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Aquisigdo da linguagem Como as criangas aprendem a falar? O papel do adulto na aprendizagem da lingua pelas criangas é fundamental? Existe uma gramatica universal guiando a aquisicio das linguas? Essas ¢ outras questées intrigam os estudiosos da linguagem ha muito tempo. Neste capitulo, veremos algumas das hipéteses existentes para explicar a aquisigio da linguagem. Daremos maior énfase’hipétese do inatismo, porque sua descrigio aprofunda algumas nogées da linha teérica gerativista, corrente bastante estudada nos cursos de letras Hipdtese behaviorista Ocstruturalismo americano (vero capitulo “Estruturalismo”) buscou na psicologia behaviorista a explicagao para a aprendizagem de lingua. Segundo essa corrente dz psicologia, os conhecimentos séo adquiridos através das experiéncias vividas. A aprendizagem dé-se através de respostas bem-sucedidas a determinados estimulosdo meio, a repetigao das respostas associadas aos estimulos é fundamental para essa aprendizagem. O behaviorismo teve muita influéncia sobre a lingtifstica e, por muitas décadas, serviu de base para o ensino de linguas estrangeiras e também para o ensino em geral. No que se refere & aprendizagem de lingua materna, 0 processo seria também feito através de respostas a estimulos. No entanto, nesse processo, a resposta fisics € substitufda por uma resposta lingitistica, € 0 estimulo pode ser lingiifstico ou sae. Segundo Bloomfield, a crianga herda a capacidade de pronunciar ede repetirsonswacais sob diferentes estimulos. A articulagdo torna-se um habito, ¢ a crianga, numa expe seguinte, passa a imitar os sons que ouve. Ela faz associagoes entre sons © colina inicialmente e, em seguida, aprende a associar uma palavra a uma coisa que estas 208 Manual de lingtistica Um estimulo, como, por exemplo, “sede”, tera como resposta a palavra “aga” ‘4gua”). Essa resposta serd reforgada se a mae pegar dgua para seu filho. A crianga abandonaas respostas erradas, pois nao haveria reforgo externo, Portanto, aaprendizagem ingiifstica se dé, segundo a concepgio behaviorista, em decorréncia da seqiiéncia “estimulo > resposta > reforgo”. Dessa forma, para essa concepgio o meio é fundamental para aprendizagem de todos os conhecimentos, inclusive o conhecimento lingiiistico. Hipdtese do inatismo Outros estudiosos nao aceitaram uma explicagzo tao simples, como a formulada pelo estruturalismo americano, para um fenémeno tio complexo e tio diferente de outros tipos de aprendizagem. O behaviorismo nao consegue explicar como produzimos e compreendemos frases que nunca foram proferidas, como entendemos frases cuja referéncia nfo se encontra no contexto em que sio produzidas ou como as criangas aprendem a falar tio rapidamente. Na metade do século xx, 0 lingitista Noam Chomsky fez uma critica severa a essa abordagem que dava grande importincia 20 meio, Ao formular a teoria gerativa com base no racionalismo cartesiano (ver 0 capitulo “Gerativismo”), Chomsky afirma que existe uma gramatica universal, que é uma matriz biolégica responsével pela grande semelhanga entre as Iinguas e pela rapidez com que as criangas aprendem a falar. Segundo essa concep¢io, o homem jé nasce provido de uma grande variedade de conheci ing lingii(sticos. Essa corrente d4 maior importincia ao organismo, a codificagao gene que traz muitas informagées sobre 0 comportamento humano, a personalidade, a capacidade de compreensio de quantidades, a capacidade de distingéo entre os sons da fala e outros sons, entre outras informagées. No caso da aquisicio da linguagem, ‘o meio cumpritia 0 papel de acionar o dispositivo responsével pela aquisi¢ao de lingua. Os gerativistas procuram descrever a gramitica universal (GU), composta por principias, os quais determinam a estrutura comum a todas as linguas ¢ limitam as variagGes entre elas, € por pardmetros, que sio as variagdes posstveis que as linguas podem ter, As eriangas aprendem a falar rapidamente porque, na verdade, jé nascem dotadas de um dispositivo inato de aquisigo da linguagem. Para Chomsky, a erianca fica exposta a uma fala fragmentada, repleta de frases incompletas, mas é capaz de internalizar num tempo muito curto a gramética de uma lingua devido a esse dlispositivo inato, que aciona o conhecimento lingtifstico prévio geneticamente herdado. Na idade certa, 0 dispositivo seré acionado, ¢ ela comecari a falar. Seu argumento é conhecido como “pobreza do estimulo” ese vincula a0 chamado “problema de Plato”, que assim se desdobra: “como 0 ser humano pode saber tanto diante de evidéncias to passageiras, enganosas e fragmentérias?”