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ITICA LITERARIA Brunel, Madelénat,Gliksohn,Couty ‘ a Universidade hoje PMO MU(ereN LITERARIA aoa OR Vet ete J-M.Gliksohn, D. Couty Apresentagio de Machado de Assis — I. Teixeira literatura hispano-amerieana— J. Joset io helenistiea — P. Petit Aliteratura grega — F. Robert A relighio grega — F_ Robert A psicotogia social — J. Maisonneuve Oineonselente — J.-C. Filloux Accriticaliterdria — P. Brunel, D. Madelénat, J.-M. Gliksohn e D. Couty Em preparagio As teorias da personalidade — S, Clapier-Valladon ‘A economia dos E.U. George Sociologia do direi y-Bruhl As primeiras civilizagoes do Mediterrneo — J. Gabriel-Leroux Historia dos E.U.A. — R. Rémond Literatura brasileira — L. Siegagno Picchio Alidéia de cultura — V. Fell Universidade hoje ACRITICA LITERARIA PBrunel, D.Madelénat, J-M.Gliksohn, D. Couty Tituto original LA CRITIQUE LITTERAIRE Publicado por: Presses Universitaires de France, col. Que sais-je? © Presses Universitaires de France, 1977 1! edligdo brasileira: junho de 1988 Tradugdo: Mazina Appenceller Revisto da tradupdo: Alexandre Soares Carneiro Revisto tipogrdfica: Coordenagao cle Mauricio Balthazar Leal Producio gréfica: Geraldo Alves Composicio: Astel — Artes Grificas Ante-final: Moacit K. Matsusaki Ademilde L. da Silva Capa — Projeto: ME Tlustragéo: Vilio Pomar, Edgar Poe, Charles Baudelaire cet le corbeati, 1982 Todos os direitos para a lingua portuguesa reservados & LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Introdugio (P. Brune!) . CAPITULO I — Deserever (P. Brunel) 1. “Sine doctrina”, 7 HL, Aistéeles, 9 LL As artes pottcas, 12 IV, Aristeles tradurid e trado, 14 V. A pottica segundo Paul Valéty, 17 VIL A pottiea hoje, 19 CAPITULO II — Saber (D. Madelénat) 1. Arqueologia, 27 1. O primeco séeulo XIX, 32 HL Sainte-Beuve, 40 IV. O segundo séoulo XIX ou a era postvsta, 47 V_ A histéria ltrdria moderna, 52 CAPITULO III — Julgar (.-M.Giiksohs) «. 1. O mundo da critica, $9 IL Impressionism identiticagdo, 67 IL. Douteinas,opinides, prevoncetos, 72 59 CAPITULO IV — Compreender (B. Coaty) veeseseses 79) 1. Rumo a uma cifncia da fiteraura, 80 HL A anise da narrativa, 99 UL Varies sobre o tema, 98 IV. Compreender © qué?, 101 CAPITULO V — A critica em questo (P. Brunel) .... 105 1. A época das polémicas, 105 HH, Situagao da evtca Herd UL. A tentagdo psicanaliticay 111 IV. Uma crise da eritea?, 115 108 Bibliografia sumdria .... 117 Introducao £ um lugar-comum lembrar esta pretensa caracteristica ( proprio autor que dizem ser o melhor represen- ‘ante do espirito francés naquilo que ele tem de contestador, Voltaire, teve 0 cuidado de observar que, no passado, no século XVI € mesmo no século XVII, “os literatos dedica- vam-se bastante 2 critica gramatical dos autores gregos é trabalhios que devemos os dicionérios, as edigdes corretas ¢ os comentiirios sobre as obras-primas da Antigtidade”’. Assim, @li@eSeteViaiaeritica a0 Como] ‘principal exigencia cont muava a ser 0 discernimento. Discernimento, critica: palavras da mesma familia, E se, tal como aqueles criticos gramaticos, remontarmos a0 etymon, encontraremos 0 termo latino cemere € 0 grezo krinein, que significavam, principalmente, “separar”, “dis- tinguir”. O essencial da operacao critica deveria ser, portan- to, separar 0 joio do trigo. Percebemos imediatamente algu- mas aplicagdes deste principio. No que toca atribuicéo, por exemplo: separar a obra auténtica da multidao das ap6- ctifas (ndo faz muito tempo, alguns criticos profissionais se deixaram enganar por uma falsa Chasse spirituelle, de Rimbaud, publicada por Pascal Pia, ¢ isso, segundo Claude ‘Mauriac, “atingiu a critica em sua prdpria existéncia’"). Ou ainda, ou seja, no aquela que agtada ao “editor” (as “tropas arma- das”, num célebre pensamento de Pascal), mas aquela a 1. Durante um debate no ridio, em 21 de maio de 1949. Citado por Bruce MORRISSETTE, Le Bataille Rimbaud, Nizet, 1959, p. 192. . apés um pa- que se chegow apés uma pesquisa minucio: ciente trabalho de decifragio (as “carrancas armadas”) ‘Afinal, 0 grande pergo de qualquer entica 6 confiar apenas no critério do gosto, o que resulta numa curiosa diminuigdo da atividade critica, que consistiré apenas em julgar as obras do espfrito para separar os eleitos dos maldi- tos, ou, mais exatamente, os que elegi dos que amaldicoei. La Brayére disse com razio: “Entre os homens hé bem mais vivacidade do que gosto; ou, para ser mais preciso, so poucos os homens cujo espirito € acompanhado de um gosto seguro ¢ de uma critica judiciosa.”? Contudo, justa- ‘mente no momento em que julga a critica, ndo pode evitar conceber a critica como julgamento. Esta € uma tendéncia tao poderosa que chega a orientar até as tentativas de defini- Gao. Para Emile Littré, a critica literdria é “a arte de julger as produgdes litersrias”, 0 critico é “aquele que julga as obras do espfrito”, e uma critica € “o julgamento produzido por um critico”. Esta onipoténcia do critico tem algo de inritante, e podemos compreender que C. S. Lewis tenha comegado seu.An Experiment of Criticism tomando a defini- cio comum (“O objeto tradicional da erftica literdiria € jul- gar 05 livros”) e invertendo 0 processo que els implica (0 bom gosto é aquele que nos leva aos bons livros, 0 mau gosto 0 que nos leva aos livros ruins: afinal, por que ndo poderfamos “definir um bom livro como um livro que lemos de uma determinada maneira, ¢ um livro ruim. como um livro que lemos de uma outra maneira” Devemos responsabilizar Aristételes por ter orientado a.critica para a norma? Considerado durante muito tempo a referéncia suprema, neste e em muitos outros campos, 0 Estagirita demostrava uma flexibilidade bem maior. Mui- 2. Caractires, “Des ouveages de Vesprit™, $11 3.CS. Lewis, An Experiment of Criticism, Cambridge University 1961; trad. franc, Jean AUTRET, Gallimard, 1965, col. “Les Es: CXX, pp. 7-8. as vezes os Diafoirus® da literatura pr 50 disgnds. licos em seu nome: 'Nesses termos, ela jé constitui um dos ramos do saber. e, a0 mesmo tempo, ‘Com Sainte-Beuve, storia Iiterarta pretende se tornar uma espécie de “his- ‘ria natural literéria” e “estabelecer uma classificagao dos ritos”. Com Lanson, sonha em se unir & erudigao para fazer pacientes pesquisas monogrilicas ou para construir vastas sinteses hist6ricas, “o quadro da vida literéria da na- ‘cdo, a historia da cultura e da atividade da multidae leitora Aesconhecida, assim como dos individuos ilusres que esere- Marcel Proust censurou Sainte-Beuve por ter apenas observado a literatura a partir da categoria do tempo” por ter, de tanto “cerear-se de todas as informagées possi veis sobre um escritor, confrontar stias correspondéncias, fazer perguntas a homens que o [haviam] conhecido”, me- nosprezado “aquilo que uma vivéneia um pouco mais pro- funda de nds mesmos nos ensina: que um livro é produto de um eu diferente daquele que manifestamos em nossos habitos, na sociedade, em nossos vicios”. Poderfamos dizer da critica literéria proustiana 0 mesmo que Proust dizia do género literario praticado por Maurice Barres: “nada mais Edo que a forma de utitizagdes possiveis de impresses mais preciosas” do que ela prépria. Nesses termos, ela merece fotalmente 0 epiteto 26 QM. gue por vezes€ Fito, personagens de O doente imagindrio, comeédia de Molié re, ambos médioosignotantes e pretensiosos.