin em uma de suas passagens de seu
texto O Conceito de História, que somente a humanidade
redimida poderia “apropriar-se totalmente do seu passado”,
ajuntando que “somente para a humanidade redimida o
passado é citável, em cada um dos seus momentos”.
Acrescentava o filósofo que a história não se desenrolava em
um tempo vazio e homogêneo, mas sim em um “agora”, pleno
de sentido e atualidade. É com esta imagem rica de
significados que quero começar a abordar o livro de Débora
Michels Mattos, Fora do Arraial: hanseníase e instituições
asilares em Santa Catarina (1940-1950), versão revisada de
sua Dissertação de Mestrado, apresentada em 2002, no
Programa de História Social do Departamento de História da
Universidade de São Paulo, sob minha orientação.
O trabalho de pesquisa desenvolvido por Débora Mattos
apresenta-se, sem dúvida, como um esforço pioneiro para
documentar, em Santa Catarina, a emergência das instituições
asilares e, entre elas, aquela voltada ao confinamento do
portador de hanseníase. Estas instituições se materializaram
no contexto das políticas modernizadoras, higienistas e
sanitaristas, que começaram a se desenvolver em nosso país
desde os finais do século XIX, mas que foram particularmente
estimuladas pelos discursos eugenistas-nacionalistas, veiculados
nas décadas de 1930 e que conectavam o desenvolvimento
do país à saúde de seus cidadãos.
16|Débora Michels Mattos

Fruto de uma pesquisa bibliográfica e documental muito


ampla, o livro Fora do Arraial documenta os esforços das
autoridades governamentais, dos médicos e das recém-
fundadas associações de assistência social e das ordens
religiosas no sentido de garantir tratamentos médicos aos
acometidos pela hanseníase no Brasil do período e
especialmente daqueles que ganharam abrigo no Hospital
Colônia de Santa Teresa, fundado em Santa Catarina no
alvorecer da década de 1940. O livro enfoca, igualmente, a
fundação e funcionamento do Educandário Santa Catarina,
dedicado ao recolhimento da prole saudável dos doentes.
Com vistas a contextualizar historicamente o estabe-
lecimento destas duas instituições asilares no bojo do Estado
Novo, Débora Mattos apresenta ampla reflexão e
contextualização que a leva a apresentar uma discussão sobre
a história daquela que foi uma das doenças mais
estigmatizadas do ocidente - a “lepra” -, a apresentar os
diferentes estágios de percepção social e tratamento da
doença, sempre baseados em isolamento social, mostrando
os tormentos a que foram sempre submetidos os acometidos
tanto em países europeus como, especialmente, no Brasil, e
a discutir as forças sociais que deram origem à montagem
das instituições médicas e caridosas voltadas para o
atendimento do “leproso” e sua família.
Sem ingenuidade, Débora Mattos questiona em cada um
de seus capítulos, as linhas invisíveis que guiaram os esforços
beneméritos de políticos, de médicos especialistas, de senhoras
dedicadas à assistência social e de Irmãs de caridade, que
culminaram na fundação de instituições de isolamento,
controle e estigmatização dos doentes, mesmo quando as
novas descobertas médicas já haviam derrubado muitos dos
preconceitos que recobriam a “lepra” como doença perigosa
e especialmente estigmatizada.
Fora do Arraial mostra sobejamente que a vanguarda
médica do país dos anos de 1930, incluindo o próprio
Oswaldo Cruz, propugnava o controle domiciliar e
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ambulatorial do acometido não contagioso. De fato, a


experiência pioneira levada a cabo na Noruega dos anos de
1920 – e muito discutida pelos médicos brasileiros – havia
demonstrado que a estratégia mais efetiva para o controle
da hanseníase baseava-se no esclarecimento médico e
controle da doença em caráter ambulatorial, mesmo porque
já se havia comprovado o caráter não contagioso em algumas
formas da temida “lepra”, assinaladas pela baixa presença
dos bacilos transmissores. Dessa forma, nesse período,
superava-se a estigmatizada “lepra”, substituindo-a pela
hanseníase, doença não contagiosa em alguns de seus casos,
tipos e estágios e, ademais, curável a partir da década de
1950, devido ao emprego da sulfona.
Assim, quando se constituíram em muitos estados
brasileiros das décadas de 1930 a 1950, instituições de
confinamento dos acometidos pela hanseníase, já se sabia
que tais procedimentos não se faziam necessários. Porém,
como mostra Débora Mattos, a questão que se colocava como
base dessas instituições totais se reportava muito mais a um
caráter ideológico, voltado para constituição de slogans e
imagens de um país higienizado, de suas mazelas relativas à
degeneração racial, à loucura, à doença e à inferioridade de
sua população, do que a uma racionalidade médica
propriamente dita. Santa Catarina, embora fosse um estado
majoritariamente branco, também foi afetado por esse tipo
de discurso, que se concretizava na forma de um apelo à
exclusão dos doentes mentais e dos acometidos pela “lepra”,
doença que por portar estigmas físicos visíveis havia sido,
desde a antiguidade, escolhida como aquela na qual se
materializavam os sinais do castigo divino. Acompanhando
outros autores que se dedicaram ao estudo da história da
hanseníase, Débora Mattos sublinha a configuração ideológica
que deu origem e sustentou os Serviços de Profilaxia da Lepra
e as instituições asilares erigidas no Brasil para tratamento
dessa doença e, especificamente, em Santa Catarina entre
1930 e 1950.
18|Débora Michels Mattos

Não satisfeita com o deslindamento da operação que


resultou no confinamento desnecessário do acometido pela
hanseníase, a autora se volta para a análise da emergência
de uma instituição asilar especificamente voltada para o
confinamento da prole sadia do doente. Tais instituições,
mesmo quando veementemente criticadas pelo seu caráter
excludente e reconhecidas como ineficazes em termos
médicos, funcionaram como locais de confirmação de um
discurso a respeito da infância higienizada buscada pelo país
no período. De fato, instituições como o Educandário Santa
Catarina, dedicadas ao internamento da prole saudável dos
acometidos pela hanseníase, serviam como válvulas de escape
do medo em relação à doença e como comprovadoras dos
esforços do estado no sentido de garantir a saúde e o progresso
da população brasileira. No intuito de garantir o consenso
ideológico a respeito da necessidade do confinamento as
autoridades chegavam a disseminar falsos temores, como por
exemplo, o de filho do acometido poderia representar um
perigo mesmo na convivência social e escolar, assim
estimulando a denúncia da existência destas crianças, que
localizadas, eram institucionalizadas, mesmo quando
possuíam parentes dispostos a se responsabilizarem por elas.
Com fins de desvendar os mecanismos cruéis dessa
exclusão social, Débora Matto s localizou e entrevistou as
vítimas do asilamento, na figura de doentes e seus filhos
saudáveis, que haviam experenciado o confinamento nas duas
instituições citadas. O que estes relatos expressam é um senso
de injustiça, de sofrimento social e de incompreensão, que
claramente persistiu por toda a vida dessas pessoas,
especialmente daquelas que separadas de suas famílias na
infância, cresceram em instituições de confinamento. O
estigma da doença, o medo da contaminação, a solidão e a
disciplina draconiana encetada nessas instituições, que não
se vexavam nem de censurar as cartas trocadas entre pais e
filhos asilados em instituições diferentes, comprovam o caráter
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totalitário e os fundamentos ideológicos do confinamento do


acometido pela hanseníase e sua prole saudável.
Retorno agora às frases de Benjamin, para lembrar que a
autora de Fora do Arraial cumpriu muito bem os desígnios
do filósofo alemão. Como historiadora catarinense, Débora
Mattos coloca agora à disposição de seus leitores uma história
minuciosa e criticamente construída a respeito do tratamento
da hanseníase em seu estado natal, oferecendo a
oportunidade para que, a partir de agora, se possa
reconhecer e superar as marcas deixadas pelo tratamento
socialmente injusto e desnecessário a que foram submetidos
portadores de hanseníase e sua prole sadia. Pessoalmente,
Débora Mattos, poderá também, a partir de agora, entender
melhor os silêncios e meias-palavras escutadas em sua infância,
a respeito dos destinos de seu avô materno e de sua mãe,
ambos vítimas desse tratamento.
Ecoando Benjamin, a história redimida se torna citável e
pode nos libertar para um “agora” pleno de sentido.

Maria Helena Pereira Toledo Machado


Professora Titular
Departamento de História
Universidade de São Paulo
20|Débora Michels Mattos
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Sobre a pesquisa
documental
Para a realização desta pesquisa muitas foram as fontes
consultadas, tanto aquelas de cunho bibliográfico realizadas
por historiadores, filósofos, profissionais da saúde, as quais
serão referenciadas ao longo do trabalho, quanto as de caráter
documental, como relatórios, prontuários, artigos jornalísticos,
leis, entre outras.
No que concerne à pesquisa de cunho documental
realizada em Santa Catarina foi possível observar a falta de
cuidado com a preservação e manutenção do material que
se pretendia investigar. Nas duas instituições que constituem
o principal objeto deste trabalho, por exemplo, pouco foi
encontrado, dificultando por vezes uma análise mais
aprofundada sobre o que se pretendia pesquisar.
22|Débora Michels Mattos

No antigo Hospital Colônia Santa Teresa, hoje Hospital


Santa Teresa de Dermatologia Sanitária, tivemos acesso ao
livro de registros dos pacientes de hanseníase que participaram
do confinamento compulsório. Nesse livro, dados importantes
acerca dos enfermos puderam ser verificados, como data do
internamento, número de entrada, nome, filiação, idade, sexo,
cor, estado civil, profissão, nacionalidade, naturalidade,
procedência, alta e observações gerais. Do montante de casos
registrados observamos os primeiros 826 dispostos no
documento, que ocorreram durante os anos de 1940 a 1950,
período a que nos propusemos trabalhar por representar o
marco das diretrizes profiláticas que estiveram pautadas na
prática do confinamento compulsório em Santa Catarina. A
análise pontual de cada registro resultou na feição das tabelas
e dos gráficos apresentados ao longo deste trabalho.
Ainda no Hospital Santa Teresa tivemos acesso a um
manuscrito elaborado pelas irmãs da Congregação Franciscana
de São José, ordem religiosa que desde a implantação do
confinamento compulsório esteve junto à instituição na
promoção de assistência social e religiosa aos doentes. Nesse
manuscrito foram descritos detalhes sobre a inauguração do
estabelecimento e das atividades desenvolvidas pelas irmãs no
provimento do amparo aos enfermos.
A esses dois importantes materiais somou-se um grande
acervo iconográfico que nos possibilitou remontar a estrutura
do Hospital Santa Teresa de forma a que melhor pudéssemos
compreender o cotidiano das pessoas que ali viveram. Já em
relação aos prontuários clínicos, embora sua análise não nos
tenha sido disponibilizada, conseguimos visualizá-los
superficialmente e chegar à conclusão de que um estudo
aprofundado destes seria de extrema importância. Dados
como o perfil do enfermo, o perfil da doença, o tratamento
ministrado, os objetos que o paciente recebia no momento
de sua internação e os aspectos comportamentais
apresentados por ele no viver cotidiano de sua realidade,
podem ser verificados nesses prontuários.
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Outros registros, como aqueles relativos ao funcionamento


institucional do asilo não foram encontrados e parecem ter
sido perdidos ao longo dos anos, à medida que a estrutura
concebida para o alijamento compulsório foi sendo
desmontada.
No Educandário Santa Catarina, a falta de documentação
histórica referente à instituição também foi observada. Dos
materiais lá encontrados, o livro de registros de internamentos
constituiu, igualmente ao do Hospital Santa Teresa, importante
fonte de investigação por nos possibilitar a realização de uma
análise sociológica bem delimitada acerca das pessoas ali
registradas. Através dele tivemos acesso ao número de entrada
da pessoa internada, data de admissão, nome, idade, sexo,
cor, nacionalidade, naturalidade, procedência, data e local
do fichamento no Serviço de Profilaxia da Lepra, número da
ficha clínica, filiação, nome do parente ou pessoa interessada,
nome do doente, relação de parentesco, tempo de convivência
com o enfermo, destino do enfermo, data de saída, nome de
quem o retirou, residência, falecimento e permanência na
instituição. Para a realização desta pesquisa foram analisados
os primeiros 301 registros ocorridos também durante os anos
de 1940 a 1950. Os dados encontrados nesse livro de registros
permitiram a elaboração de tabelas e gráficos, expressos de
forma semelhante àqueles que foram elaborados acerca dos
internos do Hospital Santa Teresa.
Ainda no Educandário Santa Catarina tivemos acesso a
alguns prontuários das crianças e adolescentes internados.
Nesses prontuários encontramos dados específicos sobre eles,
como certidão de nascimento e ficha do internamento
composta de nome, sexo, cor, endereço, filiação, data de
nascimento, procedência, averiguações clínicas realizadas no
âmbito da hanseníase, assistência médica promovida no
âmbito de outras enfermidades e acompanhamento clínico
geral. Junto à ficha, certidão de nascimento, atestado de saúde
referente a doenças transmissíveis, psíquicas e deficiências
físicas, bem como atestado de saúde referente à tuberculose
24|Débora Michels Mattos

e à hanseníase. Nesses prontuários também puderam ser


encontradas algumas correspondências mantidas entre a
direção do Educandário Santa Catarina e a direção do
Hospital Colônia Santa Teresa, bem como dos internos do
Santa Teresa à direção do Educandário Santa Catarina.
Embora a instituição não tivesse material iconográfico que
pudesse nos disponibilizar, alguns relatórios feitos pela
Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra
de Santa Catarina, entidade voltada ao amparo do filho sadio
do hanseniano, nos foram disponibilizados e se caracterizaram
de grande importância para nossa pesquisa. Nesses relatórios
foi possível ter acesso às atividades desenvolvidas pela
associação no estado de Santa Catarina durante os anos de
1936 a 1950. A partir deles, inclusive, conseguimos vislumbrar
a estrutura e a organização do Educandário Santa Catarina,
dirigido nesse período pelas irmãs da Congregação Franciscana
de São José.
Embora não tenhamos conseguido obter no Hospital Santa
Teresa e no Educandário Santa Catarina todo o material
necessário ao trabalho a que nos propusemos realizar, o
Arquivo Público e a Biblioteca Pública do Estado, a Biblioteca
Central e a de Medicina da Universidade Federal de Santa
Catarina, o Departamento de Vigilância Sanitária e o Arquivo
Público de São José acabaram se tornando locais importantes
à medida que nos ofereceram documentos diversificados que
foram dando consistência à pesquisa. Nesses lugares tivemos
acesso a relatórios e ofícios de variados órgãos institucionais,
ligados direta ou indiretamente à questão da hanseníase e à
saúde de uma forma mais geral, como a Sociedade de
Assistência aos Lázaros de Santa Catarina e a Federação
Nacional Congênere, o Departamento Nacional de Saúde
Pública, a Secretaria de Saúde do Estado e a Secretaria de
Higiene. Ainda nesses locais verificamos a legislação brasileira
e catarinense também no âmbito da saúde e da hanseníase,
algumas cartilhas sobre a enfermidade, dados estatísticos sobre
esta à luz do movimento de combate iniciado no estado após
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o ano de 1936 e os relatórios do interventor de Santa Catarina,


Nerêu Ramos, acerca do Serviço de Profilaxia da Lepra.
Documentação sui generis foram os artigos encontrados
nos principais jornais da região entre os anos de 1936 a 1950,
como A Gazeta, República e O Estado. Através deles pudemos
tecer significativas considerações sobre os saberes cons-
tituídos acerca da enfermidade de forma a que melhor
compreendêssemos os princípios que nortearam os discursos
de profilaxia e o combate à doença estabelecido no estado
catarinense.
As crônicas redigidas pelas irmãs da Congregação
Franciscana de São José, sendo nelas descritas as atividades
diárias desenvolvidas pelas religiosas no que concerne ao
tratamento dispensado ao enfermo de hanseníase e aos seus
filhos sadios, assim como, também, as fotografias do
Educandário Santa Catarina e do Hospital Colônia Santa
Teresa cedidas pela ordem religiosa, foram dando corpo ao
nosso trabalho, complementado por outros documentos
encontrados em algumas instituições de pesquisa localizadas
fora do estado, como a Biblioteca da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo e a Biblioteca do Instituto Lauro
de Souza Lima em Bauru1. Por intermédio delas tivemos
acesso a um conjunto de textos de época voltados à questão
da hanseníase, escritos por médicos, cientistas e políticos, a
exemplo dos artigos e informes publicados nos Boletins da
Sociedade de Assistência aos Lázaros e na Revista de Combate
à Lepra, os relatórios anuais da Federação de Assistência aos
Lázaros, os artigos e informes publicados no Boletim do
Serviço Nacional de Lepra do Departamento Nacional de
Saúde, entre outros.
Mas foi através de informações obtidas por intermédio
daquelas pessoas que de alguma forma se encontram dispostas
a ajudar que tivemos acesso aos mais ricos de todos os
documentos investigados, os depoimentos orais. Na
reconstituição histórica do cotidiano vivido por aqueles que
fizeram parte do universo da hanseníase, tanto os doentes
26|Débora Michels Mattos

que foram confinados compulsoriamente no Hospital Colônia


Santa Teresa quanto os filhos sadios dos enfermos que foram
alijados no Educandário Santa Catarina, esses depoimentos
se constituíram fundamentais, uma vez que nos possibilitaram
visualizar o movimento de combate à enfermidade a partir
da ótica de quem foi alvo do mecanismo de profilaxia
instituído na região.
Por meio da oralidade conseguimos remontar a estrutura
das duas instituições: sua organização, suas normas, suas
brechas e seu cotidiano, assim como os mecanismos de
sobrevivência utilizados pelas pessoas que fizeram parte desse
mundo paralelo, que foi a rede asilar edificada acerca do
doente e da doença.
Cabe aqui salientar que o perfil das pessoas que
concederam os depoimentos, pessoas de idade avançada
marcadas por uma vivência que lhes imputou inúmeros
sentimentos, fez com que optássemos por uma técnica de
entrevista menos formal, sem perguntas pré-definidas. No
entanto, elaboramos um questionário que serviu de base às
informações que gostaríamos de obter. Esse questionário, no
entanto, foi utilizado à medida que a conversa com os
depoentes foi se estabelecendo e no âmbito daquilo que eles
conseguiram guardar na memória e que acharam importante
nos revelar, sendo as obras de Bosi (1987), Meihy (1996) e
Thompson (1992) sobre História Oral, significativos
instrumentos de apoio para nós.
Em contato com egressos do Hospital Santa Teresa que
participaram do regime de confinamento compulsório,
sentimos grande dificuldade em travar um diálogo com
pessoas do sexo feminino. Do pouco que delas foi investigado,
conseguimos obter algumas falas esparsas, que não nos foi
permitido gravar. Já em relação ao sexo masculino, não
tivemos nenhuma dificuldade em estabelecer uma
conversação sobre o assunto, sendo que a maioria demonstrou
ser possuidor de grande lucidez.
No que concerne à realização de entrevistas com aqueles
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 27

que foram internados no Educandário Santa Catarina, nosso


contato estabeleceu-se exclusivamente com mulheres que
acabaram se tornando grandes colaboradoras na busca por
mais pessoas dispostas a dar testemunho, ou seja, personagens
que indiretamente estiveram ligadas à problemática do
confinamento compulsório, como parentes de enfermos,
parentes de médicos, funcionários de ambas as instituições,
etc.
Embora algumas dessas pessoas, tanto as que foram
internadas compulsoriamente no Hospital Colônia Santa
Teresa quanto as que foram alijadas no Educandário Santa
Catarina, tenham se disposto a ter o nome revelado quando
da utilização das entrevistas, a maioria optou por ser mantida
no anonimato. Nesse sentido, utilizamos como critério básico
a substituição dos nomes dos depoentes por letras
identificadoras.
Assim, da união dos diferentes documentos e de das fontes
colhidas ao longo de quase três anos de pesquisa, nasceu
este trabalho. Esperamos que ele possa, de alguma forma,
contribuir para esclarecer muitas questões ligadas ao universo
da hanseníase que implicaram em atitudes de preconceito,
hoje inadmissíveis.

Fonte:
1
O Instituto Lauro de Souza Lima, antigo Asilo Colônia Aimorés,
hoje constitui o mais significativo centro de pesquisa em
hanseníase no Brasil, sendo também referência para a realização
de investigação histórica sobre o assunto pelo significativo acervo
documental e bibliográfico que possui. Seu endereço na internet
é: <www.ilsl.com.br>
28|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 29

Introdução
Ainda hoje recordo os tempos de infância ao lado de minha
família. Vivíamos eu, meu pai, minha mãe, meus três irmãos
e minha avó, em uma casa pequena num bairro de classe
média na parte continental de Florianópolis. Embora eu fosse
a mais nova entre eles, uma criança como qualquer outra
que brincava à frente de casa ou nos terrenos baldios que
por ali eram muitos, conhecedora de quase todas as coisas
que fazem parte do universo infantil, de uma coisa a mais eu
sabia: o significado da palavra “hanseníase”.
Digo isso porque no Brasil muitos desconhecem o que
seja a hanseníase. Para um país que se enquadra na lista
daqueles que apresentam os maiores números de incidência
da doença, perdendo somente para a Índia, que se encontra
em primeiro lugar em número de casos detectados, de acordo
30|Débora Michels Mattos

com dados apresentados pela Organização Mundial da Saúde


ao fim do ano 20001, a falta de um conhecimento preciso
acerca da enfermidade é bastante significativa.
Possivelmente, a ausência desse conhecimento se deva a
concepções míticas há muito tempo constituídas podem ser
verificadas, quando a hanseníase, ainda sob a denominação
“lepra”, carregava consigo uma série de sinônimos de caráter
depreciativo que se cristalizaram ao longo da história e que
até o momento se fazem presentes entre nós, dificultando
uma compreensão mais adequada da doença. Embora
esforços tenham sido feitos para desestigmatizá-la, sendo o
maior deles, pelo menos no Brasil, a troca da antiga
denominação “lepra” por hanseníase 2 , não é raro
encontrarmos discursos e práticas que remetem ao velho
termo de origem greco-latina responsável pelas imagens
fantasiosas que se estabeleceram acerca da doença e que a
transformaram em um eterno sinônimo de sujeira, feiura,
degradação física e moral a integrar e ameaçar o mundo dos
sãos.
Como exemplo, temos um fato ocorrido em uma capela
da grande Florianópolis, quando um sacerdote, em missa
proferida no dia 14 de outubro de 2001, referiu-se à
enfermidade como sendo o terrível mal bíblico descrito no
Levítico e tantas outras passagens do livro sagrado dos cristãos,
como Jó, Números, Lucas, etc. De acordo com denúncia feita
por um membro do Grupo Catarinense Pró-Hansenianos que
assistia ao cerimonial, frases como “uma doença que derruba
os cabelos”, “uma doença que derruba as mãos, as orelhas,
o nariz”, “uma doença horrível, pior que o câncer” foram
ditas.3
Isso demonstra que para muitos o conhecimento popular
sobre a hanseníase tem como recorrente fundamento
concepções que foram produzidas no passado, fato que implica
em inúmeros desdobramentos, sobretudo para aqueles que
fizeram ou fazem parte do universo da doença.
Embora significativas descobertas tenham sido realizadas
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 31

nos campos da medicina com relação à hanseníase, como


origem e diagnóstico, ação terapêutica e possibilidade de cura,
o imaginário sobre a mesma, imbuído de medos, preconceitos
e práticas de exclusão tornou-se um grande problema e, até
hoje, aguarda por uma solução.
É provável que esse imaginário tenha sido o principal
motivo do meu interesse precoce pela doença, porque desde
criança ela não me foi apresentada como uma enfermidade
qualquer. Ao contrário do sarampo, da catapora, da caxumba
e até mesmo da tuberculose, com as quais me deparei, se
não por ter sido acometida, mas por ter presenciado o
acometimento de alguém, a hanseníase era para mim uma
grande indagação. Não se falava abertamente sobre o assunto
na casa de meus pais, embora eu soubesse o motivo de tanto
silêncio. Meu avô, quem eu nem mesmo cheguei a conhecer,
aos 27 anos foi diagnosticado com a doença e internado
compulsoriamente naquilo que muitos chamavam de
“leprosário”. Minha avó morava conosco desde o casamento
de minha mãe. Quando nasci ela já era viúva e não eram
raros os momentos em que ela balbuciava acerca do passado,
que por causa do alijamento do meu avô a família se
desestruturou e minha mãe, ainda pequena, teve de ser
colocada em um internato. No meio de seus desabafos ela
me chamava à atenção:
- Não conta essa história a ninguém! Pra todos os efeitos a
doença dele foi câncer!
Campo fértil para uma indagação, proibir uma criança de
algo sem explicar o porquê. Através do dicionário eu descobri
que a “lepra” também era chamada hanseníase. Ainda através
do dicionário, eu descobri que a “lepra” possuía muitos
significados, em grande parte, depreciativos, e que causavam
repulsa, pânico e compaixão. Nos filmes antigos passados na
televisão, como o clássico Ben-Hur, ela era descrita como um
mal contagioso que culminava em grandes deformidades
físicas, tendo o enfermo que se isolar. Nas falas das pessoas
que se pronunciavam sobre o assunto tais atribuições não
32|Débora Michels Mattos

eram diferentes, e eu cresci ouvindo coisas assim.


Ainda criança, minha mãe levou-me para conhecer o
internato em que passou pelo menos cinco anos de sua vida.
Contou que lá viveram inúmeras crianças e adolescentes,
mostrou como era grande a instituição, onde dormiam,
estudavam, brincavam e trabalhavam. Seu nome era
Educandário Santa Catarina, um nome como outro qualquer
para lugares desse gênero. Mas já adulta, quando eu finalizava
o curso de graduação em História pela Universidade do Estado
de Santa Catarina, descobri que a instituição que por muito
tempo foi para mim um lugar como tantas do gênero, possuía
uma característica que a tornava diferente das demais. Nela
eram internados, exclusivamente, filhos sadios de portadores
da “lepra”. Dessa descoberta um novo questionamento surgiu.
Qual a razão para a construção de um local específico ao
internamento da prole sadia desses enfermos?
Da proximidade com o universo da doença nasceu o desejo
de investigar o conjunto de forças que fez da hanseníase uma
enfermidade que acabou por transformar aquele que era seu
portador, bem como seus filhos sadios e familiares, sujeitos à
margem da sociedade, sobretudo quando foram criados, no
Brasil do século XX, os mecanismos institucionais pautados
em práticas de exclusão e confinamento.
A ausência de fontes bibliográficas sobre o assunto no
estado de Santa Catarina acabou transformando uma simples
investigação na vontade de elaborar um trabalho que pudesse
trazer à tona uma história que, embora muitos não conheçam,
fez parte de um contexto social, político e econômico marcado
por preceitos ideológicos bem delimitados, ligados a atitudes
de preconceito e rejeição, sentimentos de medo e aversão e
todo um imaginário mítico que se ergueu em torno da doença
e do doente, e que ainda hoje sobrevive.
Essas atitudes, sentimentos e representações, como sugere
Claro (1995), têm como implicação sérios entraves em relação
ao controle, tratamento e cura para a doença, uma vez que
agem de forma direta sobre o comportamento do enfermo,
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 33

assinalado por auto rejeição e estigmatização, ocultamento


da enfermidade ou até mesmo a sua negação. Analisar esses
aspectos, de forma que possamos compreendê-los como parte
integrante de um universo metafórico, permite interagir com
a medicina, indo além da cura clínica e rompendo a linha
tênue que ainda hoje insiste em unir a “lepra” a uma doença
infectocontagiosa de nome hanseníase.
Assim, Fora do Arraial objetiva historiar a problemática
dessa enfermidade em Santa Catarina a partir dos anos 30,
sobretudo durante a década de 40 do século XX, quando
foram construídas duas instituições asilares que serviram de
base à efetivação do movimento de combate à “lepra” na
região: o Hospital Colônia Santa Teresa, destinado ao
confinamento compulsório dos enfermos, e o Educandário
Santa Catarina, edificado para o alijamento dos seus filhos
sadios. Para tanto, tentar-se-á elucidar os vários discursos que
se estabeleceram acerca da doença produzidos no início do
século XX, bem como as falas das pessoas que foram alvo de
um modelo de profilaxia pautado na exclusão social,
vislumbrando compreender os princípios que nortearam a
construção dessas duas instituições específicas, a exemplo de
outras que foram construídas em quase todo o território
brasileiro, nesse período.
Atualmente, os estados do Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e São Paulo são os que apresentam os menores
índices de incidência da doença, considerando um percentual
de acometimento para cada 100 mil habitantes.4 Embora esse
número seja pequeno em relação ao restante do país, os
preconceitos pelos quais os doentes ainda passam fazem dela
não apenas um problema de saúde, mas algo que deve ser
resolvido no âmbito sociocultural. Abordar a problemática
da hanseníase e a sua história enquanto “lepra”, esclarecendo
os equívocos que foram cometidos em relação àqueles que
participaram do seu universo, visa contribuir com o
esmorecimento dos mitos que ainda hoje estão presentes no
pensamento coletivo e, que de alguma forma, colaboram para
34|Débora Michels Mattos

que a hanseníase continue sendo uma doença marcada por


atitudes de preconceito efetivamente anacrônicas.
Dividido em quatro partes, temos a primeira composta de
dois capítulos. No capítulo 1, procura-se, em princípio, abordar
a hanseníase no campo da medicina, salientando suas
principais características e os tratamentos que foram e são
utilizados para combatê-la. Posteriormente, é feita uma breve
retrospectiva histórica sobre os saberes produzidos pelo mundo
ocidental acerca da enfermidade, enfatizando os instrumentos
de exclusão impostos aos enfermos, sobretudo na Idade
Média, sem deixar de referenciar as mudanças e continuísmos
ocorridos no âmbito da enfermidade em face do nascimento
da medicina moderna. No capítulo 2, busca-se verificar como
a enfermidade foi introduzida no Brasil, as discussões que se
estabeleceram sobre ela à luz da medicina social e dos meios
vislumbrados para combatê-la, enfatizando os pressupostos
eugênicos em voga no início do século XX que
fundamentaram as práticas de exclusão idealizadas para
resolver o problema.
A segunda parte, também composta de dois capítulos,
remete-se ao movimento de combate à “lepra” encabeçado
pela sociedade brasileira e catarinense a partir dos anos 30.
No primeiro, trabalho com as falas produzidas por aqueles
que se dedicaram a resolver a questão da doença no país,
entre eles médicos e filantropos. Salientando o papel da
Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa
contra a Lepra do Brasil e de sua associada em Santa Catarina
que, aliadas aos serviços públicos de saúde objetivaram
articular um movimento sanitarista e assistencial no âmbito
da doença, procuramos demonstrar como se deu a
construção do aparato isolacionista ao filho sadio do enfermo
no estado catarinense. No segundo capítulo, o esforço é em
historiar acerca da implantação de um serviço de saúde pública
oficial em Santa Catarina que, a partir de 1936, lançou as
bases para o estabelecimento do confinamento compulsório
dos enfermos, abordando, além disso, os caminhos percorridos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 35

até o confinamento, como o recenseamento dos doentes, a


sua captura e o seu internamento na instituição asilar.
A terceira parte, contando com um capítulo, procura dar
conta da história do Hospital Colônia Santa Teresa durante
os anos de 1940 a 1950. Nela, foram enfatizados os principais
aspectos da instituição, sua organização, seu funcionamento,
os saberes produzidos por aqueles que a idealizaram,
bem como pelos doentes que foram nela confinados
compulsoriamente.
A quarta parte, igualmente composta de um capítulo, trata
do Educandário Santa Catarina, também no período de 40
a 50. Nela, salienta-se a história da instituição nos seus dez
primeiros anos de funcionamento, o papel que tentou
desempenhar no âmbito da profilaxia da hanseníase, sua
estrutura, seu gerenciamento, sua organização, o viver
cotidiano dentro do ambiente institucional e as concepções
erigidas por aqueles que integraram esse cotidiano.
A partir de agora convido o leitor a mergulhar nesta história
e espero que ela possa, de alguma forma, contribuir para a
redução dos problemas relacionados à hanseníase em nossa
atualidade. Por se tratar de um trabalho de caráter histórico,
foi utilizado, por algumas vezes ao longo do texto, a
denominação “lepra” em substituição ao termo atual
hanseníase. Saliento, porém, que essa denominação deve ser
posta de lado quando nos depararmos com questões relativas
à doença nos dias de hoje.

Fontes:
1
Segundo a Organização Mundial da Saúde, ao findar o ano
2000 os países que apresentaram os maiores índices de
incidência em hanseníase foram a Índia, com 559.938; o Brasil,
com 41.070; Mianmá, com 10.286; Madagascar, com 8.445;
Nepal, com 8.020; e Moçambique, com 6.117. Disponível em:
<http://www.who.int/lep/> Acesso: 03/07/2002. Em 2009 esse
36|Débora Michels Mattos

quadro já havia se alterado, observando-se grande redução no


número de acometimentos em alguns países. Contudo, a Índia
continuava obtendo o primeiro lugar em número de novos casos
(87.190) e o Brasil o segundo (38.179). Disponível em: < http:/
/www.who.int/wer/2010/wer8535.pdf> Acesso em: 13/03/2011.
2
O responsável pela mudança do nome “lepra” para hanseníase
foi Abraão Rotberg, médico hansenólogo com grande atuação
na Organização Mundial da Saúde. Para ele, a utilização da
denominação “lepra” pelos órgãos oficiais de saúde acabava
incentivando a solidificação dos estigmas acerca da doença.
Em 1967, o estado de São Paulo resolveu adotar a nova
nomenclatura, sendo a mesma oficializada no Diário Oficial
do Estado em 11 de dezembro de 1970 (ROTEBERG, 1975).
Cabe salientar que em 29 de março de 1999, pela Lei nº 9.010,
o governo federal proibiu a utilização da palavra “lepra” em
qualquer órgão público do Brasil definitivamente.
3
A reação ao ocorrido deu-se por intermédio de uma carta
enviada ao arcebispo de Florianópolis, Dom Vito Schlickmann,
no mês de outubro de 2001, em que o Grupo Catarinense Pró-
Hansenianos solicitou a tomada de medidas em relação à
abordagem equivocada feita pelo sacerdote.
4
Em 2007, o Rio Grande do Sul apresentava um número
equivalente a 1,71 novos casos para cada 100 mil habitantes,
seguido de Santa Catarina com 3,65/100 mil e São Paulo com
5,24/100 mil. Disponível em: < http://portal.saude.gov.br/portal/
arquivos/pdf/boletim_novembro.pdf> Acesso em 13/03/2011.
A Organização Mundial de Saúde define a eliminação da doença
em um país ou região com base numa taxa de prevalência de
menos de 1 caso para cada 10 mil habitantes. Nesse sentido, a
hanseníase, que possui índices de incidência e prevalência
bastante altos em outras regiões brasileiras, insere-se na lista
dos grandes problemas de saúde que ainda necessitam de
solução.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 37

Primeira Parte

A hanseníase na história

Agora, eu estava do outro lado da fronteira,


na margem acidentada e escura,
onde os caminhos nunca se destinam ao futuro
nem os horizontes se abrem em promessas de luz.
Era a fronteira dos solitários,
onde jamais chegam os gestos,
as vozes e as palavras amigas...(Antônio Magalhães
Martins, Do Outro Lado da Fronteira)
38|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 39

Capítulo 1

Considerações sobre a
enfermidade
De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
(2001), a palavra “lepra” possui significados que ultrapassam
aqueles atribuídos pela medicina moderna em que ela é
traduzida como uma afecção de pele específica e de nome
hanseníase. Se nos detivermos a analisar cada um deles,
veremos que os sinônimos relacionados ao termo acabaram
assumindo feições bem específicas, imputando um caráter
depreciativo à enfermidade e ao seu portador. Na linguagem
popular, a “lepra” está associada à sarna de cachorro; na
linguagem figurativa, ao vício, à permissividade, à imoralidade.
Também ao “leproso”, significados desse gênero podem ser
verificados, como pessoa ruim, nojento, repugnante, corrupto,
garro e impuro. Tais significados acabaram se cristalizando ao
longo da história, auxiliando na edificação de saberes que
culminaram em práticas de rejeição àqueles que foram e são
tidos como portadores da doença.
O presente capítulo tem como objetivo elucidar algumas
das representações constituídas acerca da “lepra” de forma
que possamos compreendê-las como resultado de um
conjunto de particularidades históricas que induziram à
elaboração dos instrumentos para combater a enfermidade e
40|Débora Michels Mattos

ao enfermo, sobretudo no período que antecede a


modernidade. Previamente, descreveremos os seus caracteres
clínicos e formas de tratamento à luz de nossa
contemporaneidade, para então discutirmos as origens e a
disseminação da doença, os mecanismos segregacionistas e
os rituais medievais de exclusão impostos aos enfermos,
finalizando com uma breve nota ao nascimento da medicina
moderna e à reformulação da instituição hospitalar, nos
séculos XVIII e XIX, de forma a verificarmos as transformações
e permanências que ocorreram no campo da hanseníase.

Notas sobre a doença

A hanseníase ou “lepra”, como vulgarmente por muitos


ainda é chamada, é uma doença crônica provocada por uma
bactéria de nome Mycobacterium leprae. Sua transmissão é
direta e ocorre, principalmente, por micro-organismos
eliminados da mucosa nasal, levando de dois a cinco anos
para se manifestar. Atinge a pele, os nervos superficiais, o
nariz, a faringe, os olhos e os testículos. Em alguns casos,
verifica-se o aparecimento de caroços nos olhos e alterações
nos lóbulos das orelhas. Nos estágios avançados, pode
provocar a paralisação das mãos e dos pés com a sua posterior
atrofia (BECHELLI, 1982).
A incidência da hanseníase está relacionada, sobretudo, a
fatores de cunho socioeconômico. Embora sua transmissão
ocorra através do contato íntimo e prolongado entre pessoas,
as condições de vida, moradia e higiene caracterizam-se
determinantes à execução do contágio. Conforme Talhari
(1989), somente 10% das pessoas são propensas à aquisição
da doença, sendo que esta probabilidade está relacionada à
resistência do organismo de cada indivíduo e ao modo como
ele vive. Nesse sentido, a prevalência de um precário estado
de sobrevivência pode se configurar determinante ao contágio,
pois é necessário um convívio ininterrupto e aproximado, em
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 41

condições favoráveis, para que a doença se desenvolva.


Como sugere Queiroz (1997, p. 39), “[...] a probabilidade
de transmissão da doença é muito maior, por exemplo, num
barraco de favela em que residam vários indivíduos, estando
um deles infectado.” De fato, as baixas condições de vida
impostas aos que integram as classes miseráveis das sociedades
são acompanhadas de uma maior suscetibilidade à aquisição
de doenças. Mas, deve- se levar em conta também, quando
nos referimos à questão do contágio, a forma clínica
apresentada pelo portador. Atualmente, a hanseníase pode
ser caracterizada de quatro maneiras diferentes, sendo apenas
duas infectocontagiosas por natureza.
A fase inicial da doença, denominada Indeterminada,
caracteriza-se pela manifestação de lesões cutâneas superficiais
com a perda da sensibilidade. Essa perda da sensibilidade
pode se manifestar tanto em relação ao calor, quanto à dor e
ao tato, tendo em vista esse quadro também ser assinalado
pelo acometimento superficial dos nervos (QUEIROZ, 1997).
A baixa presença de bacilos faz com que a forma
Indeterminada não permita o contágio. No entanto, e, de
acordo com o aspecto imunológico desenvolvido pelo
portador, pode-se verificar o desenvolvimento da doença para
dois polos distintos: Tuberculóide e o Virchowiana. Se o
caminho percorrido se dirigir a hanseníase Tuberculóide, o
indivíduo continua não sendo transmissor da doença. Mas,
se for para a Virchowiana, passa a fazer parte de um estágio
em que o índice de transmissibilidade é extremamente alto.
Embora essa tendência à polarização seja mais frequente, não
é raro encontrarmos pessoas que se mantenham estáveis ao
quadro Indeterminado durante longos anos (SAMPAIO,
1984).
A hanseníase Tuberculóide também é caracterizada pela
baixa presença de bacilos, o que a torna, tal como a
hanseníase Indeterminada, não contagiosa. O portador desse
quadro clínico é, geralmente, acometido por lesões cutâneas
e nervosas bem delimitadas. Formam-se pelo corpo máculas
42|Débora Michels Mattos

elevadas de diferentes cores e tamanhos, verifica-se em locais


diferenciados a descamação da pele e a ausência da
sensibilidade é intensificada. Uma particularidade do grupo
Tuberculóide é a resistência à evolução do quadro. Embora
em alguns casos seja observado o desenvolvimento da
enfermidade, sobretudo quando ocorrem repetidas reações
da doença que fazem com que esta passe a apresentar certo
grau de contagiosidade, os enfermos portadores da hanseníase
Tuberculóide são, em sua maioria, estáveis e com grande
tendência à involução espontânea das manifestações
hansênicas (BECHELLI, 1982; QUEIROZ, 1997).
Em relação à hanseníase Virchowiana, também conhecida
como Lepromatosa, caracteriza-se por um alto índice de
contagiosidade. Em geral, apresenta manifestações bem
delimitadas assinaladas por infiltrações na pele, mucosas, olhos
e outras regiões. Nódulos podem ser verificados em vários
lugares, como orelhas, face e nariz. Embora em muitos casos
não haja lesões visíveis, a pele do portador pode se apresentar
inchada e brilhante nas orelhas, face e nariz, o que dá ao
doente o chamado aspecto “leonino” (BECHELLI, 1982).
A hanseníase Dimorfa, também conhecida como Mista, é
caracterizada por seu alto potencial de transmissibilidade e
pode se apresentar de forma semelhante à Tuberculóide e à
Virchowiana no que concerne as suas reações. Os principais
sintomas desse quadro são manchas eruptivas de pele,
anestesias localizadas e perfurações de algumas regiões.
Embora a presença dos bacilos seja instável, sobretudo devido
às reações hansênicas, aparecerem concomitantemente
próximas às formas Tuberculóide e Lepromatosa, e na ausência
de tratamento a hanseníase Dimorfa tem mais suscetibilidade
à evolução para o quadro Virchowiano da doença.
(BECHELI, 1982; QUEIROZ, 1997; SAMPAIO, 1984).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 43

Formas de tratamento

Ainda no século XIX, acreditava-se que a hanseníase era


uma doença contagiosa e incurável; para alguns hereditária,
dotada de um grande poder degenerativo e capaz de alterar,
significativamente, o aspecto físico do ser humano, sendo,
portanto, entendida como ameaça. Em 1872, o médico
norueguês Armauer Hansen descobriu o agente causador da
moléstia, comprovando ser infectocontagiosa. Segundo
Monteiro (1995), mesmo tendo esse fato revolucionado as
teorias existentes sobre suas formas de transmissão, através
da verificação de uma maior incidência em grupos familiares,
a teoria da hereditariedade continuou a ser defendida por
médicos e cientistas, quando no ano de 1923, com a Terceira
Conferência Internacional de Leprologia realizada em
Strasburgo, foi aceito o Princípio da Contagiosidade.
A autora afirma que a comprovação e a aceitação do
caráter infectocontagioso da doença reforçaram a crença de
que o isolamento do enfermo propiciaria a extinção do mal,
devido à ausência do agente causador. Essa medida era
defendida por Hansen e acabou por impulsionar a criação
de um mecanismo de profilaxia, o chamado Modelo
Norueguês, em que lugares como Filipinas e Brasil iriam se
inspirar. Muito embora esse modelo tenha sido apresentado
pela comunidade científica da Noruega como principal motivo
para o declínio da doença no país, de acordo com a autora,
esse declínio deu-se por intermédio de uma ação profilática
oposta àquela fundamentada na exclusão, sendo o trabalho
educativo realizado por comitês de saúde instituídos pelo
governo norueguês, a linha mestra no combate à enfermidade
naquele lugar.
Os comitês possuíam equipes que realizavam visitas domiciliares
e que atuavam como educadores em saúde pública. Toda vez
que as equipes encontravam um portador da hanseníase,
realizavam trabalho de esclarecimento que envolvia o doente e
sua família; eram-lhes esclarecidas as medidas higiênicas a
44|Débora Michels Mattos

serem tomadas, tais como separação de talheres, pratos, roupas


e camas; lhes era solicitado que, se possível, o doente tivesse
um quarto separado. Nos casos mais graves, ou naquele em
que as condições familiares não permitissem a permanência
do doente, eram oferecidas as comodidades hospitalares com
franca liberdade de entrar e sair.

O resultado das medidas educativas adotadas na Noruega pode


ser facilmente comprovado através da análise de seus dados
epidemiológicos, que demonstram o acentuado declínio da
endemia naquele país, ocorrido a partir da atuação dos
Comitês. Verifica-se que, até o ano de 1855, quando ocorreu a
adoção das medidas educativas, surgiam cerca de 200 casos
novos por ano. Trinta anos depois, em 1885, esse número havia
baixado para 60, uma queda de 70% na incidência da doença.
Isso ocorria sem que se desse o isolamento forçado do doente
e mesmo sem que houvesse qualquer tratamento eficaz
(MONTEIRO, 1995, p. 122-123).
Sobrepujando as propostas de natureza educativa
baseadas em noções de higiene e conscientização popular, a
exemplo do que havia ocorrido na Noruega entre os anos de
1855 e 1885, aquelas de caráter segregacionista foram
veiculadas como mais eficazes, sendo aos poucos assimiladas
no cenário mundial. Ao analisá-las, no entanto, podemos
perceber que o principal alvo de intervenção não foi a
enfermidade, mas aquele que era o seu portador. A falta de
um conhecimento preciso sobre a doença, o pânico coletivo
provocado por sua presença, permitiu que inúmeras práticas
fossem adotadas por diferentes sociedades, em diferentes
épocas, a fim de resolver a questão da incidência. No entanto,
essas práticas não vislumbravam a doença como o objeto de
intervenção. O alvo acertado foi o seu portador e, a medida,
a segregação.
Entre as formas utilizadas para diminuir as afecções
causadas, até 1940 não havia uma que oferecesse a
possibilidade de cura ao enfermo. Segundo Araújo (1946),
remédios à base de ervas, óleos, banhos, caldos de animais
silvestres e experimentos variados se apresentavam como
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 45

única forma de tratamento. Ainda que a aplicação do óleo de


chalmoogra1 fosse considerada eficaz na redução das afecções
cutâneas, somente com a introdução das sulfonas, no ano de
1943, a cura passou a ser vista como algo possível.
Embora tenha chegado o momento de a doença ser o
objeto central da intervenção, em alguns lugares os
mecanismos segregacionistas impostos aos enfermos acabaram
sobrepujando essa nova realidade. No Brasil, mesmo que
esses mecanismos tenham começado a ser extintos no ano
de 1954, com a regulamentação da Lei Federal nº 1.045 de
19502, de acordo com Monteiro (1995) o estado de São Paulo,
por exemplo, continuou mantendo o modelo isolacionista até
fins da década de 60.
Embora em algumas regiões brasileiras esse processo não
tenha sido tão demorado e oferecido tantas resistências, como
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a reformulação e
aplicação de um novo plano de combate à hanseníase no
Brasil ainda iria demorar (VELLOSO, 2002).
No que concerne à medicação utilizada para a cura da
enfermidade, a monoterapia sulfônica foi aos poucos sendo
entendida como ineficaz para os casos que se mostravam
resistentes ao tratamento. A partir de 1985, outro tipo de
medicamento foi introduzido no país: a poliquimioterapia.
Assinalada pela associação de outras duas substâncias à antiga
sulfona, aumentou as chances de cura, além de possibilitar a
interrupção da cadeia transmissiva após 48 horas de sua
primeira aplicação, segundo estudos realizados pela
Organização Mundial da Saúde3.
O tratamento básico postulado pela Organização Mundial
da Saúde4 deve ser realizado em regime laboratorial. Consiste
na tomada da medicação por um período de seis meses para
os quadros clínicos com baixa quantidade de bacilos
(Indeterminado e Tuberculóide) e dois anos para os quadros
com alta quantidade (Dimorfo e Virchowiano). A importância
de um trabalho de cunho educativo ser efetuado com os
enfermos de forma a incentivá-los ao exercício do tratamento
46|Débora Michels Mattos

é fundamental, pois a sistematização do medicamento é


imprescindível à cura e ao não surgimento de possíveis agraves
físicos de cunho estigmatizante e incapacitante5. Junto a isso,
o controle sobre os comunicantes, ou seja, aqueles que tiveram
contato com o doente antes da doença ser detectada e tratada,
também é fundamental para a sua erradicação. Através de
exames específicos e aplicação de duas doses de vacina BCG
num intervalo de seis meses, a possibilidade da doença se
desenvolver naqueles que ainda se encontram sadios é
consideravelmente reduzida (ESTADO DE SANTA CATARINA,
1996).

Origem e disseminação

O local do aparecimento da hanseníase ainda é


considerado uma incógnita. Documentos históricos das mais
diferentes regiões fazem referência a sua existência enquanto
“lepra” antes da Era Cristã. Textos chineses e hindus, datados
da Antiguidade, também já afirmavam a presença do mal.
No tratado japonês de medicina de 1000 a.C., o Ishimpo, ele
era descrito com os nomes de Lei-Fon ou Lai-Ping. Na China,
entre os séculos X e III a.C., foi denominado Fa-Fung ou Ta-
Ma-Feng-Pin (PRENDES, 1963).
Mas a historiografia sobre sua origem é bastante imprecisa,
tornando difícil saber, ao certo, o foco primitivo. Pesquisadores
afirmam ter sido a Ásia, em lugares como China e Pérsia, a
primeira região acometida. Outros estudiosos referenciam a
África como locus inicial de sua aparição (AGRÍCOLA, 1960).
Estudos recentes, no entanto, defendem a ideia de que a
doença pode ter surgido em diferentes localidades. No Egito,
por exemplo, é possível que tenha marcado presença desde
3000 a.C. (SOURNIA, 1986).
Identificar, com exatidão, a presença da hanseníase nos
mais diversos lugares e em tempos remotos traz algumas
dificuldades. Diferentes afecções de pele, principalmente
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 47

aquelas causadoras de deformidades, acabaram sendo


traduzidas como a doença. O Tsara’ath dos hebreus,
entendido por “lepra”, não possuiu um significado único, mas
abrangeu um conjunto de enfermidades de cunho visual
semelhante, como vitiligo, psoríase e pênfigo (MONTEIRO,
1995). Como resultado, a ausência de um saber preciso
impossibilitou a elaboração de fontes documentais fidedignas
sobre sua origem e incidência, o que também contribuiu para
a perpetuação dos estigmas advindos do Velho Testamento
que lhe imputaram os significados de caráter degradante.
De fato, como sugere Rotberg (1975) em estudo sobre a
etimologia da palavra “lepra”, os significados de cunho
degradante imputados ao termo são originários do século III
a.C., quando cerca de 70 judeus, traduzindo a Torá, os Neviim
e os Ketuvin para o grego, que mais tarde viriam a se
transformar na Bíblia, denominaram o Tsara’ath hebraico
como sendo o mesmo que a “lepra” grega, compreendida
como escamação ou esfoliação, algo que segundo ao autor,
àquela cultura e naquele período, tinha por significado
impureza e desonra e não era o mesmo que a hanseníase, já
que esta, para os gregos, possuía outra denominação.
Por iniciativa de Ptolomeu II, o Filadelfo, a Torá, os Neviim e
os Ketuvin hebraicos foram traduzidos para o grego, no século
III a.C. e transformaram-se na Bíblia. Ao depararem com o
tsara’ath, os 70 ou 72 letrados judeus encarregados da tarefa,
não acharam nada melhor que “lepra”, palavra grega
significando descamação e esfoliação, a qual, possivelmente,
nessa fase da vida helênica, teria conotação de “impureza” ou
“desonra” – algo semelhante, talvez, à “casca grossa” brasileira.
Também não se tratava da hanseníase, já que esta era conhecida
pelos povos mediterrâneos da época sob outros nomes,
“elefantíase” entre os gregos (ROTBERG, 1975, p. 295).
De acordo com Rotberg, em decorrência da tradução
bíblica para o latim, os sinônimos atribuídos às palavras “lepra”
e “leproso” não sofreram alterações, sendo interpretados pela
cristandade como sujeira, pecado, impureza e degradação.
48|Débora Michels Mattos

Embora os avanços da ciência tenham possibilitado a algumas


enfermidades anteriormente compreendidas por “lepra”
novas designações, como eczema, micose e outras, o mesmo
não ocorreu com a hanseníase, que acabou associada ao
terrível mal bíblico de caráter estigmatizante, descrito no livro
sagrado dos cristãos.
Nos séculos próximos ao ano zero, provavelmente, disputas
travadas entre povos distintos contribuíram para a introdução
da hanseníase no continente europeu. O contato comercial
estabelecido entre diferentes regiões propiciou o intercâmbio
entre elas, como a troca de enfermidades. É possível que
fenícios, egípcios e hebreus tenham introduzido a doença no
Mediterrâneo e Europa. Posteriormente, a Itália acabou sendo
vitimada. Em face das Guerras Púnicas, os exércitos romanos
a levaram para outras localidades do então conhecido mundo
ocidental. Como agravante, os deslocamentos populacionais
decorrentes das Cruzadas possibilitaram o seu avanço,
provocando um aumento significativo dos infectados e
transformando o doente em sinônimo de ameaça (SOURNIA,
1986).
Por volta dos séculos XIV e XV, os casos tidos por “lepra”
diminuíram significativamente na Europa ocidental. Segundo
Foucault, “[...] não por efeito, longamente procurado, de
obscuras práticas médicas, mas sim resultado espontâneo da
segregação e a consequência, também, após o fim das
Cruzadas, da ruptura com os focos orientais de infecção”
(1987, p. 5-6). Para alguns pesquisadores, como Araújo
(1946), outros fatores também influenciaram o seu declínio.
Responsável pela morte de milhares de pessoas a peste negra
acabou por atingir, além daqueles considerados saudáveis,
os entendidos como menos resistentes. Como resultado,
grande parte da população que era portadora da “lepra”
esmoreceu, atingida pela epidemia. Após o surto de peste, a
sociedade assistiu a uma série de transformações que foram
associadas ao advento da modernidade. Entre elas, a melhoria
da qualidade de vida, que dificultou a aquisição de
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 49

enfermidades. Paralelamente, as expansões ultramarinas


possibilitaram o transporte de um número considerável de
pessoas para as terras além-mar. A bordo das embarcações e
no meio de colonizadores, fugitivos, degredados e escravos,
foram levados para as Américas muitos doentes de hanseníase,
reduzindo a quantidade de enfermos no continente europeu
e introduzindo a doença nas terras “descobertas”.

As bases para a segregação

Durante a Antiguidade a incidência das doenças sobre as


pessoas era, em grande parte, relacionada à vontade divina,
demoníaca ou resultante do pecado (SCLIAR, 1987). No que
concerne à “lepra”, esta acabou integrando o universo
constitutivo das três causas acima descritas, sendo que a última
figurou como a mais forte. Isso pode ser observado se
tomarmos como referência documentos que discorrem sobre
a enfermidade nos mais diferentes lugares e em tempos
remotos. Em Historia de la Lepra en Cuba, de Prendes (1963),
temos um exemplo. Trechos de sua obra são dedicados a
uma significativa retrospectiva histórica acerca das concepções
edificadas em torno da doença e do doente. Segundo o autor,
já na antiga Pérsia a “lepra” teria sido atribuída às impurezas
do espírito, aqueles que a portavam eram considerados filhos
do deus do mal, sendo, portanto, agentes de poluição.
Entre estes pueblos los enfermos eran considerados hijos de
Arinan, Dios del mal, y, cuado morían, no se les podía sepultar,
ni quemar, ni arrojar a los ríos, porque siendo la tierra, el fuego
y el agua sagrados se mancharían al ponerse en contacto com
los cadáveres, así que se les untaba con cera para separarlos
de la tierra y desnudos se colocaban en las Torres de Silencio
para que fueran pasto de las aves de rapiña (PRENDES, 1963,
p. 19-20).
Ao analisarmos o livro sagrado dos cristãos, em Números,
capítulo 12, versículos 1 ao 6, constatamos que os hebreus
50|Débora Michels Mattos

também deram a ela significado semelhante. Descrita com o


nome de Tsara’ath, não foi entendida como enfermidade,
mas como castigo divino ou maldição.
Falaram Miriã e Arão contra Moisés [...]. E a ira do Senhor
contra eles se acendeu; e retirou-se. A nuvem afastou-se de
sobre a tenda; e eis que Miriã achou-se leprosa, branca como a
neve, e eis que Miriã estava leprosa (NÚMEROS, 12,1-6).
Diferente das concepções edificadas acerca do estado de
saúde e doença, em que para a doença era possível ser obtida
a restituição da saúde por meio da medicina, da vontade
divina ou de outras práticas curativas, a “lepra” acabou sendo
compreendida de maneira singular, muito mais como um
fenômeno ligado ao campo do profano e do sagrado, tendo
em vista a relação estabelecida com as impurezas do espírito6,
do que uma enfermidade sujeita à obtenção de cura.
A hegemonia do cristianismo no mundo ocidental, durante
a Idade Média, fez da Bíblia a fonte de maior relevância para
o estudo das práticas utilizadas para resolver o problema da
doença e do doente neste período e em épocas posteriores.
Mas foi por intermédio dela, também, que os mitos criados
acerca da “lepra” e do “leproso” acabaram sendo
exacerbados, principalmente, quando os princípios profiláticos
presentes na obra encontraram terreno propício para a sua
real aplicação. Monteiro (1995) expõe que entre as formas
de tratamento dispensadas ao doente durante a Antiguidade
e em diferentes regiões, também na Índia pôde ser observada
a sua segregação. Segundo a autora, essa prática não era
apenas aplicada a ele, mas a qualquer indivíduo que fosse
portador de enfermidades de cunho degenerativo, ou seja,
doenças que deterioravam o aspecto físico do ser humano,
provocando repulsa aos olhos dos demais.
É provável que a prática segregacionista instituída na Idade
Média e aplicada ao enfermo sob forma de lei tenha sido
influenciada por esse aspecto degradante inerente à
enfermidade. De acordo com Sournia (1986), o afastamento
do doente foi resultado de um misto de pânico e repugnância
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 51

que integrava o pensamento coletivo daquela sociedade.


As pessoas afastavam-se dele porque inspirava repulsa e horror.
Ora, na sua forma lepromatosa, a lepra provoca um grande
nariz, lábios grossos, e o rosto adquire um aspecto bestial a
que chamamos de ‘leonino’. Quando é mutilante, pode
aumentar o nariz, as orelhas, as extremidades dos dedos ou
dos membros, e as cicatrizes destes estropiados são lívidas,
descoloridas, por vezes sangrentas. Por conseqüência, o leproso
era sujo, hediondo e sobretudo feio. Apenas humano, ele era
outro, era um fugitivo. Metia medo, e como causa de escândalo
devia ser encerrado (SOURNIA, 1986, p. 137).
Devemos levar em consideração, no entanto, que o
pensamento coletivo da sociedade medieval esteve recheado
de concepções fantasiosas acerca do mundo, das coisas, das
enfermidades. Dentro desse imaginário, a degradação das
feições de um doente de “lepra” pode também ter sido
associada à degradação moral, o que contribuiu para a
introdução do enfermo na lista dos estigmatizados que fizeram
e ainda fazem parte de nossa história.
De fato, como sugere Gomide, “[...] à imagem do ‘leproso’
adere, mitologicamente, em virtude da corrupção física
própria da moléstia, a ‘corrupção moral’, que torna o portador
da ‘lepra’, portador de todos os vícios e de todos os
sentimentos que o degradam moralmente” (GOMIDE, 1991,
p. 30). O resultado disso foi que o doente era visto como um
ser repulsivo física e espiritualmente, contrário aos
ensinamentos de Deus e propagador do mal. Ameaça ao bem-
estar da sociedade, deveria ser separado dos demais.
Se entendermos o estigma como um conjunto de atributos
fixados por determinada sociedade àqueles que a integram,
mas que de alguma forma se diferenciam do grupo por não
corresponderem aos valores e normas pré-estabelecidas,
torna-se mais fácil a visualização das práticas de rejeição
relativas à “lepra”. Goffman (1988) define o estigma como
algo que deprecia o indivíduo perante os demais, de acordo
com símbolos que caracterizam diferenças não aceitas ou não
52|Débora Michels Mattos

desejadas. Esses símbolos podem ser visíveis, como uma


deformidade física; comportamentais, como a delinquência e
o vício; e coletivos, como raça ou classe social. Para Ornellas
(1997), essas três categorias acabaram sendo associadas à
figura do enfermo de “lepra”, uma vez que ele foi durante
muito tempo considerado feio, sujo, impuro e agente de
destruição.
É fácil inferir que a lepra contém, em princípio, a condição
física capaz de gerar uma rejeição imediata: a doença deforma,
mutila, o que, é provável, ocorria mais freqüentemente na
Antigüidade, como na Idade Média, de modo muito mais
ostensivo que hoje, quando as terapêuticas empregadas eram
menos eficazes.

E o impacto inicial, causado pela visão do leproso deformado,


acompanhava-se do reconhecimento das manifestações visíveis,
como um signo de uma doença incurável, progressiva e
repulsiva, capaz de ser transmitida de uma pessoa para a outra,
o que incluía os leprosos em um grupo estigmatizado
(ORNELLAS, 1997, p. 60).

