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Valerio de Oliveira Mazzuoli a CURSO INTERNACIONAL PUBLICO 9. edicdo revista, atualizada e ampliada =~ REVISTA DOS TRIBUNAIS. InTRODUCAO AO DirEITO INTERNACIONAL PUBLICO Secdo | — A Sociepabe INTERNACIONAL 1. Oqueé 0 Direito Internacional Publico? Desde os primérdios da Humanidade o homem jase apresentava como ser perfeitamente constitu(do, com caracteristicas fun- damentais e na posse de qualidades comuns que transcendiam as divises que o mundo viria a softer apés a chamada era das descobertas, impulsionada pela navegacéo maritima dos portugueses e, mais tarde, dos espanhéis.! Oagrupamento de seres humanos pelas varias regides do planctafomentouacriacéo de blocos de individuos com caracteristicas (sociais, culturais, religiosas, polfticas etc.) em quase tudo comuns. Desse agrupamento humano (cuja origem primitiva é a familia) nasce sempre uma comunidade ligada por um lago espontaneo e subjetivo de identidade. Na medida em queessa dada comunidade humana (assim como tudo o que caracterizava avida na polis, no sentido aristotélico) passa a ultrapassar os impedimentos fisicos que o planeta lhe impée (montanhas, florestas, desertos, mares etc.) ¢ a descobrir que existem outras comunidades espalhadas pelos quatro cantos da Terra, surge a necessidade de co- existéncia entre elas. Em consequéncia, a civilizagao passa a ter por metaa luta constante contra as dificuldades dessa coexisténcia. Entre povos com caracter{sticas tao diferentes nao se vislumbra um vinculo espontaneo e subjetivo de identidade capaz de unir ou conjugar (como nas relagdes comunitérias) os sujeitos que os compéem. O que passa a existir é uma relacio de suportabilidade entre cles, como que numa relagao contratual, 1. Considera-se “era das descobertas” (ou “das grandes navegagbes”) 0 perfodo compreendido entre os séculos XV e XVI, em que os reinos europeus— pioneiramente, Portugal ¢ Espanha — conseguiram explorar maritimamente todo o globo terrestre, estabelecendo relages coma Africa, América Asia, V. David Arnold. The age of discovery, 1400-1600, 2~ ed. London: Routledge, 2002, p. 11. 62 » CURSO DE DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO em que se desprezam as caracteristicas sociais, culturais, econdmicas ¢ politicas de cada uma das partes, para dar lugar a uma relacao negocial entre elas. Por isso, desde o momento em que o homem passou a conviver em sociedade, com todas as implicagées que esta lhe impée, tornou-se necessiria a criacdo de determinadas normasdeconduta, a fim de regeravidaem grupo—lembre-se daafirmativa de Aristoteles dequeo homem é um ser social—, harmonizando e regulamentando os interesses mtituos. ODireito, entretanto, em decorréncia de sua evolucio, passa ano mais se contentar em reger situagGes limitadas ds fronteiras territoriais da sociedade, que, modernamente, érepresentada pela figura do Estado. Assim como as comunidades de individuos nao si0 iguais, o mesmo acontece com os Estados, cujas caracter{sticas variam segundo diversos fatores (econémicos, sociais, politicos, culturais, cometciais, religiosos, geogrdficos etc.). A medida que estes se multiplicam e na medida em que crescem os intercambios internacionais, nos mais variados setores da vida humana, 0 Diteito transcende os limites territoriais da soberania estatal rumo & criagéo de um sistema de normas juridicas capaz de coordenar varios interesses estatais simultaneos, de forma a poderem os Estados, em seu conjunto, alcangar suas finalidades ¢ interesses reciprocos. Verifica-se, com esse fendmeno, que 0 Direito vai deixando de somente regular questées internas para também disciplinar atividades que transcendem os limites fisicos dos Estados, criando um conjunto de normas com aptidao para realizar esse mister. Esse sistema de normasjuridicas (dinamico por exceléncia) que visa disciplinar e regulamentar asatividades exteriores da sociedade dos Estados (c também, atualmente, das organizagGes interestatais ¢ dos proprios individuos) 0 que se chama de Direito Internacional Piblico ou Direito das Gentes. Mas, como se verd no decorter deste Curso, 0 estudo do Direito Internacional Puiblico apresenta questées por demais embaragosas, que somente podem set resolvidas com uma parcela de boa vontade dos Estados, aos quais, priotitariamente, esse sistema de normas juridicas é destinado. Nessa breve introdugao acabamos de entender 0 que é0 Direito Internacional Pit- blico, mas sem propriamente ter formulado o seu conceito (0 que seré feito na Seco ITI deste Capitulo). Antes de chegarmos nesse conceito parece-nos imprescindivel entender o funcionamento da sociedade internacional e, posteriormente (o que faremos na Seco II deste mesmo Capitulo), descrever a formacao histérica e as tendéncias evolutivas do Direito Internacional Publico. 