(N.T.) 4, Gustave LANSON, Etudes d’histirelitéraire, pp. ss 5, Marcel PROUST, Conire Sainte-Beuve, Gallimard, col. “Idées! NRF”, 0°81, pp. 157,172 mas } i li ! H | APIO ET dado a uma Uma “arte de desfrutar 05 livros”, implicando uma escolha e, portanto, um julga- mento, ainda que menos incisivo. A critica caprichosa € a critica jornalistica ndo procedem, elas também, das im- pressGes do momento? Tal € 0 dilema no qual parece encerrada (a universalidade abstrata da critica nor- mativa, 0 cientificismo da hist6ria litersria )eOSTEApHGNOS) el Durante as tiltimas décadas, nao escapou ‘rerhua dest dfn: RSE MUAWEHGRAS ENCES Com Lucien Goldman, por exemplo, vai no sentido da sociologia, enquanto o “estruturalismo genético” quer “descobrir no universo imagindrio expresso pela obra as estruturas da visio de mundo de um grupo social ao qual de alguma forma o escritor se acha ligado, edo qual ele as extraiu””. Ora quis ser, ela propria, uma cigncia da literatura; nao uma “ciéncia dos contetidos”, mas “uma ciéncia das condigées do contetido, ou seja, das for- mas”: uma “‘lingdistica do discurso” € nisto “conforme a natureza verbal de seu objeto”*. Outras vezes, pelo contré- rio, caminhou no sentido de uma “critica parcial, apaixo- nada, politica”, como descjava Baudelaire e como depois desejou Claude-Edmonde Magny®. Jean Paulhan louva a critica violenta e ferina, ¢ Paul Léautaud a pratica, Sartre afirma que a critica “engaja integralmente o homem”” jas essa tiltima 6. Bste dilema € muito bem apresentado por Claude-Edmonde MAGNY, em Les sandales d’Empédocte, Seuil, 1945, pp. 9. 7. Jacques LEENHARDT, “Psychocrtique et sociologie de rature”, in Les chemins actuels de la etigue, UGE, 1968, ol. 8 389, p. 375, 8. Roland BARTHES, Critique e vert, Seuil, 1966, pp. 57's. 9, Les sandales d'Fmpédoce, p. 15. 10,"“Qu'est.ce que lalittérature?" in Stations, M, Gallimard, 1948, p. 310. lie 4 existe? Néo seria ela, como pretende Etiemble, apenas uma seita de tedlogos “que se anatematizam para se reconciliar @ custa do homem livre”?", Ou devemos, como propés Roland Barthes, separara ‘ciéncia da literatura” da “critica literdria”, a primeira sendo um “discurso geral eujo abjeto no é um determinado sentido, mas a propria pluralidade de sentidos da obra” e a segunda, “este outro discurso que assume abertamente a responsabilidade de dar um sentido Particular 4 obra?” Os debates esto abertos, mas uma GBBRM, x osicimos apresntar um programa compe- to da critica literdria em tao poucas paginas. Selecionamos, portanto, aquilo que nos parece significativo, e tivemos 0 cuidado de mostrar que, se 0s franceses tém espitito critico, a.critica literdria nao é uma exclusividade francesa. A pri cipal dificuldade foi separar RRR. 1< vo 1052 sho sobretucoconstantcs ‘0 decorrer dos séculos uma ou outra pode ter tido maior importancia, mas as demais nao deixaram de atuar no gran- de mecanismo do espirito humano. TI, ETIEMBLE, Esvals de finérature (oraiment) générale, Gallic rmard, 1974, "Sur la entique literate”, pp. 243-248, 12. Critique et verte, . 56. CAPITULO i Descrever 1, “Sine doctrina”” Sine doctrina, vita est quasi mortis imago (sem a ciéncia, vida € quase uma imagem da morte): por mais que omestre da filosofia 0 diga, o senhor Jourdain’ vive perfekamente bem sem “doutrina” e faz prosa sem sabé-lo ou aquilo ue se convencioneu chamar por este nome, tam- bn co basis pensar no primero pastor ou no primeiro xamé, ou em qualquer outra forma de eriagio oral, mas em lieraturas mais claboradas. René Sieffert escreve que, no Japao, “todos os clissicos, e mesmo muitos dos modetos, sempre fizeram poesia como senhot Jourdain fazia prosa — sem sabé-lo”"; seria de um sentido inato do belo, exacerbado pelo budismo, que teriam nascido 0 Kojiki (“Observagdes sobre os fatos do pasado”) no sécu: Jo VIIL, os relatos (monogaiari) do século XI, as epopéias do século XIII, os nd de Zeami do século XV e os contos ¢ dramas dos séeulos XVIL e XVII. eae Acero ‘ribo que escande 0 canto do solista proferindo as onomatopéias rituais ou repetindo os refrdes, ‘95 comensais que sabem de cor as f6rmulas estereotipadas repetidas pelo rapsodo nao se preocupam em criticar uma *Senhor Jourdain — principal personagem da pega Le bowgeots ‘genil homme (O burgués fdalgo), de Moliére. Fabricante de tecidos tendinheirado, ¢ levade a agir de forma cada vez mais ridieula por seu ‘esejo de se formar um “homem de bem”. (N-T) 1. René SIEFFERT, La litrature japonaise, Publications orienta listes de France, 1973, p. 36. “obra” na qual colaboram. Composta de sentencas, de provérbios do calendério, a primeira poesia chinesa (os poemas do Kuo Fong no Che King) impoe-se com a forca da tradigdo. E aceita sem julgamentos, e se um dia alguém ousa criticé-la, decide-se queimar 0s livros (inclusive 0 Che King), como 0 fez 0 imperador T’sin Che Huang Ti em 213 a. C, Maso consentimento nao exclui a emulagao, ‘© concurso de textos entre dois grupos. Curiosamente, trata-se de concursos sem juiz. Ou, se ha algum — Pale- mon, na segunda bucdlica de Virgilio —, recusa dar a sua opinido: todo o prazer vinha do arrebatamento mi- tuo. - Actitica intervém, como sempre, mais tarde, Se jx por~ que cia a -0” daquilo que até entao fa ndo-escrito (assim, por exemplo, 0s Anais dos Hans osteriores nos informam que, no ano 175 de nossa era, gravaram-se em pedra os elissicos do confucionismo, fim de se Ihes estabelecer um texto eritico?). A escrita € © instrumento daqueles que querem conservar 0 privilégio do saber (0s braimanes), mas também daqueles cujo espirito se desliga, Apesar de ter-se efetuado de forma lenta, a evo- lucéo na india no deixou de ser exemplar: indispensivel ao clero, uma vez que rege a forma dos cantos sagrados, 1 poética se inscreve a margem da religido védica, mas.con- serva alguma independéncia’; ela toma forma nos manuais e€ resulta em listas de figuras praxes. Trata-se realmente 2 Exemplo de ETIEMBLE em L'éeriure, Gallimard, 1973, col “dgesINRF", 1280, p. 53, 3. ETIEMBLE, Linératures laigues, in Essis de linérawre (vral- iment) générale, p. 73. de “ensaios de critica literdria", como diz Louis Renou?