. isticos € no jentos Aquisicdo dalinguagem 209 As ctiangas criam palavras, fazem analogias, falam frases inéditas ainda muito cedo. Além disso, com 4 ou 5 anos jé utilizam praticamente todas as estruturas gramaticais de sua lingua. Para Chomsky e seus seguidores, esses fatos sio fortes argumentos para se conceber a existéncia de uma GU especifica do ser humano. (Os gerativistas também se questionam sobre a forma como as criangas adquirem os elementos lingiiisticos. Para os estudiosos dessa linha, existem as categorias lexicais, que s2o 0s substantivos, os verbos, os adjetivos e as preposicbes, ¢ existem as categorias funcionais, que sio os instrumentos gramaticais das linguas, como os artigos, os pronomes, as conjungdes ¢ os advérbios, além das categorias gramaticais de niimero, géncro, caso, pessoa, tempo, etc. Uma das hipsteses mais conhecidas para explicar a aquisigéo desses elementos a hipdtese maturacional da aquisicao da linguagem, bastante trabalhada por Radford (1993). Segundo o autor, existem diferentes fases para a aquisicao da linguagem e a passagem de uma fase para outra é determinada pela maturagao do organismo. Exisce uma ordem na configuracéo da GU que determina que as categorias lexicais surjam antes das categorias funcionais. Para Radford, todas as criangas passam pelas seguintes fases de aquisicao da linguagem: (a) fase pré-lingitstica: 0 a 12 meses; (b) fase de uma palavra: de 12 a 18 meses: (© fase multivocabular inicial: de 18 a 24 meses; (@ fase multivocabular tardia: de 24 a 30 meses.! Ele s6 considera uma forma como adquirida quando esta é usada de modo sistematico, seletivo e contrastivo. Assim, por exemplo, com cerca de 18 meses deidade, a crianga faz algumas concordancias de género ¢ de ntimero, mas de forma bastante assistemadtica, 0 que nao é considerado aquisigg0. Quando a crianga comega a usar repetidas vezes em sua fala, e de modo contrastivo, o masculino eo feminino, o singular € 0 plural, considera-se que houve aquisicdo das categorias de género e de ntimero. Das quatro fases propostas por Radford, a primeira é caracterizada pela falta de qualquer manifestagio lingiiistica. Ha apenas gestos ¢ balbucios. A segunda fase é caracterizada pela presenga de sentengas com apenas uma palavra. E uma fase acategorial por natureza, pois ndo hd producao de como faltamas categorias funcionais que estabelecem relagoes gramaticais entreas palavras. Na fase seguinte, hé o desenvolvimento dos sistemas lexicais, que sio aqueles que englobam o sistema nominal, o sistema verbal, o sistema adjetival ¢ o sistema preposicional. As criangas adquirem as categorias lexicais juntamente com as suas caracteristicas teméticas. E a chamada fase lexical ou temtico-lexical, em que nao hd ainda os sis funcionais (sistema determinante, sistema complementizador ¢ sistema flexional agmas e sentengas propriamente dicas, assim nual de linguistica Nessa fase surgem as flexes nominais ¢ a fixagio dos partimetros de ordem das palavras. Mas, em decorréncia da falta das categorias funcionais, nao hé elementos como determinantes (artigos e pronomes demonstrativos ¢ possessivos), pronomes pessoais a crianga nao utiliza a flexio de caso, como, por exemplo, exv/me/mim), auxiliares, modais, verbos de ligagdo ¢ flexes verbaii Para Radford, a estrutura da sentenca de criangas nessa rerceira fase de aquisi¢io assemelha-sedestruturachamada “sentenga curta’ doadulto, comoas