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ELLERY QUEEN
tradução de
baptista de carvalho
LIV RO S D O B RA S I L
LIVRO PRIMEIRO
CRUCIFICAÇÃO DE UM MESTRE-ESCOLA
Jean Turcot
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I
UM NATAL EM ARROYO
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E foi precisamente quando o inspetor, numa disposição
de espírito rara, se apressava a sair do seu hotel, em Chicago,
para o quartel-general da polícia, que Ellery, que o acompa-
nhava, soube do misterioso crime ocorrido perto de Arroyo
— um crime que a United Press batizara pitorescamente de
«O Crime dos T». Havia tantos elementos nos relatos dos
jornais a impressionarem Ellery — por exemplo, o facto de
Andrew Van ter sido decapitado e crucificado na manhã do
dia de Natal — que ele arrancou prontamente o pai às confe-
rências fumarentas de Chicago e meteu-o no Duesenberg —
uma relíquia em segunda mão, capaz, porém, de atingir uma
velocidade inacreditável.
O inspetor, embora fosse um pai extremoso, depressa
perdeu o bom humor, como é de calcular, e durante todo o
caminho de Chicago a Chester, na Virgínia Ocidental — pas-
sando por Toledo, Sandusky, Cleveland, Ravenna e Lisbon,
uma série de cidades do Illinois e do Ohio —, manteve um
obstinado silêncio apenas cortado pelo monologar de Ellery
e pelo roncar do tubo de escape do velho calhambeque.
Tinham atravessado Arroyo antes mesmo de se apercebe-
rem de que estavam na aldeia; um lugarejo de umas duzentas
almas. E depois… o cruzamento das estradas.
A silhueta hirta do poste de sinalização com a sua viga trans-
versal tornou-se visível algum tempo antes de o carro parar.
Terminava ali a estrada de Arroyo que formava um ângulo
reto com a estrada principal New Cumberland-Pughtown.
O poste estava por isso voltado para a saída de Arroyo, com
um dos braços apontados para Pughtown e o outro para New
Cumberland.
— Anda. Mete-te a ridículo — resmungou o inspetor.
— Carregares comigo para aqui só porque foi cometido um
crime! Tolo… Eu não o faria!
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Ellery parou o motor e avançou a pé. A estrada estava
deserta. Em volta, erguendo-se para o céu plúmbeo esten-
diam-se as montanhas da Virgínia Ocidental. Fazia um frio
agreste e o vento levantava as abas do sobretudo de Ellery.
E ali em frente estava o poste de sinalização onde Andrew
Van, excêntrico professor de Arroyo, havia sido crucificado.
O poste tinha sido branco; agora, era de um cinzento-
-sujo, salpicado de lama seca. Media um metro e oitenta de
altura — o topo ficava ao nível da cabeça de Ellery — e os
braços eram longos e fortes, que, à distância, pareciam um
T gigantesco. Ellery compreendeu então a razão por que o
repórter da U. P havia chamado ao crime o «Crime dos T».
Primeiro, este poste em forma de T, depois o encontro das
estradas formando também um T e finalmente o fantástico
T traçado com sangue na porta da casa do morto, por onde
Ellery havia passado algumas centenas de metros antes.
Ellery suspirou e tirou o chapéu. Não era propriamente
um gesto de reverência: estava a transpirar apesar do frio e
do vento. Enquanto limpava a testa, ia imaginando que louco
teria cometido aquele crime brutal, ilógico e desconcertante.
Até o corpo… Recordava-se com exatidão de uma das re-
portagens acerca da descoberta do cadáver, feita por um fa-
moso jornalista de Chicago bastante prático na descrição de
violências:
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Pregos de ferro de dez centímetros tinham sido en-
terrados nas palmas das mãos da vítima, fixando-as às
extremidades dos braços do poste. Dois outros pregos
trespassavam os pés do morto, sobrepostos na base
desta cruz. Sob as axilas havia ainda mais dois pregos,
os quais suportavam o peso do cadáver, que, com a ca-
beça arrancada, se parecia muito com um grande T.