* he, IL, Aristoteles Poderiamos considerar a Poética de Aristételes (384-322 a. C.) uma excegdo. Uma tradigéo obstinada afir- ma, de fato, que esse tratado impos uma espécie de Diktat a toda literatura ulterior e que nao ha, “indubitavelmente, uum outro exemplo na histdria de uma arte poética que prece- da (e em muitos séculos) a pratica da escrita, ao invés de refleti-la”. Ora, parece-nos muito mais que a obra reflete ‘uma pritica anterior da escrita, e que é bem mais descrtiva do que normativa, De acordo com o curso normal das coisas ¢ das escritos, tal como € concebida e praticada po sparece ao termo de uma producao abundante na elogiiéncia atica (Big sha a es 'Na Poética, sao descritas as “es- Pécies” (eide) pocticas: a epopéia segundo Homero, atragé- dia segundo Euripedes ¢ — talvez (pois a reflexao sobre este género parece ter desaparecicdo) —a comédia, segundo Crates ou Aristofanes. Aparecendo apés o século V, idade de ouro da literatura grega, a Poética (que data provavel- mente da época do “Liven”, 334-323 a. C.) apresenta um balanco do passado antigo e recente: trata no somente de Euripedes, mas também de seus sucessores Agaton, Astida- ‘mas, Teodeto ou Afareu, Consciente de se localizar no fim de uma Historia, Aristételes chegou a escrever uma breve historia da poesia a partir de Homero (1448 6), uma breve 4. Louis RENOU, “Literature sansrite, in Histoire des tran +5, Gallimard, 1955, col. Encyclopédie de la Pléade,t 1, p. 97. 5, Pierre AUBENQUE, artigo “ArisSteles", in Encyclopaedia Uni- versal, HL historia da tragédia a partir dos autores de aitirambos (1 a) ¢ uma breve hist6ria da comédia a partir de Epicarmo ¢ Formis (1449 6), Se trata rapidamente dessa historia € porque quer des- cobrir principio de cada género, mais do que suas origens.. primeiro grande feito de Aristételes foi ter eriado a logica €, portanto, ter feito do discurso (logos) a forma mais coe- rente e mais eficaz, Para isso, era importante conhecé-lo. A Retdrica nao pretende ser uim conjunto de receitas, mas um conhecimento dos fundamentos do discurso que permi- tiriam uma elaboragdo metédica da técnica oratoria. Da mesma forma, a Poética pretende descobrir 0 “efeito pré- prio” de cada um dos géneros posticos e, para isso, deve cxaminar seus “motores”. E, além disso, ela estabelece 0 princfpio de toda “poesia”: @ imitagéo (mimesis) Tudo comecd com uma definigao do homem como ser imitante. Mas Aristoteles ndo trata de qualquer imitagao: por tum jogo de restrigGes sucessivas, passa da imitagao artis- tica em geral a imitagao pela voz, ¢ depois para a imitagao pela linguagem, o que chamarfamos, com ume palavra que ele ignora, de “literatura”. A epopéia, a tragédia ¢ a comé- dia imitam a vida, imitando portanto um movimento que conduza um fim. Mas hé entre a tragédia ¢ a comédia uma diferenga de matéria (pessoas de mérito de um lado, pessoas mediocres do outro), entre a epopéia e a tragédia uma dife- renga de maneira (personagens em agao num caso, narracao no outro). De qualquer forma, ndo pode tratar-se de uma simples c6pia, mas sim de uma estilizagao. Podemos lembrar 2 frase de Gide em seu Journal: “A obra de arte & exagero.” efeito da imitagao € 0 prazer, mas também a puriti- cagao (catharsis). O poeta deve oferecer 0 prazer concedido pela piedade e pelo temor suscitados com ajuda de uma imitagéo (1453 6), Num trecho da Politica, Aristételes ja ‘empregava a palavra catharsis para estabelecer uma compa- racdo entre a purificacao ritual € a purificagao musical ‘Quando volta a empregé-Ia a propdsito da tragédia, na Poé- fica, insere-a num contexto fortemente marcado pelo léxico da medicina: refere-se & purgagdo dos humores e a uma 10 écie de homeopatia. Nestes dois casos, porém, deve-se respeitar a nuanca de um “como se”: a catharsis religiosa € a catharsis médica so apenas pontos dé comparagao que petmitem uma abordagem do efeito poético e de sua descri- io. Como escreveu Goethe, Arist6teles “‘entende por ca- tharsis a realizagao tranquilizadora que € efetivamente bus- cada em toda representagao dramética, assim comoem toda obra postica™. A catharsis pode nascer dos fatos imitados ou da organi- zagdo dos fatos. Intervém portanto a poética no sentido es- trito do termo (poesis), ou seja, “a forma de compor a fébula quando se pretende que a composicéo postica seja bela” Para descrevé-la, Arist6teles insiste no problema da exten- io: o limite da obra literatia corresponde a natureza e pode- mos fazer um exame completo de sua anatomia da mesma forma que fazemos com um belo animal (1451 a). Esforga-se por encontrar uma ordem (na tragédia, por exemplo, a intri- a, as peripécias, o desenlace ou a alternancia das partes liricas e das partes draméticas). Tem o cuidado de examinar a traducéo do pensamento por palavras ou clocugao (lexis): donde uma longa descri¢éo do material verbal, onde apare- ce uma distingao fundamental entre 0s elementos neuttos (aletra, asflaba, a particula, a conjungao, 0 nome, o verbo, 0 caso, a locugio) ¢ 0s elementos excepcionais da linguagem (05 nomes compostos e sobretudo # metsfora) ‘Assim como Descartes se propde nao a “ensinar 0 mé- todo que cada um deve seguir para conduzir sua razao de forma correta, mas somente mostrar como procurou condu- zir a sua”, Aristoteles ndo quis ensinar aos poetas como proceder em sta profissio. Sua Poética deveria principal- mente permitir que 0 piblico conhecesse e compreendesse melhor aquele oficio. O conceito de natureza (physis) € aqui essencial: um género nasce € se constitui, uma obra tem tum corpo. Mas o tom do manual nao deixa de ser didatico € Aristételes, as vezes, para dizer 0 que é, diz 0 que deve 6. GOETHE, “Nachlese 2u Aristoteles' Poctik”. 1827, texto reeo- ido em Kleine Schriften uw ser. Poderfamos até extrair do conjunto alguns desenvol- vimentos normativos (que concernem a peripécia ou a0 re- conhecimento na tragédia, e a0 estilo, onde se requer uma dosagem sabia dos elementos neutros e dos elementos ex- cepeionais: “E preciso ter medida em cada uma das partes da elocugao”, 1458 b). Nestas condigdes, explica-se melhor 0 fato de esta Poética ter sido com freqiiéncia considerada, uma “arte postica”, IIL As artes poéticas A Epistola aos Pisdes, de Horacio (65-8 a. C.), conhe- ida desde a Antighidade como Ars Poetica, abre a série das artes poéticas. Inscreve-se na linhagem da Poética de Atistételes, talvez por intermédio de uma obra alexandrina de Neoptolemo de Parion, hoje desaparecida. Horécio tem reputacdo de satirico e quando emprega a palavra criticus, (na primeira epistola do livro Il, por exemplo) é para desig- nar o censor das letras. Na Arie Poética, sabe ridicularizar 65 poetas cfclicos que anunciam suas narragdes medocres com promessas prodigiosas e fazem com que um rato nasca de uma montana (v. 136 ss.). Como Arist6teles, e em ter~ mos por vezes andlogos, descreve a obra literdria e o olhar critico que se exerce sobre ela: ‘Acontece © mesmo com a poesia e com a pintura uma, vista de perto, cativa mais, outra deve ser vista de mais longe; uma pede a obscuridade, outra a luz, pois no teme o olhar penetrante do eritico; uma agradou uma vez, 2 outra sempre agradaré, mesmo se voltarmos a ela dez vezes (v. 361-365), E lembra entao que a natureza se une & arte. Mas sua obra est cheia de conselhos e preceitos: invenao, dispo- sigdo ¢ elocugdo devem estar em estreita dependéncia para que a obra seja una; é preciso encontrar o tom que convenha ao géneto, ao assunto, ao personagem; a imitagao nao deve 12 ser nem banal nem servil; o inveross{mil ndo deve ser apre- sentado ao espectador. E necessdrio seguir regras, pois os dons nio sao suficientes. Todos devem fugir dos bajuladores € buscar 0 auxilio de um critico judicioso, como Quintilius Varus, que assinalard o que € preciso mudar (v. 438 ss.) Boileau (1636-1711) inspirow-se em Horacio e nao em Aristoteles’ para sua célebre Arte Poética em quatro cantos (1674). Ele tivera predecessores franceses, principalmente ‘Vauquelin de La Fresnaye que, em sua Art Poétique (1605), havia parafraseado a Epistola aos Pis6es, e, antes dele, Du Bellay (Défense et illustration de la langue francaise [Defesa e ilustracdo da lingua francesa), 1552) ¢ Ronsard (Abrégé de Vart poétique francais | Compéndio de arte poética france- sa}, 1565), que haviam preconizado o eniquecimento da lingua por novos vocébulos ¢ 0 enriquecimento da literatura nacional pela imitacao dos Antigos. Como Horacio, Boileau ‘um satirico: ele ataca toda uma geragdo, condenando afe- tados como Cotin, burlescos como Scarron, enfaticos como Guez de Balzac, académioos, escritores de moda e sobre~ tudo Chapelain, cuja protixidade € cujo papel de érbitro do gosto ele néo suporta. A longa exposicdo consagrada 2 epopéia ndo se baseia em nenhuma doutrina precisa; per- de-se em ataques contra Desmarets de Saint-Sorlin ¢ contra © “maravilhoso cristo”, que Boileau recusa. Para estabe-~ lecer suas regras, Boileau quase sempre comeca por descre- ver uma conduta andrquica de resultados desastrosos: ‘La plupart, emportés d'une fougue insensée, Toujours loin du droit sens vont chercher leur pensée: Ils croiraient s‘abaisser, dans leurs vers monstrueux, Sills pensaient ce qu'un auire a pu penser comme eu. Evitons ces exces: laissons I'Italie De tous ees faux brillants 'éclatante folie ‘Tout doit tendre au bon sens (...)” (1, 39-45).* 7. Apes de reconhecer sua dvida em reagto a Aristteles(exagerada por seus adverséros), Boileau nega ter ido Vida, um dos primeitos comen tadores de Avisttles, que publicara uma Arte Podica em latim em 1527 * A maiora, levada por uma impetuosidadeinsensata/ Vai procurar seu peasumento sempre longe do bom senso Acteditariam estar se tebai B Este € 0 estranho estatuto da descrigao na crftia literd- ria, da forma como € concebida por Boileau: ela atinge a imaginagao para dizer 0 que ndo se deve fazer, introduz 0 preceito abstrato que devers ser registrado pela razio. Muitas vezes esses preceitos parecerdo banais ou ultra- passados, € o dogmatismo de Boileau nao Ihe atrai simpa- tias. Mas talvez isso se deva ao fato de se ter conduzido obra (que alids se prestava a isso) para o lado da norma. E preciso lembrar que esta pretendia ser, antes de mais nada, um trabalho de vulgarizacdo, destinado as “honnétes gens”. O autor sabe esbocar répidos quadros hist6ricos, su- gerir com alguns toques sutilmente escolhidos as caracte- risticas de um género ou de um estilo, tornar-se eco € espe- Iho da sociedade de seu tempo. Terfamos a tentagio de dizer que € a desctigéo que salva a Art Poétique da medio- cridade. IV, Aristételes traduzido e traido Danicl Momet definia Boileau como “o porta-vor, a consciéncia do classicismo”, e Pierre Clarac apresentou a Arie Poética como 0 “sumirio da doutrina clissiea”. De fato, @ teoria vinha apés a prética; mas isso nao significa que a literatura classica tenia se elaborado sem doutrinas. Durante os séculos XVI e XVII, a Poética de Aristételes serviu de ponto de partida para consideragdes criticas sobre literatura, numerosas e divergentes demais para constituir uma teoria estavel. A primeira traducio latina da Poética, devida a Geor- gius Valla, foi publicada em Veneza em 1498. Ela alimentou na Itélia “uma atividade critica consideravel que nunca se ‘Nando em seus versos monstruosos/ Se pensassem aquilo que umn outro também pudesse pensar. Evitemos estes excessos: deixemos & Ilia! A ruidosa loucura de todos estes Tasos brlhantes/ Tudo deve tender 20 ‘bom senso (..) (NT) ry verificara em nenhuma época, em nenhum pais”. A partir de 1527, ¢ mesmo bem depois de 1600, sucedem-se edigies, comentirios ¢ tratados “aristorélicos”. Seria entediante enumerat todas essas obras. A primei- 1a € De arte poetica, de Vida, bispo de Alla, de 1527. Em seguida, vém, entre outras, a Poetica (em italiano) de Tris- sino (1529), as tradug6es da Poetica em italiano por Dolce, ‘em latim, por Paccius (1536), a Poetica de Daniello (1536), ‘8 comentarios de Robortello (1548), de Bernardo Segni (1549), de Maggi (1550), de Vettori (1560), a Arie Poetica de Mutio (1551), 08 Discorsi de Giraldi Cinthio (1554), 0 didlogo de Frascator, Naugerius, sive de Poetica (1555), 0 de Minturno, De Poeta (1559), a Arte Poetica, do mesmo (1563), os Sete livros de poética, em latim, de Scaliger, 0 comentario de Castelvetro (1570), 08 Discorsi de Tasso (1587-1594). Houve também adversérios, como Piccolomi ¢ Francesco Pattizzi. No século XVII, dois holandeses, Heinsius € Vossius, tomam o lugar dos itatianos. Na Franca, a maioria desses escritos era bem conhecida: os Discours de Corneille aludem a cles e, em 1674, 0 padre Rapin, no prefaicio das Reéflexions sur la Poétique d’Aristote, esboca um breve catélogo de todos os comentadores, com base nos elementos que Chapelain the havia fornecido no ano anterior. Dois nomes dominam esta lista, os de Scaliger ¢ Castel- vetro, Scaliger (1484-1558) nasceu na Itélia, mas viveu na Franca. Escrevia em latim, e s6 fala da literatura latina ou grega. Desde o inicio de sua obra, exibe uma superioridade de visio e exprime-se de maneira apropriadamente filos6- fica, seja ligando qualquer atividade humana (entre as quais, 0 discurso) & necessidade, seja definindo o terceiro tipo de discurso, a poesia, por seu objetivo ultimo: “Ensinar {8 René BRAY, Formation de la doctrine classique en France (1926), reed. Nizet, 1974, A abra mais completa sobre a questi ¢ a de J.E,SPIN GARN, A Hisiory of Literary Criiciomin te Renaissance, com referencias specials &influgncia da Talia na formago e desenvolvimento do classi smo moderno, New York, Columbia University Press, 1899. dando prazer.” A imitagio, fundamento da poesia, € tam- bbém seu “fim intermedirio”: ela permite nao somente re- produzir por palavras as coisas que existem, mas também Tepresentar aquelas que néo existem, como se existissem da maneira que poderiam ou deveriam ser. Isto significa ‘que Scaliger foi capaz de ir mais longe que Aristételes. Mas ele também se apsia em Hordcio (conformidade social € ‘moral dos personagens, compromisso do prazer e da institui- 0 moral). Sua influéncia foi enorme na Franca do século XVII, a ponto de se pretender que a voga de Scaliger tenha provocado a de Aristételes ‘A tradugao (em lingua vulgar) cle Ludovico Castelvetro (1505-1571) € acompanhada por um comentario de um novo tipo: ele nao se contenta em explicar as dificuldades do tex- to, ele quer desenvolver 0 esboco de arte poética que ele contém. Compreendeu bem, por exemplo, 0 caréter “ho- meopético” da catharsis. Em compensagéo, acrescenta a Aristételes consideragdes sobre a unidade de espaco € s0- bretudo sobre a unidade de tempo que passarao por aristot licas, apesar de 0 serem bem pouco. Porque, muitas vezes traduzido, muitas