destacadasa seguir: Eu acho Pedro inteligente. Eu considero Pedro bom. Vejamos os exemplos de fala de uma menina brasileira com menos de 2 anos: a) Neném té mexendo [no] mimédio de vov6. (aos 20 meses 21 dias) b) Cigaga qué pap. (aos 21 meses) ) Fafazbibi pequeno. (aos 21mesese 6 dias) [ela pede paraa mae desenhar] d) Faz sol gande. (aos 21 meses) [idem] f) Casa de poquinho. (aos 21meses) g) Panta de vové. (aos 21 meses ¢ 6 dias) h) Coocé na cama, (aos 21 meses € 21 dias) i) Mamie € pequeno. (aos 21 meses ¢ 6 dias) j) Bichinho té escondida. (aos 21 meses ¢ 21 dias) }) Carro é minha. (A2)) Verificamos nas frases a presenga dos elementos da terceira fase: sintagmas nominais (como “neném”, “cigaga”, “bichinho” e “carro”), sintagmas verbais (como “ed mexendo no mimédio de vovs", “qué papa”, “faz bibi pequeno” e “td escondida”), sintagmas adjetivais (como “sol gande”, “escondida” e “bibi pequena’) e sintagmas preposicionais (como “casa de poquinho” ¢ “mimédio de vovd”). Além disso, verificamos que ela jd tinha fixado os parimetros de ordem vocabular do portugués (como preposigio + substantivo, e substantivo + adjetivo, por exemplo). Observando os dados, também vemos que ela nao adquiriu ainda os artigos — como demonstram sentengas como (0), (d) e (g) ~, 08 pronomes (ela fala “nénem” no lugar do pronome “eu’, por exemplo) ¢ também nao faz concordancia — como em (i), (j) ¢ (I). Esses dados indicam que a menina esta no terceiro estagio proposto por Radford. A tiltima etapa, denominada fase multivocabular tardia ou fase funcional, se caracteriza pela presenca dos sistemas funcionais, Dessa forma, a crianga utiliza todos os elementos que faltavam na fase anterior. Para Radford, essa fase s6 € atingida quando a crianca dominou totalmente os sistemas lexicais. Como explicar 0 faro de todas as categorias lexicais serem adquiridas antes das categorias funcionais? Para responder esta questdo, o autor utiliza a hipdrese maturacional de aquisic&o segundo a qual “os diferentes principios da gramética as. 10 his % st Aquisicdo da inguogem 211 universal so geneticamente programados para entrarem em operacio cm diferentes estigios da maturagao biologicamente pré-determinados.” (Radford, 1993: 274 crianga, aos 20 meses aproximadamente, esta biologicamente pronta para adquirir os sistemas de categorias lexicais. Nesse estgio, as criangas podem “criar” estruturas que tém um nticleo nominal, adjetival, verbal ou preposicional. O inicio dessa fase caracteriza-se por ser uma fase critica de maturagio, que facilita 0 aumento do vocabulério porque 0 desenvolvimento das estruturas dos sistemas lexicais simplifica a tarefa de identificar a estrutura argumental do predicado.! Nese estégio no ha estruturas com artigo, pronome, flexio nominal ¢ verbal © conjungio porque no houve maturagio para a aquisicio dos sistemas funcionais. Essa maturagio ocorre aos 24 meses aproximadamente, época em que hé outra fase ica, agora voltada para a sintaxe. Essa fase caracteriza-se pelo aumento do niimero de sentengas na fala das criangas ¢ pela aquisi¢ao das categorias funcionais. As pesquisas de Radford foram voltadas para a fase multivocabular inicial (a terceira descrita aqui). Nao houve uma pesquisa aprofundada sobre a forma de aquisigio das categorias funcionais. A andlise da fala de criangas americanas com 26 meses mostra que elas jé possuem todas as categorias funcionais nessa idade. Uma abordagem inatista também bastante conhecids ¢ a continuista (Hyams, 1986), segundo a qual todos os elementos (lexicais e funcionais) j4 estio disponiveis desde 0 inicio do desenvolvimento lingiistico. Essa hipétese descarta a idéia de maturagio ¢ de fases de aquisicao. Para Hyams (1986), os elementos funcionais néo aparecem na fala inicial por causa da limitacéo do vocabulério infantil, 0 qual € desprovido de palavras que nao tenham referéncia externa, Mas isso, segundo a autora, nao significa que as categorias funcionais no existam na gramatica da crianca. As pesquisas de Cezario (1996) e de Soares (2001), com