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HENRIQUE DA SILVA FONTES 'A~ IRMANDADE DO | ‘SENHOR DOS. PASSOS © O SEU HOSPITAL, ' E° AQUELES QUE OS FUNDARAM FLORIANOPOLIS — 1965 Ill. ANTECEDENTES POLITICOS E SOCIAIS 1. A DENOMINAGAO DE SANTA CATARINA Do que, até meades do séculc XVII, ocorreu nas 4guas e terras pertencentes ao Estado de Santa Catarina é s6 esta denominacéo — Santa Catarina — que interessa A nossa narrativa. A Ilha em que depois se desenvolveré a Vila de Nossa Senhora do Destérro, era, segundo Varnhagen, chamada Meiembipe pelos in- digenas tupisguaranis, que povoavam a faixa litoranea, nome a que Lucas Boiteux dé a interpretacéo de “coisa erguida ao correr da Agua”, isto 6, “ilha costeira”. (1) Outro nome — Jurirémirim — menciona Almeida Coelho como sendo o corrente entre os indigenas, e que éle interpreta como “boca pequena”, parecendothe que caberia ao “lugar que hoje chamamos Estreito, entre a Ilha e o Continente”. @) Entre os europeus ficou chamandose Wha dos Patos, provayelmen- te pela abundancia déstes palmipedes, cujo nome se ligou a outros acidentes geogrdficos, — Porto, Rio, Baia, Lagoa, Sertfio, etc. — e até a indigenas. © nome de Santa Catarina foi dado & Tha pelo navegador vene- ziano Sebastiéo Caboto, eplq ao servico dos espanhdis, que nela esteve de 19 de outubro de 1526 a 15 de fevereiro de 1527. Deuo também a uma galecta que af construfu, e as duas denominacgdes foram, certamente, homenagens a Catarina Medrano, sua mulher. (3) 2. O POVOAMENTO DA ILHA DE SAO FRANCISCO O primeiro micleo de populacéo que teve continuidade em terras catarinenses foi o da Tha de Sao Francisco. 4 ela chegou, por volta do ano de 1658, em bandeira de povoamen- () Lucas Bolteux, Santa Catarina no século XVI, pig. 32. (2) Meméria, pag. 4, nota 1. “Se nus nfo equivocamos no idioma guarani, donde provém outros, (...) e do qual tivemos algum conhecimento, Jurirémirim quer dizer “boca pequena”, nesta opiniso nos parece ser o Migar que hoje chamamos Estreito, entre a Tiha ¢ 0 Continente ou, Terra-firme; e entéo tam- bem nos parece mais acertado escrevermos Yjurirémirim “boca pequens agua”. (3) Luis Gualberto, Denominacko de Santa Catarina | ty II, ANTECEDENTES POL{TICOS = SOCTAIS to (, 0 portugués Manuel Lourengo de Andrade, em companhia de sua mulher Maria Coqueiro e filhos e de seu genro Luis Rodrigues Cava- linho, levendo grande ntimero de agregados portuguéses, vicentistas e, paulistes, e também escravos, bem como instrumentos para explo- rar mina: e lavrar a terra, além de gado vacum, lanfgero e cavalar. : Manvel Lourenco de Andrade, natural de Lamego, pessoa impcr- tante nn Capitania de Sao Paulo, como também o era seu genro, tinha amplos poderes do Marqués de Cascais, sucessor do donatdrio Poro Loves, para estabelecer-se © repartir terras com os demais coni- panheiros e com os que fOssem chegando. ‘A povoac&io prosperou com a indtistria da cordoaria, o preparo de peixe séco, a construcio de barcos, a cultura de cana de acucar, de algodao e, sobretudo, de mandioca para o fabrico de farinha, cuja exportagdo vultosa se tornou a base do seu comércio. Presumese que a elevacio a Vila tenha ocorrido em’ 1660, sendo criada em 1665 a Paréquia, em cuja Igreja Matriz de Nossa ‘Senhora da Graca foi, b por @sse tempo, sepultado o “principal povoador” Manuel Lourenco de Andrade e primeiro Capitaomor da Vila. (6) 3. O POVOAMENTO DA ILHA DE SANTA CATARINA Outra bandeira de povoamento foi a do paulista Francisco D:as Velho, na Iiha de Santa Catarina, cérca do ano de 1673. Francisco Dias Velho era filho de Francisco Dias e de sua mulher Cust4iia Goncalves. Seu pai, segundo Pedro Taques, fizera-se “opuien: to em arcos, cujos indios conquistou com armas no sertio; e, goctan- do desta guerra, tornou para a mesma conquista no Sertéio dos Patos e Rio de Séo Francisco para o Sul, até o Rio Grande de Séo Pedre”. Ele, tendo acompanhado o pai, ficou-lhe herdando a disciplina e va- lor para conquistar gentios bravos. (6) O pai faleceu em 1645, no serto, tendo éle cérca de vinte e cinco anos de idade. Morador na Vila de Sao Paulo, casou-se com Dona Maria Pires Fernndes, filha do Capitdo Salvador Pires de Medeiros e de Dona Inés Monteiro, “a Matrona”, entrando, assim, para a poderosa fami (4) A respeito de “entradas e bandeiras” ¢ muito elucidativo Hélio Viana, Historia do Brasil, T, pags. 192-199 (5) Estas notas foram colhidas em Contribuieio para a hist6ria de Santa Cata- rina, de Las Gualberto, e 2m Um capitulo da expansio bandeirante, de Carlos da Costa Pereira, fste refere-se, agradecido, a0 seu Mestre: “o Dr. Luis Gualberto, a quem devemos 0 histérleo da nossa terra e ctja Contribuleso (...) tem servido de subsidio aos historiadores catarinenses (...) (6) As weferéncias Pedro Taques sko tomadas da Genealogia Paullistana, de Luis Gonzaga da Silva Leme, VIE, pags. 25-28, nota 1. ies HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS lia dos Pires, que, naquela Vila, contendia com a também poderosa dos Camargos; e, sendo um dos homens bons da Vila, aparece, como representante dos Pires, numa convocacéo da Camara, da qual foi juiz erdinério em 1668, e aparece também em vdrias reunides ao povo. (1) Do seu casamento houve doze filhos, dos quais s6 oito figu- ram no seu inventdrio, feito na Vila de Séo Paulo e iniciado a 2 de novembro de 1689, a saber: Custédia Goncalves, homénima da avé pa- terna, casada com o Capitiio Domingos Coelho Barradas; Ana Ribeiro Pires, casada com Jer6énimo Pinheiro Lobato; Jo&’o Pires Monteiro, ca- sado com Isabel Vaz; José Pires Monteiro, casado com Maria Luts: Maria Pires; Antonio Pires Monteiro, j4 falecido, pai de Simefo Alva: res Monteiro; Bento Pires, jd falecido e que deixou uma filha; e Inés Monteiro, homénima da av6 materna, e ja falecida. como também o era set marido Joao Freire Farto. Em 1673, segundo Pedro Taques, mandou seu filho José Pires Mon teiro (8) ao Sert&io dos Patos 20m cento e tantos homens de sua admi- nistreciio para fazer povoacio onde melhor sitio descobrisse; e 0 filo descobriu as excelentes terras da Ilha de Santa Catarina e logo nelas féz plantas; e, em 1675, foi éle proprio a esta povoacSo, com novos gas- tos e nela esteve trés anos, voltando a Sao Paulo em 1679. Nesta ocasifio, expds ao Governador de Séo Paulo tudo quanto estava reali- zando em Santa Catarina e pediu-lhe terras em quatro porgdes, estan- do na primeira delas duas Iéguas em quadra. no Distrito da Tha de Sante Catarina, de sesmaria, correndo costa brava, onde ja tinha igre- ja de Nossa Senhora do Destérro, construida de pedra e cal e orneca com altar-mor e colaterais e imagens. A segunda porcdo ficava tam- bém na IJha, sendo de meia Iégua de terras de uma alagoa, onde ja tinha fazenda de culturas. As outras duas situavam-se no Continente, sendo uma no Estreito, onde j4 tinha feitoria com uma légua de ser tao e outra de testada, nas cabeceiras onde chamam Cabeca de Bosio: ea tiltima com duas Iéguas em quadra, comegando do Rio Aracativa. E “tudo se Ihe concedeu por sesmaria, — afirma Pedro Taques, re- portando-se ao registro no Cartério da Provedoria da Real Fazenda de Sio Paulo—em atencSo ao grande servico que fazia a Sua Maie: tade com a nova povoacio e fundacéo das terras de Santa Catarina” # certa a presenca de Dias Velho na Vila de So Paulo a 30 de novembro de 1678, porque, neste dia, compareceu & sessfio da Camara convocada para tratar da expedic&o do Tenente-general Jorge Soares de Macedo as terras do Sul, e em que éste, preposto que era de Dom (1) Atas @ Registros da Camara de So Paulo, vol. VI, (@) Imeas Boiteux acha, fundamentadamente, que hé equivoco e aue no seria José Pires Monteiro, mas José Dias Velho, irmfo de Francisco Diss Velho Paulistas, pag. 17. . ai AI, ANTECEDENTES POL{TICOS & SOCIAIS Rodrigo de Castel-Branco, Administrador Geral das Minas da Reparticio do Sul, expos a missio de que estava incumbido, e que era o descobri- mento das minas de prata existentes na mesma Repartic&o, e aos que 0 acompannassem, e que seguiriam @ propria custa, estava autorizado a oferecer honvarias, — um hébito de Cristo, dois de Avis e dois de ‘Santiago, —e vantagens pecuniarias. Até entéio so recebera oferecimen- tos do Capitéo Francisco Dias Velho, ali presente, do Capitio Bras Rodrigues de Arzdo, de Antonio Afonso Vidal, de Manuel da Costa Duarte e de Joio de Aguiar Barriga. (9) 4. A ILHA DE SANTA CATARINA E A COLONIA DO SACRAMENTO Contemporaneamente com éste empreendimento precipuamente econémico, outro abertamente politico se estava organizando, tam pém em ‘40 Paulo, dirigido pelo Governador do Rio de Janeiro Dom Manuel Lobo e destinado a fundar, na embocadura do Rio da Prata, uma Colonia militar que marcesse os lithites meridionais das posses- soes portuguésas. Lembremos que Portugal estivera sob 0 dominio espanhol desde 1580 até 1640, nao havendo nesses oitenta anos preciséo de discercir © que originariamente era portugués do que o era espanhol. Depois a restauragio de sua soberania, a marcacio era imperativa para Portugal. H éle teve a seu favor um ato do Papa — a Bula de 22 de novembro de 1776, que criou 0 Bispado do Rio de Janeiro, com iu tisdi¢io ate a embocadura do Rio da Prata. Naquele tempo, o Ulti- mo povozdo portugués era o da Tha de Santa Catarina e o primeiro estabelecimento espannol era Buenos Aires. O trecho intermediério da costa estava desocupado. A expedicaéo empreendida pelo Tenente-general Jorge Soares de Macedo, e em que tomavam parte Francisco Dias Velho e seu irmio José Dias Velho, bem provida de gente e de munigio, fézse de veln, partindo de Santos a 10 de margo de 1679, com destino ao Rio da Prata, em vista de parecer que, por éle e pelo Rio Uruguai, 6 que seria {cil penetrar no sertao. Era constituida por uma flotilha de sete embarcag6es, as quais, acossadas por tormentas e ventos desfavordveis, tiveram de arribar wés vézes, havendo perda total de um barco com a sua gente e cke- gando, afinal, trés ou quatro déles @ Tha de Santa Catarina. Os outros voltaram a Santos, entre éles o de Jorge Soares de Macedo; ¢ éste, ante o malégro da sua aventura, passou a auxiliar 0 empreen dimento