2. Sociedadee comunidade. O Direito Internacional Puiblico disciplinae rege prio- ritariamentea sociedade internacional, formada por Estados ¢ organizacGes internacionais 2. Cf Hilldebrando Accioly. Tratado de direito internacional piblico, vol. I, 2 ed. Rio de Janeiro: MRE, 1956, pp. 1-2; Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier & Alain Pellet, Direito internacional publico,2®ed., tad. Vitor Marques Coelho, Lisboa: Fundacio Calouste Gulbenkian, 2003, pp. 37-38; Dominique Carreau, Droit international, 8° ed., Paris: A. Pedone, 2004, pp. 24-325 e James Crawford, Brownlies principles of public international law, 8* ed., Oxford: Oxford University Press, 2012, pp. 15-16. INTRODUGAO AO DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO } 63 interestatais, com reflexos voltados também para a atuagio dos individuos no plano internacional.’ Entretanto, a nogdo de sociedade internacional nao é de todo clara. A realidade atual do Direito Internacional Publico, com a multiplicago das organizacoes internacionais e de outras coletividades chamadas de nio estatais (como os beligeran- tes, os insurgentes, os movimentos de libertagao nacional etc.), passa ao largo daquela realidade até entéo presente no cenério internacional do entreguerras, que entendia essa mesma sociedade internacional como 0 conjunto de nagaes civilizadas (para falar como o art. 38, § 1°, alinea c, do Estatuto da CIj).> © conceito de sociedade internacional é, assim, um conceito em mutagao, que poderd ser modificado no futuro com a presenca de novos atores nas relagées internacionais. De qualquer sorte, ainda é correto afirmar que, dentre os atores que atualmente a compéem, os Estados so aqueles que detém a maior importancia, dado que somente com o seu assentimento outras entidades podem ser criadas (x.g., as organizacGes interestatais) ou certos direitos podem ser reconhecidos (ug.,0 direito de acesso aos individuos as instancias internacionais de direitos humanos, somente posstvel quando o Estado ratifica o tratado em que tal direito estd assegurado). conjunto dos atores internacionais poderé constituir uma comunidade interna- cional? Para responder a indagacéo é necessario entender a diferenga entre comunidade © sociedade, tal como pioneiramente versado (no plano da sociologia) por Ferdinand Tonnies, na obra Gemeinschaft und Gesellschaft, publicada em 1887. Para Tonnies, a comunidade setia uma forma de unio baseada no afeto ¢ na emogao (Wesenwille) dos seus membros, capaz de criar um vinculo natural e espontaneo (“essencial”) entre eles; a sociedade, por sua vez, corresponderia ao produto da vontade “racional” ou “instrumen- tal” (Kirwille) dos associados, nascida de uma decisio voluntétia dos mesmos. Assim, enquanto na comunidade nio se permite aos membros decidir entre pertencer-lhe ou ndo, na sociedade essa escolha é livre e nao depende sendo da vontade das partes.* Em suma, a formagao de uma comunidade (Gemeinschafi) cstaria a pressupor um ago espontaneo e subjetivo de identidade (familiar, social, cultural, religioso etc.) entre os seus participes, em que nao exista dominagao de uns em detrimento de outros, em tudo diferindo da existéncia de uma sociedade (Gesellschafi). Para usar a formula cldssica de 3. V. Antonio Truyol y Serra. La sociedad internacional, 2* ed, Madrid: Alianza, 1998, pp. 101-171 4, CE Rolando Quadri. Cours général de droit international public, in Recueil des Cours, vol. 113 (1964-I1D, pp. 245-246. Para um estudo atual dos diferentes significados da expresso “sociedade internacional”, v. Fred Halliday, Repensando as relasdes internacionais, 2*ed., trad. Cristina Soreanu Pecequilo, Porto Alegre: Edicora da UFRGS, 2007, pp. 107-116. 