base na fala da mesma menina, mostram que a crianga tinha todos os elementos da terceira fase ¢ alguns elementos da quarta fase. Como demonstram os exemplos a seguir, cla nao fazia concordancia nominal ¢ nao usava pronome e artigo. Mas ji fazia flexio de tempo — exemplos (a) ¢ (b) — uti exemplos (c), (d) e (¢) -, que sio elementos funcionais: crf izava regularmente auxiliares, verbos de ligagio ¢ modais — a) Mamie abe, mamie [a mae abre um objeto]. Abiu. Esse abe nio, abe nao? [referéncia a outro objeto] (aos 21 meses ¢ 6 dias) b) _B: Nené, vai cai? Neném vai cai? E: Vai, se continuar andando pra trés vai. : Michel. E: Michel? B: E. E: Cadé Michel? B: Michel caiu. [ela lembra-se de um fato ocorrido no dia anterior 212 — Manual de lingtiistica ©) Mamae é pequeno? (aos 21 meses e 6 dias) d) Té sujo. (aos 21 meses ¢ 14 dias) €) Gaiinha t4 comendo pao. (aos 21 meses) f) Pode mexé? (aos 21 meses ¢ 6 dias) Hipdteses construtivistas e interacionistas Hi diferentes abordagens que tentam dar conta da linguagem a partir das relages interativas entre a crianga eo ambiente, sendo a linguagem conseqiiéncia da construgao da inteligéncia em geral (hipétese construtivista de Piaget) ou entre a crianga € as pessoas com quem ela convive (hipéteses interacionistas). Veremos, resumidamente, algumas dessas concepg6es. Cognitivismo construtivista Uma abordagem bastante conhecida éa denominada cognitivismo construtivista ou epigenttico, desenvolvida pelo estudioso suigo Jean Piaget (1978 ¢ 1990). Sua visio tem por base a idia de que 0 desenvolvimento das estruturas do conhecimento ou estruturas cognitivas ¢ feito pela interagio entre ambiente e organismo. Em outras palavras, para Piaget nao existe uma gramitica independente de outros dominios cognitivos. Oaparecimento da linguagem dé-se por volta dos 18 meses deidade, nasuperagio do estégio que o autor denominou de “estagio sensério- motor”. Nesse momento hé 0 desenvolvimento da funcio simbélica, por meio da qual um significante representa um objeto significado. Também hi o desenvolvimento da representacio, que permite que experiéncias sejam armazenadas e recuperadas. Nessa fase, a crianga comeca a se reconhecer como individuo, como senhora de seus movimentos, diferenciando-se das outras pessoas, ou seja, a crianga faz uma oposi¢io entre o “eu” e os “outros”. Quando a crianga chega a esse estéigio cognitivo, comega o desenvolvimento da linguagem, a qual € entendida por Piaget como um sistema simbélico de representagdes, Dessa forma, 0 conhecimento lingiifstico néo seria inato, mas sim desenvolvido através da interagéo entre 0 ambiente ¢ 0 organismo, sendo uma conseqtiéncia da construcéo da inteligéncia em geral. O interacionismo social Uma outra proposta nao inatista é a do psicélogo sovitico Vygotsky (1996), que explica 0 desenvolvimento da linguagem e do pensamento com base na interacio entre os individuos. Segundo 0 autor, a fala ¢ 0 pensamento tém origens genéticas AquisicGo da linguogem 213 diferentes, havendo uma fase pré-verbal do pensamento, ligada 3 inteligéncia pritica, ¢ uma fase pré-intelectual da fala, relacionada ao balbucio e a0 choro. Aos 2 anos. 2 fala ¢ © pensamento se unem, ¢ a fala passa a servir ao intelecto. A crianca, news idade, fala sozinha quando esté brincando, desenhando e fazendo outras tarefis. Esse fala egocéntrica é, para Vygostsky, muito importante, pois serve de instrumento para a crianga planejar e encontrar a solugio de um problema. A fala seré internalizada > medida que a ctianca cresce. Para o autor, é na troca comunicativa entre a crianga € 0 adulto que a linguagem ¢ o pensamento sio desenvolvidos. As estruturas construidas socialmente sio internalizadas quando a crianga passa a controlar © ambiente ¢ o Préprio comportamento. A histéria das relagdes reais entre acrianga eas outras pessoas € constitutiva dos processos de internalizacio. A visGo sociocognitivista A abordagem sociocognitivista junta a base social, interacional, com a base cognitiva. A explicagio para a aquisigao