O modelo de exclusão medieval

Desde os primeiros séculos da Era Cristã a segregação social


do doente de “lepra” pôde ser observada de forma mais
contundente. Com o avanço da enfermidade a partir do
século III d.C., os enfermos passaram a receber tratamento
específico, baseado na exclusão. Rosen (1994) afirma que
essa atitude segregacionista foi considerada legítima em vista
do perigo que as doenças contagiosas representavam para a
sociedade.
Quando pessoas que sofrem moléstias transmissíveis podem
ameaçar, diretamente, a saúde dos que circundam, a
comunidade, agindo através de suas instituições, sente-se no
direito, para proteger-se, de sujeitar o indivíduo a restrições, e
até mesmo a sanções (ROSEN, 1994, p. 60).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 53

De fato, como sugere Prendes (1963), o alijamento dos


enfermos ocorreu na Idade Média devido ao instinto natural
do ser humano em conservar e proteger sua vida. O aumento
da enfermidade, por volta do século III, desencadeou que os
doentes fossem afastados violentamente dos lugares onde
residiam, refugiando-se em colinas e estabelecendo colônias
de subsistência nestes locais. A chegada de um mais abastado
resultava em melhorias no espaço a eles circunscrito, sendo
que destas melhorias nasceram os primeiros hospitais
denominados “leprosarias”. Sem desempenhar função
terapêutica ou curativa, as leprosarias serviram de abrigo ao
provedor da ameaça e acabaram se tornando instrumento
de auxílio no controle da doença. Em geral, sua manutenção
dependia da prática caritativa de diferentes pessoas e ordens
religiosas.
A ausência de um conhecimento médico preciso acerca
da enfermidade possibilitou a utilização das regras
estabelecidas na Bíblia para resolver o problema da doença e
do doente. Sob o comando da Igreja, as orientações contidas
no terceiro livro de Moisés, o Levítico, foram postas em prática.
Na obra, considerada o “[...] primeiro ‘manual’ de saúde
pública que se tem notícia” (MONTEIRO, 1995, p. 7), podem
ser encontradas várias apreciações em torno da “lepra” e do
“leproso”, como por exemplo, as primeiras referências que
denotam o caráter pejorativo atribuído à enfermidade, uma
longa descrição sobre as formas de manifestação e,
especialmente, as leis iniciais diretamente aplicadas ao enfermo,
estando a sua segregação no interior delas.
Disse o Senhor a Moisés e a Arão: o homem que tiver na
sua pele inchação ou pústula ou mancha lustrosa, e isto se
tornar como praga de lepra, será levado a Arão, o sacerdote,
ou a um de seus filhos, sacerdotes. O sacerdote lhe
examinará a praga na pele; se o pêlo na praga se tornou
branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele de
sua carne, é praga de lepra, o sacerdote o examinará, e o
declarará imundo. [...] Será imundo durante os dias em
54|Débora Michels Mattos

que a praga estiver nele; é imundo, habitará só, a sua


habitação será fora do arraial. (LEVÍTICO, 13, 2- 3-46)
Baseando-se no referido “manual”, o clero, por meio dos
concílios de Orléans e Lion, datados de 549 e 583,
respectivamente, obteve apoio governamental para que o
doente fosse tratado de forma específica. Foi com base no
discurso segregacionista por esses concílios fomentado que o
rei lombardo Rotário normatizou o alijamento dos enfermos
no ano de 644 e que Pepino, o Breve, e Carlos Magno fizeram
o mesmo nos anos de 757 e 759. Séculos mais tarde outros
concílios, como o de Latrão, em 1179, o de Morceux, em
1326, e o de Lavour, em 1368, também foram edificados. A
partir deles a prática segregacionista foi reafirmada e acabou
predominando em quase todo o ocidente medieval (ROSEN,
1994). Procurando atender aos princípios por eles instituídos,
leprosários foram construídos em diversas regiões da Europa,
como Alemanha, Inglaterra, Espanha, Irlanda, Holanda e
Portugal. Segundo Foucault, mais de dezenove mil foram
alçados durante esse período, sendo que só na França
existiram cerca de dois mil (FOUCAULT, 1987).
Seguindo as normas estabelecidas no Levítico, para que
na Idade Média a segregação social fosse efetivada constituiu-
se um tribunal. A princípio esse tribunal recebeu o auxílio de
um enfermo, cuja função era efetuar a identificação e
comprovação dos casos suspeitos. Contudo, essa presença
deixou de ser necessária ao longo dos anos, sendo substituída
por membros do governo, do clero e da ciência. Por volta do
século XV, nova alteração foi feita, sendo um médico, um
cirurgião e dois barbeiros designados para realizar a função.
Após a comprovação da enfermidade, alijava-se da sociedade,
mediante um ritual sagrado, aquele que era o seu portador.
Através desse rito o doente era destituído de sua identidade,
recebendo o termo “leproso” como denominação
(PRENDES, 1963).
O Separatio Leprosarium foi uma cerimônia semelhante
às celebradas em favor dos mortos no ocidente cristão. O
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 55

povo assistia ao cerimonial, padre e igreja eram devidamente


paramentados e um véu preto cobria o enfermo. Sobre a
cabeça do mesmo derramavam terra a fim de representar
sua morte. Ao término da solenidade a autoridade eclesiástica
proferia as palavras Sic mortuus mundo, vivus iterum Deo.
Morte para o mundo, renascença em Deus: era este o futuro
reservado ao doente. Nessa simulação o enfermo era
conduzido a um cemitério próximo e por alguns instantes
introduzido numa cova. Após o sacerdote lhe informar as
normas a serem seguidas ele era asilado em um leprosário ou
colocado “fora do arraial” (SOURNIA, 1986).
Ao conjunto das regras impostas, fazia parte o uso de alguns
objetos que visavam a sua melhor identificação. Mesmo tendo
sido excluído do convívio social, era comum que em algumas
ocasiões fosse permitida a sua presença com o propósito de
mendigar. Geralmente, concedia-se essa permissão em dias
festivos, quando comemorações religiosas procuravam
demonstrar que a caridade e a piedade aproximavam as
pessoas de Deus.7 Compondo o quadro dos objetos a serem
utilizados, havia uma veste longa e fechada tendo um símbolo
bordado ao peito e um par de luvas para lhe cobrir as mãos,
uma matraca que servia para anunciar sua chegada, um
bastão em cuja extremidade era colocada um recipiente para
o recebimento de caridades e um barril para que pudesse
beber a água da chuva, tendo em vista estar proibido de
beber a das fontes, lagos e rios.
Em algumas regiões a vestimenta sofria variações. Na
Alemanha, por exemplo, a roupagem era preta e
acompanhada de um chapéu. No peito, duas mãos brancas
bordadas sinalizavam a sua condição. Esses símbolos fixados
nas vestes também podiam variar. Por vezes, apareciam sob
a forma de uma letra “L” e, por vezes, em formato de um
coração (CASTIGLIONNI, 1947).
Se compararmos o modelo de tratamento aplicado ao
então doente de “lepra” durante o período medieval com
aqueles utilizados para resolver o problema de outras doenças,
56|Débora Michels Mattos

é possível constatarmos que para estas não foram criadas


concepções fantasiosas e imputados sinais distintivos de cunho
estigmatizante. Mesmo em relação às pestes, o medo coletivo
provocado por sua presença surgia da provável iminência da
morte. Ainda que para muitos a peste fosse considerada uma
catástrofe relacionada às faltas humanas em relação às leis de
Deus, esta catástrofe era vista no âmbito da coletividade. Não
havia uma única pessoa responsável pelo flagelo que
provocava o esmorecimento da sociedade, mas a população
como um todo era responsável por ele. Qualquer um poderia
ser o agente propagador do mal. Medidas do tipo quarentena
domiciliar eram executadas com o propósito de serem
diminuídos os riscos de contágio e as próprias pessoas se
refugiavam com medo de sofrerem contaminação
(DELUMEAU, 1990). Mas sobre elas, no entanto, não foram
impostos sinais como aqueles dirigidos aos “leprosos”. As
práticas utilizadas para resolver o problema da peste e outras
enfermidades jamais se assemelharam às que foram
empregadas ao doente de “lepra”. No âmbito da Bíblia,
segundo Monteiro,
esta foi a única doença merecedora de uma abordagem
específica, objeto de descrição pormenorizada e de leis próprias
que normatizavam desde o momento do diagnóstico e a
conseqüente exclusão, até a eventual reintegração do doente
(1995, p. 9).
Se tomarmos conhecimento dos momentos em que, por
várias vezes, os doentes de “lepra” foram responsabilizados
pelas adversidades ocorridas no ocidente cristão, torna-se mais
fácil compreendermos a singularidade representativa que
integrou o universo da doença. Assim como as concepções
edificadas acerca dos marginalizados abrangiam a crença de
que as aflições humanas eram o resultado de sua presença,
sendo considerados parte integrante deste grupo, os doentes
de “lepra” também foram alvo de todo o tipo de expiação. A
exemplo, tem-se o fato ocorrido na França de 1321, quando
judeus e “leprosos” foram acusados de terem provocado uma
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 57

série de flagelos que assolaram a região e acabaram mortos


em vista da revolta popular. 8 Acredita-se que cerca de
seiscentos doentes foram queimados com o fogo ateado pela
população enfurecida que, de acordo com Castiglionni, sem
aguardar veredicto judicial, “[...] antecipava o simulacro dos
processos legais queimando-os, em edifícios afastados,
isoladamente ou em grupo” (CASTIGLIONNI, 1947, p. 423).
Prendes (1963) enfatiza que atitudes semelhantes às da
França puderam ser verificadas em outras regiões do ocidente
europeu, como em Londres, no ano de 1326, quando muitos
enfermos também acabaram morrendo por causa da fúria
coletiva. A inobservância de práticas similares terem sido
aplicadas aos que portaram enfermidades de outra natureza
evidencia o caráter estigmatizante que desde muito envolveu
a “lepra”. Como menciona Monteiro (1995):
A queima e perseguição de pessoas identificadas como sendo
portadoras de lepra pode ser atribuída a uma série de fatores,
porém cabe assinalar que não se tem registro de queima de
tuberculosos, evidenciando, portanto, que a lepra não era vista
apenas como uma doença grave, temida ou fatal. Mais do que
isso, ela prende-se a toda uma herança milenarmente arraigada
no inconsciente coletivo da ocidentalidade cristã (MONTEIRO,
1995, p. 54).
Com efeito, esse conjunto de representações criadas não
foi manifestado, unicamente, através de práticas como as que
já foram descritas aqui. Até mesmo a diversidade literária que
foi edificada acerca da doença e do doente possibilitou que
os muitos significados imputados a eles criassem raízes e fossem
assimilados pelas pessoas de forma a integrar de maneira quase
unânime o imaginário da coletividade. Para Tronca (1985),
essas concepções que constituíram o universo da doença
integram uma teia simbólica de significados que se remodelam
historicamente e que estariam, sobretudo,
[...] imersas no interior de uma mesma estrutura, de um mesmo
universo de significantes, cuja partitura é um imaginário central,
que cria, em suas derivações históricas, instituições asilares,
58|Débora Michels Mattos

imagens estéticas, teorias científicas – todas tecendo uma rede


simbólica que produz e reproduz o fato lepra, dotado não de
sentidos idênticos, mas homólogos – mal divino, degradação
biológica, destruição estética, perigo interno e permanente a
ameaçar o mundo dos sãos (TRONCA, 1985, p. 141).

O moderno modelo de segregação

Se for fato que na Idade Média verificou-se a exacerbação


dos mitos criados em torno da “lepra”, com a legitimação das
práticas de exclusão inspiradas em preceitos do Antigo
Testamento, é fato também que essa exclusão, embora
sofrendo algumas modificações, não deixou de existir com a
chegada da modernidade. Sua singularidade, no entanto,
esteve ligada a uma nova lógica de vislumbrar o doente, antes
objeto de práticas caritativas e, agora, sujeito de intervenção.
Foi na transformação da estrutura hospitalar concebida
no seio da sociedade capitalista que o modo como a
hanseníase passou a ser enfrentada sofreu algumas alterações.
Embora na Idade Média o enfermo fosse afastado do convívio
social mediante rituais de segregação, esse afastamento não
ocorria, necessariamente, com o seu internamento nos
chamados “hospitais-leprosarias” (MONTEIRO, 1995). Para
Foucault, ele era muito mais visto “[...] dentro de uma prática
da rejeição, do exílio-cerca, perdendo-se lá dentro como uma
massa sem importância diferenciar” (FOUCAULT, 1999, p. 154).
Durante os séculos XVIII e XIX, com o estabelecimento
do modo capitalista de produção, a saúde passou a ser
observada no âmbito da produtividade e a doença como um
obstáculo para isso. De acordo com Ornellas (1997), foi então
que surgiu um novo modelo de hospital, não mais voltado
ao alívio, ao amparo e ao afastamento de toda a sorte de
enfermos e que era típico da Idade Média, mas aquele
destinado ao tratamento, à promoção da cura e ao controle
individual.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 59

Os modos através dos quais as práticas médicas se estruturam,


suas formas de organização, suas instituições, refletem não só
os significados que, em cada época, o homem atribui a si mesmo
e a sua doença, como, também, os mecanismos que viabilizam
a articulação dessas práticas ao sistema de produção e reprodução
social. A história das instituições médicas, sejam incorporadas no
ideário das pessoas e coletividades, ou consolidadas em condutas
e práticas, está permeada por determinações econômicas e
políticas (ORNELLAS, 1997, p. 32).
De fato, a medicina moderna, sob influência do
positivismo, nasceu como um ramo da ciência que tomou
para si a tarefa de assistir ao doente e tecer considerações
acerca do mal que o afetava. Com base em métodos
investigativos e analíticos, surgiu num período da história em
que o corpo dos indivíduos se apresentou como parte de
algo maior, denominado “corpo da sociedade” (LUZ, 1988).
Nesse contexto, o hospital surgiu como um locus de atuação
aos profissionais da medicina na medida em que se constituiu
instrumento de intervenção para impedir alguns dos
problemas que se configuravam nocivos à lógica burguesa
de ordem e progresso. Dentro da instituição hospitalar, a
prática médica foi aos poucos obtendo poder e legitimidade
(DONNANGELO, 1976).
Segundo Ornellas (1997), a incorporação da medicina ao
hospital ocorreu por volta do século XVIII, quando esta,
assumindo o seu controle, possibilitou a crença na eficácia
das terapias de combate às doenças que foram sendo
desenvolvidas. A partir desse momento, as instituições asilares
se constituíram num universo à parte, uma vez que para
algumas enfermidades, como a hanseníase e a loucura, tais
terapias inexistiram.
Quando, a partir do século XVIII, a medicina veio a ser
incorporada ao hospital, assumindo o seu controle, passou-se
a acreditar que esse pudesse exercer uma ação terapêutica eficaz.
É então que o hospital adquire o estatuto de contempo-
raneidade. As instituições asilares se destacam, então, como
instituições diferenciadas, ficando, no entanto, o hospício e o
60|Débora Michels Mattos

leprosário em suspenso, como situações ambíguas: no primeiro


caso, a indeterminada condição de doente do louco e, no
segundo, a segregação vitalícia que o estigma consubstancia
(ORNELLAS, 1997, p. 46).
Constituindo-se apenas uma das muitas instituições de
sequestro que Foucault atribuiu à sociedade disciplinar,
sociedade esta assinalada pela organização do espaço,
ordenação das condutas e formação de um padrão positivo
de comportamento coletivo, aquelas que foram criadas para
os doentes de hanseníase, à luz das reformulações
estabelecidas acerca do estado de saúde e doença, não
poderiam ser chamadas, como na Idade Média, estabele-
cimentos de exclusão, uma vez que o objetivo principal destes
estabelecimentos não era o de excluir, mas ao contrário,
integrá-los a um sistema normatizador (FOUCAULT, 2001).
Grande semelhança com as instituições medievais, pois
continuaram acolhendo, abrigando e alijando os indivíduos,
diferenciaram-se delas por intermédio de suas novas funções:
a de vigiar, controlar e normatizar a vida daqueles que se
constituíam um perigo para o meio social em formação a
partir dos saberes que a ciência e a medicina passaram a
produzir e a defender. No âmbito da “lepra”, tais instituições
só puderam ser caracterizadas fundamentalmente hospitais
quando, em meados do século XX, outro tipo de tratamento
foi estabelecido, fazendo a cura para a doença tornar-se
possível e, o isolamento do enfermo proscrito. Nesse contexto
que, no Brasil, a antiga denominação “lepra” foi substituída
por hanseníase.
Assim, em que medida os significados que compõem
historicamente o imaginário acerca da doença estiveram
presentes no discurso científico e na medicina social na virada
do século XX até a década de 40, no Brasil, e mais
especificamente, no contexto da campanha de combate à
enfermidade em Santa Catarina? De acordo com Gomide
(1991), sabemos que esses significados jamais deixaram de
existir, ainda que tenham sofrido algumas alterações no tempo e no
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 61

espaço. Exemplo disso, de terrível mal bíblico, sinônimo de impureza


espiritual, a “lepra” passou a ser entendida como um fenômeno
ligado à inferioridade da raça. Quando o território brasileiro começou
a integrar a geografia da hanseníase a partir do processo de
colonização europeia, os saberes que foram produzidos acerca da
doença no ocidente cristão medieval passaram a fazer parte do
novo cenário que foi aos poucos se configurando. Esses saberes
sofreram remodelações à medida que o Brasil também foi se
remodelando.

Fonte:
1
Chalmoogra é uma designação dada a várias plantas da família
das flacourtiáceas, especialmente as do gênero Hydnocarpus,
de cujas sementes eram retiradas o óleo que por muito tempo
foi utilizado no tratamento da lepra e outras dermatoses. Nativa
do Sudeste Asiático sob a denominação científica Hydnocarpus
Kurzzi, no Brasil foi denominada Carpotrochi Brasiliensis
(HOUAISS, 2001). De acordo com Queiroz (1997), o
chalmoogra já havia sido utilizado há muito pelos orientais no
tratamento da “lepra”. Por volta do século XIX, a Europa
também passou a usá-lo como remédio para a doença e isso
acabou incentivando a que diversos outros lugares seguissem a
mesma prescrição. Aplicado externa e internamente, o óleo de
chalmoogra causava reações fortes no indivíduo que culminavam
em sérios distúrbios gastrointestinais . Além disso, sua aplicação
acabava resultando em lesões cutâneas irreversíveis que
aumentavam ainda mais as marcas deixadas pela doença (SÃO
THIAGO, 1992. mimeo).
2
A Lei Federal nº 1.045 concedia alta aos doentes internados
nas instituições asilares e admitia a suspensão temporária das
prescrições de confinamento dispostas nas leis anteriores.
(DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. Lei nº 1.045 de 02 de janeiro
de 1950. Rio de Janeiro, Imprensa Oficial, 23 de janeiro de
1950).
3
A associação da Rinfampicina e da Clofazimina à Sulfona (ou
Dapsona) visa impossibilitar o desenvolvimento de mecanismos
de resistência ao medicamento. A utilização de apenas um tipo
62|Débora Michels Mattos

de droga no combate à hanseníase acena para essa hipótese,


sendo considerado qualquer tratamento monoterápico
inadequado e ineficaz para a cura da doença. (ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE, 1995).
4
Alguns pacientes de hanseníase necessitam de cuidados
especiais, como os casos recidivos (que após o tratamento
voltam a apresentar manifestações da doença), os casos com
reações hansênicas (que apresentam episódios agudos durante
a evolução da enfermidade, sendo esta a principal causa das
lesões de caráter incapacitante), e os portadores da tuberculose.
Para todos esses casos o tratamento básico prescrito pela
Organização Mundial da Saúde tende a variar de acordo com
o quadro clínico apresentado pelo paciente.
5
Nota-se que, quanto mais precocemente o enfermo é tratado e
segue as recomendações atinentes a esse tratamento, evita-se
ou diminui-se a ocorrência desses problemas (grifo meu).
6
O sentido mais comum atribuído à palavra “pureza” está
relacionado aos princípios do Velho e Novo Testamento. Neles,
o significado do termo refere-se ao estado de completa devoção
a Deus em termos de espírito ou coração. Esse estado devocional
representa a total entrega espiritual aos ensinamentos sagrados.
Aquele que não segue as prescrições divinas e entra em contato
com as práticas mundanas é destituído de sua pureza.
Consequentemente, é considerado impuro, ou seja, um pecador
(DOUGLAS, 1962, v. 2).
7
Durante a Idade Média, a segregação social dos doentes de “lepra”
ou a reclusão dos mesmos em abrigos asilares, além de ter se
estabelecido a partir da ameaça que a doença e o doente
representavam, esteve atrelada ao conceito de caridade moral
cristã. Nesse sentido, todo o cuidado dispensado ao “leproso”,
como a assepsia de seus ferimentos, a lavagem de seu corpo, a
sua alimentação, o trato de suas vestes, o provimento de seu
abrigo e a aceitação de sua presença em determinadas situações,
significavam atos de humildade, abnegação e contrição eficazes
no propósito de ser alcançado o “reino dos céus” (LE GOFF,
1985).
8
De acordo com pesquisadores que se detiveram a estudar o
assunto, este período foi marcado pela ocorrência de surtos
epidêmicos, ausência de alimentos e distúrbios climáticos. Esses
fenômenos quebravam com o estado de normalidade vivido pela
sociedade e acabaram sendo atribuídos como obras de judeus e
“leprosos” (DELUMEU, 1990, apud MONTEIRO, 1995)
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 63

Capítulo 2

A hanseníase no Brasil
As expansões ultramarinas assinalaram a introdução da
cultura europeia nas terras além-mar. Junto com ela, práticas
constituídas na civilização ocidental acabaram sendo
internalizadas na colônia portuguesa, como o modelo de
tratamento que foi imputado ao enfermo de “lepra” durante
a Idade Média. Esse modelo, aliado às teorias eugênicas de
aprimoramento da raça, acabou se cristalizando à medida
que o Brasil foi assumindo feições mais modernas. Tal fato
revela a linha tênue que separa passado, presente e futuro
em relação à história. A problemática da hanseníase serve-
nos de exemplo.
Neste capítulo, buscaremos demonstrar como se deu a
introdução da doença no país e os princípios que nortearam
as discussões sobre ela durante o século XX, como o papel da
medicina social, os divergentes posicionamentos acerca dos
instrumentos utilizados no combate, as teorias racistas alçadas
durante o século XIX e os ideais eugênicos de aprimoramento
da raça perpetrados a partir dessas teorias.

Primeiras ocorrências
O advento das grandes navegações assinalou a chegada
da hanseníase na América. Segundo Araújo (1946), alguns
64|Débora Michels Mattos

estudiosos dos séculos XIX e XX procuraram detectar a


enfermidade antes da colonização europeia. Para o autor,
apesar de pesquisadores como Domingos Orvaños e Jesus
Chico afirmarem que a existência da doença entre os
aborígenes foi anterior às conquistas, verificou-se, posterior-
mente, que aquelas caracterizadas por “lepra” não passavam
de outras dermatoses.
No Brasil, observou-se que a hanseníase também não
existia antes da colonização. A partir de relatos produzidos
pelos missionários, nenhum sinal da doença foi detectado.
De fato, Mesgravis (1975) salienta que nas cartas redigidas
pelos jesuítas, ricas informações sobre o cotidiano do índio
podem ser verificadas, mas em nenhuma há indícios de que
a doença integrasse a lista das enfermidades que os
acometiam.
O aglutinamento entre as culturas europeia, indígena e
africana, após a “descoberta”, acabou sendo considerado a
principal causa para a introdução e disseminação da
hanseníase na colônia portuguesa. A própria união conjugal
estabelecida entre índios e incursores europeus advindos de
locais onde a incidência se constituía significativa, como
Portugal, pode ter facilitado o seu desenvolvimento. Embora
haja a crença de que a doença tenha sido introduzida no
Brasil por gentes das mais diferentes regiões da Europa, outra
hipótese foi defendida por Araújo, a de que ela se estabeleceu
por intermédio dos portugueses e dos escravos africanos.
A lepra foi introduzida no Brasil pelos portugueses e escravos
africanos. Os nossos indígenas não a possuíam e ainda hoje as
tribos que se mantém afastadas do nosso convívio continuam
indemes. Examinei membros de quatro tribos Guarani e Caiangs
ao Sul, Tembés e Timbiras ao Norte e não encontrei nenhum
leproso entre eles, assim como os Navahos, de Arizona, Estados
Unidos (ARAÚJO, 1929, p. 6).
De acordo com Mesgravis (1975), as expansões
ultramarinas propiciaram o contato entre portugueses e povos
onde não havia assistência a enfermos de hanseníase e sua
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 65

incidência era alta, como África e Ásia. Em face da colonização


da América, sobretudo após a introdução do negro como
mão-de-obra escrava, fontes transmissoras possivelmente
começaram a aparecer. Mas, se é fato que não se pode
responsabilizar unicamente o africano pela introdução da
doença, uma vez que as inspeções sanitárias realizadas nos
portos impediam a partida e chegada de negros visivelmente
doentes, é fato também que o período de incubação da
moléstia dificultava uma análise precisa sobre eles,
possibilitando a sua entrada no Brasil. A problemática da
incubação em relação ao negro pode também ser pensada
no âmbito do colonizador europeu. Assim, ambos teriam sido
os responsáveis pela introdução e disseminação da moléstia
nas terras encontradas.
No transporte da cultura europeia, sobretudo de origem
lusitana, saberes, práticas e crenças acerca da “lepra”,
concebidas no seio da sociedade medieval, acabaram se
cristalizando. Muito embora nos primeiros séculos de
colonização o problema da doença não tenha merecido
destaque por parte das autoridades, talvez porque a saúde
ainda não fosse vista no âmbito da produtividade, a partir do
século XVIII, ela começou a ser alvo de intervenção.
Em cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Recife,
Salvador e São Paulo, o número de casos ia aumentando.
Não apenas pobres, mendigos e escravos eram suscetíveis a
ela. Brancos, entre eles os membros das classes mais abastadas
da sociedade encontravam-se vulneráveis. Constituindo-se
um perigo social, a hanseníase passou a fazer parte dos males
a serem combatidos no Brasil (ARAÚJO, 1946, v. 1).
Segundo Machado (1978), o problema da hanseníase era
visto de forma semelhante ao problema da peste, ou seja,
uma enfermidade com grande capacidade de alastramento.
Além disso, o seu caráter incurável aumentava ainda mais o
pânico proporcionado por sua presença, devendo-se então
combatê-la. Se analisarmos, no entanto, a forma de combate
adotada durante o século XVIII, é possível perceber que esta
66|Débora Michels Mattos

se deu não em relação à doença, mas ao seu portador, como


igualmente acontecia na Europa medieval. A segregação social
do enfermo, através do seu internamento em lazaretos,
leprosários e outras instituições específicas, constituiu-se, como
sempre, na primeira medida tomada para solucionar a
questão.
Assim, no Brasil, o afastamento social do enfermo esteve
durante muito tempo atrelado à prática caritativa. Sem grande
participação governamental no provimento do seu amparo,
religiosos e pessoas interessadas subsidiavam a construção de
abrigos.1 Esse alijamento, segundo Gomide, “[...] em sua
forma mais crua, era brutal, uma vez que, na medida adotada,
não perpassava, sequer, a idéia de tratamento ou cura”
(GOMIDE, 1991, p. 39). De fato, os remédios utilizados para
tratamento, quando utilizados, restringiam-se aos arraigados
na cultura popular dos descendentes de europeus. Eram
banhos de rio, sangrias e ingestão de raízes e caldos de animais
peçonhentos (MACHADO, 1978).
No modelo de exclusão utilizado, importava apenas o
afastamento da ameaça, que se traduzia por meio da figura
do enfermo. De acordo com Machado, ele era visto como
um morto-vivo já que a doença era entendida como um mal
que minava o aspecto físico do ser humano, provocando
estigmas e sentimentos variados, como medo e repulsão. As
deformidades de cunho incapacitante e o seu caráter incurável
davam a eles a condição de sujeitos isentos de função social.
Assim, provavelmente, não eram desenvolvidos instrumentos
de combate à moléstia, mas, sobretudo, ao seu portador. Esses
instrumentos foram semelhantes em diferentes lugares do
Brasil e, até o século XX, estiveram intimamente ligados à
tônica da caridade, como sugere Monteiro, no que concerne
à região de São Paulo:
A fundação de hospitais específicos para lázaros não implicava
necessariamente na existência de serviços que se destinassem à
melhoria das condições de saúde do paciente. A cura da doença,
considerada impossível, tornava, de certa forma, “dispensável”
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 67

a preocupação efetiva com a assistência médica. A inexistência


de pessoal hospitalar para funções específicas, especialmente
as de enfermagem, fazia com que estas fossem realizadas pelos
próprios doentes. Nos poucos casos em que houve participação
de pessoal sadio, este era composto por religiosos, que
assumiam o trabalho não como profissão, mas como obra de
caridade (MONTEIRO, 1995, p. 83).
Aliados aos estigmas relacionados à decadência estética,
sinônimos variados foram sendo concebidos, de modo a fazer
com que o doente, também fosse considerado um
delinquente. Isso ocorreu à medida que o Brasil foi assumindo
feições mais modernas. Com efeito, eram representantes das
camadas mais pobres da sociedade os acometidos e assistidos
pelas práticas caritativas. No meio deles se inseriam sadios,
bêbados, vagabundos e criminosos que acabavam
colaborando para que fossem observados a partir dessas
“qualidades”. Esse fato contribuiu para que o portador, além
de vítima de um mal que lhe tolhia os traços mais “nobres”,
fosse também vítima de concepções que lhe imputavam
características moralmente questionáveis (GOMIDE, 1991).

O ideal moderno no combate à doença

Até o século XX, a prática caritativa como forma de


combate ao problema da hanseníase persistiu. A assistência
ao enfermo continuou direcionada ao amparo do mesmo
sem lhe oferecer tratamento eficaz que pudesse diminuir as
afecções provocadas pela enfermidade. O mecanismo
segregacionista, embora fosse recorrente, não impediu o
desenvolvimento da doença em cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo. De igual forma, esse aumento pôde ser
evidenciado em outras regiões do Brasil. Mesmo que estatutos
fossem elaborados para legitimar o afastamento do enfermo,
sua internação em instituição asilar, bem como a obriga-
toriedade da permanência no local de afastamento2, acabaram
tendo pouca eficácia. Esquivando-se da norma, era comum
68|Débora Michels Mattos

a resistência ao internamento ou a fuga do asilo.


Mas, as transformações pelas quais o Brasil passou em fins
do século XIX exigiram a feição de uma outra forma de se
vislumbrar o problema das doenças. A substituição do
trabalho escravo pelo assalariado e a vinda da mão-de-obra
estrangeira para atender às demandas das grandes lavouras
de café e da indústria incipiente, resultaram no aumento da
população e no consequente aumento dos problemas
provocados por ela. Estando as enfermidades no rol desses
problemas e necessitando da saúde para que a ordem ditada
pelo nascente capitalismo fosse estabelecida, assistiu-se à
implantação de uma nova lógica do combate à doença: a
medicalização da sociedade. Procurando evitar o surgimento
das enfermidades e, ao mesmo tempo, criar mecanismos para
o seu desaparecimento, a medicina social objetivava,
sobretudo, proteger a população dos males que grassavam o
país e garantir as capacidades físicas ao bom exercício do
trabalho.
De acordo com Foucault, utilizando como base o modelo
de medicalização proposto pelos ingleses no século XIX, ou
seja, “[...] essencialmente um controle da saúde e do corpo
das classes mais pobres para torná-las mais aptas ao trabalho
e menos perigosas à classes mais ricas [...]” (FOUCAULT,
1986, p. 88), a medicina social acabou esquadrinhando,
delimitando e intervindo sobre os diversos elementos que se
constituíam como um perigo a esse novo cenário em formação.
Dessa forma, não apenas atuava nas esferas da saúde e da
doença. Vícios, crimes, comportamentos questionáveis,
pensamentos e práticas imorais, eram também elementos
presentes no seio da sociedade que deveriam sofrer
intervenção (MACHADO, 1978).
Procurando impedir o aparecimento dos problemas de
saúde, bem como aqueles que se constituíam verdadeiros
males à ordem social, criavam-se esferas de poder voltadas à
preservação da sociedade e de seu desenvolvimento.
Caracterizava-se, a medicina social, como um mecanismo
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 69

preventivo, no sentido de não apenas fixar a causalidade das


enfermidades, mas tudo aquilo que fazia parte de seu universo
e que contribuía para o seu desencadeamento. Sendo assim,
era também papel desse modelo de medicalização, a
higienização do espaço público, do indivíduo e a
disciplinarização deste, com vistas a limitar ou impedir o
aparecimento dos problemas. Nesse contexto, o papel do
médico tornou-se fundamental, haja vista o respaldo
governamental que lhe foi conferido para que pudesse atuar
nos âmbitos da saúde e da doença.
O médico tornou-se conhecedor das técnicas, dos tratados
teóricos e detentor de saber, mas também aquele interventor
que decidia, executava, fiscalizava e punia. Intervir na sociedade
era policiar tudo que podia ser provocador de doenças. Nessa
perspectiva, a cidade, tanto pelos aspectos naturais, quanto pela
presença geralmente destruidora dos homens, tornou-se o objeto
privilegiado da intervenção médica (GOMIDE, 1991, p. 44).
Em relação específica ao problema das enfermidades, a
medicina social voltou seus olhares principalmente para
aquelas consideradas de massa, como o cólera, a varíola, a
febre amarela e a tuberculose. Eram, em sua maioria, doenças
pestilenciais, contagiosas, com grande capacidade de
alastramento e que estavam intimamente ligadas às condições
de vida e trabalho do homem, sendo a melhoria destas uma
das formas para se estabelecer o controle (SINGER, 1981).
Consideradas entraves ao exercício da capacidade produtiva,
foram o principal alvo das medidas intervencionistas adotadas
no Brasil. Entre elas, a sífilis e a hanseníase ganharam lugar
de destaque.
No que concerne à sífilis, a partir do século XVIII, na
Europa, as referências a ela como castigo divino foram aos
poucos substituídas (SONTAG, 1984). As novas concepções
estiveram ligadas aos saberes produzidos acerca das
enfermidades e a sua representatividade para uma sociedade
que estava formando-se amparada na ideia de que as doenças,
de um modo geral, colocavam em risco os ideais de progresso
70|Débora Michels Mattos

e desenvolvimento das nações.


De acordo com Vainfas (1986), a sífilis passou a ser vista,
nesse contexto, como resultado da corrupção moral, da
atividade sexual desregrada e, portanto, uma ameaça à
integridade física dos indivíduos. No Brasil, em meados do
século XIX, a preocupação com ela já era evidenciada através
das discussões que se faziam constantes no círculo médico da
Academia Imperial de Medicina. Naquele momento a sífilis já
despontava como um grave problema social, sendo analisada
sob o prisma da imoralidade e da prostituição (ENGEL, 1989.
apud PEREIRA, 1996).
A prostituição era entendida como a principal responsável
pelo alastramento das doenças venéreas que enfraqueciam a
sociedade e colocavam em risco a sua preservação. Muito
embora os debates médicos não soubessem, ao certo, quais
instrumentos de combate deveriam ser utilizados, versando
sobre o veto ao meretrício ou a sua regulamentação, a sífilis,
doença infectocontagiosa e sinônimo de degenerescência,
acabou se transformado em objeto de intervenção, a exemplo
do que também ocorreria com a hanseníase, ainda que de
maneira diferenciada (RAGO, 1997).
Mas, se em meados do século XIX a medicina social já se
encontrava em plena atividade nos países mais desenvolvidos
da Europa, como Inglaterra e França, no Brasil ela
caracterizava-se de maneira bastante singela, atuando,
sobretudo, em cidades portuárias onde o perigo das
enfermidades constituía-se, significativamente, maior. Para
Gomide (1991), esse fato acabou relegando a outros centros
urbanos uma maior vulnerabilidade ao estado de doença,
como São Paulo. Embora o Rio de Janeiro figurasse entre as
cidades alvo de atenção dos porta-vozes dessa nova medicina,
no início do século XX o quadro geral da cidade ainda se
mostrava desolador.
O Rio era uma cidade suja, de casas velhíssimas, cheio de
pulgas, cortiços e estábulo, infectos [...]. Urgia higienizá-lo para
acabar com as doenças que o transformavam em cidade
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 71

fantasma (SECRETARIA DA SAÚDE DO ESTADO DA


GUANABARA, 1972, p. 16 apud LUZ, 1982, p. 78-79).
Se pouco era feito para solucionar o problema das
inúmeras doenças que se faziam presentes no Brasil, menos
ainda se verificava no âmbito da hanseníase. Embora, desde
1845 a Academia Imperial de Medicina tenha sido designada
à realização de estudos concernentes à enfermidade, suas
atividades foram delineadas, como veremos mais à frente,
com base em pesquisas desenvolvidas no exterior que davam
ênfase a uma política de controle fundamentada na exclusão
e no confinamento. De fato, conforme os pareceres médicos,
o tratamento prescrito aos enfermos deveria ser pautado no
afastamento. No documento entregue ao ministro do Império
já se vislumbrava, inclusive, uma incipiente preocupação com
a prole do enfermo.
Seria conveniente pôr em execução a lei do seqüestro e do
apartamento, não só entre cônjuges, senão também para com
quaisquer afetados da moléstia, a fim de vedar que indivíduos
tais procriem uma prole morfética e perpetuem no país uma
geração doente. A Academia julga que esta medida,
independente de quaisquer estudos e ilustrações ulteriores acerca
da morféia, poderá desde já produzir bens reais para o país
(ARAÚJO, 1946, v. 2).
Percebe-se, nesse sentido, que as diretrizes concebidas para
solucionar o problema da hanseníase no país, mesmo com o
advento da medicina social, continuaram sendo pautadas em
práticas fundamentadas no isolacionismo medieval. Isso
ocorreu sem que ao menos fosse aventada a possibilidade de
outro tipo de tratamento ao enfermo. Aliás, de acordo com
Gomide, a única coisa que importava, até fins do século XIX
e início do XX, era o afastamento da ameaça, mesmo que
isso significasse a perda dos direitos individuais e a
sobrevivência em locais extremamente precários, contrariando
qualquer norma de higiene.
Uma vez localizado o doente de lepra, a sociedade que se
72|Débora Michels Mattos

higienizava tornava-o um pária. Isolado e segregado em


leprosários que eram verdadeiros tugúrios amontoados de
doentes, totalmente desprovidos de qualquer tratamento efetivo
de combate ao mal que portava, sofria o abandono da própria
família, e lhe eram fechadas as portas para qualquer contato
social. Todos os direitos lhe eram retirados – trabalho, lazer,
amor, matrimônio, procriação – e transformando-o em um
morto em vida, mais uma vez (GOMIDE, 1991, p. 48).
Atentando para o fato de que a hanseníase, em sua
concepção mais crua, era vista como uma enfermidade de
cunho degenerativo, mas, sobretudo, incurável e contagiosa,
torna-se mais fácil compreender os instrumentos utilizados
pelo poder médico no seu controle e combate, mesmo que
esses instrumentos fossem inspirados em práticas medievalistas.
No seio de uma sociedade que passou a vislumbrar o
desenvolvimento do país, constituía-se imprescindível extirpar
um mal que colocava em risco a coletividade. Nesse contexto,
assinalado pela também crescente importância da força de
trabalho, acabar com os males que comprometiam o progresso
do Brasil configurava-se fundamental (ORNELLAS, 1997). A
partir desses pressupostos, o alijamento social do enfermo de
hanseníase foi tomando corpo, sendo instituído de forma mais
incisiva durante o século XX, sobretudo após os anos 30.

Falas diferenciadas

No limiar da Primeira República algumas medidas foram


tomadas objetivando resolver os principais problemas de
saúde que afetavam o Brasil, sobretudo nas cidades de Rio
de Janeiro e São Paulo. Entre as medidas tomadas, a
notificação obrigatória de algumas enfermidades, como a
varíola, a febre amarela e o cólera. Através do Instituto
Sanitário Federal, pesquisas voltadas à investigação das
doenças nos seus mais diferentes aspectos, como origem e
formas de tratamento e prevenção, deveriam ser realizadas.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 73

Embora a hanseníase figurasse entre as que necessitavam ser


erradicadas, somente com a entrada de Oswaldo Cruz na
Diretoria Geral de Saúde Pública, em 1903, foram criadas
disposições específicas para o seu combate. Através do
Regulamento Sanitário da União, implantado em 1904, eram
introduzidas no seio da sociedade brasileira as primeiras
medidas legais da República que objetivavam extirpar o
problema da hanseníase do país (ARAÚJO, 1946, v. 2).
De acordo com o referido regulamento, os estados
deveriam prover a notificação obrigatória dos enfermos, o
veto ao exercício de atividades em lugares públicos e enquanto
não fossem criadas instituições asilares amparadas pelo poder
público e sob administração médica, o isolamento domiciliar
dos mesmos. Para Oswaldo Cruz, assim como outros médicos
que defendiam a adoção do alijamento de hansenianos como
mecanismo de ação profilática eficaz e que receberam posição
de destaque, como Heráclito Araújo e Belisário Penna3, a
separação não deveria ocorrer em simples leprosários ou
hospitais, mas em colônias agrícolas onde o doente pudesse
garantir a sua autossustentação. Considerada uma doença
incurável que incidia durante longos e “intermináveis” anos,
não sendo causadora de morte, mas provocando deformações
e mutilações irreversíveis ao corpo, o portador era visto como
peso morto para o governo. Nesse sentido, afirmava-se que a
sua segregação deveria ocorrer em colônias agrícolas.
A sequestração do morfético só é prática quando feita nas
colônias de leprosos. São instituições perfeitamente adequadas
e onde o enfermo pode exercer toda a atividade que as suas
forças permitem. A colônia é uma pequena cidade com sua
existência própria, onde se encontram os elementos de vida
necessários, onde cada qual pode exercer livremente sua
profissão, onde não faltam elementos de distrações, onde o
leproso não vive perseguido pela idéia única do mal que o
tortura. [...] A colônia quase se bastaria a si própria. [...] A
agricultura, a indústria pastoril, o comércio e a indústria fabril
poderia ser desenvolvidas pelos próprios enfermos. O governo e
74|Débora Michels Mattos

os filantropos poderiam empregar capitais nesses


estabelecimentos de comércio e indústria, e assim resolveriam
um problema sanitário palpitante, sem despesas excepcionais
(CRUZ, 1913, p. 2)
Para Gomide,
[...] a prática do isolamento foi tática explicável dentro de lógica
de que o corpo sadio e disciplinado contribuía para a produção
da riqueza social, e o doente, não contribuindo, tornava-se peso
morto, ‘déficit’ na contabilidade racional burguesa. A colônia
foi a forma encontrada para fazer o corpo doente produzir
mesmo em situação de anormalidade, sendo este um claro
desenvolvimento do conceito de pobreza rentável, a qual paga
ônus de seus próprios males (GOMIDE, 1991, p. 59).
Esse modelo de isolamento também foi discutido por
Cunha (1986), dando ênfase ao problema da loucura.
Segundo a autora, o doente mental, além disso, foi alvo da
segregação social obrigatória, visto que não podia
desempenhar as funções básicas e primordiais ao
estabelecimento da sociedade capitalista. Mesmo não sendo
portador de deformidades físicas, o mau funcionamento de
suas faculdades mentais significava riscos ao bom exercício
de uma profissão; consequentemente, prejuízo para os
patrões e para o país. Além disso, a loucura representava
desordem, ou seja, um desvio que se contrapunha à
normalidade e à ordem que vinha tentando ser estabelecida.
Sinônimo de degeneração, o “louco” simbolizava um perigo
para o meio social, principalmente, quando perdido nos
espaços públicos onde se encontravam multidões de
trabalhadores em vias de absorver a disciplina imposta pela
ideologia capitalista. Anônimo no seio da cidade, ele poderia
influenciar a sociedade com vícios, taras e práticas
transgressoras, transformando o trabalhador conformado,
higienizado e disciplinado, em um “contraventor”. Nesse
sentido, a construção de instituições asilares para os doentes
mentais tinha por finalidade impedir que os degenerados
afastassem o bom trabalhador do seu caminho, controlando
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 75

seres perigosos, verdadeiros elementos antissociais (CUNHA,


1990). Como resultado, tanto o doente de hanseníase quanto
o mental deixariam de constituir ônus para o governo, arcando
com os custos da própria subsistência.
É relevante salientar que entre os médicos partidários do
isolacionismo, havia os que defendiam a ideia da segregação
insular para o enfermo, a exemplo da prática adotada em
Portugal por volta dos séculos XIV e XV (TODOROV, 1982).
De acordo com os saberes produzidos na época, o alijamento
insular, entre outros motivos, tinha como principal objetivo
dificultar a fuga, tendo em vista o mar se constituir uma
barreira. O próprio Oswaldo Cruz, em seus debates sobre os
mecanismos a serem instituídos acerca da profilaxia da
hanseníase, salientava a eficácia desse modelo segregacionista,
enfatizando a Ilha Grande como local ideal para tal finalidade
(CRUZ, 1913). Contudo, o desejo de afastamento insular não
se configurou. Ao contrário, esteve ao lado dos diferentes
projetos segregacionistas elaborados por médicos partidários
do isolamento compulsório que foram considerados inviáveis.4
Muito embora os partidários do isolamento obrigatório
dos enfermos de hanseníase tenham, a partir da década de
30, obtido apoio governamental para a implantação do plano
de combate à enfermidade, durante muito tempo, médicos
de renome nacional insistiram na tomada de medidas mais
brandas em relação ao problema da doença, sobretudo no
que concerne ao doente. Emílio Ribas, Carlos Chagas e José
Maria Gomes5, a partir de estudos realizados em diferentes
países, a exemplo da Noruega6, tentaram demonstrar a
ineficácia do modelo de isolamento compulsório, defendendo
a implantação do isolamento humanitário.
De acordo com os princípios humanitários, enfatizava-se
o tratamento em ambulatórios para os casos não contagiosos
e isolamento somente para os contagiosos com alguma
carência, recomendando o cuidado domiciliar para os que
pudessem manter-se, e abrigos específicos para os que não
conseguissem. Além disso, a importância de serem tomadas
76|Débora Michels Mattos

medidas de caráter educativo. Tais medidas se traduziam,


basicamente, na promoção de esclarecimentos sobre a
doença, acompanhadas de noções de higiene. Mas, é válido
salientar, também, que as propostas profiláticas defendidas
pelos humanitários não se restringiam unicamente ao doente.
A preocupação com a preservação da prole sadia do enfermo
foi uma constante para eles, que afirmavam a necessidade
do amparo social às crianças que tinham seus pais internados
nas instituições asilares (MONTEIRO, 1995).

O discurso da raça

Até a quarta década do século XX persistiram os debates


sobre o modelo profilático que deveria ser adotado no Brasil
acerca da hanseníase. Embora esses debates estivessem
imbuídos de posições divergentes, a certeza de que a doença
constituía-se um problema emergente acabava aglutinando
essas diferenciações e criando espaço para a elevação de um
único pensamento, ou seja, a necessidade do combate. A fala
que se sobrepôs foi buscar nas teorias desenvolvidas acerca
das raças, sobretudo na Europa, respaldo e legitimidade. No
conjunto dessas teorias, a Eugenia acabou merecendo
destaque, balizando o discurso produzido pela medicina
brasileira em relação ao problema da doença.
A partir do século XVIII, principalmente durante o XIX,
algumas nações europeias como França, Grã-Bretanha,
Bélgica e Alemanha assistiram a um significativo
crescimento econômico, instituindo-se hegemonicamente
sobre o restante do mundo através da colonização de vastos
territórios ao redor do globo, principalmente da África e
do sul-sudeste asiático. Nesse contexto, desenvolveu-se o
denominado Racismo Científico, que relacionava a
supremacia econômica e militar com a superioridade racial
do branco europeu, sendo postuladas variadas hipóteses
quanto à existência de múltiplas espécies raciais.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 77

Segundo Schwarcz (1995), para os estudiosos adeptos do


Racismo Científico, o insucesso econômico e político de uma
nação estariam ligados à hibridação racial, devendo esta ser
evitada para que o progresso fosse obtido. De acordo com a
autora, algumas explicações sobre as diferentes espécies
humanas enfatizavam a existência de variadas composições
raciais, salientando a branca como superior às demais. A partir
de estudos mais precisos sobre anatomia humana, como
frenologia e antropometria, eram observados em
determinadas espécies sinais de inferioridade quando
analisados aspectos físicos díspares e comportamentos
indesejáveis, se comparados aos dos brancos. Afirmando a
transmissibilidade dessas características aos descendentes, o
cruzamento dos tipos considerados inferiores com aqueles
denominados superiores resultaria na degeneração da raça,
devendo ser evitado (SKIDMORE, 1976).
No âmago dessas teorias, uma visão negativista da
miscigenação imperava, embora existissem aquelas que
considerassem as raças como “fenômenos finais, resultados
imutáveis” (SCHWARCZ, 1995, p. 60), como o Darwinismo
Social. De fato, os teóricos do Darwinismo Social acreditavam
na impossibilidade de que as características adquiridas durante
a vida dos indivíduos, influenciadas pelo meio, fossem
transmitidas hereditariamente. Contudo, a vertente darwinista
imputava à transmissibilidade a composição racial. Nesse
sentido, procurava afirmar a presença de raças puras e
impuras, sendo que às puras deveria ser assegurada a sua
perpetuação, impedindo que se misturassem àquelas que
eram veículo de degeneração. Vícios, crimes, debilidade
intelectual, doenças, entre outras, eram características típicas
de inferioridade racial. Nesse sentido, o progresso e o
desenvolvimento das sociedades estavam associados à
permanência de um tipo racial superior.
Objetivando combater a miscigenação das espécies, que
resultaria na degradação das raças superiores, uma nova teoria
foi estabelecida com o propósito de impedir a reprodução
78|Débora Michels Mattos

dos indivíduos indesejáveis. Criada em 1883, pelo cientista


inglês Francis Galton, a Eugenia, do grego eu (bom) e genesis
(criação, geração), tinha por meta o aprimoramento da raça
através da seleção. Baseada nas teorias existentes sobre a
evolução das espécies, procurava estudar as qualidades
positivas dos seres humanos impedindo a transmissão de taras
físicas e morais que pusessem em risco o seu desenvolvimento
(DOMINGUES, 1942).
Nova ciência consiste no conhecer as causas explicativas da
decadência ou levantamento das raças, visando à
perfectibilidade da espécie humana, não só no que respeita ao
físico como ao intelectual. Os métodos têm por objetivo o
cruzamento dos sãos, procurando educar o instinto sexual.
Impedir a reprodução dos defeituosos que transmitem taras
aos descendentes. Fazer exames preventivos pelos quais se
determina a sífilis, a tuberculose e o alcoolismo, trindade
provocadora da degeneração. Nesses termos, a eugenia não é
outra coisa senão o esforço para obter uma raça pura e forte.
(HENRIQUE, 1918 apud SCHWARCZ, 1995, p. 231).
Bizzo (1995, p. 28) expõe que:
[...] o modelo de transmissão hereditária que subsidiava o
programa de Galton assegurava a transmissão de todas as
características presentes no indivíduo aos seus descendentes,
mesmo aquelas adquiridas durante a sua vida, e de outras
recebidas dos ancestrais, mas que não tinham se manifestado
no indivíduo.
Nesse sentido, ainda que a Eugenia tenha se constituído a
partir dos princípios estabelecidos no Darwinismo Social,
contrapunha-se a ele ao afirmar que os caracteres humanos
obtidos em sociedade poderiam ser transmitidos aos seus
descendentes.
Intimamente ligada à lógica do mundo capitalista que
vinha se estabelecendo a partir da Revolução Industrial, a
doutrina eugenista visava estabelecer o controle da sociedade
com o intuito de promover a constituição de tipos humanos
que pudessem contribuir para o desenvolvimento econômico
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 79

das nações, ou seja, seres fortes, inteligentes, saudáveis e


disciplinados, aptos para o trabalho e agentes do progresso
nacional. Sendo assim, não apenas discursava sobre a
existência de raças inferiores e superiores, que em conjunção
poderiam traduzir sérios entraves aos Estados em formação.
Sobretudo, atuava politicamente através de mecanismos
profiláticos com o propósito de impossibilitar o surgimento e
a proliferação daqueles que se constituíam como problema.
Aplicada diferentemente em diversos países, na Alemanha,
por exemplo, serviu para subsidiar práticas extremadas de
limpeza étnica a partir do extermínio dos que não
correspondiam, racialmente, às aspirações ideológicas do
Estado nazista.7

O eugenismo no Brasil e Santa Catarina

No Brasil, tanto o Racismo Científico quanto a Eugenia


ganharam adeptos. A partir do século XIX, com o advento
da Independência, e principalmente após a Proclamação da
República, intelectuais e membros das elites passaram a se
preocupar com o futuro do país. Influenciados pelas teorias
europeias e remodelando tais teorias a fim de adequá-las à
realidade brasileira, esses pensadores passaram a divulgá-las
através de resenhas produzidas nos primeiros institutos de
pesquisa e educação construídos no país no início do século
XIX, e que ganharam projeção por volta de 1870.8
Sendo o Brasil fortemente miscigenado, via-se nessa
constatação um grande problema para o progresso da nação.
Desse modo, intelectuais brasileiros, assim como muitos
estrangeiros, consideravam a miscigenação um símbolo de
inferioridade, podendo relegar o país ao atraso. Almejava-se
substituir a arcaica economia agrícola pela industrial, sinônimo
de desenvolvimento, e formar um povo homogêneo, forte e
puro racialmente, sobretudo branco. Nesse sentido, foi
produzida uma série de discursos sobre a questão racial
80|Débora Michels Mattos

brasileira em que Nina Rodrigues, um dos mais importantes


representantes da Faculdade de Medicina da Bahia, ocupou
lugar de destaque. Enfatizando a existência de raças inferiores
e superiores, sendo as inferiores, também para ele, uma
barreira à evolução da sociedade, percebeu na Eugenia uma
eficaz alternativa para eliminá-las, evitando, assim, a
perpetuação de indivíduos fracos, degenerados, resultado da
hibridação racial (CORRÊA, 1998).
Para os teóricos brasileiros que propagandeavam as ideias
eugenistas, era preciso promover o branqueamento da “raça
brasileira”, seja através da introdução de imigrantes europeus,
seja através do matrimônio entre os tipos considerados
superiores com o intuito de serem geradas proles “saudáveis”.
Sendo assim, as uniões que poderiam representar danos à
sociedade deveriam ser evitadas. Para tanto, os adeptos da
Eugenia perpetravam o controle dos grupos considerados
nocivos, muitas vezes, defendendo medidas de esterilização.
A esterilização dos degenerados e criminosos constitui uma das
medidas complementares da política eugênica, a qual estabelece
exame de sanidade pré-nupcial, o impedimento à paternidade
indigna, à procriação, em suma, de cacoplastas e degenerados
(KEHL, 1930 apud MONTEIRO, 1995, p. 158).
De fato, a Eugenia procurou atuar, sobretudo, em três
elementos básicos inerentes ao homem e diretamente ligados
à sua constituição e ao seu aperfeiçoamento. Nesse sentido,
verificou na raiz da reprodução humana o seu campo de
intervenção, de acordo com as ideias preconizadas por Galton.
Para os eugenistas, a feição de uma raça forte e pura só se
efetivaria se aos homens fossem asseguradas as condições
necessárias a uma boa procriação, que se traduzia através de
atividades físicas adequadas, alimentação, hábitos saudáveis,
etc. Essas, aliadas ao controle conjugal, procurando impedir
que elementos tidos como nocivos se unissem àqueles
considerados sadios, evitariam a hibridação das raças, vista
como sinônimo de decadência da espécie futura. Ainda como
meio de garantir a feição de um tipo racial superior, os
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 81

eugenistas fomentavam a ideia de proteção à infância, desde


o seu estado embrionário ao seu crescimento. Através do
cuidado com a criança, seja por intermédio da boa
constituição física, psíquica e moral dos pais, seja por meio da
promoção de uma salutar qualidade de vida aos filhos, os
eugenistas almejavam, aos poucos, edificar o indivíduo
biológica e moralmente eugenizado (STEPAN, 1985).
Ainda que a Eugenia tenha surgido no Brasil no final do
século XIX e princípio do XX, tornou-se um movimento
organizado somente a partir de 1918, com a fundação da
Sociedade Eugênica de São Paulo e na esteira das campanhas
de saúde pública do nascente regime republicano. Integravam
a associação renomados membros da elite “pensante”
brasileira, entre eles médicos, literatos, juristas e políticos, tendo
na figura de Renato Kehl o mais fiel de seus representantes.
Renato Kehl foi o fundador da Sociedade Eugênica de São
Paulo e o principal defensor dos princípios eugênicos no Brasil.
Aliados a ele, grandes personagens da intelectualidade
auxiliaram na divulgação das ideias eugenistas através de livros,
artigos e informes veiculados na imprensa brasileira, que muito
demonstrou simpatia pelo movimento. A exemplo, temos
Monteiro Lobato com Problema Vital e Oliveira Viana com
Raça e Assimilação (MARQUES, 1994).
No conjunto dos problemas discutidos pelos representantes
da Eugenia, características inerentes à sociedade moderna nos
seus mais diferentes aspectos faziam-se presentes, sobretudo,
aquelas que suscitavam perigo ao meio social. Debilidade
mental, vícios, transgressões, revolta popular, doenças eram
algumas dessas características que deveriam ser extirpadas.
Por intermédio de uma ação conjunta entre médicos, cientistas,
amparo legal e apoio do Estado, era possível vislumbrar a
melhora racial do país e o seu desenvolvimento econômico.
Na esteira do Estado Novo, em que os princípios de riqueza,
progresso, trabalho e civismo foram apresentados como
imprescindíveis à formação da nação, os ideais eugênicos
acabaram se cristalizando e se configurando como um tônico
82|Débora Michels Mattos

para o engrandecimento da raça e a consequente “salvação”


do país.
Em Santa Catarina, o movimento eugenista assumiu feições
bem específicas a partir do século XX. De fato, a região
catarinense em fins do século XIX assistiu à entrada de levas
consideráveis de imigrantes europeus em face da política
imigratória instituída no Império. Alemães, poloneses, italianos,
entre outros, passaram a fazer parte do cenário do estado
(GOULARTI FILHO, 2001). Como resultado, a questão da raça
acabou não sendo objeto de grandes discussões entre os porta-
vozes da Eugenia. Contudo, os problemas considerados
verdadeiras “patologias sociais” transformaram-se no centro das
atenções, como os vícios, o crime, a prostituição, a
vagabundagem, a loucura, a sífilis, a “lepra”, a doença de um
modo geral.
Para Fontoura (1996), a Eugenia em Santa Catarina esteve
associada às medidas higiênicas e saneadoras fundamentadas
nos ideais de modernização do país. De acordo com a autora,
ela era veiculada como prática fortemente alicerçada nos
postulados científicos que viam na falta de saúde, na ausência
de hábitos salutares, a causa maior para o esmorecimento da
sociedade. Dessa forma, em palestras, conferências e na
imprensa, veiculava-se a importância do saneamento urbano,
do fim das práticas que pusessem em risco o bem-estar da
população e do seu desenvolvimento físico e mental, como a
ingestão de bebida alcoólica.
O detestável e prejudicalismo vício da embriaguez alcoólica,
de tão funestas conseqüências e que inutiliza o indivíduo,
não só enfraquecendo-lhe todas as energias físicas, como
rebaixando-lhe o nível moral; a embriaguez que é o grande
funesto mal que contribui com a maior porcentagem de
indivíduos para os hospitais e as cadeias; esse vício
abominável que inutiliza o varão, inutiliza a sua decência,
povoando o mundo de indivíduos incapazes física, mental e
moralmente [...] (JUVENAL, 1935).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 83

A preocupação com a constituição de um povo forte,


hígido e laborioso ecoava nos mais diferentes espaços.
Assim, qualquer medida que vislumbrasse o controle da
sociedade com vistas a salvaguardá-la dos dissabores
futuros podia ser observada como prática de cunho
eugenista. Foi nesse contexto que, em Santa Catarina, a
comunidade médica, as entidades assistencialistas, a
população mais “esclarecida”, mas, sobretudo, o governo,
acabaram absorvendo algumas instituições como
instrumentos de apoio à assimilação das novas diretrizes
alçadas para o estabelecimento da nação que se almejava
erigir. Essas instituições procuraram amparar os
desamparados, devolver a saúde aos doentes, educar os
deseducados, corrigir os transgressores e afastar os que
ameaçavam (CAMPOS, 1992).
Com efeito, como sugere Cherem (1994), o discurso
elaborado observava nas propostas eugênicas o melhor
caminho para se chegar ao progresso e à civilização. Dessa
forma, não apenas a saúde e a higiene resultariam no sucesso
do empreendimento. Era imprescindível, inclusive, a
fomentação da instrução, do trabalho, da segurança e dos
referenciais morais relativos à sociedade, elementos que, se
combinados, traduziriam, com efeito, a realização do grande
projeto modernizador.
Numa espécie de alquimia, uma combinação de elementos
que educassem, convencessem, disciplinassem e civilizassem
os personagens urbanos, se impunha como fórmula mais
acertada para a realização deste sonho. Não através de um
universo cujo modelo fosse a tradição, mas exatamente o seu
contrário: a aquisição de novos e mais evoluídos elementos,
dados de acordo com a higiene, a estética e a ciência moderna
(CASTORIADES, 1982 apud CHEREM, 1994, p. 99).
No contexto do século XX, especificamente a partir dos
anos 30, esses elementos acabaram sendo observados de
maneira mais clara no estado de Santa Catarina.
84|Débora Michels Mattos

A hanseníase à luz da eugenia

O discurso eugênico de formação e preservação da raça


envolveu os mais diversos aspectos da vida, desde os hábitos
cotidianos até as características inerentes à constituição física
e mental do homem. No âmbito da hanseníase, procurou
abarcar todas essas características na tentativa de legitimar as
prescrições estabelecidas pelas vozes da ciência no que
concerne à tomada de medidas para resolver o problema da
doença. Embora inúmeros estudos tivessem sido realizados
no mundo acerca da enfermidade, sendo o mais significativo
deles, a comprovação do seu caráter infectocontagioso, era
frequente a existência de falas que insistiam na defesa de teorias
já postas por terra, como por exemplo, a da hereditariedade.
Sendo a hanseníase, por seu aspecto degenerativo,
enquadrada no rol das enfermidades que suscitavam grande
preocupação, sobretudo devido aos problemas que
representava à sociedade, como incapacidade física e
decadência estética, uma série de propostas de cunho
eugenista foram edificadas, a fim de impedir o desenvol-
vimento da doença. No cerne dessas propostas, um olhar
mais acirrado em torno das uniões matrimoniais entre
enfermos, bem como da concepção e da prole advinda dos
casamentos se fez surgir (GOMIDE, 1991).
Sobre a questão do casamento, foram muitos os discursos
produzidos no Brasil que vislumbravam na união dos tidos
como inferiores um sério entrave ao desenvolvimento nacional
e à segurança da sociedade. Tais discursos procuraram dar
ênfase ao infeliz resultado dessas uniões, principalmente no
que concerne ao âmbito da prole, haja vista a crença na
herança genética degenerada que consigo carregava.
Impossibilitando o crescimento dos grupos considerados
nocivos à nação, acreditava-se na extinção paulatina dos
mesmos. Como resultado, somente para aqueles considerados
saudáveis, fortes, puros e superiores seria assegurada a
perpetuação da espécie.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 85

Em relação à hanseníase, embora muitos proferissem a


necessidade da proibição matrimonial entre os enfermos,
buscando respaldo em países que haviam instituído esta
medida eugenista, como a Noruega, a falta de estudos precisos
acerca da doença e, até mesmo a comprovação de seu caráter
não hereditário, acabaram impedindo que o casamento entre
eles fosse vetado. Muito embora essa proibição não tenha
conseguido obter legitimação no que tange ao seu amparo
legal, o posicionamento das autoridades médicas simpáticas
ao discurso eugênico e diretamente ligadas ao problema da
doença não se esquivou daquilo que, para muitos, significava
um sério problema. Ainda que não pudessem proibir a
constituição dos laços matrimoniais entre os enfermos,
deixavam claro que tal ato não era observado como
aconselhável por colocar em risco o desenvolvimento da pátria
(ARAÚJO, 1946, v. 2).
Mas, no bojo das propostas eugenistas diretamente ligadas
à questão da hanseníase no Brasil, dois temas ganharam
relevância: o da concepção e o da prole. Embora por muito
tempo os discursos produzidos tenham sido enfáticos na
simpatia pelas teorias que defendiam medidas de esterilização,
a exemplo dos Estados Unidos9, o Brasil acabou esbarrando
com uma forte corrente de opositores. Entre eles, partidários
dos direitos de liberdade do homem, mas, sobretudo, a Igreja,
porta-voz da procriação como finalidade única do casamento.
Mesmo que esses embates tenham impedido a legalização de
tais medidas no país, como veremos posteriormente, os
mecanismos de controle e domínio imputados ao enfermo
após os anos 30, quando da implantação da Campanha
Nacional de Combate à Lepra e do confinamento compulsório
dos enfermos em instituições asilares, propiciaram a criação
de um universo de práticas onde os preceitos idealizados pelos
eugenistas acabariam sendo consagrados.
Se, por um lado, os conceitos liberais e os ditames da Igreja
não possibilitaram a legalização das práticas veementemente
defendidas pelos personagens da ciência ligados ao mundo
86|Débora Michels Mattos

da hanseníase e simpáticos às ideias eugênicas, como a


proibição do casamento e da procriação, por outro, no âmbito
da infância, a Eugenia encontrou terreno fértil de atuação,
tendo ao seu lado, partidários do liberalismo e, principalmente,
representantes do clero. No âmago das medidas de combate
que passaram a ser veiculadas no país, um olhar mais acirrado
em torno da prole sadia do enfermo emergiu. Em nome do
bem-estar da sociedade e na tentativa de garantir a saúde do
futuro trabalhador, o filho sadio do hanseniano passou a ser
objeto de discussão e de intervenção por intermédio de
justificativas que aliaram os conceitos de caridade moral cristã
aos interesses eugênicos de defesa e elevação da raça. Como
resultado, inúmeros representantes da ciência passaram a
proferir a necessidade de afastar o filho sadio do pai enfermo
(GOMIDE, 1991).
Porta-voz desse discurso, uma entidade filantrópica assumiu
posição de destaque no cenário nacional, a Federação das
Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra.
Através de suas atividades e da aliança estabelecida com o
Serviço de Profilaxia da Lepra que, após a década de 30,
ganhou respaldo do governo federal para o estabelecimento
do combate à doença no país, perpetrando o isolamento
compulsório dos enfermos em instituições asilares e
defendendo o internamento de seus filhos sadios em abrigos
preventoriais, uma intensa campanha contra a enfermidade
se fez surgir. Essa campanha acabou se estendendo por todos
os estados brasileiros, sendo implantada em Santa Catarina
no ano de 1936, quando a região catarinense, por intermédio
do governo de Nerêu Ramos, incorporou as diretrizes
nacionais que vislumbravam acabar com o problema da
doença na região.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 87