5. Cf Jean-Marie Lambert. Curso de direitointernacionalptiblico, vol. Il (Fontes esujeites), 3¥ed. Goidnia: Kelps, 2003, pp. 31-32. Para criticas & expressao “nagdes civilizadas” constante do Estatuto da Cl), v. Capitulo IV, Secao I, item n° 6, infra. 6. V, Ferdinand Ténnies. Gemeinschaft und Gesellschaft: Abhandlung des Communismus und des So- cialismus als empirischer Culturformen. Leipzig: Verlag Fues, 1887, 294p. Nesse sentido, v. também ‘Antonio Poch G. de Caviedes, Comunidad internacional y sociedad internacional, in Revista de Estudios Politicos, vol. VI, Madtid, 1943, pp. 349-358. 64 © CURSO DE DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO Marcello Caetano, enquanto na comunidade os seus membros “estao unidos apesar de tudo quanto os separa’, na sociedade eles ‘permanecem separados apesar de tudo quanto fazem para se unit”.’ Por isso, nao acreditamos, pelo menos por enquanto, naexisténcia deuma comunidadeinternacional.’ Ora,aformacao da ordem internacional baseia-sena ideia de vontade dos seus participes (ainda que nao espontanea), visando a determinados objetivos ¢ finalidades comuns, o que estd a caracterizar um agrupamento nitidamente do tipo societdrio, e nao comunitdrio, E se tais vinculos ou finalidades comuns nao logra- rem éxito, é mais facil para os seus componentes desligarem-se do grupo (ou seja, dessa sociedade) para buscar outras alternativas que atendam aos seus interesses no cendrio internacional. Tal desligamento seria certamente mais dificultoso de existir num campo em que os lagos que unem uma comunidade se apresentam. Em suma, 0s vinculos que ligam os individuos numa sociedade ou numa comunidadesio em tudo diversos: enquanto nessa tiltima os que ali esto pertencem a ela, naquela outta (na sociedade) os que dela fazem parte apenas participam dela. E mais: enquanto a comunidade transmite a ideia de convergéncia e de coeso moral dos seus membros (com nitidos valores éticos comuns), a sociedade demonstra a ideia de divergéncia entre eles, fazendo primar — nese tiltimo caso ~a normatizacio (egislagao, tratados etc.) reguladora de conflitos.? Numa passagem do Leviati (Cap. 13), Hobbes assim descreveu as relagées entre os Estados sob sua tica: “Por causa da sua independéncia, os reis ¢ as pessoas detentoras da autoridade suprema invejam-se perpetuamente e mantém-se na posicao e atitude de gladiadores: comosseus fortes, guarnigdes earmasapostadas nas fronteiras dos seus reinos, espias continuos dos seus vizinhos, numa postura de guerra”. Esse trecho bem descreve uma realidade que ainda permanece nos dias de hoje, e que, provavelmente, duraré por largo tempo. O que dele se extrai com nitidez é que as atitudes humanas (e tambémados Estados dos quais nés, seres humanos, fazemos parte) tém-se voltado de forma generalizada Aperseguicao daqueles que, diferentemente da maioria, se desigualam pela raca, lingua, costumes, religido etc. Tal demonstra que vivemos num mundo de diferentes, e nao de iguais, Dai nao se acreditar na existéncia de uma comunidade de Estados, mas sim nade uma sociedade cesses mesmos sujeitos, que mutuamente (diga-se, contratualmente) se suportam na tentativa de minimizar as tensGes advindas dessas desigualdades.!” 7. Marcello Caetano, Manualdeciéncia poliica edireito constitucional,t.1, 64 ed. rev.campl. por Miguel Galvao Teles. Coimbra: Almedina, 1996, p. 2. 8. Dataprecisa observagao de Antonio Poch G. de Caviedes, para quem pretender a existéncia de uma comunidade internacional seria accitar “uma familia tio estranha (...) que seus membros nio se comportam como itmios, sequer como parentes ou amigos” (Comunidad internacional y sociedad internacional, cit, p. 345). 9, V. Odete Maria de Olliveita. Relagées internacionais: estudos de introdugao, Curitiba: Jurud, 2003, P- 136; ¢ Fred Halliday, Repensando as relagdes internacionais, cit., pp. 112-113. 