de Dom Manuel Lobo, transportando-se para a Ilha, onde, (8) Ver Luis Guaiberto, Francisco Dias Velho. == HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS com os cus companheiros que nela se achavam, montou fabrica e armazéns para preparo e ajuste de materiais que se transfeririam para 0 projetado estabelecimento militar. © Governador Dom Manuel Lobo, de seu lado, partiu de Santos a 8 de dezembro de 1679, aportando a 20 de janeiro de 1680 as Tihas de So Miguel, na costa da atual Reptiblica do Uruguai; e, estudando as condicées do Rio da Prata e das suas barrancas, preferiu instalar © acampsmento em terra firme, numa peninsula pequenina, fron- teira & Cidade de Buenos Aires De ld, escreveu a Jorge Soares de Macedo para que fésse abas- tecer a Praca; e éste, para Ihes ouvir’ o parecer, reuniu os oficiais que com éle assistiam, e que eram os dois irmaos Capitées Francisco e José Dias Velho, 0 Capitao Francisco Pires, 0 Capitao Joao Freire Farto, genro de Francisco Dias Velho, e o Alferes de infantaria paga Mauricio Pacheco; convocou também os Capelies Frei Lourengo da Trindade e Frei Feliciano de Santa Rosa; e todos foram de opinizc que Soares de Macedo embarcasse com alguns soldados e encarre gasse do posto o Capitéo Manuel da Costa Duarte, de acdrdo com ordens de Dom Manuel Lobo. Jorge Soares de Macedo embarcou, a 13 de fevereiro de 1680, em uma sumaca, mas naufragou nas pedras do Cabo de Santa Maria. Salvando-se com vinte e trés companheiros, tentou, por terra, ganhar a Colonia do Sacramento; caiu, porém, em poder de uma tropa de indios que dois jesuitas comandavam. Com éle estavam Brés Rodrigues de Arzio, Antonio Afonso Vidal e Frei Lourengo da Trindade. © Governador de Buenos Aires, Don José Garro, percebeu desds logo 0 que os portuguéses estavam a construir, e intimou Dom Ma- nuel Lobo a abandonar aquelas paragens. Nao sendo atendido, for mou um exército de trezentos cavalos ¢ trés mil indios, comandado pelo Mestre-de-campo Ant6nio de Vera Muxica, que, sitiando o esta belecimento, desfechou o ataque final, de surprésa, na madrugada de 7 de agésto. Adoecera Dom Manuel Lobo e passara 0 comando a0 Capitio Manuel Galvao. Este morreu com a espada em punho e assim também morreram dois outros Capitfes e o Engenheiro Anténio Correia Pinto, que levantara a fortaleza; lutando, morreram cento e doze su- balternos. A guarnic&o restante capitulo, afinal, nos seus tltimos redutos — a igreja e o corpo da guarda © préprio Comandante Muxica salvou a vida a Dom Manuel LO bo, a quem os indios queriam trucidar, e enviou-o prisioneiro para Buenos A'res, onde faleceu em 1683, a 7 de janeiro. Jorge Soares de Macedo foi despachado para o Chile, mas voltou depois ao Brasil. (10) (20) Para €ste resumo, foram consultados: Varnhagen, Histéria, III, pégs. 237-239, € IV, nota de Rodolfo Garcia, pays. 117-122; Pedro Calmon, Histéria, UT, pags angie MI, ANTECEDENTES POLITICOS E SOOIAIS Durou, pois, a Colénia do Sacramento pouco mais de seis mess. Yoi devolvida a Portugal em 1681 e reconstruida em 1683; e, assalta da e restituida varias vézes, passou a ser, conforme iremos vendo, ¢ troféu das Iutas entre portuguéses e espanhdis. Conhecido 0 trégico insucesso desta sentinela avancada da Armé- rica Portuguésa, foi determinado aos que se achavam em Santa Ca tarina que se recolhessem a Santos. Tal determinagio, consoante observa Lucas Boiteux, néo alcan- gava Francisco Dias Velho, que, com a sua parentela, agregados e escravos, na Ilha e em suas cercanias, e na contracosta vizinha, se entregava ao amanho da terra e & criagao de gado, e, nas suas tré- guas, “a palpar a terra, & cata de riquezas metaliferas”. (11) 5. O POVOAMENTO DA LAGUNA Poucd depois da bandeira de Francisco Dias Velho, outra, e também de povoamento, demanda o territério dos Patos e fixa-se nas margens da Laguna désse nome, a umas vinte léguas ao Sul da Ilha de Santa Catarina, 14 onde o meridiano do Tratado de Tordesilhas, terminada a terra que demarca, penetra no mar, (12) Dirigiu a bandeira, & sua custa, o vicentista Domingos de Brito Peixoto, a quem © Govérno Portugués, dentro do plano de “povoar a costa para assegurar as fronteiras”, convidou para essa emprésa, “escolha que era, a um tempo, atestado de lealdade e integridade moral, como ce abastanga”. (13) Domingos de Brito Peixoto era casado com Ana Guerra, filha de Francisco Rodrigues Guerra e de Ana Leme, gente ilustre paulistana. Nasceram-lhes dois filhos — Francisco de Brito Peixoto e Sebastifio de Brito Guerra, e uma filha — Maria de Brito e Silva, que foi casada com Diogo Pinto do Régo, Capitéo-mor de S&o Vicente. © ano da chegada da bandeira nao estd ainda definitivamente as- sentado, aceitando a maioria dos Autores o de 1684, havendo também fundamento para admitir o de 1676. Parece, todavia, exato que Domin- gos de Brito Peixoto organizou a sua bandeira com escravos, indics, ™mulatos « homens brancos, embarcando em Santos; mas ventos con- ‘186-794; Hélio Vianna, Mistéria, 1, pigs. 273 © 274; e Lucas Bolteux, Paulistas, em que ha minticias acérea da composicéo de expedicéo de Dom Manuel Lovo. ) Lucas Bolteux, Paulistas, pég. 26. ) Os subsidios para éste resumo foram tomados de Almeida Coetho, Meméria, que se valeu do Resumo Histérico, do Visconde de Sfo Leopoldo; de Fonseca Gatvso, Notas; de Oswaldo Cabral, Laguna; e de Ruben Ulysséa, Panorama hist6rico da Laguna. }) Oswaldo Cabral, Laguna, pig. 25. 16 HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS trérios atiraram o seu barco para o Norte, fazendo-o naufragar na altura do Espirito Santo, com perda de quase t6da a gente. Domingos de Brito Peixoto mostrou que possuia fibra e haveres para mere.c1 a confianga del-Rei e eparethou nova bandeira, dividida em duas porgées, viajando uma por mar e outra por terra; e esta ultima, aps quatro meses de caminhada, ao chegar ac ponto almejedo, 1a encontrou, fundeado, o barco que transportara a outra. E nao fol sem lutas que Domingos de Brito Peixoto e a sua gente ocuparam a terra, defendida pelo Cacique Taiaranha, morrendo alguns escravos e parte dos homens livres; mas fizeram-se as pazes com os indigenas e foram langados os fundamentos da povoacao. Um dos primeiros cuidados de Domingos de Brito Peixoto foi a edificacio de um templo dedicado a Santo AntOnio dos Anjos, “cuja imagem, se disse, fora achada na praia”; e éste foi um dos meios com que atraiu grande mimero de povoadores; e éle manteve, por muitos anos, & sua custa, um Péroco, embora a igreja nao fsse matriz de Freguesia, nem 0 Péroco tivesse 0 cardter de colacio ou encomenda- go episcopal, sendo um sacerdote a quem a piedade do fundador mantinha, “para que nao faltasse a seus filhos e colonos o pasto es- piritual”. (4) Em 1696, comecou 0 povo a edificagso de outra igreja, cuja capelamor foi aproveitada na Matriz que depois se construmu que ainda existe, transferindo-se para ela a imagem do padroeiro. Domingos de Brito Peixoto, “com seus filhos, atirouse para o Sul, palmilhando pela primeira vez as extensas savanas gatichas, preando indios, arrebanhando gado que, extraviado das miss6es jesui- ticas e das fundacées castelhanas, selvagem, vivia errando nas coxi thas e pampas sulinos”. Depois, — diz Oswaldo Cabral, — faz-se silén- cio sdbre os dias de Laguna” (15) “Lancados éstes fundamentos, — diz Manuel do Nascimento da Fonseca Galvéo, — voltaram Domingos de Brito Peixoto e seus filhos a Sao Vicente”, (16) 6. A COLONIA DE FRANCISCO DIAS VELHO A aspera vida de Francisco Dias Velho na Iha de Santa Catarina assim a cramatiza Lufs Antonio Ferreira Gualberto. “O valoroso paulista soube, pela sua afabilildade, provada energia seguranga nos cargos que exerceu, captar a simpatia, a estima ¢ admiragao daqueles que o cercavam. E os parentes mais prdximos escreviamlhe de S&o Paulo, que voltasse. Nao podiam admitir que permanecesse em uma terra completamente desabitada, pouco fértil, (14) Almeida Coeiho, MemBria, pags, 126-128. (15) Laguna, pags. 37 e 38. (16) Notas, pig. 27. {If, ANTECEDENTES POL{TICOS B SOCIAIS onde as colheitas Ihe nfo remuneravam o arduo trabalho”. “Dias Velho, entretanto, amava a terra onde se veio estabelecer. Estava sempre disposto a defendéla, empregando as mais carinhosas expres- ses para recomendéla e atribuia sempre a causas eventuais o que aos outros parecia imanente ao terreno e ao clima”. E respondia: “Todos gezamos satide, Deus louvado, de tudo muito abundantes; a terra 6 mais que boa e quem disser o contrério, mente. Digam que nfo podem estar onde nao ha gente e ndo digam que nfo presta a terra; por falhar um ano, néo é defeito da terra, senio causa do tempo. Eu me contento muito com a minha sorte”. Achava-se, pois, satisfcito com a sua colénia, eujo comércio se alargava. “Em Sao Francicco tinha contas de sal com Domingos Borges da Silva, na Li guna com Brito Peixoto. Possufa diversos materiais em Santa Caia rina; em Sdo Francisco, tinha em depésito burras de ferro; ia, pois, prosperando a colénia, cercada pelo respeito e dedicacio de todos. Impediu que o castelhano na Ilha se estabelecesse, prendendo mesmo corsdrios que andavam a,percorrer a costa e que de Santa Catarina faziam ponto de refiigio e estacio de abastecimento de viveres e aguads. Estavam fundadas as duas barreiras as pretenses de Cas tela: Sio Francisco e Santa Catarina. Todavia, para a colonia atingi: @ste grau de prosperidade, tinha éle sacrificado téda a sua fortuna, como dizia em carta dirigida a seu cunhado Pedro Jicome Vieira, acs 20 de abril de 1681, “que o que tinha podia-se dizer estava empenha- do”. (7) Qs servigos de Francisco Dias Velho séo também assinalados p .: Pedro Taques, referindo éle, baseado em papéis judiciais, dois casos de piratas aprisionados. (18) © primeiro 6 0 de um navio corsério que tinha roubado ¢ sn queado a Vila da Ilha Grande de Angra dos Reis, recolnendo grosso eabedal, assim dos moradores como dos templos, tendo antes fei.o Yarias presas em embarcagées da costa com grande cabedal, o que tudo assim melhor constava no cartério da Provedoria da Fazenc\. Real de Séo Paulo livro de registro n. 4, titulo 1686, pag. 10. (9) © outro caso é o do patacho inglés que, no ano de 1687, entrou de arribada, cujo Capito era Tomas Frins e pirata. “O Capitéo-mor Francisco Dias Velho foi a bordo, prendeu éste Capitio e os mais ingléses, e baldeou para terra, por inventério, todo o cabedal que ihe achou, e os remeteu presos, 4 sua custa, & Vila dos Santos, onde se achavs entfio de correicio 0 Dr. Ouvidor-geral da Reparticio do Su’ (7) Francisco Dias Velho. (28) Ver nota 6. (49) © titulo 1686 ha de indicar que a ésse ano pertence o registro. es HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS fomé de Almeida e Oliveira”. Procedeu éste Ministro a ato de per- guntas com o Capito inglés, por intermédio de intérprete e com a presenca do Procurador-da-coroa, a 26 de fevereiro de 1688. Depos 0 Capitao que arribara & Ilha, apés ser derrotado pelos castelhanos, éle com sete homens, em o seu navio e jé falto de agua, quando fora préso. E relatou que tinha saido da Inglaterra “em uma frota de navios pequenos para Panama de Pérto Belo com novecentos homens, e andsram feitos piratas em terras da Coroa de Castela, sendo svu General Samolay, ao qual perdera de vista no porto de Calhao de Lima ( ); @ que, em um assalto no lugar de Porto Santo, ficaram destruidos”. Esta derrota o destrocara, fazendo-o, afinal, arribar @ Santa Catarina. De longe, de muito longe, vinha, pois, 0 patacho inglés. nada menos que do Panamd, do lado do Oceano Pacifico. 