Fontes:
1
Um exemplo é o da irmandade da Santa Casa de Misericórdia
de São Paulo, primeira ordem a preocupar-se com o problema
da enfermidade na região. Durante muito tempo, sua assistência
deteve-se a dar auxílio em dinheiro aos portadores da doença
na garantia de que eles não circulassem nos espaços públicos,
levando ameaça ao restante da população. Posteriormente, com
ajuda de autoridades, um hospício foi construído. Mantido por
auxílios de fontes variadas, atendia a um número reduzido de
enfermos, ficando o restante no abandono. Outro exemplo é o
do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade.
Também denominado Conde de Bobadella, edificou um lazareto
por volta de 1740 que foi chamado de Sítio São Cristóvão.
Marcado por construções extremamente precárias em forma
de choupanas, abrigava cerca de cinquenta enfermos também
assistidos por religiosos (MACHADO, 1978).
2
No final do século XVIII a preocupação com os casos de
hanseníase no Brasil aumentou. Os vice-reis Conde da Cunha
e Conde Rezende, empenhados no combate ao problema,
acabaram criando estatutos para legitimar a segregação do
enfermo. Embora os estatutos contivessem inúmeras
especificidades, até mesmo em relação ao tratamento médico
ao doente, quase nada se modificou, como por exemplo, a
inexistência do atendimento médico (ARAÚJO, 1946, v. 1).
3
Heráclides César de Souza Araújo foi médico hansenólogo de
peso no cenário brasileiro durante os anos 30, professor da
Faculdade de Medicina do Rio, assistente do Instituto Oswaldo
Cruz, integrante da Academia Nacional de Medicina e diretor
do Serviço Nacional de Lepra durante o ano de 1926. Além
disso, escreveu significativas obras acerca da hanseníase, como
A História da Lepra no Brasil e Lepra: estudos realizados em
40 países. Belisário Penna foi diretor do Departamento Nacional
de Saúde, personagem de confiança do governo Vargas e porta-
voz da política isolacionista implantada no Brasil (MONTEIRO,
1995).
4
Entre os muitos projetos criados para a consolidação do
isolamento compulsório do enfermo, havia os que fomentavam,
como Belisário Penna, a segregação em dois municípios
independentes, autônomos e afastados entre si. Outros, como
Adelardo Caiuby, propunham a concentração total dos doentes
88|Débora Michels Mattos

em um único local dotado de leis específicas e de uma guarda


eficiente que evitasse, através da força, a fuga do enfermo. A
inaplicabilidade dessas medidas esteve, sobretudo, relacionada
à preocupação de que a união concentrada dos doentes poderia
representar um grande perigo, haja vista a dificuldade
vislumbrada no controle dos mais de trinta mil doentes existentes
no país (MONTEIRO, 1995).
5
Emílio Ribas foi diretor do Hospital Guapira e organizou o plano
base à profilaxia da hanseníase no estado de São Paulo. Carlos
Chagas foi diretor do Instituto Oswaldo Cruz e do Centro
Internacional de Leprologia do Rio de Janeiro. José Maria Gomes
foi médico hansenologista e professor da Faculdade de Saúde
Pública de São Paulo, dirigiu a Inspetoria de Profilaxia da Lepra
no mesmo estado durante o ano de 1926 e foi o principal
fomentador da criação dos dispensários destinados ao atendimento
dos enfermos não contagiosos (MONTEIRO, 1995).
6
Ver Capítulo 1 deste trabalho.
7
Os filmes suecos Arquitetura da Destruição, de 1989 e Homo
Sapiens, de 1998, dirigidos por Peter Cohen, são uma grande
referência sobre o assunto. Neles, podem ser verificados de que
forma algumas nações, como Estados Unidos, União Soviética
e, sobretudo Alemanha, utilizaram-se dos princípios eugênicos
para extirpar seres humanos considerados nocivos ao meio
social, como os deficientes físicos e mentais, através da
esterilização, do confinamento e, no caso da Alemanha de Hitler,
no uso das câmaras de gás para o genocídio dos judeus (grifo
meu).
8
Os museus etnográficos brasileiros: Museu Nacional ou Real
(Rio de Janeiro), o Museu Paulista ou do Ipiranga, o Museu
Paraense Emílio Goeldi; os institutos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro), o Instituto Arqueológico
e Geográfico Pernambucano, o Instituto Histórico e Geográfico
de São Paulo; as faculdades: a Faculdade de Direito de Recife,
a Academia de Direito de São Paulo, a Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro e a Faculdade de Medicina da Bahia. É
importante salientar que muitos pesquisadores europeus
colaboraram diretamente na implementação dessas instituições,
influenciando os pensadores brasileiros, concomitantemente,
com as suas teorias racistas (SCHWARCZ, 1995).
9
Nos Estados Unidos, mais de quinze mil pessoas foram
esterilizadas entre os anos de 1907 e 1933. Entre os que
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 89

deveriam ter o seu direito de procriação vetado por intermédio


da esterilização: alcoólatras, criminosos, deficientes mentais,
viciados, hansenianos. Ou seja, aqueles tidos como degenerados
e portadores de problemas que poderiam colocar em risco a
perfectibilidade da raça e o bom andamento da sociedade.
Além disso, o veto à procriação tinha por finalidade, também,
impedir a proliferação de indivíduos observados como incapazes
de contribuir para o desenvolvimento da nação, tendo em vista
serem considerados improdutivos economicamente. Tal prática
foi observada em outros lugares, como Escócia, Japão e
posteriormente, na Alemanha de Hitler, de onde alguns
representantes da eugenia no Brasil teriam se inspirado
(BATISTA, 1942; MONTEIRO, 1995).
90|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 91

Segunda Parte

A marcha do triunfo

Quem são estes desgraçados


Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?
... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
(Castro Alves, O Navio Negreiro)
92|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 93

Capítulo 3

A Campanha Nacional
contra a Lepra
Acampanha nacional que foi implementada no combate
à “lepra”, a partir da década de 30, foi resultado de um longo
período de inquietações marcado pela crescente presença da
enfermidade no seio da sociedade brasileira. Animadas com
a possibilidade do Brasil se constituir uma nação forte e
desenvolvida, a exemplo do que havia ocorrido com alguns
países da Europa, como França, Inglaterra e Alemanha,
diferentes vozes brasileiras discutiam o real significado das
enfermidades para um país que almejava se desenvolver.
Entre essas vozes, aquelas que representavam a elite científica,
sobretudo médica, promoveram discursos acerca das medidas
que deveriam ser tomadas em relação ao problema. Embora
essas elites assumissem posicionamentos diferenciados quanto
ao modelo de combate a ser adotado, as transformações
políticas que atravessaram o país após 1930, com a dissolução
do federalismo e a centralização do poder nas mãos de um
forte representante de Estado, influenciaram a legitimação
94|Débora Michels Mattos

das medidas isolacionistas em detrimento das humanitárias.1


De fato, a tomada da presidência da República por Getúlio
Vargas representou mudanças significativas para a sociedade.
Durante muito tempo, o Brasil havia sido marcado por
disputas regionais pela hegemonia de poder. No cerne dessas
disputas, interesses das elites locais sobrepujavam aos de classe.
Não se pensava na construção de uma nação una e indivisível
com vistas ao desenvolvimento, à medida que se sobrepunham
os interesses locais. A feição de um Estado forte, autoritário e
preocupado com os supostos interesses nacionais terminou
por ser objetivada. Na consolidação, aceitação e reverenciação
desse Estado, uma série de instrumentos foram utilizados,
como saberes e preceitos ideológicos que se cristalizaram
através dos discursos produzidos e veiculados na imprensa
que acabaram sendo internalizados.
No âmbito da hanseníase, tais instrumentos se fiaram nos
significados atribuídos a ela desde os tempos remotos, bem
como no conhecimento edificado acerca da mesma sob a
ótica da ciência moderna. Nesse sentido, os princípios
eugênicos de preservação e elevação da raça foram
acompanhados do “mal bíblico” alçado durante a Idade Média
quando foi imposta a segregação aos doentes.
Este capítulo tem como objetivo demonstrar como se deu
a implantação da Campanha Nacional de Combate à Lepra
no Brasil e em Santa Catarina, à luz do Estado Novo. Para
tanto, tentaremos elucidar os mecanismos e os discursos
utilizados pelas vozes que se dedicaram ao problema nesse
período, salientando o papel dos poderes privado e público
na edificação de um movimento que se constituiu como parte
integrante de um grande projeto de cunho sanitarista
implementado no país. A exemplo, as associações filantrópicas
voltadas ao amparo do enfermo e sua família, como as
Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra,
e o Departamento Nacional de Saúde Pública – Divisão de
Profilaxia da Lepra, fundados na década de 20 e reformulados
durante os anos 30.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 95

Algumas preliminares

As bases para a implantação de um movimento nacional


contra a hanseníase foram lançadas no início do século XX
quando, no Brasil, a constituição da saúde pública passou a
ser vista como um elemento fundamental ao progresso e ao
desenvolvimento do país, instituindo-se campanhas de cunho
sanitário para resolver o problema das enfermidades, com
vistas a diminuir o quadro de morbidez em que o povo
brasileiro se encontrava. Embora as medidas sanitárias
requeressem um maior empenho governamental para o
sucesso de suas campanhas, até a década de 30 elas
dependeram da atenção individualizada que cada
representante governamental destinou à problemática das
enfermidades.
Em relação à hanseníase, ainda que sua incidência, já nos
primeiros anos da República, tenha sido apresentada como
um grande entrave ao projeto de modernização do país; que
discussões sobre seus principais aspectos se caracterizassem
uma constante no cenário nacional e, que pequenas ações
de combate pudessem ser verificadas durante os anos 20, a
tomada de providências mais enérgicas na tentativa de
resolver o problema só veio a se efetivar a partir dos anos 30.
No âmbito do poder público, a década de 20 assinalou a
criação do Departamento Nacional de Saúde Pública sob a
direção de Carlos Chagas, instituindo a Inspetoria de Profilaxia
da Lepra e Doenças Venéreas. De acordo com essa divisão,
disposições específicas acerca da enfermidade foram
referenciadas no Decreto nº 16.300 aprovado em 1923. Entre
elas, a notificação obrigatória e o recenseamento da população
enferma, a criação de asilos do tipo colônia agrícola para o
confinamento dos enfermos necessitados, o isolamento
domiciliar e sob vigilância dos que se encontravam em boas
condições financeiras, o controle sobre os familiares e suspeitos
de serem portadores, o isolamento em instituição específica
96|Débora Michels Mattos

para os recém-nascidos filhos de pais doentes, o veto à entrada


de enfermos estrangeiros, a notificação sobre eventual
mudança residencial de um doente ou seus familiares, a
desinfecção pessoal e de tudo o que tivesse sido tocado por
ele, a verificação sobre as condições de higiene dos ambientes
ocupados pelo mesmo, o veto ao exercício de profissões que
suscitavam risco à saúde da coletividade e a proibição à livre
circulação nos espaços frequentados pela sociedade, como
jardins, praças, igreja e bares (QUEIROZ, 1997).
Muito embora essas medidas tenham sido implementadas,
a princípio, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, neste
segundo, o modelo isolacionista acabou encontrando fértil
terreno para atuação. Com efeito, a migração de grandes
parcelas de trabalhadores rurais para o centro urbano-
industrial e o crescimento populacional contribuíram para um
significativo aumento da doença e a consequente notoriedade
desta no seio da sociedade paulistana. Era também ali que se
encontravam os principais porta-vozes da medicina moderna
simpáticos ao pensamento positivista de “ordem e progresso”,
como Heráclides Araújo e Aguiar Pupo. Empenhados no
extermínio da enfermidade, municípios diversos acabaram
contribuindo para a edificação de um aparelho de combate
que tinha como pilar de sustentação o alijamento compulsório
em instituições asilares. Tomando como modelo aquele
propagandeado por Oswaldo Cruz já no início do século, ou
seja, o das colônias agrícolas, quatro instituições deste gênero
foram construídas em diferentes localidades de São Paulo
durante as décadas de 20 e 30, tornando-se referência
nacional em termos de profilaxia.2
Mas, ainda que essas instituições tenham sido alçadas com
verbas advindas dos setores público e privado, que por
intermédio de uma efetiva campanha de adesão ao
movimento de combate à doença interiorizaram a necessidade
de medidas isolacionistas serem tomadas, salientava-se a
importância da participação do governo federal para o sucesso
do mesmo, haja vista tal participação representar a atuação
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 97

de todos os estados brasileiros, por intermédio de uma ação


conjunta, na campanha para a erradicação da enfermidade.
Não é por falta de leis e regulamentos que se não extingue a
lepra no Brasil. O que nos falta é a decisão dos governos! [...]
A lepra não é para o Brasil apenas um gravíssimo problema
médico-social; é também um sério problema econômico, que
no futuro se tornará insolúvel. [...] Dinheiro não nos falta, pois
gastam-se respeitáveis somas em obras públicas menos urgentes;
também não nos faltam homens capazes de sacrificar a própria
vida na realização de um ideal científico ou patriótico como
esse. O que nos falta é uma determinação do governo para
combater a lepra (ARAÚJO, 1929, p. 7).
De fato, como sugere Costa (1986), a crença de que os
problemas de saúde eram de competência do Estado se
configurava parte integrante do pensamento de médicos,
intelectuais e juristas partidários dos princípios nacionalistas
que foram se consolidando a partir dos anos 20. Para eles,
cabia a uma nação forte e desenvolvida o gerenciamento
social, político e econômico do país. Logicamente, a
preocupação desses personagens fazia parte das aspirações
que integravam os representantes dessas classes por uma
legítima e livre participação nas medidas que lhes diziam
respeito. Em relação aos profissionais da medicina, o respaldo
do governo federal frente às questões de saúde por eles
referidas como grandes problemas à espera de solução tinha
como significado a personificação de uma esfera de poder
em que a classe médica se faria no comando. No entanto,
embora muitos médicos expressassem em seus discursos os
fundamentos básicos da medicina social, voltada para a
coletividade, para o fim dos problemas que induziam o
surgimento das doenças e para o restabelecimento do
indivíduo, é possível observarmos que no âmbito da
hanseníase tais fundamentos acabaram sendo postos de lado.
A construção de instituições asilares teve como principal
objetivo afastar da sociedade sadia aquilo que era sinônimo
de ameaça, muito mais do que propiciar a cura ao doente e
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a sua posterior reintegração social.


Com efeito, a veiculação nos mais variados meios de
comunicação da importância de um movimento de combate
à hanseníase ser estabelecido no Brasil foi um dos mais
significativos instrumentos de apoio à campanha. Durante todo
o período que assinalou a República Velha o problema da
doença foi apresentado como um fato à procura de solução
por representantes dos diversos segmentos da sociedade.
Enfatizando que as propostas sanitaristas tinham como
finalidade garantir a saúde da coletividade com vistas a
salvaguardá-la dos males que assolavam o país e que
provocavam o seu esmorecimento, discursos de cunho
eugenista, moralizador e caritativo eram internalizados pelo
pensamento coletivo, que os tomava como princípios
ideológicos.
Para a internalização desses discursos, instituições de caráter
assistencialista se caracterizaram fundamentais, na medida em
que as atividades por elas desenvolvidas necessitavam da
participação efetiva da sociedade, independente de sua classe
social. Essas entidades contavam com a participação de
mulheres engajadas no projeto de modernização do país.
Assim, chamavam a atenção do povo para que ele caminhasse
rumo a um ideal comum. Trabalhando para a eliminação de
uma doença que colocava em risco o progresso da nação,
funções deveriam ser desempenhadas pela população em
geral. Entre essas funções, a contribuição efetiva na luta pela
obtenção de recursos à promoção da assistência social ao
enfermo de hanseníase, sua família e, principalmente, sua
prole sadia.
Uma das mais significativas instituições filantrópicas voltadas
ao problema da doença no Brasil foi a Sociedade de
Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra. Fundada em
1926 por Alice Tibiriçá3, tinha como membros integrantes
senhoras da sociedade paulistana e médicos que se dedicavam
ao problema da enfermidade, transformando-se, em 1932,
numa federação. O principal objetivo da Sociedade era:
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 99

[...] o combate sem interrupção, sem modificação, numa ação


conjunta e uniforme, tendo por base os preceitos de higiene e,
como finalidade, a assistência aos leprosos em seu longo calvário
e, conjuntamente, a defesa dos sãos quanto ao perigo do
contágio.4
Embora as atividades desenvolvidas por ela tenham sido
fundamentais à divulgação do problema da hanseníase e à
adesão populacional no movimento que desde o princípio se
mostrou simpático ao discurso eugenista, somente a partir de
1935, quando Eunice Weaver5 assumiu a presidência da
entidade, foi implementado um plano nacional efetivo no
combate à doença. Esse plano foi marcado pelo isolamento
compulsório do enfermo em grandes colônias agrícolas, bem
como pelo alijamento de sua prole sadia em instituições
preventoriais.
De fato, desde a implantação do Departamento Nacional
de Saúde Pública, com São Paulo se destacando no âmbito
da profilaxia da hanseníase, posicionamentos diferenciados
quanto aos mecanismos a serem utilizados no combate à
doença se fizeram presentes. Durante muito tempo,
personagens contrários ao isolamento compulsório
indiscriminado, como o próprio Carlos Chagas, estiveram à
frente no comando dos serviços públicos voltados ao problema
da doença, defendendo a adoção de medidas mais brandas,
como o tratamento ambulatorial ou domiciliar acompanhado
de medidas de higiene. Esses posicionamentos, desde a fundação
da Sociedade de Assistência aos Lázaros, foram também
defendidos por Alice Tibiriçá, salientando que o confinamento
obrigatório do enfermo aumentava os estigmas acerca da
doença (LEMOS, 1939). Muito embora tenha sido por
intermédio da Sociedade de Assistência aos Lázaros que o
problema ecoou nos mais diversos estados brasileiros, através
das campanhas promovidas pelas filiadas que se espalharam
por todo o território nacional, a década de 30 assinalou a
preferência pela tomada de um modelo de tratamento que
teve como fundamento o cerceamento da liberdade.
100|Débora Michels Mattos

Lenharo (1986) salienta a quebra do individualismo que


assinalou a política brasileira após a Revolução de 30 e a
chegada de Getúlio Vargas ao poder. A partir dessa quebra o
Brasil passou a ser observado como um corpo que deveria
estar em perfeita harmonia para garantir a sua vitalidade. A
saúde se configurava como um dos mais importantes
elementos para a manutenção desse corpo e, juntamente com
outros, objetivava alcançar o mais alto grau de perfectibilidade.
Semelhante a um pai que tem a guarda do filho e o
instrumentaliza a viver em consonância com os princípios que
regem a sociedade da qual faz parte, o Estado, objetivando a
constituição de uma nação hígida, disciplinada, moralizada e
laboriosa, se incumbiu de articular os mecanismos básicos para
isto. Marca dos governos autoritários que ditam as regras a
serem seguidas no âmbito da coletividade, o controle efetivo
sobre as mais diferentes esferas da vida, sobretudo aquelas
que destoavam das propostas ideológicas fomentadas no país,
acabou sendo legitimado. Para os médicos, políticos e
intelectuais da época simpáticos aos princípios eugênicos e
partidários do isolamento compulsório no Brasil, esse novo
cenário constituiu-se fundamental à aplicação das teorias
segregacionistas por eles almejadas, embora tais teorias se
mostrassem paradoxais em relação a outras que vinham sendo
comprovadamente demonstradas como mais eficazes.
Com a reformulação do Departamento Nacional de Saúde
Pública, que a partir de 1934 vinculou-se ao Ministério da
Educação e Saúde, passando a se denominar Departamento
Nacional de Saúde e Assistência Médico-Social (HOCHMANN,
1998) o problema da hanseníase esteve na ordem das
medidas de combate aos males que aumentavam o quadro
de morbidez em que grandes parcelas da população brasileira
se encontravam. Acatando o plano de ação que foi elaborado
pela Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e
Defesa contra a Lepra, quando Eunice Weaver tornou-se
presidente da instituição e desde logo deixou evidente ser
partidária das práticas isolacionistas, o governo federal deu
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 101

pleno apoio à campanha que tinha por finalidade a extinção


da doença.

A campanha

A campanha contra a hanseníase no Brasil pode ser dividida


em dois momentos distintos. Embora o problema da doença
tenha sido levantado por inúmeras vozes da ciência, como o
próprio Oswaldo Cruz, que desde o início do século XX já
publicava artigos em jornais sobre a presença da enfermidade,
as décadas de 20 e 30 podem ser consideradas o período em
que foram tomadas medidas mais significativas em relação
ao combate da enfermidade.
Durante os anos 20 verificamos a criação do Departamento
Nacional de Saúde Pública e a instituição da Inspetoria de
Profilaxia da Lepra, dispondo medidas específicas que
deveriam ser tomadas em relação à doença e ao doente,
estando São Paulo à frente dos outros estados brasileiros na
edificação de instituições asilares e na perpetração de um
modelo de tratamento pautado no cerceamento da liberdade.
Ainda nesse período, salientava-se a necessidade de uma maior
participação do Estado no controle e no combate à
enfermidade em nível nacional. No entanto, o caráter
federalista brasileiro fazia com que essa participação fosse
inexistente.
A crescente preocupação com a presença da doença,
sobretudo naqueles lugares onde o aumento populacional
exacerbou os problemas que os males de toda ordem
representavam no âmbito da coletividade, trouxe à tona uma
prática comum entre os povos que sofreram influência da
religião cristã, ou seja, a criação de instituições assistenciais
voltadas ao atendimento dos menos afortunados. No âmbito
da hanseníase, a Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa
contra a Lepra constituiu-se como a mais importante e
configurou-se como um dos mais eficazes instrumentos de
102|Débora Michels Mattos

apoio ao movimento de combate.


A Sociedade de Assistência aos Lázaros conseguiu
arrebanhar grandes parcelas da população na luta pela
erradicação da doença. Por intermédio de um discurso que
aliou a prática caritativa ao projeto de modernização e
eugenização nacional, médicos, cientistas, literatos,
comerciantes, industriais, mas, sobretudo as mulheres,
voltaram seus olhares à problemática. Através desse apoio,
eventos, boletins, publicações, propagandas e conferências
acerca da hanseníase iam aumentando o quadro de
associados e o número de adeptos às propostas fomentadas
pela associação.
Em abril de 1929 o primeiro boletim da instituição foi
editado. Nele, temas de cunho diversificado procuraram
abarcar os mais diferentes aspectos inerentes à doença: suas
formas clínicas, os meios de aquisição e transmissão, os riscos
que representava para a coletividade, para o país e para o
ideal de pureza da raça, medidas preventivas de higiene, a
preservação da prole sadia do enfermo, dados epidemiológicos
nacionais e internacionais, medidas profiláticas adotadas nos
mais diferentes lugares, etc. Tendo em vista ser uma publicação
mensal e distribuída gratuitamente para as repartições públicas
e privadas dos mais diversos estados brasileiros, constituiu-se
como um importante instrumento de propaganda de grandes
empresas como a Ford e a Lacta, bem como o mais eficaz
veículo de convencimento à necessidade do auxílio coletivo,
em nível nacional, no provimento da campanha.6
Animado com a proposta de erradicação da hanseníase,
por intermédio desses boletins que iam circulando de mão
em mão e aumentando cada vez mais o quadro de pessoas
simpáticas ao movimento, o gênero feminino tomou para si a
incumbência de levar a cabo o discurso produzido pela Sociedade
de Assistência aos Lázaros. Sendo assim, um grande contingente
de mulheres, representantes das diferentes regiões brasileiras,
encabeçou um movimento que se tornou a mola propulsora
para a legitimação do plano nacional de combate à doença.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 103

Rago (1997) salienta o importante significado dado à


participação feminina no cenário brasileiro que assinalou os
anos 30. De fato, a mulher passou a ser vislumbrada como
personagem importante na articulação do bem-estar familiar,
sobretudo no que dizia respeito à prole, no âmbito de sua
formação moral e educacional. Aliados ao status de “esposa-
dona-de-casa, mãe-de-família” -, como sugere Rago,
atribuídos à figura feminina, novos papéis lhe foram
designados no que dizia respeito à organização do meio social,
sobretudo no gerenciamento dos problemas de ordem
educacional e assistencialista que se faziam salutares em nome
do progresso. Imputada a elas a necessidade de uma
participação efetiva acerca dessas questões, a partir de um
discurso que almejava a constituição de uma nação unida em
busca de um ideal de modernização comum e que tinha como
imperativo a feição de um povo forte, trabalhador, saudável,
puro e disciplinado, a mulher viu-se parte integrante do
movimento que se articulava para combater a hanseníase.
Mas, como dito, os anos 30 assinalaram mudanças
significativas no cenário político brasileiro e as propostas mais
brandas defendidas pela Sociedade de Assistência aos Lázaros
mostraram-se dissonantes em relação àquelas defendidas
pelos porta-vozes da ciência partidários das medidas mais
enérgicas. Como resultado, somente a partir de 1935 o
governo federal resolveu dar apoio à instituição, aceitando o
plano geral para a extinção da doença por ela edificado. De
acordo com o plano, ficou a cargo da Federação das
Sociedades de Assistência aos Lázaros a articulação de
procedimentos para a obtenção de verbas para a implantação
do empreendimento que se deteve, sobretudo, à assistência
social ao filho sadio do enfermo, ainda que as finalidades
dispostas em seus estatutos fossem mais amplas, de acordo
com os itens abaixo relacionados:
a) Incrementar a fundação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra em todo o território nacional;
104|Débora Michels Mattos

b) Incentivar a atividade dessas sociedades, promover a sua


filiação, e colaborar com elas no seu programa de ação;

c) Promover campanhas financeiras em benefício das


Sociedades filiadas, indenizando-se das despesas que faça com
as mesmas;

d) Procurar obter a colaboração de outras organizações sociais,


civis ou militares, especialmente as de caráter educacional;

e) Manter um órgão de publicidade intitulado Revista de


Combate à Lepra, sob a responsabilidade da Diretoria, tendo
uma comissão de redação composta de três membros, com
autoridades para eliminar da publicação quaisquer frases ou
conceitos que possam ser considerados ofensivos ou
inconvenientes;

f) Intervir nas resoluções de suas filiadas quando houver


necessidade de corrigir injustiças ou afastar dificuldades, para
melhorar e equilibrar a administração;

g) Propugnar pelo exame médico periódico, pelo menos para


os domésticos, escolares e menores asilados;

h) Promover, periodicamente, conferências leprológicas


nacionais ou regionais, enquanto a lepra for no Brasil o mais
grave problema médico-social (Estatutos da Federação da
Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra,
1935 apud GOMIDE, 1991, p. 96-97).
Com efeito, foi com base nas finalidades da Federação
de Assistência aos Lázaros dispostas no Artigo 3 de seus
Estatutos que a campanha de combate à hanseníase, no
que concerne ao amparo ao filho sadio do enfermo, foi
iniciada. Através de publicações mensais, propagandas,
panfletos, conferências e apelos, os membros da entidade
iam aumentando a sua esfera de atuação e formando mais
apóstolos para a aplicabilidade de suas propostas. Em 1941
o Brasil já contava com a presença de 59 Sociedades de
Assistência aos Lázaros em todo o seu território. Em 1949
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 105

esse número havia ultrapassado a casa dos 80.7


Gomide (1991) afirma que o discurso de assistência social
feito pela Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros
e Defesa contra a Lepra, além de propagandear os princípios
eugenistas de preservação da raça, demonstrou simpatia pela
ideologia nacionalista amplamente divulgada no país. De fato,
salientando que a construção de uma nação forte e
desenvolvida só se faria por intermédio da união, da saúde e
do vigor de seu povo, a importância da participação de todos
para o sucesso do movimento que se iniciava acabava sendo
reforçada e reproduzida por membros das Sociedades de
Assistência aos Lázaros filiados à Federação.
O patriotismo que nos anima não esmorecerá porque somos
brasileiras e a brasileiros ainda não se viu esmorecer em meio a
peleja. A batalha está travada, e só há um caminho: o da
vitória. Entoemos a marcha gloriosa de triunfo, rumo à proteção
aos lázaros [...]. Longe de uma campanha racial e condenável,
nós nos propusemos é bem de ver, a uma luta da raça. Mas de
uma raça forte e sadia. [...] Salvando do contágio o filho do
lázaro, damos aos pais infelizes a esperança de um futuro feliz
e à sociedade restituiremos homens fortes capazes de cooperar
para a grandeza do Brasil (SOCIEDADE, 1939, p. 5)
Uma das táticas utilizadas para chamar a atenção da
sociedade para o problema foi a veiculação do movimento
por intermédio dos meios de comunicação, sobretudo a
imprensa escrita. Lenharo (1986) enfatiza a importância da
imprensa, utilizada durante o Estado Novo, como mecanismo
eficaz na formação da opinião pública. Segundo o autor,
através de chamadas, pedidos, discursos e afirmações
veiculados nos meios de comunicação, acreditava-se possível
moldar o comportamento coletivo e direcionar os anseios de
grande parte da população. De fato, a imprensa tinha esse
poder. Por intermédio dela o pensamento das pessoas acabava
incorporando as falas apresentadas, transformando-as em
ideal.
106|Débora Michels Mattos

No âmbito da hanseníase a Federação das Sociedades de


Assistência aos Lázaros teve apoio dos jornais locais de maior
tiragem, que por sua vez se mostravam porta-vozes da política
governista. Em 1936, outro veículo caracterizou-se importante
instrumento à divulgação: a Revista de Combate à Lepra.
Substituindo os boletins editados pela entidade desde 1929,
médicos, políticos e literatos envolvidos com a questão
passaram a publicar ali os seus artigos.
Cabia à Revista de Combate à Lepra a publicação das
matérias básicas apresentadas nos boletins e a divulgação das
atividades realizadas pela Federação e suas filiadas. Ainda nela
era salientada a atuação do governo federal, dos governos
estaduais e outros poderes envolvidos na montagem do
aparelho profilático. Demonstrando uma ação conjunta com
o Departamento Nacional de Saúde e Assistência Médico Social
no que competia à Divisão de Profilaxia da Lepra, não apenas
discursava sobre o problema do filho sadio do enfermo em
relação ao seu amparo, mas enfatizava o que estava sendo
feito no Brasil no âmbito do tratamento ao doente. Podemos
observar, no sumário da publicação de março de 1939, a
abrangência das questões que eram salientadas:
- Breve Plano de Profilaxia da Lepra, por H.C. Araújo;

- A Lepra na América do Sul, por H. W. Wade;

- A Classificação da Lepra (relatório da sub-comissão da


classificação da lepra do congresso do Cairo);

- Como a Cooperação Privada dá Assistência aos Lázaros e


Coopera no Esforço para Erradicar a Lepra, por E. Weaver;

- Contra o Mal de Hansen o Maior Remédio ainda é o Óleo de


Chalmoogra, por H. W. Wade;

- Assistência aos Lázaros, por L. Correa;

- Itanhenga: cidade dos leprosos; por N. Maccagi;


Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 107

- A Visita do Dr. Wade ao Brasil;

- A Campanha contra a Lepra no Município de Juiz de Fora,


por A. C. Pereira;

- Noticiário das Sociedades de Assistência aos Lázaros (ordem


alfabética dos estados);

- Noticiário dos Estados (ordem alfabética);

- Profilaxia da Lepra (miscelânea). (REVISTA DE COMBATE


À LEPRA, 1939).
Na tentativa de cada vez mais chamar a atenção da
sociedade para o problema que se fazia crescente nos estados
brasileiros, a Federação de Assistência aos Lázaros aproximava-
se dos discursos produzidos em larga escala sobre a
importância da participação de todos na construção da nação.
Dando ênfase ao papel da mulher na feição desse
empreendimento, sobretudo a partir de argumentos que
imputavam a ela significados variados de mulher, esposa e
mãe de família, ou seja, aquela dotada de aptidões natas ao
cuidado do lar, uma legião de senhoras na guarda de “seus
filhos” ia se formando no país (RAGO, 1997). Através de
chamadas à realização de tarefas que somente elas poderiam
desempenhar, ampliava-se a esfera de controle e poder sobre
os que não se enquadravam nos conceitos de normalidade
ditados pela lógica burguesa. Embora a Federação tenha
abarcado questões relativas à hanseníase bastante
abrangentes, o problema da infância sadia filha do enfermo
configurou-se seu principal alvo de atuação, ficando sob o
seu domínio a articulação das medidas que deveriam ser
tomadas em relação a ela.
Desde a década de 20 uma maior preocupação com o
filho sadio do doente pôde ser evidenciada. As discussões
que vinham sendo elaboradas sobre a importância da infância
sadia no provimento do desenvolvimento nacional ganhavam
espaço nos principais meios de comunicação, como revistas,
108|Débora Michels Mattos

jornais e conferências proferidas por profissionais da educação,


da ciência e da medicina. As transformações sociais, políticas
e econômicas pelas quais o Brasil estava passando, sobretudo
relacionadas ao crescimento das cidades, à industrialização e
à utilização de uma forma de trabalho indispensável à nova
ordem estabelecida, exigia a participação da sociedade nos
diferentes aspectos de sua vida. Nesse sentido, o trato para
com a infância representava o trato para com o futuro cidadão
brasileiro apto a cooperar com as diretrizes nacionais voltadas
ao provimento do progresso. A partir desses pressupostos,
nascia a preocupação com a infância sadia filha do enfermo
de hanseníase que, amparada nos ideais eugênicos de salvação
da raça, objetivava manter o controle e o cuidado sobre
indivíduos vistos como ameaça aos planos de construção
nacional por intermédio da força, da vitalidade e da pureza
de seu povo. “Uma criança que se perde, material ou
moralmente, significa uma força que se perde para a
sociedade”. (BARBOSA, 1925, p. 5)
Embora o filho sadio do doente fosse clinicamente
considerado saudável, a crença de que no futuro poderia ser
portador da enfermidade constituía-se um risco que para
muitos deveria ser evitado. Sendo assim, por meio dos
discursos eugênicos de salvação da raça, a Federação das
Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra
encarregou-se da manutenção da prole salubre do enfermo
através da construção de instituições preventoriais.
Monteiro (1995) salienta que a instauração do regime asilar
ao portador da hanseníase resultava no abandono dos
familiares, principalmente seus filhos, visto que em muitos
casos, pai e mãe eram acometidos pela doença. Ainda que a
enfermidade incidisse sobre apenas um dos progenitores, a
sua retirada do lar resultava na desestruturação da família,
que de certa forma se sentia desamparada e estigmatizada
em vista dos preconceitos que passava a sofrer por sua íntima
ligação com o doente. A criação de instituições preventoriais
à prole sadia do enfermo, então relegada ao abandono, já
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 109

havia sido instituída em alguns lugares como Havaí, Índia e


Filipinas (ARAÚJO, 1929). Embora a Noruega tenha optado
pela concessão de auxílio governamental aos parentes em
segundo grau que se encarregassem da manutenção da
criança, o modelo adotado pelo Brasil foi baseado na
construção de instituições preventoriais, de acordo com a
legislação acerca da profilaxia da doença que passou a vigorar
no Brasil.
Mas esse modelo foi, por muitos, observado como um
agravante aos estigmas que a “lepra” imputava àqueles que
não eram portadores e que de certa forma faziam parte de
seu universo. Alice Tibiriçá configurou-se uma das maiores
figuras contrárias à instituição preventorial e, em vista disto,
não conseguiu o respaldo do governo federal para a aplicação
de suas propostas quando esteve na direção da Federação
das Sociedades de Assistência aos Lázaros. Para ela, a
internação do filho sadio do enfermo em instituições desse
gênero fazia com que o mesmo se sentisse à parte da sociedade
por integrar um grupo de indivíduos afastados do convívio
social. A rejeição, por parte da família, aumentava o sentimento
de abandono, atribuindo à criança, ainda que no seu mais
alto estado de saúde, a marca da diferença e os preconceitos
inerentes à doença. Segundo Tibiriçá, a criação de granjas
onde a família pudesse garantir a sua autossustentação teria
por finalidade impedir a feição de mais um grupo de
estigmatizados. De fato, o alijamento social da prole sadia do
enfermo dava à criança a eterna sina de ser filho sadio de um
doente, sendo portanto, entendido como ameaça (TIBIRIÇÁ,
1933). Mas isso não foi suficiente para a adoção de uma nova
prática assistencialista. No Brasil dos anos 30, o modelo
adotado privilegiou a edificação de instituições preventoriais.
Essas instituições, aliadas àquelas voltadas à segregação do
enfermo e a outras destinadas ao controle e vigilância dos
casos suspeitos, configuraram-se a tripeça base para o efetivo
combate à hanseníase. Através de uma ação conjunta entre
o governo federal, os poderes estaduais e municipais, a
110|Débora Michels Mattos

iniciativa privada e a Federação das Sociedades de Assistência


aos Lázaros, de onde partiram as diretrizes a serem
implementadas contra a doença, dispensários, colônias
agrícolas e preventórios foram construídos em todo o país
(GOMIDE, 1991), inclusive na região catarinense.8

As bases para a campanha em Santa


Catarina

A campanha de combate à enfermidade em Santa Catarina


se estabeleceu a partir de um movimento organizado por
senhoras da sociedade catarinense que, a exemplo de outros
estados brasileiros, encabeçaram um movimento contra a
hanseníase após a fundação de uma Sociedade de Assistência
aos Lázaros e Defesa contra a Lepra na capital, em dezembro
de 1936.
Desde a década de 20, o problema da hanseníase vinha
sendo discutido em Santa Catarina, enfatizando-se o descaso
do governo federal e estadual frente à sua presença. De fato,
durante muito tempo quase nada foi feito em relação a sua
incidência na região. Assim como em outros estados brasileiros,
todo e qualquer tratamento destinado ao enfermo esteve
pautado na assistência social. Embora haja indícios de que os
“visíveis” doentes de Florianópolis fossem encaminhados para
uma ala separada do Hospital de Caridade, construída um
pouco abaixo da instituição e sob os cuidados das irmãs da
Divina Providência, frequente foi o enclausuramento desses
personagens na Penitenciária Estadual da Pedra Grande que,
de acordo com Poyer (1999, p. 180), “[...] entre 1930 e
1935 havia se transformado em um grande depósito de
pessoas indesejáveis.”
Todo o tipo de desviado, que não se adequava aos padrões
modernos e civilizatórios que as elites pretendiam instaurar na
cidade, criminosos, menores abandonados e menores infratores,
tuberculosos, leprosos e loucos, todos vivendo em conjunto,
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 111

em um ambiente longe de ser considerado uma instituição


moderna (POYER, 1999, p. 180-181).
As transformações pelas quais o Brasil passou em fins do
século XIX e início do XX, principalmente nos grandes centros
urbano-industriais, influenciaram os membros da elite
catarinense com os ideais de progresso e civilização. De fato,
já nas primeiras décadas da República, a capital Florianópolis
deu mostras de simpatia pela ideologia modernizadora. Como
resultado, um olhar mais acirrado acerca dos problemas de
saúde surgiram. Através de medidas de cunho sanitário,
educativo e moralizador que tinham por meta garantir o bem-
estar da população em geral, acreditava-se edificar a ponte
que conduziria a sociedade catarinense ao desenvolvimento.
Considerando progresso e civilização como bem valioso e
supremo, investia-se na higienização e salubridade, a instrução
e tudo aquilo que se acreditava, constituíam-se os pontos
fundantes dos perfis, dos comportamentos e das modernas
práticas citadinas, caracterizadas por uma sociedade mais nova
e avançada (CHEREM, 1994, p. 8).
Ainda segundo Cherem (1994), o discurso produzido
acerca da saúde e da higiene populacional comparava os
indivíduos a células e a sociedade a um corpo, objetivando
uma interação perfeita entre seus membros e observando na
doença ou na falha de uma das partes, o comprometimento
da estrutura social. Sendo assim, não só a capital catarinense
foi palco das preocupações que salientavam a importância
da saúde, da higiene, da educação, da formação moral e da
disciplina para o provimento do progresso da região. Em
quase todo o estado assumiu-se a necessidade de práticas
saneadoras para a manutenção da ordem e do
desenvolvimento almejado, sobretudo por intermédio dos
discursos advindos do estrangeiro, que enfatizavam a
importância de tais práticas para que a prosperidade fosse
alcançada (ARAÚJO, 1989).
Nesse cenário, que a partir da década de 30 se configurou
112|Débora Michels Mattos

propício à implantação de medidas com vistas a resolver o


problema dos desajustes sociais de toda a ordem, o discurso
eugênico acabou se cristalizando por intermédio daqueles que
observavam na doença, no abandono, no crime e na
prostituição, sérios entraves à feição de um tipo de cidadão
forte, trabalhador e disciplinado, apto para o trabalho e agente
do progresso da região.
Com efeito, o incremento industrial que assinalou o estado
de Santa Catarina durante os anos 30, com o Nordeste e o
Vale do Itajaí destacando-se na industria têxtil, Joinville na
metalurgia, Criciúma no carvão, Lages na produção de papel
e papelão, o Oeste no setor de alimentos, e a capital
Florianópolis na atividade comercial, teve como resultado o
relativo inchaço das cidades e o aumento dos problemas de
caráter social (CAMPOS, 1992). Na tentativa de conter as
possíveis desordens que colocavam em risco a harmonia
cotidiana dos centros urbanos, investimentos foram feitos no
espaço público e privado da sociedade, quando o governo
estadual, em consonância com as diretrizes nacionais dispostas
na política de Vargas, incumbiu-se da realização desses
investimentos. Entre eles, a edificação de instituições
variadas, como a Penitenciária Pedra Grande, que apesar
de ter sido construída em década antecedente, sofreu
significativas reformulações; o Abrigo de Menores,
destinado a crianças e adolescentes infratores; o Hospital
Colônia Santana, voltado ao alijamento dos doentes
mentais; o Hospital Santa Teresa, alçado para segregar
compulsoriamente os doentes de hanseníase; além de outras
instituições de caráter educacional.
Tomando conhecimento desse empreendimento
encabeçado pelo interventor federal no estado, Nerêu Ramos,
que tinha por meta evitar, conter e acabar com os grandes
males que interferiam na constituição de uma sociedade
plenamente desenvolvida, a Federação das Sociedades de
Assistência aos Lázaros engendrou a criação de mais uma filiada
a ser instalada na região catarinense com o propósito de ser
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 113

edificada uma instituição preventorial ao recolhimento dos


filhos sadios dos hansenianos. Assim nasceu a campanha de
combate à hanseníase em Santa Catarina.

Um movimento de solidariedade

Podemos considerar o marco para a implantação de uma


campanha contra a hanseníase em Santa Catarina a
organização de um movimento preliminar articulado por
membros da sociedade florianopolitana com o propósito de
chamar a atenção da população em geral para o problema
na região, principalmente no que concerne ao filho sadio do
enfermo. Esse movimento, denominado Campanha da
Solidariedade, iniciou-se em 5 de dezembro de 1936, na
capital do estado, sendo encerrado no dia 14 do mesmo mês,
após algumas cidades catarinenses terem aderido, como
Laguna, Brusque, Blumenau, Joinville e Mafra.
A exemplo dos movimentos desse gênero, que já haviam
sido organizados em outros Estados brasileiros, como São
Paulo, Rio de Janeiro e Paraíba, foi importante a participação
da esfera pública e privada para a obtenção de apoio e
credibilidade. De fato, na comissão de execução das
Campanhas de Solidariedade que foram organizadas pelos
vários municípios catarinenses, nomes importantes se fizeram
presentes. De acordo com o Relatório da Sociedade de
Assistência aos Lázaros de Santa Catarina relativo ao período
de dezembro de 1936 a novembro de 1937 (1938), em
Florianópolis e à frente do evento esteve o presidente da
Assembleia Legislativa, Altamiro Guimarães; em Blumenau,
o dono das empresas Hering, Curt Hering. Aliados a eles,
prefeitos, comerciantes, médicos, membros das forças
armadas, mas, sobretudo mulheres, simpatizaram com o
movimento, autodenominando-se “exército do bem” em
defesa da preservação da raça. Muito embora as atividades
desenvolvidas por esse “exército” tenham sido voltadas à
114|Débora Michels Mattos

obtenção de recursos para a construção de um abrigo aos


filhos sadios dos doentes, foi do conjunto de instrumentos de
auxílio utilizados que ele acabou obtendo apoio e legitimidade
junto ao povo da região.
Com efeito, a realização das atividades programadas pela
comissão da Campanha da Solidariedade foi fundamental à
legitimação do movimento que visava auxiliar no combate à
hanseníase em Santa Catarina. Essas atividades tiveram na
mulher catarinense a mais fiel de suas representantes. Na
capital, local onde esse movimento foi iniciado, destacamos
os nomes de Beatriz Pederneiras Ramos (esposa do interventor
Nerêu Ramos), Olga Silveira, Cora Guimarães, Marieta Corrêa,
Otília Cruz, Carmen Colônia, Ida Simone e Antonieta de
Barros (professora de destaque no cenário regional). Sob a
chefia dessas mulheres, 8 grupos foram organizados a partir
de funções específicas que cabiam a elas desempenhar.
Pelos grupos 1, 2 e 3, comandados por Olga Silveira, Cora
Guimarães e Beatriz Ramos, foi organizada a festa de
encerramento de todas as atividades realizadas durante a
Campanha da Solidariedade, sendo os recursos advindos deste
evento destinados à construção do preventório. Os grupos 4 e
5 se detiveram a percorrer as ruas da capital em busca de
doações em dinheiro. O de número 6, sob autorização do
governo do estado e da prefeitura, angariou fundos através de
pedágio aos passantes da ponte Hercílio Luz, oferecendo em
troca esclarecimentos acerca da enfermidade e da necessidade
de se combatê-la na região. O grupo 7, com o auxílio do Clube
Doze de Agosto, promoveu um concurso de mesas, revertendo
o valor dos ingressos e do prêmio para a campanha (REVISTA
DE COMBATE À LEPRA, 1936). Por intermédio desse concurso,
amplamente divulgado num dos jornais de maior tiragem da
região, podemos verificar os princípios de modernidade e de
civilização que integravam as aspirações da sociedade, através
da ênfase ao requinte do evento.
No Clube 12 de Agosto, nos dias 11 e 12 do corrente mês, um
concurso de mesas para jantares e chás aos moldes de Paris,
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 115

Roma e Rio de Janeiro, contendo todos os requisitos necessários


como louças, cristais e pratarias para a sua realização, será
organizado pelas representantes da Campanha da Solidariedade
(A GAZETA, 10 dez. 1936)
Gomide (1991) afirma ter sido comum a realização de
eventos em clubes e associações. Segundo a autora, os
membros das Sociedades de Assistência aos Lázaros instituídas
nas diferentes cidades brasileiras, eram sobretudo,
representantes das elites locais e consórcios dessas entidades
recreativas. Esse fato fazia com que as atividades realizadas ali
movimentassem grandes somas em dinheiro, que revertidas
para as Sociedades de Assistência aos Lázaros, tornavam
factíveis os seus objetivos.
Em Santa Catarina esses eventos foram amplamente
divulgados na imprensa. Utilizando-se de um discurso de
solidariedade, caridade e altruísmo fomentado pelos membros
da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros,
pedidos eram feitos para que a população como um todo
contribuísse. Foi, contudo, a mulher catarinense, o mais
significativo alvo de atenção. Aproveitando-se de um cenário
em que o sexo feminino viu-se apto a desempenhar funções
específicas dentro da sociedade, a partir dos movimentos
feministas e da importância dada ao gênero na articulação
dos instrumentos necessários à formação moral e educativa
acerca da infância desde o século XIX , as solicitações de auxílio
perpetradas pelos porta-vozes da Federação de Assistência
aos Lázaros no Estado de Santa Catarina foram, sobretudo,
direcionadas à mulher.
A mulher catarinense, possuidora de magnânimo e caritativo
coração, solidariza-se e prestigia o nobilitante movimento de
assistência aos filhos de leprosos (A GAZETA, 07 dez. 1936).

A bandeira da caridade desfraldada em boa hora pela mulher


catarinense, avança já de triunfo em triunfo, para a vitória
definitiva, visando a construção de um preventório em Santa
Catarina, para os menores descendentes dos infelizes do mal
de Hansen (REPÚBLICA, 10 dez. 1936).
116|Débora Michels Mattos

Aliados a esses pedidos de auxílio feitos à mulher


catarinense, outros direcionados à população em geral
também se fizeram presentes. Neles é possível constatarmos
o grande problema que a hanseníase representava para o
desenvolvimento econômico do Brasil.
Catarinenses, alistai-vos no Exército da Solidariedade que
visa extinguir para sempre no torrão pátrio o mal que nos
deprime aos olhos dos povos civilizados e torna desgraçados
e inúteis à economia do país milhares de patrícios nossos.
(Jornal República, 09 dez. 1936)
Mas não foram somente pedidos de cunho exortativo que
apareceram na imprensa à luz da instituição do movimento
contra a hanseníase em Santa Catarina. Artigos de toda a
ordem foram publicados com vistas a trazer maiores
esclarecimentos sobre o movimento que tinha por meta
auxiliar no fim da enfermidade. Embora o problema do filho
sadio do enfermo fosse mais veementemente salientado,
aspectos relativos à doença e ao doente também eram
abarcados. Sendo assim, os discursos ideológicos produzidos
pela medicina, pelos eugenistas, pelos representantes do governo
em geral, eram comumente introduzidos nas principais páginas
dos jornais de forma a fazer com que a população também os
tomasse para si. Até a edificação da instituição preventorial,
inaugurada no ano de 1941, recorrente foi a presença desses
artigos na imprensa escrita catarinense.
Em meio a todas as atividades desenvolvidas pelos
membros que participaram da Campanha da Solidariedade,
em 12 de agosto de 1936 foi fundada a Sociedade de
Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra de Santa
Catarina, com sede em Florianópolis e sendo a presidente
Carmen Linhares Colônia. Dos recursos que foram obtidos
com o movimento, desde aqueles provenientes dos eventos
por seu intermédio organizados até os que resultaram de
incentivos advindos de diversos segmentos da sociedade,
alcançou-se a soma de trinta e sete contos oitocentos e noventa
e um mil e seiscentos réis.9
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 117

Em 1937 outras filiadas se estabeleceram nas cidades de


Blumenau, Joinvile, Itajaí e Mafra. Por intermédio de um
trabalho propagandístico veiculado na imprensa, bem como
dos panfletos distribuídos nos centros de saúde, a entidade ia
aumentando o seu quadro de associados. Através de festas,
bailes, rifas, apresentações, concursos, cafés e outras
atividades, angariavam-se cada vez mais verbas para a
edificação da instituição preventorial. Ao término do primeiro
ano da Sociedade de Assistência aos Lázaros, esta possuía em
caixa a quantia de cento e três contos setecentos e setenta e
dois mil novecentos réis. Em 1938 esse valor tinha duplicado,
chegando à cifra de duzentos e trinta e um conto trinta e oito
mil e quatrocentos réis. Entre os sócios contribuintes, 30 eram
da cidade de Palhoça, 57 de São José, 113 de Blumenau,
122 de Laguna, e 423 de Florianópolis, perfazendo um total
de 745 que pagavam uma quantia que variava entre mil réis
e cinquenta mil réis. Além destes, doadores anônimos também
se faziam presentes no quadro de contribuintes, conforme
disposto no Relatório da Sociedade, datado de 1939.
Durante cinco anos, após a fundação da Sociedade de
Assistência aos Lázaros, inúmeros foram os trabalhos organizados
pelas suas representantes, que por intermédio de outras,
aumentaram as esferas de apoio à construção do preventório.
O Ginásio Catarinense, dirigido por membros da Igreja Católica,
promoveu um concurso de contos e novelas em que a
problemática da prole do enfermo deveria ser enfatizada. Clubes
de diversas cidades realizaram festejos de toda a ordem, como
chás, bailes e exposições artísticas. Quermesses também foram
organizadas. Entre elas, a festa Pessegueiros e Flor, uma
denominação metafórica ao significado a ela atribuído, de acordo
com referência encontrada na Revista de Combate à Lepra:
O nome escolhido para o generoso certame não poderia ser
mais sugestivo. Ele traduziu todo o frescor, toda a poesia, toda
a bondade da alma da mulher catarinense, que tomou o
encargo de difundir e semear essa nobre e elevada missão em
sua terra (1949, p. 118).
118|Débora Michels Mattos

Auxiliando na obtenção de recursos, proprietários de salas


de cinema emprestavam o espaço para mostra de filmes,
sendo o valor dos ingressos revertidos ao movimento. Junto
a eles, intelectuais da sociedade elaboravam trabalhos literários
em que a vendagem também era doada. A exemplo,
Antonieta de Barros com a obra Farrapos de Idéias.
Antonieta de Barros era professora e assumiu papel de
destaque no cenário político catarinense durante os anos 30.
No jornal República, escrevia crônicas sobre variados assuntos,
sobretudo, temas de utilidade pública, como saúde, higiene,
assistência social, etc. Farrapos de Idéias foi a junção dessas
crônicas numa publicação única que tinha como objetivo
reverter os lucros obtidos com a venda à construção do
preventório (SILVA, 1991). Membro da Sociedade de
Assistência aos Lázaros, Antonieta preocupava-se com o
amparo aos filhos sadios dos enfermos. Ligada ao universo
da educação, acreditava que a instituição tinha por tônica,
além de atender a princípios profiláticos, dar instrução aos
menores como forma de garantir a eles um futuro seguro.
Assim, na apresentação da obra, Antonieta de Barros
enfatizava:

A Razão de Ser deste Livro


É simples, muito simples, a razão de ser deste livro. Se não fora
um instante de grande entusiasmo de fraternidade, em que o
coração se coloca mais alto do que a cabeça, este livro não
existiria. E não existiria porque os meus Farrapos eu os fiz, para
que tivessem a vida breve, diminuta, exígua e quase
desapercebida de cada número de jornal. No entanto, este livro
ressuscita as crônicas ligeiras do rodapé de ‘República’, aos
domingos. Não lhes dei nova feição, não as modifiquei. Elas
ressurgem como eram, para tentativa de auxílio aos pequeninos
filhos de leprosos. Tendo passado toda a minha vida, por força
da profissão, entre pequeninos, por amor deles não hesitei em
aceitar a sugestão da senhora Carmen Linhares Colônia. Tudo
me foi facilitado: o governo deu a impressão e ao lápis de
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 119

Molinverne Filho devo a ilustração da capa. Livro do coração


catarinense, não entrego à crítica, porque não me animam
pretensões literárias. Entrego-o, sim, ao coração da minha gente,
em benefício do preventório.
Agosto de 1937
Maria da Ilha
No âmbito do estabelecimento institucional que deveria
ser construído aos filhos sadios dos hansenianos, destacou-se
a contribuição do engenheiro Paulo Mota, que gratuitamente
confeccionou a planta do prédio e fiscalizou as obras de sua
edificação em companhia do colega de profissão, Udo Deck,
de acordo com relatório apresentado no Boletim da Federação
das Sociedades de Assistência aos Lázaros de 1940. Eram,
sobretudo, as grandes empresas que despendiam as maiores
somas de dinheiro ao movimento. Em Florianópolis podemos
salientar a Casa Hoepcke, o Banco Popular e Agrícola e a
Cia. de Máquinas Singer; em Joinvile, a Cia. Fabril Lepper e
as Farmácias Minerva; em Brusque, as Indústrias Renaux; e
em Blumenau, a Hering Têxtil. Junto com essas empresas,
instituições educacionais, como o Ginásio Catarinense e o
Colégio Coração de Jesus também contribuíam mensalmente.
A elas se aliavam consorciados da Sociedade de Assistência
aos Lázaros que integravam as classes médica, política e jurídica
do estado. Esses geralmente também faziam vultosas doações,
acompanhadas de auxílios advindos do governo federal,
estadual e prefeituras municipais. Em 1941 o número total
de contribuintes era de 1.802. Nesse ano, o preventório já se
encontrava finalizado, recebendo a denominação de
Educandário Santa Catarina. A opção por essa denomi-
nação, tema de debate no cenário nacional, tinha como
meta diminuir os estigmas relacionados às instituições
preventoriais, já que elas eram associadas diretamente à
problemática da hanseníase. Contudo, a relação feita entre
uma denominação e outra, pelo menos na região catarinense,
não permitiu que o estabelecimento fosse desvinculado de
tudo o que representava a doença.
120|Débora Michels Mattos

Assim se estabeleceu a Campanha de Combate à Lepra


no Estado de Santa Catarina. Sob um discurso de
solidariedade cristã e em defesa da pureza da raça, criou-se
mais uma esfera de poder acerca dos que eram sinônimos de
ameaça. Embora o movimento tenha sido encabeçado por
representantes da elite catarinense, as proporções a que ele
chegou acabaram fazendo com que se tornasse uma
campanha popular. Através da exortação para os perigos que
a doença representava, salientando em jornais, revistas e
panfletos os danos físicos que causava ao corpo, induzia-se à
cristalização de um pânico coletivo que tinha como objetivo
acirrar os ânimos em relação à importância do combate. No
que concerne ao filho sadio do enfermo, atentava-se para o
fato de que as crianças filhas de pais doentes eram um risco
àquelas filhas de pais sãos. Aproveitando-se do sentimento
de medo e do instinto de proteção inerente ao ser humano, a
Sociedade de Assistência aos Lázaros foi aos poucos ampliando
o número de pessoas favoráveis aos instrumentos por ela
defendidos como eficazes à eliminação da doença. Em um
dos jornais de maior tiragem de Santa Catarina podemos
verificar o quão forte eram os discursos apregoados pelos
seus porta-vozes:
Um mal invadiu o Brasil de Norte a Sul, a lepra, que em sua
hediondês nenhum mal a supera, e ei-lo que livremente penetra
nos lares felizes, transformando a alegria das afeições mais
caras em cruel suplício. A lepra, quando imprime seu estigma
nas criaturas, apaga para sempre os sorrisos dos lábios daqueles
que lhe são caros. Quem poderá sentir-se feliz ao saber que
tem um dos seus entes mais queridos atacado pelo mal horrível
que deforma e faz cair em vida os pedaços de carne flagelada?
[...] Não é possível, pois, que as mães do Brasil recusem sua
cooperação para a solução do problema que tende a preservar
o seu filho do alcance da terrível moléstia. [...] São circunstantes
do leproso; não devem freqüentar escolas em promiscuidade
com outras crianças, pois que novos focos podem surgir entre
esses que conviveram longos anos com os pais enfermos
(REPÚBLICA, 09 dez. 1936).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 121

A esses discursos, que foram uma constante durante os


anos que antecederam a construção do Educandário Santa
Catarina, aliaram-se outros que perpetraram a instauração
de um serviço de saúde eficaz no extermínio da enfermidade.
Em 1936, por uma iniciativa do governo do estado, foi criado
o Departamento de Saúde Pública, estando a ele ligado o
Serviço de Profilaxia da Lepra. Através de uma ação conjunta
entre a Sociedade de Assistência aos Lázaros e o referido
serviço, foram alçados, em Santa Catarina, os instrumentos
necessários ao combate à doença. A cargo da Sociedade ficou
a construção da instituição preventorial para o filho sadio do
doente. Sob responsabilidade do Serviço de Profilaxia da
Lepra, o recenseamento da população enferma, para o seu
posterior internamento na instituição asilar.

Fontes:
1
Ver capítulo 2 deste trabalho.
2
O Asilo Santo Ângelo, localizado em Mogi das Cruzes e
construído em 1928; o Pirapitingui, construído em Itu no ano
de 1931; o Cocais e o Aimorés, ambos localizados nas cidades
de Bauru e edificados nos anos de 1932 e 1933 (MONTEIRO,
1995).
3
Alice Tibiriçá nasceu em 1886, em Ouro Preto, Minas Gerais.
Sua vida foi dedicada a inúmeras atividades de caráter social e
político. Representante das mulheres na luta pela participação
feminina em diversas questões relativas à sociedade, encabeçou
o movimento de combate à hanseníase no estado de São Paulo,
movimento esse que posteriormente criou ramificações por todo
o Brasil. Porta-voz da ideia de progresso nacional, envolveu-se
com questões relativas à saúde do povo brasileiro. Assim, fundou
o Instituto Carlos Chagas, voltado à assistência médica e social,
e em 1944 integrou a Federação de Combate à Tuberculose
(SHUMAHER, 2001).
4
Os objetivos da Sociedade foram dispostos no seu Boletim,
publicado em abril de 1929, pela Imprensa Oficial de São Paulo.
122|Débora Michels Mattos

5
Eunice Weaver nasceu em 1904, na cidade de São Manuel,
São Paulo. Filha de fazendeiros, teve seu primeiro contato com
a problemática da hanseníase por volta dos 13 anos, quando
foi residir em Piracicaba, presenciando a constante mendicância
de enfermos. Casada com um professor que em 1929 foi
designado para lecionar numa universidade flutuante, Eunice
conheceu inúmeros lugares onde a hanseníase era endêmica,
como Havaí e Filipinas. Ao voltar para o Brasil, residindo em
Juiz de Fora, deu início a uma campanha em favor dos doentes,
que posteriormente, associar-se-ia ao movimento encabeçado
por Tibiriçá. Eugenista e partidária do isolamento compulsório
do enfermo, Eunice também defendia a construção de
instituições preventoriais à infância sadia. Assim, em 1935,
assumiu a presidência da Federação das Sociedades de
Assistência aos Lázaros, permanecendo no cargo por
aproximadamente 15 anos (GIBSON, 1965).
6
Os boletins eram acompanhados de fichas de inscrição em que
o interessado, previamente seduzido pelas propostas de
progresso, higiene e modernização do país enfatizadas em quase
todas as suas páginas, tornava-se sócio da entidade através de
doações mensais ou anuais de quantias em dinheiro não
estabelecidas. Ver Boletins da Sociedade de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra de 1929 a 1935.
7
Ver Carta nº. 18 da Presidência da Federação das Sociedades
de Assistência aos Lázaros contra a Lepra, com resumo das
atividades dos meses de novembro e dezembro de 1941.
(APESC, 1942, p. 225).
8
Sobre as colônias agrícolas e os preventórios elucidaremos o
papel representado por cada um deles nos dois últimos capítulos
desta dissertação em que a problemática das instituições asilares,
sobretudo aquelas que foram edificadas em Santa Catarina,
será abarcada.
9
A Escola de Aprendizes e Marinheiros e a oficina dos detentos
da Penitenciária Pedra Grande fizeram a doação de um
conjunto de móveis que foram a leilão. O governo do estado
deu um terreno no valor de trinta contos de réis e firmou a
disponibilidade de uma porcentagem da arrecadação do
imposto lotérico ao movimento. Por fim, artistas musicais
organizaram um festival, revertendo a renda para a campanha
(SOCIEDADE, 1938).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 123

Capítulo 4

O combate em
Santa Catarina
Acampanha contra a hanseníase, em Santa Catarina,
constituiu-se a partir de um movimento organizado por
representantes das elites catarinenses que, de acordo com os
auspícios de preservação da raça e bem-estar coletivo
fomentados pela Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra, auxiliaram na construção
das instituições asilares voltadas ao alijamento daqueles que
faziam parte do universo da doença.
No âmbito da prole sadia do enfermo, a Sociedade de
Assistência aos Lázaros de Santa Catarina se fez o principal
instrumento para a edificação do abrigo preventorial. A partir
dos discursos amplamente divulgados na imprensa e das
atividades desenvolvidas pela Sociedade, obteve-se um
significativo respaldo popular, tendo como resultado a
inauguração da obra no ano de 1941.
Mas o Educandário Santa Catarina se configurou como
parte de um mecanismo mais amplo de profilaxia que foi
implementado sob a direção dos serviços públicos de saúde.
Com base nisso, tentaremos explicitar, neste capítulo, os
124|Débora Michels Mattos

instrumentos utilizados para o combate à doença em Santa


Catarina em relação ao seu portador. Nesse sentido, alguns
aspectos serão analisados. Entre eles, a implementação do
Serviço de Profilaxia da Lepra em 1936 e os princípios que
nortearam o alijamento do enfermo, como o recenseamento
da população enferma, a “caça” ao doente e o seu
confinamento na instituição asilar.