10. V. J. L. Brierly. Direito internacional, 2# ed. Trad. M. R. Crucho de Almeida. Lisboa: Fundagio Calouste Gulbenkian, 1968, pp. 41-45. INTRODUGAO AO DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO ~ 65 O que existe, portanto, no ambito internacional, é uma sociedade de Estados (e/ou organizagées internacionais) que mantém entre si relagdes miituas enquanto isso Ihes convém c thes interessa. Trata-se de uma relagéo de suportabilidade, nada mais do que isso. O que se percebe com clareza, notadamente nos dias atuais, é que grande niimero de Estados se une a outros para a satisfacao de interesses estritamente particulares, sem qualquer ligagao ética ou moral entre eles, firmando acordosque no comportam qualquer leitura mais caridosa, no sentido de haver ali um minimo de identidade cultural, social, ética, axiolégica etc, Nao se vislumbra, nesse panorama, uma comunidade estatal unida por lacos espontaneos e subjetivos de identidade, sem dominacao de uns em relagao aos outros ou sem demais interesses prdprios envolvidos em cada caso. Dafo entendimento, seguido por grande parte da doutrina," de que nao existe (pelo menos por enquanto) uma comunidade internacional,” apesar dea expressao “comunidade” ser ainda bastante utilizada em diversos tratados e documentos internacionais (v.g., em algumas resolugdes da Organizacao das Nacées Unidas) e também na jurisprudéncia nacional ¢ internacio- nal. Veja-se, por exemplo, o que diz o art. 53 da Convengio de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, ao se referir as normas de jus cogens: “Para os fins da presente Convengo, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma accita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo...”. Damesma forma, a Convencio das Nagées Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, refere-se, no seuart. 59, infine, &“importdncia respectiva dos interesses em causa paraas partes para oconjunto da comunidade internacional’. Por sua vez, a Declaragao ¢ Programa de Acao de Viena, de 1993, logo no seu primeiro considerando diz serem a promogao ¢ protecéo dos direitos humanos “questées prioritérias para a comunidade internacional...”. Varios outros documentos internacionais encontram-se redigidos nesse mesmo sentido. Os exemplos acima bem ilustram 0 fato de que, apesar de a expressao comunidade internacional nao set aceita pela maioria da doutrina, a mesma ainda continua aser uti- lizada em varios documentos internacionais. De qualquer forma, o que existe entre os 11. Cf.Antonio Poch G. de Caviedes. Comunidad internacional y sociedad internacional, cit., pp. 358- 400; J Silva Cunha, Direito internacional puiblico, vo. 1, 3ed., Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1981, pp. 9-10; Celso D. de Albuquerque Mello, Curso de direito internacional pitblico, vol. 1, 15* ed. rev. ¢ aum., Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 55-56; Florisbal de Souza Del’ Olmo, Curso de direito internacional priblico, Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 2-3; ¢ Oliveiros Litrento, Curso de direito internacional piiblico, 5 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 36-39. 12, Emsentido contritio, v. André Goncalves Pereira & Fausto de Quadros, Manual de direito interna- cional piiblico, 3*ed., rev. eaum. (8# reimpressio), Coimbra: Almedina, 2009, pp. 32-37, que apesar de aceitarem os argumentos dos que defendem a existéncia de uma “sociedade internacional”, em vver de uma “comunidade internacional”, acabam por defender esta titima, por dois motivos: 2) pelo fato dela ser “largamente dominante na doutrina’; ¢ 6) pela razao de se assistir “a uma progressiva comunitarizacéo de varios dominios da velha ¢ cléssica Sociedade Internacional, em termos tais que, atendendo designadamente & evolugao mais recente do Direito Internacional, nos permitem admitir a hipécese de um dia, mesmo vista a Comunidade Internacional em globo, os seus tragos comunitétios vierem a sobrepor-se as suas caracterfsticas socierdrias” (Idem, p. 37). 