O poste formava um T. As estradas cruzavam-se em
T. Na porta da casa de Van, não muito longe da encru-
zilhada, o assassino tinha traçado um T com o sangue
da própria vítima. E sobre o poste, a conceção de um
cérebro maníaco de um T humano.
Porquê no Natal? Porque teria o criminoso arras-
tado a vítima ao longo de trezentos metros — desde a
sua casa ao poste de sinalização — para aí a crucificar?
Qual o significado daquele T?
A polícia local está desorientada. Van era uma fi-
gura excêntrica, mas sossegada e inofensiva. Não tinha
inimigos — nem amigos. O seu único íntimo era uma
alma simples, de nome Kling, que lhe servia de criado.
Kling desapareceu e diz-se que o procurador do Mi-
nistério Público do condado de Hancock suspeita, por
motivos não revelados, que o criado haja sido igual-
mente vítima do louco mais sanguinário que figura
nos anais do crime da América moderna…
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Ellery limpou o suor da testa e passeou o olhar penetrante
sobre a horrível relíquia.
Em ambos os braços, junto às extremidades da viga trans-
versal, viam-se os buracos donde a polícia tinha extraído os
pregos. Cada buraco estava rodeado por uma mancha irre-
gular de um castanho ferruginoso. Pequenos fios castanhos
emergiam do lugar onde o sangue de Van havia gotejado das
suas mãos mutiladas. Na junção dos braços com o corpo
havia mais dois buracos despidos de manchas; os pregos ar-
rancados haviam sustentado as axilas do cadáver. O poste
em toda a sua superfície estava salpicado de sangue seco, par-
tindo os sulcos do topo, onde tinha estado assente a ferida
gotejante da base do pescoço da vítima. Na parte inferior
da trave vertical, encontravam-se dois buracos a menos de
dez centímetros um do outro, também cercados de sangue
coagulado, e destes buracos, onde tinham sido cravados os
pregos que haviam fixado à madeira os pés de Van, tinha pin-
gado sangue sobre a terra onde o poste estava enterrado.
Ellery voltou calmamente para o carro onde o inspe-
tor esperava numa atitude familiar de abatimento e irrita-
ção. O velho tinha atado ao pescoço um cachecol de lã e o
seu nariz vermelho e aguçado sobressaía como um sinal de
perigo.
— Bom — irrompeu. — Anda daí! Estou gelado!
— Nem um pouquinho de curiosidade? — perguntou
Ellery tomando lugar ao volante.
— Não!
— O senhor está hoje outra pessoa — comentou Ellery
pondo o motor a trabalhar. Depois sorriu e o carro deu um
salto para a frente como um galgo, virou sobre duas rodas,
descreveu um círculo e disparou na direção contrária àquela
donde viera.
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O inspetor agarrava-se à beira do assento, preso de um
terror mortal.
— Singular ideia! — gritou Ellery, procurando suplantar
com a voz o ruído do motor. — Crucificar um homem no dia
de Natal!
— Hum — resmungou o inspetor.
— Parece-me — gritou Ellery — que vou gostar deste caso.
— Guia, maldito! — vociferou o velho, subitamente.
Ellery endireitou a direção. — Não vais gostar de coisa ne-
nhuma! — acrescentou de sobrancelhas franzidas. — Voltas
para Nova Iorque comigo!
Chegavam a Arroyo.
— Bem sabemos — disse o inspetor, enquanto Ellery pa-
rava o carro com uma sacudidela em frente de um edifício
baixo — que é vergonhoso o modo como se fazem as coisas
aqui. Deixar aquele poste no local do crime! — Abanou a ca-
beça. — Aonde vais agora? — inquiriu o inspetor, inclinando
para o lado a sua cabecinha de pássaro, acinzentada.