da linguagem dé-se em termos funcionalistas: a aquisigdo comeca quando a crianga passa a entender que existe uma intengio no ato comunicativo dos adultos. Segundo essa visio, nao faz sentido caracterizar 0 homem como detentor exclusive da linguagem, cujas propriedades gerais sio detetminadas por aspectos mentais radicados na organizagio biol6gica da espécie. Isso porque os scis milhoes de anos que separam os humanos dos grandes macacos constituem um periodo de tempo muito curto para que ocorressem os processos relatives a evolugzo biolégica e selecdo natural essenciais 20 surgimento das habilidades necessérias para os humanos lidarem com tecnologias, formas complexas de organizasio social e comunicagio. Nesse sentido, o conjunto de habilidades cognitivas que caracterizam os humanos modernos constitui o resultado de algum tipo de proceso — caracteristico unicamente da espécie ~ de transmissio cultural: uma espécie de evolucio cultural cumulativa, que néo envolve apenas criagio, mas, principalmente, transmissio social. Os humanos, portanto, parccem ter uma eapacidade de socializar suas habilidades, o que os outros animais nio tém. Oaprendizado cultural vorna-se possivel em fungéo de uma tnica eespecial forma de cognigao social, que é a habilidade que os individuos possuem de compreender seus semelhantes como seresiguais, os quais tém vida mental eintencional como eles mesmos. Essa compreensio capacita os individuos a imaginarem-se “na pele” de outra pessoa © Portanto, ela pode aprender nao apenas com a outa pessoa, mas através da outra pessom A compreensio do outro como um ser intencional é crucial no aprendizad cultural humano porque os artefatos culturais (instrumentos) e as priticas sociase apontam para além de si mesmos: os artefatos apontam para sua fun¢Go iutilicsoce oe 214 Manual de lingtistica simbolos lingiisticos, para a situagio comunicativa, Portanto, para aprender socialmente o uso de um instrumento ou de um simbolo, a crianga precisa compreender (por que © para que as outras pessoas estio utilizando aquele instrumento ou aquele simbolo. Isso significa que elas precisam entender o significado intencional do uso do instrumento ou da pritica simbélica. No que se refere & aquisicio da linguagem, por volta dos 9 meses de idade, a ianga, segundo essa proposta, desenvolve a habilidade de compreender outras pessoas como agentes intencionais. Isso porque nessa fase ela comeca a interagir com outras pessoas de varios modos. Para compreender os sons e os movimentos de mio feitos pelos adultos como algo com valor comunicativo que precisa ser aprendido e usado, a crianga tem de entender que cles si motivados por um tipo especial de intengio chamada intenedo comunicativa. Mas 0 entendimento da inteng0 comunicativa s6 pode ocorrer dentro de algum tipo de cena de aten¢ao compartilhada, que prové a base sociocognitiva para esse entendimento. Essa cena de atencio compartilhada é fundamental quando se considera que a referéncia lingiiistica é, sobretudo, um ato social em que uma pessoa chama a atencéo de outra para algo no mundo real. Nesse sentido, a referéncia s6 pode ser compreendida como um tipo de interagio social, em que a crianga e 0 adulto esto com a atencio voltada para um terceiro elemento, por um determinado espago de tempo. A cena de atencio compartilhada implica dois aspectos importantes: cl 1) Por um lado, as cenas de atencio compartithada nao sio eventos perceptuais. Elas incluem apenas uma parte das coisas do mundo perceptual da crianga. Por outro lado, as cenas de atengio compartithada sao também eventos lingiisticos, pois contém mais coisas do que aquelas explicitamente indicadas por qualquer conjunto de simbolos lingiisticos. As cenas de atengao compartilhada constituem algum tipo de meio-termo ~ um meio-termo essencial da realidade socialmente compartilhada ~ entre o grande mundo perceptual ¢ o pequeno mundo lingiistico. 