A montagem do sistema

Segundo artigo publicado na Revista de Combate à Lepra


pelo Dr. Polydoro Ernani de São Thiago (1945), importante
personagem da medicina que participou do movimento de
combate à doença implementado no estado a partir da década
de 30, os anos anteriores a este período, no que concerne à
instituição de medidas sanitárias com vistas a resolver o
problema das enfermidades que grassavam a região, foram
assinalados pela ausência quase que completa de serviços de
higiene salutares:
Uma antiga e burocrática diretoria de higiene, sediada em
Florianópolis, e não tendo outras ramificações no interior do
Estado, resumia-se quase exclusivamente ao registro de diplomas
e títulos profissionais, a um serviço precário de vacinação anti-
varíolica, ao julgamento da capacidade de práticos de farmácia
e à distribuição irregularmente periódica de remédios para
verminose e impaludismo. Além disso, pouco realizava, porque
não podia mesmo realizar. Não consta que tivesse sido feito
um único inquérito epidemiológico, ou que fosse debelado algum
surto epidêmico (SÃO THIAGO, 1945, p. 6).
Mesmo que o Departamento Nacional de Saúde Pública
manifestasse interesse em iniciar um programa de propaganda
e educação sanitária no estado catarinense desde a década
de 20, como demonstra o ofício de número 1.094, enviado
à Secretaria do Interior e Justiça de Santa Catarina em 5 de
novembro de 19211, no limiar de 1930 ainda era possível
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 125

constatar a precariedade dos serviços sanitários na região,


sobretudo nos lugares afastados da capital onde a vida no
campo continuava alheia às questões de saúde que estavam
em voga nos centros urbanizados.
Conforme o Memorial da Diretoria de Higiene do Estado
apresentado ao governo de Santa Catarina em 21 de agosto
de 1933 pelo diretor do Serviço, Dr. Carmosino de Araújo, a
situação sanitária de parte da população catarinense era
bastante preocupante. De acordo com o relatório exibido pelo
médico, duas grandes endemias atingiam Florianópolis, bem
como parte do litoral sul e norte da região: a malária e a
verminose. Outras enfermidades, no entanto, não deixavam
de se fazer presentes, como a úlcera tropical, o tifo e a “lepra”,
esta última incidindo em quase todos os municípios dessa
área.2
Aventando para a falta de recursos e para o descaso da
União quanto à precariedade do serviço sanitário em Santa
Catarina, Carmosino de Araújo enfatizava as condições em
que grande parte da população catarinense se encontrava
nos âmbitos da salubridade, da higiene e da educação sanitária,
sobretudo nos meios mais ruralizados onde as campanhas
para salvaguardar a saúde da comunidade deveriam ser
acompanhadas de práticas que vislumbrassem a reeducação
de todos a fim de que os hábitos cotidianos, agora
questionados, fossem substituídos por aqueles que estavam
sendo defendidos pelos personagens mais “esclarecidos” da
sociedade: o cuidado com a limpeza do corpo e o seu
desenvolvimento físico, o cuidado com a limpeza da casa e
do ambiente familiar, a absorção de condutas morais, o
afastamento dos vícios, a instrução e a eugenia da raça.
Uma grande parte do povo não tem, infelizmente, as noções
que devia ter a respeito da verminose. Se a população
conhecesse, pelo menos, os meios de penetração dos vermes
no organismo; as causas que podem concorrer para a sua
disseminação e os males que eles são capazes de determinar à
economia orgânica, certamente teria mais cuidado com o destino
126|Débora Michels Mattos

dado às fezes. Muita gente, nas zonas rurais, conserva ainda o


condenável hábito de defecar à superfície do solo e, em geral,
a pouca distância das casas. Entre os colonos estrangeiros [...]
existe, ainda, o erro de adubar as hortas com fezes humanas.
Ora, esses hábitos, por falta de educação sanitária, vive o povo,
permanente e inconscientemente, a praticar verdadeiras
semeaduras de vermes pela superfície da terra. [...] Higienizar
as populações e as zonas insalubres não consiste em distribuir
medicamentos. Urge, pois, que seja iniciada uma campanha
tenaz e persistente contra as endemias que estão flagelando
um povo e degenerando a raça. É imprescindível o auxílio eficaz
da União para uma intensa campanha de saneamento que
venha salvar uma população que definha à mingua de
assistência e educação sanitária.3
Ligada ao universo da Diretoria de Higiene do Estado,
repartição técnica subordinada à Secretaria do Interior e Justiça
que tinha como objetivo procurar dar solução aos problemas
de saúde pública de Santa Catarina, encontrava-se o Serviço
de Profilaxia da Lepra, Sífilis e Doenças Venéreas. Tendo como
instrumento básico para o tratamento dessas doenças a
constituição de dispensários locais, a principal função do
Serviço de Profilaxia da Lepra, Sífilis e Doenças Venéreas era
a de promover o tratamento gratuito dos enfermos, bem como
a veiculação de boletins informativos sobre os meios de
aquisição e transmissão das referidas enfermidades com vistas
a promover o esclarecimento da sociedade.
Desde a década de 20 a incidência da hanseníase na região
catarinense despertou o interesse por parte das autoridades.
O ofício 260, de 14 de setembro de 1922, que foi enviado
por Arthur Guimarães, chefe do referido serviço no estado,
ao secretário do Interior e Justiça de Santa Catarina,
desembargador José Boiteux, evidencia esse fato. Nele é
solicitado à Chefia da Diretoria de Higiene que sejam
remetidos ao Serviço de Profilaxia da Lepra, Sífilis e Doenças
Venéreas os dados relativos ao número provável de enfermos
existentes na região, o modo de invasão da enfermidade, assim
como a data aproximada de sua entrada no estado. 4 O
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 127

objetivo para a apuração desses dados, segundo nota


apresentada no referido ofício, era trazer para o conhecimento
do governo a situação em que se encontrava o problema da
doença em Santa Catarina; se não para solucioná-lo de fato,
de acordo com o desejo daqueles que observavam na “lepra”
a presença de um mal, para dar fomento e subsídio à tomada
de medidas que tinham por meta promover um tratamento
básico àqueles que eram portadores, evitando que fossem
surgindo novos veículos de transmissão.5
Em todo o Estado o número total de enfermos, que em
1917 era estimado em 100, passou para 250 em 1925
(HOSPITAL, 2001). Segundo São Thiago (1945), ao fim de
1940, ou seja, quinze anos após essa data, quando Santa
Catarina implementou uma política efetiva de combate à
doença de acordo com as normas prescritas pelo governo
federal, o número comprovado de pessoas acometidas era
de 496, sendo que a população catarinense estava estimada
em 1.178.340 (CABRAL, 1983).
Mas o movimento contra a hanseníase em Santa Catarina
surgiu efetivamente com a extinção da Diretoria de Higiene
do Estado e a sua substituição pelo Departamento de Saúde
Pública em 1936. Se é verdade que em fins do século XIX,
principalmente na capital do estado, as discussões sobre a
hanseníase e outras enfermidades já se faziam presentes por
intermédio dos catarinenses letrados que iam para o Rio de
Janeiro estudar na Faculdade de Medicina, ou de membros
da elite local que viajavam para os grandes centros estrangeiros
onde eram produzidos os trabalhos de pesquisa científica mais
avançados, regressando com uma vasta e atualizada bagagem
de saber, é verdade também que medidas para solucionar o
problema só vieram a ser tomadas na esteira das campanhas
de saúde pública implementadas e fomentadas pelo Estado
Novo (PEREIRA, 1996).
São Thiago enfatizou a atenção dispensada às doenças
como sendo “uma concepção atual, sensata e nobilitante, de
que um enfermo tornado perigoso à coletividade devesse ser
128|Débora Michels Mattos

amparado e socorrido pelo poder público, visando sua cura,


em benefício geral, se comparada a práticas de exclusão e
extermínio que foram adotadas nas mais diferentes épocas
por diversas sociedades” (SÃO THIAGO, 1940, p. 6). De fato,
essa “concepção atual, sensata e nobilitante”, como sugere
São Thiago, foi imagem que o governo de Vargas, durante o
Estado Novo, insistiu em propagandear, sobretudo com o
propósito de que as campanhas de saúde pública pudessem
alcançar a legitimidade e o respaldo que o seu governo
almejava.
Em relação à política estadonovista instituída em Santa
Catarina, principalmente no âmbito da saúde, Nerêu Ramos
figurou como um de seus maiores representantes, sendo
reverenciado em artigos, discursos e comentários que se
reproduziam e eram veiculados em diversos meios de
informação, como jornais e revistas. Na República, de 16 de
dezembro de 1936, o artigo Ideal de Uma Época caracterizou
o interventor do estado como uma pessoa que, portadora de
um “[...] espírito cultíssimo, a serviço da sensibilidade não
raro incompreendida, e até negada [...] idealiza e sonha,
dentro da realidade catarinense, a fim de concretizar em salutar
efetivação os sonhos de bem-estar coletivo, por ele
indomitamente acarinhados.”6 Nesse sentido, e atendendo às
disposições do governo federal, Nerêu Ramos deu início no
ano de 1936 a uma série de medidas que visavam a estabelecer
a saúde pública da população catarinense.
Cabia aos interventores federais, delegados pelo presidente
Vargas para assumirem o governo dos estados durante o
período de seu mandato, a administração, nos moldes
estabelecidos pela União, de cada circunscrição que lhes era
conferida. Sendo assim, em Santa Catarina, coube ao
interventor a reformulação dos serviços de saúde para que as
diretrizes nacionais fossem atendidas. Dessa forma nasceu o
Departamento de Saúde Pública em substituição ao Serviço
de Higiene, de acordo com a Lei nº 138 de 16 de novembro
de 1936 (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1937).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 129

Pertencia ao Departamento a organização e a melhoria da


saúde pública da população catarinense: impedindo e
diminuindo as doenças, promovendo estudos sobre as
mesmas e executando medidas profiláticas, cuidando da polícia
sanitária no âmbito da alimentação, fiscalizando o exercício
da profissão da saúde e inspecionando os imigrantes e
trabalhadores em geral. Através do mesmo, deveria ser
instituído o Serviço de Demografia Sanitária: com áreas de
registro, criação de distritos sanitários em todo o estado, centros
de saúde nas respectivas sedes e de acordo com as condições
nosográficas de cada local, a criação de postos de higiene,
sub-postos e postos itinerantes (ESTADO DE SANTA
CATARINA, 1937). Possuindo uma organização administrativa
e outra técnica, fazia ainda parte do Departamento de Saúde
Pública a constituição de serviços específicos para resolver o
problema de determinadas doenças, como o Serviço de
Profilaxia da Lepra instituído por intermédio da Lei nº 143,
de 16 de novembro de 1936 (anexo 1). Através dessa lei o
interventor do estado, Nerêu Ramos, lançou as bases da
campanha antileprótica em Santa Catarina (ESTADO DE
SANTA CATARINA, 1937).
De acordo com a lei que instituía o Serviço de Profilaxia
da Lepra, ficaria a cargo do referido órgão “executar e fazer
cumprir todas as medidas tendentes a impedir e a restringir o
desenvolvimento da lepra no Estado e a realizar pesquisas
relativas a sua epidemiologia, profilaxia e terapêutica”.7 Para
tanto, a organização deveria ser distribuída em quatro pilares
básicos de sustentação: chefia; colônia para o internamento
dos enfermos contagiantes e inválidos; dispensário para
exames, triagem e tratamento dos doentes não contagiantes;
e preventório e escola agrícola para menores comunicantes.8
A realização do recenseamento da população portadora da
doença, o tratamento ambulatorial dos que apresentavam o
quadro não contagiante, o internamento dos que possuíam
a hanseníase contagiosa e a vigilância sobre os parentes que
a priori não haviam apresentado sinal da enfermidade eram
130|Débora Michels Mattos

funções do assistente técnico médico, do auxiliar técnico


médico e do médico especialista visitador, cargos designados
pela interventoria do Estado (SÃO THIAGO, 1996). Nomeadas
as pessoas para os referidos cargos, deu-se início à primeira
etapa no movimento contra a doença em Santa Catarina: o
recenseamento dos portadores da enfermidade.

O esquadrinhamento

Quando São Thiago assumiu o cargo de auxiliar técnico


médico do Departamento de Saúde Pública de Santa
Catarina, sendo destacado para o Serviço de Profilaxia da
Lepra em 14 de julho de 1937, embora junto a este tenham
sido organizados outros, como os de Malária, Tuberculose e
Endemias Rurais, o recenseamento de pessoas acometidas
na região catarinense já havia sido iniciado pelo médico
encarregado da direção e organização do referido órgão, Dr.
Adalberto Tolentino de Carvalho.
Através da localização e fichamento dos enfermos que
residiam na capital Florianópolis e localidades circunvizinhas;
por meio de investigação epidemiológica ou notícias sobre os
lugares onde a hanseníase se fazia mais frequente, geralmente
em comunidades do interior, novos casos da doença eram
descober tos. Para tanto os profissionais ligados ao
Departamento de Saúde Pública de Santa Catarina e ao
Serviço de Profilaxia da Lepra a ele vinculado contavam com
a colaboração de renomados personagens ligados à
problemática da enfermidade nos seus mais diferentes
aspectos, como o Dr. Ernani Agrícola (diretor da Divisão de
Saúde do Ministério da Educação e Saúde), o Dr. Heráclides
César Araújo (um dos mais importantes médicos leprologistas
do Brasil), e o Dr. Udo Deecke (chefe da Diretoria de Obras
Públicas do Estado de Santa Catarina) que esteve à frente na
supervisão do movimento de combate à doença durante a
sua implantação e colaborou no projeto para a edificação da
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 131

instituição asilar destinada ao recolhimento dos enfermos (SÃO


THIAGO, 1996).
Mas se por um lado a profilaxia da “lepra” era tema de
debate e preocupação não somente no Estado de Santa
Catarina, por outro a leprologia se apresentava como um
ramo de atividade sanitária que, mesmo para alguns
profissionais da medicina, suscitava algumas indagações. São
Thiago fez menção a esse fato quando foi designado para o
cargo de auxiliar técnico médico:
Decorridos os primeiros momentos da entrevista com o
interventor, que recebia pessoalmente cada um dos médicos
nomeados, vacilei, entre pensamentos confusos, diante da
surpresa que a oferta me causou. Por que teriam reservado a
lepra justamente para mim? Egresso da Faculdade como médico
geral, jamais participara de estudos específicos sobre leprologia,
embora saísse com conhecimentos panorâmicos da medicina,
como era norma na época. Os demais colegas convocados, da
capital e de algumas cidades do interior, chegaram na minha
frente e naturalmente puderam escolher o seu ramo. Talvez lhe
tivesse oferecido lepra e se negassem, pois os anos 30 marcavam
o acme da campanha antileprótica num Brasil em pânico sobre
a milenar doença, dentro da América Latina, com São Paulo
implantando leprosários para internar compulsoriamente mais
de oito mil doentes contagiantes; com Souza Araújo lançando
a obra ‘A Lepra em 70 Países’ e Jeanselme, na França,
assustando o mundo com o seu ‘La Lèpre’ (SÃO THIAGO,
1996, p. 75)
Embora os avanços científicos possibilitassem a feição de
uma concepção menos temerosa acerca da doença,
pensamentos, saberes e imagens acabavam se tornando uma
constante para os que direta ou indiretamente participavam
do universo da doença. Muito possivelmente, foi devido ao
caráter representativo a ela atribuído que as práticas utilizadas
para resolver o problema de sua incidência, ainda que em
épocas diferenciadas, apresentaram-se de forma bastante
semelhante. Se por um lado a enfermidade deixou de ser
vista como um reflexo do pecado, de acordo com as
132|Débora Michels Mattos

associações que lhe foram atribuídas em tempos menos


recentes, por outro os preceitos ideológicos da Era Moderna
acabaram impingindo sinônimos que a transformariam, como
a algumas outras doenças, a exemplo da sífilis, em sinônimo
de imoralidade, de inferioridade da raça e de degeneração
física (SONTAG, 1984; VAINFAS, 1986).
Se, de fato, eram “[...] promulgadas leis severas e discri-
minadoras de internamento compulsório e inapelável de todos
os contaminados, sem distinção de idade, sexo ou raça e, a
princípio, sem seleção de forma clínica da doença, se
contagiante ou fechada [...]”, conforme sugere São Thiago
(1996, p. 76); em épocas recentes este quadro não sofreu
grandes alterações, embora tenha sido adaptado a um novo
contexto. Como poderemos verificar, os enfermos continuaram
sendo perseguidos e internados compulsoriamente em
instituições asilares. Ainda que elas tenham se caracterizado de
maneira aparentemente aprazível e tenham sido concebidas
de acordo com os conceitos mais modernos produzidos pela
ciência médica no âmbito da profilaxia, não deixaram de se
constituir igualmente severas, se comparadas com aquelas que
outrora foram criadas para a mesma finalidade. É possível
observar, através do esquadrinhamento e da “caça”, um dos
mais significativos exemplos do caráter rígido que permeou
as medidas utilizadas para resolver o problema da enfer-
midade no Estado catarinense.
Assim, após a realização de um prévio movimento
censitário organizado em Santa Catarina por Adalberto
Tolentino de Carvalho, Polydoro de São Thiago também
foi delegado para assumir, junto ao médico, a função de
recenseador, já que havia concluído especialização na
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e estagiado
em lugares onde o aparato antileprótico se encontrava
estabelecido, como Espírito Santo, São Paulo e Minas
Gerais. Para esse recenseamento foi utilizado como modelo
aquele implantado em quase todo território nacional, que
se traduziu através dos auxílios prestados pelas esferas
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 133

pública e privada da sociedade catarinense (SÃO THIAGO,


1996).
Iniciada a campanha censitária, que se orientou desde logo
pelos modernos recursos fornecidos pelos inquéritos
epidemiológicos e valendo-se de toda a classe de informes e
auxílios da classe médica, farmacêutica, como dos poderes
públicos de cada município e localidade do interior do Estado,
foram sendo descobertos os doentes, fichados e localizados
convenientemente (SÃO THIAGO, 1945, p. 6)
Para que o plano censitário fosse plenamente estabelecido,
uma ficha epidemiológica era atribuída a cada pessoa suspeita
de ser portadora da hanseníase. Cabia ao médico recenseador
a efetuação de um minucioso exame dermatológico no
suspeito e comunicantes, bem como a coleta de material para
verificação bacterioscópica. Junto a esses procedimentos,
também ficava a cargo do médico censitário a tarefa de
fornecer ao enfermo maiores esclarecimentos sobre sua
doença. Salientava-se a importância de ser controlada a
enfermidade oficialmente através do internamento, atentando
para o fato de que por intermédio do controle e da internação
dos enfermos mais pessoas ficariam protegidas do contágio e
a cura se tornaria possível. A necessidade do isolamento
domiciliar e do não exercício de algumas profissões9 também
era enfatizada. Mas para que as sugestões e os esclarecimentos
fornecidos fossem atendidos, o médico distribuía remédios e
reforçava a atuação do governo do Estado e da União no
provimento do amparo e manutenção dos familiares e
dependentes. O objetivo era “despertar neles confiança nas
medidas oficiais e mantê-los em ligação constante com o
serviço, evitando dispersão e anulando o trabalho” (SÃO
THIAGO, 1944, p. 7) De fato, para o Serviço de Profilaxia da
Lepra era imprescindível manter um controle efetivo sobre
os enfermos, já que o estabelecimento institucional idealizado
para o confinamento dos mesmos ainda estava em construção.
Cabe aqui salientar que, diferente do que ocorreu em São
Paulo quando da implantação do movimento de combate à
134|Débora Michels Mattos

hanseníase, em Santa Catarina procurou-se afastar a imprensa


e outros meios de comunicação do plano censitário levado a
cabo pelo serviço profilático. Se para muitos a divulgação do
recenseamento se apresentava como um meio eficaz na
mobilização da sociedade em prol da campanha contra a
enfermidade, para outros se constituía um alarme à população
enferma que, sentindo-se perseguida, evitaria o contato com
o médico recenseador. Tomando São Paulo como exemplo,
quando os meios de comunicação acabaram contribuindo
para que a denúncia de enfermos fosse efetuada por qualquer
pessoa, fato que resultou no aumento do medo e do estigma
em relação à doença e ao doente (MONTEIRO, 1995), o
Serviço de Profilaxia da Lepra em Santa Catarina optou por
outras estratégias de persuasão. Assim descreveu São Thiago
acerca dos meios que foram utilizados para a penetração do
médico censitário no território do enfermo:
Outra deliberação foi a de evitar a propaganda aberta, do
Serviço e de sua pessoa, quando o médico penetrava, sobretudo,
em pequenos lugarejos do interior. Aí chegando, sem ruído,
sem divulgação espalhafatosa, procurava um quarto de hotel
ou pensão e nada fazia suspeitar de sua missão, nos primeiros
momentos. Trajando sem exagero [...] procurava primeiro
sondar o ambiente. No dia seguinte visitava o prefeito, ou o
delegado, ou o inspetor de quarteirão, os colegas farmacêuticos
e pessoas ligadas à área da saúde. Nas rodas de conversas
informais de hotel, de bares, das ruas e em todas as reuniões
com pessoas do ambiente social, após já ter granjeado a confiança
e o respeito de todos, entrava o médico no assunto e então os
menores informes eram religiosamente guardados e anotados.
De repente desaparecia do hotel às primeiras horas do dia e só
regressava à noite, quando não daí a dois, três ou mais dias.
Após o fichamento de todos os doentes, a propaganda sanitária
era feita em palestras e muitas vezes pelos jornais locais. Em
cada localidade os médicos do censo deixavam amigos e atuais
colaboradores da campanha (SÃO THIAGO, 1996, p. 89)
Auxiliando na busca de mais casos da enfermidade, muitas
pessoas fichadas acabaram se tornando aliadas do movimento.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 135

Para que isso pudesse ser obtido era preciso que o doente
tivesse confiança no médico censitário. Através de conversas,
esclarecimentos, afirmações por vezes isentas de veracidade,
aumentava-se a lista de pessoas dispostas a contribuir na
procura de enfermos. Mesmo que alguns casos suspeitos
fossem confundidos com outras afecções de pele, como a
psoríase e a leishmaniose, todos passavam pela análise do
profissional encarregado (SÃO THIAGO, 1996).
Munido de um automóvel, fichas impressas para a
notificação dos enfermos e material instrumental para exame
clínico dermatológico, o médico recenseador contava com a
presença de um motorista apto a desempenhar função de
enfermeiro no caso de alguma eventualidade. O acesso a
alguns lugares nem sempre era fácil, o que dificultava a
agilidade do recenseamento. Outro fator que se constituía
num obstáculo aos profissionais designados à realização do
censo eram os boatos que chegavam ao conhecimento dos
enfermos e seus parentes acerca das medidas que o governo
do Estado estava tomando em relação aos portadores da
doença. O medo do contágio e a veiculação de que a polícia
estava à procura de enfermos para que fossem internados,
presos ou exterminados faziam com que pessoas próximas
ao doente a escondessem em lugares de difícil acesso (SÃO
THIAGO, 1996). Como menciona o paciente G, asilado em
dezembro de 1940 com quinze anos de idade, a crença de
que o Serviço de Profilaxia da Lepra intencionava a eliminação
das pessoas que eram portadoras da doença de fato existia:
Até antes de eles irem lá buscar nós, tinha umas crianças que
brincavam lá com nós, não é?! Comigo, com os meus irmãos.
E eles diziam:
– Vocês sabem para aonde vocês vão? – e eles para mim. [...]
E eu pelo menos não estava sabendo de nada.
– Não.
– Vão levar vocês para um lugar que vão matar vocês! Vocês
vão morrer!
136|Débora Michels Mattos

– Que morrer! Isso é bobagem. Não acredito em bobagem!


Morrer? Por que nós vamos morrer? – eu perguntava.
– Não sei! – eles também não sabiam. (Depoimento de G. 22
jan. 2000)
Tendo em vista que após o término da construção da
colônia agrícola muitos nela seriam internados de maneira
compulsória e impedidos de sair, esses boatos não eram de
todo uma inverdade, se referidos à vida dessas pessoas tal
como elas as viviam até então. De acordo com o censo
publicado na Revista de Combate à Lepra , conforme
demonstra a seguir a tabela de número 1, se o ano de 1937
assinalou o início do programa de recenseamento dos
enfermos em Santa Catarina, sendo encontrados casos da
enfermidade nas cidades de Florianópolis, São José, Palhoça,
Laguna, Tubarão, Orleans, Criciúma, Biguaçu, Tijucas, Itajaí
e Rio do Sul, somando um total de 69 doentes, 3 suspeitos e
210 comunicantes, os anos posteriores foram decisivos para
a efetivação do plano de verificação dos enfermos na região
(SÃO THIAGO, 1945, p. 9).
Em 1938 o Serviço de Profilaxia da Lepra realizou o censo
em 178 cidades, com 250 doentes fichados, 15 suspeitos e
702 comunicantes. No ano de 1939 percorreu 64 localidades,
sendo fichados 70 enfermos, 4 suspeitos e 214 comunicantes.
Em 1940 foram fichados 107 doentes, 36 suspeitos e 331
comunicantes. A partir desse ano o recenseamento foi
realizado através do Dispensário Central e de outros
localizados em algumas cidades do Estado, sendo no ano de
1941 fichados 23 doentes, 20 suspeitos e 173 comunicantes.
Ficou sob responsabilidade dos dispensários a realização de
exames periódicos nos comunicantes das localidades que lhes
eram competentes. O tratamento ambulatorial dos doentes
também esteve a cargo dos dispensários, que atendiam a
população dando continuidade ao inquérito epidemiológico.
Por intermédio do Dispensário Central, os doentes fichados
no Serviço de Profilaxia da Lepra seriam encaminhados para
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 137

a instituição asilar para eles construída a partir de 1940 (SÃO


THIAGO, 1945)

Tabela 1
Recenseamento de Hansenianos em Santa Catarina
Número de Casos (1937-1941)
Anos Enfermos Suspeitos Comunicantes Localidades
1937 69 03 210 11
1938 250 15 702 178
1939 70 04 214 64
1940 107 36 331 Dispensários
1941 23 20 173 Dispensários
Total 519 78 1.630 253
Fonte: São Thiago (1945).

De acordo com o quadro estatístico do recenseamento


em Santa Catarina, realizado entre os anos de 1937 e
1941, as cidades que apresentaram um maior número de
enfermos foram Laguna, com 67; Tubarão, com 26; Lages,
com 25; e Itajaí, com 23. Nas 253 localidades percorridas
foram encontrados enfermos com diferentes formas clínicas
da doença, sendo constatado maior número para os
quadros com alta quantidade de bacilos (virchowianos e
dimorfos), conforme demonstra o gráfico 1, elaborado
com base nos dados encontrados na Revista de Combate
à Lepra de 1945.
Ainda no âmbito do censo realizado entre os anos de 1937
e 41, observou-se uma maior incidência da hanseníase sobre
o sexo masculino, com 296 casos, apresentando, o sexo
feminino, um total de 223, como expressa o gráfico 2 em
relação aos percentuais de acometimentos por sexo.
No que concerne à cor, foi observada a ocorrência de
466 casos para brancos, 39 para mestiços e 14 para negros,
do total de 519 enfermos recenseados, como demonstra o
138|Débora Michels Mattos

gráfico de número 3 relativo aos percentuais de


acometimentos por cor.

Gráfico 1

Fonte: São Thiago (1945).

Gráfico 2

Fonte: São Thiago (1945).


Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 139

Gráfico 3

Fonte: São Thiago (1945).

Em relação à cor, no início da década de 40 a população


catarinense era predominantemente branca. Havia no Estado
1.112.809 brancos de um total de um 1.178.340 habitantes,
o que representava 94,4%, conforme dados apresentados
no censo demográfico de Santa Catarina. Desse total, 61.382
eram negros (5,2%); 3.956 pardos (0,3%), sendo os 193
restantes amarelos ou sem definição de cor (0,1%) (IBGE,
1952). Embora o gráfico 3 demonstre ter havido um maior
número de hansenianos de cor branca em relação aos negros
e pardos, a proporção destes, se comparada à população
sadia, apresentou um índice de 0,040% inferior em relação
aos 0,081% para negros e pardos, conforme demonstra a
tabela 2:
140|Débora Michels Mattos

Tabela 2
Estado de Santa Catarina
Proporção de Hansenianos no Âmbito da Cor em Relação à
População Sadia (1941)
Cor População de SC Hansenianos Percentual10
em 1940 em 1941
Brancos 1.112.809 466 0,041
Negros e 65.338 53 0,081
Pardos
Fonte: São Thiago (1945).

No âmbito do sexo o índice de incidência da doença se


apresentou em consonância com a população catarinense e
com a tendência de a hanseníase ser mais frequente em homens.
De acordo com o censo demográfico de 1940, 50,57 % eram
do sexo masculino e 49,43% do feminino (IBGE, 1952). Se
analisarmos o gráfico 2 que apresentamos acerca do
recenseamento realizado pelo Serviço de Profilaxia da Lepra
do Estado no que concerne à incidência por sexo, podemos
verificar que a hanseníase tendeu a incidir, de fato, sobre o
masculino.
A partir do censo de hanseníase que foi realizado em Santa
Catarina entre os anos de 1937 e 1941, podemos visualizar
de forma mais clara a situação da doença no Estado. Vimos
que em 1940 a população catarinense era de 1.178.340
habitantes. Estima-se que em 1941 a população do Estado
já houvesse passado de 1.200.000. Considerando os 519
enfermos confirmados até essa data, pode-se dizer que o índice
de acometimentos era de 0,43 para cada mil habitantes.
Embora esse índice, na época, pudesse ser considerado
pequeno em relação à situação de outros Estados brasileiros,
conforme sugeriu São Thiago (1945, p. 11) ao referenciar
que Santa Catarina “[...] não constituía importante foco de
lepra, no conjunto das demais unidades federativas do país
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 141

[...]” nos dias atuais ele causaria preocupação. De acordo com


a Organização Mundial da Saúde, os lugares que apresentam
de um a cinco casos de hanseníase para cada dez mil habitantes
são caracterizados como locais de média endemicidade. Em
1941 o número de casos de hanseníase no Estado de Santa
Catarina para cada dez mil habitantes era de 4,3, o que para
hoje significaria um grave problema de saúde pública (IBGE,
1952).11

A “caça” e o internamento

Se por um lado o esquadrinhamento de pessoas


acometidas pela hanseníase procurou demonstrar ao enfermo
que o Serviço de Profilaxia da Lepra se constituía em um
benefício aos portadores da doença, com a figura do médico
representando um amigo que a serviço do Estado deveria
auxiliar no intento de ser promovido o bem-estar da
população, por outro a “caça” se constituiu em prática contra-
ditória em relação às falas utilizadas pelo profissional da saúde
que, quando do primeiro contato estabelecido com o doente,
procurou adquirir a sua confiança. Conforme depoimento
concedido por um interno do Hospital Colônia Santa Teresa,
promessas nem sempre cumpridas eram feitas ao paciente
para que o internamento fosse aceito sem grande resistência:
Eu fui registrado como doente em 1938. Foi o Doutor. [...] Ele
disse que não era, mas parecia.

– Não é, mas parece! Dentro de três meses tu vais ficar bom!

Ele queria dizer com isto que dentro de três meses eu me


acostumava dentro do Hospital. Mas eu não me acostumei
nunca. Estou aqui por circunstâncias. Eu me internei em 1940.
Um adolescente de dezesseis anos (Depoimento de MC. 10
jan. 2000)
Em suas memórias, São Thiago deixou evidente o
142|Débora Michels Mattos

propósito irreversível e inalterável do confinamento


compulsório, embora esse propósito não tenha de todo se
constituído assim, haja vista que em alguns casos o enfermo
acabou restabelecendo a sua liberdade.12 Salientando os meios
que foram utilizados para a retirada do doente do local onde
se encontrava com vistas a ser efetuado o segundo passo no
plano de combate à enfermidade, ou seja, o internamento
de pessoas acometidas pela doença, São Thiago descreveu:
Localizadas, eram introduzidas em veículos tipo ambulância,
com lotação para dez pessoas sentadas em bancos corridos
laterais, fabricados especialmente, verdadeira caixa de aço
totalmente vedada, apenas com aberturas tipo venezianas nos
flancos e na tolda. Assim, essas criaturas humildes, habituadas
a uma vida familiar muito sentimental, aconchegante e amorosa,
encetavam a longa viagem, não raro, sem retorno (SÃO
THIAGO, 1996, p. 103)
A “caça” ao doente se estabeleceu a partir dos dados
colhidos no recenseamento que o serviço de profilático realizou
em Santa Catarina entre os anos de 1937 e 1941. Ao efetuar
o fichamento dos casos confirmados e daqueles configurados
como seus comunicantes, o serviço censitário possibilitou que
os espaços ocupados pela hanseníase fossem minuciosamente
esquadrinhados. Como resultado, quando a “caça” ao
portador da doença se estabeleceu, o Serviço de Profilaxia
da Lepra já sabia onde o encontrar. Mas esse fato nem sempre
acontecia de acordo com o previsto, pois as notícias se
espalhavam e os próprios enfermos ficavam a par das medidas
de internamento. Como forma de resistência, embrenhavam-
se em lugares de difícil acesso na tentativa de não serem
encontrados. Mas o pânico coletivo provocado pela
enfermidade, o medo do enfermo, por ser fonte de contágio,
fazia com que informes e denúncias pululassem na sede do
serviço profilático e nos dispensários de várias regiões do
Estado. Sentindo-se ameaçados com a presença do enfermo,
pessoas de diferentes lugares acabavam contribuindo para a
sua apreensão.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 143

Assim, através de informes, avisos, denúncias, telefonemas,


etc., partidos daquelas autoridades e pessoas do interior,
chegávamos a esconderijos os mais esconsos, nos quintais das
casas e ranchos dos sítios, dos campos, das praias, onde se
acoitavam e eram alimentados à distância. Tínhamos de
procurá-los nas estradas poeirentas, nos miseráveis
arranchamentos à margem dos riachos, nos rústicos casebres
de que todos fugiam (SÃO THIAGO, 1996, p. 106).
Se por um lado o Serviço de Profilaxia da Lepra, quando
do estabelecimento do recenseamento daqueles que eram
portadores da enfermidade e posteriormente do confi-
namento compulsório em Santa Catarina, procurou evitar o
envolvimento da polícia (SÃO THIAGO, 1945), por outro,
os mecanismos utilizados para o internamento no Hospital
Colônia Santa Teresa assumiu as vistas de uma investida policial
no cumprimento da lei. Geralmente acompanhavam o
médico censitário mais dois motoristas para o exercício de
variadas funções. Entre as já citadas, as de mecânico, assistente
de enfermagem, investigador e segurança. Por vezes uma
única pessoa era extraída de seu local de origem para que
fosse internada no hospital. Mas na maioria dos casos famílias
quase que inteiras eram vitimadas pela doença, indo todos
juntos para a instituição asilar. Chegando de repente, os
profissionais da saúde se apresentavam munidos da
documentação oficial que lhes dava legitimidade para o
exercício do confinamento, ficando os doentes entregues aos
ditames da lei. Com respaldo do governo do Estado para a
solicitação de auxílio junto às prefeituras, autoridades locais,
delegacias, entre outras esferas de poder, fazia-se a
sequestração do enfermo para a sua posterior reclusão.
Eles foram lá, fazer exame e tudo em nós. Até nós estávamos
no mato. Era um domingo, comendo fruta, porque lá no lugar
tinha muita fruta. [...] Aí eles conversaram com nós, vieram
embora e depois de alguns dias eles foram buscar. [...] Foi
ligeiro, ligeiro. Foi ligeiro que eles foram buscar nós lá. Pai
trabalhava, mãe trabalhava, irmã, irmão. Aí viemos para cá.
144|Débora Michels Mattos

Veio eu, a minha mãe, o meu pai, um irmão e a irmã minha


também. [...] Eu não queria vir para cá, mas a gente estava a
par do assunto. A gente tinha que se tratar, não é?! Daí era
obrigado. Era obrigado porque era ordem, era lei (Depoimento
de S. 12 jan. 2002)
De fato, como sugere Monteiro (1995, p. 219), o momento
da retirada do enfermo para a sua internação na instituição
asilar era “algo ostensivo e típico de procedimento policial”.
Para o Serviço de Profilaxia só interessava o cumprimento da
lei. Ainda que o sequestro e o confinamento representassem
para os enfermos a perda de tudo o que haviam construído
nos anos de liberdade, constituíam-se práticas justificáveis por
seus objetivos estarem relacionados à promoção do bem-estar
de toda uma sociedade. Com vistas ao sucesso do movimento
de combate implementado não só em Santa Catarina, mas
em inúmeros outros Estados brasileiros, as formas utilizadas
para com o enfermo foram, nesse sentido, bastante violentas.
Naquela época era o Doutor Gilberto. Fez exame, tudo, tudo
fez exame. Aí foram embora e depois de muito tempo ainda
voltou já com a ambulância para pegar nós. Foram lá colher
material, tudo, não é?! [...] A ambulância era fechada tipo de
uma melancia; tipo de uma melancia só com uma
venezianazinha assim do lado, só. Tudo fechado. Para não sair,
decerto [...]. Aquela coisa da doença! A doença era um bicho!
[...] Tinham avisado:

– Nós vamos buscar vocês tal dia! [...]


– Sim, mas nós vamos levar nossas coisas!
– Não, não! Como vocês estão vocês embarcam no carro!
– Não! Mas tem que levar roupa!
– Não leve nada daí!

Aí meu pai ainda pegou o documento da casa e guardou, não


é?! Guardou no bolso. Foi só o que ele aproveitou. O resto foi
botado fogo na casa. Queimaram, não é?! [...] Foi só virar as
costas, derramaram gasolina lá, ou querosene, não sei o que
foi e botaram fogo (Depoimento de G. 22 jan. 2000).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 145

A destruição, por meio da queima, dos bens materiais que


o enfermo possuía, foi prática constante no universo do
mundo ocidental desde os tempos mais remotos. Acreditava-
se, assim como no século XX não se deixou de acreditar, que
tudo que fosse utilizado ou tocado por um doente era passível
de transmissão, devendo portanto deixar de existir. Esse
mecanismo profilático utilizado para que a doença não fosse
disseminada entre os considerados sadios possibilitou que os
estigmas inerentes à “lepra” acabassem recaindo, inclusive,
sobre aqueles que não portavam a enfermidade, mas que de
certa forma participavam de seu mundo. Sendo assim,
parentes em primeiro grau, como cônjuge e filhos, também
foram alvo da campanha de combate. Imersos no espetáculo
que era a aniquilação daquilo que pertencia ao doente, seus
entes mais próximos, embora saudáveis, tornavam-se
igualmente objeto de exclusão.
Uma possibilidade de interpretação para a destruição dos
bens pode ter sido a de que isso fizesse parte da lógica do
serviço profilático no que concerne ao exercício do controle
e da vigilância. Levar a público os casos que se confirmavam,
expondo aqueles que participavam do mesmo locus vivencial
se configuraria como tática para que a sociedade não deixasse
de observar futuras fontes de ameaça. Espoliados os seus bens,
muitas vezes com a ajuda de parentes em segundo grau e
vizinhos, essas pessoas ficavam à margem da sociedade e na
maioria dos casos acabavam sendo mantidas por intermédio
da caridade. Quando da preservação de documentos,
restava-lhes um pedaço de terra que acabava servindo como
fonte de renda. Do contrário, muitos ficavam entregues à sorte
da vida que o futuro lhes reservava.
Outra possibilidade, que não exclui a precedente, é de
que a destruição do patrimônio pessoal do enfermo fosse
aplicada com o intuito de minar a capacidade de resistência
perante a sua nova condição de vida. A perda de seus bens e
a impossibilidade de voltar a tê-los faziam com que fosse
destituído de qualquer referencial anterior no âmbito de sua
146|Débora Michels Mattos

manutenção, tornando-se, nesse sentido, incapaz de retornar


ao local de origem para recomeçar a vida. Aventando para
esse fato, uma viúva de um enfermo confinado no Santa Teresa
em 1943 se pronunciou:
Ele deixou os documentos dele em casa da irmã e aí eles,
naquele tempo eles tinham muito medo dessa doença, e
queimaram os documentos dele. A gente fez de tudo para ele
poder se aposentar e ele não..., a gente não conseguiu.

Ele estava curado da doença. Ele não saiu do leprosário


porque ele ficou cego e ele quis... A gente trabalhou para
ele se aposentar, mas como a irmã queimou os documentos
dele ele não conseguiu a aposentadoria e por isso ele não
saiu e acabou morrendo no leprosário. [...] Assim que
aconteceu com ele, eu fui morar com os meus pais. Aí
quando as minhas filhas casaram, eu fiquei um tempo com
a mais velha. Depois, aí quando a mais moça casou, eu
vim morar com ela e estou morando até hoje com ela
(Depoimento de MM. 14 jul. 1999)
Como resultado, os enfermos perdiam a sua identidade
passando a ser um número a mais na contagem permanente
do Serviço de Profilaxia da Lepra, que ia aumentando suas
malhas à medida que mais casos eram descobertos. As
principais vítimas da doença, de acordo com os dados colhidos
por São Thiago após a realização do censo em Santa Catarina,
eram pessoas de baixa renda com ínfimo grau de instrução e
vivendo uma realidade distante daquela encontrada nas
grandes cidades:
Nos grandes focos da doença, [...] os afetados eram, na
grande maioria, caboclos autóctones ou descendentes de
imigrantes de baixíssimo padrão econômico ou totalmente
miseráveis, analfabetos, de vida primitiva ou saída do estado
silvícola; lavradores ou pescadores artesanais, vivendo não
raro exclusivamente da caça e pesca primitivas ou, no
campo, de pequenas e profícuas criações (SÃO THIAGO,
1996, p. 108).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 147

Como demonstra o livro de registros dos enfermos


internados na instituição, a maioria dos casos da doença que
foram asilados compulsoriamente entre os anos de 1940 e
1950 incidiram sobre pessoas com profissões que exigiam
um baixo grau de escolarização, ou muitas vezes nenhum, e
que resultavam em pequena rentabilidade, na maioria dos
casos o suficiente para garantir sustento da família. Quando
se deu o recenseamento isso já era observado, reforçando a
crença de que o modelo ideal no combate à hanseníase em
Santa Catarina era de fato a colônia agrícola.
Que em Santa Catarina, o tipo ideal de leprosário deveria ser mesmo
a colônia agrícola, visto como uma porcentagem considerável de
doentes é constituída por lavradores, não sendo possível contar,
para o desenvolvimento econômico próprio do estabelecimento,
com outra espécie de indústria que não a derivada da agricultura
e da criação (SÃO THIAGO, 1945, p. 12).
Se analisarmos os dados encontrados no livro de registros
de internamentos do Hospital Colônia Santa Teresa, as
profissões mais frequentes dos 826 internos entre os anos de
1940 e 1950 foram as de lavrador, com 291, e doméstica ou
do lar, com 280, conforme demonstra a tabela 3, elaborada
com base na lista de profissões expressa no referido
documento:

Tabela 3
Hospital Colônia Santa Teresa
Distribuição dos Internos de Acordo com a Profissão (1940-1950)
Profissão Int. Profissão Int. Profissão Int.
Alfaiate 04 Esmoler 02 Militar 01
Almoxarife 01 Estudante 42 Militar 02
Reformado
Ambulante 02 Farmacêutico 01 Mineiro 03
Aposentado 01 Fazendeiro 01 Motorista 01
Aprendiz 01 Feitor 01 Músico M 01
Marinheiro
148|Débora Michels Mattos

Barbeiro 03 Ferreiro 03 Negociante 02


Botiqueiro 01 Fiscal Estrada 01 Oleiro 03
Carpinteiro 06 Funcionário 01 Operário 17
Público
Caixeiro 03 Guarda-Livro 01 Padeiro 01
Carroceiro 03 Guarda-Noturno 01 Pedreiro 03
Chapeador 01 Guindasteiro 01 Pescador 16
Comerciante 08 Inativo 69 Professor 02
Construtor 04 Industrial 02 Radiotelegrafista 01
Copeiro 01 Jornaleiro 02 Rendeira 01
Costureira 02 Lavadeira 07 Sapateiro 01
Criador 01 Lavrador 291 Seleiro 02
Dentista 01 Marceneiro 05 Sem Profissão 01
Doméstica/Do Lar 280 Marítimo 02 Servente 01
Eletricista 01 Marmorista 01 Tecedeiro 01
Encanador 01 Mecânico 01 Trabalhador 01
Estrada
Enfermeiro 03 Médico 01 Vendeiro 01
Total de Internos 826
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos
do Hospital Colônia Santa Teresa.

Esse fato contribuía para que o poder público impusesse


suas verdades em relação às medidas por ele adotadas no
âmbito da profilaxia e terapêutica da doença. A falta de um
conhecimento mais aprofundado sobre a enfermidade e
sobre as especificidades das leis que eram criadas para resolver
o problema da hanseníase e a ausência de um nível de
instrução mais elevado que desse aos enfermos a possibilidade
para o desenvolvimento de maiores mecanismos de
resistência, acabaram permitindo que medidas de exceção
fossem tomadas em relação àqueles que participavam do
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 149

universo da doença. Ao relatar o internamento da família no


Hospital Colônia Santa Teresa, o paciente G depôs sobre um
fato ocorrido com um de seus parentes:
Quando nós viemos para cá, veio uma cunhada minha que
era doente. E não era doente. Mas logo em seguida ela foi
embora. Aí o médico mandou ela embora. [...] Não tinha nada,
mas disseram que ela era doente. [...] Aí veio e ela chorava
muito porque o marido ficou fora. Ela chorava muito. Mas aí
fizeram exame e viram que ela não era doente. Aí ela foi embora.
Até hoje não apareceu mais aqui (Depoimento de G. 22 jan.
2000).
Podemos observar, nesse sentido, que na grande
campanha de combate à “lepra” implementada no Brasil, o
poder tomado para si, pelo serviço de profilático,
fundamentado no objetivo de acabar com um mal que vinha
atingindo e ameaçando pessoas em todo o território brasileiro,
justificava qualquer atitude de violência que fosse tomada sobre
o indivíduo. Esse fato abriu brechas para que alguns preceitos
estabelecidos em lei acabassem sendo sobrepujados em nome
do movimento contra a enfermidade, sobretudo em relação
ao confinamento dos casos não contagiosos da doença. Em
Santa Catarina, a Lei nº 143, artigo 3, estipulava o
internamento na colônia agrícola para os casos contagiantes
e inválidos e tratamento nos dispensários para os enfermos
que apresentassem quadros não contagiantes (ESTADO DE
SANTA CATARINA, 1937). Mas isso não aconteceu. De
acordo com São Thiago, no exercício de médico itinerante
na captura de enfermos para o confinamento no Hospital
Santa Teresa, “[...] foram internados doentes das mais variadas
formas clínicas, mesmo as abacilíferas, por natureza” (SÃO
THIAGO, 1996, p. 109). Como justificativas, a possibilidade
de que os casos não contagiosos pudessem evoluir para
aqueles de fácil contágio e a apreensão de que os enfermos
considerassem injusta a segregação de apenas uns,
questionando as ações do próprio sistema. Na tentativa de
“[...] obter prestígio favorável da campanha recém-iniciada”
150|Débora Michels Mattos

(SÃO THIAGO, 1996, p. 109). Pois é claro que ela não se


sustentaria sem que números significativos fossem
apresentados, era válido, inclusive, fazer vistas grossas à lei.
Para tanto, mesmo aqueles casos em que o confinamento
compulsório não era prescrito acabaram sendo internados
compulsoriamente na instituição asilar.
Após terem sido localizados, examinados, fichados e
posteriormente capturados pelo Serviço de Profilaxia da
Lepra, os doentes de Santa Catarina foram internados.
Despojados de seus pertences que na maioria dos casos haviam
sido queimados por ordem oficial, passavam horas em viagem
dentro da ambulância com lotação para dez pessoas sentadas
em bancos dispostos lateralmente, em precárias condições,
até chegarem ao seu destino.
Era um carro de preso. Caminhonete toda fechada, a cabine
toda fechada. Carro feio, carro feio. Um carro para preso
mesmo. Para doente. Para coisa... E nós viemos no verão. Um
calor, um calor! [...] Dia todo! Saímos de lá de manhã, às dez
horas mais ou menos. Chegamos aqui quase meia-noite
(Depoimento de G. 22 jan. 2000).
Ao entrar na instituição o enfermo era recebido pelo
pessoal encarregado da administração que os encaminhava
aos estabelecimentos devidos. Instalados em grandes pavilhões
lineares subdivididos por compartimentos com capacidade
para poucas pessoas, eram dispostos de acordo com o quadro
clínico em que se encontravam. Nesse sentido havia cômodos
destinados a pessoas que apresentavam formas não
contagiosas da doença, para aquelas que eram portadores
de afecções provocadas por outras enfermidades e para as
que necessitavam de um tratamento ambulatorial
especializado, geralmente devido a incipientes reações de
caráter destrutivo. Aos portadores do quadro infectocon-
tagioso, sobretudo os que se encontravam num estado de
deterioração física avançado, um pavilhão menor,
denominado “ferro-velho”, era reservado.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 151

Sob os cuidados pessoais das irmãs franciscanas da


Congregação Franciscana de São José, que a princípio se
encarregaram de prover o alimento, o vestuário, o material
higiênico necessário para que o doente pudesse dar início à
sua nova vida, realizando também serviços de enfermagem,
mas sobretudo, sob a vigilância do médico residente, que além
de prescrever o tratamento clínico, incumbiu-se de administrar
a organização do Hospital Santa Teresa, os doentes passariam
a viver enclausurados durante longos anos.
Em relação às irmãs franciscanas de São José, suas
atividades no trato com os enfermos já eram observadas desde
1925, quando o primeiro grupo de religiosas ligadas à
Misericórdia da Terceira Ordem de São Francisco de Assis, na
Alemanha, veio para o Brasil a fim de trabalhar no hospital
colônia do Paraná. Experientes na área da enfermagem, tendo
atuado em hospitais do exterior e de Santa Catarina, foram
solicitadas pelo governo do Estado a fixarem residência no
Santa Teresa, onde deveriam desempenhar inúmeras funções,
entre elas a de enfermagem (BOING, 1997).
Muito embora o asilo oferecesse atendimento médico
especializado, alguns enfermos eram treinados para a prática
de determinadas funções ligadas ao estado de doença, como
a feição de curativos, aplicação de injeções e entrega de
remédios. Contudo os medicamentos ministrados não
diminuíam o quadro nosológico do paciente. No que concerne
ao problema da hanseníase o tratamento prescrito se restringiu
à aplicação do óleo de chalmoogra e ao uso outras ervas
medicinais.
Era de erveiro. Homem que conhecia remédio de plantas. Era
chamado tratamento de ervas cozidas. Cozinhava tudo, tudo
(Depoimento de SW. 10 jan. 2000)
O que eles falaram é que nós tínhamos que se tratar.
– Vocês vieram para cá para se tratar. Para se curar!
E nós ficamos naquela, não é?! Tomava remédio aí e não
adiantava o remédio não. O remédio não dava certo. Até que
um dia apareceu a sulfa. Aí então a sulfa, dentro de um ano já
152|Débora Michels Mattos

deu [...]. Dentro de um ano já começou a dar negativo, negativo,


negativo. Então se fizesse onze exames daquele negativo, podia
ir embora (Depoimento de GB. 22 jan. 2000)
De acordo com São Thiago, o chalmoogra era considerado
medicação eficaz no combate à hanseníase e podia levar o
paciente a uma significativa melhora do quadro clínico,
possibilitando a sua saída do local de isolamento.
Tinha-se confiança na terapêutica então empregada e
aconselhada pelo mundo científico, controlando-se os doentes
como possíveis candidatos a alta hospitalar. Foi uma esperança
falida e os anos decorridos demonstraram que nada contribuiu
para alguma regressão [...] (SÃO THIAGO, 1992, p. 8).
Mas um fato, contudo, nos causa indagação. O ano de
1943 assinalou a descoberta de um outro tratamento que se
constituiu fundamental para a cura dos enfermos: as sulfonas.
A partir de sua aplicação, pacientes que apresentavam as várias
formas da enfermidade foram paulatinamente diminuindo o
quadro clínico em que se encontravam. Isso fez com que
muitos internos se libertassem da doença, e quando não, ao
menos deixavam de transmiti-la (BECHELLI, 1982). Mas em
Santa Catarina, o uso sistemático das sulfonas demorou.
Embora haja indícios de que elas tenham sido utilizadas em
fins da década de 40, de acordo com depoimentos que nos
foram concedidos, os quais veremos no capítulo a seguir, sua
correta aplicação parece ter se dado durante a década de 60,
conforme sugere o do documento Históricos da Instituição,
produzido pelo Hospital Santa Teresa (HOSPITAL, 2001).
De 1940 a 1950, 826 pessoas deram entrada no Hospital
Colônia Santa Teresa. De acordo com o livro de registros da
instituição, só no ano de 1940 foram 289 enfermos interna-
dos. Em nenhum outro ano foi verificada a internação de
um número tão grande de pessoas no local. Mas esse fato
esteve relacionado, sobretudo, ao ano de 1940 ter assinalado
a inauguração do aparato asilar, reunindo os doentes que
foram recenseados desde que o Serviço de Profilaxia da Lepra
foi implantado. Posterior a 1940, os anos de 1941, 1942 e
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 153

1943 seguiram apresentando um maior número de


internamentos. Em 41 deram entrada no Santa Teresa 73
pessoas; em 42 foram internadas 72, e em 43, verificou-se a
internação de 93 doentes. De 1944 a 1950 um total de 378
pessoas foram confinadas compulsoriamente, quase o número
de internamentos verificados nos dois primeiros anos de seu
funcionamento, ou seja, 362, conforme pode ser verificado
gráfico 4, a partir dos dados encontrados no livro de registros
de internamentos da instituição:

Gráfico 4

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Hospital Colônia Santa Teresa.

De fato, como menciona o interno GB, por volta de 1940


todos os dias chegavam pessoas de diversas localidades
catarinenses no Santa Teresa:
Quando eu cheguei aqui era todo dia. Era quase todo dia a
ambulância, essa ambulância que a gente fala que trazia os
pacientes para cá. Duas vezes por dia, uma vez, duas vezes por
dia trazendo paciente. Barbaridade! (Depoimento de GB. 22 jan.
2002)
154|Débora Michels Mattos

Mas se até ano de 1941 o Serviço de Profilaxia da Lepra


havia registrado um maior número de casos provenientes das
cidades de Laguna, Tubarão, Lages e Itajaí, respectivamente,
em 1942, a partir da análise do livro de registros de
internamentos do Santa Teresa, observamos que esses dados
já haviam se alterado, com Laguna e Tubarão continuando a
assumir o primeiro e o segundo lugar, Florianópolis o terceiro
na escala de incidência e Itajaí o quarto (ESTADO DE SANTA
CATARINA, 1943a). O aumento do número de casos na
cidade de Florianópolis, no entanto, pode estar relacionado
muito mais com a vinda de enfermos de outras cidades para
um possível tratamento na capital do que a existência de um
foco na região (SÃO THIAGO, 1945). Ao fim de 1950,
conforme demonstra a tabela 4, 133 casos já haviam sido
registrados para a cidade de Laguna, 74 para Tubarão, 56
para Florianópolis, 47 para Itajaí, 47 para Canoinhas, 41 para
Lages, 35 para Campos Novos, 31 para Palhoça, 29 para
São José, 23 para Mafra e 21 para Chapecó. Além dos locais
de procedência assinalados, outros 41 foram verificados,
sendo que a maioria apresentou a ocorrência de um número
de casos inferior a 20, somando um total de 289 enfermos
advindos destes lugares, que não se restringiam a cidades
catarinenses, mas de diferentes Estados brasileiros, como Rio
Grande do Sul, Distrito Federal e Paraná. Cabe salientar a
ocorrência de internamentos de pessoas procedentes de
instituições asilares de outras regiões, assim como do
Educandário Santa Catarina, com veremos no Capítulo 6
deste trabalho.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 155

Tabela 4
Hospital Colônia Santa Teresa
Procedência dos Internos
(1940-1950)

Localidades Número de Internamentos


Laguna 133
Tubarão 74
Florianópolis 56
Itajaí 47
Canoinhas 47
Lages 41
Campos Novos 35
Palhoça 31
São José 29
Mafra 23
Chapecó 21
Outras 289
Total 826

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Hospital Colônia Santa Teresa.

Esse fato acena para uma prática comum adotada pelo


Departamento de Profilaxia da Lepra do Estado de São Paulo:
o recâmbio. Segundo Monteiro (1995), quando um doente
de natural de outro Estado era fichado em São Paulo, tentava-
se fazer com que o mesmo voltasse ao local de origem a fim
de que o quadro nosológico da enfermidade não aumentasse.
Tendo sido registrados em Santa Catarina enfermos advindos
do Paraná (5 casos), Rio Grande do Sul (3 casos), Rio de
Janeiro (2 casos), bem como de algumas colônias agrícolas
destes Estados, como as de São Roque (13 casos) e Itapoã (5
casos), não é difícil acreditar que a prática do recâmbio possa
156|Débora Michels Mattos

também ter sido utilizada em outros Estados brasileiros, a


exemplo do que ocorria em São Paulo.
De acordo com os dados encontrados no livro de registros
de internamentos do Hospital Santa Teresa, os enfermos
confinados entre os anos de 1940 e 1950 eram em sua
maioria casados (gráfico 5). Do total de 826, 811 eram de
nacionalidade brasileira, sendo os 15 restantes de países da
Ásia, Europa e América do Sul (tabela 5). Em relação ao
sexo, observamos maior incidência para o masculino (gráfico
6). No que concerne à cor, a branca foi superior as demais, já
que a população catarinense era predominantemente branca
(gráfico7).

Gráfico 5

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Hospital Colônia Santa Teresa.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 157

Tabela 5
Hospital Colônia Santa Teresa
Nacionalidade dos Internos
(1940-1950)
Nacionalidade Número de Internamentos
Alemanha 3
Argentina 1
Itália 2
Holanda 1
Polônia 2
Rússia 3
Suíça 1
Síria 1
Ucrânia 1
Brasil 811
Total 826
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Hospital Colônia Santa Teresa.

Gráfico 6

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Hospital Colônia Santa Teresa.
158|Débora Michels Mattos

Gráfico 7

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Hospital Colônia Santa Teresa.

A média de idade variou de 0 a 90 anos, sendo que o


maior número foi verificado entre as idades de 26 e 30, com
117; entre 36 e 40, com 103; 41 e 45, com 87 casos; 16 e
20, com 85 casos; 31 e 35, com 82 casos; e 21 e 25, com 78.
Para as idades entre 46 e70 anos, a soma total de casos foi
de174. Entre 0 e 15 anos, o resultado foi de 87. As idades
com menor número de incidência variaram entre os 71 e 90
anos, apresentando um total 10 casos. Cabe aqui observar
que 3 registros foram encontrados sem referência de idade,
conforme demonstra a tabela 6.13
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 159

Tabela 6
Hospital Colônia Santa Teresa
Média de Idade dos Internos
(1940-1950)
Média de Idade Internos
0 a 5 anos 6
6 a 10 anos 27
11 a 15 anos 54
16 a 20 anos 85
21 a 25 anos 78
26 a 30 anos 117
31 a 35 anos 82
36 a 40 anos 103
41 a 45 anos 87
46 a 50 anos 56
51 a 55 anos 49
46 a 60 anos 38
61 a 65 anos 13
66 a 70 anos 18
71 a 75 anos 4
76 a 80 anos 2
81 a 85 anos 0
86 a 90 anos 4
Sem Referência 3
Total 826
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Hospital Colônia Santa Teresa.

O combate à hanseníase, no Brasil, foi instituído a partir


de um movimento articulado por representantes da sociedade
brasileira que, engajados nos princípios ideológicos de
modernização e desenvolvimento do país, observaram na
incidência da enfermidade a presença de um terrível mal.
Embora a medicina moderna tenha sido fundamental para a
160|Débora Michels Mattos

cura de inúmeras doenças, privilegiando a saúde e a vida, os


mecanismos alçados no âmbito da hanseníase se apresentaram
de forma diferenciada. O alijamento do enfermo em
instituições asilares se constituiu muito mais como um
mecanismo de afastamento ao provedor da ameaça do que
como um instrumento de auxílio à restituição da saúde.
A partir do grande projeto de cunho sanitarista
implementado no Brasil durante os anos 30, quando o
governo federal tomou para si a incumbência de dar cabo
aos grandes problemas de saúde que colocavam em risco o
progresso do país, o governo de Santa Catarina lançou as
bases para a erradicação da hanseníase na região. Seguindo
as diretrizes nacionais acerca da doença, sobretudo em relação
ao doente, o modelo que foi adotado se pautou no
cerceamento da liberdade. Por meio de uma instituição asilar
do tipo colônia agrícola construída em Santa Catarina, o
Hospital Colônia Santa Teresa, estabeleceu-se uma esfera de
controle e poder muito bem elaborada sobre o enfermo.
Através da análise dessa esfera, as representações criadas em
torno da doença e do doente ao longo da história poderão
ser mais claramente vislumbradas.