7. A TRAGEDIA DE FRANCISCO DIAS VELHO Certo é que Francisco Dias Velho pereceu morto por piratas, tenao ocorrido 0 caso no ano de 1689. (0) Hles hio de ter sido ingléses, porque dessa nacionalidade evam os aprisionados em 1687, conforme a documentada narragéo de Pedro Taques. Ficou, porém, a tradicio de que eram holandeses e, como tais, figuram nas informagdes que colheram Paulo de Brito e Almeida Coelho, sendo as déste apoiadas, em parte, no que escreveu Monsenhor Pizarro. Conta o primeiro: “Os holandeses ndo tardaram muite tempo en que nao tomassem vinganga (....), porque, recolhidos & Europa os que escaparam, e voltando dali a um ano outro navio com alguns déles, tomaram prético no Rio de Séo Francisco, e foram demander a Tiha de Santa Catarina”. Ancorando na Barra do Norte, segundo Almeida Coelho, vieram em lanchas acometer a povoagao, na qual Dias Velho, por avisos que também tivera de So Francisco, os foi esperar emboscado; e, tendo a ventura de obstarlhes o desembarque, foi incautamente descansar, Nesta noite, voltando os holandeses e aportando & Praia de Fora, caminharam por entre o mato, se apode- raram da igreja, para onde, pela madrugada, assaltando a casa de Dias Velho, o levaram préso com t6da sua familia, S6 ao amanhecer 0s indios souberam déste sucesso; e, em vez de acudirem ao seu chefe, cobardemente 0 desampararam. EH, dentro da igreja, consumowse o funesto acontecimento. Segun- do Paulo de Brito e Almeida Coelho; vendo Dias Velho que os piratas the desrespeitavam as filhas, “quis desafrontarse e langando mfo do (20) Pedro Taques, ver nots 6; Paulo de Brito, Meméria, pgs. 13-15; Monsenhor Pizarro, Memrias, TIT, pégs. 262-270; e Almeida Coelho, Meméria, pags. 7-9. igs MT, ANTECEDENTES POLITICOS & SOOIAIS chifarote que um déles tinha & cinta, outro Ihe disparou um tiro de pistola nos olhos, de que imediatamente cafu morto”. Segundo Pedro ‘Taques, os piratas e hereges, “pondo fogo a tudo, se passaram para a igreja, para executarem o sacrilego atentado contra as sagradas imagens, que 0 Capitaomor, com a resolu¢do catélica e brioso anim. quis defender com a espada 2 broquel, até perder a vida, dentro do mesmo sagrado templo, como mértir da f€ em Jesus Cristo’ Os piratas, segundo Paulo de Brito e Almeida Coelho, acharam, com eicito, a prata que estava escondida e a levaram para bordo do na- vio, bem como as duas filhas de Dias Velho e a mulher e duas filnas de um seu agregado de nome José Tinoco; e o rapto ter-seia consumado, se dois fredes, ali presentes, ndo abrandassem os assaltantes a forca de rosstivas, que vieram a ser eficazes, quando a clas, dados pelc filho de Dias Velho, se ajuntaram varios presentes de farinha, gados, aves, etc. “Nossos avés, — diz Almeida Coelho, — também ns transmitiram a noticia déstes sucessos, afirmando terem visto. por bastantes anos, em uma das paredes dessa igreja, as manchas ce sangue de Dias Velho”. Luis Gualberto no acredita nos ultrajes feitos as filhas do povoacor, nem na cleméneia ante as rogativas dos frades ¢ as stiplices das mulheres, nem nos presentes do filho do assassinado. Repele tara ‘bém_a circunstancia, que est4 implicita em Paulo de Brito e Almeida Coelho, de se ter Dias Velho apoderado da prata aue tomara ao pirata inglés, caso aliés esclarecido por Pedro Taques, pois todo o cabedal apreendido fora inventariado para ser entregue & Fazenda Real. “Nao foi, pois, — conclui, — para defender a praia do corsirio, que sucumbiu, senio para impedir o ultraje dos hereges ao templo que, & sua custa, havia construido, e defender os interésses da coleti- Vidade que, com tanto sacrificio, havia constituido e denodadamen‘¢ representava”. 21) 5 8. O QUASE ABANDONO DA ILHA Segundo Paulo de Brito, que, na Vila do Destérro, onde estivera ela primeira vez em 1797, teve em mAo “umas memGrias antigas”, “manuscrito mui curioso”, no qual Antonio Bicudo Cortés e outros oram escrevendo as suus indugagdes acérea do primeiro povoador, — © com o manuscrito concordava a “tradieéo vulgar no pais”; segundo Paulo de Brito, certo é que Dias Velho trouxe consigo para a Iha de nta Catarina dois filhos, duas filhas, e quinhentos indios domestica- i) Franelseo Dias Velho. ENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASS dos (22) além disso, dois frades, e um homem casado por nome José Tinoco, sua mulher Indeia da Costa, e um filho pequeno chamado José, e duas filhas, uma Inés da Costa, outra Domingas da Costa; e, depois da morte de Dias Veiho, passados alguns tempos, os seus dois filhos transportaram-se com suas irmas para a Vila da Laguna, e sdmente ficaram na Ilha alguns dos indios que éle consigo levou, aos quais tinha distribufdo terrenos e que nfo quiseram abandoné-los. Por isso, afirma: “Pode dizer-se que éstes homens e seus descendentes formaram quase a totalidade da populacio da Ilha por espago de quarenta a cingiienta anos, porque sdmente depois do ano de 1700 ¢ que para ali se transportaram alguns habitantes da Capitania de Sao Vicente, sendo os primeiros Salvador de Sousa e Manuel Manso de Avelar, que as referidas memérias manuscritas tratam por “segundos povoadores da Tha”, o que iambém ali ¢ tradigfo vulgar ainda hoje”. (23) ste espaco de tempo, que é um dos obscuros da histéria insulana, conhecido como 6 agora que o ano de 1689 foi o da morte de Dias Velho, deve ser reduzido a vinte, no maximo; e, entre os que ficaram na Ilha, 6 de incluir a familia de José Tinoco. 9. “OS SEGUNDOS POVOADORES” No ano de 1710, foi criada a Capitania de Sdo Paulo, que se desmembrou da do Rio de Janeiro; e, no ano de 1711, comprou 0 Govérno Portugués a Capitania de Santo Amaro, a que pertenciam as Terras de Sant’Ana, onde ficava o territério de Santa Catarina. Se- gundo Paulo de Brito, a varios habitantes da sua Capitania, e entre éles aos ditos Salvador de Sousa e Manuel Manso de Avelar, concedeu © Capitao-general de Sio Paulo sesmarias na Ilha de Santa Catarina na Terra-firme, para onde éles se mudaram com suas familias, Salvador de Sousa teria vindo com o pésto de Capitéo-mor das Ordenancas e Manuel Manso de Avelar com o de Sargento-mor, confe- ridos pelo mesmo CapitZo-general, “o que assaz prova haver jé sufi- ciente populagio em Santa Catarina”, 0) Vejamos quem so éstes “segundos povoadores”. Salvador de Sousa, cujo nome completo é Salvador de Sousa de Brito, era brasileiro, natural da Iha Grande e casado com Teodésia Rodrigues Velha; e Manuel Manso de Avelar, nascido em Lisboa e vindo em tenra idade para o Brasil, era casado com Urbana Rodrigues (22) Lucas Botteux acha exagerado 2 niimero, Estudando o inventarlo de Francisco Dias Velho, arrolou 142 indlos e 25 escravos negros. (23) Meméria, pigs, 15-20. (24) Meméria, pig. 19. Sos III, ANTECEDENTES POLITICOS E SOCIAIS Velha, As duas mulheres eram irmis e naturais de Séo Francisco, sen- do provavelmente da mesma familia que Isabel Rodrigues Velha, com quem foi casado Lufs Rodrigues Cavalinho, um dos fundadores de Séo Francisco. Esta circunsténeia de serem francisquenses as duas mulheres, e também a de apareceram na Ilha outras pessoas da mesma naturali- dade, parece indicar que éste segundo movimento colonizador partiu de Séo Francisco, onde tinham residido Procuradores dos herdeiros de Pero Lopes, que muitas sesmarias concederam ao Sul e na Ilha. Salvador de Sousa e Manuel Manso de Avelar tinham familia or- ganizada, sabiam ler e escrever e dispunham de recursos. No ano de 1711, comegam s dissiparse as obscuridades que envol- ver os casos da Ilha. Déste ano, hd noticia de dois navios franceses, 0 Joyeux ¢ 0 Lysidore, que bem se entenderam com o Capito Salvador de Sousa, tendo com éle combinado um sinal de amigos; e ha as cir- cunstanciadas informagées oficiais de Manuel Goncalves de Aguiar. 