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Uma lei para dar mais segurança jurídica

ao direito público e ao controle

Carlos Ari Sundfeld1


Guilherme Jardim Jurksaitis2

O direito público está na pauta dos principais jornais. Seus personagens


são atores importantes nos grandes debates e suas instituições estão cada
vez mais presentes no imaginário coletivo. O direito privado perdeu sua
hegemonia como ramo fundamental do direito. Sinal disso é a mudança já
não tão recente na nomenclatura do Decreto-Lei 4.657, de 1942, que dei-
xou de ser a Lei de Introdução ao Código Civil para ser a Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro (redação dada pela Lei Federal 12.376, de
2010).

Mas a mudança foi só no nome, pois o conteúdo continuou tratando


da aplicação da lei no tempo e no espaço e de mais uma ou outra regra
de interpretação. Detalhe: a assim chamada Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro é, na verdade, um Decreto-Lei. Ato de autoridade,
tomado pelo Chefe do Poder Executivo no auge da ditadura varguista. A
Democracia e a Constituição Federal não conseguiram superar essa heran-
ça, apesar da supressão desse tipo normativo.

É verdade que a substituição de um nome por outro teve ao menos


um efeito prático: o de corrigir a distorção comum entre os operadores do
direito quanto à matriz do ordenamento. Como alertava Geraldo Ataliba
no agora distante ano de 1992: “a maioria dos estudantes – mesmo os já
graduados – supõe que a lei geral de aplicação de normas jurídicas (entre
nós impropriamente designada Lei de Introdução ao Código Civil) é de di-
reito privado, levando ao equívoco de pensar que o direito civil é matriz do

1  Professor Titular da FGV Direito SP, Presidente da Sociedade Brasileira de Direito


Público – SBDP.
2  Professor do Programa de Pós-Graduação da FGV Direito SP, Coordenador de
Direito Administrativo da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP.
22 Transformações do direito administrativo: Consequencialismo e estratégias

direito”3. E não é. Ao contrário, há amplíssimo espectro de relações jurídi-


cas tratadas por normas que estão fora do direito privado, especialmente
nos casos que envolvem a administração pública.

Embora a Constituição de 1988 e o extenso conjunto de atos nor-


mativos que a seguiu (leis, decretos e regulamentos) tenham conferido
maior densidade aos institutos de direito público, ainda falta uma norma
uniformizadora dos preceitos gerais que devem reger a sua aplicação para
regular melhor tanto a atuação da administração quanto a relação dela
com os administrados.

O direito público sente falta de uma Lei de Introdução.

Com o intuito de preencher esse vácuo, foi apresentado no Senado


Federal o Projeto de Lei 349/2015,4 que pretende introduzir dez novos
artigos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. De iniciativa
do senador Antonio Anastasia, o projeto busca conferir mais segurança
jurídica, estabilidade e previsibilidade ao direito público.

E o que os Tribunais de Contas, e os órgãos de controle em geral, têm


a ver com isso? Afora tratarem cotidianamente com a administração pú-
blica, essas entidades assumiram nos últimos anos o papel de construto-
res ativos do direito público. Passaram a estabelecer deveres, padrões de
comportamento e comandos concretos de conduta às entidades estatais,
aos gestores públicos e aos particulares que se relacionam mais estreita-
mente com eles.

O Projeto de Lei reconhece esse protagonismo e quer torná-lo mais


eficiente e efetivo. É preciso então enfrentar aquela que talvez seja a prin-
cipal crítica à atuação proeminente dos órgãos de controle, segundo a
qual os controladores teriam assumido o lugar dos gestores públicos na
formulação de políticas e na própria condução da máquina estatal, trazen-
do enorme instabilidade.

Superar essa crítica envolve ter cuidado com decisões tomadas com
base em princípios, em valores jurídicos abstratos, que, não obstante, pro-
duzem claros efeitos concretos. O fato de o direito positivo prestigiar o
uso dos princípios, e prever normas suficientemente abertas, de modo que
os intérpretes possam deles se socorrer em determinadas situações, im-
põe aos órgãos de controle um ônus de motivação mais elevado.

3  Prefácio de Geraldo Ataliba à primeira edição do livro Fundamentos de Direito


Público, de Carlos Ari Sundfeld, São Paulo, Malheiros, 1992.
4  Por ocasião da elaboração deste artigo, considerou-se o parecer submetido à
Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal pela senadora Simone Teb-
et. O referido parecer propôs pequenas mudanças na redação e na numeração do
projeto originalmente apresentado pelo senador Antonio Anastasia. O andamento e
o texto integral atualizados do Projeto de Lei estão disponíveis em: [http://www25.
senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/120664], Acesso em: 9 dez. 2016.
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Não basta dizer qual é o direito, qual é o princípio a ser aplicado; é


preciso motivar adequadamente, considerando os efeitos da decisão no
caso concreto e até mesmo as possíveis soluções alternativas, cujas razões
de serem preteridas devem ser ponderadas e expostas (art. 20 da Lei de
Introdução, na redação do Projeto de Lei).