Notas:
1
Ver Memorial da Diretoria de Higiene do Estado de Santa
Catarina. APESC. D. PG/IJ, out./ dez. 1921, p. 50.
2
Ver Documentos avulsos. APESC. Caixa 9B, p. 15.
3
Ver Documentos avulsos. APESC. Caixa 9B, p. 15.
4
Ver Ofício 260. APESC. D PG/IJ, ago/set. 1922, p. 162.
5
Com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública e
do Serviço de Profilaxia da Lepra em 1920, as diretrizes
nacionais para resolver o problema da enfermidade passaram
a propagandear o isolamento dos doentes em leprosários,
hospitais ou colônias do tipo agrícola. Junto à edificação dessas
instituições, os Serviços de Profilaxia dos Estados deveriam se
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 161

incumbir de realizar o censo da região que lhes competia,


tratando clinicamente os casos comprovados com o óleo de
chalmoogra. Quando do não cumprimento das diretrizes
isolacionistas nas instituições pré-determinadas, esperava-se,
pelo menos, que o controle da população enferma e o
tratamento clínico da mesma fosse feito. Mas isso nem sempre
acontecia. Em Santa Catarina, por exemplo, o empenho do
Serviço de Profilaxia da Lepra, Sífilis e Doenças Venéreas em
fazer com que o governo ficasse a par da questão e seguisse as
normas prescritas pela União não resultou no esperado e o
quadro nosológico da população continuou crescendo (ESTADO
DE SANTA CATARINA, 1996. mimeo)
6
Essa representação foi publicada no artigo intitulado Ideal de
Uma Época, publicado no Jornal República de dezembro de 1936.
7
Ver Artigo 2 da Lei 143. ESTADO DE SANTA CATARINA.
Coleção de Leis do Estado. Florianópolis: Imprensa oficial, 1946.
8
Ver Artigo 3 da Lei 143. ESTADO DE SANTA CATARINA.
Coleção de Leis do Estado. Florianópolis: Imprensa oficial, 1946.
9
De acordo com o Serviço de Profilaxia da Lepra de Santa
Catarina, aos enfermos era salientado que não exercessem
profissões que pudessem colocar em risco a saúde de pessoas,
como aquelas em que o doente tivesse contato direto com
pertences ou objetos que o sadio fosse utilizar ou ingerir: padeiro,
copeiro, camareira, faxineira, cozinheira, etc. (grifo meu).
10
O valor obtido corresponde a um percentual aproximado, uma
vez que o número da população geral de Santa Catarina foi
obtido através do censo demográfico de 1940 e o número da
população enferma do recenseamento realizado pelo Serviço
de Profilaxia da Lepra entre os anos de 1937 e 1941.
11
São cinco os níveis de endemicidadade estabelecidos
atualmente pela Organização Mundial de Saúde: baixo = menos
de um caso para cada dez mil habitantes; médio = de um a
menos de cinco; alto = de cinco a menos de 10; muito alto =
de 10 a menos de 20; hiperendêmico = mais de 20 casos para
cada dez mil habitantes.
12
Sobre isto veremos no Capítulo 5.
13
Utilizamos uma escala de cinco para estabelecer a média de
idade dos enfermos internados no Santa Teresa, mas optamos
por especificar esta média aqui somente para as idades que
apresentaram um maior número de incidência (grifo meu).
162|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 163

Terceira Parte

O confinamento dos
enfermos

Se penso mais que um momento


Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadáver a esperar.
Dentro em breve (poucos anos
É quando vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive.
Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
E, ou desfeito e insensível,
Ou ébrio de outro arrebol,
Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com mês a mês e ano a ano.
Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espaço mudo
Lembra-nos que isso é disfarce
E que é a noite que é tudo.
(Fernando Pessoa. Vendaval)
164|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 165

Capítulo 5

O Hospital Colônia
Santa Teresa
Nas primeiras décadas do século XX uma série de discursos
acerca dos mecanismos de profilaxia que deveriam ser
instituídos no campo da hanseníase passaram a ser postulados
por leprólogos e cientistas. Embora alguns desses discursos
tenham se posicionado contra a ideia do isolamento
compulsório defendida nos congressos internacionais de
leprologia realizados entre os anos de 1900 e 19301, a teoria
do contágio, a observação de uma maior incidência dentro
do âmbito familiar e o caráter evolutivo da enfermidade
acabaram dando força àqueles que se posicionavam a favor
da prática isolacionista (GOMIDE, 1991).
166|Débora Michels Mattos

No Brasil, a criação de instituições asilares já havia sido


posta em prática no Estado de São Paulo durante os anos
20.2 Ainda que tais instituições tenham servido de base ao
modelo a ser estabelecido em quase todo o território brasileiro,
somente em 1935 o governo federal tomou para si a tarefa
de construí-las. A partir do plano de profilaxia elaborado pela
Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa
contra a Lepra, analisado pelo Ministério de Educação e Saúde
e aprovado por Vargas, configurava-se imprescindível a
construção de colônias do tipo agrícola em todos os Estados
da federação.
Neste capítulo tentaremos historiar acerca da instituição
asilar que integrou o universo do movimento de combate à
“lepra” implementado em Santa Catarina em meados dos
anos 30: o Hospital Colônia Santa Teresa. Salientando o
significado dessa instituição para a sociedade catarinense da
época, a partir dos discursos de profilaxia que se cristalizaram
no período, tentaremos demonstrar os vários instrumentos
que possibilitaram a legitimação do aparato institucional que
foi edificado para o tratamento da doença tendo como
princípio básico o cerceamento da liberdade. Sendo assim,
alguns aspectos serão enfatizados, como a estrutura física e
funcional do Hospital Santa Teresa, os mecanismos de poder
e controle exercidos sobre os enfermos e os instrumentos de
persuasão utilizados como garantia do bom andamento do
estabelecimento.
Considerando os inúmeros atores que fizeram parte do
universo asilar durante os anos de 1940 a 19503, sobretudo
aqueles que foram compulsoriamente confinados, este
capítulo tem como objetivo, inclusive, trazer à tona o
estabelecimento do viver cotidiano institucional desses
personagens, dando destaque aos saberes produzidos sobre
a realidade em que estavam inseridos, os meios encontrados
para a aceitação dessa realidade, assim como as formas
vislumbradas de se contrapor a ela.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 167

A lógica institucional

Segundo Gomide (1991), o modelo de profilaxia


isolacionista que foi instituído no Brasil a partir dos anos 30
amparava-se em dados estatísticos acerca da elevada incidência
da doença nos mais diversos Estados brasileiros e que foram
publicados na Revista de Combate à Lepra no ano de 1936
(tabela 7).4
De fato, a apresentação de números comprobatórios sobre
a incidência da hanseníase no país, os pronunciamentos
veiculados na imprensa falada e escrita acerca dos riscos que
a doença representava e os pedidos feitos por um maior
empenho do governo federal em relação à tomada de
medidas que visassem à retirada do perigo em defesa da
sociedade acabaram sendo atendidos. Como resultado o
Estado passou a disponibilizar verbas à constituição do aparato
idealizado no âmbito da enfermidade, sendo a colônia agrícola
parte significativamente importante deste aparato.

Tabela 7
Situação do Problema da Lepra no Brasil em 1933
Leprosos
Estados Fichados Isolados Estimativa
Amazonas 1.436 310 3.000
Pará 3.612 850 4.000
Maranhão 848 100 1.500
Piauí 50 27 200
Ceará 524 208 1.000
Rio Grande do Norte 181 98 150
Paraíba 121 - 200
Pernambuco 427 203 1.350
Alagoas 23 - 100
Sergipe 8 - 100
Bahia 80 42 300
Espírito Santo 390 10 800
168|Débora Michels Mattos

Rio de Janeiro 30 - 800


São Paulo 6.952 2.434 15.000
Paraná 607 288 1.200
Santa Catarina - - 600
Rio Grande do Sul 174 - 1.500
Goiás - - 300
Mato Grosso - - 700
Minas Gerais 2.780 900 15.000
Distrito Federal 1.257 336 1.500
Acre 234 55 700
Total 19.734 5.914 50.000
Fonte: CHERMONT (1936); GOMIDE (1991)

Em Santa Catarina o modelo de profilaxia seguiu as


diretrizes nacionais que foram sendo implementadas após os
anos 30. Em 1936 o governo do Estado instituiu o Serviço
de Profilaxia da Lepra, sendo a partir de então solidificadas
as iniciativas para a edificação de uma colônia agrícola naquela
região. O Hospital Santa Teresa tinha como objetivo obedecer
à lógica de tratamento defendida na época, ou seja, o
afastamento de um mal que suscitava riscos à sociedade sadia
e ao bem-estar da nação.
Logicamente, a inexistência de medicamentos que
possibilitassem a cura para a doença era utilizada como
justificativa para o isolamento. Além disso, as especificidades
da enfermidade, como o seu caráter degenerativo, reforçavam
o modelo de exclusão. A edificação de um espaço à parte se
configurava perfeito à realidade a que o enfermo estava
inserido, pois era ele portador de uma enfermidade
infectocontagiosa, incurável e de cunho incapacitante, sendo
a colônia asilar a instituição ideal e mais adequada ao
atendimento de suas necessidades de acordo com a tática da
autossustentação defendida por especialistas no assunto.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 169

Estrutura física e funcional

De acordo com relatório apresentado pela Federação das


Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra
publicado na Revista de Combate à Lepra (1939), o Hospital
Colônia Santa Teresa foi erguido a mais ou menos 24
quilômetros de Florianópolis, no atual município de São Pedro
de Alcântara, em terreno fértil obtido pelo governo do Estado
pela quantia de cento e quarenta e oito contos setecentos e
cinquenta e dois mil e seiscentos réis. Com uma área total de
aproximadamente 300 hectares, teve sua estrutura hospitalar
alçada em um vale circundado por montanhas e um rio
(DANTAS, 1946).
De acordo com o Plano Estrutural enviado ao
Departamento Nacional de Saúde Pública no ano de 1936,
deveria se assemelhar aos grandes asilos-colônias edificados
no Brasil e nos Estados Unidos, como o Santo Ângelo e o
Carville. Nesse sentido, suas disposições internas e externas
tinham por meta estabelecer uma arquitetura de controle ao
mesmo tempo que um ambiente bom de se viver.
Em nota apresentada no Diário Oficial do Estado de Santa
Catarina, publicada no dia 16 de julho de 1936, o Santa
Teresa seria composto pelas seguintes divisões: casa do diretor,
casa do administrador, portaria e telefone, posto policial, casas
para funcionários, garagem e casa para chofer, pavilhão da
administração, pavilhão de observação, casas para os
enfermeiros, pavilhão cozinha-refeitório, dispensário geral,
enfermaria feminina, lavanderia e desinfetório, pavilhão de
diversões, capela, enfermaria masculina, pavilhão do tipo
Carville para solteiros, pavilhão do tipo Carville para solteiras,
pavilhão para crianças, casas para casais, cemitério, necrotério,
forno incinerador, habitação de pensionistas, pavilhão para
loucos e presos, escola, casa das religiosas, parlatório, pavilhão
de oficina, pavilhão de inválidos e pavilhão de isolamento.
Conforme as propostas de caráter profilático empreendidas
170|Débora Michels Mattos

em relação à hanseníase e propagandeadas nos meios de


comunicação, a instituição deveria ser semelhante a uma
cidade onde o enfermo pudesse reestruturar sua vida no
âmbito da rede asilar. Por intermédio de uma estrutura que
lhe desse os elementos indispensáveis à vida em sociedade,
salientavam-se os benefícios oferecidos pelo aparato
segregacionista através de justificativas que perpassavam, até
mesmo, o campo dos saberes e sentimentos que os doentes
inferiam sobre sua própria doença.
O enfermo de lepra consciente no meio dos sãos é um ente
tristonho, desconfiado, irascível; no meio de iguais é um operoso,
um alegre.

Cuidai antisepticamente das suas ulcerações, mas dai-lhe jogos,


trabalhos, festas íntimas e nunca pronunciais aos seus ouvidos,
as palavras: coitado, infeliz... (REVISTA DE COMBATE À
LEPRA, 1940, p. 17).5
Dando reforço às justificativas de cunho sentimental,
somavam-se aquelas que perpetravam a vitalidade da raça, a
defesa dos saudáveis, o progresso da nação e a possibilidade
de cura, mesmo sabendo não ser esta possível. Objetivando
induzir o enfermo à aceitação do confinamento, tecia-se uma
rede de discursos a ser tomada como verdade.
A assistência aos lázaros se impõe, pois, à consciência humana,
como uma medida de preservação do indivíduo e da raça,
bem como um imperativo de dignidade nacional. Sem amparo,
sem tratamento, sem segregação os infelizes leprosos eram como
párias fazendo perambular com seu infortúnio o círculo de
irradiação do seu mal. Assim, em defesa da população sadia,
perde o lázaro a sua liberdade.

O que a segregação resulta para o enfermo nós bem o sabemos


pela experiência já tentada em nossa pátria em diversos Estados.
É conforto moral e material, é o ambiente à parte [...]. E mais
do que isso tudo, para o enfermo o leprosário representa a
possibilidade de cura (REPÚBLICA, 09 dez. 1936).6
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 171

Assim foi edificado o Hospital Colônia Santa Teresa, tendo


a sua inauguração ocorrido em 11 de março de 1940. No
evento compareceram o presidente da República, Getúlio
Vargas; o interventor de Santa Catarina, Nerêu Ramos; o
diretor do Serviço Sanitário dos Estados da União, Ernani
Agrícola; o delegado federal de Saúde, Luiz Medeiros; a
presidente da Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros, Eunice Weaver; o diretor do Hospital Santa Teresa, Dr.
Adalberto Tolentino de Carvalho; além de autoridades civis,
militares e religiosas (REVISTA DE COMBATE À LEPRA, 1940).
Segundo relatório apresentado pelo governo estadual ao
governo federal e publicado pelo Departamento Estadual de
Estatística (1943), no ano de sua inauguração o Santa Teresa
foi subdividido em 3 zonas. A zona “A” ou “sadia” era composta
por residência do diretor, residência do administrador, 6 casas
para funcionários, uma usina termoelétrica, um posto de
captação de água com reservatório de distribuição e portaria.
A zona “B” ou “intermediária” dispunha de um prédio
administrativo, casa das religiosas, cozinha, câmara frigorífica,
lavanderia, pavilhão de observação e entrada para o
ambulatório. A zona “C”, reservada aos doentes, era
assinalada por um refeitório, um pavilhão para atendimento
médico e dentário, 7 pavilhões masculinos, 4 pavilhões
femininos e um pavilhão infantil. Ainda no setor “C”, foram
construídas 9 casas geminadas para casais, estação de
depuração de esgoto, cemitério e praça de esportes.
Durante os anos que seguiram à inauguração do complexo
asilar, outras dependências foram sendo construídas. Em 1943
já havia sido iniciada a edificação da residência do capelão e
do parlatório, ambos na zona “intermediária”. No que
concerne ao parlatório sua conclusão era considerada
imprescindível em termos de profilaxia. Caracterizava-se por
uma pequena sala dividida em dois, sendo essa divisão
composta de um balcão e uma parede de vidro a fim de
impedir o contato físico entre interno e visitante. Até essa data
o instrumento utilizado para evitar tal contato havia se
172|Débora Michels Mattos

constituído por uma cerca de arame, fato que para os médicos


representava um risco aos que se encontravam saudáveis.
Além disso, de acordo com Dantas (1946) na zona “A” foi
construída uma casa para o médico residente; na zona “B”,
um aviário; e na zona “C” foram edificados: pavilhão de
recepção, pavilhão de diversões, pavilhão para loucos e presos,
mais 2 pavilhões para internos do sexo feminino e 4 casas
geminadas, cadeia, escola, forno incinerador, usina de
pasteurização de leite, capela, gruta, engenho de farinha e
torrefação de café, pocilga, olaria e marcenaria, sendo muitos
desses estabelecimentos construídos pelos próprios internos.
Fora a área construída, o Hospital Colônia reservou espaço
para a prática agrícola e criação de gado a fim de atender ao
objetivo de autossustentação a que o estabelecimento se
propunha. Nesse sentido foi subdivido em lotes para serem neles
plantados diversos gêneros alimentícios e outros elementos
cultiváveis, como o fumo (REVISTA DE COMBATE À LEPRA,
1939).
Sua capacidade asilar variou entre 400, no ano de sua
inauguração, e 500 internos, aproximadamente, ao fim
da década de 40, quando verificou-se a edificação de mais
dependências, como pavilhões e casas geminadas. Em geral
os pavilhões possuíam 28 leitos em quartos coletivos ou
não. Era comum que os casais fossem acomodados em
prédios subdivididos por quartos, sendo os de caráter
coletivo destinados aos solteiros e crianças. Já as casas
geminadas, estas possuíam a capacidade para o alojamento
de 8 pessoas e tinham por meta acomodar grupos grandes
de famílias acometidas pela doença. Aqueles com reações
e intercorrências eram acomodados na enfermaria, que
tinha a capacidade para o atendimento de 17 pessoas
aproximadamente. Os enfermos que apresentavam a
forma avançada da doença, com lesões e incapacidades,
também eram dispostos em pavilhões separados divididos
por sexo. Alguns internos portadores de enfermidades
infectocontagiosas de outra natureza ficavam alojados em
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 173

pavilhões com subdivisões de isolamento (REVISTA DE


COMBATE À LEPRA, 1940; SÃO THIAGO, 1996).
Obedecendo o cotidiano padrão inerente às cidades, a
Colônia Santa Teresa, ao longo dos seus dez primeiros anos
de funcionamento, foi dotada de instrumentos para que os
próprios doentes ali internados pudessem garantir o seu bom
funcionamento, como organização, limpeza, manutenção,
cultura, educação, lazer e rentabilidade. Nesse sentido foram
criados órgãos específicos a serem gerenciados pelos internos,
como Prefeitura, Delegacia, Caixa Beneficente, etc. Esses
órgãos, no entanto, não foram dotados de um estabelecimento
fixo, podendo funcionar em lugares diferenciados, embora
sempre obedecendo uma certa coerência. Assim, por
exemplo, a Caixa Beneficente teve por muito tempo a sua
sede no pavilhão de diversões Teresa Ramos, onde
funcionavam alguns setores de sua competência, como o teatro
e o cassino (DANTAS, 1946).
De fato, a Lei nº 143, de 16 de novembro de 1936, já
estipulava a criação de órgãos visando ao aproveitamento dos
enfermos confinados compulsoriamente no gerenciamento da
instituição: “Art. 7 - Para o desempenho dos serviços internos
da Colônia, a critério do diretor, poderão ser contratados os
doentes em boas condições.” De acordo com o artigo 7 da Lei
nº 143, caberia ao diretor do asilo a nomeação dos cargos a
serem ocupados (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1937).
Se nos detivermos a analisar a tabela referente às
atribuições apresentada no documento de lei veremos que o
trabalho do interno, desde a implantação do Serviço de
Profilaxia da Lepra, foi referenciado ao funcionamento da
zona doente do Santa Teresa nos seus mais diferentes setores.
Interessante salientar que o valor dos vencimentos prescrito
era significativamente inferior ao valor pago àqueles que
exerciam o mesmo cargo fora da ala “C” do hospital, como
pode ser verificado nas tabelas 8 e 9:
174|Débora Michels Mattos

Tabela 8
Hospital Colônia Santa Teresa
(Tabela de vencimentos dos funcionários doentes)
Cargos Vencimentos
Mensal Anual
Prefeito 100$000 1:200$000
Professor 80$000 960$000
Delegado de Polícia 60$000 720$000
Enfermeiro – Chefe 60$000 720$000
Escriturário 50$000 600$000
Almoxarife 50$000 600$000
Ajudante de Almoxarife 35$000 420$000
Carcereiro 40$000 480$000
Guarda 45$000 540$000
Barbeiro 50$000 600$000
Enfermeiro 40$000 480$000
Copeiro 30$000 360$000
Pedreiro 50$000 600$000
Ajudante de Pedreiro 30$000 360$000
Servente 20$000 240$000
Bombeiro 50$000 600$000
Eletricista 50$000 600$000
Carpinteiro 50$000 600$000
Feitor 40$000 480$000
Campeiro 40$000 480$000
Jardineiro 30$000 360$000
Zelador de Cemitério 40$000 480$000
Encarregado de Limpeza 30$000 360$000
Contínuo 25$000 300$000
Roupeiro 35$000 420$000
Passadeira 25$000 300$000
Fonte: ESTADO DE SANTA CATARINA. SC, 1937.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 175

Tabela 9
Serviço de Profilaxia da Lepra
(Tabela de vencimentos dos funcionários sadios)
Cargos Vencimentos
Mensal Anual
Assistente Técnico Médico 1:800$000 21:600$000
Auxiliar Técnico Médico 900$000 10:800$000
Médico Especialista Visitador 900$000 10:800$000
Médico Laboratorista 880$000 10:000$000
Médico Especialista (moléstias 500$000 6:000$000
intercorrentes)
Farmacêutico 600$000 7:200$000
Auxiliar de Farmacêutico 300$000 3:600$000
Dentista 600$000 7:200$000
Auxiliar de Laboratório 300$000 3:600$000
Enfermeiro 330$000 3:960$000
Ajudante de Enfermeiro 250$000 3:000$000
Auxiliar de Dispensário 250$000 3:000$000
Superintendente 500$000 6:000$000
Administrador de Almoxarife 400$000 4:800$000
Escriturário 330$000 3:960$000
Auxiliar de Escrita (datilografia) 240$000 2:880$000
Mestre de Cultura 350$000 4:200$000
Parteira 320$000 3:840$000
Servente 240$000 2:880$000
Chauffeur 255$000 3.060$000
Cozinheiro 200$000 2:400$000
Ajudante de Cozinha 120$000 1:440$000
Encarregado de Lavanderia 150$000 1:800$000
e Desinfetório
Eletricista e Encarregado 300$000 3:600$000
de Motores
Telefonista 120$000 1:440$000
176|Débora Michels Mattos

Guarda 180$000 2:110$000


Copeiro 60$000 720$000
Trabalhador 90$000 1:080$000
Lavadeira 60$000 720$000
Nota: O médico visitador quando em viagem terá a diária de 25$000.

Fonte: ESTADO DE SANTA CATARINA. SC, 1937.

Comparando os dois quadros acima, torna-se possível


observar a disparidade entre os vencimentos atribuídos a
alguns cargos encontrados em ambas as tabelas, sendo que
aquela relacionada aos funcionários sadios apresentava
remuneração significativamente maior que a dos funcionários
doentes. Enquanto um enfermeiro sadio, por exemplo, tinha
seus vencimentos mensais estipulados em trecentos e trinta
mil réis mensais, um enfermeiro hanseniano deveria receber
quarenta mil réis. De acordo com o gráfico 8 podemos melhor
visualizar essa diferenciação:

Gráfico 8
Serviço de Profilaxia da Lepra de Santa Catarina
Comparativo de V encimentos (em Réis) entr
Vencimentos entree
Funcionários Sadios e Hansenianos

Fonte: ESTADO DE SANTA CATARINA, 1937. Dados retirados das


tabelas de vencimentos dispostas no documento de lei.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 177

Seguindo a lógica defendida por Oswaldo Cruz já no início


do século, ou seja, a de que o enfermo não podendo contribuir
com o desenvolvimento do país devesse, ao menos, aliviar os
encargos do governo, a Colônia Santa Teresa foi construída
de forma a que os internos pudessem nela trabalhar e garantir
o seu sustento sem que o Estado tivesse gastos excessivos
com o enfermo (GOMIDE, 1991). Embora essa tática tenha
funcionado durante muito tempo, não era raro que os internos
questionassem o valor de seus proventos.
Eu nada fazia porque era guri novo, mas depois peguei a
trabalhar no jardim, ajudando aquelas mulheres. Mas tudo o
que eu fazia junto com o jardineiro, igual o do homem,
igualzinho, ele ganhava um mil réis por dia e eu ganhava só
quinhentos réis. Estou falando da moeda daquela época. Então
eu sei que era assim. Aqui tinha prefeito, tinha prefeitura. Era o
seu L. que era o prefeito. Queria que ele me pagasse um mil
réis para eu ganhar por dia.

– Não, não. É só quinhentos réis! (o prefeito dizia).

– Então não trabalho mais!

Aí eu não quis mais trabalhar (Depoimento de MC. 12 jan.


2000).
Na constituição das funções a serem exercidas pelos
doentes, estabeleceu-se uma pirâmide social em que no topo
se encontraram aquelas pessoas que assumiram cargos de
poder, como o prefeito, o delegado, o guarda policial, o juiz,
etc. Ainda que a realidade segregacionista tenha sido imputada
a todos que foram confinados entre os anos de 1940 e 1950,
criando entre os internos fortes laços de amizade, a constituição
de uma escala social dentro do estabelecimento teve alguns
desdobramentos. Se por um lado auxiliou a solidificação do
aparato de controle sobre os doentes ali asilados, por outro
gerou ressentimentos por parte daqueles que se sentiram
subjugados.
178|Débora Michels Mattos

Pior era essa rigidez, porque eu acredito que conforme eles


contaram não teria necessidade de um doente, às vezes por
causa de um namoro, uma coisa, [...] ser castigado, ficar preso
um ano, tanto marido como mulher na cadeia. Então nesse
ponto de vista a gente acha que era arbitrário. Mesmo aquela
polícia que eram guardas, mal informados, parece que eles
ainda se aproveitavam mais da situação e alguns casos usavam
de alguma violência que jamais eu acredito que poderia ser
(Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
No comando das 3 zonas do Santa Teresa a figura do
médico leprologista diretor se destacou. Durante a primeira
década de seu funcionamento, quando foi instaurado o regime
isolacionista e solidificada a estrutura do aparato asilar, esteve
à frente da instituição o médico pernambucano Adalberto
Tolentino de Carvalho. Cabia ao médico seguir o plano
nacional de combate à hanseníase no que dizia respeito à
organização e ao funcionamento do estabelecimento em Santa
Catarina. Sendo assim, suas atividades estiveram voltadas ao
tratamento médico prescrito no âmbito do asilo e à aplicação
dos fundamentos almejados para o seu bom andamento,
como a articulação dos órgãos gerenciados pelos enfermos, a
real aplicação das normas institucionais dispostas em regimento
e a legitimação da estrutura idealizada como modelo de
profilaxia. Acerca da Colônia Santa Teresa, assim se
pronunciava o médico leprologista:
A Colônia que dirijo obedece ao plano federal de combate à
lepra. É constituída de pavilhões Carville, casas para casais,
ambulatório, enfermaria, salas de operações, etc. A Colônia é
dividida em três zonas: zona doente (onde estão os enfermos e
os serviços de assistência), zona intermediária (onde ficam a
administração, o pavilhão de observação, cozinha, casa das
irmãs e portaria) e zona sadia (onde se encontram a residência
do diretor, dos funcionários, a usina elétrica e a caixa d’água,
etc.). [...] Os doentes recebem, no leprosário, assistência médica
em todas as suas modalidades. A direção se esforça para que
a vida dos doentes se torne mais amena, criando salões de
leitura, de jogos recreativos, etc. É pensamento da direção obter
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 179

donativos a fim de que os doentes possuam o seu aparelho


projetor cinematográfico (CARVALHO, 1943).
Nascido em Recife no dia 21 de maio de 1909, Adalberto
Tolentino de Carvalho se formou em medicina e se especializou
em dermatologia, na área de leprologia, no Rio de Janeiro.
Em 1935 foi convidado pelo governo do Estado de Santa
Catarina a ingressar no Serviço de Profilaxia da Lepra que
estava sendo implantado na região. Ao lado de Polydoro
Ernani de São Thiago participou dos primeiros censos que
foram realizados no Estado catarinense. Contudo foi
designado pelo interventor Nerêu Ramos a assumir o posto
de diretor vitalício do Santa Teresa após a sua inauguração,
onde se tornou figura de relevo no que concerne à
solidificação do aparato institucional.7
Segundo Monteiro, em relação às colônias edificadas em
São Paulo, verificou-se um empenho por parte dos serviços
médicos para a criação de uma estrutura que desse forma ao
discurso profilático e ao mesmo tempo garantisse o bom
andamento da instituição nos seus mais diferentes aspectos,
sobretudo, aqueles relacionados à ordem. Nesse sentido o
Departamento de Profilaxia da Lepra, naquele Estado,
engendrou a criação de cargos e funções de peso que
deveriam ser desempenhadas pelos enfermos a partir de uma
liderança central, que se traduziu na figura do diretor do
hospital (MONTEIRO, 1995).
Em Santa Catarina essa figura foi representada por
Adalberto Tolentino de Carvalho, a quem os enfermos
designados ao exercício dos cargos de poder deveriam ser
fiéis. Presteza, dedicação e lealdade tinham como resultado
algumas vantagens individuais, que se traduziam em melhores
condições de moradia, alimentação diversificada, algumas
regalias e remuneração mais alta. Acerca desses privilégios o
egresso BP, confinado em 1947 com a idade de 17 anos,
relatou:
Olha, sempre há uma diferenciação, não tem dúvida.
180|Débora Michels Mattos

Dependendo do comportamento ou da classe social do


indivíduo, mesmo que seja tudo para todos, mas há aquelas
pessoas que sempre, na sua maneira de ser ou até de demonstrar
mais amável, mais capacitado ou mais aquilo que deve pensar
cada um, sempre há uma diferenciação da maneira de ser
recebido ou ser tratado (Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
Esse tipo de tratamento diferenciado gerou conflitos entre
os próprios internos, uma vez que para alcançá-los os enfermos
delegados aos cargos de poder seguiam as regras estabelecidas
pela direção do estabelecimento, assinaladas pelo controle
individual das condutas e dos comportamentos, pelo
monitoramento do cotidiano asilar, que ultrapassava a barreira
do público, estendendo-se ao campo do privado, da maneira
de ser de cada um, das vontades, dos desejos, das
necessidades particularizadas. No exercício dessas funções
foram exacerbadas práticas de violência sobre aqueles que
não integravam o grupo de funcionários doentes nomeados
pelo diretor, como agressão física e detenção.
Uma vez eu fui pra cadeia porque joguei pão para cima e caiu
em cima do refeitório. A mão já era um pouco torta. Jogava
para cima (rapaz novo). Vai tocando, vai tocando, vai tocando,
até chegar lá no café. Vai jogando pão para cima. Mas aí
engalhou no meu dedo [...]. Mas o fiscal viu e mandou me
prender.

Por causa de uma rosa, um cravo também, que eu apanhei no


jardim. Por causa de dois, três pratos que eu jogava para cima
que nem um disco, por causa do alumínio que naquele tempo
queimava as mãos [...].

Os doentes próprios eram colocados com capa de gaúcho,


capacete e porrete na mão, botina, chimarrão, café, pão e a
ordem era tomar conta de quem saía um pouco fora do sério.
Nunca fizeram nada demais. E daí, um pouco mais remunerado
melhor que os outros, o doente agia contra o outro com
fidelidade. Eu vi gente daí cair no chão ensangüentado
(Depoimento de MC. 12 jan. 2000).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 181

De acordo com as estratégias de poder e controle utilizados


nas grandes colônias de São Paulo, como o Santo Ângelo e o
Pirapitingüi, foram criados, também no Santa Teresa, órgãos
máximos que tinham por objetivo garantir a manutenção da
ordem instituída. Entre eles alguns se destacaram, como a
Prefeitura, a Caixa Beneficente e a Administração Sub-Distrital.

Dispositivos de ordem, controle e poder

As prefeituras se caracterizaram como órgão de maior


status social dentro dos hospitais colônias. Embora suas
atribuições estivessem voltadas à manutenção da estrutura
montada pelo Estado, como bens e imóveis, sua atuação
administrativa tinha como objetivo garantir o bom
funcionamento da zona doente das instituições asilares
(MONTEIRO, 1995). No Santa Teresa coube à Prefeitura
gerenciar a parte pública do estabelecimento garantindo a
preservação dos prédios, como pavilhões, casas, delegacia,
oficinas, cozinha, escola, suas mobílias e seus materiais; a
preservação e manutenção das áreas externas, como campos
verdes e de lazer, praças, cemitério, ruas e avenidas; a
designação dos cargos públicos de menor especialização a
serem preenchidos pelos internos, sob deferimento do diretor
da instituição; e o pagamento dos vencimentos desses
funcionários, que eram lotados pelo Estado conforme a Lei
nº 143 (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1937).
De acordo com a tabela dos salários a serem pagos aos
funcionários enfermos apresentada no documento de lei, o
de prefeito era o que constituía melhor remuneração, ou seja,
cem mil réis mensais. Era de sua competência, além das
atribuições dispostas acima, informar à direção do asilo sobre
o comportamento dos enfermos. Essa prática implicava na
concessão de algumas vantagens aos internos que seguissem
as normas estabelecidas no âmbito da zona asilar, como as
chamadas “ordens de licença”. Essas ordens eram concedidas
182|Débora Michels Mattos

pelo diretor ao interno que solicitasse a saída temporária da


instituição a fim de resolver questões pendentes fora do
ambiente institucional. Embora elas fossem dadas aos doentes
que não apresentassem a forma contagiosa, um dos critérios
para a concessão das licenças era a análise comportamental
do indivíduo.
Segundo Monteiro (1995) essa prática foi comum em
outras colônias, como a de Pirapitingüi. No entanto, no Santa
Teresa, não existem dados oficiais disponíveis que comprovem
a frequência com que eram concedidas essas permissões. O
único registro encontrado de sua existência pode ser verificado
nos Relatórios Nerêu Ramos de 1942, acerca do Serviço de
Profilaxia da Lepra (ESTADO DE SANTA CATARINA, 1943b).
No documento a tabela relativa à movimentação de pacientes
dentro do asilo demonstra ter havido ao menos uma “ordem
de licença” no período. Contudo, de acordo com análise dos
depoimentos orais que nos foram concedidos, algumas dessas
licenças podem ter se configurado extra-oficiais, como brechas
que se contrapunham à ordem estabelecida.
Numa ocasião, eu era mais novo, eu pedi para o Dr. Homero:

– Dr. Homero, o meu pai quer que eu vá em casa, o senhor me


dá licença?

Ele disse:

– Não temos ordem.

Ele estava provisório, o Dr. Tolentino tinha pego tratamento de


saúde. E ele disse:

– Mas tu faz assim, tu foges, sai pelo rio (Depoimento de MC.


12 jan. 2000).
De fato, no Hospital Colônia Santa Teresa foi comum a
ocorrência de brechas no sistema normatizador. Essas brechas,
no entanto, se fizeram presentes em contextos diferenciados8,
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 183

não sendo privilégio de todos que estavam internados ali.


O meu casamento foi marcante para mim e para minha esposa
porque eu tinha um pouquinho mais financeiramente melhor
do que ela. Me comprometi em comprar o enxoval, todas as
roupas para o casamento, fazer a roupa para ela e para mim.
E pedi para o Dr., que eu realmente considero muito. Eu, para
mim, eu julgo a pessoa pelo todo, né?! O achava extraordinário,
mas mesmo assim ele já dava aquela licença, aquela licença
um pouco meio, meio assim, não muito aberta. A maioria saía
pelo rio e depois o povo voltava pela portaria. Eu fui pedir, não
consegui, ele não me deixou e não sei por quê. Acho que não
era ele, era alguém lá que talvez ainda por causa da história da
dita refeição que eu achava que era ruim, acho que alguém
ficou marcando e no dia que eu pedi para ir ele disse:

– Não, você não pode ir.

E eu disse que ia e ele disse:

– Você pode ir. Você vai, vai, mas você tome as suas
providências e quando eu voltar eu tomarei as minhas...

Eu saí pelo rio e voltei pela portaria. E quando voltei ele já


estava me esperando. Só deu a licença que eu pedi para entregar
a aliança para a noiva, né?!, ali, e a roupa em cima de um
caixão de lixo. Ali coloquei a aliança na mão dela, entreguei o
pacote com aquelas roupas e, como se diz, eu fui de braço
dado com a polícia para a cadeia. Eu acho que ali, quando ele
tomou aquelas atitudes, tenho quase certeza que foi em virtude
das nossas reclamações no passado acerca da comida
(Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
Ao analisarmos a estrutura asilar tal como ela foi concebida,
torna-se possível perceber que ela acabou se constituindo um
espaço à parte, uma cidade com leis e regimentos próprios
dentro de uma estrutura maior, ou seja, a sociedade sadia.
Nessa cidade um poder paralelo acabou se configurando em
nome da saúde, do bem-estar, da vitalidade da raça e do
progresso do país. A exemplo disso tem-se a dotação dos
184|Débora Michels Mattos

cargos remunerados, em que trabalhadores não oficialmente


especializados exerciam funções que fora dali só poderiam
ser exercidas se fossem oficiais, como a de juiz, a de enfermeiro,
a de professor, enfim. Em nome da ordem, do controle e em
defesa dos saudáveis, o poder paralelo estabelecido dentro
do ambiente asilar acabou se tornando legítimo, pelo menos
ali, no espaço de confinamento, onde mecanismos auto-
reguladores foram introduzidos e os direitos daqueles que
foram segregados acabaram sendo preteridos.
No que concerne à Caixa Beneficente do Hospital Colônia
Santa Teresa, esta nasceu por volta de 1940 com a finalidade
de garantir o desenvolvimento econômico-financeiro da
instituição, a exemplo do que havia sido feito em alguns
estabelecimentos de São Paulo, como o Sanatório Padre Bento.
Segundo Monteiro, a concepção das caixas foi resultado
de uma grande insatisfação por parte do Departamento de
Profilaxia da Lepra de São Paulo com a influência exercida
pelas entidades assistenciais em relação ao problema da
doença. De acordo com a autora, essa insatisfação já era
observada no início da década de 30, quando a Federação
das Sociedades de Assistência aos Lázaros, sob a presidência
de Alice Tibiriçá, postulava a ideia de que o problema da
doença deveria ser resolvido por intermédio da educação
sanitária e dos dispensários antilepróticos. Esse posicionamento
ia contra as propostas isolacionistas defendidas pelo
Departamento de Profilaxia da Lepra, gerando um certo
distanciamento deste serviço com as atividades desenvolvidas
pelas entidades filantrópicas em que a Federação de Assistência
aos Lázaros assumia papel de destaque (MONTEIRO, 1995).
Embora tais associações fossem as principais promotoras dos
fundos de auxílio destinados aos doentes asilados, suas
atividades passaram a ser vistas como intromissão no serviço
de profilaxia oficial. Na tentativa de conter suas atividades
sem perder as verbas advindas da prática caritativa foram
instauradas as Caixas Beneficentes.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 185

Era inegável a eficácia dos grupos filantrópicos na obtenção de


fundos, que eram utilizados de formas diversas, dentro dos
asilos. [...] Contudo, como o tempo, essa atividade passou a
ser vista como uma ingerência externa dentro da rede asilar, o
que fez com que o Departamento de Profilaxia da Lepra
procurasse meios que permitissem afastar a atuação das
sociedades beneficentes, porém de forma a não comprometer
a continuidade das contribuições monetárias. A solução acabou
sendo encontrada através da criação de um órgão específico:
as Caixas Beneficentes (MONTEIRO, 1995, p. 182).
A Caixa Beneficente se constituía em órgão instaurado
dentro das instituições asilares. Seu objetivo principal era o
de administrar as doações feitas aos enfermos, sem a
interferência das entidades assistenciais.9 Sob o gerenciamento
de um interno asilar, deveria garantir que os auxílios obtidos
sob forma de donativos fossem aplicados a partir das
necessidades e dos interesses dos doentes. Nesse sentido ela
acabou assumindo particularidades. Em Santa Catarina, de
acordo com matéria apresentada pelo Departamento Estadual
de Estatística acerca da Saúde Pública e especialmente do
Hospital Santa Teresa (ESTADO DE SANTA CATARINA,
1943c), a Caixa Beneficente além de estar voltada às questões
de cunho econômico e financeiro no âmbito da produção
interna da Colônia Santa Teresa, tinha por atribuição também
cuidar das questões relativas aos recursos a serem empregados
nos setores de cultura, educação, esporte e lazer.
Interessante salientar que o interno nomeado para assumir
o cargo de chefe da Caixa Beneficente, diferente do que
acontecia em outros setores, era eleito pelo voto popular, pelo
menos durante a primeira década de funcionamento do asilo.
Até no princípio não existia nomeação. A gente tinha como
democracia. Que a Caixa Beneficente, enquanto teve bastante
paciente, era livre e democrática. Eram apresentadas duas ou
três chapas, então... É, isso aí realmente existia. A Caixa
Beneficente agiu assim por muito tempo (Depoimento de BP.
18 jul. 2002).
186|Débora Michels Mattos

Não era raro, também, que o órgão fosse utilizado como


banco, à medida em que depósitos e empréstimos pessoais
eram efetuados pelos internos.
A Caixa era o órgão principal. Ali dentro, monetariamente, era
ela que lidava com tudo. Até muitas vezes servia de banco. Os
doentes depositavam certas importâncias ali, outros faziam
empréstimos quando precisavam, né?! Então realmente tudo
que aparecia era vendido pela Caixa Beneficente lá por um
preço um pouco mais razoável, e depois a Caixa era quem
distribuía novamente algumas coisas pra própria manutenção
da Colônia (Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
De acordo com o relatório apresentado pelo diretor do
Serviço Nacional de Lepra no ano de 1945, a Caixa
Beneficente do Hospital Santa Teresa tinha por atribuição a
articulação das verbas a serem aplicadas nos mais variados
setores, sendo a produtividade destes devolvida aos internos
sob forma de bens de consumo. Conforme movimento
financeiro relativo ao ano de 1944, apresentado na tabela
abaixo em cruzeiros10, torna-se possível observar a amplitude
de atuação do órgão dentro do asilo:

Movimento financeiro do Hospital Colônia


Santa Teresa - 1944
Setor Agro-Pecuário:
Gado vacum .......................................... 8.700,00
Suínos ................................................... 3.120,00
Pomar ................................................... 3.000,00
Imóveis, utensílios e plantações ................. 12.460,00
27.280,00
Setor Social:
Seção de Costura:
Máquinas, móveis e utensílios ................... 4.649,70
Barbearia:
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 187

Móveis e utensílios ................................... 456,50


Sapataria:
Ferramentas .............................................. 101,00
Secretaria:
Móveis e utensílios ................................... 1.500,00
Serviços Sociais:
Móveis e utensílios na sede da Caixa .......... 140,00
Setor Teatral:
Utensílios ............................................... 170,00
Setor Musical:
Instrumental e uniformes .......................... 3.033,00
Setor Esportivo:
Móveis e material esportivo ....................... 1.770,00
11.820,20
Armazém:
Mercadorias existentes .............................. 4.433,70
Contas correntes a receber ........................ 3.269,90
Móveis e utensílios ................................... 327,00
8.030,60
Tesouraria:
Dinheiro em caixa ................................... 903,80
Em C/C com a Administração .................. 3.594,60
4.498,40
Títulos:
Bônus de guerra ...................................... 700,00
Juros e Descontos:
A receber ............................................... 42,00
Soma .................................................... 52.371,80
Depósitos:
De diversos, a deduzir .............................. 1.520,00
Patrimônio ............................................. 50.851,80
188|Débora Michels Mattos

A seção de costura da “Caixa” cortou e costurou 672 peças de


roupa, fornecendo linha, botões e forros. Distribuiu fumo,
gêneros e utilidades aos indigentes, semanalmente, com absoluta
regularidade (DANTAS, 1946, p. 6).
Nota-se, a partir dos dados apresentados acima, que a
Caixa Beneficente do Hospital Colônia Santa Teresa
administrava com eficácia as verbas que lhes eram concedidas,
distribuindo-as entre os diversos setores de sua competência
com base em critérios de prioridade. De acordo com o resumo
dos movimentos referente ao ano de 1944, torna-se possível
verificar que alguns setores recebiam maiores investimentos,
como o agro-pecuário e o social.
A parte agrícola se encontrava dividida em duas áreas de
cultivo: pomar e lavoura. No pomar eram plantados pés de
laranja, limão, grande quantidade de eucaliptos, além de outras
árvores frutíferas, como bananeiras, amendoeiras,
pessegueiros e melancieiras. Na lavoura havia o cultivo de
variados gêneros alimentícios, como legumes, verduras e
hortaliças. Entre os alimentos produzidos, aipim, mandioca,
milho, cenoura, tomate, ervilha, feijão, cebola, espinafre,
repolho, alface, chuchu, rabanete, abóbora, beterraba, pepino,
salsa, repolho. Em 1944 cerca de 230 mil pés de mandioca já
haviam sido plantados; aipim, 17 mil; mudas de cana, 5 mil;
batata-doce, 8 mil; fumo,7 mil. Esses alimentos, junto com
outros que eram cultivados, garantiam a capacidade de
autossustentação dos internos (DANTAS, 1946).
A parte pecuária compreendia a criação de alguns animais,
como o gado vacum e porcos. O gado vacum era destinado,
sobretudo, à produção de leite e carne; já os suínos serviam
ao consumo da carne e fabricação de banha. Outros animais,
embora não tenham sido mencionados no relatório
apresentado pelo diretor do Departamento Nacional de
Profilaxia da Lepra, também eram criados na zona doente,
como galinhas e patos (ESTADO DE SANTA CATARINA,
1943c).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 189

O setor social esteve relacionado a atividades voltadas à


promoção do bem-estar do enfermo. Nesse sentido suas
atividades compreenderam a fomentação de uma estrutura
que vislumbrasse o atendimento das necessidades básicas dos
internos, como roupas, calçados, higiene, estética, esporte,
cultura, educação e lazer. Assim, ao mesmo tempo que a Caixa
Beneficente articulava investimentos a serem feitos na seção
de costura, na sapataria e na barbearia, não deixava de
disponibilizá-los a outras seções, como a teatral, a musical e a
esportiva. Se analisarmos o patrimônio relativo à seção
musical, apresentado no relatório do diretor do Departamento
Nacional de Profilaxia da Lepra apresentado, veremos que
ela estava na lista daquelas que mais recebiam investimentos
(DANTAS, 1946). Esses investimentos eram aplicados na
compra de instrumentos musicais e uniformes às bandas que
se formaram dentro do asilo, como Ases da Melodia, Pequenas
do Barulho e Tupinambás (ARAÚJO, 1946).
Embora a atividade industrial não tenha sido referenciada
no movimento financeiro da Caixa Beneficente expresso no
relatório, esta também esteve integrada ao órgão, mostrando-
se bastante diversificada. No ramo da indústria eram
produzidos fumo em corda, farinha, café em pó, massa de
tomate, tijolos, doces, etc. (DANTAS, 1946).
Ainda que os alimentos produzidos dentro do Santa Teresa
tivessem por objetivo garantir a autossustentação do asilo,
não era raro que alguns produtos fossem comercializados fora
do ambiente hospitalar. Esses produtos, no entanto, não
podiam ser aqueles feitos pelos enfermos e caracterizados
diretamente como fonte de alimentação.
Tinha engenho de farinha, não é?! Então, faziam farinha, faziam
farinha. Tinha torrefação de café. Moíam o café também. Tinha
padaria. Na padaria eu trabalhei. Nós fazíamos pão. [...] Era
para o nosso consumo aqui, né?! [...] Criava porco, vendia
para fora. Criava galinha, vendia para fora. Essas coisas assim
a gente podia negociar. Essas coisas, tudo isso podia negociar.
Só não podia vender pão, né?!, porque passava pelas mãos da
190|Débora Michels Mattos

gente. Naquela época era triste, né?! Mas galinha, porco, essas
coisas assim podia vender. [...] Tinha uma olaria. Fazia tijolo,
né?!, tijolo. Vendia tijolo pra fora também (Depoimento de GB.
22 jan. 2002).
Na pequena cidade à parte em que se constituiu o Hospital
Colônia Santa Teresa, o enfermo se configurou morador sujeito
às normas, regras e leis organizacionais relativas àquele lugar.
O asilo institucional a que foi submetido e os preceitos
idealizados para que o enfermo o observasse como um lugar
perfeito para se viver vislumbraram a criação de órgãos a fim
de garantir os direitos e os deveres dos que ali residiam. Assim
nasceu a Administração Sub-Distrital, pelo Decreto de Lei nº
1.276, de 09 de fevereiro de 1945 (ESTADO DE SANTA
CATARINA, 1946). De acordo com o decreto a criação do
Sub-Distrito tinha como objetivo atender aos internos do
Hospital Colônia Santa Teresa dos pontos de vista civil, criminal
e jurídico, uma vez que o acesso a esse instrumento havia
sido vetado em face do alijamento compulsório. Sendo assim,
o Sub-Distrito Colônia Santa Teresa, ligado ao Distrito de São
Pedro de Alcântara, localizado na comarca de São José, foi
composto de dois juízes de paz e um escrivão.
Aos juízes de paz competia o exercício das funções inerentes
à autoridade policial, como flagrantes e exames de corpo
delito, prisão, nomeação circunstancial de auxiliares (tradutor,
intérprete, perito e oficial de justiça), cumprimento de
mandados e precatórias, tomada de depoimentos, arrecadação
e acautelação de bens de ausentes, aplicação de penalidades
prescritas. Além disso, realização de casamentos e qualquer
atribuição relacionada por lei ao cargo de juiz de paz.
Ao escrivão competia funcionar nos processos realizados
pelo juiz e exercer funções relativas à oficialização dos registros
civis de pessoas físicas, jurídicas, de títulos e documentos, de
policiais e de tabelionato, ficando a seu cargo o desempenho
de todas as funções relativas ao escrivão de paz e geral
(ESTADO DE SANTA CATARINA, 1946).
Conforme o Decreto de Lei nº 1.276, embora as atividades
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 191

desenvolvidas pelos escrivães nomeados lhes conferissem


poderes ao exercício de todas as atividades competentes ao
respectivo cargo em distritos comuns, os direitos relacionados
a tais funções, semelhante àqueles institucionalizados na
sociedade sadia, não eram, em sua totalidade, compreendidos
da mesma forma. Ao mesmo tempo em que havia concessão
ao licenciamento por motivos de saúde, no âmbito da
aposentadoria o escrivão doente era destituído desse benefício.
Art. 9. – O escrivão de paz da Colônia Santa Teresa não tem
direito a aposentadoria, mas, o juízo do Chefe do Poder
Executivo, poder-lhe-á ser concedida licença para tratamento
de saúde, por moléstia intercorrente ou acidente (ESTADO DE
SANTA CATARINA, 1946).
A Administração Sub-Distrital se constituía, assim, em mais
um elemento de legitimação do sistema de exclusão por
inclusão enfatizado por Foucault, em que o enfermo, excluído
da vida em sociedade por intermédio de um aparato
institucional regulador, normatizador e disciplinar, era incluído
no contexto da ordem a fim de garantir o bem-estar de toda
uma coletividade (FOUCAULT, 2001).
A criação de órgãos dentro do asilo tinha por meta reforçar
esse aparato idealizado. Sua concretização se dava através
dos subsídios que o Estado concedia à edificação dos
instrumentos necessários ao eficaz estabelecimento desse
mundo à parte. Restrita ao cotidiano estabelecido dentro da
instituição, a vida do enfermo foi regulamentada de forma a
impedir o seu contato com o universo fora do ambiente
hospitalar. Sendo assim, àquelas questões em que se
configurava necessária a comunicação extra-asilar, ao diretor
ou administrador do asilo foi imputada a tarefa de intermediar.
No âmbito da Administração Sub-Distrital, o artigo 10, do
Decreto de Lei nº 1.276, assim prescrevia:
Art. 10. – Toda comunicação das autoridades distritais, com
pessoas que não sejam internadas na Colônia Santa Teresa,
far-se-á por intermédio da administração desta, a qual
192|Débora Michels Mattos

incumbem, outrossim, a expedição e recebimento da


correspondência do Juízo e da escrevania de par do distrito
(ESTADO DE SANTA CATARINA, 1946).
Mas a intermediação do contato do enfermo com o mundo
exterior não esteve restrita às prescrições relativas ao
funcionamento dos órgãos públicos criados dentro do Santa
Teresa. Ela se fez, também, no campo do privado, à medida
em que estar ciente das atitudes, dos pensamentos individuais
e das particularidades dos internos se configurava fundamental
ao exercício do controle a ser estabelecido sobre eles, além
de se constituir em prática profilática. Exemplo disso pode
ser verificado através da desinfecção, violação e censura das
correspondências emitidas e recebidas pelos internos.
Tinha correio aqui. Então as cartas saíam e eram desinfetadas
ali fora, não é?! Uma estufa. Tinha uma estufa. Enfiava a carta
lá dentro. Eu mandava para a minha família, né?!, mas tinha
que passar na estufa para depois seguir. Era tudo desinfetado.
Era carta, era dinheiro, era tudo, tudo desinfetado. Naquela época
era brabo [...] (Depoimento de GB. 22 jan. 2002).
De fato, todas as correspondências eram introduzidas, na
zona doente, em uma caixa dos Correios e Telégrafos localizada
próxima à portaria. Um funcionário interno se incumbia de
recolhê-las e enviá-las para a desinfecção. Após serem desinfetadas
iam para o prédio da zona intermediária onde funcionava a
administração do asilo. Nesse local elas eram abertas e
inspecionadas para que fossem detectados os doentes que se
mostravam avessos ao sistema. Quando alguma irregularidade
era constatada pelo diretor, as cartas ficavam retidas ou acabavam
queimadas junto com outros materiais.
Do muro pra cá ninguém passava. Naquele tempo nós éramos
discriminados lá e cá (eu coloco isso na minha oração): lá
onde nascemos e fomos criados, discriminado lá e cá. Aqui
eles pegavam tudo com papel: as cartas, o dinheiro, qualquer
coisa ia pra desinfecção. Queimavam muitas cartas. Naquele
tempo eu era novo e já sentia uma dor no coração de ser tão
discriminado assim (Depoimento de MC. 12 jan. 2000).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 193

Monteiro nos coloca ter sido a violação e a censura das


cartas práticas constantes nos asilos de São Paulo. Embora
ilícita do ponto de vista penal, sendo questionada por aqueles
que se detiveram a defender o direito dos doentes, como o
médico Floriano Lemos, “[...] passou a ser norma dentro da
instituição, sabida por todos e assumida pela direção”
(MONTEIRO, 1995, p. 310). Segundo a autora essa norma
também se estabeleceu em outros Estados brasileiros. Em
Santa Catarina, por exemplo, o Serviço Sanitário fez acordo
com o Departamento de Profilaxia da Lepra de São Paulo no
sentido de intercambiar as correspondências censuradas
estabelecidas entre os internos das instituições asilares desses
locais. O objetivo do acordo era o de manter a direção dos
hospitais alerta a todos os passos do enfermo que pudessem
colocar em risco a ordem estabelecida. Exemplo disso pode
ser verificado em ofício que foi enviado pelo diretor da Colônia
Santa Teresa à direção da Colônia Santo Ângelo no ano de
1942, referenciado na obra de Monteiro (1995, p. 311):

Estado de Santa Catarina


Secretaria do Interior e Justiça
Departamento de Saúde Pública – Colônia Santa Teresa
Ofício nº. 85
Colônia Santa Teresa, 10 de abril de 1942.
Sr. Diretor

Passo às mãos de V.S. a cópia de uma carta remetida por


uma internada na Colônia Santo Ângelo, para seu esposo, ora
internado nesta Colônia. Em face do acordo firmado, com V.S.
no sentido de maior colaboração e estreitamento das relações
entre os nossos serviços, julguei oportuno iniciar o intercâmbio
combinado, com o envio da cópia que segue junto, cujo original
foi interceptado pela nossa censura. Servindo-me de ensejo,
apresento a V.S. os meus protestos de alta estima e distinta
consideração.
(a) Dr. Tolentino de Carvalho
Diretor
194|Débora Michels Mattos

Nos inúmeros hospitais colônias do Brasil, invadir a


privacidade dos internos representava mais um instrumento
de garantia à eficácia do mecanismo de profilaxia. Aliados a
essa prática, outros dispositivos foram utilizados como forma
de impedir a exacerbação de questionamentos e assegurar a
fixação das regras impostas à conformidade. Tais dispositivos
se fizeram ora de forma explicita, através da vigilância e das
punições estabelecidas àqueles que burlavam o sistema, ora
de forma mascarada, por intermédio de atividades e de
discursos que referenciavam o asilo como o melhor lugar de
se viver.

O confinamento

A vida dentro do Santa Teresa foi dirigida nos seus mais


diferentes aspectos e desde o momento do internamento do
enfermo. O cotidiano asilar, tal como foi almejado pelo Serviço
de Profilaxia da Lepra de Santa Catarina, deveria ser
amparado por dispositivos específicos que objetivassem o bom
funcionamento do lugar. Para que esse bom funcionamento
pudesse ser estabelecido, constituía-se imprescindível obter a
conformação, a aceitação e a sujeição dos doentes internados.
Nesse sentido o aparato edificado e a sua lógica organizacional
deveriam seduzir o enfermo ao universo a que estava sendo
submetido.
Com a promessa de tratamento, de que no asilo os doentes
seriam providos de tudo o que precisassem, de que lá não
haveria campo para a discriminação por serem todos
considerados iguais, dava-se o primeiro passo à concretização
do plano para se combater a doença e o doente. Esse discurso,
enfatizando o lado positivo do confinamento compulsório,
achava-se presente na fala dos profissionais da saúde, que se
regozijavam do mecanismo de profilaxia instituído. Mas foi
ele, também, salientado na imprensa, através dos informes
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 195

veiculados nos principais jornais da região.


A cidade dos leprosos de Santa Catarina, cuja pedra
fundamental foi lançada em 1936, pelo interventor Nerêu
Ramos, ergueu-se a poucos quilômetros de Florianópolis. Com
suas ruas arborizadas, inúmeras casas confortáveis e uniformes,
circundadas por pitorescas paisagens, proporciona aos lázaros
tratamento que, se não os cura completamente, lhes compõe
as deformações da lepra (A GAZETA, 27 fev. 1941).
Assim os enfermos foram confinados compulsoriamente
no Hospital Colônia Santa Teresa entre os anos de 1940 e
1950. Após a confirmação da doença os doentes eram
afastados da sociedade sadia, sendo levados pelo Serviço de
Profilaxia da Lepra à instituição asilar, com nenhum ou o
mínimo de pertences possível. Essa rigidez em relação aos
objetos pessoais do enfermo esteve, em muito, ligada aos
achismos populares que foram estabelecidos acerca da
doença. Com o passar do tempo ela foi passível de
afrouxamento. Em Santa Catarina isso ocorreu em fins da
década de 40, quando a austeridade do confinamento foi
perdendo força para novas descobertas feitas no campo da
enfermidade em que as sulfonas se caracterizaram principais.
No entanto, sob a tônica da profilaxia, o serviço oficial
enfatizava que embora o enfermo fosse destituído de parte
de seus pertences, ao ser introduzido na instituição asilar nada
faltaria à promoção do seu bem-estar cotidiano. Sobre isso o
egresso BP se pronunciou:
Olha, eles diziam que levasse alguma coisa. O menos que
pudesse, porque realmente lá tinha de tudo. E nisso até não se
pode dizer o contrário, porque assim que o paciente chegava,
naquela época lá, todos, sem distinção, tudo o que recebiam
era novo, nada era usado. Em primeiro lugar era cama limpinha,
colchão novo, lençóis, cobertores, tudo [...]. Depois pasta de
dente, escova, e uma caneca, um copo, uma xícara, esses
pertences assim. E geralmente já chegava, no dia ou no outro,
já chegava alguma fazenda, aquela coisa de brim para que
fosse feito alguma roupa [...] (Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
196|Débora Michels Mattos

Para aquelas pessoas que vieram das regiões mais afastadas


da capital Florianópolis –trabalhadores rurais que residiam
em locais onde os serviços de saúde eram extremamente
precários, pobres, desempregados, muitos deles isolados em
lugares impróprios em face dos estigmas, do medo e do
preconceito que a doença lhes imputava, desprovidos de
alimentação e abrigo, do contato com outras pessoas, de tudo
o que se observava da vida em sociedade –, a realidade do
asilo, tal como ela foi apresentada, tinha, de fato, um certo
poder de sedução. Mas para aqueles que foram retirados do
seio da família, muitos deles ainda jovens, cientes do
segregacionismo e cheios de incertezas quanto ao seu próprio
destino, o pânico de ser asilado sobrepujava qualquer
instrumento que vislumbrasse persuadir o enfermo de sua
nova realidade.
Boatos diversos auxiliavam a exacerbação dos medos em
relação ao internamento institucional, como os que afirmavam
existir no Santa Teresa um forno incinerador àquelas pessoas
que se encontravam em um estágio mais avançado da doença.
O depoimento que nos foi concedido pelo egresso BP, acerca
de sua internação, nos serve de exemplo:
Quase por aqueles dias (sempre tem alguma pessoa que é mais
espontânea e deve ajudar em deixar a gente com o espírito um
pouco mais conturbado), alguém chegou e disse que uma pessoa
que tinha trabalhado na construção de Santa Teresa (ele falou
com o pedreiro que lá tinha trabalhado), e sabendo que a gente,
que algumas pessoas estavam sendo recolhidas lá, e que lá
tinha sido feito um, tinha um forno especial, que aquelas pessoas
que tinham a causa muito adiantada demais, eram queimadas
vivas ali. Então é lógico que isso causou um impacto muito
grande. (...) Então, a primeira impressão, é lógico que já cheguei
amedrontado. Então, quando cheguei à noite, é lógico que de
sobressalto. As pessoas encarregadas, que eram guardas das
pessoas doentes, é lógico que os homens iam para um lado e
as mulheres, o sexo feminino para o outro. E assim foi, a minha
irmã para um lado e eu para o outro. Aquilo foi uma noite de
suplício porque como é que a gente ia conciliar o sono, não é?
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 197

Via que estava num mundo totalmente diferente. Aí conforme


o que falavam antes, já se sabia que na época não se esperava
retorno. Sabia que ali ou iria, provavelmente, quem sabe essa
minha irmã (eu pensava durante a noite toda), quem sabe se
como ela tinha um pouco mais aparente o mal, talvez ela já
estivesse sendo encaminhada realmente para o dito forno (eu
imaginando a noite toda) (Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
Esses boatos transformavam os primeiros dias dos internos
em longos momentos de ansiedade, uma vez que eles só iriam
se dissipar com o passar das horas, do tempo, à medida que
o enfermo tomasse conhecimento de tudo o que era relativo
ao asilo, das pessoas, das regras, do cotidiano, como sugere o
egresso BP, dando continuidade ao depoimento acima:
E isso só foi dissipar as dúvidas quando chegou pela manhã,
que lá pelas nove horas eu tive contato com ela. A noite toda,
até, teve um jovem, também da época, que estava lá internado,
e lá por umas tantas horas da noite ele ficou conversando comigo
a noite toda, já dizendo alguma coisa. Aí eu comecei a notar
que, que não era tão feio assim. Agora não era tão feio assim
num sentido, mas muito mais feio no outro, porque logo a
gente começou a notar que pensar em retorno, a não ser uma
fuga, era difícil imaginar (Depoimento de BP. 18 jul 2002).
Embora a estrutura de alijamento montada não fosse tão
ruim quanto os boatos levavam a crer, tampouco era o paraíso
propagandeado pelo Serviço de Profilaxia da Lepra e a
imprensa, uma vez que destituía os indivíduos do seu direito
de ir e vir.
Ao entrar no Santa Teresa os enfermos eram, em geral,
recebidos pelas irmãs da Congregação Franciscana e pelo
médico diretor, que forneciam as primeiras orientações em
relação às acomodações a serem ocupadas pelos doentes,
além de disponibilizarem alguns materiais de caráter pessoal,
como roupas de cama e banho, vestuário em geral e calçados.
Detalhes de primeira ordem também eram salientados nesse
momento, como horário de alimentação e recolhimento
noturno, além de algumas regras básicas de convívio social,
198|Débora Michels Mattos

como respeito mútuo, etc.