10. A PRIMEIRA VIAGEM DE GONCALVES DE AGUIAR Manuel Gongalves de Agriar, natural de Santos, grande prético em navegacdo e em coisas de guerra e que ja servira na Armada Real, recebeu do Governador do Rio de Janeiro, Francisco de Castro Mo- rais, a incumbéncta de verificar se, na Enseada das Garoupas, ou seja em Pérto Belo, existiam condigdes para uma cidade, informando-se também das possibilidades minerais do territério do Sul. Veio gradua- do em Capitio e fé% a viagem numa grande sumaca sua, tripulada por cingiienta homens, tudo & sua custa, sem dispéndio para a Fazen- da Real, téo somente para fazer servico a el-Rei. (25) Partiu de Santos a il de fevereiro de 1711, esteve em Séo Fran- cisco e cumpriu a sua missio na Enseada das Garoupas, de que Je- yantou particularizado mapa, convencendo-se da imprestabilidade do Tugar para a pretendida fundacdo. Passou depois & Ilha de Santa Ca- tarina, onde encontrou vinte moradores, pouco mais ou menos, o que deve entenderse como vinte Gonos de casas, os quais, embora sem nenhuma organizacio administrativa, se agrupavam “em tOrno de uma ermida, que era a sua Matriz”, Nao registrou o nome désses morado- res no seu minudente relatério. Os homens, individualmente, nao Ihe ‘estavam interessando; éle andava a ver terras, mares, climas, e a fu- ‘turar cidades. Mas dos homens indagou sobre metais preciosos; e sou- ‘be que “em alguns ribeirinhos pintava o metal, mas no era coisa de gue se pudesse fazer caso”. (25) As informacées relatives a esia viagem e 9 ums segunda sfo tomadas de Affonso de B. Taunay, Em Santa Catarina Colonial, pégs, 22 = HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS Ficou encantado com a Tha de Sado Francisco: “grandiosa terra, muito capaz de se continuar a povoacéo que tem (...), com uma barra singular, capaz de téda a navegac&o, assim de sumacas como de naus de alto bordo”. Mais encantado ficou com as terras da Tha de Santa Catarina, com o seu circuito de vinte Iéguas, “t6das com . ricas enseadas, praias de areias e rios”. Achou “serem as melhores de téda a América do Brasil, por nela se darem todos os géneros de . frutas, assim déste como de Portugal, e poder acomodar muitos mil moradores, assim na Ilha como na Terra-firme, que fica distante um tiro de mosquete aonde chamam Vila”. Achou que seria érro fortifi- car a Iba, pois nada mais fécil havia do que desembarear em qual- quer de suas multiplas e excelentes praias; mas convinha, a bem do servigo delRei e de seus povos da costa Sul, ali manterse uma com- panhia de tropa de linha, que auxiliaria os moradores a impedirem aguadas, lenha e refresco ao inimigo, que a todo o instante arribava a refrescar, | De quinze em quinze dias, 14 surgiam naus francesas que iam para 0 Pacifico ou que de 14 voltavam; e, em menos de um més, 14 | apareceram cinco. Ble proprio tivera de ocultar-se de duas, fundeadas \ nas Garoupas. No dia em que cruzara a Barra do Norte, pela do Sul | havia entrado uma nau francesa, de alto bordo, comboiando varias présas portuguésas, feitas & altura do Rio de Janeiro. Por isso, tivera de encalhar a sua sumaca e d> entrincheirar-se com téda a vigilancia e precaucéio. Afinal, como Ihe constasse que mais duas naus inimigas estavam prestes a chegar, parecetlhe prudente voltar para Santos, onde fundeou, a 15 de abril de 1711, apds 64 dias de viagem. x8 de lembrar que Portugal e Franca estavam em guerra e que, em setembro do ano anterior, o corsdrio francés Duclere assaltara o Rio de Janeiro e 14 fora vencido, tendo 0 nosso Capitao Aguiar, nes- sa ocasiao, levado de Angra dos Reis para a Guanabara o destaca- mento local. No ano de 1711, em que estamos, e depois do seu re- gresso do Sul, houve em setembro, novo assalto francés ao Rio de Janeiro, comandado pelo corsdrio Duguay Trouin, que, com os seus dezoito navios, safu vitorioso. Desta vez, néo acorreu Manuel Goncal- ves de Aguiar, por se temer o assalto da Vila de Santos. Desta prolongada guerra, que é a chamada Guerra da Sucessio da Espanha, lembrese que se originara com a morte, em 1699, de Carlos II, ltimo Rei espanho! da dinastia Habsburgo-Aragiio. Plei- | iearamdhe a sucessao dois candidatos: 0 Duque Filipe de Anjou, neto de Luis XV, Rei da Franca, 0 qual o apoiou; e o Arquiduque Carlos de Habsburgo, a quem apoiaram a Inglaterra, a Alemanha e a Holan- \ da. Subiu ao trono o candidato francés com o nome de Filipe V da nog > (11, ANTECEDENTES POL{TICOS © SOCIATS Espanha, entrando em guerra os dois blocos de nacées. Portugal re- conheceu Filipe V, daf resultando, em 1701, um tratado, pelo qual a Espanha renunciou os direitos que pudesse ter & Colonia do Sacra- mento e seus campos. Mas, porque melhores garantias apresentava a amizade com a Inglaterra, para o seu bloco resolveu, pouco de- pois, passar Dom Pedro II, Rei de Portugal. Conseqiiéncia imediata foi o ataque, partido de Buenos Aires, com a sua grande superioridade de f6rcas, contra a Colénia do Sacramento que, em 1705, apds cinco me- ses de valorosa resisténcia, o Governador Sebastifio da Veiga Cabral abandonou, cumprindo ordens e retirando-se para 0 Rio de Janeiro, com a sua guarnicio. Em 1711, subindo 0 Arquiduque Carlos de Habsburgo ao trono da Alemanha com o nome de Carlos VI, terminou a guerra, reconhecido por todos o Rei Filipe V da Espanha. A paz entre Portugal e a Fran- ¢a foi restabelecida em 1713 e com a Espanha em 1715, pelos Trata- dos de Utrecht, conseguindo Portugal, pela terceira vez, aue Ihe fésse reconhecido 0 direito a Colénia do Sacramento. 11, NAVEGADORES FRANCESES. O ENGENHEIRO FREZIER Dos numerosos navios franceses que entéo surgiam na Iha de Santa Catarina um houve, o Saint-Joseph, que trouxe o seu cronista, 0 Engenheiro Amadée-Francois Frézier, 0 qual publicou o relatério da viagem, cujo fito era o reconhecimento dos mares sul-americanos: Relation du voyage de Ia Mer du Sud aux cdtes du Chili et du Pérou. (26) © Saint-Joseph, de trezentas e cinatienta toneladas de desloca- mento, trinta e seis canh6es e cento e trinta e cinco homens de equipagem, estava sob 0 comando do Capitio Duchéne Battas e era acompanhado por um barco pequeno, La Marie, de cento e vinte toneladas, sob 0 comando do Capitao Jardais Danel. Os dois navios, safdos de Saint-Malo a 16 de janeiro de 1712, chegaram & Barra do Norte a 30 de marco. Fundearam defronte a Canasvieiras, fizeram aguada e lenha em Sambaqui, e cada um expediu um escaler para fazer reconhecimento na Baia do Sul sObre a existéncia de algum navio suspeito, isto é, inglés. Os moradores da Ilna ficaram atemorizados com os navios, tanto mais porque eram sabedores do assalto de Duguay Trouin ao Rio de (26) Ao livro de Frézier refere-se Paulo de Brito. Désse livro, na parte reletiva a Santa Catering, hé tradugfo ‘elta por Lucas Alexandre Bolteux, que a publicou com 0 titulo de Santa Catarina em 1712 no Jornal do Coméreio, do Rio de Janeiro, de 29 de dezembro de 1985. Um resumo do mesmo Iivro, compreendendo toda a viagem, foi feito por Jacinto de Matos e est publicado na Revista do Instituto Histérico e Geogréfico de Santa Catarina, 1939, 2° semestre, pigs. Ti a 77. =a ENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS Janeiro; e os franceses, por seu lado, ficaram surpresos com tal susto, porque haviam dado o sinal de amigos, que os seus compa- triotas do Joyeux e do Lysidore tinham convencionado com o chefe da terra no ano anterior, Encontraram deserta a primeira casa a que se dirigiram, e recente era o abandono, quente como ainda estava © borralho. Quando iam a procura de outras, chegaram até éles, de canoa, trés homens, que, em nome do chefe da Ilha, thes vinham pedir nfo desembarcassem nem penetrassem nas casas, antes de serem reconhecidos por franceses, pois as mulheres, amendrontadas, j4 se tinham escondido nos montes. Se nao tivessem intengdo de fazer mal, éles forneceriam viveres e refrescos, como haviam praticado com outros navios franceses. Foram muito bem recebidos e esclarecida ficou a razio do temor: o sinal convencionado era uma bandeira branca por baixo de uma inglésa, no mastro grande, e mais o disparo de dois tiros de canhfio. Ora, éles s6 haviam dado um disparo. Os homens da canoa foram levados para bordo por um dos escaleres, enquanto © outro continuou para a Baia do Sul, para o comecado reconheci- mento Nesta diligéncia, foi costeada e sondada a Baia do Sul, tanto do lado da ha como do Continente. Durou dois dias. Na volta, 0 escaler, que trazia igada uma bandeira inglésa, foi confiadamente acolhido, indo canoas ao seu encontro para oferecer refrescos, que foram retribuidos com aguardente, licor muito apreciado, segundo refere Frézier, embora os da terra ordinariamente s6 bebessem dgua. A bordo, encontraram, muito bem agasalhados, Manuel Manso de Avelar (a quem Frézier chama “Governador Emmanuel Mansa”), e alguns portuguéses que haviam levado viveres; e, na retirada, presta- yam os franceses honras militares ao “Governador”, dandoThe brado darmas. E passou a haver harmonia e confianca e, diariamente, iam aos navios canoas carregadas de galinhas, fumo e frutos. E de ressaltar o simpitico interésse de Frézier por essa aban- donada gente, na qual contou cento e quarenta e sete brancos (para éle, na sua maior parte euroveus fugitivos), que tinham como agre- gados alguns negros, havendo também indios, ligados voluntariamente ou por terem sido cativados em guerra; gente que vive numa Ilha, que ¢ continua floresta, em que néio se encontram clareiras praticdveis, a nfio serem as desbravadas em tOrno das habitagGes, isto 6, doze ou quinze sitios dispersos nas pequenas enseadas fronteiras & Terra-firme, na qual vivem alguns indios e negros libertos. Da sua organizacio politica dé estas informacdes: muito embora nao paguem tributo algum ao Rei de Portugal, sio seus stiditos e obedecem ao Governador ou Capito que elegem para comandé-los aren 411, ANTECEDENTES POLITICOS E SOCIAIS em caso de guerra contra os inimigos da Furopa e contra os indigenas, com os quais andam sempre em guerra; e ésse Capitéo, cujo comando nao ultrapassa ordinariamente trés anos, depende do Governador da Lagoa (Laguna). As armas de que dispéem séo facées, flechas e machados, possuindo poucas espingardas e, raramente, pdlvora. Contra os inimigos de fora, encontram-se regularmente defendidos pelas matas ericadas de espinhos e quase impenetraveis. Contra os inimigos préximos, os indios, tomam a precaugéo de sé penetrarem nas matas do Continente, tao espessas como as da Ilha, em grupos nao menores de trinta « quarenta homens bem armados. Aqui, surgenos uma considerac&o: parece que, na Iha, sé havia indios acomodados & vida dos brancos; e, provavelmente, o mesmo ja ocorreria no tempo de Francisco Dias Velho; os selvagens estavam no Continente, para onde teriam passado os muitos que povoavam a Ilha +80 acessivel e que, assim, se defenderam dos seus cacadores, um dos quais, conforme sabemos, fora o pai do povoador. Viviam os ilhéus em tal pentiria de tédas as comodidades, que nem um s6 dos que levaram viveres aceitou pagamento em moeda, dando maior importancia a um pedaco de pano para se cobrir do que a uma moeda