2) A compreensio da crianga de uma cena de atengio compartilhada inclui, como elemento constituinte (integrante de cena), a propria crianga eo seu papel na interacéo conceptualizada a partir do mesmo perceptual externo da outra pessoa e do objeto. Isso significa que a crianga entende que todos participam de um formato representacional comum, o que é de importincia crucial para 0 processo de aquisicio dos simbolos lingiisticos. Para funcionar como um “formato” para a aquisigio da linguagem, as cenas de azencio compartilhada tem de ser compreendidas pela crianca como tendo fungdes participativas que so, em certo sentido, intercambidveis. Isso permite que a crianga rome a fung2o do adulto e use uma nova palavra para direcionar a atengao dele, da mesma maneira que o adulto acabou de usar para direcionar a dela, Tomasello (1999) Aquisigdo dalinguagem 215, chama esse processo de imitagdo por reversiéo de papel, ou seja, aprender a expressar a mesma situagio comunicativa (usar os mesmos meios comunicativos) que as outras Pessoas requer a compreensao de que as fungdes participativas do evento comunicativo podem ser trocadas: cu fago por ela o que ela fez por mim. Como podemos ver, os lingiiistas dao diferentes respostas as perguntas que abrem este capitulo. Entretanto nao conseguiram ainda desvendar por completo os segredos da aquisicéo da linguagem pelas criangas. A questo do inatismo continua sendo discutida. Hé pesquisadores que defendem a idéia de que existe uma gramatica universal no nosso cédigo genético, responsivel pelas caracteristicas das linguas ¢ pela aquisic¢ao da linguagem, assim como ha cientistas que no admitem o inatismo tal como proposto por Chomsky ¢ enfatizam outros pontos importantes para a aquisigio: (a) 0 desenvolvimento cognitive ¢ a aprendizagem em geral; (b) a interagio entre os individuos e (c) a percepgao das intengdes comunicativas. Cabers as préximas pesquisas validar ou refutar as hipéteses de uma ou de outra abordagem ou ainda criar novas hipéteses para a questio da aquisigdo da linguagem. Exercicios 1) Caracterize a hipétese behaviorista para a aprendizagem da linguagem, 2) Segundo a teoria chomskiana, como se explica 0 fato de as eriangas aprenderem uma lingua num periodo tio curto de tempo? 3) Quais so as fases de aquisigio de linguagem segundo Radford? Caracterize cada uma delas 4) Com base em elementos morfoldgicos ¢ sintiticos (observar elementos como concordéncia nominal, concordincia verbal, oposicio dos tempos verbais, artigo, pronome, verbo ausiliar, et.) presentes nna amostra de fala a seguir retirada de Cezario (1996), em qual das fases propostas por Radford esta ctianga parece estar? E: O que é que neném tf fazendlo? C: Neném «4 mexendo [no] mimédio de vovs. E- No remédio de vov6, né? Dé pra tsa guardar. 5) E: E 0 lobo mal... ¢ isso aqui? C: Hau E:E assim que dle faz? C: Qué casa. té coendo.. tf eoendo... tf coendo... obo mal. hé hd Hé come oquinho... qué comé uma poquinho. E: Lobo mal quer comer 0 porquinho. ) agora? C: Qué qué mois .. porquinho qué moid aobo, 216 Manual de iingtistica Por qué? C0) peo pe E: Quer mothar 0 pé? C: Qué... cigaga cimiga ¢ cimiga? é cimiga? E: Hum hum CC: Aqui f aqui a pata... agui a panta E:Théa planta C: Ea panta di cigaga E:A planta da cigarta, (C= crianga; E = entrevistador) 5) Segundo a hipdrese mauracional, as categoraslexicais ocorrem na fala antes da categoriasfuncionais. Por que isso acontece nesta ordem? © capitulo apresenta uma outta hipétese inatsta que refura a hipérese maturacional. Caracterize- 6) Como a abordagem construtivista explica a aquisigio da linguagem? 