— Julguei que não lhe interessasse — disse Ellery sal-
tando para o passeio. — Pst! Pst! O senhor! — gritou para um
homem vestido de azul que varria o passeio com um vasculho
esfarripado. — É aqui o Tribunal de Arroyo? — O homem
abriu a boca estupidamente.
— Pergunta supérflua! Há uma inscrição para toda a gente
ver… Anda daí, pateta! — exclamou o inspetor.
Arroyo era um lugarejo de ar sonolento, alguns edifícios api-
nhados como um cacho. A casa baixa em frente da qual parara
o Duesenberg parecia uma arca do velho Oeste. Ao lado havia
um armazém de géneros de toda a espécie, tendo na frente uma
bomba de gasolina já gasta e anexa uma pequena garagem. Na
velha parede do edifício via-se uma pomposa inscrição manus-
crita, dizendo: Câmara Municipal de Arroyo.
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Encontraram o indivíduo que procuravam, sentado a dor-
mir atrás de uma secretária instalada num gabinete em cuja
porta se lia: «Agente da polícia». Tratava-se de um provin-
ciano gordo, vermelho, de dentes amarelos e salientes.
O inspetor resfolegava e o homem abriu as pesadas pál-
pebras, coçou a cabeça e resmungou numa voz arrastada de
baixo:
— Se procuram Matt Hollis, saiu.
Sorrindo, Ellery, respondeu:
— Procuramos o agente Luden, de Arroyo.
— Ah! Sou eu. Que quer?
— Senhor agente — disse Ellery cortesmente —, deixe-me
apresentar-lhe o inspetor Richard Queen, chefe da Secção de
Homicídios do Departamento de Polícia de Nova Iorque, em
carne e osso.
O homem gordo deu um pulo na cadeira e despertou com-
pletamente:
— Quem? De Nova Iorque?
— Tão certo como estarmos aqui — confirmou Ellery,
pisando o pai intencionalmente.
— Faz favor de se sentar — disse Luden avançando uma
cadeira na qual o inspetor se sentou fungando. — O assunto
do Van, não? Não sabia que isso vos interessava, lá em Nova
Iorque. Queiram dizer.
Ellery puxou da cigarreira e apresentou-a ao agente, que
se serviu, resmungando um agradecimento.
— Conte-nos tudo o que souber acerca do assunto, Luden.
— Não há nada a dizer. Muita gente de Chicago tem vol-
tado desiludida. Vou estando farto disto, também.
— Não posso levar-lhe a mal — comentou o inspetor
suspirando.
Ellery tirou a carteira do bolso, abriu-a, e examinou
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atentamente as notas nela contidas. Os olhos do agente esbu-
galharam-se:
— Claro que — acrescentou — não estou tão cansado da
história que não possa contá-la uma vez mais.
— Quem encontrou o corpo?
— O velho Pete. Não o reconheceu. Vive há alguns anos
numa cabana, nas montanhas.
— Sim, bem sei. Não havia também um lavrador envolvido
no caso?
— O Mike Orkins. Possui umas leiras de terra no cami-
nho de Pughtown. Parece que o Orkins conduzia o seu carro
para Arroyo na sexta-feira de manhã cedo. O velho Pete
vinha também para Arroyo… desce muitas vezes lá das mon-
tanhas… e o Mike deu-lhe uma boleia. Foram andando até à
encruzilhada e ao voltar o carro depararam com o corpo do
Van, hirto e pendurado no poste como um cação.
— Nós vimos o poste — interrompeu Ellery.
— Creio que mais de uma centena de pessoas da cidade
tem passado por aqui só para o verem — elucidou Luden, pres-
suroso. — Tive de resolver o problema do trânsito. O que é
certo é que o Orkins e o velho Pete apanharam um grande
susto. Quase desmaiaram…
— Hum — disse o inspetor.
— Não tocaram no corpo, é claro? — interrogou Ellery.