metilica; satisfaziam-se, por completo vestudrio, com uma camisa e um par de caleas, a que os mais abonados juntavam um paleté de cér e um chapéu; poucos usavam meias e sapatos, sendo obrigados no entanto a proteger as pernas, ao entrar no mato, servindo- ‘Ihes de perneira o couro de uma perna de tigre. Nem eram mais exigentes com a alimentacio, bastando-lhes um pouco de milho, batatas, alguns frutos, peixe e caca. Possuiam plantas excelentes: laranjeiras de frutas tao boas como as da China, limeiras, limoeiros, goiabeiras, palmitos, bananeiras, cana de acticar, melancias, meldes, abéboras em quantidade, batatas superiores &s mais afamadas. A pesca era muito abundante. A caca também o era, mas as matas dificultavam-lhe o acesso; a de alimentag&o habitual era o macaco, mas a melhor de tédas para os navios era a dos bois, que existiam em grande quantidade na Terra-firme, perto de Aracatuba. Quanto ao resto, gozavam de belo clima e ar muito saudivel; néo tinbam raramente outra moléstia a néo ser 0 maldo-bicho, que é dor de cabega acompanhada de tenesmos; e dispunham de muitos remédios naturais. E Frézier entra a filosofor: essa gente, que, & primeira vista, parece miserdvel, 6, efetivamente, mais feliz do que os europeus. E acentua: 0 que ainda é mais notavel é que éles se apercebiam da sua felicidade, quando nos observavam a andar & cata de dinheiro, com tanta fadiga, De uma s6 situacio se lamentavam, que era viverem na eS ENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SFNHOR DOS PASSOS ignorancia. Sendo cristios e pagando o dizimo & Tgreja, — tnica exigéncia que thes era feita, — nao podiam ser instrufdos em sua religiio, por nao hayer senaio um Vigdrio na Laguna, que hes vinha rezar missa nas principais solenidades do ano Os franceses também deram fé de uma enseada a sete 1éguas a0 norte da Ilha, onde os portuguéses conservavam ordinariamente o gado; e também descobriram a Enseada das Garoupas, de que Frézier levantou planta Enfim, feita boa lenha e excelente aguada e cancelada a espera do gado que fora encomendado na Laguna, e porque estava adiantada a estacéo para dobrar o Cabo Horn, resolveram os franceses levantar ferros a 9 de abril de 1712, mas s6 conseguiram zarpar no dia 12, tereafeira, com boa brisa do norte e nornordeste. 12. A IGREJA MATRIZ E FREI AGOSTINHO DA TRINDADE O abandono religioso que afligia os moradores da Tha comecou a ser remediado pouco depois, porquanto entre éles se acha, a 7 de janeiro de 1714, 0 Padre Frei Agostinho da Trindade, que celebrou um casamento, o primeiro constante dos assentos da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Destérro ¢ cujo térmo, pela sua prioridade, merece mencAo completa. E éste o seu teor: “Aos sete dias do més de janeiro do ano de mil setecentos e catorze, perante o Padre Frei Agostinho da Trindade, religioso do Carmo, sendo Vigdrio desta Ma- triz, se receberam em face da Igreja os contraentes Domingos Mar- tins e Domingas da Costa. Foram testemunhas Baltazar Soares e Anténio Cordeiro, Meréncia Godinha e Maria Gerarda; e nfo con- tinha mais 0 dito assento que do caderna em que estava lancei néste livro para a todo o tempo o constar. O Vigdrio Francisco Justo Santiago”. (27) No mesmo ano de 1714, a 25 e 28 de outubro, efetuaram-se se- gundo e terceiro casamentos, nos quais cficiou o Padre Frei Tomé Bueno, também carmelita, que reaparece num batizado, a 15 de julho de 1715, o primeiro registrado na Matriz do Destérro e cujo térmo, por esta circunstancia, 6 digno de transcrigio integral: “Aos quinze dias do més de julho do ano de 1715 bautizou e pés os santos Oleos o reverendo Padre Frei Tomé Bueno a Tomas, filho de José Velho e de sua mulher Joana Bonilha. Foram padrinhos Francisco Ant6nio e 0 Capitio Joo Loves. Frei Agostinho da Trindade”. (25) Frei Tomé Bueno féz outro batizado, a 23 de outubro de 1715; foi de um filho de Inés Tinoco. Féz um terceiro, a 6 de dezembro, de um filho de Iria Rodrigues Velha. (21) Cépia do orieinel. (@8) Livro do Tombo, fis. 3. = oe MI. ANTECEDENTES POLITICOS E SOCIAIS Prestemos atencao a éste nome — Inés Tinoco, e lembremos que a noiva do primeiro casamento é Domingas da Costa, Ora, Domingas da Costa chamava-se uma Gas filhas de José Tinoco, 0 agregado de Francisco Dias Velho, e Inés chamava-se a outra. Esta assim explica- da a razio de admitir que a familia de José Tinoco tenha ficado na Tiha, apds 0 desastre do primeiro povoador. De Frei Agostinho da Trindade saiba-se que, em fevereiro de 1701, era Presidente da Comunidade de Itanhaém, na Capitania de S&o Paulo. sendo muito versado na lingua brasilica e considerado “varéo eminente em virtudes”. (@9) Havemos de encontré-lo mais vézes, consignando, desde jd, que, a 6 de abril de 1718, batizou uma filha de Sebastiio Fernandes Camacho e de Margarida de Siqueira, por nome Clara, neta materna de Manuel Manso de Avelar e de Urbana Rodrigues Velha. Esteve na Ilha em 1723; e, no ano seguinte, ai abriu um livro para batizados com éste térmo: “Este livro 6 de Nossa Senhora do Destérro da Vila de Santa Catarina, numerado por mim © Padre Frei Agostinho da Trindade, sendo nela Vigério no ano de 1724, aos 20 de junho — Frei Agostinho da Trindade, Religioso do Carmo”. Este térmo est copiado a fis. 2 verso do Livro do Tombo. Tudo indica ter éle paroquiado a Ilha até entrar como Vigério da sua Matriz o Padre Francisco Justo Santiago De Frei Tomé Bueno, que aparece nos livros da Pardquia nos anos de 1714 a 1716, saiba-se que pertencia a ilustre familia paulista, bisneto que era de Amador Bueno da Ribeira, o Aclamado. (30) A presenca dos dois religiosos do Carmo em 1714 na Ilha de Santa Catarina jé deu lugar a controvérsia: a data da criacio da Pardauia de Nossa Senhora do Destérro, (1) Certo 6, como se viu, que ela ja existia em 1714, mas nfo se conhece 0 ano da sua criagfio. Note-se, entretanto, que Pedro Taques afirma ter Dias Velho a sua Matriz de Nossa Senhora do Destérro; que Goncalves de Aguiar encontrou os moradores da Ilha agrupados “em tomo de uma ermida, que era a sua Matriz”; e que déles soube Frézier que pagavam o dizimo a Tgreja, tinica exigéncia que thes era feita. Parece, pois, que, dada a prosperidade que atingira a colonia de Francisco Dias Velho, onde, na ocasifio de sua morte, estavam dois padres ou frades, nac ¢ desarrazoado admitir que a Pardquia vinha do tempo do fundador, sendo provavel que os sacerdotes, seus assis- (29) Lucas Boiteux, Notas, pig. 161; Comentarios A Histérla Catarineta, (30) Silva Leme, Genealogia Paulistana, I, pag. 445. (31) Henrique Fontes, Discuso de posse no Instituto Histérico © Geogratico de Senta Catarina, e A Criacto da Pardauia do Destérro, Jacinto de Matos, Mate- rial Histérico. Lucas Alexandre Bolteux — Comentiirios & Histéria Catarineta. eae HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS tentes, fOssem religiosos da Ordem do Czrmo, a que pertencit Padres Frei Agostinho da Trindade e Frei Tomé Bueno. 13. A SEGUNDA VIAGEM DE GONCALVES DE AGUIAR Outra viagem a Santa Catarina féz Manuel Gonealves de Aguiar em 1714, sendo j4 Sargentomo-, com a incumbéncia de correr e exami- nar a costa até a Laguna ¢ de pronder 2s numerosos desertores e os muitos facimoras que viviam soltos e impunes. Deixou Santos a 21 de novembro de 1714 numa balandra, com um sargento e seis soldados, doz escravos scus e homens de toda a confianga. Depois de ter estado em Sio Francisco, chegou & Tha de Santa Catarina a 18 de dezombro, ‘lesembarcando na povoacio, cujos moradores, entéo esparsos em seus sitios, convocou, para os cientificar da sua misséo. Soube que os franceses continuavam fre- aiientissimos, tendo trés meses antes ali longamente permanecido trés navios que se destinavam a9 Pacifico. Deixou em terra trés soldados, recomendando-thes que, se aparecessem franceses, f0ssem comuni- carthe na Laguna, para onde zarpou a 24 de dezembro. L4, onde viviam trinta casais, obteve da Camara um documento relativo aos trabalhos da sua missdo, passado por Joio de Magalhaes, Domingos de Oliveira Camacho, Joao Brés, Manuel Goncalves Ribei- ro, Anténio Duarte e Manuel Duarte. A 10 de janeiro de 1715, avisado da chegada de navios franceses, apressou-se em voltar a0 porto de Santa Catarina, aonde chegou a 13 de janeiro de 1715, encontrando dois navios franceses ancorados junto aos Ratones. Visitou-os sabendo dos Capitdes que seguiam para o Pacifico, carregados de fazendas pertencentes a trés comer: ciantes, que as acompanhavam O maior dos navios era tripulado por cento e dez homens e dispunha de trinta canh6es; 0 menor era um Pequenino patacho, satélite, com catorze tripulantes. Passados quin- ze dias, feitas aguada e lenha e comprados refrescos, tornaram a velejar, sem qualquer ocorréncia desagradavel. Pouco depois, surgiu uma fragata vinda de Saint-Malo, com no: venta tripulantes e vinte e quatro pecas de artilharia, que, tendo-se Getido na Barra do Norte oito dias, partiu na melhor harmonia com a gente da terra, declarando o Capitéo a Goncalves de Aguiar que, naquela monedo, receosos dos temporais do Estreito de Magalhies, mais navios nfo viriam. 14. UMA PETICAO DOS MORADORES DA ILHA Os moradores da Mha de Santa Catarina fizeram, a 25 de janei- To de 1715, longa peticio escrita e a entregaram a Goncalves de oa {Il ANTECEDENTES POLITICOS E SOCIAIS Aguiar. Nela, encareciam a necessidade do povoamento da Ilha, mais urgente que outro qualquer: “uma, para defender as aguadas e lenhas dos navios inimigos que atual ou quase todos os meses aportam nesta Ilha, assim os que vio como os que vém para o mar do Sul; assim o faziam em tempo que tinhamos guerras, sem que n6s Ihes pudessemcs impedir por morarmos nesta Ilha vinte e dois moradores pobres, sendo ela capaz de acomodar em si muitos mil moradores”. Outra azo: a circunstancia de que, havendo moradores, “se podiam sustentar todos os portos co Brasil, como os de Portugal, de trigo e tudo o mais"; além de ouutas e muito grandes conveniéncias da fabricagio de engenhos de agticar. E, prevenindo objecio em favor do Rio Grande do Sul, diziam, por 14 terem andado e visto, “ser capaz para acomodar muitos mil moradores, mas com muitas dificul- dades, em razio da barra néo estar sondada nem se saber por onde tem os canais e juntamente ser terra rasa. E, sem tOrres que nela se fagam, se ndo poderé buscar para entrar e se povoar”. Para o futuro, sim; mas, presentemente, o povoamento do Rio Grande exigiré de Sua Majestade “muita despesa e muito trabalho”. Os signatdrios da peticéo, em ntimero de quinze, juraram aos Santos Evangelos a verdade de suas declaragbes. Além dos nossos conhecidos “segundos povoadores” Salvador de Sousa de Brito e Manuel Manso de Avelar, foram Domingos Tavares, Baltazar Soares Lousada, Sebastido Fernandes Camacho, Manuel Correia da Fonseca, Manuel Domingos Lopes, Manuel Teixeira, Domingos de Brito, Jer6- nimo Gomes, Joo Lopes Biscardo, Salvador Dias Botelho, José Velho Rangel, Diogo Camacho ‘*2) e francisco Martins. Trés déles assinaram de cruz: Manuel Domingos Lopes, Manuel Teixeira e Domingos de Brito. 