7) Segundo a visio sociocognitivista, como o aprendizado cultural se torna possivel? Como isso se relaciona com a aquisigio da linguagem? Notas "Segundo aucor, pode haver diferenga de 200% em relasio & mudanga de uma fase de aquisgio. ® Ascaractersticas temaicas ou papéisrematios so as fungBes seménticas que eypressam numa sentenga quem fez 0 ‘quea quem, como, onde, de que modo. Si0 nogies como ade agente, paciente, instrumento, expetenciador, et * Ch Cerio, 1996. * Acsrrarura argumental diz respeito 3 relagio entre 0 verbo e seus argumentos ese refere no s6 a0 mimero, mas ‘também 20 ripe de argumento que um predicado toma Linguistica e ensino Reservamos para a parte final deste livro um capitulo dedicado a interface lingiifstica/ensino. Conforme vimos no capitulo “Lingiiistica”, um dos momentos em que os estudos lingiisticos tém tentado conttibuir no sentido de que seus resultados de pesquisa possam ter um retorno social, um carter de maior “tilidade publica”, digamos assim, & justamente quando estio voltados pare as questées rclativas a0 ensino de lingua, seja esta materna (L1) ow estrangeira (L2), Dedicatemos este capitulo & exposigao sobre as diferentes concepgdes de lingua ¢ gramdcica eseu impacto sobre o ensino de lingua, Na verdade, no se trata de um capitulo especifico sobre lingifstica aplicada (1), ramo da lingifstica que se dedica ao estudo de varios aspectos relacionados a lingua em situagdes reais de comunicagao e interacio, tais como oensino de lingua materna estrangeira,ascrencas, os valoresea questo do processo de consttugio de identidades em contextos instiucionais variados, entre outros aspectos. ponto importante ser ressaltado aqui é que a lingua, sob a perspectiva da LA, € tomada em seu aspecto pragmatico ¢ interacional, centrada no uso do cédigo, e nio no cédigo em si, o que implica pensar, segundo Moita Lopes (1998:52), “nas priicas deuso da linguagem em tempos, lugares, sociedades e culturasespecificas,relagdes antes consideradas extralingiifsticas, e, portanto, fora do escopo des ciéncias lingiisticas”, Nasegdo que segue, trataremos das definiges econcepyes de lingua e gramética € das implicagées das referidas perspectivas e abordagens em relagio ao ensino. Concep¢ées de linguagem O primeiro desafio a ser superado na abordagem do bindmio lingiiisticalensine € 0 de se chegar & resposta da seguinte pergunta: A partir de que concepese ae 236 Manual de linguiistica linguagem serio tratadas as questées lingtiisticas? Conforme Geraldi (1997), esse € um ponto crucial e fundamental para a outra indagagio que deve se constituir na reflexio maior dos docentes da drea de letras: Para que os alunos aprendem o que aprendem nas salas de aula de lingua? Conforme vimos ao longo da unidade “Abordagens Lingiiisticas”, ha diversas e contrastivas, ou complementares, formas de pensar ecompreendero fendmeno lingt cada qual com sua validade e contribuigéo para o maior conhecimento dessa entidade tio complexa. Ocorre que, ao fazermos opcio por uma dessus maneiras de tratamento, estamos fazendo muito mais do que somente a eleicio de uma perspectiva de abordagem. ico, ‘Automaticamente estamos aderindo a determinadas priticas e metodologias, a um aparato teérico especifico ¢ a objetos de andlise mais ou menos definidos. Assim, ao adotarmos um enfoque estruturalista — que vé a lingua como um sistema virtual, abstrato, apartado das influéncias das condigées interacionais ~ ou um enfoque gerativista ~ para 0 qual a gramaitica das linguas é um processo mental € inato, fundado num conjunto de principios universais -, estamos, na verdade, assumindo uma concepsio formalista de linguagem. Lidar com o fendmeno lingitistico nessa perspectiva € traté-lo de modo abstrato, considerando-o objeto tinico de investigacio. De acordo com tal perspectiva, nao importa a andlise quem, como, quando ‘ou para que (se) faz uso da lingua, uma vez que o que est no foco da atencio ¢ téo- somente a prdpria estrucura lingtiistica, de certa forma descolada de todas as interferéncias comunicativas que cercam sua producto € recepsio. Em termos de ensino, assumir uma concepgio formalista significa considerar a linguagem uma entidade capaz de encerrar ¢ veicular sentidos por si mesma, de expressar 0 pensamento. De modo geral, a vertente dos chamados “estudos tradicionais”, incluidos af os gramaticais, situam-se nessa perspectiva. A perspectiva formalista trata, assim, de uma concepsio antiga e de forte prestigio, que concorreu muito concorre ainda na formagio dos docentes de letras. As