66 | CURSO DE DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO Estados, em tese, éuma simples convivéncia, com uma aco de esforcos comuns entre os associados, estruturada na ideia de coordenagio, sem qualquer espécie de subordinagao (contrariamente do que ocorre no plano do Direito interno). Assim, 0 que existe de con- creto, sem embargo dos avangos nos campos cientifico e tecnolégico, de que é exemplo a rapidez. dos meios de comunicacio, €a existéncia de uma sociedade internacional em franco desenvolvimento, integrada por Estados, por organizagées internacionais inter- governamentaise também (ainda que de forma mais limitada) pelos prépriosindividuos. Alids, em verdade, da sociedade internacional também fazem parte as coletivi- dades nao estatais, 0 que nao significa que muitos dos atores que as compdem sejam efetivamente sujeitos do Direito Internacional Publico,'? a exemplo das organizacdes nao governamentais (ONGs) e das empresas transnacionais, Trata-se de coisas distintas. Pertencer & sociedade internacional é uma coisas ser sujeito de direito das gentes é outra bem diferente. Assim, falar em atores internacionais tem sentido mais amplo do que falar em sujeitos do Direito Internacional, conotando esta tiltima expressao prioritariamente os Estados, as organizac6es internacionais intergovernamentais e os individuos; por atores internacionais, porta vez, jé se entendem outras entidades (comoas jd referidas ONGs) que participam da sociedade internacional, mas sem deter personalidade juridica de Direito Internacional Piiblico. Em suma, nao se pode perder de vista que a sociedade internacional ¢ formada por um complexo muito mais amplo de atores que aqueles que integram 0 Direito Internacional na categoria de sujeitos. Neste livro utilizaremos sempreaexpressio “sociedade internacional” para designar oconjunto de atores que operam no Direito Internacional Publico. Eventual referéncia 4 “comunidade internacional” terd seguramente um sentido préprio, além de quando a expresso se encontrar em textos ou documentos internacionais ou em citagdes de outros autores. 3. Ordem juridica da sociedade internacional. Uma das primeiras questées que se colocam ao estudar o Direito Internacional Piblico é a seguinte: como é possivel falar em ordem juridica num sistema de normas incapaz de centralizar 0 poder? Ou se poderia formularaquestéo de outra maneira: quaisseriam as condig6es necessdrias para seafirmar existir uma ordem juridica? A resposta€ possivel mente simples: um conjunto de principios e regras destinadosa regeras sirmagdes que envolvem determinados sujeitos. Como seve, no pertence ao conceito de “ordem juridica” a ideia de centralizacao de poder, nao obstante tal centralizacao existir (e ser nitidamente visualizada) no plano do Direito interno dos Estados. Portanto,a inexisténcia de um poder centralizador no Direito Internacional faz nascer a ideia de que a ordem jurfdica da sociedade internacional é descentralizada, uma vez que em tal ambito juridico (bem ao contrario do sistema juridico interno) néo existe centtalizagio de poder, bem como uma autoridade com poder de impor aos Estados as 13. CE Anthony Aust. Handbook of international law, 2" ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, pp. 12-14. INTRODUGAO AO DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO | 67 suas decis6es.'“ Em outras palavras, nao existeainda na érbita internacional (ao contrério do que ocorre no Direito interno) nenhum érgio com jurisdigao geral capaz de obrigar os Estados a decidirem ali suas contendas (lembre-se que a participacéo de Estados em tribunais internacionais requer 0 consentimento expresso destes, sem 0 qual o tribunal respectivo nao poderd exercer jurisdicao sobre eles). Dessa forma, pode-se afirmar que as relagdes jurfdicas internacionais se desenvolvem quase que inteiramente em nfvel ho- rizontal, o que evidencia o cardter embriondrio das normas de organizacao da sociedade internacional, como destaca a melhor doutrina.' Seumanormade Direito Internacional ¢ superioras outras—como ¢ 0 caso da Carta das Nagées Unidas, em virtude do seu art. 103" — é porque os Estados aceitaram que assim deva ser. Além do mais, inexistem no plano internacional os poderes Legislativo, Executivoe, paraalguns, inclusiveo Judicidrio (uma vez queo “Judicidrio” internacional depende do aceite dos Estados para que possa atuar, a0 contratio do que ocorre no ambito interno, em que o poder jurisdicional advém de um érgéo autdnomo e independente), © que faz com que o direito das gentes desconheca, sob o aspecto formal, 0 princ{pio da hierarquia das leis, o qual s6 & compreensivel sob 0 aspecto material e, mesmo assim, com um nticleo de regras advindas do costume (de que sao exemplos as notmas de jus cogens). A subordinagao — cléssica na ordem interna — dé lugar & coordenagio na ordem internacional, motivo pelo qual a vontade (ou consentimento) dos Estados ainda é 0 mo- tor da sociedade internacional contemporanea."” Salvo no que tangeao fundamento do 14, Cf. Hans Kelsen. Teoria pura do direito, 72 ed. Trad. Joao Baptista Machado. Sao Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 358-359; Peter Malanczuk, Akehurst modern introduction to international law, 7* ed. rev., New York: Routledge, 1997, p. 3; José Francisco Rezek, Direito internacional piiblica: curso elementar, 9* ed. rev., Sao Paulo: Saraiva, 2002, pp. 1-3; Pierre-Marie Dupuy, Droit international public, 7#ed., Paris: Dalloz, 2004, pp. 2-43 Sean D. Murphy, Principles of international law, St. Paul, MN: Thomson/West, 2006, pp. 3-6; ¢ Malcolm N. Shaw, Direito internacional, rad. Marcelo Brando Cipolla (et all), Sao Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 5-10. 15. V.Antonio Cassese. Diristo internazionale (a cura di Paola Gaeta). Bologna: | Mulino, 2006, p. 18; Antonio Remiro Brotons (tall), Derecho internacional, Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 48; ¢ Marc Perrin de Brichambaut, Jean-Frangois Dobelle & Frédérique Coulée, Leons de droit interna- tional public, 2° éd., Paris: Dalloz, 2011, p. 20. 16. “Art. 103. No caso de conffito entre as obrigacées dos membros das Nagdes Unidas, em virtude da presente Carta e as obrigagées resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerao as obrigagées assumidas em virtude da presente Carta’. 17. V. Malcolm N. Shaw. Direito internacional, cit. p. 5, quando diz: “Nos sistemas internos, a lei esté acima dos individuos, ao passo que o direito internacional sé existe entre os Estados, no mesmo nivel deles. A tinica opgdo que os individuos tém é a de obedecer as leis ou nao. Nao sao eles que ctiam as eis; isso é feito por instituigbes especificas, No dicito internacional, por outro lado, so 0s préprios Estados que criam as leis e depois decidem obedecé-las ou no. Como ¢ evidente, esse fato tem profundas repercussées no que diz respeito as fontes do direito ¢ aos meios de imposicio das normas juridicas aceitas”. Em nota de rodapé, arremata: “Isso levou Rosenne a considerar o direito internacional um direito de coordenacio eno desubordinacso, sendo este timo o caso dos direitos nacionais” (p. 5, nota n° 23). 68 - CURSO DE DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO Direito Internacional - que nao pode ficar 4 mercé da vontade isolada dos Estados -, 0 regime de consentimento estatal (consensus) ¢ bastante claro na ordem juridica externa, podendo ser bem visualizado na hipétese em que um Estado rechaga a jurisdigao de um tribunal internacional ou quando nao se submete deventual decisao proferida, A vontade do Estado apenas sucumbe caso tenha ele anteriormente reconhecido a possibilidade dea vontade coletiva de outros Estados ser vinculante em relagao a si, tal como ocorre em relacéo a votagéo nas assembleias de organizacées internacionais, quando se trata de assuntos de menor interesse. Portanto, aordem juridica da sociedade internacional difere da ordem internaestatal por estar estruturada de forma horizontal, sem conhecer poder central auténomo com capacidade de criagdo origindria de normas e com poder de impor aos sujeitos do Direito Internacional Publico o cumprimento de suas decisées. Tal nao significa, contudo, que no exista no plano do Direito Internacional um sistema de sang6es, notadamente no Ambito das Nagées Unidas, em que a sua visualizacéo é mais nitida. O que ocorre é que tais sangées so seguramente mais imperfeitas que as geralmente adotadas nos regimes de Direito interno em Estados que contam com um sistema juridico de qualidade. Tudo 0 que néo se pode entender é que a constatagao de ser a ordem juridica in- ternacional descentralizada esté a impedir a existéncia de normas de conduta entre os sujeitos do Direito Internacional Publico. Ainda que de carater embriondrio, tais normas compéem uma ordem juridica (internacional, nesse caso) e no uma desordem. Nada na cena internacional ~ noradamente depois do advento da Organizagio das Nagées Uni- das, em 1945 ~ pode levara crer ser incompativel como conceito de descentralizagao do poder a existéncia de um sistema ordenado de normas capaz de gerenciar as atividades da sociedade internacional. Asociedade