É assim, afinal, que decidem os administradores públicos e os formu-


ladores de políticas: considerando dado problema, vislumbram possíveis
soluções, tentam prever os custos e as consequências de se optar por cada
uma delas e submetem o juízo final ao escrutínio público (seja através do
debate parlamentar, no caso de uma lei, de consultas públicas, ou mesmo
no momento em que a decisão passa a dar resultados para a população,
sejam eles positivos ou não) e também ao crivo dos órgãos de controle.

Mesmo nos casos em que a decisão dos órgãos de controle for toma-
da com base em regras claras, é necessário e prudente considerar, à luz
do caso concreto, quais as circunstâncias fáticas que se apresentaram no
momento da prática do ato examinado. Isso significa avaliar a situação à
luz de suas peculiaridades, das informações de que, à época, dispunha o
administrador (e eventualmente o particular envolvido), dos respectivos
custos e do que se pretendia alcançar naquele momento (art. 22).

Agir de modo diferente, ignorando essa realidade, é simplificar a fun-


ção administrativa e diminuir a dos órgãos de controle a ponto de equi-
pará-las ao trabalho dos analistas esportivos em mesas-redondas após a
partida de futebol. Depois da partida, fazer críticas aos jogadores, e com
mais vigor e graça, aos juízes desportivos, é muito mais fácil do que parti-
cipar ativamente do jogo.

Além disso, as orientações dos órgãos de controle devem ser sufi-


cientemente claras, especialmente em caso de mudanças. Os adminis-
tradores públicos e os particulares que se relacionam mais estreitamente
com a administração devem saber como pensam os órgãos de controle,
sobretudo quando mudam de ideia sobre alguma lei, ato administrativo
ou prática de gestão, e ter a oportunidade de se adaptar por meio de uma
transição adequada (art. 23).

Outro passo importante para trazer estabilidade à atuação dos gesto-


res públicos e às relações travadas entre a administração e os particulares
é proteger a validade dos atos estatais em face de mudanças de orienta-
ção dos órgãos de controle. Interpretação nova não pode prejudicar atos
praticados anteriormente (art. 24).

Igualmente, não se mostra acertado punir pessoalmente o gestor pú-


blico porque agiu de acordo com interpretação razoável de norma legal,
ainda que posteriormente considerada equivocada. Não podem cair nas
costas do gestor as consequências do risco de falhar e as consequências
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da incerteza do direito (por acaso, juiz que tem sua sentença revertida
por Tribunal Superior deveria ser punido?). Do contrário, temeroso das
consequências, o administrador abre mão de agir e deixa de inovar, prefe-
rindo praticar os mesmos erros em vez de se arriscar. Evidentemente, isso
não significa isentar de responsabilização aquele que age com reiterada
desídia, ou em nítida afronta ao direito, mediante dolo ou erro grosseiro
(art. 28).

Dos dez artigos novos que o Projeto de Lei 349/2015 pretende incluir
na Lei de Introdução, destacamos aqui alguns dos que produziriam efeitos
mais imediatos na atuação dos órgãos de controle.

O momento para discutir essas mudanças não poderia ser mais opor-
tuno.

A superação da crise econômica exige dar mais estabilidade e se-


gurança aos negócios públicos, requisitos fundamentais para recuperar a
nota de crédito do país e atrair investimentos privados de qualidade.

E chegou a hora de enfrentar seriamente a crise ética. Para isso, é


imperioso abandonar a crença equivocada de que mais burocracia e mais
dirigismo inibem a corrupção. Estão aí os resultados da Lei 8.666/1993: o
sistema de licitação aberta e com critérios de julgamento “hiperobjetivos”
deu margem a maus negócios (ou alguém ainda contesta que o café ser-
vido nas entidades estatais tem gosto menos aprazível do que qualquer
outro no mundo, e que as canetas das repartições públicas duram menos
do que as outras?) e a manobras que fogem por completo do direito pú-
blico (como sói ocorrer com os “contratos guarda-chuva”, feitos com as
fundações de apoio, mediante o repasse desenfreado de recursos públicos
para fugir do dever de licitar e de prestar contas).

É hora de mudar.

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