Um interno no Hospital Santa Teresa se constituía em mais
um enfermo fichado no Serviço de Profilaxia da Lepra de
Santa Catarina que era tratado de acordo com as diretrizes
profiláticas instituídas na região. Todos os dados que haviam
sido colhidos acerca do enfermo em relação a sua enfermidade
eram integrados ao prontuário clínico do interno disposto na
instituição. Esse prontuário especificava, desde a origem da
pessoa, sua procedência, até o possível contato com o foco
que o contagiou. Além dos dados pessoais, o documento
especificava o quadro clínico da doença, se contagiosa ou
não e, em desenho corpóreo, as lesões que o enfermo
apresentava no momento de sua detecção. Outras
especificidades compunham a ficha do interno, como
baciloscopia, medicamentos prescritos, possíveis intervenções
de âmbito cirúrgico, etc. Além disso informações sobre o
comportamento individual do enfermo no viver cotidiano da
instituição, caracterizando-se, o prontuário, um importante
dossiê.
Em relação ao tratamento clínico, não havia na época
medicação eficaz no combate à doença. Os remédios utilizados
no âmbito da enfermidade estiveram restritos aos derivados
do chalmoogra, como foi salientado no capítulo anterior. De
acordo com o plano terapêutico que foi traçado pela direção,
todo o paciente internado era obrigado a receber o tratamento
antileprótico, sendo administrado um mês após o
internamento do enfermo. Esse critério tinha por fundamento
algumas justificativas, como sugere o relatório de inspeção
apresentado pelo diretor do Serviço Nacional de Lepra:
a) adaptação ao ambiente, clima, alimentação, disciplina.

b) durante os 30 dias iniciais é o doente observado, com tomada


de peso quinzenal, tratamento estimulante e que seja indicada
antes da medicação antiléprica (DANTAS, 1946, p. 18).
Ao contrário do que ocorreu nas grandes instituições
asilares paulistas, que acabaram se transformando em centros
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 199

de pesquisa onde foram desenvolvidos alguns experimentos


com diferentes medicações a partir de interesses
particularizados, o Santa Teresa se restringiu à utilização dos
derivados de chalmoogra no tratamento do enfermo por ser
este o medicamento mais veementemente estudado no
combate à doença e defendido pelo serviço oficial.
Monteiro nos coloca que, de fato, algumas instituições
asilares de São Paulo, como o Padre Bento e o Santo Ângelo,
foram palco de estudos que vislumbravam a descoberta de
medicamentos eficazes no combate à hanseníase. Alguns
desses estudos, no entanto, iam contra as diretrizes do Serviço
de Profilaxia daquele Estado, sendo vetados por este
departamento, a exemplo de uma experiência desenvolvida
por José Maria Gomes com o beta-caroteno (MONTEIRO,
1995). Logicamente, ao mesmo tempo que alguns
profissionais da medicina se empenhavam na busca pela
solução do problema da enfermidade sob a ótica da
curabilidade, outros viviam da estrutura isolacionista,
principalmente, aquela relativa ao serviço oficial do Estado
de São Paulo, serviço este que como vimos, acabou se
caracterizando modelo de profilaxia para o Brasil.
Embora Santa Catarina fosse dotada de profissionais
especializados no ramo da leprologia, o Serviço de Profilaxia
da Lepra não se deteve à realização de pesquisas e
experimentos que objetivassem a cura para a doença. Suas
atividades se restringiram às que eram veiculadas como mais
eficazes pelo Departamento Nacional de Lepra, que por sua
vez se baseava na terapêutica defendida pelos porta-vozes da
política de isolamento paulista.
Isso não quer dizer que pesquisa e experiência significassem
resultados eficazes no combate à doença, ainda que seus
propósitos almejassem esse fim. Em São Paulo, por exemplo,
graves efeitos colaterais foram observados nos pacientes que
se submeteram aos tratamentos experimentais, como
erupções cutâneas e convulsões. Contudo, a terapêutica oficial
não se apresentava de maneira diferente, podendo até mesmo
200|Débora Michels Mattos

levar à morte.
As experiências com o óleo de chalmoogra foram muitas e se
desenvolveram praticamente por duas décadas, durante as quais
acreditou-se ser esse o caminho que deveria ser percorrido em
busca da cura. Esse método acarretava uma série de efeitos
colaterais, tais como diarréia intensa e caquexia, que poderiam
levar a óbito (MONTEIRO, 1995, p. 304).
De acordo com a prática adotada em Santa Catarina, a
aplicação do chalmoogra era feita por via oral e injetável. As
administrações orais, subcutâneas e intramusculares eram
realizadas pelos internos do Hospital Santa Teresa, capacitados
para exercer a função de enfermeiros. As intramusculares
eram administradas pelos médicos que trabalhavam na
instituição, sendo elas a principal causa dos efeitos colaterais,
sobretudo as que deixavam marcas irreversíveis de sinalização
da doença.
Com agulhas curtíssimas para penetrar 1 mm sob a pele, levando
uma gotícula do medicamento, eram feitas fisgadas distantes 1
cm das outras sobre as máculas em atividades, ficando uma
“placa” rendada de furos de vários tamanhos, conforme a lesão,
indo ate 10 ou mais cm de diâmetro. Quando a mácula era
infiltrada, muito ativa e sensível, com em geral ocorria, o
paciente suportava momentos de dor, mas se submetia com
esperança vã de uma futura libertação. Com o tempo surgia
uma “placa” indelével, castanho escura, rendada, cicatricial,
que disfarçava a lesão, pois outras surgiam em outros pontos
da superfície cutânea e tudo recomeçava num ritmo trágico e
desgastante. Muitos diagnósticos retrospectivos foram feitos por
hansenologistas em egressos ou evadidos de colônias com base
nessas clássicas cicatrizes que tinha o efeito desvendador das
fácies leoninas (SÃO THIAGO, 1992, p. 8-9. mimeo).
Esse tratamento, como qualquer outro que fosse prescrito
pelo serviço profilático, constituía-se obrigatório, mesmo com
seus efeitos contrários. A não aceitação do tratamento só era
permitida mediante a assinatura de um termo de
responsabilidade que eximia o Hospital Colônia de suas
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 201

implicações (DANTAS, 1946), pelo menos, sob um prisma


mais formal, pois as inúmeras fugas que se faziam recorrentes
também acabavam se configurando instrumentos de negação
à terapêutica estabelecida.
Embora a descoberta das sulfonas tenha ocorrido no início
dos anos 40, não existem dados disponíveis quanto à sua
utilização sistemática em Santa Catarina. De acordo com o
relatório Histórico da Instituição, sua aplicação foi iniciada na
década de 60 (HOSPITAL, 2001. mimeo). No entanto,
conforme depoimentos de egressos que participaram do
regime de confinamento, em fins da década de 40 essa
medicação já era utilizada, ainda que muitos não tivessem
acesso a ela.
O que eu tenho lembrança, a diasona chegou primeiro lá pra
três pessoas. Uma que foi um cunhado meu que se casou com
a minha irmã. Ele era novo ainda e já tinha sido quase um dos
primeiros a internar também. Era muito, assim, a situação dele
devido à doença [...] e depois, como eu disse, começou a vir
aquelas damas da sociedade que se diziam do Educandário,
começaram a mandar para aquelas meninas que tinham estado
lá no Educandário [...]. E quando eu tomei conhecimento de
campanhas esclarecedoras da doença foi já no início do
medicamento, entre 48, 49 [...] (Depoimento de BP. 18 jul.
2002).
De fato, o uso sistemático das sulfonas ou diasonas (como
por muitos era chamada), imprescindível à obtenção de
resultados eficazes no combate à enfermidade, constituiu-se
de forma morosa no Brasil, sendo a princípio subsidiado pela
iniciativa privada, em geral as Sociedades de Assistência aos
Lázaros, que destinavam os medicamentos às crianças sadias
que foram internadas nos preventórios brasileiros e que
acabaram, posteriormente, desenvolvendo a doença.
Internos das colônias dotados de melhor situação financeira
também acabavam comprando o medicamento, que se
transformava em privilégio de uns e esperança de outros. Da
escassez medicamentosa à sua abundância no Hospital Santa
202|Débora Michels Mattos

Teresa, uma série de episódios ocorreram. Entre eles, a


administração de elevadas doses de comprimidos sulfô-
nicos, conforme terapia prescrita. Essa terapia teve como
resultado alguns desdobramentos. Se por um lado
proporcionou a cura para alguns enfermos submetidos a
ela, por outro acarretou sérios problemas de saúde aos
que não conseguiram suportá-la.
Olha, o tratamento, eu tenho lembrança como hoje. Tudo tem
as suas partes boas e as suas partes negativas, ainda que a
intenção seja boa. Era para tomar dois, três comprimidos de
diasona por dia, no máximo três, e o médico [...], achando
que ia fazer uma cura mais rápida, um tipo de experiência,
passou a dar para os pacientes até dezoito, quase até vinte e
quatro meses, durante vinte e quatro horas. Além que ele olhava
os pacientes dioturnamente, ficava até na cabeceira, trazia
muitos outros remédios, assim, que ajudasse a não atacar o
fígado, os rins e coisa outra. Mas realmente isso aí teve dois
pólos, o positivo e o negativo. Alguns conseguiram realmente
uma cura rápida, e outros, infelizmente, não resistiram a pressão
do remédio no organismo e foram a óbito. Eu posso dizer porque
naquela época eu já trabalhava de enfermeiro eu mesmo cheguei
a tomar trinta e oito dias, é, trinta e oito dias consecutivos de
doze diasonas. A gente parecia assim que estava em delírio.
Parecia que não estava pisando no chão, assim (Depoimento
de BP. 18 jul. 2002).

O cotidiano asilar

O cotidiano dentro do Santa Teresa foi estabelecido a partir


das normas impostas pela direção, dos instrumentos de
persuasão aos enfermos e dos meios que eles próprios
encontraram para o curso do seu dia a dia.
Em relação à imposição das normas e à configuração dos
instrumentos de persuasão, as figuras do diretor e dos
representantes da Igreja Católica que residiram no asilo se
constituíram imprescindíveis, uma vez que eram elas as
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 203

encarregadas de articular o bom funcionamento da instituição


e a boa conduta de seus residentes.
Ao diretor coube a tarefa do comando, do gerenciamento
total e irrestrito a fim de serem atendidas as funções de
profilaxia que o estabelecimento tinha por objetivo
desempenhar. Aos membros da Igreja coube a tarefa de
formar a moral, de padronizar as condutas, de estabelecer
um espírito coletivo de conformidade com base nos princípios
dos postulados cristãos.
Assim regras eram ditadas, comportamentos padronizados
e o cotidiano prescrito, por intermédio de uma estrutura dotada
de elementos indispensáveis à vida em sociedade que tinham
por meta matizar o universo de exclusão a que o enfermo
havia sido submetido.
Santa Teresa é uma cidade como as outras, onde o trabalho
constitui a máxima preocupação de todos, cultiva-se
intensamente a vida social, bem como as artes, a literatura e a
religião, como se faz em qualquer cidade do mundo, sem tirar
coisa alguma (MESENTIER, 1961).
Um dos principais elementos que deram ao Hospital Santa
Teresa esse caráter citadino aprazível foi o desenvolvimento e
a promoção de atividades de cunho socializante, como festas,
eventos, manifestações culturais, esporte, trabalho. Na
promoção dessas atividades a figura do médico Adalberto
Tolentino de Carvalho se destacou.
De fato, como sugerem os depoimentos orais de egressos
submetidos ao regime de confinamento, ainda que sua
administração seja lembrada pela forte rigidez, foi ele o
principal responsável pela promoção de eventos recreativos
na instituição que deram a ela esse caráter aprazível.
Quando eu cheguei aqui tinha cheiro de tinta. No tempo do Dr.
Tolentino eles deixavam este hospital lindo de ver, todo florido.
Mas a ordem era severa, ninguém podia namorar. Se namorasse
ia para a cadeia. Um ano, um ano e meio. Casais solteiros,
sim, até solteirões. E quando naquele tempo o cinema, depois
204|Débora Michels Mattos

a tela ficou maior, o cinema que tinha era ditado e falado e às


três horas tinha cinema. Tinha sessão de noite também. Nós,
aqui no Santa Teresa, passava primeiro aqui do que na cidade,
na capital. Primeiro passava aqui e depois passava lá. Ele tinha
muito cartaz, esse diretor aqui, o Dr. Tolentino (Depoimento de
MC. 12 jan. 2000).
Segundo AC, Tolentino de Carvalho acreditava realmente
ser o sistema de isolamento compulsório uma medida eficaz
no combate à doença naquele momento. Nesse sentido e,
procurando amenizar a situação dos internos em face da
política segregacionista, idealizou uma estrutura que
comportasse elementos indispensáveis à vida em sociedade
sob o âmbito do entretenimento como forma de garantir
momentos de felicidade aos enfermos:
Agora, assim, olhando lá dentro, era uma cidade perfeitamente
(...). Tinha tudo, tudo o que se pode imaginar tinha. Eu acho
que ao mesmo tempo em que era dada uma dureza muito
grande, era uma rigidez muito grande aquilo tudo, eu acho que
tem pessoas que passaram até a ter uma vida melhor lá dentro.
Porque eu digo, [...] tinha escola de costura, eles tinham futebol,
tinham um time formado [...].

Olha, eu assisti Bibi Ferreira dando espetáculo lá. Procópio


Ferreira, Bibi Ferreira. Levava lá, fazia uma coisinha pequena,
mas fazia (Depoimento de AC. 13 jul. 2002).
Assim, atividades de diversas naturezas eram realizadas,
como bailes dançantes nos finais de semana, sessões de cinema
durante a noite, apresentações dos grupos musicais que se
formavam na instituição, articulação de festas temáticas como
de São João e Carnaval, composição de peças teatrais,
organização de times de futebol, pescaria, caçada, sessões de
leitura e jogos variados. Para tanto, o diretor conseguia o
material necessário à realização dessas atividades através de
contatos com empresas, entidades assistenciais e membros
da sociedade em geral que não relutavam em colaborar com
o aperfeiçoamento da “cidade dos lázaros”.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 205

Olha, até teve época de grandes carnavais. A gente só sabia


que, uma hipótese assim, está se aproximando o carnaval, aí o
diretor perguntava quantas pessoas que queriam fazer algum
bloco, queriam fazer isso ou aquilo. Então cada um só passava
a relação do material que queria e se sabia que
antecipadamente ali estava. E naquela época era tudo com
fartura, não tinha nada assim que faltasse, vinha mesmo [...]
(Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
Ainda que o asilo estivesse dividido em zonas de
isolamento, sendo a ala “C” voltada à circulação exclusiva
dos internos e ao atendimento clínico do enfermo, não foi
raro a participação do médico na articulação das atividades
de lazer.
Falando, falando assim, uma coisa eu conheci das poucas vezes,
ele, todas as festas que tinham, desde carnaval, futebol, tudo
o que fosse, ele estava ali presente assistindo ali. Não era
daquele que dava e saía não. Ele fazia. O próprio cinema ele
estava lá assistindo, ele fazia força de trazer. Os melhores filmes
que tinham na cidade muitas vezes antes de alguém já ter
assistido lá na capital, já os doentes estavam vendo ali em
primeiro lugar (Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
De fato, como sugere AC, além de articular o subsídio dos
instrumentos necessários ao entretenimento, Tolentino de
Carvalho participava ativamente das atividades que eram
desenvolvidas dentro da instituição, como a projeção de filmes
nas sessões de cinema, a fiscalização dos jogos de futebol, o
acompanhamento das práticas de escotismo, etc.:
Ele apitava o jogo. Era um homem grande, gordo daquele jeito,
mas ele tinha uma resistência que ele corria o jogo inteiro.

[...] Tinha cinema. Os filmes de Florianópolis eram levados


para lá. Ele passava os filmes. Ele teve que aprender aquilo
tudo, [...] aquilo era duas ou três vezes por semana [...]
(Depoimento de AC. 13 jul. 2002).
Embora o contato do interno com o universo fora do
ambiente asilar não fosse permitido, a direção se incumbia de
206|Débora Michels Mattos

possibilitar o encontro com enfermos de outras instituições


asilares, principalmente as do Rio Grande do Sul e Paraná,
através de excursões e eventos variados que se faziam
recorrentes nesses estabelecimentos. Assim, os grupos Ases
da Melodia, Tupinambás e Pequenas do Barulho conheceram
a Colônia de São Roque, no Estado do Paraná, em face de
um festival de música realizado (REVISTA DE COMBATE À
LEPRA, 1944). Da mesma forma os quadros de futebol União,
Flamengo e Vitória, pertencentes ao Santa Teresa, escolhiam
os melhores jogadores desses times a fim de estabelecer
torneios com seleções das colônias do sul do Brasil dentro ou
fora do Estado catarinense.
Eu era do Flamengo, mas aí tinha três quadros, Flamengo,
União e Vitória. Então desses três era feita uma seleção para ir
para o Paraná, Rio Grande do Sul, ou que eles vinham jogar.
Olha, então nós éramos tratados quase igual a esse pessoal da
seleção brasileira. O Dr. Tolentino tinha algumas coisas que a
gente não pode esquecer. Ele podia ser aquele homem cheio de
orgulho, mas ele tinha vontade de fazer, né?!, então era assim
(Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
Às crianças e adolescentes asilados, atividades educacionais
e brincadeiras de diversas naturezas eram promovidas por
membros da Congregação Franciscana e por doentes de
ambos os sexos designados ao exercício dessa função. Ao trato
diário com as crianças, internos mais velhos também eram
designados, uma vez que grande parte deles já haviam
constituído família, tendo maior facilidade nas lides. No que
concerne à educação, o critério utilizado se detinha à formação
intelectual do interno, sendo escolhidos aqueles que possuíam
maior grau de escolaridade ou saber.
De igual forma, procurava-se criar à criança asilada um
ambiente agradável que suplantasse a situação sui generis à
qual foi submetida. Nesse sentido, aqueles momentos que
culturalmente faziam parte do universo infantil não eram
postos de lado, como datas comemorativas de Páscoa e Natal.
Para o festejo dessas datas a Sociedade de Assistência aos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 207

Lázaros assumiu papel relevante, uma vez que suas atividades


já estavam direcionadas à questão da infância. Embora voltada
de forma mais veemente ao problema da prole sadia do
enfermo, a Sociedade de Assistência aos Lázaros também
destinava parte de seu tempo ao portador da doença,
sobretudo, aqueles de menor idade, conforme demonstra o
Relatório de 1941:
Na manhã do dia 24 de dezembro, as sras. Beatriz Pederneiras
Ramos, Carmen L. Colônia, Otília P. Blum, Maria Madalena
Moura Ferro, Ida Simone e Nilza Linhares, acompanhadas pelo
eminente leprólogo, Dr. Adalberto Tolentino de Carvalho, M.
D. Diretor da Colônia “Santa Teresa”, visitaram os doentes
internos naquela casa de saúde. A cada doente levaram uma
palavra de carinho e conforto. Foi-lhes oferecido uma mesa de
doces, bem assim, presentes, fumo e brinquedos para as crianças
(SOCIEDADE, 1941, p. 13).
Ao contrário do que ocorreu no Estado de São Paulo, em
que a participação das sociedades benemerentes, de acordo
com Monteiro (MONTEIRO, 1995), foram alijadas do trato
com os enfermos pelo serviço oficial, em Santa Catarina isso
não aconteceu. No Estado catarinense elas foram muito mais
vistas como instrumentos de apoio ao regime isolacionista,
fortalecendo a estrutura montada a partir dos auxílios que
prestava.
Dessa estrutura organizacional emergiu uma sociedade à
parte, dotada de características específicas do universo asilar
como forma de garantir a sua manutenção. Dessa estrutura
organizacional os enfermos foram, paulatinamente,
estabelecendo o seu cotidiano. A partir do trabalho, do lazer,
dos relacionamentos de amizade e dos possíveis
relacionamentos pessoais que se faziam, os sentimentos de
rejeição e de exclusão eram, aos poucos, amainados. Contudo
esse apaziguamento sentimental não se constituía a todos os
internados, resultando em fugas, atitudes de rebeldia e tristeza
coletiva.
208|Débora Michels Mattos

Muitos se deprimiam logo ao entrar naquela muralha disfarçada


e enfeitada de natureza verde, e permaneciam tristes e
encorujados para sempre, como pássaros cativos cercados de
apetitosas guloseimas. Numerosos não se adaptavam de modo
algum, passando a planejar uma maneira de voltar aos pagos.
A saudade do lar da família, dos pais, parentes e amigos e da
rotina de vida e de trabalho a que se apegaram desde a infância,
não consentia que o espírito se distraísse com o que lhe ofereciam
no cativeiro (SÃO THIAGO, 1996, p. 112-113).
Em relação à efetivação de laços conjugais dentro dos
estabelecimentos asilares, durante algum tempo se procurou
evitar que eles ocorressem, como foi salientado no Capítulo
2 desta dissertação. Contudo, a aceitação do matrimônio entre
os asilados acabou ocorrendo, uma vez que a sua legalização
se configurava instrumento de controle sobre os enfermos,
evitando a promiscuidade e a procriação desordenada.
De fato, como afirma Gomide (1991), ainda que os
princípios eugenistas observassem no matrimônio entre os
doentes um obstáculo ao aperfeiçoamento da raça, sua
legalização, de acordo com Ernani Agrícola, deveria ser
compreendida como mecanismo de caráter profilático.
A permissão para o casamento é uma medida de necessidade
e traz maiores convenientes do que inconvenientes: fixa mais o
doente no leprosário, resolve o problema sexual, torna suave a
vida no estabelecimento e proporciona aos casais um auxílio
mútuo (AGRÍCOLA, 1944. Apud GOMIDE, 1991, p. 113-114).
Essas uniões conjugais, na Colônia Santa Teresa, passavam
pelo crivo das irmãs da Congregação Franciscana, assim como
também, por deferimento do diretor da instituição, que juntos
articulavam a obtenção do material necessário à realização
do casamento e à vida matrimonial.
Quando um rapaz gostava de uma moça, com que queria se
casar, então ele primeiro ia pedir para a Irmã de sua seção, e
em seguida para a irmã que trabalhava na seção das mulheres.
Quando havia consentimento, então, essas duas irmãs com a
irmã superiora e o diretor tinham que arrumar uma casinha e o
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 209

enxoval (CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DE


SÃO JOSÉ, [s.d.]).
Embora o casamento fosse aceito, não havia indução ou
facilitação de relacionamentos pessoais, pois as regras impostas
àqueles que faziam parte do universo asilar acabavam
dificultando um encontro mais íntimo entre os internos. Assim,
nos momentos de reunião coletiva, como nas sessões de
cinema ou durante as refeições, tinha-se por norma a
separação dos sexos, e além disso, a constante vigia. De acordo
com o depoimento de um egresso do Santa Teresa, embora
os namoros fossem permitidos havia sempre a vigilância dos
guardas:
Olha, mas era com a polícia cuidando. Era proibido até
namorar, mas namorava, não é?! Escondido namorava. Mas
a polícia cuidando. A polícia que eu digo eram os guardas, não
é?! Porque os pacientes mesmos eram guardas.

[...] Depois do futebol a gente podia ir no cinema. Tinha o


cinema. [...] Namorava, namorava! Só que era um lá e outro
cá, não é?! Tinha a parte dos homens e a parte das mulheres.
[...] Só podia sentar junto quem era casado, não é?! Aí podia
sentar junto. Namorado não. Era lá e cá (Depoimento de GB.
22 jan. 2002).
De fato, os namoros aconteciam, mas sempre sob o olhar
do guarda e durante o horário estipulado. Após o término
desse horário os enfermos encarregados de vigilância
sinalizavam o fim do encontro com o soar de apitos e aqueles
que não respeitavam a sinalização ficavam sujeitos à
repreensão e a uma possível detenção.
A hora de a gente começar a namorar, nos dias de semana, e
para terminar, era através de apito [...]. Sempre estávamos sob a
mira de alguém, né?! O olho biônico estava sempre notando.
Qualquer coisinha já viu, né?! Aí era interessante. Aí já cadeia,
cadeia! Nessa época já cadeia! Não era tanto tempo, mas vinte e
quatro horas, três dias (Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
210|Débora Michels Mattos

Embora o namoro e a aceitação do casamento fossem


permitidos, salvo algumas restrições, sobretudo de caráter
religioso, alguns internos não podiam se unir em matrimônio
por já se encontrarem casados no momento do internamento.
A forçada separação a que muitos casais foram submetidos
quando o confinamento compulsório foi instituído, uma vez
que não foi raro o acometimento da enfermidade em apenas
um dos cônjuges, acabou desfazendo os laços matrimoniais
anteriores, procurando, o enfermo asilado, meios para a
constituição de novas relações. A legalização da separação
corpórea no âmbito do primeiro casamento se fazia, em alguns
casos, de maneira morosa, induzindo ao exercício de encontros
escusos entre os sexos.
Ali perto do campo, ali naquela parte daquele campo que está
lá hoje em dia, com aquele estado ali. Ali, beirando o rio,
aquilo ali tinha o apelido de “molha gato”. Ali que acontecia.
As fulanas saíam devagarzinho, atrás da moita, tapeando, iam
para lá, e os fulanos do mesmo jeito (Depoimento de BP. 18
jul. 2002).
Ainda que São Thiago tenha feito referência à pratica da
prostituição como resultado de um conjunto de situações de
caráter afetivo inerentes à situação dos enfermos (SÃO
THIAGO, 1996), não é possível saber se houve, de fato, dentro
do Hospital Santa Teresa, a prostituição, uma vez que ela pode
ter sido confundida com atividade sexual desregrada.
Das uniões legítimas que se estabeleceram muitas crianças
foram geradas, sendo que elas, ao nascer, eram retiradas do
contato materno e introduzidas na instituição para os filhos
sadios de enfermos. Durante os anos de 1940 a 1950, 59
recém-nascidos foram levados para o estabelecimento
preventorial.11 Em geral os partos eram feitos pelas irmãs da
Congregação Franciscana e pelas internas capacitadas para a
função de parteiras (CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS
FRANCISCANAS DE SÃO JOSÉ, [s.d.]).
Além de realizarem a tarefa de formação moral,
padronização das condutas e conformação espiritual, tarefa
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 211

essa auxiliada pelas figuras dos padres capelães que também


residiram no local, as irmãs franciscanas se detiveram ao
exercício de atividades gerais, tais como a coordenação da
limpeza, da higiene, da alimentação, dos pavilhões femininos
e masculinos, do pavilhão infantil e outros pavilhões, da
enfermaria, da farmácia, da igreja, etc. De acordo com as
Crônicas do Hospital Colônia Santa Teresa, 14 irmãs foram
inicialmente designadas para trabalhar no asilo12, sendo
algumas substituídas para que outras adquirissem experiência
no trato com os doentes (CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS
FRANCISCANAS DE SÃO JOSÉ, [s.d.]).
A fim de garantir o desenvolvimento do espírito de
religiosidade na instituição, outras atividades eram por elas
estimuladas e auxiliadas pelos padres capelães, como orações
diárias, catequese, missas, ritos fúnebres, festas sacras, etc.
Três padres residiram no asilo entre os anos de 1940 e 1950:
o frei Redento, o frei Armando e o frei Daniel. Esse último
acabou se tornando referência para os internos a partir das
atividades que realizou.
O frei Daniel marcou pelo seguinte: ele deu muito da sua vida
para que também ajudasse que o doente fosse re-adaptado à
sociedade, até porque ele começou, desde a chegada,
procurando fazer reuniões com os doentes, a igreja pequena,
ele ia lá pro cinema ensaiar cantos, ele começou com o teatro,
e dando uma vida, além de já ter teatro lá, mas dando uma
vida nova, e lutou com todos os meios para que fosse feito o
grupo escolar Anita Garibaldi, porque realmente até era uma
escola isolada (Depoimento de BP. 18 jul. 2002).
Além de articular a legalização da escola do Hospital Santa
Teresa, possibilitando que ela fosse transformada em um
colégio estadual, por iniciativa do frei Daniel um grande
espetáculo teatral foi realizado na Colônia no ano de 1950,
com a presença de cinco mil espectadores. Denominado
Oberamergau Brasiliense, a peça representava o drama da
paixão de Cristo, sendo encenada por aproximadamente
duzentos internos (BOING, 1997).
212|Débora Michels Mattos

Outras atividades foram também por ele articuladas, como


a implantação da prática do escotismo, que se constituía
importante instrumento de auxílio ao exercício físico,
entendido na época como meio eficaz de adestramento e
controle das condutas (MONTEIRO, 1995). Além disso o
escotismo incutia no enfermo a adoção de hábitos de vida
saudáveis, de forma a colaborar com os princípios eugênicos
postulados no período.
Aliadas à laborterapia, as atividades desenvolvidas dentro
do Santa Teresa procuraram dar ao enfermo um cotidiano
semelhante àquele vivido fora do ambiente asilar. Mas ainda
que muitos tenham conseguido reestruturar a sua vida no
âmbito da instituição, o sistema o qual integraram se fez
passível de contestação.

Mecanismos de contraposição

Durante os anos de 1940 a 1950 a Colônia Santa Teresa


se transformou num grande asilo dotado dos elementos
básicos à aplicação das diretrizes profiláticas a que se propôs
já no momento de sua idealização. Paramentada com regras
e atividades muito bem elaboradas a fim de garantir a ordem,
a harmonia e o bom andamento institucional, sobretudo em
relação ao universo inerente aos que foram ali asilados, seu
principal mantenedor foi o diretor. À frente da instituição,
assumindo a sua direção, dois personagens se destacaram na
primeira década de seu funcionamento: os médicos Adalberto
Tolentino de Carvalho e Homero de Miranda Gomes.
Nomeado ao exercício do cargo de diretor vitalício pelo
Governo do Estado de Santa Catarina, a figura de Adalberto
Tolentino de Carvalho se destacou fora e dentro do ambiente
asilar. Para o Serviço de Profilaxia da Lepra do Estado ele se
constituiu figura de grande importância na consolidação do
aparato isolacionista, uma vez que foi o grande fomentador
dos instrumentos de persuasão utilizados para garantir a
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 213

permanência do enfermo no ambiente asilar. Para os doentes


que foram confinados compulsoriamente, embora lembrado
pelas inúmeras atividades que desenvolveu, sobretudo
aquelas que objetivaram o estabelecimento de uma estrutura
aprazível aos internos, seu personagem foi marcado pela
disciplina, pela ordem, pelo entretenimento e pela rigidez.
“Era muito ruim aqui antigamente. A direção do Dr. Tolentino
era à base disciplinar. Mas de diversão, o maior de todos”
(Depoimento de MC. 12 jan. 2000).
Médico leprologista residente na Colônia Santa Teresa,
Homero de Miranda Gomes acabou substituindo, por algumas
vezes e em caráter provisório, o diretor oficial. Foram nesses
momentos de substituição, de acordo com os depoimentos
concedidos, que as brechas de contraposição ao sistema
puderam ser verificadas, sobretudo, em relação à saída dos
enfermos.
Não tinha licença, depois é que veio uma ordem que deram a
licença. Deram a licença por causa do remédio, não é?! Então
já podia ir em casa visitar a família. Mas antes não tinha licença.
Então fugiam. Os pacientes fugiam.

[...] Eu nunca fugi, só quando casei. Aí eu falei com o diretor


que queria passar a lua de mel fora, lá na família, família da
mãe da minha esposa. Ele disse:

– Eu não posso dar licença, mas você sai pelo rio. Sai pelo rio.

E foi o que nós fizemos (Depoimento de GB. 22 jan. 2002).


De fato, a saída dos internos não era permitida de maneira
oficial, salvo algumas exceções, como já foi salientado. Esse veto
ao direito de ir e vir, ao qual os enfermos confinados foram
submetidos, permitiu a articulação de meios de se contrapor ao
sistema, como foi o caso das constantes fugas que ocorreram.
Ainda que a direção interina pactuasse com a escapatória de
internos, essa escapatória não se constituía segura, uma vez que
ao retornar os enfermos ficavam sujeitos às punições ditadas
214|Débora Michels Mattos

pela direção vitalícia, no momento de sua volta.


Porque antigamente eles voltavam e iam para a cadeia. Tinha
cadeia, não é?! Iam. Iam para a cadeia. A lei era seca. [...]
Ficava um mês, dois meses. O meu irmão, ele roubou uma
moça daqui. Ele arrumou uma moça para namorar, não é?!
Roubou e desapareceu, foi embora. Quando voltaram pegou
um ano de cadeia, mas cadeia mesmo (Depoimento de GB.
22 jan. 2002).
Muitos não tinham a intenção de uma saída efetiva do
Santa Teresa. Em geral tentavam rever a família ou resolver
questões deixadas para trás quando foram asilados.
Ao tomar conhecimento dessas fugas, Adalberto Tolentino
de Carvalho informava o Serviço de Profilaxia, que acionava
buscas pelas comunidades vizinhas a fim de resgatar o
enfermo.
Pois eu tive um cunhado que fugiu daqui, fugiu. Era proibido.
Aí chegou, já foram com o carro atrás, com a caminhonete,
ambulância, aquela ambulância. Aí ele levantou o braço para
dar passagem e aí eles disseram:

– Não, mas é tu mesmo que nós queremos. Embarca aí!

Ele ficou tão brabo, tadinho (Depoimento de GB. 22 jan. 2002).


A contraposição à ordem, às regras, às normas de conduta,
era de várias maneiras estabelecida, seja através das fugas,
comuns nas inúmeras instituições asilares brasileiras, seja
através de outras atitudes, como ingestão de álcool, tentativas
de suicídio, reclamações, revolta, brigas internas.
Sobre o álcool, AC nos conta que era proibida a sua
ingestão, uma vez que diminuía a eficácia do tratamento
prescrito. Mas embora fosse vetado o uso de substâncias
alcoólicas, não era raro encontrar meios de obtê-las:
E o pessoal, claro, por aquele tipo de vida que lavava ali, gostava
de beber, eles passavam a bebida por um cordão dentro do
riozinho (Depoimento de AC. 13 jun. 2002).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 215

Além da passagem do álcool pelo rio, códigos eram


utilizados para a aquisição de bebidas. Da mesma forma,
outros meios acabavam sendo encontrados a fim de garantir
a sua presença nos bailes e festas comemorativas.
Tinham pessoas que nós íamos à noite, algumas vezes oito
horas, já combinado com o dono da venda, e nós dizíamos:

– Olha, viemos aqui buscar a banha daquele porco que o senhor


matou.

A banha era a cachaça que estava lá dentro. Era a cachaça.


[...] Mas quando tinha uma festinha, uma coisa qualquer, não
só o álcool, isso aí eu assino embaixo. Aí, trabalhando de
enfermeiro, nós tínhamos uma certa facilidade de acesso ao
álcool em si, o álcool, o álcool, aquele. Quantas vezes que ia
ter um bailezinho, nós íamos lá, comprávamos um refrigerante
e colocávamos mais aquele álcool dentro, com mais um
pouquinho de coisa, umas misturas que davam para a gente
ficar um pouquinho mais alegre (Depoimento de GB. 18 jul.
2002).
No interior da estrutura asilar, uma série de acontecimentos
não passavam despercebidos para os olhares daqueles que
viviam isolados. Assim, os internos faziam críticas à louça
utilizada, conforme já foi salientado, crítica à higiene da
alimentação.
Em relação à falta de higiene alimentar, esse fato também
foi referenciado pelo diretor do Serviço Nacional de Lepra
em relatório, quando se verificou a presença de moscas na
cozinha.
Ainda no âmbito da alimentação foi constatado um número
excessivo de calorias na ração diária dos internos, falta de
legumes e verduras em algumas épocas do ano,
acompanhadas de escassez de leite (DANTAS, 1946).
Procurando resolver o problema da excessiva quantidade de
calorias ingeridas pelos asilados, uma lista de alimentos a serem
substituídos pelos anteriormente consumidos foi apresentada.
De acordo com a lista o Hospital Santa Teresa deveria dar
216|Débora Michels Mattos

prioridade ao uso da seguinte alimentação:


(1) O chimarrão sendo bastante usado no três Estados, deverá
ser fornecido aos doentes a critério dos diretores.
(2) A farinha de mandioca pode ser substituída pela de milho.
(3) Frutas à vontade
(4) O mel pode ser produzido em colméias das colônias.
(5) Miúdos, incluídos fígado, rins, etc.
(6) Peixe em lugar de carne.
(7) Queijo nos dias de macarronada.
(8) Toucinho em lugar de banha.
(9) Verduras à vontade.
Admitimos que com esta orientação a Colônia poderá fornecer
uma alimentação racional, que beneficiará, sem dúvidas, os
seus internados (DANTAS, 1946, p. 20).
Durante seus dez primeiros anos de funcionamento o
cotidiano daqueles que foram confinados compulsoriamente
no Hospital Santa Teresa assim se estabeleceu. Uma vida
permeada por regras que se faziam presentes no âmbito do
lazer, das relações pessoais, dos horários estipulados à
alimentação, ao despertar diário, ao descanso noturno. Uma
vida permeada por instrumentos de persuasão à aceitação
da realidade à qual os doentes foram submetidos. Uma vida
marcada pela ausência de políticas públicas voltadas à cura
da doença, em que o enfermo de hanseníase se tornou o
principal objeto de intervenção.
O asilo Santa Teresa foi, sobretudo, aquilo que Goffman
definiu como “instituição total”, ou seja, “[...] um local de
residência e trabalho onde um grande número de indivíduos
com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla
por considerável período de tempo, levam uma vida fechada
e formalmente administrada” (GOFFMAN, 1961, p. 11).
De fato, a colônia possuiu esse aspecto, sendo ela integrada
à segunda categoria da lista dos cinco grupos de instituições
totais descritas por Goffman, aquela relacionada aos
estabelecimentos edificados para o trato de pessoas incapazes
de prover o seu próprio cuidado e que representam ameaça
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 217

ao meio social.
Seriam eles de fato incapazes, se analisarmos as inúmeras
atividades que desenvolveram dentro da instituição? Seriam
eles de fato ameaça, ao ponto de terem de ser afastados de
sua família e confinados compulsoriamente na “cidade asilo”?
Acreditamos que não!
Na grande campanha de combate à “lepra” da região
catarinense, alçada com base num movimento maior que se
estabeleceu em todo o Brasil, outra “instituição total” foi
edificada. Denominada Educandário Santa Catarina, esteve
voltada ao atendimento de uma outra categoria de indivíduos:
os filhos sadios dos enfermos.

Hospital Santa Teresa

Fotografias

Acervo particular de AC

Inauguração do Hospital Colônia Santa Teresa, com a presença de


Getúlio Vargas (de paletó escuro), à sua direita, na seqüência, o diretor
Adalberto Tolentino de Carvalho e o interventor Nerêu Ramos, 11 de
março de 1940.
218|Débora Michels Mattos

Acervo da Congregação das Irmãs Franciscanas de São José.

Acervo da Congregação Franciscana de São José.


Internos do Hospital Colônia no labor diário, s.d.

Acervo da Congregação Franciscana de São José.Vista


geral dos fundos do Hospital Colônia, s.d.

Foto de Samanta Lopes. Pavilhões Carville do


Hospital Colônia, s.d.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 219

Foto de Samanta Lopes. Casas geminadas do


Hospital Colônia, s.d.

Acervo da Congregação Franciscana de São José.


Irmãs em frente à sua residência no Hospital Colônia,
s.d.

Acervo da Congregação Franciscana de São José.


Frei e irmãs em passeio no campo com as crianças
do Hospital Colônia, s.d.
220|Débora Michels Mattos

Acervo particular da
Congregação
Franciscana de São
José. Internos
preparados para o
escotismo, s.d.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 221

Acervo da Congregação Franciscana de São José.


Grupo Malandros do Morro (à esquerda) e Pequenas do Barulho,
carnaval de 1946.

Acervo particular de AS.


Cerimônia de Corpus
Christi no Hospital Colônia,
1947.

Acervo da Congregação
Franciscana de São José.

Encenação do drama da
Paixão de Cristo pelos
internos, 1950.
222|Débora Michels Mattos

Notas:
1
Os congressos realizados na Alemanha, em 1897, na Noruega,
em 1909, e na França, em 1923, foram decisivos para a escolha
do modelo de tratamento a ser implantado internacionalmente.
Com base nos estudos realizados por Hansen, o de 1897 já
afirmava o caráter infectocontagioso da doença. Ainda sob a
influência da teoria do contágio, o de 1909 estabelecia a adoção
de uma política de segregação compulsória que deveria servir
de base para outros países. Em 1923, durante o Terceiro
Congresso Internacional, o princípio do isolamento continuou
a ser defendido e a partir dele melhor difundido (MONTEIRO,
1995).
2
Ver Capítulo 3 desta obra.
3
Período este em que a prática isolacionista se fez com maior
força e rigor.
4
De acordo com Gomide e segundo nota do autor do trabalho
estatístico, deputado Mário Chermont, os dados se
relacionavam ao ano de 1933 e somente São Paulo
apresentava um número considerável de enfermos internados
em instituição asilar (CHERMONT, 1936, p. 3605. Apud
GOMIDE, 1991, p. 106).
5
Pensamento do Prof. A. Austragésilo, publicado pela Federação
das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a
Lepra na Revista de Combate à Lepra.
6
Artigo publicado por Eunice Weaver, intitulado Livrando a
Pátria do Estigma da Lepra.
7
Não existem documentos oficiais sobre a vida e a obra do Dr.
Adalberto Tolentino de Carvalho. Embora tenha assumido
posições de destaque no cenário catarinense, chegando a
prefeito de Florianópolis na década de 40, sua atuação no
Serviço de Profilaxia da Lepra como diretor do Hospital Colônia
Santa Teresa não foi referenciada de forma aprofundada nas
fontes documentais. Nesse sentido, utilizamos para esta
pesquisa os pareceres tecidos por aqueles que tiveram contato
direto com o médico à época da campanha de combate à
doença (grifo meu).
8
Sobre isto veremos mais adiante.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 223

9
Monteiro (1995) nos coloca que as associações filantrópicas,
uma vez que eram elas as intermediadoras das doações,
acabavam decidindo a forma como os recursos obtidos seriam
empregados dentro das instituições asilares. Esse poder de
decisão também era questionado pelo Departamento de
Profilaxia da Lepra de São Paulo.
10
Os réis são substituídos pelo cruzeiro durante o governo de
Getúlio Vargas. Mil réis passam a valer 1 cruzeiro.
11
Dados retirados do livro de registros de internamentos do
Educandário Santa Catarina.
12
Número inicial de irmãs: irmã Heriberta (provincial), irmã
Eduarda (superiora), irmã Bernadete (farmácia), irmã Antonina
(costura), irmã Petronela (cozinha), irmã Serafina (pavilhões
masculinos), irmã Celina (pavilhões femininos), irmã Joaquina
(farmácia), irmã Osvalda (lavanderia e igreja), irmã Cândida
(laboratório), irmã Franciscana (enfermagem), irmã Elígia
(enfermagem), irmã Prudência (lavanderia), irmã Pascoalis
(cozinha).
224|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 225

Quarta Parte

O alijamento dos
saudáveis

[...]
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousava
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida.
Se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
(Carlos Drumond de Andrade. A Máquina do Mundo)
226|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 227

Capítulo 6

O Educandário Santa
Catarina

No início do século XX, sobretudo a partir dos anos 30,


intensificaram-se as medidas de combate à hanseníase no
Brasil. Essas medidas, inspiradas no modelo paulista de
confinamento compulsório, estenderam-se a pessoas sadias,
como a prole dos enfermos, recaindo também sobre elas os
estigmas inerentes à enfermidade. A essa categoria de
indivíduos, saudáveis do ponto de vista clínico,
estabelecimentos institucionais próprios foram construídos.
Denominados “abrigos preventoriais”, caracterizaram-se, ao
228|Débora Michels Mattos

lado dos dispensários e dos asilos, parte significativamente


importante do tripé erigido para a supressão da doença no
país.
No Estado de Santa Catarina assistiu-se à construção do
aparato antileprótico em fins da década de 30, sendo no início
dos anos 40 inauguradas as duas instituições de cunho
isolacionista idealizadas para o combate à doença: o Hospital
Colônia Santa Teresa e o Educandário Santa Catarina, este
destinado ao recolhimento dos filhos sadios.
Enfocando os dez primeiros anos de funcionamento do
estabelecimento preventorial, período em que o abrigo esteve
sob a direção das irmãs da Congregação Franciscana de São
José, o presente capítulo tem como objetivo trazer à tona o
universo asilar edificado em torno da prole salubre do enfermo
de hanseníase no estado catarinense, verificando quais foram
os instrumentos utilizados para a realização, junto a tais crianças,
dos princípios de profilaxia vigentes na época.
Analisando os vários aspectos do ambiente institucional
destinado àqueles que foram denominados “órfãos de pais
vivos”, ambiente este que também se constituiu em uma
“instituição total”, daremos ênfase à configuração de sua
estrutura física e organizacional, os meios utilizados para o
seu bom funcionamento, assim como as concepções tecidas
por aqueles que foram nele internados entre os anos de 1940
e 1950, observando de forma mais clara o cotidiano asilar ao
qual 301crianças e adolescentes foram submetidos.

Um instrumento de prevenção

O movimento de combate à hanseníase no Brasil, instituído


de forma mais veemente a partir de 1930, fez parte de um
cenário social, político e econômico em que as enfermidades,
de um modo geral, passaram a ser observadas como fator de
impasse para os ideais de modernização e desenvolvimento
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 229

do país. Nesse cenário, a criança se tornou objeto de atenções,


uma vez que a sua boa formação moral e física tinha como
meta garantir a constituição de um indivíduo apto a contribuir
com o progresso da nação. Ao discutir sobre a infância no
Brasil, Morcorvo Filho assim se pronunciava: “Os pequeninos
de hoje serão os grandes de amanhã; é nela (infância) que
ponho as esperanças da grandeza atual do regime pela
regeneração da pátria” (MONCORVO FILHO, 1927, p. 69.
Apud. RAGO, 1997, p. 120).
Rago (1997) expõe que a preocupação com a criança no
Brasil surgiu em fins do século XIX, intensificando-se nas
primeiras décadas do século XX, quando uma série de saberes
médicos e científicos foram produzidos dando ênfase ao
importante papel que a infância poderia desempenhar no
provimento do progresso do país. Segundo a autora, as
primeiras instituições de caráter assistencialista foram edificadas
nesse período, sobretudo aquelas voltadas ao atendimento
de menores abandonados, pobres, enfermos, pequenos
infratores, enfim, procurando incutir nesses personagens
hábitos salutares, afastando-os da vagabundagem.
Percebendo a criança como corpo produtivo, futura riqueza
das nações, este discurso econômico procurava alertar os
governantes para o deprimente quadro da infância desamparada
e para a elevada taxa de mortalidade infantil no país, indicando
que só com o apoio da medicina o Brasil poderia fazer frente a
estes problemas e suprir a necessidade de produzir um maior
número de trabalhadores sadios no futuro (RAGO, 1997, p.
121).
Amparadas nos discursos produzidos por médicos, cientistas
e políticos em geral, desempenhando o novo papel que foi
atribuído à mulher, o de auxiliar o provimento do bem-estar
social, sobretudo em relação ao universo infantil, agremiações
filantrópicas de toda ordem foram construídas na tentativa
de salvaguardar a vida de muitos indivíduos. Mott (2001)
salienta que essas associações diferiam daquelas de cunho
caritativo típicas do século XIX, articuladas por religiosos que
230|Débora Michels Mattos

tinham um ínfimo contato com os necessitados assistidos e


que visavam à promoção imediata de um conforto material
ou espiritual a eles. Segundo a autora, esse novo modelo de
filantropia contava com a participação direta do sexo feminino
e objetivava não somente o auxílio caritativo, mas a promoção
dos instrumentos necessários para que muitos saíssem da
situação de desamparo em que se encontravam.
As novas associações foram fundadas e dirigidas por mulheres,
provenientes de uma ou de várias denominações religiosas. As
sócias trabalhavam junto aos beneficiados e tinham por objetivos
não só ajudar com doações, como também criar meios para
que eles saíssem da situação de necessidade, ou seja,
preocupavam-se com a promoção social (MOTT, 2001, p. 212).
Em relação à prole sadia do enfermo de hanseníase, o
ano de 1927 assistiu à construção do primeiro abrigo
preventorial, patrocinado por uma entidade paulista
denominada Associação Terezinha do Menino Jesus. Embora
esse instrumento de amparo e profilaxia tenha sido
questionado por defensores de um outro modelo de
tratamento, como o que foi implantado na Noruega1, após
os anos 30, com a solidificação da política de combate à
enfermidade pautada em princípios isolacionistas, instituições
de caráter preventorial foram construídas em todo o país.
Essas instituições, articuladas pela Federação das Sociedades
de Assistência aos Lázaros e subsidiadas pela iniciativa privada
e pelos governos em geral, alijaram da sociedade um número
significativo de crianças e adolescentes saudáveis, imputando,
também a eles, os estigmas inerentes à “lepra”.
De acordo com Gomide (1991), 29 instituições desse
gênero foram construídas até o fim da década de 40, sendo
mantidas pelas Sociedades de Assistência aos Lázaros filiadas
à Federação Nacional congênere e auxiliadas pelos poderes
públicos e privados. Ainda que o governo federal tivesse
assumido um compromisso maior em relação à implantação
de uma política de combate à hanseníase, no que concerne
às instituições preventoriais, segundo Monteiro, “[...] não se
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 231

verificou uma ação concreta do Estado com relação a essa


problemática, e todo o esforço de construção e administração
acabou sendo realizado pela iniciativa privada” (MONTEIRO,
1995, p. 344).
De fato, apenas um preventório brasileiro, o de Jacareí
em São Paulo, foi construído com recursos provenientes do
governo do Estado e da União. Os demais, conforme sugere
Gomide (1991), foram alçados pela iniciativa privada, que
embora tenha sido auxiliada por intermédio de subsídios
governamentais, caracterizou-se como a principal responsável
pela sua manutenção.
A aliança que foi estabelecida entre a Federação das
Sociedades de Assistência aos Lázaros e o Departamento
Nacional de Saúde permitiu à entidade filantrópica uma
atuação efetiva em relação ao combate à hanseníase. Embora
essa atuação tenha sido evitada no Estado de São Paulo,
sobretudo no que concerne às questões ligadas diretamente
aos enfermos2, o mesmo não foi observado em relação àquelas
que diziam respeito aos filhos sadios dos doentes. Como
resultado, o Departamento Nacional de Saúde e a Federação
das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a
Lepra elaboraram um regulamento a ser adotado na instituição
preventorial do Distrito Federal que acabou servindo de base
às muitas instituições do gênero no Brasil (anexo 2). De acordo
com o documento o preventório, este deveria atender aos
seguintes objetivos:
Art. 1. – O Preventório do Distrito Federal instalado nesta Capital,
pela Sociedade do Distrito Federal de Assistência aos Lázaros e
Defesa contra a Lepra, sociedade civil fundada em 21 de julho
de 1928, na Capital da República, é um preventório destinado
a acolher, educar e instruir menores sadios filhos e conviventes
de doentes de lepra, desde que não tenham parentes idôneos
que queiram assumir esse encargo e que disponham de recursos
para educá-los e mantê-los sob vigilância das autoridades
sanitárias competentes (Regimento Interno dos Preventórios,
apud MONTEIRO, 1995, p. 454).
232|Débora Michels Mattos

Ainda conforme o documento, seriam atribuições da


instituição zelar pela formação cívica, moral e religiosa do
interno, assim como o seu bom desenvolvimento físico. Tais
propostas tinham como objetivo garantir a eficácia das
diretrizes profiláticas idealizadas para a criança sadia filha de
enfermos e, da mesma forma, seguir os princípios eugênicos
postulados naquele momento.
Embora as instituições preventoriais tenham prevalecido
como paradigma de profilaxia, as discussões sobre elas
continuaram se fazendo constantes no cenário nacional. Essas
discussões abarcavam as mais variadas questões em torno
dos desdobramentos que o preventório imputaria aos seus
internos, como acirramento dos estigmas, a ruptura dos laços
familiares, o sentimento de abandono e de eterna exclusão.
Floriano Lemos, defensor da criação de granjas ao lado de
Alice Tibiriçá, assim se pronunciou a respeito do alijamento
de crianças no Abrigo de Santa Terezinha:
Não acreditamos que essas criancinhas [...] amanhã quando
adultas tenham fácil acesso em nossos lares, nossa sociedade.
Estarão condenadas a constituir um grupo à parte e, como
párias, terão que viver à margem da nossa sociedade. Serão
ex-pensionistas do Asilo Santa Terezinha!

[...] Maldirão por certo a nossa falsa caridade que permitiu a


sua existência (LEMOS, 1939, apud MONTEIRO, 1998, p. 8).
Mas um outro elemento de debate sobre o abrigo
preventorial esteve relacionado a sua localização, verificando-
se a presença de três posturas diferentes: a que defendia a
construção dos estabelecimentos nas proximidades das
colônias, a que propunha a sua edificação em lugares
afastados da cidade e a que enfatizava a importância do abrigo
dentro da zona urbana (MONTEIRO, 1998).
Para o grupo que defendia a edificação dos preventórios
próxima às colônias, o atendimento médico e uma maior
facilidade na realização de pesquisas se constituíam justificativas
principais. Além disso, um menor afastamento entre pais e
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 233

filhos diminuiria a ocorrência de fugas, fato comum nos asilos


em face da dor da separação. Contudo, essa teoria
apresentava problemas, uma vez que a proximidade do
preventório com o asilo acarretaria numa direta associação
entre ambas as instituições, aumentando os estigmas sobre a
infância sadia.
O estigma que atinge os internados nos hospitais de lepra,
viria a alcançar impiedosamente também os menores dos
preventórios. Ademais a proximidade de ambos os
estabelecimentos pode exercer influência psicológica nociva nos
filhos sadios de hansenianos, aumentando o complexo de
inferioridade quase sempre existente ou ainda ocasionando
depressão moral por pensarem na possibilidade futura de eles
mesmos se tornarem também, algum dia, doentes de lepra
(CAMPOS, 1948, p. 47, apud GOMIDE, 1991, p. 140).
Ainda que os argumentos fossem matizados por aspectos
de caráter sentimental, salientando a importância do contato
familiar na formação do indivíduo, aqueles de cunho científico,
voltados à problemática da doença, enfatizavam os perigos
que ela representava ao meio social e aos filhos de seus
portadores que se encontravam saudáveis.
Os argumentos utilizados pelos defensores do maior
distanciamento possível entre colônias e preventórios,
apresentados como “inconvenientes de aproximação”,
expressavam a intenção de segregar e isolar a criança de qualquer
contato com os possíveis focos de contágio, mesmo que esses
focos fossem representados pelos pais, solidificando a estratégia
de higienização e profilaxia do meio social a qualquer ameaça
à saúde (GOMIDE, 1991, p. 140).
Monteiro (1998) salienta que a vertente defensora dos
preventórios perto das cidades enfatizava uma maior eficácia
no atendimento médico, um melhor acesso aos meios de
comunicação, além de significativa proximidade com o serviço
de profilaxia, auxiliando o fator vigilância. Ainda que a sua
localização no perímetro urbano representasse maiores
possibilidades de integração social para o interno, sobretudo
234|Débora Michels Mattos

no que concerne aos contatos que poderia estabelecer fora


do ambiente institucional, a rejeição da sociedade se constituiu
principal argumento para a sua negação (GOMIDE, 1991).
Em relação à edificação das instituições preventoriais
distantes das cidades, alguns especialistas de renome nacional
não eram partidários, como os médicos Nelson de Souza
Campos e Luiz Mariano Bechelli. Para eles, conforme salienta
Monteiro, “[...] não se poderia alegar motivos de ordem
profilática ou higiênica para servir de entrave à construção de
preventórios no perímetro urbano, visto que as pessoas ali
internadas eram sadias” (MONTEIRO, 1995, p. 346).
Mas a proposta de construir tais estabelecimentos no meio
rural se apresentava coerente com os pressupostos de
autossustentação concebidos para o universo da hanseníase.
Como resultado, o filho sadio do enfermo, arcando com parte
dos custos de sua subsistência, também diminuiria os encargos
do governo, a exemplo do que acontecia com os portadores
de doença. Se nos detivermos a analisar a tabela 10, referente
à localização dos preventórios que foram construídos no Brasil
até o ano de 1948, torna-se possível constatar que esse último
posicionamento prevaleceu.

Tabela 10
Localização dos Preventórios Brasileiros até 1948
Estado Nome Localização
Acre Santa Margarida 3 km de Rio Branco
Alagoas Eunice Weaver Subúrbio de Maceió
Amazonas Gustavo Capanema 5 km de Manaus
Bahia Eunice Weaver 20 km de Salvador
Ceará Eunice Weaver 20 km de Fortaleza
Distrito Federal Santa Maria 20 km do Rio de
Janeiro Capital
Espírito Santo Alzira Bley 14 km de Vitória
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 235

Goiás Afrânio Azevedo 4 km de Goiânia


Minas Gerais Carlos Chagas 2 km de Juiz de Fora
Minas Gerais Aprendizado Técnico. Em Belo Horizonte
Profissional
Minas Gerais Olegário Maciel 14 km de Belo
Horizonte
Minas Gerais São Tarcísio 45 km de Belo
Horizonte
Maranhão Santo Antônio 8 km de São Luiz
Mato Grosso Getúlio Vargas 10 km de Campo
Grande
Pará Santa Terezinha Perímetro Urbano
Pará Eunice Weaver 10 km de Belém
Paraíba Eunice Weaver 10 km de João Pessoa
Paraná Curitiba 6 km de Curitiba
Pernambuco Guararapes 6 km de Recife
Piauí Padre Damião 2 km de Teresina
Rio Grande do Sul Santa Cruz 12 km de Porto Alegre
Rio de Janeiro Vista Alegre 12 km de Rio de
Janeiro Capital
Rio Grande Oswaldo Cruz 2 km de Natal
do Norte
Santa Catarina Santa Catarina 8 km de Florianópolis
São Paulo Jacareí 25 km
São Paulo Santa Terezinha 25 km de São Paulo
Capital
Sergipe São José 30 km de Aracajú
Fontes: CAMPOS (1948); ABRAÃO (1948); MONTEIRO (1995)
236|Débora Michels Mattos

Das 27 instituições, 6 foram edificadas até 5 quilômetros


distantes do principal núcleo urbano ou da capital; 7, de 6 a
10 quilômetros; 4, de 11 a 15; 3, de 16 a 20; e 4, de 21 para
cima. Apenas uma encontrava-se na cidade principal, o
Aprendizado Técnico Profissional de Belo Horizonte. Àquelas
relativas aos Estados de Alagoas e Pará, denominadas Eunice
Weaver e Santa Terezinha, não foi possível estabelecer uma
distância precisa da cidade, sobretudo pela ausência de um
conteúdo apurado nas fontes consultadas. Contudo, segundo
Monteiro, “[...] a análise dos dados existentes sobre a
localização dos preventórios demonstrou não haver uma
homogeneidade com relação ao padrão adotado para a sua
construção, porém a média encontrada foi de 12 quilômetros
de distância dos centros urbanos” (MONTEIRO, 1998, p. 11).
De acordo com a tabela apresentada, apenas um
estabelecimento foi edificado na zona urbana das cidades,
sendo que 4 foram construídos na periferia e 22 em zonas
distanciadas, conforme demonstra o gráfico de número 9,
acerca dos 27 preventórios arrolados:

Gráfico 9

Fontes: CAMPOS (1948); ABRAÃO (1948); MONTEIRO (1995)


Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 237

Embora a comunidade científica estivesse ciente de que


os filhos sadios dos enfermos não representavam riscos ao
meio social, já que não eram portadores da doença e, ainda
que muitos discursassem sobre a vantagem dos estabele-
cimentos preventoriais dentro das zonas urbanas, a construção
dessas instituições se fez, com preponderância, a significativas
distâncias das principais cidades. Em locais afastados, onde a
formação moral e o trabalho dos internos deveriam ser
incentivados, os preventórios brasileiros foram, à luz dos
princípios eugênicos, ao mesmo tempo que parte dos
mecanismos de profilaxia da hanseníase, instrumentos de
apoio à configuração de um tipo de cidadão ideal almejado
para o país.

Um preventório em Santa Catarina

Em Santa Catarina, a idealização de uma instituição de


caráter preventorial surgiu em meados da década de 30,
quando o governo do Estado instituiu o Serviço de Profilaxia
da Lepra, de acordo com as diretrizes nacionais de combate
à doença. Por uma iniciativa da Federação das Sociedades de
Assistência aos Lázaros, organizou-se, na cidade de
Florianópolis, uma campanha cujo objetivo principal era o
de chamar a atenção da população catarinense ao problema
da prole sadia do enfermo. Dessa campanha foi fundada a
Sociedade de Assistência aos Lázaros de Santa Catarina, que
de acordo com os seus estatutos (anexo 3), tinha como
principal objetivo a defesa social em face do problema que
representava “lepra” para a população.3
Embora a Sociedade de Assistência aos Lázaros do Estado
catarinense tivesse inúmeras finalidades (como a criação de
serviços de assistência à família do enfermo, o amparo ao
doente internado na instituição asilar, a colaboração efetiva
com o Serviço de Profilaxia da Lepra, auxiliando a aplicação
das medidas prescritas na legislação do país no âmbito da
238|Débora Michels Mattos

doença), a articulação da construção de uma instituição


preventorial em Santa Catarina acabou se caracterizando
como seu fim principal. No dia 19 de novembro de 1938 foi
lançada a pedra fundamental para a construção do
estabelecimento.
Às quatorze horas do dia 19 de novembro de 1938, com a
presença das mais altas autoridades, diretoria, e alguns
associados desta Sociedade [...] tivemos a grata satisfação de
ver iniciadas as obras do “preventório” para os filhos dos
portadores do mal de Hansen (REVISTA DE COMBATE À
LEPRA, 1940, p. 121).
Em terreno cedido pelo governo do Estado e localizado a
8 quilômetros de Florianópolis, no município de São José;
com uma área de aproximadamente 258 mil metros
quadrados, tendo sua planta aprovada pela Federação das
Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra
e pelo Ministério da Educação e Saúde, o Educandário Santa
Catarina teve a sua construção confiada aos engenheiros
arquitetos Paulo Mota e Udo Deck, compreendendo uma
extensão total de 900 metros quadrados (REVISTA DE
COMBATE À LEPRA, 1940).
De acordo com o plano arquitetônico idealizado para o
estabelecimento, ele seria constituído de 6 blocos. No primeiro
deles, à entrada da instituição, funcionaria a administração e
os serviços gerais. A parte administrativa compreenderia, além
dos aposentos das irmãs franciscanas nomeadas à direção do
preventório, a portaria, a secretaria, o almoxarifado e a
diretoria. A parte relativa aos serviços gerais estaria destinada
ao atendimento médico, odontológico e ambulatorial, seguido
da creche, dotada de um apartamento para a enfermeira,
varanda, sala de banhos, rouparia e cozinha.
Atrás do edifício principal mais 3 prédios seriam
construídos. Ligados entre si por corredores, o central deveria
ser composto de copa e cozinha, uma ampla área para
refeitório e festas e, além disso, um palco para a realização de
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 239

atividades culturais. Os edifícios laterais, ambos do mesmo


tamanho, seriam destinados ao alojamento dos internos.
Aquele voltado ao sexo masculino seria composto de
dormitório, sala de banho, pátio coberto e sala de aula.
Naquele destinado ao sexo feminino, também deveria ser
constituído de dormitório, sala de banho e pátio coberto, além
de sala de costura, lavanderia e rouparia.
Logo em seguida a esse grupo de 3 edifícios mais 2
deveriam ser feitos: um para o isolamento dos casos suspeitos
e observação dos recém-chegados e outro para o atendimento
médico e de enfermagem. De acordo com a planta de
construção, cada um deveria ser composto com dormitórios
para a divisão dos sexos, refeitório, copa, sala de vigia e 2
pátios cobertos para lazer. Ao restante da área total,
aproximadamente 257 mil metros quadrados, espaços
delimitados ao cultivo agrícola, à criação de animais, a práticas
desportivas e ao desenvolvimento de atividades profis-
sionalizantes deveriam ser reservados. Dessa forma, o
preventório estaria paramentado com os elementos necessários
aos pressupostos de profilaxia a que se propunha atender.
Assim constituído, verifica-se que o preventório de Santa
Catarina é um estabelecimento moderno, dos mais planejados,
oferecendo todos os requisitos de vida e conforto, para realizar
o grande objetivo a que se destina (SÃO THIAGO, 1941).
Em 26 de janeiro de 1941, após 4 anos de intensas
atividades da Sociedade de Assistência aos Lázaros do Estado
catarinense, o Educandário Santa Catarina foi inaugurado.
Ao custo de seiscentos e sessenta oito contos quinhentos e
sessenta e nove mil e duzentos réis, foi composto por outros
prédios além daqueles apresentados em sua planta inicial,
como jardim de infância, pavilhão-granja aos meninos com
idade acima de 12 anos, capela e, em substituição ao pavilhão
de observação anteriormente pensado, um outro, mais
afastado, para os recém-chegados (SOCIEDADE, 1941).
Embora a sua capacidade estivesse voltada ao atendimento
240|Débora Michels Mattos

de 141 crianças e adolescentes, durante os seus dez primeiros


anos de funcionamento este número sofreu variações,
chegando a abrigar mais de 150 menores, de acordo com
dados apresentados no seu livro de registros de internamentos
os quais podemos verificar na tabela 11:

Tabela 11
Números de Internos Anuais do Educandário Santa
Catarina (1940-1950)
Ano 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950

Internos 90 105 120 123 128 142 134 120 149 153
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Educandário Santa Catarina.