internacional diferencia-se da ordem juridica interna tanto sob oaspecto formal quanto soba btica material. Sob 0 ponto de vista formal, a diferenca da sociedade internacional para a ordem interna baseia-se na sua estrutura, pelo fato de ali nao existir um territério determinado, dentro do qual vive certa populacéo, coordenada por um poder soberano. Se comparada a populacao de um Estado com os Estados pertencentes a sociedade internacional, ver-se-4 que enquanto aquela deve submeter-se aos ditames provenientes do poder central existente no Direito interno (a Constituicéo estatal eas leis que o Estado adote), estes tiltimos nao se submetem senao a prépria coordenacao de seus interesses rec{procos, sem qualquer relagio de verticalidade entre eles, o que nao significa que nao haja qualquer sango para os Estados faltosos no cumprimento das normas do direito das gentes, Tanto é assim que o art. 41 da Carta das Nag6es Unidas prevé que 0 Conselho de Seguranga poderd adotar medidas destinadas a tornar efetivas suas decisdes, nelas podendo incluir-se “a interrupgao completa ou parcial das relagdes econdmicas, dos meios decomunicagio ferrovidtios, maritimos, aéreos, postais, telegréficos, radiofénicos, ou de outra qualquer espécie, e o rompimento das relagées diplomaticas”, complemen- tando o art. 42 da mesma Carta que, caso tais medidas sejam inadequadas, o Conselho INTRODUGAO AO DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO | 69 de Seguranca “poders levar a efeito, por meio de forcas aéreas, navais ou terrestres, a acéo que julgar necesséria para manter ou restabelecer a paz ¢ a seguranga internacionais’, podendo tais medidas compreender “demonstragées, bloqueios ¢ outras operagdes, por parte das forcas aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nagées Unidas”. Do ponto de vista material, a sociedade internacional jamais se igualaré a sociedade de pessoas (ou, até, & comunidade destas) no Direito interno, uma vez que as matérias que disciplina provém de um conjunzo de Estados com poderes soberanos limitados (em razio da prépria ideia de descentralizacao), e nao de uma vontade tinica leita pelos seus sujeitos para reger-lhes a conduta (ou, até mesmo, a eles imposta, como no caso dos governos ditatoriais). Aordem juridica da sociedade internacional édescentralizada, masao mesmo tempo organizada pela légicada coordenagao (ou cooperacao), que gradativamente vai tomando oespaco do antigo sistema de justaposigio, em virtudeda cada vez. mais em voga doutrina da interdependéncia, segundo a qual os Estados, nas suas relagdes rec{procas, dependem menos de si préprios e mais da grande aldeia global que esté & sua volta. SecAo Il — Génese € Estano ATuAL po DireiTo INTERNACIONAL PUBLICO 1. Introdugao. Nao é nosso propésito desenvolver aqui um estudo histérico apro- fundado da formaco do Direito Internacional Publico e da emergéncia da sociedade internacional. A nossa intengdo é somente mostrar que 0 Direito Internacional Publico vem, ao longo do tempo, desde a época provavel de seu nascimento, ganhando novos contornos e evoluindo pari passu ao avanco da sociedade internacional. Assim, nas linhas que seguem pretendeu-se tratar, de forma sucinta, da génese do Direito Internacional Puiblico, de suas tendéncias evolutivas e do atual estdgio pelo qual ele atravessa. Foram propositadamente deixados de lado os acontecimentos e percalos hist6ricos pelos quais passouesse Direito até chegarasuamaturidade, bem comoas escolas do Direito Internacional e cada um dos seus respectivos defensores. Por fim, algumas palavras sero ditas sobre o ensino do Direito Internacional Puiblico, sobretudo no Brasil. 2. Origens histéricas do Direito Internacional Puiblico. O Direito Internacional Publico, contrariamente do que pensa boa parte da doutrina, néo é uma criagao recente. 18. Para uma boa visdo histérica do Direito Internacional Publico, v. Arthur Nussbaum, A concise history of the law of nations, 2° ed. rev., New York: Macmillan, 1954. CE, ainda, os cléssicos Georg Stadtmiiller, Historia del derecho internacional piblico, Madcid: Aguilar, 1961; ¢ Antonio Truyol y Serra, Historia del derecho internacional ptiblico, Madrid: Tecnos, 1998.

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