15. UM NAVIO CORSARIO INGLES Em 1719, de 19 de junho a 9 de agosto, procedente do Cabo-Verde e com destino ao Pacifico, esteve no pérto da Ilha de Santa Catarina o navio corsdrio inglés Speedwell, de vinte e quatro canhdes e cem tripulantes, sob o comando de George Shelvocke. Ai, encontrowse, depois, com o navio de guerra francés Ruby, vindo do Pacifico, e com © mercante da mesma nacionalidade, Salomon le Sage, que para 14 seguia. Hsses encontros no interessam & nossa narrativa. Interessa- ‘Ihe, porém, a chegada, a 3 de agésto, do navio de guerra portugués So Francisco Xavier, de quarenta canh6es e trezentos tripulantes, sob 0 comando de um oficial francés, Monsieur La Riviére. (82) Deu para. ler: “Diogo Camacho Maco”.Affonso de Taunay acha que deve ser Moco e néo Maco: “jiimfor, como hoje diriamos”. Ver nota 25. a= ENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS A seu bordo, defrontaram-se 0 imediato Hatley, do corsério inglés, 0 nosso conhecido Capitéo Manuel Manso de Avelar; e éste teve oportunidade e seguranca para verberar tropelias e insultos pessoais do mesmo imediato; e alcangou a solidariedade da maruja portuguésa, e tao sincera, que s6 com enorme dificuldade e com a intervencéo do Capeléo de bordo, porque insuficiente fora a autoridade do Coman- dante, péde ser salvo o inglés abusador. A principio, houvera Gtime camaradagem entre os ilhéus e oS ingléses, com troca de produtos da terra por sal de Cabo-verde. Depois, houve desmandos chefiedos por Hatley, que tentou raotar mora- doras e, por causa delas, ameacou pOr fogo a casas; e, afinal, ocorreu sangrento incidente, quando uma patrulha de bordo quis capturar trés desertores, defendidos pelos da terra, que gritavam “morram os cGes! morram os cies ingléses!”, e que feriram trés com as suas descargas. Bem abastecidos, partiram os ingléses, que ali nada haviam gasto das provisées européias. Adquiriram vinte e um bois, varios porcos, duzentos meros grandes, salgados, cento e cingiienta alqueires de farinha de mandioca, cento e sessenta alqueires de favas, e fumo em grande quantidade 0 Capitao Shelvocke, conhecedor do que Frézier escrevera a respeito de Santa Catarina na Relation, louva também as madeiras, as frutas, as aves, os peixes, as ostras ¢ as lagostas, e refere-se & existéncia de gado em Aracatuba. “Vi, — diz éle, — éste povo gozando as bénedos de um solo fértil e de ares salubérrimos. E na abundancia de tudo, exceto de panos. Armas tem-nas em quantidade suficiente e delas muito precisam real- mente, dado o numero enorme de tigres existentes na Ilha”, contra os quais mantinha cada casa verdadeiras matilhas de ces de guarda. Aos pobres catarinenses, por éle agredidos, maltratados, — comen- ta Affonso de Taunay, em Santa Catarina nos tempos primevos, de onde foram respigadas estas notas, — entendeu o “honrado” pirata Capitao Shelvocke elevé-los & categoria da gente da sua igualha, cha- mando-thes “populagéo de bandidos refugiados de outras regides bra- sileiras mais policiadas”. “Bm todo o caso, um certo resto de consciéneia levou-o a reconhe- cer que em tédas as transacées, que com éles manteve, viu-os sempre negociar com a méxima honestidade e demonstrar a maior cortesia, tolerancia e até cordialidade para com aquéles que tanto os haviam agravado”. 16. AS ORDENAGOES DO REINO E A ORGANIZACAO CIVIL Antes de acompanhar as diligéncias do Ouvidor de Sao Paulo ee ep, MIL. ANTECEDENTES POLITICOS B SOCIAIS com quem vamos encontrar-nos proximamente, lembremos que Por- tugal tinha, em um s6 corpo de leis, reunida a matéria de muitos diplomas modernos, tais como a Gonstituicio Politica, a Organiza- so Judicliria © varios Cédigos — Civil, Comercial, Penal, do Traba- Iho, de Proceso, Florestal, etc. fiste corpo de leis eram as Ordena- Ges do Reino. Blas, mostrando que os portuguéses herdaram o génio politico dos romanos, deram comum jei¢io organica aos povoados que se foram congregando no Brasil, no correr de trés séculos. Da sua parte judicidria ¢ do estruturagio municipal, a exemplo de Jo&o Camillo de Oliveira Térres, na ampla e sdlida Histéria de Minas Gerais, e aproveitando-the as concludes e as de Luiz Camillo de Oliveira Neto, que éle cita, tomemos algumas determinagdes que esclarecem a nossa nurrativa. © Ouvidor, além de atribuicées judiciais correspondentes as do atual Juiz-de-direito, tinha outras que hoje so da esfera do Poder Executivo e que cram as que, para o Corregedor da Comarea, estabe- lecia 0 titulo 58 das Ordenacées, Exercia, assim, relativa policia sO- bre as Camaras, providenciando sObre elei¢des, anulando posturas prejudiciais aos interésses do povo, determinando a construcio de obras piiblicas novas e reparos nas antigas e autorizando o lanca- mento de fintas, isto ¢, de tributos supletivos proporcionais aos rendimentos, Por outro lado, e como complemento da legislagdo geral do Reino, aos Ouvidores nomeados para o Brasil era dados Regimentos que atendiam a condic&o peculiar do pais e que visavam, em regra, a aumentar-Ihes a jurisdi¢io, tormando a sua acdo livre do arbitrio dos Governadores. (32) Depois do Ouvidor, vinhan: os Juizes-ordindrios, eleitos pelo povo, e os Juizes-defora, ou deforaa-parte, mandados pelo Rei por um triénio, e que deviam ser letrados. Eis palavras das Ordenacoes no titulo 65, do livro primeiro, acér- ca désses Juizes: “Os Juizes ordindrios e outros, que Nos de fora mandarmos, devem trabalhar que nos lugares e seus térmos, onde forem Juizes, se nfo fagam maleficios nem malfeitorias, E fazendo-se, provejam nisso, e procedam contra os culpados com diligéncia, E os Juizes- -ordindérios trario varas vermelhas, e os Juizes-de-fora brancas conti- nuamente, quando pela Vila andarem, sob pena de quinhentos réis por cada vez, que sem ela forem achados. E porque os Juizes-ordi- nérios com os homens bons vém o Regimento da Cidade, ou Vila, éles ambos, quando puderem, ou ao menos um, iréo sempre & Ve- (33) JoAo Camilo de Oliveira Torres, Histéria de Minas Gerais, I, pags. 215-218. snes HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS reagio da Camara, quando se fizer, para com os outros ordenarem o que entenderem, que é bem comum, direito e justica”. Compunham a Camara os seguintes Oficiais: 0 Juizde-fora, nos lugares em que o havia; nos outros, 0 Juiz-ordinario; trés Vereadores, ou quatro, em certos Conse}hos; um Procurador, dois Almotacés ¢ um Escrivio, Algumas Camaras contavam a mais um Sindico, ou Advogado, antigo Vozeiro, e um Tesoureiro. Quando em funcéio deli- berativa, a Camara era um corpo composto apenas do Juiz e dos Vereadores. Chamou-se, 2. prinefpio, Vereacio. Cabia a presidéncia a0 Juiz, exercendo éle funcGes que agora séo do Prefeito-municipal. “Aos Vereadores — diz 0 preambulo do titulo 66, do livro pri- meiro, — pertence ter carrego de todo o regimento da terra e obras do Concelho e de tudo o que puderem saber e entender por que a terra e os moradores dela possam bem viver, e nisto hao de traba- Thar. E, se souberem que se fazem na terra malfeitorias, ou que ndo 6 guardada pela Justi¢a, como deve, requereréio aos Jufzes que olhem por isso”, Tanto o Juizordindrio, como os Vereadores, Procurador, Tesou- reiro e Escrivao, eram eleitos por trés anos, pelas oitavas do Natal do iltimo ano dos seus mandatos. Concorriam as eleigdes os mem- bros da CAmara, os “homens bons” e 9 povo, sob a presidéncia do decano dos Juizes. Os Vereadores, assim sufragados, eram chamados Vereadores de pelouro, pelo fato de serem os seus nomes guardados dentro de pelouras, ou bolas de cera parecidas com os projéteis de armas de fogo.- Na vaga dos Vereadores de pelouro, elegiam-se, sem essa formalidade, os substitutes — os Vereadores de barrete Tanto © Juiz, como os outros oficiais da Camara, s6 podiam ser reeleitos depois de trés anos Os cargos eram obrigatérios; e obrigatério, sob pena de multa, era 0 comparecimento & Vereacdo, &s quartas e sébados Os Almotacés eram escolhidos no coméco de cada ano e serviam, mensalmente, dois a dois; nos primeiros trés meses, eram chamados os que tinham acabado seus mandatos, a saber: 0 Juizordindrio, os Vereadores, 0 Procurador; e, depois déstes, eram eleitos nove pares de “homens bons”. Cumpria aos Almotacés prover o abastecimento dos viveres e mercadorias necessdrias, fiscalizar a observancia das posturas, velar pela limpeza e asseio das povoacées, impor multas ¢ julgar infragdes, aplicando penalidades. As Camaras organizavam as posturas municipais e podiam fazer representacdes ao Rei. Como se vé, era grande, generalizada e compulsdria a participa- co do povo na governanca da terra; e acérca de tal participagio, ge- radora de espfrito publico, miitdamente dispunham as Ordenagées do Ses HI, ANTECEDENTES POLITICOS E SOCIAIS Reino. Elas, por isso, seriam mais conhecidas dos “homens bons” do que 0 so hoje, por parte da maioria dos cidadaos, as leis organicas e complementares e a sua regulamentaciio. “Homens bons” eram os que tinham exercido cargos ptiblicos ou que para éles possuiam condic6es. 1. A AQAO DO OUVIDOR PIRES PARDINHO Em fins do ano de 1719, veio a0 Sul 0 Ouvidor de Sio Paulo, Dr. Rafael Pires Pardinho, A 20 de janeiro do ano de 1720, regularizou a Laguna como Vila, de que jd gozava foros desde 