No evento, compareceram membros da Sociedade de


Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra de Santa
Catarina e da Federação Nacional congênere, como as
presidentes Carmem Linhares Colônia e Eunice Weaver;
autoridades políticas, religiosas e civis, como o interventor
Nerêu Ramos, o arcebispo de Florianópolis Dom Joaquim
Domingues de Oliveira; além de militares, médicos, industriais,
representantes da sociedade catarinense em geral, perfazendo
mais de uma centena de pessoas que participaram da
inauguração (SOCIEDADE, 1941).
Embora o internamento de crianças sadias filhas de
enfermos já tivesse sido iniciado em abril de 1940, quando
em face da inauguração do Hospital Colônia Santa Teresa a
Sociedade de Assistência aos Lázaros articulou a fundação de
um preventório de emergência que abrigou os 25 primeiros
“órfãos de pais vivos” do Estado4, os mecanismos de amparo
e profilaxia à prole salubre dos enfermos foram, de fato,
iniciados em março de 1941, quando o Educandário Santa
Catarina foi inaugurado, sendo notícia nos jornais da região e
do país.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 241

Obra tocante e cheia de beleza tem sido a filantrópica campanha


da mulher catarinense em prol dos filhos dos lázaros, tendo
como escopo, a construção do preventório. [...] O fruto desse
trabalho magnífico encontrará salutar recompensa no próximo
domingo, 26 do corrente, em que será inaugurado o
Educandário Santa Catarina, destinado a recolher as infelizes
crianças, filhos de pais hanseáticos, e que, postas ao abrigo do
contágio, receberão tratamento e educação, de molde a
poderem tornar-se, no futuro, cidadãos úteis à sociedade (A
GAZETA, 23 jan. 1941.)

Inaugura-se hoje, em Santa Catarina, o preventório para os


filhos sadios de lázaros, construído a oito quilômetros de
Florianópolis, pela Federação das Sociedades de Assistência
aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, com auxílio da União e
do Governo do Estado (A NOITE, 26 jan. 1941).
Ainda que a construção do Educandário Santa Catarina
tenha sido resultado de um trabalho encabeçado por membros
da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a
Lepra de Santa Catarina, a sua administração foi confiada
aos cuidados das irmãs da Congregação Franciscana de São
José, que durante a década de 40 estiveram à frente no trato
direto com os filhos sadios dos enfermos.
De fato, a atuação das irmãs franciscanas junto ao problema
da hanseníase já vinha sendo observada no Paraná e no
próprio Estado de Santa Catarina. Constituía-se princípio
básico dessa ordem a vida abnegada, entregue ao amparo
dos necessitados (BOING, 1997). De acordo com dados
apresentados na obra Quero Misericórdia: história da
Congregação das Irmãs Franciscanas de São José, as religiosas
dessa ordem possuíam vasta experiência no âmbito da
assistência e do amparo educacional a crianças e adolescentes
já no início do século XX, em lugares como Alemanha e
Holanda, quando ainda pertenciam à Misericórdia da Terceira
Ordem de São Francisco de Assis. Segundo Boing, nas
instituições que foram alçadas para o atendimento desses
indivíduos, procurava-se dar incentivo ao trabalho com o
242|Débora Michels Mattos

propósito de garantir a eles um futuro seguro. Além disso,


prezava-se pela boa formação moral e religiosa do interno,
que seria indispensável à constituição de um padrão de
comportamento ideal. “Estas meninas e rapazes, além de
aprenderem trabalhos que lhes poderiam vir a ser úteis no
futuro, recebiam aulas de formação geral e religiosa” (BOING,
1997, p. 321).
Conhecendo a atuação das religiosas no gerenciamento
de escolas dotadas de cursos profissionalizantes, como o
Instituto São José da Holanda, que ensinava costura,
artesanato e bordado às pessoas internadas mas, além disso,
aproveitando o trabalho missionário desenvolvido pela ordem
em relação ao doente de hanseníase, a Sociedade de
Assistência aos Lázaros convidou as irmãs franciscanas para
exercerem a função de administradoras do Educandário Santa
Catarina, uma vez que suas atividades iam de encontro com
os objetivos caritativos, profiláticos e eugênicos que a instituição
tinha como meta desempenhar (BOING, 1997).
Inicialmente, 7 irmãs foram designadas para trabalhar no
estabelecimento, desenvolvendo papéis que iam desde a
direção até a articulação dos serviços gerais, como alimentação,
limpeza, etc. Embora elas fossem as principais provedoras da
organização da instituição, recebiam auxílio de profissionais
especializados, nomeados pela Sociedade de Assistência aos
Lázaros para o exercício de algumas funções, de acordo com
os dados apresentados no Relatório de 1942:
Os trabalhos do Educandário Santa Catarina seguiram durante
o seu ano o curso normal, sob a orientação da diretoria da
Sociedade. A parte administrativa continua entregue às irmãs
franciscanas, que com verdadeiro espírito cristão vêm
remodelando pela educação integral as crianças ali internadas
e a elas confiadas.

É o seguinte o corpo administrativo do estabelecimento:


Superiora – irmã Elígia
Irmã Guardiã – irmã Clara
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 243

Enfermeira – irmã Dafrosa


Professora – irmã Serena
Professora – irmã Rodolfa
Encarregada da Cozinha – irmã
Encarregada da Lavanderia – irmã
Professora de Corte e Costura – Olga Lima
Auxiliar de Costura – Maria Gambiosky
Hortelão – Felipe Petri
Capataz – Alfredo Silva
Jardineiro – Otávio Martins
(SOCIEDADE, 1942).
Ao longo dos dez primeiros anos de funcionamento do
estabelecimento, algumas irmãs foram substituídas por outras,
a exemplo do que também ocorria no Hospital Colônia Santa
Teresa, onde o trabalho religioso era feito em sistema de rodízio
a fim de ampliar a experiência dos membros da congregação
em diversos setores. Embora o trabalho desenvolvido por
elas fosse remunerado, pago pela Sociedade de Assistência
aos Lázaros ou de acordo com o cargo pelo governo do
Estado, como o magistério, os votos de pobreza a que eram
obrigadas a fazer quando integradas à ordem franciscana não
permitia o acesso direto aos proventos. Como resultado, torna-
se difícil saber ao certo quanto era pago às irmãs, uma vez
que os valores relativos aos trabalhos realizados por elas eram
entregues à diretora do Educandário Santa Catarina, que os
revertia em benefício da congregação.
Acredito que porque a gente em geral não tinha nada com
dinheiro. [...] Sabemos que a superiora recebia, as
coordenadoras. Não quer dizer que a gente recebia. A gente
recebia dessa Sociedade mesmo, que era uma sociedade não
governamental, era particular, né?! e nós recebíamos. Talvez
agora eu não possa dizer o quanto, como e por quem. Eu acho
que não era uma soma lá avultante (Depoimento de JH. 20
jul. 2002).
De acordo com os relatórios da Sociedade de Assistência
aos Lázaros de 1940 a 1950, não existe referência específica
244|Débora Michels Mattos

em relação aos proventos das irmãs nos balancetes de despesas


apresentados. No que concerne à realização de outros
pagamentos aos diversos colaboradores, como aqueles
efetuados ao hortelão, ao jardineiro, à costureira e a outros
funcionários, estes também não aparecem sob forma de
salário, mas sim de um pequeno pró-labore pelos serviços
prestados.
Embora subsídios dos governos federal, estadual e muni-
cipal fossem destinados à sustentação do estabelecimento, as
verbas utilizadas para a sua manutenção advinham, em maior
parte, dos sócios contribuintes da Sociedade de Assistência
aos Lázaros e das atividades desenvolvidas pela entidade,
através de suas filiadas, espalhadas por diversos municípios
catarinenses, conforme demonstram os seus relatórios anuais.
Mas se por um lado a parte administrativa do Educandário
Santa Catarina foi entregue às religiosas da Congregação
Franciscana de São José, por outro a parte financeira esteve
nas mãos da Sociedade de Assistência aos Lázaros. Contudo,
isso não quer dizer que as irmãs tenham se abstido de conseguir
auxílios extras em benefício da instituição e de seus internados.
Como veremos mais à frente, foi significativa a participação
das irmãs à obtenção de verbas destinadas ao preventório.

O dia a dia no educandário

O Educandário Santa Catarina procurou atender as


exigências estipuladas no Regimento Interno dos Preventórios.
Assim, a importância de um corpo técnico designado à
organização e ao bom funcionamento dos estabelecimentos
preventoriais já era salientado no artigo 14 do documento
(Regimento Interno dos Preventórios, apud MONTEIRO,
1995). Integrava esse corpo, no abrigo catarinense, gente
capacitada ao exercício de diversificadas funções, como aquelas
que foram referenciadas no Relatório de 1942 da Sociedade
de Assistência aos Lázaros e entre as quais podemos destacar
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 245

a de enfermeira e educadora. Além desse pessoal, outros


profissionais da saúde também se fizeram presentes, como o
pediatra, o dermatologista e o dentista, de acordo com as
normas estabelecidas no âmbito nacional.
Art. 15. – Cumprirá ao médico-clínico pediatra examinar
semanalmente os internados, orientando o seu desenvolvimento
físico dentro das normas eugênicas e registrando o respectivo
aproveitamento intelectual.

Parágrafo único. Atenderá com brevidade aos chamados que


lhe forem dirigidos pela direção superior ou pelo administrador
do Preventório para medicar os internados enfermos.

Art. 16. – Competirá ao médico dermatologista-leprólogo manter


uma vigilância rigorosa sobre os internados, levando em conta
o grau de contagiosidade do foco onde provieram, a natureza e
o tempo de convivência, examiná-los mensalmente nos três
primeiros anos de internamento, efetuar as provas de laboratório
necessárias a esse fim e organizar as respectivas fichas.

Parágrafo único. Sendo constatado o mal de Hansen em


qualquer internado, esse doente ficará rigorosamente isolado e
o fato será comunicado pela direção superior a autoridades
sanitárias competentes, para as devidas e imediatas providências.

[...]

Art. 19. – A assistência dentária será cuidadosamente prestada


de modo que as doenças estomatológicas, sejam tratadas e
removidos os defeitos dentários de todos os internados
(Regimento Interno dos Preventórios, apud MONTEIRO, 1995,
p. 456).
Seguindo as diretrizes dispostas no Regimento Interno dos
Preventórios em relação ao corpo técnico especializado no
ramo da saúde, o Educandário Santa Catarina contou com a
presença dos seguintes profissionais: na área da dermatologia,
assumindo a posição de médico diretor, o leprologista Homero
de Miranda Gomes; na área da pediatria, o Dr. Armando de
246|Débora Michels Mattos

Assis; e no exercício da função de dentista, Armando


Menegote. Em relação ao atendimento dermatológico, o
médico Polydoro Ernani de São Thiago também prestou
serviços à instituição nos seus dez primeiros anos de funcio-
namento (SÃO THIAGO, 1996). Aliados a eles, procurando
dar suporte, como vimos, ao aparato idealizado de acordo
com os princípios eugênicos, profissionais capacitados à
articulação de atividades ligadas ao desenvolvimento físico
dos internos também fizeram parte desse corpo técnico. Eram
em geral militares, que além de ministrarem aulas de educação
física, davam incentivo à constituição de um espírito cívico
nas crianças e adolescentes internados.
No interior do Educandário Santa Catarina, a exemplo
de outros preventórios do Brasil, os saberes produzidos pelas
entidades assistencialistas ligadas ao universo da hanseníase,
pelos médicos, por pedagogos, literatos e políticos que
discursavam acerca do tratamento ideal a ser utilizado no
âmbito da infância, deram sustentação à configuração dos
instrumentos de controle e poder aplicados aos internos. Sob
a justificativa de manter a saúde, de afastar a ameaça e de
zelar pelo futuro dos filhos sadios dos enfermos, um cotidiano
se impôs à criança asilada, de forma brusca e incisiva. Esse
cotidiano foi marcado por mecanismos disciplinares que se
fizeram constantes nos mais diferentes aspectos da vida, desde
o raiar do dia até o anoitecer.
Às 6 horas da manhã, em geral, os internos eram
acordados pelas irmãs. Dispostos em amplos pavilhões
subdivididos por sexo e idade, iniciavam a rotina diária fazendo
a higiene pessoal. Cada ala dos pavilhões-dormitórios tinha
capacidade para o abrigo de aproximadamente 25 crianças.
Enquanto um grupo arrumava as camas, o outro era
encaminhado ao banheiro, onde havia os chuveiros e os vasos
sanitários. De acordo com o depoimento de uma egressa
internada no ano de 1941, esse processo se dava porque a
sala de banhos e higiene era pequena, devendo ser usada de
forma intercalada a fim de evitar tumultos:
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 247

Geralmente a irmã chamava, eu acho que às 6 horas. Então


era rapidinho todo mundo era feito divisão, um lado do dormitório
ia primeiro pro chuveiro, né?!, tomar banho, fazer a higiene
[...] e o outro lado, pra não dar muito tumulto, porque eram só
oito chuveiros e quatro patentes (Depoimento de EH. 14 mai.
2002).
Terminado esse processo, os internos eram encaminhados
à capela, onde assistiam missa ou faziam orações. Por volta
das 7 horas da manhã, dirigiam-se ao refeitório, onde faziam
o desjejum, que se restringia ao pão com doce acompanhado
de café. Nos primeiros anos de instituição, não havia variedade
na alimentação matinal, com ressalva para os dias festivos,
quando se ofereciam outros tipos de alimentos, como leite,
queijo e confeitos, conforme sugere a egressa AS., internada
durante a década inicial de funcionamento:
Era café com pão. Nem sempre café com leite, porque depois
foi criado, tínhamos vaca lá em cima também. Tinha leite. Era
mais fácil. Mas quando não tinha, com leite era mais assim
em época de festa. Era mais o café preto mesmo, o café preto
com pão [...] às vezes com melado. Raramente a gente tinha
pão com outras misturas. Era mais assim doce. Naquele tempo
não tinha margarina. A manteiga de vez em quando. Queijo
também. Mas era mais doce, era melado, era um doce de fruta
[...]. Muitas vezes eram compradas latas grandes [...]. Eu me
lembro mais assim do melado. O pão vinha já com o melado
passadinho (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
Embora as crianças de menor idade fossem tratadas de
forma particularizada pelas irmãs, que as mantinham em
pavilhão separado onde funcionava a creche, aquelas de maior
idade, após o café da manhã, ou eram encaminhadas à sala
de aula ou entregues ao labor do dia. Em relação à prestação
de serviços no interior da instituição, os artigos 31 e 32 do
Regimento Interno dos Preventórios deixavam claro o
aproveitamento dos internos para a realização de diversas
funções.
Art. 31. – Os internados maiores de 12 anos prestarão serviços
248|Débora Michels Mattos

pequenos ao Preventório, a título de aprendizagem, uma vez


julgados aptos a fazê-los, sendo aproveitado o pendor natural
que manifestarem por esta ou aquela atividade.

Art. 32. – Os internados maiores de 16 anos que prestarem


eficientes serviços ao Preventório receberão uma gratificação
nunca inferior a 30% do salário que era pago por trabalho
idêntico a empregado estranho (Regimento Interno dos
Preventórios, apud MONTEIRO, 1995, p. 458).
Para Gomide a legitimação do trabalho dos internos nas
instituições preventoriais, amparada nos discursos daqueles
que o caracterizavam como um importante instrumento
disciplinador, como o médico Nelson de Souza Campos, “[...]
foi uma forma de transformar a pobreza assistida em uma
‘pobreza rentável’, que se auto-sustentava, aliviando os
encargos da sociedade” (GOMIDE, 1991, p. 146).
De fato, o trabalho exercido pelos internados no âmbito
da instituição fazia com que não fosse necessária a contratação
de funcionários para a realização de algumas atividades, como
arrumadeira, cozinheira, lavadeira, faxineira, jardineiro,
marceneiro, enfim, atividades de caráter mais geral, a exemplo
da prática adotada em outras instituições preventoriais do país
(GOMIDE, 1991; MONTEIRO, 1995).
Olha, nós ajudávamos em todo o trabalho. As meninas, por
exemplo, nós tínhamos [...] tarefas como têm as filhas dentro
de casa. [...] E os rapazes, então, tinham também o serviço
deles, que geralmente era na horta. Eles ajudavam na horta e
o serviço também pesado que era lavação de pátio, essas coisas
assim [...] (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
Conforme depoimentos de egressos do Educandário Santa
Catarina, as atividades desenvolvidas por eles eram designadas
pelas irmãs franciscanas de acordo com uma escala que era
modificada semanalmente e afixada no refeitório. Nesse
sentido, nenhum interno desenvolvia um tipo único de serviço,
embora fosse comum o aproveitamento de pessoas ao
exercício de algumas funções específicas de acordo com a
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 249

habilidade. Esse aproveitamento muitas vezes acabava sendo


interiorizado pela criança alijada como algo benéfico ao seu
desenvolvimento, como salienta a egressa VM, internada em
1950 com a idade de 8 anos:
De acordo com a aptidão da pessoa, né?!, tinha cada um a
sua função, até porque nós tínhamos que estar ali para aprender
essas coisas. Uns trabalhavam em sala de costura, outros
trabalhavam em limpar o pátio. Muitas vezes eu fiz isso, trabalhei
limpando o pátio, varrendo, a gente tinha aquela função. [...]
E na cozinha a ajuda era lavar a louça. Tinha, por exemplo
assim: o dia ou semana era uma turminha, depois era outra
que ajudava as irmãs a lavar a louça (Depoimento de VM. 02
mai. 2002).
No cotidiano diário do abrigo, logo após o café da manhã,
enquanto alguns se dedicavam ao trabalho outros iam estudar.
No intervalo dado ao descanso e ao lanche, serviam-se frutas
para as crianças, sendo algumas delas colhidas ali. Esse
conjunto de atividades regradas era supervisionado pelas
irmãs, que ficavam atentas a qualquer eventualidade.
Terminado o turno matutino, os internos se dirigiam
novamente ao refeitório para almoçar. No almoço eram
servidos arroz, feijão, farinha, além de verduras e legumes
produzidos na instituição, como alface, couve, beterraba,
cenoura, etc. Esse cardápio diário podia sofrer variações,
incluindo batata, aipim e outros alimentos, que
acompanhados de carne, integravam parte da ração diária
oferecida.
O almoço era feito tudo lá, pelas irmãs. Havia muita coisa que
elas plantavam na própria horta, né?!, principalmente legumes
[...]. E o restante era comprado [...]. E o almoço sempre tinha
carne [...]. Então aquela carne era feita em grande quantidade,
aquela carne, como é?!, assada ou ensopada de panela. Cada
dia era diferente, né?!, e o feijão, o arroz, a farinha, esse era o
trivial do dia, e sempre, ou batata ou aipim, essas coisas que
eram produzidas ali (Depoimento de AS. 23 abr. 2002)
De acordo com o relatório acerca do Educandário Santa
250|Débora Michels Mattos

Catarina apresentado pelo diretor do Serviço Nacional de


Lepra em 1945, embora fossem cultivados determinados
alimentos na instituição, sobretudo frutas, verduras e
leguminosas, até o ano de 1944 foi constatada a sua ausência
nas horas de refeição (DANTAS, 1946, p. 21).
Conforme o mesmo relatório, algumas substâncias
necessárias ao desenvolvimento infanto-juvenil não estavam
sendo distribuídas de forma apropriada, como proteínas de
origem animal e glicídios, sendo recomendada, em substituição
as 1.489 calorias observadas no cardápio, a ingestão de 2.800,
como podemos observar nas tabelas 12 e 13:

Tabela 12
Ração Diária Per-Capita do Educandário Santa Catarina
(observada)
Gêneros Alimentícios Quantidade em Gramas Calorias
Açúcar 40 160
Arroz 80 265,6
Banha 5 43,5
Batata 80 63,2
Carne 135 188,7
Farinha de Mandioca 80 262
Feijão 30 94,2
Leites 200 127
Manteiga 2 17,1
Massas Alimentícias 20 68
Pão 10 200
Verduras - -

Fonte: DANTAS(1945/1946).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 251

Tabela 13
Ração Diária Per-Capita do Educandário Santa Catarina
(indicada)
Gêneros Alimentícios Quantidade em Gramas Calorias
Açúcar 100 400
Arroz 100 344,6
Banha 10 86,4
Batata 100 104
Carne 200 281
Farinha de Milho 80 260
Feijão 50 157
Frutas - -
Leite 500 295
Manteiga 10 76,5
Massas Alimentícias 50 153,6
Ovos 14 67
Pão 200 400
Verduras - -
Temperos - -
Total 1.464 2.782,1
Fonte: DANTAS (1945/1946).

Essa escassez alimentar, de acordo com depoimento de


uma irmã da Congregação Franciscana de São José que
trabalhou no Educandário Santa Catarina, ocorria pelo fato
de a Sociedade de Assistência aos Lázaros não fornecer uma
quantidade abundante de gêneros alimentícios ou verbas para
a aquisição dos mesmos:
A gente tinha que cuidar o máximo com comida e com tudo
assim, pra dar para as crianças, porque se a gente dava muita
carne, um pouquinho a mais, aí depois já faltava. Então a
gente tinha que cuidar muito (Depoimento de JH. 20 jul. 2002).
252|Débora Michels Mattos

Dando continuidade ao cotidiano da instituição,


semelhante ao que acontecia no período da manhã quando
se finalizava o desjejum ou o lanche, um grupo de internos
era designado à limpeza do refeitório logo após o almoço.
Havia os que recolhiam as louças e limpavam as mesas, os
que varriam o chão e arrumavam as cadeiras, enfim, tudo de
acordo com a escala de trabalho organizada pelas irmãs.
Então, ao término do trabalho, todos entravam no pavilhão
refeitório para descansar.
Aí, depois do almoço, [...] tinha uma turminha que ia varrer,
limpar,[...] fazer tudo direitinho. Quando era uma, uma e meia,
mais ou menos, nós sentávamos cada um no seu lugar e a
gente fazia, assim, um relaxamento. Eu acho que era uma
meia hora. [...] Então colocava a cabeça, né?!, assim sobre as
mãos, na mesa, e descansava um pouquinho, dava uma
cochilada, relaxava (Depoimento de EH. 14 mai. 2002).
Ao fim do descanso, algumas crianças permaneciam no
local, onde eram feitas as tarefas escolares. Já outras se dirigiam
à sala de aula, iniciando os estudos do dia. Entre uma atividade
e outra, durante o período da tarde, uma rotina de labor,
estudo e lazer se constituía. Ao anoitecer, logo após o jantar,
os internos rezavam, conversavam entre si e iam dormir.
No interior da instituição tudo tinha o seu lugar, a sua
designação, a sua forma de ser. As camas eram dispostas
linearmente, sendo todas elas acompanhadas de um criado-
mudo para que fossem guardados alguns pertences de uso
pessoal, como material de higiene ou recordações da família.
O roupeiro encontrava-se ao centro de cada pavilhão
dormitório e possuía espaços delimitados ao uso individual.
As vestes seguiam um critério de uniformização, sobretudo as
que eram utilizadas nos horários escolares ou em datas
especiais. Uma cultura de ordem se fazia reinante no universo
institucional. Nesse universo, procurava-se padronizar os
gostos, as vontades, as condutas e os modos de ser dos
internos, de maneira que a rotina cotidiana instaurada
garantisse a soberania do sistema.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 253

Ainda que o Educandário Santa Catarina tenha feito parte


do primeiro grupo de “instituições totais” referenciado por
Goffman (1961), aquelas destinadas ao atendimento de
pessoas consideradas inofensivas ao meio social, como
indigentes, idosos, cegos e órfãos, ele também integrou o
segundo grupo salientado pelo autor, ou seja, os
estabelecimentos alçados para pessoas incapazes de cuidar
de si e entendidas como ameaça à sociedade, uma vez que o
filho sadio do enfermo de hanseníase era por muitos
considerado um mal. De fato, conforme nota apresentada
num jornal catarinense em 1936, torna-se possível observar
em que medida ele era caracterizado ameaça à população:
O filho do lázaro, que hoje brinca despreocupado ao lado do
teu filho, talvez traga consigo o germe do mal terrível. Trabalha,
pois, em prol do “preventório”, a fim de resguardar dos perigos
da lepra aqueles que te são caros (DIÁRIO DA TARDE, 08 dez.
1936).

Estudo, Lazer, e Relacionamentos Pessoais

Conforme o Regimento Interno dos Preventórios, os


estudos deveriam seguir, no âmbito das instituições
preventoriais, pressupostos básicos à constituição de uma boa
educação. Esses pressupostos passavam pela alfabetização,
estendiam-se ao direcionamento dos internos a atividades de
cunho profissionalizante, davam ênfase ao desenvolvimento
moral, cívico e cultural, sem deixar de procurar dar incentivo
ao desenvolvimento físico do indivíduo, de acordo com os
princípios eugenistas em voga no momento. Nesse sentido,
assim eram dispostos os seus artigos:
Do Ensino
Art. 23. – No Preventório haverá os seguintes cursos:
a) Jardim de Infância;
254|Débora Michels Mattos

b) Primário, de acordo com o programa oficial;


c) Escola doméstica em todas as suas múltiplas atividades;
d) Pequena lavoura e trabalho de campo;
e) Artes e ofícios.
Parágrafo Único. No caso de manifestar qualquer internado
pendor para as letras, artes ou ciências, a direção superior
providenciará sobre a sua instrução fora do estabelecimento,
custeando todas as despesas.
Art. 24. – No Preventório será também criado um curso de
cultura física dentro dos moldes modernos.
Art. 25. – A educação moral e cívica fará parte de todos os
cursos, organizando a administração de acordo com a direção
superior, os programas a serem realizados nas datas que
assinalem os fatos de relevo da nossa história, de modo a
incentivar o culto pela pátria e pela bandeira nacional.
Art. 26. – Os programas e horários de ensino deverão ser
organizados pelo educador e pelo administrador e previamente
apresentados à direção superior para a devida aprovação.
Art. 27. – Como estímulo aos internados, o administrador
organizará, com aprovação da direção superior, passeios, jogos,
festivais, prêmios, etc., a serem oferecidos aos que mais se
distinguirem pelo bom comportamento e aproveitamento dos
estudos (Regimento Interno dos Preventórios, apud MONTEIRO,
1995, p. 457).
Durante os dez primeiros anos de funcionamento do
Educandário Santa Catarina, as irmãs da Congregação
Franciscana de São José, designadas à administração, foram
as principais responsáveis pela aplicação das diretrizes dispostas
no Regimento Interno dos Preventórios em relação aos
estudos. Ainda que o governo do Estado tenha legitimado a
abertura do jardim de infância, da escola primária e de um
centro de cultura física na instituição, foi a partir das atividades
articuladas pelas irmãs que tais diretrizes acabaram sendo
atendidas.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 255

No ambiente institucional, integravam internos das mais


diferentes idades, vindos de lugares distantes onde a educação
era inexistente ou se fazia de forma precária. Alguns deles
pertenciam a colônias de imigrantes, sobretudo alemãs, onde
a língua estrangeira prevalecia. A escola, nesse sentido, acabou
funcionando, primeiramente, como um elemento de ajuste
ao novo universo ao qual muitas crianças e adolescentes
foram submetidos. Mas além disso, procurou conformá-los,
discipliná-los e prepará-los para a constituição de uma vida
futura em consonância com os ideais de progresso almejados.
O ensino profissionalizante, como o de corte e costura,
prendas domésticas, carpintaria, marcenaria e trato com a
terra eram ministrados de maneira informal. Ainda assim,
seguindo o parágrafo único disposto no artigo 23 do
Regimento Interno dos Preventórios, procurava-se dar
incentivo ao aprimoramento do indivíduo quando ele
demonstrava tendência habilidosa à realização de alguma
atividade, promovendo o seu aperfeiçoamento fora do
estabelecimento.
As meninas [...] maiores que tinham jeito para a costura, elas
fizeram a Escola Profissional Feminina. [...] Fizeram costura e
bordado aqui e se profissionalizaram na Escola Profissional
Feminina Jorge Lacerda. [...] Era conforme a habilidade mesmo.
Por exemplo, as meninas que iam fazer a Escola Profissional,
elas que realmente sabiam lidar com costura e bordado. Eram
as mais prendadas (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
Esse aperfeiçoamento também era feito no âmbito da
complementação dos estudos escolares, uma vez que o
Educandário Santa Catarina só possuía o jardim de infância
e as quatro primeiras séries iniciais. Assim, aos meninos e
meninas que completavam os estudos no interior da
instituição, articulava-se a continuidade dos mesmos em
algumas escolas da região, como o Instituto Estadual de
Educação ou o Ginásio Dias Velho de Florianópolis, onde
eram realizados os cursos ginasial e secundarista (CARVALHO,
1952).
256|Débora Michels Mattos

Monteiro (1995) afirma que os preventórios dentro do


perímetro urbano das cidades tinha como objetivo, além de
estabelecer um maior contato dos internos com o mundo
fora do estabelecimento, facilitar o aprimoramento dos
estudos. Sobre isso Campos e Bechelli enfatizavam:
Insistimos também sobre as vantagens que advém da localização
dos preventórios nas cidades sob o ponto de vista social e
educacional [...]. A facilidade de estudos secundários como o
ingresso nos ginásios, escolas normais ou de comércio, escolas
agrícolas ou profissionais, facilitam o encaminhamento das
crianças, sem que aumentem os custos do preventório (CAMPOS;
BECHELLI, 1948, p. 49, apud MONTEIRO, 1995, p. 364).
Embora o preventório de Santa Catarina estivesse a 8
quilômetros da capital, essa distância não era vista como um
problema para os internos que estudavam fora, uma vez que
as irmãs franciscanas ou a própria Sociedade de Assistência
aos Lázaros articulavam os meios para que fosse feita a
locomoção dos internos à escola. Esses meios, algumas vezes,
requeriam o trabalho do adolescente internado, como
demonstra o depoimento concedido pela egressa AS:
Nós saíamos de manhã cedo, entendeu?!, para estar no Ginásio
Dias Velho. [...] Então a gente às vezes tomava o ônibus das
seis horas da manhã, e esse passe a irmã conseguia, que eu me
lembro que ela sempre deu um jeito de conseguir o passe pra
nós. Numa época era com produtos de artesanato, bordado,
essas coisas que a gente fazia lá dentro. Outras vezes ela
conseguia que, em substituição de professores, as próprias
meninas fossem nomeadas, não é?!, e quem tinha mais
capacidade substituía os professores. [...] Havia um acerto,
não é?!, a irmã conseguia isso, e com esse dinheiro era rateado
pra comprar o passe para os que iam estudar no Instituto de
Educação. [...] Houve uma época que a Sociedade tinha uma
caminhonete. Então essa caminhonete muitas vezes também
fazia o nosso transporte. Era mais a volta, porque essa
caminhonete tinha que fazer todas as voltas da Sociedade e às
vezes dava carona no caminho de volta (Depoimento de AS.
23 abr. 2002).
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 257

Esse incentivo à complementação dos estudos se dava


através de uma seleção feita entre os internos que mais se
destacavam no âmbito do bom comportamento e do
aproveitamento escolar, a exemplo da prática adotada em
outros preventórios, como o de Araguari em Minas Gerais
(GOMIDE, 1991). Sendo assim, apenas um pequeno grupo
de adolescentes do Educandário Santa Catarina avançava
nos estudos, ampliando as suas perspectivas de futuro ao
saírem dali.
Os quatro anos eu fiz no Instituto [...]. Então teve ali um tipo
de seleção que elas fizeram, então assim elas botaram nós
quatro, né?!, tinham bolsa duas meninas e dois rapazes. Então
fomos nós escolhidos para ir, para estudar no Instituto. Então
nós fomos privilegiadas porque nós fizemos os quatro anos no
Instituto. Esse L., depois passou no concurso da Caixa
Econômica. Trabalhou na Caixa Econômica até se aposentar
(Depoimento de EH. 14 mai. 2002).
No abrigo, outras atividades educativas também eram
estimuladas, como a música e o teatro. Um grupo inicial de
24 meninas e meninos, coordenados pela irmã Rodolfa1,
integrou o Coro Infantil São Tarcísio, que no início esteve
voltado aos cantos sacros. Posteriormente ele recebeu a
denominação de Coro Orfeônico do Educandário Santa
Catarina, tendo como carro chefe o Canto do Pajé, de Vila
Lobos. Em festas, eventos, comemorações cívicas e religiosas
que ocorriam dentro e fora do estabelecimento, as irmãs
articulavam a apresentação do grupo musical, que era muitas
vezes chamado para cantar junto com outros corais da capital,
como a Orquestra Juvenil de Florianópolis.
Essa Orquestra Juvenil de Florianópolis, não é?!, tinha um grupo
que pertencia a essa Orquestra que visitava muito o Educandário.
[...] Então eles se interessaram, viram que a gente cantava e se
interessaram de fazer apresentação juntos. Fomos até Laguna
juntos com eles. [...] A gente se deslocou mais longe com o
coral. Nós uma vez fomos cantar em Angelina, lá no colégio
das irmãs. Naquela época nós cantávamos em latim. Isso eu
258|Débora Michels Mattos

lembro sim. Isso eu lembro. Tudo em latim. Era uma


papagaiada. Nós não aprendíamos, mas nós decorávamos,
né?!,[...] porque naquela época era tudo em latim. [...]
Cantamos também um trânsito de São Francisco na igreja de
Santo Antônio. Participamos também da missa de inauguração
da igreja do Estreito. O nosso coral era chamado. Era muito
bom (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
No que concerne ao teatro o mesmo incentivo era dado.
As peças eram tiradas dos livros e ensaiadas pelas crianças
sob a coordenação das irmãs franciscanas. O material
necessário à confecção das roupas era obtido através de
doações, rifas ou venda de alguns artigos produzidos na
instituição, como bordados. Encenava-se drama ou comédia
e a escolha dos atores se fazia por critério de seleção, sendo
que o espetáculo era apresentado dentro e fora do
preventório.
Apresentávamos lá naquele palco, geralmente à noite, depois
da refeição, né?!, porque ali, inclusive, muito teatro nós fizemos
ensaiados pelas irmãs mesmo, e depois a gente foi apresentar
fora. Nós fomos apresentar na inauguração do hospital de
Ituporanga. Foi a turma toda que era do teatro. [...] Depois a
gente apresentava e depois a gente, assim, começava até a
cobrar, os ingressozinhos pra redondeza, né?!, [...] pra aquele
dinheirinho ajudar. E também aonde nós íamos apresentar fora,
também cobrávamos, e o dinheiro pro ônibus era nós que
bordávamos e fazíamos tricôs. A gente vendia rifa, nós saíamos
de, assim, de quatro, com aqueles lençóis bonitos, aquelas
toalhas bordadas à mão, [...] mãos de fada mesmo [...]
(Depoimento de EH. 14 mai. 2002).
A organização de festas permitia que os internos
mantivessem contato com inúmeras pessoas, à medida em
que não era rara a presença da comunidade vizinha à
instituição nos eventos promovidos. Nesses eventos as meninas
e meninos aproveitavam para mostrar suas habilidades na
música, no teatro e na educação de uma forma geral. Embora
os visitantes demonstrassem admiração pelas atividades
desenvolvidas ali, por aquelas crianças e adolescentes saudáveis
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 259

do ponto de vista clínico, o preconceito em relação a elas,


muitas vezes, não deixava de se fazer presente, quando
atitudes de medo e rejeição acabavam sendo percebidas.
Não podia beijar, [...] depois de apertar a mão, chegavam a
pedir para a gente primeiro:

– Tem álcool? – para lavar as mãos (Depoimento de SB, 20


jul. 2002).
De fato, embora a instituição recebesse inúmeros visitantes,
como membros da comunidade local, políticos, médicos,
representantes das Sociedades de Assistência aos Lázaros
espalhadas pelo Brasil, a maior parte deles esclarecidos acerca
dos meios de transmissão e aquisição da doença, cientes de
que os filhos sadios dos enfermos não representavam riscos
ao meio social, não havia um contado aproximado com os
internos. No âmbito do universo institucional, nas relações
estabelecidas entre as administradoras e os menores ali
internados, essas atitudes de afastamento também eram
percebidas, a exemplo do beijo, que se caracterizava gesto de
carinho proibido no interior do abrigo.
Mas era proibido as crianças, a gente não podia beijar uma
criança, a criança beijar. Era proibido. Então, nós éramos avessas
a isso mesmo, né?!, mas eu me lembro que a criança, uma
pequena então queria muito me beijar e eu disse:

– Não. Não Pode!

[...] Depois ela trepou numa cadeira e me beijou, sabe, trepou


numa cadeira e me beijou (Depoimento de SB, 20 jul. 2002).
Atitudes como essa eram justificadas pela possibilidade dos
internos desenvolverem a doença, uma vez que o bacilo passa
por um longo período de incubação até que a moléstia
apresente os seus primeiros sinais. Contudo, no Educandário
Santa Catarina, essas crianças eram examinadas
periodicamente pelo médico especialista, e mesmo que em
260|Débora Michels Mattos

algumas delas fosse constatada a presença da hanseníase, essa


constatação se fazia, normalmente, em sua fase inicial, ou
seja, quando a enfermidade não oferece o risco de contágio.2
Em meio às atividades de caráter educativo que se faziam
presentes, mesmo aquelas voltadas ao desenvolvimento físico,
que de acordo com os pressupostos eugênicos de
aprimoramento da raça objetivavam “contribuir para a
robustez e a saúde das crianças” (REVISTA DE COMBATE À
LEPRA, 1943, p. 143), mesclavam-se atividades de lazer,
realizadas dentro da instituição, no horário dos intervalos
escolares, nos momentos de descanso entre uma tarefa e
outra, durante os finais de semana, nos dias de carnaval.
Ao contrário do que acontecia no preventório de Jacareí,
em São Paulo, em que as atividades de lazer se restringiam a
passeios ao cinema (MONTEIRO, 1995), em Santa Catarina
elas ocorriam com frequência, sendo lembradas como
importantes momentos de felicidade por alguns egressos.
O lazer [...] que eu gostava muito, antes de dormir, por exemplo,
depois do jantar,[...] a gente ia para a capela, era verão, e
depois da capela brincava no pátio, nós tínhamos um parque,
aliás, nós tínhamos um parque, tínhamos balanço, campo para
jogar futebol, tinha, enfim, tudo que tem assim num parque
nós tínhamos lá. Então a gente ia brincar, [...] correr, enfim
(Depoimento de VM. 02 mai. 2002).
Na lista das atividades de lazer desenvolvidas, as idas à
praia também se constituíam fonte de satisfação.
Íamos muito à praia, porque era só sair dali, na rua geral, ali
tinha uma praia. Naquele tempo não era poluído. Nós
tomávamos banho, sempre íamos. Inclusive eu pegava as
crianças da creche, essas que já tinham três anos, geralmente
tinha dez, onze, doze crianças. Eu com mais uma Irmã [...]
levávamos as crianças lá para brincar naquela areia [...]
(Depoimento de EH. 14 mai. 2002).
A atenção dada à promoção de passeios fora do abrigo
tinha como objetivo, de acordo com nota apresentada na
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 261

Revista de Combate à Lepra, diminuir os problemas de ajuste


social e de preconceito que revestiam a doença:
Alma nobre, [...] digna presidente da Sociedade de Santa
Catarina, compreende, perfeitamente, os graves problemas de
reajustamento social que são necessários observar quando se
trata de devolver ao filho sadio do lázaro, pronto a iniciar a
vida em igualdade de condições. Assim, promove a hábil
diretoria da Sociedade de Santa Catarina, passeios, diversões,
etc., que levam os seus internados a sair do âmbito restrito do
Educandário, para que eles sejam conhecidos lá fora nas ruas
da capital não como filhos dos lázaros, mas como meninos
educados, fortes, sadios e felizes (REVISTA DE COMBATE À
LEPRA, 1943/1944, p. 111).
Segundo depoimento dado pela egressa AS, embora
fossem verificadas atitudes de preconceito no interior do
abrigo, quando alguns visitantes solicitavam o “álcool” para
limpar as mãos, fora, no trato com crianças e adolescentes, o
mesmo não acontecia, e o que se observava por parte dessas
pessoas era uma certa admiração:
Olha, o contato com outras crianças, nós mantivemos
normalmente quando passamos a freqüentar o colégio em São
José. E não sentíamos isso não. Eu acho que a criança e o
jovem é mais aberto, né?! Eles tinham uma curiosidade em
relação a nós, porque eles nos achavam diferentes de educação.
Eles diziam:

– Vocês foram criados por freiras! (Depoimento de AS. 23 abr.


2002).
Embora a distração fora da instituição fosse, de certa forma,
privilégio dos internos de maior idade, não havia, nesse
privilégio, indícios de discriminação, como os evidenciados
no preventório de Araguari, no Triângulo Mineiro, em que
aqueles autorizados a frequentar festas e bailes na cidade eram,
de maneira evidente, os mais bonitos, os mais bem
apessoados, mas sobretudo os de cor branca (GOMIDE,
1991).
262|Débora Michels Mattos

Em relação à cor, é provável que no Educandário Santa


Catarina não pudessem ser observadas atitudes
discriminatórias em virtude do ínfimo número de internos
não brancos. De fato, durante os seus dez primeiros anos de
funcionamento e de acordo com os dados verificados no livro
de registros de internamentos, das 301 crianças que
integraram o universo da instituição apenas 2 eram negras,
sendo 16 pardas e as 283 restantes brancas. Assim, no âmbito
da composição racial, cada uma delas representou a seguinte
porcentagem, como demonstra o gráfico de número 10:

Gráfico 10

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos


do Educandário Santa Catarina.

Entre alguns dos passeios que eram realizados,


destacavam-se piqueniques na praia, caminhadas pelos bairros
vizinhos, visitas à Escola de Aprendizes Marinheiros, vôos
panorâmicos pela capital. De fato, a influência das irmãs
franciscanas era grande, facilitando a articulação de meios
para o desenvolvimento de atividades de lazer. Assim,
utilizando um discurso de caridade moral cristã, não era raro
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 263

conseguir pessoas dispostas a oferecer momentos de


“felicidade” aos filhos sadios dos doentes.
Quantas vezes eu fui até na ponte de Florianópolis. [...] E aí a
gente chegava lá na [...] Marinha. Aí eu chegava lá e pedia:

– Olha, vocês não deixam as crianças entrar um pouquinho,


pra ver um filme, uma coisa? As coitadinhas nunca têm! Aí
nós entrávamos e ficávamos lá uma hora, assim, apreciando
tudo. [...] Ah, eles ficavam felizes da vida (Depoimento de JH.
20 jul. 2002).
Em meio ao cotidiano estabelecido, fortes amizades se
faziam, e embora houvesse um grande controle sobre os
internos, as atividades desenvolvidas em comum permitiam,
inclusive, a aproximação entre os sexos. Nos momentos de
lazer que ocorriam dentro da instituição, sobretudo durante
as horas de descanso logo após o jantar, quando moças e
rapazes se reuniam no pátio para ouvir música ou conversar,
flertes acabavam acontecendo, embora de forma bastante
sutil. Isso porque o namoro não era permitido, salvo raras
exceções, quando o casal estava próximo de completar maior
idade e tinha condições de se manter fora dali. Contudo, o
que se observava era uma constante vigilância em relação ao
contato aproximado entre os sexos, sendo a sua comprovação
motivo de severas punições.
Quando começou mesmo o Educandário, [...] com adolescente,
havia essa troca de bilhetinhos, aquela história toda, e havia
muita vigilância, [...] houve, eu acho, que até muito castigo a
respeito disso [...] (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
Essas punições, em geral, ocorriam de maneira explícita a
fim de impedir que outros internos cometessem o mesmo
ato. Na maioria das vezes o transgressor era ridicularizado na
frente de todos, como sugere a egressa VM em seu
depoimento:
Normalmente a gente sabia quando as pessoas levavam castigo,
inclusive havia uma moça, [...] muito linda a moça, e não
264|Débora Michels Mattos

lembro bem o que ela fez, me parece que ela tinha arrumado
um namoradinho, né?!, então eles rasparam o cabelinho dela,
ela tinha uma cabeleira linda, rasparam e ela ficou com aquela
cabeça raspada durante muito tempo, até crescer o cabelo
(Depoimento de VM. 02 mai. 2002).
O mecanismo de amparo e profilaxia objetivava ser perfeito
nos seus mais diferentes aspectos, inclusive no resguardo da
integridade moral. Logicamente, na visão das administradora,
confiadas ao trato diário com os internos, designadas ao
provimento de sua educação, de sua saúde, de sua proteção
física, o namoro poderia resultar em problemas mais sérios,
como uma gravidez, o que seria imperdoável, uma vez que
as falhas não eram compatíveis com o sistema idealizado.
Com efeito, a questão da sexualidade já não era algo que
as irmãs sabiam lidar com desenvoltura. Até mesmo no âmbito
da menstruação os encaminhamentos ficavam a cargo das
internas maiores, que ensinavam às menores os procedi-
mentos a serem tomados quando o primeiro ciclo surgia, como
o cuidado em relação à higiene pessoal. Embora a vigilância
no que concerne ao namoro fosse exercida sobre todos, ela
se constituía ainda maior sobre as meninas, quando estas
davam mostras de estarem entrando na mocidade.
Olha, era um pouquinho complicado, mas as irmãs
procuravam, era uma época que isso tudo era meio tabu, se já
era difícil de os pais falarem, para elas também não era fácil.
Mas havia as maiores, não é?!, [...] porque quando eu entrei
no Educandário, eu entrei com oito anos mas já tinha meninas
[...] que entraram com seus quinze, dezesseis, que já eram
mocinhas [...]. Engraçado é que quando a gente ia se
aproximando dos doze anos elas já estavam com as toalhinhas
higiênicas todas preparadas. Isso já era tudo já preparado.
Naquela época ainda não havia o modess e era muito
complicado. [...] Eu me lembro, assim, de elas mostrarem mais
regras de higiene, como é que deveríamos fazer a higiene pessoal.
[...] A gente fazia a higiene também das toalhas [...]. Isso era
complicado porque a gente deveria fazer com a máxima
discrição pra não deixar as pequenas perceberem, porque elas
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 265

poderiam não entender e achar que a gente estava doente. O


sangue era sempre um motivo de esconder. Era complicado
(Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
Mas nesse cenário marcado pela presença de pessoas
advindas de inúmeros locais, com idades diferentes e culturas
singulares, brigas aconteciam, sendo os beligerantes sujeitos
à punição.
Tinha um tal de quarto escuro que todo mundo tinha pavor.
Olha, era um quartinho que geralmente eu acho que era pra
guardar, guardar material de limpeza [...].

– Olha, você vai pro quarto escuro! – isso era um verdadeiro


pavor. Menino ia pra lá, não é?! Não me lembro de menina ir
pra quarto escuro não. Ma eu me lembro que muitas vezes os
brigões paravam lá, não muito tempo, mas o tempo possível
pra ver se iam fazer as pazes e pedir desculpas [...] (Depoimento
de AS. 23 abr. 2002).
Procurando garantir o seu espaço, onde a individualidade
se perdia no interior de uma estrutura coletiva, as crianças e
adolescentes acabavam desenvolvendo mecanismos de
defesa, como sugere a egressa VM, ao falar sobre a amizade
entre meninos e meninas:
No parque, eles também vinham brincar e brincavam juntos.
Eles disputavam com a gente, como se fosse, por exemplo,
irmã e irmão em casa, na casa da família. – Não, isso aqui é
meu!

– Não, isso é meu, foi eu que ganhei!

Tinha essas coisas assim, sabe?! Às vezes a gente ficava brava


com um e, por exemplo, se tinha um menino incomodando, as
próprias meninas que estavam brincando se encarregavam de
tocar eles dali. Uma vez [...] tinha um menino que estava
incomodando, as meninas pegaram e deram uns tapas nele e
mandaram ele pra longe (Depoimento de VM. 02 mai. 2002).
Mas se por uma lado o Educandário Santa Catarina, ao
longo de seus dez primeiros anos de funcionamento,
266|Débora Michels Mattos

conseguiu atingir as metas estabelecidas em termos de


profilaxia e amparo às crianças, por outro isso aconteceu
mediante um sistema imbuído de práticas severas, como as
que veremos a seguir.

O lugar da rigidez

O aparato profilático construído acerca da hanseníase


permitiu que o tratamento dispensado à prole salubre do
enfermo fosse, igualmente àquele relegado aos seus pais,
extremamente duro. Essa dureza se iniciava no momento da
separação familiar, quando o serviço de profilaxia recolhia os
doentes para serem levados ao hospital colônia e, ao mesmo
tempo, encaminhavam os seus filhos sadios à instituição
preventorial.
Embora não fosse proibida a guarda da criança aos
parentes mais próximos comprovadamente incólumes,
enfatizava-se que o ideal seria o internamento no preventório,
uma vez que eles poderiam ser constantemente examinados
pelo médico leprologista, afastando o risco de transmissão no
caso de supostamente desenvolverem a doença, como
afirmava São Thiago:
Ora, o isolamento desse doente, medida profilática soberana,
não resolveria a situação. Não estaria realizada a profilaxia,
porque os filhos seriam distribuídos entre os vizinhos ou entre
parentes sadios, iriam entrar em promiscuidade com outras
crianças: novos focos em atividade da doença surgiriam dentro
de alguns anos, com toda a probabilidade. [...] No preventório
essas crianças serão encaminhadas para a seção de
comunicantes; sobre o mesmo será exercida atenta e constante
vigilância, feita pelo observador especialista que, ao primeiro
alarme ou suspeita, correrá munido de recursos tais para cortar
o mal pela raiz (SÃO THIAGO, 1944, p. 15).
Para os pais, confinados compulsoriamente na colônia
agrícola, a hipótese do desamparo dos filhos terminava por
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 267

induzi-los a acreditar que o preventório era a solução ideal


para o problema do abandono. Assim, não ofereciam
resistência e aceitavam a internação da criança.
Para os filhos, alguns deles mais velhos, cientes do que
estava acontecendo, o medo se caracterizava o principal
sentimento a fazer parte do novo cotidiano e, embora muitos
fossem preparados para essa situação, alguns até persuadidos
a achá-la aprazível, a ruptura com os pais se constituía em
fonte de dor, causando inconformidade e revolta no momento
do internamento.
Eu sei dizer que era uma tristeza, às vezes, viver lá dentro.
Quando vinham com os pais, aquela ambulância toda fechada
parava lá na frente e saíam aquelas crianças. Três, quatro,
cinco filhos, né?! Os pais, lá dentro do carro, não saíam.
Leprosos, né?! Queriam se despedir, era uma choradeira. [...]
Uma vez veio lá de Bom Retiro, daquele lado, de Bom Retiro
não, de Campos Novos, lá tinha muitos leprosos. Então
trouxeram os leprosos e as crianças até lá. Eram entregues a
nós, quatro, cinco crianças. De repente, então, aquela
choradeira, e alguém disse:

– Onde está o menino?

– Ah, não sei!

Ele não estava agarrado debaixo do carro! Debaixo do carro


ele estava agarrado lá e não queria largar. Nós tivemos que
arrancá-lo dali. Era uma choradeira, vinham tristes mesmo.
Eram coisas muito tristes (Depoimento de SB. 20 jul. 2002).
Fatos como esse eram comuns e deixavam de se fazer
constantes quando, em raras exceções, um diálogo prévio
era estabelecido com a criança, fazendo com que ela
acreditasse na possibilidade de um futuro feliz e na suposta
cura do pai, como sugere a egressa AS ao relatar a sua
experiência:
Eu me lembro que eles foram apanhando todos os internados
daquela região. Foi, assim, uma viagem dantesca, de calor,
268|Débora Michels Mattos

não é?!, aquela ambulância fechada, não podia abrir em


perímetro urbano, só quando chegava num lugar mais isolado
que eles abriam. As pessoas sentiam-se mal, não é?!, enjoavam
muito. Até eu, criança, primeira vez viajando [...]. Daí eu me
lembro a nossa chegada no Departamento de Saúde Pública.
[...] Ali a gente era novamente todos examinados. Eu era a
única criança dentro daquela ambulância, tinha oito anos. E
eu me lembro que lá pelas tantas papai disse:

– Minha filha, eu sempre sonhei que eu queria que você


estudasse num colégio de Schwesters, de irmãs, assim como
eu freqüentei, e eu não tinha condições de te dar isso lá no
interior, e agora vai acontecer, você se lembre só disso, que
você vai para o lugar onde o papai sempre sonhou que tu
deverias ser educada.

E aquilo eu fiquei, não é?!, na expectativa desse sonho que ele


também sempre alimentou [...]. Então eu sei que, de repente,
veio conversar comigo aquele senhor alto, não é?!, magro. Era
o Dr. Polydoro. Ele disse:

– Agora nós vamos fazer um passeio bonito no meu carro, –


ele disse – eu vou te levar para um lugar onde tem muitas
crianças.

[...] Para mim aquela expectativa foi muito bonita. Então eu


não chorei naquela hora, porque ele disse:

– O papai também está indo para um hospital onde ele vai ser
muito bem tratado e ele disse pra você ficar contente porque
você vai para o colégio onde ele queria que você fosse
(Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
De acordo com o depoimento acima, em relação à
locomoção da criança que era internada na instituição
preventorial, podemos observar que não havia cuidado em
se preservar a sua saúde, uma vez que ela era transportada
junto com pessoas enfermas e em condições de extrema
precariedade. Esse fato revela a linha tênue que unia os
mecanismos de profilaxia alçados para o filho sadio do
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 269

enfermo e o preconceito que revestia a enfermidade. Assim,


as mesmas práticas cruéis que aumentavam os estigmas acerca
da “lepra” eram impostas, também, àqueles que não eram
portadores.
De fato, o estigma integrou o universo cotidiano dos filhos
sadios dos doentes durante todo o período em que eles
estiveram ligados à instituição preventorial, quando em face
do tratamento que lhes era dispensado, por exemplo, tornava-
se possível perceber a singularidade da situação ao qual
haviam sido submetidos. No Educandário Santa Catarina,
esse processo tinha o seu início no pavilhão de observação,
para onde as crianças eram primeiramente encaminhadas.
Embora elas já tivessem sido examinadas pelo serviço
profilático, ali, no pavilhão de observação, novos exames
eram feitos, objetivando descartar a hipótese de alguém ser
um portador.
Aí, a chegada lá, [...] fomos todos lá primeiro para uma
adaptação. Era um pavilhão. [...] Inclusive, assim, tinha um
refeitório, tinha onde dormia o responsável, né?!, a gente ficava
ali pra, mais assim, não era, eu acho que não era adaptação
com os outros que já estavam lá. Eu acho que era mais, assim,
para haver uma observação sobre a doença, que era uma coisa
assim, porque eu sei que vinha sempre médico lá, examinavam
e, pra ver se tava tudo bem com a gente (Depoimento de EH.
14 mai. 2002).
De acordo com o Regimento Interno dos Preventórios, a
periodicidade dos exames, como já foi salientado, se fazia
prescrita no seu artigo 15. Contudo, caracterizava-se
importante a coleta de alguns dados para haver um maior
controle sobre a criança, como procedência, tempo de
convivência com o enfermo, etc. Munido da guia e ficha do
comunicante, entregues à instituição no momento do
internamento, o médico especialista montava um dossiê acerca
do interno, que era alterado toda a vez em que era examinado.
Nesse dossiê, encontravam-se o nome completo da criança,
o sexo, a cor, o endereço de origem, o nome dos pais, a data
270|Débora Michels Mattos

de nascimento, a procedência, o tempo de convivência com


o enfermo e o tipo clínico da doença, as consultas, os exames
e os diagnósticos prescritos, as vacinas, os atestados de saúde,
além de outros atendimentos, tanto no âmbito da hanseníase
quanto de outras enfermidades.
O dia do exame se constituía num verdadeiro terror, uma
vez que através dele poderiam ser detectados novos infectados.
O rechaço aos pais doentes, os estigmas atribuídos a eles,
observados pela criança quando ainda viviam juntos,
despontava no imaginário infantil, provocando horas de
ansiedade.
Uma das coisas que também me deixou, me deixava muito
apavorada, era no dia que o médico chegava para nos
examinar, porque eu sempre tinha medo que descobrissem a
doença em mim e me colocassem na Colônia (Depoimento de
VM. 02 mai. 2002).
Com pequenas placas de vidro, aquecidas ou resfriadas, o
médico fazia o teste do toque, procurando verificar o grau de
sensibilidade. Além do constrangimento que era, sobretudo
aos internos maiores, a nudez diante do clínico, o medo de
que a “lepra” fosse constatada os acompanhava até o
momento do diagnóstico final.
O exame a gente não gostava muito não. Eu tenho a impressão
de que era meio constrangedor, [...] porque a gente tinha que
praticamente tirar a roupa, não é?!, a gente ficava de costas e
eles encostavam na gente, principalmente se havia alguma
desconfiança, alguma mancha na pele. Devia ser vidrinhos com
água quente e fria, e a gente tinha que dizer se sentia ou não
sentia, não é?!, aquele contato. [...] E todo mundo tinha medo.
Na verdade, além de ser para a gente constrangedor, apesar de
a Irmã nunca deixar de estar junto, mas também era o medo
de sair dali direto pro pavilhão e depois ir para a Colônia. Isso
era o medo, [...] de estarmos também desenvolvendo a doença
(Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
Embora as Irmãs franciscanas conseguissem detectar um
suspeito, sobretudo os de menor idade, quando ainda
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 271

necessitavam de cuidados que permitiam a análise visual sobre


o corpo, a comprovação de um caso era sempre motivo de
desespero para aquele que se via na condição de doente,
como sugere o depoimento de SB ao relatar a história de um
rapaz acometido:
Eu sei que nós tínhamos um aluno grande lá, que era o R. De
repente apresentou uma mancha no corpo e ele ficou nervoso,
era um rapaz bonito, família de Criciúma. Então o médico fez
o exame, até eu estive junto. As costas, deixou sem camisa o
rapaz e fez a aplicação da plaquinha, a plaquinha quente do
fogo, eles tinham uma plaquinha de vidro, né?!, eles punham
nas costas e, mas quente mesmo, tirado do fogo. E ele perguntou:

– Escuta, você sente quente ou frio?

Ele disse:

– Ah, é frio – aí depois o médico disse:

– Isto está quente, olha aqui.

[...] Mas ele ficou desesperado, fugiu pro mato [...]. Depois
ainda altas horas da noite, lá pelas oito, nove horas, fomos lá
atrás dele, procurar o rapaz no mato. Aí obrigamos a vir. Ele
chorava:

– Eu não vou pro leprosário! Não vou, não vou! (Depoimento


de SB. 20 jul. 2002)
Procurando evitar alarde na instituição, sobretudo para
aquelas crianças e adolescentes que tinham algum laço afetivo
maior com o interno enfermo, as Irmãs franciscanas saíam
em passeio quando o Serviço de Profilaxia da Lepra fazia a
retirada do menor para encaminhá-lo ao Hospital Santa
Teresa. Mesmo assim, o fato chegava ao conhecimento de
todos, fazendo-os acreditar que poderiam ser os próximos.
A gente ficava traumatizado. A gente sempre pensava:
– Será que eu sou a próxima?
272|Débora Michels Mattos

[...] Todos nós sabíamos que tínhamos tido um período grande


de convívio com os pais que estavam doentes e isso para nós
não era fácil (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
De acordo com o Regimento Interno dos Preventórios,
dois artigos se detiveram à baixa e saída dos internos:
Art. 6. – Os internados darão baixa ou sairão do Preventório
pelos seguintes motivos:

a) falecimentos;

b) doença de lepra;

c) limite de idade estabelecido neste regimento;

d) vantajosa colocação ou casamento;

e) existência de parentes ou solicitação de pessoas estranhas


reconhecidamente sadias e de idoneidade moral e capacidade
financeira para mantê-los e educá-los e ainda com o
compromisso de sujeitá-los à vigilância das autoridades sanitárias
competentes;

f) contumaz indisciplina ou inveterados maus hábitos, tratando-


se de internados maiores de 15 anos e que tenham resistido a
todos os meios de correção permitidos.

Parágrafo único. Para os casos de alíneas “c”, “d”, “e”, “f”,


deverá ser ouvido o juiz de órfãos, menores e ausentes ou a
autoridade que o substitua cuja aprovação suprirá a autorização
dos pais, tutores, parentes ou responsáveis, sendo também
necessário a autorização da autoridade sanitária competente.