vezes glosado, Arist6teles foi freqientemente traido nos séculos XVI ¢ XVII. Além da coleira das tés unidades, que em vao procu- ramos na Poética, a nocéo de coeréncia é com muita facili- dade substitufda pelas de verossimithanga e conveniénci e atribui-se-Ihe um moralismo que se aproxima mais do esp\ Tito horaciano. Com Racine, a catharsis torna-se purgacio das paixées. Como lembra corretamente Pierre Somville, “o texto da Poética jamais pretendeu qualquer absolutismo, ¢ nada nele justifica este papel de cstandarte dogmatico que the foi attibuido por uma ideologia muitas vezes basca- da no moralismo e na censura™, Precisemos que se trata de uma deformacéo quase que exclusivamente de responsa- bilidade dos franceses. Nem Philip Sidney (1554-1585), em sua An Apology for Poeirie, publicada em 1595, nem Lope 9, Pierre SOMVILLE, Essa sur la pottique d’Aristote, Vrin, 1975, p.167 16 de Vega (1562-1635), em seu Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo (1607) foram tao dogmaticos quanto Aubig- nac ou Rapin, Mesmo a Letire a Academie (Carta a Acade- mia) de Fénclon (1714), embora bem mais flexfvel do que a Art Poétique, de Boileau, ndo deixa de ser moralista. Cou- be a um aleméo, Lessing (1729-1781), reencontrar Arist6- tcles, livrando-o da tradigfo francesa. Afinal, “sair-se bem ‘com regras é uma coisa, observé-las realmente € outra. Os franceses primam no primeiro caso; mas, quanto a0 segun- do, parece que somente os Antigos souberam fazé-lo"™, ¥V. A poética segundo Paul Valéry Nos séculos XIX e XX, a critica descritiva ndo morre Mantém seus direitos diante de uma critica preocupada em julgar e de uma critica desejosa de interpretar. “Um dos sonhos do positivismo em ciéncias humanas € a distincao, ‘ou mesmo a oposicao, entre interpretacao —subjetiva, vul- neravel, eno limite arbitraria —e descricao, atividade segu- ra e definitiva. A partir do século XIX foram formulados projetos para uma critica ‘cientifica’, que banisse qualquer “interpretagio’ © que fosse pura ‘descricao’ das obras.” termo poética, empregado substantivamente, reassume conseqiientemente um lugar de honra ou, em todo caso, E do gosto da época. Primeiro fato a observar: Paul Valéry (1871-1945), que nunca deixou de acrescentar um acompantiamento eritico a sua eriagdo poética e que ja havia escrito muitos textos de critica literaria, como 0 texto “Au sujet d’Adonis” ("A respeito de Adonis”), 0 estudo sobre “Victor Hugo createur par la forme” (“Victor Hugo, criador pela forma”) ou “La 10, LESSING, La dramaturgie de Hambourg (1767-1769). 1. Tzvetan TODOROV, Pestigue (Quresr-ce que le structurale, 2), Seuil, 1968, reed. ol. “Points”, n2 45, p17. 1 tentation de (Saint) Flaubert” (“A tentagdo de [Sao] Fiau- bert"), foi nomeado professor de Pottica do Coliége de France, proferindo sua aula inaugural no dia 10 de dezem- bro de 1937. Ele prdprio havia escolhido ¢ proposto o titulo de sua cadeira, e sua primeira tarefa foi explicar este nome, que ele dizia ter “restitaido, num sentido bem primitivo, que no é 0 empregado”. Nao se tratava de uma coletnea de regras, nem de uma arte poética: “A era da autoridade nas artes jé terminou ha muito tempo, ¢ a palavra ‘Poética’ jd ndo desperta a idéia de prescrigdes incdmodas e supera- das.” Reportando-se a etimologia, Valéry propée-se a ex- primir a “nocéo bem simples de fazer” (poiein). E posstvel considerar a obra iterdris como fato consuma- doe, neste caso, a critica literdria dedicar-se-d a descrevé Que podemos frente a este objeto que, por sua ver, rio pode nada frente a nds? Mas temos influéncia sobre cle. Podemos avali-lo segundo a sua natureza, espacial ou temporal, contar as palavras de um texto ou as silabas de tum verso; constatar que tal livro apareceu em tal época: {que tal composigao de um quadro inspirs-se em tal outra; ‘que hi um hemistiquio em Lamartine que existe em Tho- ‘mas, e que uma determinada pagina de Vietor Hugo perten- ce, desde 1645, a um obscuro padre Francois. Podemos veri- ficar que um determinago racioeinio é um paralogismo; que tal soneto € incorreto; que o desenko de certo braco ¢ um esafio & anatomia, € que um certo emprego de palavras E ins6lito. Tudo iss0 € 0 resultado de operacbes que pode- ‘mos assimilar a operagdes puramente materiais, pois se refe- tem a formas de sobreposigio da obra, ou de fragmentos da obra, a algum modelo, Mas também podemos considerar a obra em vias de se fazer, ou a obra como 0 termo de um fazer. Pois “a obra do espirito s6 existe em ato” e “a execucio do poema que éo poema”. Se partitmos desse principio, ndo podere- mos mais tratar as obras literdrias como coisas ® 1 Podemos encontrar este texto em Oewires, de VALERY, Gall ‘ard, 1962, Bibliotheque de la Pléade, tI, pp. 1340-1358. 18 No entanto, ao lermos vérios textos de Valéry, e do Valéry desta mesma €poca, percebemos que a definicdo se modifica. O texto intitulado “L'enseignement de la Posti- queen College de France” (“O ensino da Poética no College de France”)! fornece uma definigao dessa abordagem da obra literiria que certamente nao € totalmente contraria A definigao precedente, mas jue dela difere sensivelmente, Valéry declara que entende o termo “segundo a sua etimo- logia, ou seja, como nome de tudo o que concerne a criagao © & composicao de obras cuja substdncia e meio seja alingua- gem —€ nao no sentido restrito de coleténea de regras ou de preceitos estéticos referentes a poesia”. Arte da fin- guagem, a arte literdria baseia-se na convengio, mas “figu- ras” —espécie de linguagem em estado nascente—, provem de um “mecanismo” que seria preciso poder desmontar, A literatura sendo, e necessariamente, “uma espécie de ex- tensio e de aplicagio de certas propriedades da linguagem”, 1 Pottica sera o estudo dessas propriedades, desse ato vir- tual nos dados da linguagem. Como podemos observar, tra- ta-se de reduzir a Poética ao que Aristételes chamava poie- sis, € até mesmo a simples “elocucdo”. VIL A poética hoje Nessas condigdes, compreendemos que os tedricos da pottica atuais, ao mesmo tempo que invocam o testemunho de Valéry, tomem um certo distanciamento em relacdo a ele. Assim, Tzvetan Todorov (nascido em 1939), autor de uma Poétique (1968) e de uma Poétique de la prose (1971), recusa a primeira concepcéo de Valéry, mas aceita a segun~ da. Assimila a ela “a mais cétebre das Poéticas, a de Arist6- teles”, que “nada mais era que uma teoria sobre as proprie- dades de alguns tipos de discursos literdrios”, pois, para cle, a poética interroga “as propricdades desse discurso pat- 13, bid, 1, pp. 1438-1446. 