1714, La, novamente, e como Capitio-mor, estava Francisco de Brito Peixoto, filho do primeiro povoador. Estivera em Santos até o ano de 1715, descansando da idade e dos trabalhos que sofrera nos ser- toes do Sul; mas para éle apelara o Governador do Rio de Janeiro, Dom Francisco de Tavora, e éle voltou 8 Laguna, a fim de examinar © abrir caminho para 0 Rio Grande de Sio Pedro e dali para as eampanhas de Buenos Aires, onde se achava a Colénia do Sacramen- to, e a fim de the dar noticia de tudo e do mais que howvesse de movo pela costa e por aquelas paragens. Brito Peixoto, pessoaimente, nio pode tomar parte nas diligén- cias, mas executowas com gente sua e & sua custa, até Maldonado © Montevidéu. (24) A Vila contava trezentas pessoas de confissao, que viviam em guarenta ¢ dois ranchos de palha, usando os homens capote e sendo guase todos analfabetos. A exportacdo consistia em farinha de man- dioca, peixe séco, carnes salgadas e cordoalha de cipéimbé. Para regularizar a vida administrativa, baixou o Dr, Pires Par- 10 noventa e trés provimentos, nos quais providenciou acérea do ar- ento e do modo de construcéio, e de terreno para logradouro ico; criou livros, que no existiam: proibiu o cativeiro dos in- carijés e os maus tratos que se faziam aos vindos do Rio Gran- Tecomendou aos Vereadores, que ento elegeu, nfo fizessem suas Ges de capote e tamancos; e permitiu que os moradores da Vila distritos fossem ao Rio Grande, mas com licenga do Capitéio- » que devia arrolar-Ihes as armas pata nfo as venderem aos Ss. Da Laguna, acompanhado de seus Vereadores, passou o Ouvi- Para a Uha de Santa Catarina, em que se contavam vinte e sete com pouco mais de cento ¢ trinta pessoas de confissio. Ai. de janeiro de 1720, reunido c povo e lidos os provimentos que ‘Cabral, Laguna, pag. 41. HENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO S8NHOR DOS PASSOS baixara na Laguna, proveu mais que os povos da Ilha 14 pudessem ir pescar, recomendando & Camara o tamanho das rédes; proveu se elegesse um Capito de Ordehancas, um Alferes e dois Sargentos, ficando 0 povo obrigado a correr as armas, logo que tocasse rebate; e proveu também que se fizesse um tronco forte, grilhdes e ferros para os criminosos e que éstes féssem remetidos para a Laguna ou para a Praca de Santos. © mais importante ¢ que féz do povoado um distrito judiciai da Vila da Laguna, criando um Juizordinario, um Tabelido e um Escrivio de 6rffos, sendo para éste ultimo cargo nomeado Miguel Francisco. A requerimento do Procurador da CAmara da Laguna, que tam. bém trouxera consigo, compareceu, no mesmo dia 27 de janeiro, o Capitéo José Pires Monteiro, filho do primeiro povoador Francisco Dias Velho, alegando que vinha com animo de trazer toda a sua fa- milia para aumentar a povoaco; e porque alguns moradores esta- vam situados nas terras que os primeiras povoadores largaram, pe- dia que se Ihe declarasse se ésses moradores deviam conservar-se nelas, ocupando-as, por as acharem devolutas. Alegou mais que viera com animo de fazer diligéncias para descobrir 0 ouro, que seus irm@os jd finados, ainda em vida de seu pai, acharam nos matos da Terra-firme, em lugar de que éle pouca noticia tinha, por ser nesse tempo de tenra idade, Disse finalmente que voltaria a Cidade de So Paulo, donde se deliberaria a voltar com sua familia, e que na- da exigia dos sitios que seu pai fabricara, porém que seu irm&o mais velho, Jofo Pires Monteiro, poderia requerer 0 que Ihe parecesse. Diante déste requerimento, proveu 0 Ouvidor que os moradores da Tha tivessem entendido que as terras dela eram de Sua. Majes tade; que os moradores deviam tirar suas cartas de sesmarias, como Sua Majestade havia determinado; que os que estavam acomodados continuassem a gozar de suas terras, sem que pessoa alguma se atre- vesse a inquietélos; e que, se 0 Capitio José Pires Monteiro e mais pessoas quisessem vir aumentar a povoacfio, assaz tinham terras largas, assim na Tha como na Terra-firme, para acomodar grandes fazendas, pedindo para isto sesmarias a quem Ihes pudesse dar, e nunca inguietar os moradores que, com tanto trabalho e risco, tt nham af vivido tantos anos; mas que se, ainda assim, éle Monteiro e seus irmfos se julgassem com direito as terras, se houvessem pe los meios ordinarios. (5) No mesmo dia 27 de janeiro de 1720, 0 Dr. Rafael Pires Pardinho serviu de testemunha no casamento de Manuel Duarte Camacho com Paula Moreira, éle batizado em Curitiba e residente na Laguna (35) Almeida Coelho, Meméria, pégs. 130-134, <3 MI, ANTECEDENTES POLITICOS H SOCIAIS. filho legitimo de Anténio Bicudo Camacho, j4 defunto, e de Maria dos Passos; ela, batizada na Freguesia de Nossa Senhora do Destér- ro, filha legitima de Domingos Lopes e de Paula Moreira. O casa- mento realizou-se “na presenca do Padre Luis de Albuquerque, da Companhia de Jesus, andando em missio com proviséo do reveren- do Vigério-davara, o Padre Dom Anténio Rechadel”. Além do Dou. tor Ouvidor, foram testemunhas Urbana Rodrigues, Meréncia Fer- nandes e muitas'pessoas do povo. Do Vigériodavara Dom Auiénio Rechadel saibase que é o Padre Dom AntOnio Ricciardelli, italimno, que, em 1715, era Vigério encomen- dado da Matriz de Nossa Senhora da Graca do Rio de Sao Fran- cisco. (36) Em abril de 1720, ja estava o Ouvidor na Vila de Sao Francisco; e ali, a 29 désse més, com 9 consentimento de sua Camara, fixou, Para limite com o térmo da Vila da Laguna, a ponta da parte norte da Enseada das Garoupas, incluida neste térmo a povoacéo da Tha de Santa Catarina. Féz meticulosa correicao, pondo ordem ao caos administrative com os necessarios provimentos. Como na Camara nfo existissem as Ordenagées, enviowas, de- pois, de Curitiba, para que tivesse fim a desculpa que até entéo os Oficiais da Camara “maliciosamente afetavam e nfo passassem ou- tros sessenta anos (a contar de 1660) sem as terem e continuassem Os Oliciais seus sucessores no mesmo distraimento que os seus an- tecessores”. ___ Do trabalho do Ouvidor Rafael Pires Pardinho em terras cata. rinenses disse, com muita justica, Carlos da Costa Pereira: “A reor- ganizacio levada a efeito por Pires Pardinho na Laguna, na ha de Santa Catarina e em Sao Francisco, foi completa e radical e as suas determinagées orientaram por muito tempo os oficiais das Camaras dessas Vilas, no desempenho de suas funcGes, verificando-se pelos termos de vereanga, até pouco tempo existentes nos arquivos muni- ais de Sdo Francisco, que, em ocasides embaracosas, ao surgirem i casos intricados, os Juizes-ordindrios e Vereadores corriam aos imentos da correicio de 2720, apesar de posteriormente outros gedores terem ido aquela Tiha com regularidade. (87) 18. FATOS DA VIDA RELIGIOSA As Camaras impunham as Ordenacées do Reino estas obrigacées ordem religios: - “Mandamos aos Juizes e Vereadores que, em cada um ano, aos dias do més de jutho, ordenem uma procissio solene a honra ‘Tounsy, Em Santa Catarina Colonial, pég, 49. Rafael Pires Pardinho. 25504 ENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS da Visitaciio de Nossa Senhora. E assim mesmo fardo, em cada um ano, no tereeiro domingo do més de julho, outra procissao solene, por comemoracéo do Anjo da Guarda, que tem cuidado de nos guar dar e defender, para sempre seja nossa guarda e defensio. As quais Prociss6es se ordenarao e faréo com aquela festa e solenidade, com que se faz a do Corpo de Deus: para as quais, e para quaisquer outras (...) nao serao constrangidos a vir a elas nenhuns morado- res do térmo de alguma Cidade, ou Vila, salvo os que morarem a0 redor uma Iégua”. ((38) De determinagées sdbre essa matéria nfio ficou noticia na correi- go que 0 Ouvidor Pires Pardinho féz em Santa Catarina. Em Sao Francisco, entretanto, “observow que a Vila ndo progredia, apesar do local onde a fundaram prometer maior aumento do que tivera até ento e as terras serem mais férteis do que as de outras Vilas que se iam desenvolvendo promissoramente, atribuindo a causa désse atraso & falta de zélo dos seus moratores pelo culto divino e & inobservancia dos prinefpios de justiga, néo podendo “Deus Nosso Senhor faltar-Ihes com o castigo que (a Vila) tem experimentado”. Adverte, porém, Carlos da Costa’ Pereira, que, “possivelmente, como em Paranagud, proveu, de conformidade com as Ordenacoes, sObre a obrigacio que tinham os Juizes e Oficiais da Camara e homens bons da governanca, de freqiientar o culto divino, dando assim exemplo aos demais moradores da Vila; de a Camara assistir incorporada A procissio de Corpus Christi, acompanhando, com as suas varas, 0 estandarte até a Matriz, sob pena de multa de duas patacas; de os habitantes da Vila e seus arredores assistirem tam- bém & mesma solenidade, sob pena de multa de uma pataca, e de todos os moradores das ruas por onde passasse a procissio man- darem rogar a testada de suas casas e enfeitdé-las com palmas, ramos € outros ornatos, sob pena de multa de duas patacas”. (29) Acérea da vida intelectual da Laguna e do povoado da Ilha de Santa Catarina nesta altura, dénos Fonseca Galvio estas informa- g0es deduzidas de vereagdes daquela Vila: “Por éste lado, téda a luz thes vinha da religifo, e assim mesmo raro era gozarem da presenca de um Paroco, que era pago pela Ca- mara, a qual, para ésse fim, estabelecia uma espécie de capitacio em géneros sbre a populacéo”. “A povoacio da Ilha achava-se em posi- cdo mais precdria, aparecendo nela, de tempos a tempos, algum re- ligioso para batizar e casar, retirando-se logo depois”, e 1d esteve, ‘em 1723, Frei Agostinho da Trindade, procedente de Séo Francisco Mas o povo da Tiha era “aferrado as suas crencas, cujas solenidades (88) Ordenagdes, Uivro I, titulo 66, parégrafo 48 (39) Rafael Pires Pardinho, pég. 116. eiggies: Hl. ANTECEDENTES POLITICOS B SOCIAIS procurava abrilhantar, chegando nesses tempos a organizar uma mi sica”. A propésito do pagamento ac Paroco, relata que a Camara da Laguna, em vereacio de 29 de marco de 1725, contratou com o Padre Ant6nio Silveira Cardoso dar-Ihe 80.000 réis em farinha e peixe capaz de ser embarcado, responsabilizando-se mais per dois alqueires de farinha de cada morador. (40) 19. LAGUNA E