— Não eram eles quem se atrevia! Dirigiram-se para
Arroyo como se o próprio diabo os perseguisse e logo que
chegaram fizeram-me saltar da cama.
— A que horas foi isso?
O agente corou.
— Oito, mas eu tinha passado parte da noite em casa do
Matt Hollis e dormi mais do que a conta…
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— Suponho que o senhor e Mr. Hollis foram imediata-
mente à encruzilhada?
— Pois claro. O Matt, o presidente da Câmara, e eu cha-
mámos quatro dos rapazes e fomos por aí abaixo. O pobre Van
estava feito em salada. Nunca vi nada assim em toda a minha
vida — comentou Luden, abanando a cabeça. — E logo no
dia de Natal! Isto é uma blasfémia. Também, o Van era ateu.
— O quê? — disse o inspetor, de repente. O seu nariz ver-
melho emergia como um dardo das pregas do capuz. — Um
ateu? O que quer o senhor dizer?
— Bem, talvez não fosse precisamente um ateu — mur-
murou o agente, pouco seguro. — Eu também não vou muito
à igreja, mas o Van nunca lá punha os pés. Passou… Bem,
talvez seja melhor não falar mais nisto.
— Extraordinário — observou Ellery voltando-se para o
pai. — Isto tem todo o ar de ser obra de um maníaco religioso.
— É o que todos dizem — interveio Luden. — Eu… não
sei. Não passo de um polícia da província. Há três anos que
não prendo senão um ou outro vagabundo. Mas sempre lhes
digo, meus senhores — acrescentou misteriosamente —,
aqui anda mais alguma coisa do que religião.
— Não suspeita de ninguém da terra, suponho? — disse
Ellery franzindo as sobrancelhas.
— Não faço a menor ideia de quem seja o patife. Alguém
ligado ao passado do Van.
— Têm vindo recentemente estranhos a Arroyo?
— Nem um… Identificámos a vítima pela altura, aspeto
geral, vestuário e papéis e retirámo-la, mas ao regressar à al-
deia parámos em casa do Van…
— E depois? — inquiriu Ellery vivamente. — Que en-
contraram?
— O Inferno a descoberto — redarguiu o agente. — Vestígios
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de uma luta terrível: as cadeiras todas de pernas para o ar, sangue
por toda a parte, aquele grande T pintado a sangue na porta e o
pobre do Kling desaparecido.
— Ah! — fez o inspetor. — O criado. Desaparecido,
hem? Levou os trapos, não?
— Isso é que não sei ao certo — respondeu Luden coçando
a cabeça. — O juiz de instrução quase que me tirou o caso das
mãos. Sei que procuram o Kling e creio — fechou um olho
devagar — que mais alguém. Mas não posso dizer nada sobre
isso — acrescentou com precipitação.
— Já encontraram alguma pista do Kling?
— Não, que eu saiba. O corpo foi levado para a sede do dis-
trito, Weirton, isto é, para dezasseis ou dezoito quilómetros
daqui, e ficou a cargo do médico-legista, que selou a casa do
Van. A polícia estadual está a tratar do caso e o procurador do
distrito também.
Enquanto Ellery meditava, o inspetor remexia-se na ca-
deira e Luden olhava como que fascinado para o pince-nez do
jovem detetive, que murmurou, por fim:
— A cabeça foi cortada com um machado, não?
— Parece que sim. Encontrámos o machado que pertencia
ao Kling. Não tinha impressões digitais.
— E a cabeça?
O agente encolheu os ombros.
— Não há vestígios dela. Calculo que o louco do assassino
a tenha levado como recordação.
Ellery pôs o chapéu.
— Vamos embora, pai. Obrigado, Luden.
Ao dizer isto, estendeu a mão que o agente apertou sem en-
tusiasmo. Porém, ao sentir que um papel se lhe colava à mão,
ficou tão satisfeito que adiou a sesta e acompanhou os visitan-
tes à estrada.
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