19 ticular que € 0 discurso literdrio™*. Aigm de Aristételes ¢ Valéry, ele elege como seus predecessores os formalistas russos e Roman Jakobson. Ao voltar a0 sentido original do termo “poética”, os formalistas russos tentaram, com efeito, provocar o renasci- ‘mento desse tipo de pesquisa, ou seja, a andlise da fungio poética da linguagem, No inverno de 1914-1915, por iniciativa do jornalista O. M. Brik (1888-1945), alguns pesquisadores e estudantes fundaram o Circulo Lingiistico de Moscou para promover a linguistica ea poética. Uma primeira coletinea de estudos {oi publicada em 1916 e, em 1917, foi criada a Sociedade de Estudos da Linguagem Po¢tica (Opoiaz). Recusando a abordagem psicoldgica, filoséfica ou sociolégica que domi- nava até entdo a critica literaria na Ruissia, 0 centro das preocupacdes dos formatistas russos era a obra, que tenta- vam descrever em termos téenicos (V. Chklovski, “A Arte como procedimento” em Sobre a teoria da prosa, 1925). Do estudo do problema do som no verso, a pesquisa esten- deu-se ao estudo do verso (Tomachevski), mas também do conto (Prop) e do romance (Chklovski). Nos seus quinze anos de atividade, os formalistas russos produziram um con- siderdvel conjunto de obras. O principio estabelecido por Chklovski é 0 de que “a criagio de uma poética cientifica cexige que se admita desde o inicio a existéncia de uma lingua poctica e de uma lingua prosaica, cujas leis séo diferentes, idéia que € provada por miiltiplos fatos”™. Roman Jakobson (nascido em 1896), fundador do Cir- culo Lingtistico de Moscou, viveu na Tehecostovaquia de 1920 a 1939; tendo sido um dos membros mais ativos do Circulo Lingiistico de Praga, muito fez para difundir as idéias dos formalistas russos. Seus primeitos trabalhos (A poesia moderna russa, 1921; Sobre o verso tcheco, 1923) V4. Podtique, pp. 1921. 15. V. CHKLOVSKI, Poétique, reeuils sur la théorie deta langue pottique, Petiogrado, 1919. Encontraremos importantes textos dos forma Tstastusios nacoletinea Théorie ensemble, Seuil, 1965, coh. "Tel quel” 20 sdo insepardveis das obras dos estudiosos russos. Durante 2 guerra, Jakobson se exilou nos Estados Unidos, onde da aulas até hoje. Dedicou-se a mostrar a “poesia da gramé- tica” € a “gramética da poesia”. Seus trabathos como lin- Blista (Ensaios de pottica geral) e de teérico da poética (0s textos reunidos sob 0 titulo de Quesiées de poética) tor- nnaram-se classicos e alimentaram uma parte importante da- quilo que se convencionou chamar a “nova critica” (ver capitulo IV). Jakobson vé nos trabalhos dos formalistas russos uma tentativa na direcao de “uma ciéncia da arte poética”. Ele proprio define a Poética como “o estudo lingtistico da fun- do poética no contexto das mensagens verbais em geral ‘na poesia em particular”. Retomando as palavras de Bau- delaire (“A gramética, a érida gramatica, toma-se algo co- mo uma feitigaria evocadora”), debrugou-se particularmen- te sobre as “figuras da gramitica” e considera que na textura sgramatical da linguagem poética reside grande parte de seu valor intrinseco. Dedica-se, por exemplo, a revelar arelacio entre as disposigdes das categorias gramaticais e as correla- Ges métricas ou estroficas do poema. A célebre andlise ‘que fez Gjuntamente com Claude Lévi-Strauss) dos Chats (Gatos) de Baudelaire dé uma boa idéia da minticia com que procede Jakobson na anilise de texto. Nao que descreva pelo simples prazer de descrever; o exame da textura grama- tical deve levar questéo que considera fundamental “Diante dos procedimentos vigentes que o inventério Ihe forneceu, como uma obra poética explora-os com um novo objetivo e atribuithes um novo valor, & luz de suas novas fungoes?” “O emprego do termo poética por Roman Jakobson para designar o estudo e a teoria do discurso litersrio, a pesquisa das razdes da originalidade na prépria obra parece irreversivel”; esta constatagao de Henri Meschonnic (nas- 16. Questions de poduigue, evil, 173, p. 231. Fstacoletinea contém ‘aandlise dos Chats, que fora publicads anteriormente na revista L’'Homme em 1962 a ido em 1932) é confirmada no Dictionaire encyclopédique des sciences du langage (Diciondrio enciclopédico das cién- cias da linguagem) de Ducrot e Todorov (Seuil, 1972), onde 6s outros sentidos do termo (a escolha feita por um autor entre todos 0s termos possiveis, ou os eédigos normativos construfdos por um te6rico ou por uma escola litersria) s80 descartados, em favor da “teoria interna da literatura” (pp. 106 ss.). Em Pour la poétique (1970), Meschonnic nao quer partir de Jakobson sem criticé-lo. Para ele, a poctica néo se relaciona apenas com as categorias lingisticas, e a obra também nao estd integralmente na gramética do texto como tal. Censura Todorov por limitar a poética a descricio exaustiva € tautoldgica ds obra. Denuncia 0 paradoxo de uma critica que encontra uma poética dos géneros no m mento em que a literatura dela se despojou. Para ele, “a ‘obra, ¢ toda a literatura, no passam de atualizagao”"”. A cada vez, sua Tinguagem € vinica. A critica literéria, que pretende aqui continuar sendo uma pottica, deve, portanto, “yisar a forma-sentido, a homogeneidade do dizer e do viver. la ndo € separavel de uma pratica da eserita: €a sua conscién- cia”. A critica ndoé mais nem o censor estranho reivindicado por Hordcio (¢ depois por Boileau) nem o observador impas- sivel pressuposto pela pottica jakobsoniana, mas o prdprio escritor (pois o discurso sobre a escrita nao mais se distingue da propria eserita, nem a “critica” da “literatura”. Nao esta- mos tao longe do primeiro projeto de Valéry, ou da critica tal como a concebia ¢ tal como a praticava 0 poeta inglés ‘T. S. Eliot (1888-1965), ali citado por Meschonnic: Para nds, falar de poesia é uma parte, uma extensio dda experigneia’que dela temos. Como qualquer atividade filos6fica, a critica € inevitavel e néo exige qualquer justfi cacao. Perguntar “O que € a poesia?” € situar a fungio crtica." Fitew mescHoNtc, pout poi, Cama 197,46 UTS: ELIOT, The Use of Pocy ond the Use of Citta, Faber, 1938, pp. 1920 2 Outrora traido pelos aristotélicos dos séculos XVI XVIL, Aristételes se encontraria aqui ultrapassedo por aqueles que, retomando 0 titulo de seu ensaio, colocam-se sob sua protegdo. Meschonnic chega a passar por antiaris- totélico ao escrever que “a postica (tal como ele a concebe) € superior ao antigo pensamento aristotélico da literatura pelo fato de levar a eserita a sério: como um viver””. Pode- mos nos perguntar s¢ ele tem o direito de confundir 0 pensa- ‘mento aristotélico € 0 formalismo com 0 qual decidiu aca- bar. Aristételes partia de uma descrigao do efeito, do poder (dunamis) da palavra poética, mesmo se depois tentava con- siderd-la com frieza, decompé-la ¢ até subjugé-la. Como lembra Pierre Aubenque, a Poética de Aristoteles “nao d xa de estar em relagéo com 0 conjunto de sua filosofia”, uma filosofia que coloca o problema do ser. Mimesis, a obra recria 0 ato (energeia) que constitui a vida. Também para cle a atividade poética nao se reduzia a “um conceito abstra- to” € revelava-se “inseparavel de um viver™. 