Art. 7. – Os limites de idade para a saída de que trata o artigo


anterior serão os seguintes:

a) para o sexo masculino – 18 anos;

b) para o sexo feminino – 21 anos;


Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 273

Parágrafo único: A direção do preventório poderá alterar esses


limites, por exceção, se ocorrerem motivos de ordem profilática,
econômica ou administrativa que assim exijam, tudo de acordo
coma autoridade sanitária competente (Regimento Interno dos
Preventórios, apud MONTEIRO, 1995, p. 455).
Segundo os dados apresentados no livro de registros de
internamentos do Educandário Santa Catarina, das 301
crianças internadas durante os anos de 1940 a 1950, 17 delas
foram retiradas por terem sido acometidas com a doença.
Entre o momento do internamento e a comprovação do
acometimento, 3 casos foram observados nos primeiros meses;
4, após um ano; 3, após 2 anos; 4, após 4 anos; 1, após 6
anos; 1, após 7 anos; e 1, após 9 anos. Em relação à idade,
esta sofreu uma variação que foi dos 3 aos 18, conforme
podemos observar na tabela de número 14:

Tabela 14
Educandário Santa Catarina
Internos Acometidos com a Hanseníase
(1940-1950)
N.º Ano Idade Ano Idade Tempo p/
Interno Interna- Acome- Manifes-
mento timento tação

13 1940 14 a 1944 18 a 4 anos


15 1940 1a 1944 5a 4 anos
31 1941 9a 1945 13 a 4 anos
34 1941 3a 1947 9a 6 anos
35 1941 5a 1941 5a meses
38 1941 4a 1948 11 a 7 anos
99 1942 6a 1942 6a meses
102 1942 7a 1944 9a 2 anos
104 1942 4a 1951 13 a 9 anos
129 1943 14 a 1945 16 a 2 anos
187 1946 12 a 1950 16 a 4 anos
274|Débora Michels Mattos

233 1948 8a 1950 10 a 2 anos


247 1949 11 a 1949 11 a meses
272 1950 7a 1951 8a 1 ano
274 1950 12 a 1951 13 a 1 ano
287 1950 2a 1951 3a 1 ano
289 1950 10 a 1951 11 a 1 ano
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Educandário Santa Catarina.

Ainda que o acometimento figurasse um fato evidente no


universo do abrigo, outro que pôde ser evidenciado com maior
frequência foi a morte. De acordo com o livro de registros de
internamentos, um total de 26 óbitos puderam ser constados,
com maior destaque para aquelas crianças com idade de 1 a
6 meses. Em geral, eram menores nascidos no Hospital Colônia
Santa Teresa, sobretudo filhos de pais bastante debilitados
em face da doença e dos tratamentos terapêuticos
administrados.
Houve muitos óbitos, porque automaticamente que eles
nasciam, eles nem tomavam o leite materno, eles eram levados,
não é?! [...] Lá na casa das irmãs tinha um bercinho, tinha
tudo lá, e assim que tinha a condução eles traziam, não é?!,
para a creche do Educandário. [...] Tu imaginas, eles já vinham
fraquinhos porque os pais tomavam aquela medicação forte de
experiência, porque no início eles foram cobaias [...] lá na Colônia.
Então já não eram crianças fortes, porque logo depois eles viram
que o mal de Hansen não era um mal que se retransmitia de pai
para filho, não é hereditário, não era, [...] então de maneira que
a criança nasce sadia, nasce, mas nascia em condições muito...,
de fraqueza (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).

De fato, do total de crianças falecidas, 21 haviam nascido no


Santa Teresa. Se analisarmos a tabela 15, torna-se possível
verificar a idade das crianças que morreram na instituição,
embora não possamos especificar a causa da morte pela
ausência de dados sobre o assunto:
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 275

Tabela 15
Educandário Santa Catarina
Incidência de Óbitos dos Internos por Idade
(1940-1950)
Idade Número de Óbitos
Recém-nascidos a menores de 1 mês 7
1 mês a menores de 6 meses 10
6 meses a menores de 1 ano 5
1 ano a menores de 2 anos 1
2 anos a menores de 3 anos 1
3 anos a menores de 4 anos 0
4 anos a menores de 5 anos 0
5 anos a menores de 10 anos 0
10 anos a menores de 15 anos 1
15 anos a 18 anos 1
Total 26

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Educandário Santa Catarina.

Mesmo que o contato entre os internos maiores e os


menores fosse muito pequeno, a morte não passava
desapercebida, sendo motivo de tristeza, sobretudo para seus
parentes. Nesse sentido, antes de ser providenciado o enterro,
a criança era colocada num caixão com flores, podendo ser
velada pelos seus irmãos.
Mas se nesse universo marcado por inúmeras adversidades
a morte e a problemática dos exames clínicos foram, de forma
significativa, exemplos fortes da rudeza que revestia os
mecanismos de profilaxia; no viver cotidiano da instituição
asilar, através da disciplina imposta, das punições estabelecidas
quando alguém infringia o sistema, da ausência do contato
frequente com os pais, a rigidez também se fazia presente.
Para os bebês do Hospital Colônia Santa Teresa que
sobreviveram, é provável que essa dureza tenha passado
276|Débora Michels Mattos

desapercebida ao longo dos anos, já que eles não tiveram a


oportunidade de conhecer outro modo de vida que não
aquele, apresentado ali. No entanto, para os maiores, restava-
lhes a conformidade ou a articulação de instrumentos para
resistir.
De fato, a resistência à realidade ao qual eles haviam sido
inseridos ocorreu de forma bastante frequente, sendo a fuga
a mais comum. Essa fuga acontecia coletiva ou
individualmente, a exemplo de outros preventórios, como
o de Jacareí em São Paulo ou o de Araguari em Minas
(GOMIDE, 1991). Em Santa Catarina, de acordo com
depoimento dado pela egressa AS eram os meninos que
encabeçavam as fugas, ainda que as meninas também
tentassem fugir:
Foi mais os meninos. Os meninos, lá pelas tantas, não queriam
mais ficar. Daí apelavam para os pais, os pais não tinham
condições de mandá-los para a casa, casa de parente, ou
principalmente quem tinha o pai e a mãe fora, não é?! Eles
organizaram. Eu acho que uma, duas ou três vezes. Alguns
eles trouxeram de volta, eles conseguiam pegar perto. Mas
muitos chegaram no destino, como eu conheci. Até bem pouco
tempo eu encontrei um colega que chegou em Imbituba e não
voltou mais. E o outro que fugiu com ele era de Lages e também
chegou no destino dele. Era a vontade de sair, de ir para a
casa, não é?!, e de encontrar a família. Porque, na verdade, os
familiares visitavam muito pouco. Havia eu acho que um pouco
de preconceito [...]. Era muito difícil alguma família chegar a ir
para lá. E muitos familiares, eles realmente não queriam mais
contato porque tinham medo da doença. Mas a criança queria
reencontrar a sua família, então houve (Depoimento de AS. 23
abr. 2002).
De acordo com os dados relativos ao motivo da saída
dispostos no livro de registros de internamentos do preventório
catarinense, um total de 8 crianças internadas entre os anos
de 1940 e 1950 fugiram, sendo que destas 8 apenas uma
era do sexo feminino. A descoberta da fuga e a captura do
indivíduo significava uma punição certa. Essa punição ia desde
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 277

a privação de algumas atividades de lazer até o trancamento


no “quarto escuro”.
Mas a punição não ocorria, exclusivamente, quando um
interno tentava fugir. Ela se fazia presente em qualquer
situação de descontentamento, qualquer tentativa de burlar
a norma, qualquer adversidade que pusesse em desarmonia
a ordem estabelecida. Assim, quando uma escapada era
descoberta, quando uma tarefa não era feita, quando uma
criança procurava fazer valer suas vontades, estava sujeita à
punição.
Os deveres escolares eram feitos no refeitório logo depois do
almoço. Já ficávamos ali mesmo, no refeitório, para fazer os
deveres. [...] Então eu me lembro que um dia eu peguei no
sono e eu acordei com um tapa enorme no ouvido que eu
fiquei mais de semanas com o ouvido zunindo. Era uma irmã
muito alta, a mão dela era enorme. Me deu um tapa tão bem
dado no ouvido que fiquei com ele doendo o tempo todo.

[...] Em uma ocasião, eu não gostava de uma verdura, eu


lembro. Eu não gostava de beterraba, e eu já tinha almoçado e
daqui a pouco vieram com metade de um prato de beterraba e
me fizeram comer, aquilo ali, porque eu tinha deixado no prato
(Depoimento de VM. 02 mai. 2002).
De igual forma à prática adotada com aqueles que eram
descobertos namorando, as crianças que sofriam de enurese
eram expostas ao ridículo como forma de castigo. Esse
instrumento de punição foi comum em outros preventórios,
como os já citados. Na maioria das vezes as que com maior
frequência urinavam nos lençóis eram colocadas diante de
todos com a “prova do crime” na cabeça.
Eu me lembro, assim, que tinha umas crianças lá que faziam
xixi na cama. Aí tinha rapazes e meninas, por exemplo, nessa
faixa [...] de oito anos até onze. Aí, no outro dia de manhã,
ganhavam castigo. Aí botavam o lençol na cabeça, os rapazes
lá e as meninas. Aí ficavam um pouco ali fora [...] (Depoimento
de EH. 14 mai. 2002).
278|Débora Michels Mattos

De acordo com o depoimento da egressa AS essa forma


de castigo aplicada àqueles que “faziam xixi na cama” foi, de
fato, comum no Educandário Santa Catarina, principalmente
nos seus primeiros anos de funcionamento:
Olha, essa foi outra coisa assim que, que marcou muito. Eu
me lembro, assim, [...] não havia aquela tolerância. Muitas
vezes eu vi as crianças ali com lençol em cima da cabeça. [...]
Ficavam geralmente no dormitório mesmo, mas [...] ficávamos
com o lençol na cabeça. [...] Não mais pro fim, mas no início
houve. Eu me lembro disso (Depoimento de AS. 23 abr. 2002).
Diante da rigidez do sistema, da ordem que tentava ser
imposta, de todo o rigor relacionado ao mecanismo de
profilaxia edificado, as fugas se caracterizavam o mais forte
instrumento de resistência. Para Gomide (1991), elas eram
realizadas pelos internos mais corajosos e mais rebeldes,
capazes de lutar contra o sistema e suportar as penalidades
aplicadas na eventualidade de serem pegos.
Conforme sugere a autora, embora a sujeição às normas
tenha possibilitado uma convivência institucional mais branda
para alguns, o resultado dessa sujeição se constituiu, para os
egressos, fator determinante à perpetuação dos medos vividos
no passado. Com efeito, de acordo com o depoimento da
egressa VM, as situações vivenciadas no preventório
catarinense acabaram, de uma forma e outra, sendo
reproduzidas no futuro:
O quarto escuro [...] era um quartinho minúsculo onde se
guardavam vassouras, baldes. [...] A minha irmã, por exemplo,
ficou. Eu não lembro se eu cheguei a ficar lá. Eu sei que durante
muito tempo, mesmo depois de casada, eu queria sempre dormir
de porta aberta. Eu nunca conseguia fechar a porta do meu
quarto, viver assim, em ambiente fechado. Então a gente tinha
esse medo [...] (Depoimento de VM. 02 mai. 2002).
Durante os dez primeiros anos de instituição, uma análise
do livro de registros de internamentos permitiu que
traçássemos um perfil das 301 crianças e adolescentes que
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 279

foram internadas durante os anos de 1940 e 1950. Embora


o abrigo tenha sido inaugurado em janeiro de 1941,
contabilizamos os menores que foram afastados do convívio
familiar já em 1940, em face do estabelecimento do um
preventório de emergência.
Dos 301 internados, a maior parte teve a mãe acometida
pela doença, seguindo-se pelo pai e ambos os progenitores,
conforme demonstra a tabela 16:
Tabela 16
Educandário Santa Catarina
Relação de Parentesco entre Internos e Enfermos
(1940-1950)
Parentesco Número de Acometimentos
Pai 70
Mãe 148
Pai e Mãe 66
Outros Parentes 4
Sem Referência 13
Total 301
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Educandário Santa Catarina.

Interessante salientar, ao analisar os dados acima, que o


número de internos que tiveram a mãe acometida pela doença
era significativamente maior do que os que tiveram o pai, se
contrapondo ao fato de que a hanseníase tende a incidir de
maneira mais frequente sobre o sexo masculino (SAMPAIO,
1984). Entretanto, ao verificar o número de pessoas que foram
internadas no Hospital Colônia Santa Teresa, torna-se possível
constatar que a hanseníase incidiu com maior intensidade
sobre mulheres apenas no que concerne ao universo dos
internos do Educandário Santa Catarina. Já em relação aos
acometimentos verificados em outros parentes, sendo um
280|Débora Michels Mattos

irmão, 2 tios e uma avó, tal fato nos causou indagação, uma
vez que o preventório objetivava abrigar filhos sadios de
hansenianos que tinham seus pais asilados no hospital colônia,
evitando, assim, o abandono da criança. É provável que esses
internos estivessem sob a tutela dessas pessoas por inúmeros
motivos, inclusive a morte dos pais, fazendo com que fossem
integrados ao estabelecimento em face da enfermidade do
tutor.
No âmbito da idade do internamento, esta variou entre
0 e 18, sendo que para alguns casos também não foi
possível precisar. O maior número de internamentos
ocorreu entre 6 e 10 anos, seguido dos recém-nascidos na
colônia asilar para os enfermos, como podemos verificar
na tabela de número 17:

Tabela 17
Educandário Santa Catarina
Média de Idade dos Internos
(1940-1950)
Idade Número de Internados
Recém-Nascidos 59 *
Entre 1 mês e 11 meses 16
De 1 a 5 anos 53
De 6 a 10 anos 96
De 11 a 15 anos 62
De 16 a 18 anos 11
Sem Referência 4
Total 301
* Os 59 recém-nascidos tiveram a Colônia Santa Teresa como local de
procedência. Eles eram entregues ao Educandário até no máximo um
dia após o seu nascimento, não tendo, nesse sentido, contato com a
mãe doente após o seu nascimento. Computam essa categoria as crianças
de até vinte e oito dias.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 281

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Educandário Santa Catarina.

Em relação ao sexo foi observada uma maior incidência


para o feminino, embora pequena. De acordo com os dados
encontrados no livro de registros do Educandário Santa Catarina,
durante os anos de 1940 e 1950 ocorreram 160 internamentos
de meninas e 141 de meninos, o que nos dá a seguinte
porcentagem, conforme demonstra o gráfico de número 11:

Gráfico 11

Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do


Educandário Santa Catarina.

No âmbito da procedência, 283 eram de Santa Catarina,


um do Paraná, um do Rio Grande do Sul e 16 não
apresentaram referência. Das 283 crianças que procederam
dos variados locais de Santa Catarina, a maior parte saiu do
asilo construído para os pais, seguindo-se de algumas
localidades que apresentaram um maior número de casos da
doença, como Tubarão, Itajaí, Florianópolis, Lages, Palhoça
e Laguna, conforme demonstra a tabela 18:
282|Débora Michels Mattos

Tabela 18
Educandário Santa Catarina
Procedência dos Internos
(1940-1950)
Procedência Número de Crianças Internadas
Araranguá 6
Caçador 1
Campo Alegre 2
Campos Novos 13
Canoinhas 5
Chapecó 8
Concórdia 5
Criciúma 3
Curitiba 1
Florianópolis 16
Gaspar 1
Hamônia 8
Ibirama 4
Imaruí 1
Imbituba 9
Itaiópolis 11
Itajaí 27
Jaguaruna 4
Jaraguá 3
Joaçaba 2
Joinville 5
Lages 15
Laguna 14
Mafra 6
Palhoça 15
Porto União 2
Rio Grande do Sul 1
Rodeio 3
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 283

São José 2
Taió 1
Tubarão 27
Colônia Santa Teresa 64
Sem referência 16
Total 301
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Educandário Santa Catarina.

Das 301crianças internadas entre os anos de 1940 e 1950,


muitas viveram no abrigo por um longo período de tempo e
outras não demoraram a sair (tabela 19). Os motivos para a
saída foram variados, alguns deles estipulados no artigo 6 do
Regimento Interno dos Preventórios (tabela 20). Embora os
limites de idade para a saída figurassem em 18 anos para o
sexo masculino e 21 para o feminino, houve casos de
internamentos que ultrapassaram esse limite (tabela 21):

Tabela 19
Educandário Santa Catarina
Média de Permanência dos Internos
(1940-1950)
Tempo de Permanência Número de Internos
Menos de 1 mês 13
De 1 mês a menos de 1 ano 37
De 1 ano a menos de 2 anos 12
De 2 anos a menos de 3 anos 21
De 3 anos a menos de 4 anos 19
De 4 anos a menos de 5 anos 18
De 5 anos a menos de 6 anos 20
De 6 anos a menos de 7 anos 26
De 7 anos a menos de 8 anos 20
De 8 anos a menos de 9 anos 23
De 9 anos a menos de 10 anos 19
284|Débora Michels Mattos

De 10 anos a menos de 11 anos 17


De 11 anos a menos de 12 anos 9
De 12 anos a menos de 13 anos 6
De 13 anos a menos de 14 anos 3
De 14 anos a menos de 15 anos 3
De 15 anos a menos de 16 anos 3
De 16 anos a menos de 17 anos 4
De 17 anos a menos de 18 anos 2
De 18 anos a menos de 19 anos 1
De 19 anos a menos de 20 anos 0
De 20 anos 1
Sem Referência 24
Total 301
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Educandário Santa Catarina.

Tabela 20
Educandário Santa Catarina
Motivo para Saída ou Baixa dos Internos
(1940-1950)
Motivo da Saída ou Retirada Número de Egressos
Solicitação da Família 158
Sem Referência 36
Falecimentos 26
Emprego 19
Acometimento com mal de Hansen 17
Rebeldia/Insubordinação/Expulsão 13
Serviço Militar 11
Fuga 8
Casamento 3
Estudos 2
Vida Religiosa 2
Conta Própria 2
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 285

Motivos Particulares 2
Problemas de Saúde 1
Adoção 1
Total 301
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos
do Educandário Santa Catarina.

Tabela 21
Educandário Santa Catarina
Idade dos Internos ao Saírem do Educandário
(1940-1950)
Idade Número de Internos
Menores de 1 ano 24
1 ano 4
2 anos 4
3 anos 5
4 anos 3
5 anos 6
6 anos 4
7 anos 9
8 anos 10
9 anos 10
10 anos 12
11 anos 15
12 anos 10
13 anos 18
14 anos 23
15 anos 26
16 anos 30
17 anos 17
18 anos 19
19 anos 10
286|Débora Michels Mattos

20 anos 4
21 anos 5
22 anos 5
23 anos 2
24 anos 0
25 anos 0
26 anos 1
27 anos 1
Sem Referência 24
Total 301
Fonte: dados encontrados no livro de registros de internamentos do
Educandário Santa Catarina.

Se por um lado o estabelecimento se propôs a resguardar


a infância sadia em face da doença, por outro o regime ao
qual a prole do enfermo foi submetida, baseado num princípio
isolacionista marcado pela fragmentação da família, forçou
um afastamento quase que completo de filhos e pais. Ainda
que encontros fortuitos entre eles fossem promovidos, quando
uma vez por ano, geralmente no Natal, as crianças eram
levadas ao Hospital Santa Teresa, as regras de distanciamento
se faziam de forma clara e incidiam sobre qualquer tentativa
de contato. Exemplo disso pode ser verificado em relação à
censura das correspondências, muitas delas impedidas de
serem enviadas.
Embora inúmeras atividades fossem realizadas para fazer
do abrigo uma instituição modelar, voltada para a educação,
para o amparo, para a profilaxia da hanseníase e para a
constituição de um futuro feliz, a tristeza de se ver separado
dos pais, de fazer parte de uma realidade marcada por estigmas
e preconceitos tornava efêmero qualquer momento de
felicidade.
Instituição total assinalada pela regra, pela ordem, pelo
controle das pessoas, o Educandário Santa Catarina foi,
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 287

durante a década de 40, sinônimo de solidariedade, de


preocupação com o progresso do país, mas também de
preconceito e de exclusão social mascarados. Através de um
cotidiano previamente estabelecido, onde crianças e
adolescentes saudáveis eram conjugados num espaço
delimitado e sujeitos às normas ditadas pelos administradores
da instituição e pelos saberes e medos produzidos acerca da
doença, um universo à parte se configurou. Nesse universo
as condutas foram padronizadas, os hábitos individuais
descaracterizados, importando, apenas, a defesa da saúde e
o afastamento da ameaça, ainda que essa ameaça se
constituísse inverossímil.

Educandário Santa Catarina


Fotografias

Acervo particular de AS. Internas do Educandário


Santa Catarina, à entrada da instituição, s. d.

Acervo particular de AS. Internos do Educandário


fazendo educação física, s. d.
288|Débora Michels Mattos

Acervo particular de EH. Internas do Educandário


em apresentação teatral, s. d.

Acervo particular de EH. Irmã com internas do grupo


teatral do Educandário, s. d.

Acervo particular de AS. Coro Orfeônico do


Educandário com a Orquestra Juvenil de
Florianópolis, em frente ao Teatro Álvaro de Carvalho,
s.d.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 289

Acervo particular de EH. Casamento entre internos


do Educandário, s.d.

Acervo particular de EH. Internas do Educandário


na Praia Comprida, São José, s. d.

Acervo particular de AS. Internos do Educandário


em dia de festa, s. d.
290|Débora Michels Mattos

Acervo particular de VM. Internas do Educandário


em uniforme escolar, 1950.

Acervo particular de AS. Internas do Educandário


no pátio, s. d.

Notas:
1
A irmã Rodolfa foi professora e diretora da Seção Escolar do
Educandário Santa Catarina enquanto as irmãs franciscanas
administraram a instituição. De acordo com depoimentos de
egressos, ela foi a principal responsável pelo desenvolvimento
educacional dos internos, articulando o aprimoramento dos
estudos fora do estabelecimento preventorial e estimulando a
inserção de crianças e adolescentes em grupos de canto, música
e teatro (grifo meu).
2
Sobre as fases da hanseníase ver Capítulo 1.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 291

Considerações finais
A história da hanseníase no mundo ocidental nos permite
visualizar em que medida concepções e práticas produzidas
no passado podem ser perpetuadas, ainda que de forma
burilada, em nossa atualidade. A “lepra” medieval, dotada
de sinônimos variados, como impureza, desonra, sujeira,
castigo divino ou reflexo do pecado, remodelou-se, no Brasil
moderno, em símbolo de ameaça à constituição do progresso,
permanecendo o estigma depreciativo da enfermidade.
Embora as práticas utilizadas para resolver o problema do
estado de doença também tenham sofrido alterações,
buscando-se, em substituição ao amparo, a promoção da
saúde e da cura, a hanseníase, então denominada “lepra”,
continuou sendo tratada através de mecanismos de exclusão.
Isso pode ser observado a partir das instituições asilares
que foram construídas no Brasil dos anos 30, quando Estado
e sociedade se aliaram no combate à enfermidade com vistas
a salvaguardar o futuro do país. Se por um lado significativos
avanços no campo da medicina permitiram um conhecimento
mais aprofundado sobre a hanseníase já em fins do século
XIX, como a descoberta do agente causador da doença e os
meios de contágio; por outro, em termos de tratamento, esses
avanços não puderam ser observados, prevalecendo a ideia
da segregação.
292|Débora Michels Mattos

Provavelmente essa ideia se consolidou por intermédio


dos estigmas inerentes à “lepra”, uma vez que o aparato
isolacionista montado se estendeu, inclusive, aos que não eram
portadores da doença, mas que de alguma forma faziam parte
de seu universo, como foi o caso da prole sadia dos enfermos.
Ao mesmo tempo em que, no início do século XX, uma série
de discursos enfatizava a necessidade de serem tomadas
medidas no âmbito da saúde e da higiene para que o Brasil
pudesse se transformar numa nação plenamente
desenvolvida, os estigmas relativos à “lepra” iriam influenciar
o modelo de profilaxia a ser adotado para o seu combate.
Se compararmos o tratamento dispensado a outras
doenças que grassaram o país, já no início do século, com
aquele que foi aplicado à “lepra”, veremos que nenhum
representou tanta intervenção sobre a vida do doente e de
seus familiares, ao ponto de retirar-lhes a liberdade. A história
do confinamento compulsório de hansenianos e do
alijamento dos seus filhos sadios em Santa Catarina nos serve
de exemplo. Ela nos permite ver de que forma as práticas
assistencialistas, os preceitos médico-sanitários e os anseios
desenvolvimentistas de parte da sociedade se conjugaram,
mas foram, de forma significativa, orientados pelos estigmas
relativos à “lepra”.
Ambas as instituições, embora abrigando personagens
distintos, estiveram intimamente ligadas, uma vez que se
destinaram ao asilo do que para a sociedade representava
ameaça. A hipótese de que a “lepra” pudesse se fazer presente
no meio dos saudáveis, tolhendo-lhes a beleza, tornando-os
incapazes, permitiu a legitimação do rechaço. Para isso, se
constituiu imprescindível controlar o perigo, evitar que ele se
proliferasse.
Nesse sentido a colônia agrícola e o preventório se
caracterizaram expressão máxima desse controle, não
obstante terem sido idealizados para proporcionar uma vida
melhor ou a mais próxima possível daquela que levavam
doentes e filhos sadios do lado de fora das cercas,
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 293

proporcionando-lhes trabalho, lazer, sociabilidade e educação.


O olhar retrospectivo sobre essa história de exclusão social e
cerceamento da liberdade, no entanto, permite constatar que
esse modelo institucional veio retardar o fim dos preconceitos
em relação à hanseníase numa época em que outras escolhas
poderiam ter sido feitas.
294|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 295

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296|Débora Michels Mattos

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Catarina – APESC; no Centro de Vigilância Sanitária e
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Depoimentos Orais: realizados entre os anos de 1999 e


2002.

internos da Colônia Santa Teresa;


parentes de internos da Colônia Santa Teresa;
internos do Educandário Santa Catarina;
profissionais da saúde;
membros da Congregação das Irmãs Franciscanas de São
José.

Estatutos: disponíveis no Educandário Santa Catarina – ESC.

Da Sociedade de Assistência aos Lázaros de Santa


Catarina;

Jornais de Santa Catarina: disponíveis na Biblioteca Pública


do Estado de Santa Catarina –BPESC.

A Gazeta, Florianópolis
Diário da Tarde, Florianópolis
Diário Oficial, Florianópolis
O Estado, Florianópolis
República, Florianópolis

Jornais de outros Estados: disponíveis na Biblioteca Pública


do Estado de Santa Catarina – BPESC.

A Noite, Rio de Janeiro

Livros de Registros: disponíveis no Hospital Santa Teresa


de Dermatologia Sanitária – HCST e no Educandário Santa
Catarina – ESC.

Dos Enfermos Internados na Colônia Santa Teresa;


Das Crianças Internadas no Educandário Santa Catarina;
312|Débora Michels Mattos

Ofícios: disponíveis no Arquivo Público do Estado de Santa


Catarina – APESC.

Do Departamento da Criança no Brasil ao Governo do


Estado;
Do Departamento Nacional de Saúde Pública ao Governo
do Estado;
Da Diretoria de Higiene de Santa Catarina ao Governo
do Estado;
Do Conselho e Proteção aos Menores ao Governo do
Estado;
Da Cruzada Nacional de Educação ao Governo do
Estado;
Da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros
e Defesa contra a Lepra à Sociedade catarinense filiada;
Do Instituto de Amparo Social ao Governo do Estado;
Da Secretaria de Saúde de Santa Catarina ao Governo
do Estado;
Da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra
a Lepra à Federação nacional congênere;
Da Sociedade de Assistência aos Lázaros e da Federação
ao Governo do Estado;
Periódicos e Impr essos: disponíveis no Hospital Santa
Impressos:
Teresa de Dermatologia Sanitária – HCST; no Educandário
Santa Catarina – ESC; na Biblioteca Pública do Estado de
Santa Catarina – BPESC; no Arquivo Público do Estado de
Santa Catarina – APESC; e no Centro de documentação do
Instituto de Lauro Souza Lima – ILSL.

Arquivos Mineiros de Leprologia;


Boletins da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa
contra a Lepra;
Boletins do Serviço Nacional de Lepra;
Casos de Hanseníase Registrados de 1946 a 1996;
Crônicas dos Hospital Colônia Santa Teresa;
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 313

Hospital Santa Teresa de Dermatologia Sanitária. Histórico


da Instituição. São Pedro de Alcântara, 2001. mimeo.
Primeira Conferência Nacional de Assistência aos Lázaros;
Relatório da Congregação das Irmãs Franciscanas de São
José;
Relatórios da Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra;
Relatórios da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa
contra a Lepra de Santa Catarina;
Revista de Combate à Lepra;

P rontuários: disponíveis no Hospital Santa Teresa de


Dermatologia Sanitária – HCST e no Educandário Santa
Catarina – ESC.

Dos Enfermos Internados na Colônia Santa Teresa;


Das Crianças Internadas no Educandário Santa Catarina;

Regimentos: disponíveis no Educandário Santa Catarina –


ESC.

Regimento Interno dos Preventórios;


314|Débora Michels Mattos
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 315

Anexos
Anexo 1

Lei nº 143, de 16 de Novembro de 1936

Institui o Serviço de Profilaxia da Lepra.

O Doutor Nerêu Ramos, Governador do Estado de Santa


Catarina.
Faça saber a todos os habitantes deste Estado que a
Assembléia Legislativa decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1. – Fica instituído, como parte da organização sanitária
do Estado, o Serviço de Profilaxia da Lepra.
Art. 2. – Compete ao Serviço de Profilaxia da Lepra
executar e fazer cumprir todas as medidas tendentes a impedir
e a restringir o desenvolvimento da lepra no Estado e a realizar
pesquisas relativas á sua epidemiologia, profilaxia e terapêutica.
Art. 3. – Terá o Serviço a seguinte organização:
a) Chefia;
b) Colônia para internamento e tratamento dos leprosos
contagiantes e inválidos;
c) Dispensário para exames, triagem e tratamento dos
doentes não contagiantes;
d) Preventório e escola agrícola para menores
comunicantes.
316|Débora Michels Mattos

Art. 4. – Com exceção dos cargos técnicos, todo o pessoal


necessário á execução do Serviço de Profilaxia da Lepra será
contratado.
§ único – São considerados cargos técnicos os de assistente
técnico médico, auxiliar técnico médico e médico especialista
visitador.
Art. 5. – Os cargos só serão providos á medida das
necessidades do Serviço, mediante os vencimentos constantes
da tabela anexa, e sempre que possível aproveitando os
funcionários de igual categoria das diversas Repartições do
Estado, sem prejuízo, porém, da efetividade de que porventura
gozem.
Art. 6. – O regulamento que for expedido para a execução
da presente Lei, organizará os quadros dos funcionários,
estabelecerá as condições de sua admissibilidade e lhes
atribuirá as respectivas funções.
Art. 7. – Para o desempenho dos serviços internos da
Colônia, a critério do Diretor, poderão ser contratados os
doentes em boas condições mediante os vencimentos
constantes da tabela anexa.
Art. 8. – Aos funcionários obrigados a contato diário e
prolongado com o doente de lepra, poderá ser abonada um
gratificação de 50% sobre os vencimentos correspondentes
aos demais funcionários de igual categoria e aos que tiverem
menos contato 25%.
Art. 9. – O regulamento que for expedido, estabelecerá a
multa até um conto de réis para as infrações de seus
dispositivos.
Art. 10. – A despesa material e pessoal para a instalação e
manutenção do Serviço ora instituído correrá pela verba global
540, da Lei n. 130, de 11 de Novembro de 1936.
Art. 11. – A presente Lei entrará em vigor no dia 1º. de
Janeiro de 1937, revogadas as disposições em contrário.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 317

Serviço de Profilaxia da Lepra


(Tabela de vencimentos dos funcionários sadios)
Cargos Vencimentos
Mensal Anual
Assistente Técnico Médico 1:800$000 21:600$000
Auxiliar Técnico Médico 900$000 10:800$000
Médico Especialista Visitador 900$000 10:800$000
Médico Laboratorista 880$000 10:000$000
Médico Especialista
(moléstias intercorrentes) 500$000 6:000$000
Farmacêutico 600$000 7:200$000
Auxiliar de Farmacêutico 300$000 3:600$000
Dentista 600$000 7:200$000
Auxiliar de Laboratório 300$000 3:600$000
Enfermeiro 330$000 3:960$000
Ajudante de Enfermeiro 250$000 3:000$000
Auxiliar de Dispensário 250$000 3:000$000
Superintendente 500$000 6:000$000
Administrador de Almoxarife 400$000 4:800$000
Escriturário 330$000 3:960$000
Auxiliar de Escrita (datilografia) 240$000 2:880$000
Mestre de Cultura 350$000 4:200$000
Parteira 320$000 3:840$000
Servente 240$000 2:880$000
Chauffeur 255$000 3.060$000
Cozinheiro 200$000 2:400$000
Ajudante de Cozinha 120$000 1:440$000
Encarregado de Lavanderia
e Desinfetório 150$000 1:800$000
Eletricista e Encarregado
de Motores 300$000 3:600$000
Telefonista 120$000 1:440$000
Guarda 180$000 2:110$000
318|Débora Michels Mattos

Copeiro 60$000 720$000


Trabalhador 90$000 1:080$000
Lavadeira 60$000 720$000
NOTA: - O médico visitador quando em viagem terá a diária de
25$000.

Colônia “Santa Tereza”


(Tabela de vencimentos dos funcionários doentes)
Cargos Vencimentos
Mensal Anual
Prefeito 100$000 1:200$000
Professor 80$000 960$000
Delegado de Polícia 60$000 720$000
Enfermeiro - Chefe 60$000 720$000
Escriturário 50$000 600$000
Almoxarife 50$000 600$000
Ajudante de Almoxarife 35$000 420$000
Carcereiro 40$000 480$000
Guarda 45$000 540$000
Barbeiro 50$000 600$000
Enfermeiro 40$000 480$000
Servente 25$000 300$000
Copeiro 30$000 360$000
Pedreiro 50$000 600$000
Ajudante de Pedreiro 30$000 360$000
Servente 20$000 240$000
Bombeiro 50$000 600$000
Eletricista 50$000 600$000
Carpinteiro 50$000 600$000
Feitor 40$000 480$000
Campeiro 40$000 480$000
Jardineiro 30$000 360$000
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 319

Zelador de Cemitério 40$000 480$000


Encarregado de Limpeza 30$000 360$000
Contínuo 25$000 300$000
Roupeiro 35$000 420$000
Passadeira 25$000 300$000

O Secretário do Estado dos Negócios do Interior e Justiça


assim o faça executar.
Palácio do Governo em Florianópolis, 16 de Novembro
de 1936.

Nerêu Ramos
Manoel Pedro Silveira

Anexo 2

Regimento Interno dos Preventórios

A fim de servir de norma ao funcionamento dos


preventórios e evitar que eles se afastassem por motivos de
qualquer natureza dos seus verdadeiros objetivos, foi
elaborado sob os auspícios da Federação um Regimento
Interno a servir de paradigma para os Preventórios brasileiros.

O critério que presidiu a sua leitura foi rigidamente


obedecido, de molde a conjugar a prática já adquirida pelos
administradores dos Preventórios existentes com as exigências
gerais de natureza técnica e doutrinária.

Depois de prolongado o trabalho da Comissão apresentou


um anteprojeto, calcado no Regulamento aprovado pelo
320|Débora Michels Mattos

Departamento Nacional de Saúde e que a Federação adotou


como norma a ser seguida por suas filiadas mantenedoras de
Preventórios.

Dos seus objetivos:

Art. 1. – O Preventório do Distrito Federal instalado nesta


Capital, pela Sociedade do Distrito Federal de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra, sociedade civil, fundada em
21 de julho de 1928, na Capital da República, é um
Preventório destinado a acolher, educar e instruir menores
sadios filhos e conviventes de doentes de lepra, desde que
não tenham parentes idôneos que queiram assumir esse
encargo e que disponham de recursos para educá-los e mantê-
los sob vigilância das autoridades sanitárias competentes.
Parágrafo único. Para atender à sua finalidade primordial,
os internados deverão permanecer no Preventório, no
mínimo, seis anos, salvo nos casos de alínea “e” do art. 6.

Da Admissão e Matrícula

Art. 2. – Os limites de idade para a admissão serão os


seguintes:
a) para o sexo masculino até 15 anos;
b) para o sexo feminino até 18 anos;
Parágrafo único. Esse limites poderão ser alterados por
exceção, se assim entender a direção do Preventório, por
motivos de ordem profilática, econômica ou administrativa,
com aprovação da autoridade sanitária competente.

Art. 3. – Todas as crianças nascidas nos leprosários serão


admitidas no Preventório, acompanhadas de uma guia dos
diretores daqueles estabelecimentos e de uma ficha com todas
as indicações referentes às mesmas e também a seus pais e
parentes doentes, tão completa quanto possível,
especialmente das mães, indicando a forma da moléstia, o
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 321

decurso da gravidez.

Art. 4. – Os demais menores necessitados de internamento


somente poderão dar entrada no Preventório acompanhados
igualmente de guia e ficha de comunicante fornecida pelas
autoridades sanitárias competentes.
§1º. A ordem de preferência na admissão dos menores
será a seguinte:
a) nascidos nos leprosários;
b) os que se acharem em focos que ofereçam maior perigo
de contágio;
c) Os mais necessitados por falta absoluta de recursos ou
assistência;
d) os de mais tenra idade.
§ 2º. A iniciativa dos internamentos de que trata este artigo
poderá ser da direção do Preventório, das autoridades
sanitárias competentes ou de qualquer particular, sendo que
nos dois últimos casos haverá necessidade de prévia consulta
sobre a existência de vagas no estabelecimento.

Art. 5. Todos os menores recolhidos ao Preventório serão


inscritos no livro geral de matrícula pela ordem cronológica,
sendo imediatamente fichados pelos médicos do
estabelecimento para o inícios dos respectivo “dossier” ou
documentário e encaminhados ao pavilhão de observação,
onde permanecerão durante quinze dias.

Da Baixa e Saída

Art. 6. – Os internados darão baixa ou sairão do


Preventório pelos seguintes motivos:
a) falecimentos;
b) doença de lepra;
c) limite de idade estabelecido neste regimento;
d) vantajosa colocação ou casamento;
e) existência de parentes ou solicitação de pessoas estranhas
322|Débora Michels Mattos

reconhecidamente sadias e de idoneidade mora e capacidade


financeira para mantê-los e educá-los e ainda com o
compromisso de sujeitá-los à vigilância das autoridades
sanitárias competentes;
f) contumaz indisciplina ou inveterados maus hábitos,
tratando-se de internados maiores de 15 anos e que tenham
resistido a todos os meios de correção permitidos.
Parágrafo único. Para os casos de alíneas “c”, “d”, “e”, “f”,
deverá ser ouvido o juiz de Órfãos, Menores e ausentes ou a
autoridade que o substitua cuja aprovação suprirá a
autorização dos pais, tutores, parentes ou responsáveis, sendo
também necessária a autorização da autoridade sanitária
competente.

Art. 7. – Os limites de idade para a saída de que trata o


artigo anterior serão os seguintes:
a) para o sexo masculino – 18 anos;
b) para o sexo feminino – 21 anos;
Parágrafo único. A direção do Preventório poderá alterar
esses limites, por exceção, se ocorrerem motivos de ordem
profilática, econômica ou administrativa que assim o exijam,
tudo de acordo com a autoridade sanitária competente.

Da Direção e Administração

Art. 8. – A direção superior do Preventório será exercida


pela Sociedade do Distrito Federal de Assistência aos Lázaros
e Defesa contra a Lepra, através de sua diretoria, que poderá
delegar poderes a qualquer dos seus membros para assumi-
la fazendo cumprir o presente regimento.

Art. 9. – Designado pela direção superior e subordinado à


mesma, haverá um corpo administrativo composto, pelo
menos de:
a) um administrador;
b) um econômico-almoxarife;
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 323

c) um escriturário.
Parágrafo único. Os demais cargos serão criados e
preenchidos pela direção superior à medida das necessidades.

Art. 10. – Cumprirá ao administrador dirigir e orientar os


serviços dos Preventório, que não sejam verdadeiramente de
ordem técnica, fazer cumpri este regimento, comunicando
obrigatoriamente à direção superior todas as irregularidades
que ocorram, e apresentar mensalmente um relatório das
entradas e baixas de internados, do estado sanitário do
estabelecimento, dos serviços realizados, dos donativos
recebidos e sua devida aplicação, do aproveitamento dos
diversos cursos, enfim, de tudo quanto puder ser objeto da
atenção especial da direção superior.
Parágrafo único. Para o preparo do relatório referido, os
encarregados dos diversos serviços prestarão todas as
informações solicitadas.

Art. 11. – Cumprirá especialmente ao econômico-


almoxarife:
a) exercer vigilância sobre todos os gêneros, mercadorias,
objetos e utensílios e dinheiro que lhe forem entregues pelo
administrados, para cujo fim organizará um inventário e a
necessária escrituração de caixa de entradas e baixias, de modo
a poderem ser verificados a qualquer tempo os saldos
existentes;
b) organizar as requisições de gêneros, roupas, utensílios,
etc., bem como as folhas de pagamento das diárias ou
mensalidades dos funcionários e empregados do Preventório,
que lhe forem ordenadas pelo administrador, documentos
esses por ele assinados, com o visto do administrador.

Art. 12. – Cumprirá aos escriturário todos os serviços de


escrituração, especificadamente os seguintes:
a) matrícula e fichário dos internados;
b) boletins e correspondência;
324|Débora Michels Mattos

c) registros e donativos, receita e despesas;


d) requisições e informações;
e) mapas e estatísticas;
f) arquivo e biblioteca.
Parágrafo único. Todos os serviços a seu cargo serão
realizados de conformidade com as indicações do
administrador, do econômico-almoxarife e do corpo técnico,
devendo ser levados a termo com ordem, asseio e perfeição.

Art. 13. – Os cargos do corpo administrativo poderão ser


exercidos por leigos ou religiosos, sendo-lhes vedado funcionar
cumulativamente em leprosários ou dispensários de lepra.

Do Corpo Técnico

Art. 14. – O corpo técnico, subordinado à direção superior


e pela mesma designado, será composto, pelo menos, dos
seguintes profissionais:
a) um médico-clínico pediatra;
b) um médico dermatologista-leprólogo;
c) um dentista;
d) uma enfermeira nutricionista;
e) um educador
f) um agrônomo ou capataz rural.
Parágrafo único. Os demais cargos serão criados e
preenchidos pela direção superior à medida das necessidades.

Art. 15. – Cumprirá ao médico-clínico pediatra examinar


semanalmente os internados, orientando o seu
desenvolvimento físico dentro das normas eugênicas e
registrando o respectivo aproveitamento intelectual.
Parágrafo único. Atenderá com brevidade aos chamados
que lhe forem dirigidos pela direção superior ou pelo
administrador do Preventório para medicar os internados
enfermos.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 325

Art. 16. – Competirá ao médico dermatologista-leprólogo


manter uma vigilância rigorosa sobre os internados, levando
em conta o grau de contagiosidade do foco onde provieram,
a natureza e o tempo de convivência, examiná-los
mensalmente nos três primeiros anos de internamento, efetuar
as provas de laboratório necessárias a esse fim e organizar as
respectivas fichas.
Parágrafo único. Sendo constatado o mal de Hansen em
qualquer internado, esse doente ficará rigorosamente isolado
e o fato será comunicado pela direção superior a autoridades
sanitárias competentes, para as devidas e imediatas
providências.

Art. 17. – Um dos médicos do Preventório será, pela direção


superior nomeado Chefe do Serviço Médico.

Art. 18. – Os internados que adoecerem serão


imediatamente transferidos para a enfermaria, onde
aguardarão a visita médica.
§ 1º. Todas as prescrições médicas, inclusive a do regime
alimentar, serão feitas por escrito e rigorosamente cumpridas.
§ 2º. Todas a medicação dos internados obedecerá a
prescrição dos médicos, que deverão dar preferência aos
produtos nacionais e aos preparos por eles próprios
formulados.

Art. 19. – A assistência dentária será cuidadosamente


prestada de modo que as doenças estomatológicas, sejam
tratadas e removidos os defeitos dentários de todos os
internados.

Art. 20. – A enfermeira nutricionista será auxiliar direta


dos médicos cujas prescrições deverão ser integralmente
cumpridas.
326|Débora Michels Mattos

Art. 21. – O educador deverá ser diplomado por


estabelecimento oficial e responsável pela educação completa
dos internados, ficando também subordinado ao
administrador, ressalvando o caso de se tratar de ensino a
cargo do Estado.

Art. 22. – Ao agrônomo ou capataz rural competirá dar


instrução prática de campo a todos os internados em idade
adequada e de acordo com as indicações médicas,
compreendendo essa instrução o maior número de atividades,
tais como pequena agricultura, criação em geral, etc.
Parágrafo único. O agrônomo ou capataz rural ficará
também subordinado ao administrador.

Do Ensino

Art. 23. – No Preventório haverá os seguintes cursos:


a) Jardim de Infância;
b) Primário, de acordo com o programa oficial;
c) Escola doméstica em todas as suas múltiplas atividades;
d) Pequena lavoura e trabalho de campo;
e) Artes e ofícios.
Parágrafo Único. No caso de manifestar qualquer internado
pendor para as letras, artes ou ciências, a direção superior
providenciará sobre a sua instrução fora do estabelecimento,
custeando todas as despesas.

Art. 24. – No Preventório será também criado um curso


de cultura física dentro dos moldes modernos.

Art. 25. – A educação moral e cívica fará parte de todos os


cursos, organizando a administração de acordo com a direção
superior, os programas a serem realizados nas datas que
assinalem os fatos de relevo da nossa história, de modo a
incentivar o culto pela pátria e pela bandeira nacional.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 327

Art. 26. – Os programas e horários de ensino deverão ser


organizados pelo educador e pelo administrador e
previamente apresentados à direção superior para a devida
aprovação.

Art. 27. – Como estímulo aos internados, o administrador


organizará, com aprovação da direção superior, passeios,
jogos, festivais, prêmios, etc., a serem oferecidos ais que mais
se distinguirem pelo bom comportamento e aproveitamento
dos estudos.

Da Economia Interna

Art. 28. – Todas as rendas e todas as despesas serão


devidamente registradas, bem como inventariados todos os
móveis e utensílios, pelo modo indicado neste regimento e
de conformidade com as instruções transmitidas pela direção
superior e modelos de escrituração pela mesma indicados.

Art. 29. – Os fornecimentos de vulto que tenham de ser


feitos no Preventório serão procedidos de tomadas de preço
entre estabelecimentos idôneos, podendo a direção superior
firmar contrato de tais fornecimentos.

Art. 30. – O Preventório terá os empregados necessários


aos seus diversos serviços, mantida, entretanto, a mais rigorosa
economia, dentro de uma norma de trabalho justa, eqüitativa
e racional
Parágrafo único. A admissão desses empregados será
proposta pela administração, com aprovação da direção
superior, sujeita, porém ao resultado dos exames procedidos
nos candidatos pelos médicos do Preventório, especialmente
com relação à lepra.

Art. 31. – Os internados maiores de 12 anos prestarão


pequenos serviços aos Preventório, a título de aprendizagem,
328|Débora Michels Mattos

uma vez julgados aptos a fazê-lo, sendo aproveitado o pendor


natural que manifestarem por esta ou aquela atividade.

Art. 32. – Os internados maiores de 16 anos que prestarem


eficientes serviços ao Preventório receberão uma gratificação
nunca inferior a 30% do salário que era pago por trabalho
idêntico a empregado estranho.

Art. 33. – A alimentação dos internados será sadia e


abundante e de acordo com o regime prescrito.

Art. 34. – A direção superior e o corpo administrativo


procurarão dar o maior desenvolvimento possível à produção
do solo e das utilidades exploradas e manufaturadas no
Preventório, tendo por fim que o estabelecimento, com
pequeno dispêndio, venha bastar-se a si próprio.
Parágrafo único. Havendo abundância de produtos
cultivados ou explorados no Preventório, as sobras deverão
ser vendidas e a renda aplicada como auxílio ao custeio do
estabelecimento.

Art. 35. – Todos os vencimentos ou ordenados dos corpos


administrativos e técnicos serão determinados pela direção
superior e os salários dos empregados serão propostos pela
administração dependendo de aprovação da mesma direção
superior.

Do Custeio e da Tomada de Contas

Art. 36. – O Preventório será mantido pelas seguintes


verbas:
a) subvenções e auxílios federais, estaduais e municipais;
b) contribuição dos sócios da Sociedade de Combate à
Lepra, depois de deduzidas as despesas normais de
manutenção da Sociedade;
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 329

c) donativos de quaisquer espécies;


d) legados que porventura sejam feitos;

Art. 37. A Sociedade fará entrega à Irmã Superiora, no


penúltimo dia de cada mês, da quantia necessária à
manutenção do estabelecimento, dentro do orçamento anual
previamente organizado.

Art. 38. – Até o dia 10 de cada mês a Irmã Superiora


prestará contas das despesas efetuadas com a verba do mês
anterior, recolhendo os saldos verificados.

Art. 39. – Os donativos conferidos diretamente ao


Preventório bem como as rendas agrícolas ou de outras
espécies, produzidas no estabelecimento, serão incluídas pela
Irmã Superiora, nas prestações de contas. A iniciativa de
angaria donativos em dinheiro ou em espécie, será atribuição
da Diretoria da Sociedade de Combate à Lepra, que poderá
ajudar se julgar conveniente, delegar poderes a terceiros,
mediante autorização por escrito.

Art. 40. – Só poderão ser feitas despesas além do


orçamento, mesmo quando custeadas por donativos diretos
ou rendas do Preventório depois de autorizadas pela Diretoria
da Sociedade.

Art. 41. – A Sociedade designará mensalmente uma das


diretoras para fiscalização do Preventório.
Parágrafo único. Essa fiscalização será de ordem puramente
administrativa no sentido de auxiliar a direção, sendo os
entendimentos de ordem financeira feitos sempre junto à
Diretoria da Sociedade.

Art. 42. – A disciplina será exercida pelo corpo


administrativo com recurso para direção superior, quando se
330|Débora Michels Mattos

tornar preciso, a fim de serem aplicadas as penalidades


máximas de dispensa, demissão ou expulsão, conforme se
trate de empregados, funcionários ou internados.

Art. 43. – Para auxiliar a manutenção da ordem e disciplina


nas aulas, refeitórios, dormitórios e recreios, dentro de um
regime de respeito e tolerância, serão criados os cargos de
guardião para a seção masculina e guardiã para a seção
feminina
Parágrafo único. Para esses cargos será dada a preferência
a casais idôneos que queiram residir no Preventório.

Art. 44. – Aos funcionários do corpo técnico somente a


direção superior poderá aplicar as penalidades de que se
tornarem passíveis:

Aos Internados

a) admoestação;
b) repreensão;
c) supressão de passeios, festas, jogos;
d) expulsão no caos de alínea “f” do art. 6.

Aos Empregados

a) admoestação;
b) repreensão;
c) dispensa.

Aos Membros do Corpo Administrativo

a) admoestação reservada;
b) repreensão;
c) demissão.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 331

Aos Membros do Corpo Técnico

a) admoestação reservada;
b) admoestação por escrito;
c) demissão.

Disposições Gerais

Art. 46. – Terão preferência no provimento dos diversos


empregos e funções do Preventório os candidatos idôneos e
que dediquem aos serviço o tempo integral.

Art. 47. – Os membros do corpo administrativo e do corpo


técnico serão contratados e no respectivo documento serão
exaradas as condições detalhadas dos serviços, duração, bem
como todos os seus deveres e direitos.

Art. 48. – Os cargos do corpo técnico poderão ser exercidos


gratuitamente por funcionários do Estado, se este deseja
colaborar na obra do Preventório e os respectivos profissionais
se comprometerem a cumpri esse regimento.

Art. 49. – A orientação religiosa do Preventório será a


Católica, com a devida tolerância das demais religiões.

Art. 50. – Não será permitida a formação de correntes


partidárias de qualquer espécie entre os internados,
empregados ou funcionários devendo todos manter o máximo
respeito pelas autoridades constituídas e pelos superiores
hierárquicos.

Art. 51. – Os casos omissos neste regimento serão


resolvidos, conforme se apresentarem, pela direção superior,
pelas autoridades sanitárias competentes ou pela Federação
das Sociedades ao Lázaros e Defesa contra a Lepra.
332|Débora Michels Mattos

Disposições Transitórias

Art. 52. – Este regimento entrará em vigor na data da sua


aprovação pela Federação das Sociedades de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra, a que é filiada a Sociedade
de Combate à Lepra.

Antes de encerrarmos este pequeno guia destinado às


Sociedades filiadas à Federação e mantenedoras dos
Preventórios Estaduais, deixamos uma solicitação especial para
ser encaminhada aos Srs Diretores das Colônias, no sentido
de que façam consignar, quando do registro dos nascimentos
das crianças, ocorridos nos Hospitais-colônias que dirigem,
ter o nascimento se verificado no município em que está situada
a colônia, a fim de que não constem das respectivas certidões,
ter o nascimento ocorrido num leprosário.
Aproveitamos mais essa oportuna e justa lição que os
envia, com a sua prática de 14 anos, a digna Diretora do
Asilo Santa Teresinha, em São Paulo, dona Margarida Galvão,
que a solicitou e obteve, das autoridades paulistas essa
humaníssima providência.
Não ficará ferreteado o filho sadio do lázaro com esse
documento de tão valia para a sua vida pública futura, ao
deixar o preventório.
Assim como até agora resulta o empenho brasileiro de
luta contra a lepra numa perfeita conjunção de esforços entre
o poder público e a iniciativa particular é de esperar que jamais
seja abandonada esse diretriz que mereceu aliás do 4º.
Congresso Internacional de Leprologia, realizado no Cairo
em março de 1938, os mais calorosos aplausos pela eficiência,
segundo as palavras do Chefe de Delegação das Filipinas: Se
um dia foram buscar inspiração nas Filipinas, hoje nós
buscamos ensinamentos no Brasil, no campo da cooperação
privada, pois, que a obra é perfeita neste setor.
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Anexo 3

Estatutos da Sociedade de Assistência aos Lázaros e


Combate à Lepra de Santa Catarina

Art. 1. – Sob a denominação de Sociedade de Assistência


aos Lázaros e Combate à Lepra, fica instituída em Florianópolis
uma sociedade civil beneficente, destinada à defesa social
contra a lepra.

Art. 2. – São seus fins:

a) criar serviços ou obras de preservação e de assistência


às famílias e para os circunstantes do hanseniano, sem distinção
de nacionalidade, sexo, cor ou crença religiosa;
b) promover a criação de preventórios (ou auxiliar na
manutenção dos já existentes no Estado ou Zona) e
ambulatórios contra a lepra, para exames periódicos da família
do hanseniano, e seu tratamento, quando isso for possível;
c) prestar assistência social ao doente submetido ao regime
de isolamento;
d) promover, junto às autoridades sanitárias, o
internamento de hansenianos em leprosários onde possam
receber tratamento adequado;
e) cooperar com os poderes públicos na aplicação das
medidas estipuladas na legislação sanitária do país, relativas à
lepra;
f) pleitear dos poderes públicos medidas de interesse para
as finalidades sociais;
g) promover a obtenção de recurso para a manutenção
da Sociedade e dos serviços por ela organizados, bem como
para a constituição de seu patrimônio social;
h) colaborar com a Federação das Sociedades de
Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, no seu
334|Débora Michels Mattos

programa de ação;
i) promover, nos municípios, a criação de Sociedades
idênticas aos seus fins, bem como obter a filiação das
associações congêneres do Estado.

Dos sócios:

Art. 3. – A Sociedade compor-se-á de pessoas que dela se


queiram associar, sem distinção de nacionalidade, sexo,
religião ou idade, a critério da maioria absoluta dos membros
da diretoria, não respondendo subsidiariamente pelas
obrigações sociais.

Art. 4. – Os sócios serão:

a) honorários;
b) beneméritos;
c) benfeitores;
d) contribuintes;
e) correspondentes;
f) remidos.

Art. 5. – Serão sócios honorários os que a Sociedade julgar


merecer desta distinção.

Art. 6. – Serão sócios beneméritos os que prestarem


serviços à Sociedade ou ao combate à lepra, e a Sociedade
julgar dignos desta distinção.

Art. 7. – Serão sócios benfeitores os que tiverem feito


contribuição valiosa à Sociedade, de um valor superior a cinco
contos de réis, ou lhe tiverem prestado serviços relevante.

Art. 8. – Serão sócios contribuintes os que contribuírem


mensalmente, no mínimo com a quantia de 1$000.
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 335

Art. 9. – Serão sócios correspondentes os que não


habitando no Estado, queiram colaborar com a Sociedade
por todos os meios ao seu alcance.

Art. 10. – Serão sócios remidos os que tiverem contribuído


com a quantia superior a um conto de réis, de uma só vez.

Art. 11. – Só terão direito a voto os sócios quites com a


Sociedade, maiores de 18 anos e não poderão ser
representados por procurador, que não seja sócio.

Parágrafo Único. – Cada sócio não poderá ser procurador


de mais de cinco procurações.

Dos presidentes de honra:

Art. 12. – São Presidentes de Honra: o sr. Governador do


Estado e exma. sra., o sr. Prefeito da Capital e exma. sra e o
sr Bispo Diocesano.

Da organização social:

Art. 13. – A Sociedade será dirigida por três poderes:

a) a Assembléia Geral, composta de todos os sócios das


categorias mencionadas nos artigos 4 e 5, e decidirá
soberanamente;
b) o Conselho Deliberativos, eleito pela Assembléia Geral
e que terá poderes que lhes são outorgados por estes
estatutos;
c) a Diretoria, a qual compete a administração da
Sociedade, nos termos destes estatutos;
d) o Conselho Técnico, com atribuições que lhe são
conferidas por estes estatutos.
336|Débora Michels Mattos

Assembléia Geral:

Art. 14. – A Assembléia Geral reunir-se-á de dois em dois


anos, para a renovação do Conselho Deliberativo e,
extraordinariamente, sempre que for convocada.

Art. 15. – As convocações extraordinárias poderão ser feitas:

a) requerimento de um terço dos sócios quites;


b) por convocação da maioria do Conselho Deliberativo.

Art. 16. – As Assembléias Gerais ordinárias funcionarão


em 1ª reunião com a presença de um terço dos sócios quites
em na 2ª convocação com qualquer número.

Art. 17. – As Assembléias gerais extraordinárias, convocadas


pelo Conselho Deliberativo, funcionarão em 1ª reunião com
a presença da maioria absoluta.

Art. 18. – Todas as reuniões pra as Assembléias Gerais


deverão ser convocadas com cinco dias de antecedência pela
imprensa. A segunda poderá ser feita com um interstício de
três dias.

Conselho Deliberativo:

Art. 19. – O Conselho Deliberativo será composto no


mínimo de 36 membros, de ambos os sexos, eleitos por
votação direta da Assembléia Geral, com renovação bienal
de um terço.

Art. 20. – Será presidido por uma mesa, composta de


quatro membros, eleita por um período de dois anos e
composta do Presidente, Vice-Presidente, 1º e 2º Secretários.
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Art. 21. – Compete ao Conselho:

a) eleger os membros da Diretoria e os do Conselho


Técnico que não forem membros natos nos termos destes
estatutos;
b) eleger os membros da Comissão Fiscal;
c) deliberar sobre os negócios sociais;
d) conhecer os balancetes semestrais, contas e relatórios
apresentados pela Diretoria e parecer do Conselho Fiscal;
e) autorizar a Diretoria a transigir sobre os bens sociais em
reuniões em que estejam presentes, pelo menos, dois terços
de seus membros;
f) substituir os membros da Diretoria por falta de execução
do cumprimento de seus deveres.

Art. 22. – Três de seus membros serão eleitos por um


período de 2 anos, pra a Comissão Fiscal que examinará a
escrita da Sociedade, balanceará rigorosamente os seus
haveres e verificará se as deliberações do Conselho foram
executadas, apresentando de tudo circunstância de relatório.

Art. 23. – As eleições serão realizadas pelo voto secreto e


para as deliberações que importem em cassação do mandato
da diretoria é necessária a presença de 2/3, pelo menos, dos
membros do Conselho.

Da Diretoria:

Art. 24. – Será composta de: 1 Presidente, 2 Vice-


Presidentes, 2 Secretários e 2 Tesoureiros, os quais exercerão
gratuitamente seus cargos.

Art. 25. – Será eleita por um prazo de dois anos, podendo


ser reeleita.
338|Débora Michels Mattos

Art. 26. – Compete à Presidente representar a Sociedade


judicial e extra judicialmente, a nomeação dos empregados e
a rigorosa execução das disposições estabelecidas, bem como
atender as instruções e normas traçadas pelo Conselho
Técnico.

Art. 27. – Compete à 1ª Secretária a superintendência


dos arquivos sociais, bem como a sua correspondência.

Art. 28. – À 2ª Secretária compete auxiliar a 1ª em todas


as suas atribuições, e substituí-la nos seu impedimentos.

Art. 29. – À Tesoureira compete a guarda dos valores da


Sociedade, a arrecadação das contribuições dos sócios,
recebimento de subvenções e realização dos pagamentos das
despesas autorizadas pela Presidente, devendo apresentar,
mensalmente, balancetes de receita e despesa.

Art. 30. – A Diretoria se reunirá, pelo menos, uma vez por


mês e extraordinariamente todas as vezes que se tornar
necessário.

Art. 31. – As deliberações só poderão ser tomadas com a


presença de três diretores, no mínimo.

Art. 32. – A movimentação dos fundos pertencentes à


Sociedade em bancos só poderá ser feita mediante cheques
assinados pela Tesoureira e visados pela Presidente.

Art. 33. – A escolha de bancos para depósito dos valores


da Sociedade serão tomadas por deliberação do Conselho.

Art. 34. – Quando julgar necessário, poderá a Diretoria


criar comissões especiais, visando a propaganda, publicidade,
assistência social e de qualquer outra natureza, cujas atribuições
Fora do Arraial: hanseníase e instituições asilares em Santa Catarina (1940-1950) | 339

e número de membros, prazo e duração, serão então


estabelecidos.

Do Conselho Técnico:

Art. 35. – O Conselho Técnico será composto além de


outros membros:
a) do Diretor do Departamento de Saúde Pública do
Estado;
b) do Diretor dos Serviços Estaduais de Combate à Lepra;
c) do Diretor do leprosário;
d) do Engenheiro Sanitarista da Saúde Pública;
e) nos municípios serão membros natos do Conselho
Técnico, o Chefe do Serviço de Saúde municipal, o Chefe do
Centro de Saúde, etc., e 3 membros mais, eleitos pelo
Conselho Deliberativo.

Art. 36. – Compete ao Conselho Técnico:

a) traçar e fixar as orientação técnica da Sociedade;


b) colaborar com a Diretoria na parte técnica da
administração.

Disposições gerais:

Art. 37. – Em caso da dissolução da Sociedade, os seu


patrimônio será entregue a um associação congênere,
mediante expressa condição de não ser ele empregado fora
do território do Estado, nem para outros fins que os desta
Sociedade.

Art. 38. – Em caso de não existir sociedade congênere, a


Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa
contra a Lepra ficará como depositária até quando se
reorganizar a Sociedade.
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Art. 39. – O Conselho Deliberativo, na sua 1ª reunião,


deliberará quais os membros que exercerão o seu mandato
por 6, 4 e 2 anos respectivamente, mediante sorteio.

Florianópolis, 12 de dezembro de 1936.

Carmen Linhares Colônia – Presidente


Otília Blum – 1ª Vice-Presidente
Zizinha Galvão – 2ª Vice-Presidente
Antonieta de Barros – 1ª Secretária
Maria Madalena Moura Ferro – 1ª Tesoureira
Irene Gama D’Eça d’Aquino – 2ª Tesoureira

(Diário Oficial do Estado de Santa Catarina, 17 de


dezembro de 1936, pp. 5 e 6)

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