DESTERRO Entre os maiorais da Laguna e da Ilha de Santa Catarina acen- deu-se encarnicada Iwta, que, certamenie, personificaria os interés ses das duas localidades. Os da Laguna estfio na terra; os da Iha, no mar. Elas devem amparar-se ¢ completarse, cabendo a hegemonia & de mais facil comunicacéo comercial. Neste caso, esté a da Ilha, mas a subalterna ¢ ela. Natural 6, assim, o antagonismo entre as duas po- voac6es € seus chefes e moradores; ¢, na uta, cheia de alternativas, fo- ram, de parte a parte, sacrificadas a verdade e a justica. (41) Em 1720, por ordem do Governador do Rio de Janeiro, foi Fran cisco de Brito Peixoto préso pelo Juiz-ordinério da Laguna Manuel Goncalves Ribeiro, atribuindo éle & prisfo a intrigas de Manuel Manso de Avelar; mas, no ano seguinte, apresenta-se completamente reabi- litado e galardoado com a patente de Capitaéo-mor da Laguna, expe- dida por Dom Jogo V, e ainda portador de uma ordem de prisio contra Manuel Manso de Avelar. Este, acusado que era de contrabandear com embarcagées fran- cesas de parceria com o francés Pedro Jordfo e o Juiz-ordindrio Manuel Gongalves Ribeiro, foi préso em fevereiro de 1721 e levado para a Laguna, e de 16, onde o “tiveram metido em uns grilhdes de ferro trés meses ¢ meio”, foi remetido para o calabouco da Fortaleza de San- to Amaro da Barre Grande, de Santos. Seus bens foram confiscados © contra éle abriuse uma devassa, presidida pelo Juizordinério da Laguna Francisco Correia de Sousa, Da prisio esereveu ao Governa- dor duas cartas de defesa; e requereu ao Juizdefora de Santos uma Justifieacio, que foi despachada a 25 de junho de 1722; e as teste- ™munhas que nela depuseram, entre as quais figura o Ajudante Se- bastido Rodrigues Braganca, foram unanimes em inocenté-lo da acusacio, levando a demincia, conforme afirmara o justificante, A conta da inimizade existente entre éle e 0 Capitaomor da Laguna, (40) Fonseca Galvéo, Notas, pags. a8 e 39, (41) Esta Iuta estudel-a na monozrafia Manuel Manso di Avelar, publicada na Revista do Instituto Histérico © Geosrafico de Santa Catarina, ano de 1914. pigs. 76-81. Também a estudon Oswaldo Cabral, em Laguna, pigs, 47.59, —sh—= SENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO SENHOR DOS PASSOS com quem estava mancomunado 0 Juizordindrio Francisco Correia de Sousa, também inimigc do Sargentomor da Ilha de Santa Cata rina, Uma das acusacées feitas contra Manuel Manso e constante da ordem de priséo era a de ter, em 1720, de sociedade com Manuel Gongalves Ribeiro, feito com o Capitéio de um navio francés contrato escrito para fornecimento de couros, que seriam dados em pagamen- to de negros da costa e de certas fazendzs da Franca. Ora, Manuel Manso exibiu a carta que ésse oficial the dirigira e em que verbera em térmos polidos mas enérgicos, a recusa de viveres por parte de Manuel Manso, dizende que, caso éle persistisse numa teimosia tio contréria ao espirito das ordens do Rei de Portugal, se veria na ne- cessidade de os tomar A férea, obrigando-o a receber o pagamentc devido. Note-se também que, segundo a narragdo de Frézier, Manuel ‘Manso no vivia de contrabandear. SOlto e justificado, voltow éle para a povoacio da Ilha, onde j& se achava em novembro de 1724, como se vé de um térmo de casa mento em que é testemunha. le e 0 seu povoado Iucraram com as complicagdes, que os tornaram conhecidos e apreciados do Governador de Sio Paulo, Ro- drigo César de Meneses. ste, a 16 de janeiro de 1725, expediu a seguinte ordem: “Por ser conveniente ao servigo de Sua Majestade, que Devs guar de, que a povoacio da Ibe de Santa Catarina se aumente, procurara Manuel Manso de Avelar por todo 0 cuidado em fazer-se tao importan- te servigo, concorrendo com a sua atividade, préstimo e zélo para que em breve tempo execute a diligéncia de que o encarrego, e também que as casas dos moradores sejam de telhas; e 0 Capitao-mor Francis co de Brito Peixoto Ihe no pord impedimento, antes Ihe dard toda a ajuda necesséria, sendolhe pedida; peta confianca que faco do dito Manuel Manso de Avelar, espero obre de sorte no que Ihe encarrego que tenha que agradecer-the e Sua Majestade, que Deus guarde, que re- munerar-Ihe” Como complemento desta determinagé, foi, no dia seguinte, expe- dido ao Capitéo-mor da Laguna um Regimento, pelo qual se desobriga- vam as embareagdes que fossem “em direitura A Tha de Santa Ca- tarina” de dar entrada na Vila da Laguna, “no sé pelo evidente peri- go, mas pelo dispéndio e trabalho, que se experimentam em vinte léguas de distincia”; e foram determinadas facilidades para que os indios e os castelhanos, em comércio franco e tratados com carinho pudessem ir & Tlha de Sonta Catarina, levando os seus gados, porque nela, com mais facilidade, se poderiam embarcar nfo s6 carnes, mas estas muares, e por meio deste comércio se conservaria a amizade dos indios minuanos com os portuguéses, O Capitfio-mor foi ainda Sie MI, ANTECEDENTES POLTICOS © SOCIAIS advertido para nfo se intrometer nas elei¢des das Camaras, cujos Juizes ¢ Oficiais seria obrigados a dar contas a éle Governador e a0 Ouvidorgeral, a cada um na parte que Ihe tocasse. Nem deveria obrigar os moradores a acompaniar a seu irm&o ou parente em diligén cias que no fossem do servico de Sua Majestade. ‘A Tiha de Santa Catarina ficou, dest’arte, desembaracada nas van- tagens maritimas que as condicdes geogrdficas Ihe davam; mas a La- guna, por sua vez, sob o imperstivo das que Ihe eram peculiares, avan. cou para o Continente do Rio Grande. Em 1795, ano em cue estamos, “em 1725, — refere Oswaldo Cabral, — novamente resolveu 0 Governador intensificar os trabalhos no Sul, destinando-os, mais uma vez, a Brito Peixoto. Obediente, embora velho e achacado, desta quis éle mesmo seguir com a sua gente, aprestando-se para tomar o caminho das coxilhas sulinas. Chegando & Vila, vindo do seu sitio, para tomar as providéncias necessérias, despedirse dos amigos e do povo, diznos Aurélio Porto, no dia da festa do Rosdrio dos Pretos, que coincidia com a eleigho dos Vereadores, para a qual haviam chegado da Ilha e dos arredores 0s moradores, reuniram-se todos na Casa do Concelho. Af, resolve- ram impedir que seguisce Brito Peixoto, alegando que néo podiam ficar desamparados, sem govérno e, embora procurasse o Capitao- “mor persuadilos de que o servigo do Rei reclamava a sua partida, (...) responderam-ne que em governélos também prestava servico ao Rei. N&o obstante, nada o demovia (...). Entdo a Vila inteira levalhe a titima imposic&o (...): os moradores da Laguna o pren- deriam a ferros, se necessdrio f0sse, a fim de que nfo partisse. Com légrimas nos olhos, o vatho Capitdo resignouse e ficou”. E a ‘Camara passou-lhe uma certidéo do acontecido, para nao ficar diivida de sua disposiggo de acatar as ordens do Governador. E logo despachou Brito Peixotc a sua frota. “Trinta e um homens, com Jo’o de Magalhies, 0 genro, & frente, puseramse a caminho do Sul, mal sabendo que trilhavam a estrada da gléria; — iam con- quistar o Rio Grande, dar & Coroa mais um Continente, garantir ao Brasil do futuro mais um grande Estado”. (42) 20. A ERECAO DA VILA DO DEST#RRO Em marco de 1726, achava-se na Vila da Laguna, em correicéo, 0 Ouvidor-geral da Comarca de Paranagua Dr. Antonio Alves Lanhas Pei- xoto. L4, tomou residéncia do Capitao-mor Francisco de Brito Peixoto, isto 6, procedeu a diligéncias para os que se julgassem agravados (42) Laguna, pags. 12 a ol. ENRIQUE DA SILVA FONTES — A IRMANDADE DO EiNHOR DOS PASSOS pelo Capitiiomor o poderem demandar. (43) Nos provimentos que deixou, a 15 de margo, separou da Vila da Laguna a povoagio da Uha de Santa Catarina, em razao de distancia entre elas existente de mais de trés dias, por caminhos completamente desertos; e estabeleceu-thes os limites nos morretes 20 Norte de Garopaba. © Ouvidorgeral ja estava na Tha a 23 de marco de 1726, dia em que, nas casas em que ficou residindo, convocou os moradores da po- voacdo e os cientificou da separacdo das justicas dela das da Vila da Laguna; e, “porque nfo havia Juizes nem Oficiais de Camara que pudes- sem abrir 0 pelouro, (...) langou em um chapéu os pelouros dos trés anos, e baralhando-os, mandou a um menino de seis ou sete anos tirasse um déles”; e, tirando-o, foi aberto pelo Escrivao da Provedoria Luis de Almeida Barreto, que servia no impedimento do Escrivao da correic&o, e dentro déle estava um escrito assinadg por éle Dr. Ouvi- dor-geral em que nomeava para Juiz a Domingos Lopes, para Verea dor a Francisco Martins e para Procurador do Concelho a Anténio de Castilho. B, estando presentes os eleitos, dewlhes “juramento dos San- tos Evangelhos, em que puseram suas maos direitas, sob cargo do qual Ihes encarregou que bem e verdadeiramente servissem os cargos em que foram por pelouros eieitos, guardando em tudo o servico de Sua Majestade, que Deus guarde, e as partes seus direitos; o que pro- meteram fazer”. De tudo mandou o Ouvidor lavrar auto, que éle assinou, junta- mente com 0 Escriviio, com 0 Juiz Domingos Lopes e com o Procurador Anténio de Castilho. O Vereador Francisco Martins, por ser analfa- beto, assinou de cruz, isto é, tragou com seu préprio punho, uma cruz que foi declarada como sinal déle. (4) Passou, assim, a povoagéo da Iha de Santa Catarina a ser a Vila de Nossa Senhora do Destérro, tendo como primeiras autoridades para © primeiro ano administrativo os citados Domingos Lopes, cujo nome completo € Domingos Lopes Sertio, Francisco Martins, ou melhor Francisco Martins Pereira, e AntOnio de Castilho. Notese que s6 foi criado um cargo de Vereador. Os Oficiais da Camara para os anos seguintes de 1727 e 1728 tinham os seus nomes nos dois pelouros, pos- tos pelo Ouvidor no chapéu. © primeiro Capitiomor de Vila foi Sebastifio Rodrigues Bragan- ¢a, cabo militar da Praga de Santos, Mestre-decampo ad-honorem, por nomeacéo do Capitao-general de Sao Paulo. © de 28 de outubro de 1726 0 primeiro ato que déle se conhece. (43) Da tomada de residéncia tratam as Ordenacées, no livro I, titulo 60. Ver Vamhagen, Historia, IV, pis. 77. (44) Santos Siva, Carta 14, == 40.

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