19. Pourla paéugue, p. 131, 20, bid. p16. CAPITULO I Saber A ctitica se propée explicar ¢ apreciar as obras ¢ os autores de ontem € de hoje; a hist6ria literdria, subgénero, especializa-se no exame das obras do passado, Ela traz meméria, conserva e classifica 0s fendmenos que compoem a vida das literaturas: os escritorese suas produgdes, 0 publ ‘co, as relagdes entre 0 autor € 0 consumidor do livro. Forne- ce explicagdes. Mais profundamente, tenta fazé-los com- preender e mesmo reviver 0 espago de uma leitura; ou pos- tula, a partir do actimulo dos fatos, as normas ou leis que regem sua estrutura e seu devenir. A historia literéria surge assim como uma provincia «da hist6ria, que é meméria do passado em intencio do pre- sente, € como relagio muitas vezes passional com os grandes, ancestrais mortos. Sem diivida, ela restringe seu campo de pesquisa ao dominio da literatura; mas situar 0s escritos, em seu contexto econdmico, social, politico e cultural, neles, ver os sintomas ou sinais de uma mentalidade, de uma visio caracteristica do mundo, € aproximar-se muito, e por vezes, invadir 0 territério do historiador propriamente dito. Além disso, a obra literdria revela 0 negativo do fato, as pulsdes, insatisfeitas, as virtualidades reprimidas, aintencionalidade secreta: a este titulo, ela fornece & historia um material pri- mordial. A histrialiteréria copia os métodos da historia: estabelecimento dos textos (estudo dos manuscritos, com- paracdo das edigoes, restituicao de um estado definitivo © de sua génese) € dos fatos (hiogréficos, socioliterdrios, esta- Uisticos), determinagéo de uma série de causas (imediatas ou conjunturais, longinguas, profundas ou estruturais) ou, pelo menos, fatores que condicionam a vida literdia a0 lon” {20 dos séeulos. Conservar um espitito critico sempre atento, evitar 0 espirito sistemdtico unir, em seu olhar sobre 0 25 passado, um amor severo da verdade a uma simpatia que supée imaginacao e sensibilidade: belo ideal relegado 20 inacessivel pela reflexsio moderna sobre a epistemoiogia his- t6rica, Os conceitos operatérios que organizam os fatos, {9s sinais simbélicos, os sentidos que afetam os fenémenos dependem da mentalidade,presente. O historiador literério constrdi inevitavelmente umn passado onde encontra as ques- t6cs de scu tempo — nem gue seja fugindo detas —e onde “psicanatisa” sta propria literatura, interrogando infancias Tonginquas e miticas. Provincia da critica, a historia literdria € discurso sobre obras, “metalinguagem” detida pelos literatos que tém, em maior ou menor grau, a ambicdo de também construir um ‘monumento que possua seu lugar na literatura; nenhuma heterogencidade entre 0 comentario € 0 comentado, donde rivalidades € reivindicagocs. O historiador literério aleza seu oficio, sua técnica, meios da “objetividade”; mas, como literato, niéo conseguiria evitar uma apreciagéo, O amador apaixonado despreza as anotacdes € as fichas do especia- lista; compara 0 peso de seu discurso a riqueza facil das grandes criagoes e questiona o sistema implicito ¢ explicito de valores em nome do qual se organizam os fenémenos € se pronunciam os julgamentos. A situagéo da hist6ria cy no cruzamento de duas atividades humanas cada vez mais separadas por suas res- peetivas evolucdes, impdejIhe uma problematica singular, uma tensio entre dois pos que a predispde a um ecletismo pacificador € sintético, Tranquilidade itus6ria de uma sabia erudigdo que a vida abata: agitada pelas dividas que atraves- sam a eritica ¢ hist6ria, a historia literéria €, além do mais, alvo dos ataques dos profissionais ou especialistas das duas disciplinas. © eritico de humor iré considerd-la bem alheia 0 prazer € ao desfrute da literatura; 0 tedrico da pottica verd nela apenas uma antecémara do conhecimento, uma empregada que nfo deve se tornar patroa. O historiador suspeitard dela por cagar sem autorizacao e sem armas leg! mas em suas proprias terras: conceder-Ihe-ia no maximo uma prudente marginalidade. E, apesar de contestada, € 26 portanto estimulada, por todos os lados, a historia literéria passa bem: apds uma lenta gestagdo, quando néo se distin- guia sensivelmente de seus pais, teve uma juventude bri- Thanie e uma maturidade orgulhosa. Atualmente, tendo controtado seus excessos © mais cuidadosa com seus meios, adquiriv a experiéncia © a prudéncia que, aliadas ao rigor met6dico, garantem-Ihe um lugar nas ciéncias humanas, apesar da crise que acaba de atravessar I, Arqueologia Até 0 século XVII, a hist6ria litersria nao existe nem de fato nem de diteito. Neste campo, todos esto mais preo- ‘cupados em saber fazer do que em saber, e a “arte poética” (sob qualquer nome que apareca) reina, acarretando, em termos de ensino, 0 imperialismo da gramatica e da ret6rica. ‘A Idade Média nos legou algumas biografias, dridas com ages de informagées incertas, O Renascimento, conser- vando o senso medieval da continuidade temporal, que que~ bra pela instauragdo de um novo ideal, acrescenta obras mais compostas, retrospecgées eruditas, partidarias e polé- ‘Associam-se as querelas que se seguem & Défense et itlustration de ta langue francaise os precursores da historia literdria que querem mostrar que seu pais no possui uma heranca inferior a dos Antigos. Assim, Etienne Pasquier (1529-1615) escreve suas Recherches de la France (Pesquisas da Franca, 1560) para estabelecer a superioridade da antiga literatura francesa, com um “nacionalismo” exclusive € agressivo que anuncia 0 de Nisard no século XIX. O histo- riador Claude Fauchet (1530-1601) publica sua Recueil de Vorigine de la langue et possie francaise, rime et roman, plus les noms et sommaires des oeuvres de CXXVII pottes fran- sais vivant avant an MCCC (Coletanea da origem da lingua € poesia francesa, rima e romance, mais os nomes ¢ sumérios das obras de CXXVIL poetas franceses que viveram antes do ano MCCC, 1581) para contrabalancar a admiraggo pro- 27 igalizada & Antigilidade, Sao obras de circunstancia, mas também testemunhos de uma corrente racionalista, rebelde A autoridade dos Antigos, que romperd stas comportas no final do século XVII. ‘Com 0 Classicismo, a teoria que reduz a regras as nor- mas complexas do Belo ideal reina soberana; o dogmatismo domina as formas embriondrias de uma virtual hist6ria lite- raria que em nada diferem dos quadros herdados da Anti- allidade: edigoes eriticas e anotadas de autores antigos pre- cedidas por uma introducao parcialmente consagrada a vida do escritor (os alexandrinos jé dispunham de seus escoliastas, € seus glosadores); biografias ou clogios, comentarios bre- ves e pouco preocupados com a exatidao, ocasides para fra- ses belas. Existe género mais contrério a0 espitito histérico do que 0 paralelo, exercicio ret6rico por exceléncia, que recusa tempo e anula, no espago de um discurso, os séculos, que separam dois autores? Praticado excessivamente pelo padre Rapin, voltamos a encontré-lo em Voltaire (Paralléle Horace, de Boileau et de Pope (Paralelo entre Horécio, Boileau ¢ Pope, 1761). A historiografia dispée apenas de conceitos puramente morais, concebidos como eternos (0 bem € 0 mal € sua transposicao para a ordem estética, 0 belo € 0 feio...); ela ignora as nogdes dinémicas e diferen- ciadas que apreendem o devir coletivo. Esta situacdo desesperadamente estavel vai demorar mais de um século para ser desbloqueada, e iré transfor- mar-se gracas a uma nova estruturagao do mundo das letras, ‘a uma nova perspectiva em relagdo a coisa literdria, e gracas também ao desenvolvimento da ciéncia histérica. Do Renascimento ao século XIX, 0 aperfeigoamento da imprensa e a expansio de um novo grupo social de leito- res (a burguesia) fazem deslocar a relagao literdria do esté- gio individual (0 principe-mecenas € seu poeta) a0 estigio plural (escritores que se dirigem a um publico diversificado, do qual a aristrocacia e os letrados s6 constituem uma parte de maior prestigio, mas nao majoritéria). A complexidade crescente da vida literdria, resultado de uma lenta evolugdo quantitativa, acarreta a formagéo de uma classe de escri- 28 lores € a necessidade de uma meméria coletiva adaptada a curiosidades novas e menos viciadas. ‘A imprensa, que conhece um répido desenvolvimento no século XVII, mobiliza e vulgariza a informagéo, apare- cendo como uma resposta as novas necessidades. O Journal des Savanis, fundado em 1665, informa sobre os autores, € Ihes faz elogios finebres, mas consagra pouco espaco as letras. © Mercure galant (1672), que no século seguinte se tornaré Le Mercure de France, € 0 Journal de Trévoux (1701-1767), publicado pelos jesu‘tas, atribuem grande im- portincia a critica literaria. Cadernos especialmente dedica- dos as literaturas estrangeiras, por sua forma de expor ne- cessariamente didética, suas consideragGes histéricas ¢ geo ‘gréficas, preparam, A sua mancira, uma transformagio de onto de vista — maior distancia e objetividade —em rela ‘edo a nossa literatura (Bibliotheque anglaise, Amsterdam, 1717-1728; Bibliotheque germanique, Berlim, 1720-1740; Bibliotheque italique, Genebra, 1728-1734; Bibliotheque britannique, 1733-1747; Le journal étranger, V754-1762, para apenas citar os precursores em cada dominio). paralelismo entre o sucesso politico € o britho liter rio que marcam a primeira parte do reinado de Luis XIV incita alguns espiritos a colocarem em questéio a supremac da Antigiidade: a “Querela dos Antigos e dos Moderno: (1687-1694) & um dos episédios dessa contestagao. A. pris ipio por seu Poéme du siécle de Louis le Grand (Poema do século de Luis, o Grande, 1687), depois por seu Paralléle des Anciens et des Modemes (1688), Charles Perrault (1628-1703) pleiteia a superioridade de seus contempori- neosem relacdo aos gregose latinos, fundando-se no axioma de um progresso continuo do espirito humano: eis 0 esboco, de uma critica “relativista”, atenta as diferengas entre as civilizagbes, que condicionam a diversidade das literaturas; infelizmente, esta abertura potencial é barrada por um ra- ionalismo de filiagao cartesiana, que pretende deduazir lo ‘camente as leis etemas do Belo e que substitui a adulagio dos Antigos, sustentada pelo raciocinio (dogmatismo rac nalizante), por uma concepedo abstrata e aprioristica da per- 29 {cigdo, ilustrada por exemplos antigos ¢ moderaos (dogma- ‘tismo raciocinante): simples deslocamento de acento! Contudo, a nogéo de decadéncia que desencoraja a his t6ria literdria, determinando-the 0 relato de um lento dect- nio, € substituda pela visio de uma curva hist6rica ascen- dente ¢ valorizada; passamos do pessimismo clissico a0 oti- mismo das Luzes. Por que recusar uma época portadora de um futuro fecundo? Por que ndo extrapolar, a partir do desenvolvimento passado de uma literatura, suas pro- messas futuras? A historia forja pouco a pouco os instru- mentos de uma descoberta do passado. Sem perder suas caracteristicas retéricas, moralizantes e herdicas, ela exa- mina mais de perto o documento com Bayle, interessa-se pelas civilizagdes com Voltaire e pelas estruturas profundas da sociedade com Montesquieu, E,noentanto, a historia literdria s6 emerge com dificul- dades. La Bruyére, Fénelon e Bayle tragam na época um pido panorama dos séculos precedentes; Voltaire, critico ferino, s6 desereve passado literério acessoriamente: em Lesidcle de Louis XIV (1751), um capitulo lembra a perfei- fo das letras; em Essai sur es moeurs et esprit des nations (Ensaio sobre os costumes e 0 espirito das nacoes, 1756), © estado das artes € sumariamente considerado em cada etapa da historia da humanidade. Para ele, como para mui- tos de seus contempordneos, 0 modelo se desdobra no seio de um sistema dogmatico, ¢ situam 0 “Grande Século” 20 lado do século de Augusto; mas, apesar disso, 0 sistema nfo se modifica. E. as iniimeras profissoes de fé relativistas (sobre a variabilidade dos gostos, a influéncia dos climas...) correspondem uma pratica estreitamente dogmatica e, cada vez mais, uma critica de detalhe, quase gramatical, mfope esmiugadora ‘Aquilo que poderiamos chamar de “‘pré-hist6ria liters- ria” propriamente dita comega com a compilacdo, com Les jugements des savants sur les principaux ouvrages des auteurs (Os julgamentos dos sdbios sobre as principais obras dos autores, 1685-1686) de Adrien Ballet (1649-1706), poligrafo que nao possufa nem método nem exatidao. Denis-Frangois 30 ‘Camusat (1695-1732), talento engenhoso, mas confuso, pu- blica em 1716 uma Histoire des journaux en France (His- 16ria dos jornais na Franca), continuado por uma Histoire critique des journaux (Amsterdam, 1734), depois empreen- de uma Bibliotheque francaise, ou Histoire litéraire de la France (1723). Mais préximas do catélogo ou da coletanca de historietas so as obras do beneditino dom Jean Liron (1665-1749): Bibliotheque générale des auteurs de France (1719) © Singularités historiques et litéraires (1734-1740) ‘Os beneditinos da Congregacéo de Saint-Maur elaboram, a partir de 1733, a Histoire linéraire de la France; quando a revolugao suprimir sua ordem, estarao no século XII € no décimo terceiro volume, o que mostra a medida de suas, minuciosas investigagdes, de seu recurso aos manuscritos, as crénicas, a luz de uma critica textual jf modema: mas © ponto de vista adotado — exame de autor por autor — climina a possibilidade de qualquer visio de conjunto ¢ de qualquer compreensio de uma evolucao organica das for- mas literérias. Ainda mais minuciosas, as Memoires publiés par l'Académie des Inscriptions et Belles-lettres (Memérias publicadas pela Academia de Inscricoes e Belas-Letras, a partir de 1717) merecem 0 mesmo reparo. Intimeros autores limitam-se a um género, a um fend- ‘meno ou a um perido determinados. A partir de 1740, a essas pesquisas eruditas correspondem colecées destinadas um piblico mais vasto, mas estas se limitam ao conforto a compitacéo. A mais ambiciosa continua sendo a Biblio- théque francaise ou Histoire lttéraire de la France (18 vols., 1740-1756), do abade Goujet; continuada por varios auto- res, acaba comportando trinta e quatro volumes que tratam. separadamente dos gramiticos, retéricos, potas, e que no fornecem uma visdo sintética de um século ou de um tema. As margens dessa “pré-hist6ria literéria” situam-se obras que se aproximam do dicionério, como os Eléments de littérature (1787), de Jean-Frangois Marmontel, que reti- ‘ne num volume, por ordem alfabética, seus artigos da Enc clopédia; ou a Bibliotheque.d’un homme de gout (Biblioteca de um komem de gosto, 1772) © a Nouvelle Bibliotheque 3

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