nogoes de certo e de cerrado, as tarefas de analise lingiistica que ficam apenas no ambito da palavra, do sintagma ou da oracio, a atividade de interpretacio de textos como 0 exercicio da procura do verdadeiro sentido ou do que o autor quer dizer sao poucos dos muitos cxemplos que poderiamos citar de priticas envolvidas nas salas de aula sob a luz da concep¢io formalista da linguagem. Outro contexto em que verificamos, numa distinta versio, a presenga dessa concepgio € 0 tratamento da linguagem como fendmeno de comunicarao e expresito, com base no consagrado quadro de fungdes da linguagem proposto por Roman Jakobson, um dos mais importantes membros do Circulo Lingifstico de Praga, munidade académica de tendéncia fimncionalista. Ocorre que, embora para 0 Circulo 22 fosse concebida como um sistema funcional por conta do carster de finalidade, ito comunicativo com que era tratada a atividade lingiiistica, parece ter propés Lingtisticaeensno 237 havido, em termos de ensino, certa incompreensio dessa proposta, com sua reduc @ um conjunto estruturado das seis “fungdes da linguagem” Assim, na década de 1970, a influéncia desse tratamento chegou aré oficial com a fixagio do rétulo “comunicacdo e express de Iingua materna no ambito do “primeiro grau” de entio, equivalence 20 hoje denominado “ensino fundamental”, Por conta da nova tendéncia, os livros passaram a incluir, ao lado da descrigio fonético-fonoldgica e morfossintitica da lingua portuguesa, dos exercfcios de leitura, de interpretagio e de redacio, um detalhamento dos elementos envolvidos na situagio comunicativa ~ emissor, receptor, cédigo, mensagem, canal e contexto. Com base na centragio ou preponderancia da atuagdo de cada um desses elementos, foram apresentadas ¢ classificadas as fungoes da linguagem, 0” para referéncia 20 ensino laticos respectivamente: emotiva, conativa, metalingiiistica, poética, fitica e referencia. Nos dias atuais, devido & incompreensio ja mencionada por parte de pesquisadores, liticos € legisladores, que reduziu a proposta de Jakobson a um esquema estruturado de seis fungoes, tendemos a compreendé-la como de carter mais formal do que funcional, Embora sejam considerados os constituintes da situagio comunicativa, esses clementos so descritos ¢ tratados jeais, prontas a cumprit cada uma seu papel virtual sem maiores problemas ou interferéncias que possam abalar professores, autores de livros di fora de contextos reais de interagao, como entidades as condigdes de comunicagao. Dessa forma, apesar de os funcionalistas do Circulo de Praga terem alargado 0 foco de tratamento do fendmeno linglifstico, os materiais didéticos restringiram as concepgdes de lingua e cédigo formuladas por Jakobson especialmente aos seis constituintes envolvidos na comunicagdo apenas, tratando-os estruturalmente ¢ desvinculados dos aspectos interacionais, nao superando a concepcao formalista da ingua. Vale ressaltar que “a contribuicdo de Jakobson para os estudos enunciativos se insere no campo daquilo que ele considera a “ monolitica da linguagem ¢ 0 reconhecimento e da interdependéncia no inte uma mesma lingua” (Machado, 2001: 52). Nos materiais didaticos de ensino de lingua, geralmente 0 denominado “livro do professor”, manual que traz as respostas aos exercicios do livro correspondente do aluno ou o conjunto de orientagies didaticas para utilizagao do livro didatico, ilustra também a concepgio formalista da linguagem como instrumento de comunicagio. Trata-se de um material que, em geral, propde uma série de instrugdes para o procedimento do professor, desconsiderando maiores especificidades envolvidas na ecessidade de revisio da hipdtese F de questo do ensino-aprendizagem, como a regiio onde se localiza a escola, o perfil do aluno e do professor, as condigdes histérico-culeurais que cercam e marcam a experiéncia com a linguagem, entre muitas outras. 238 Manual de lingiistica A outta vertente de concep¢io da linguagem, que contrasta com a que acabamos de apresentar, é a que podemos chamar, em termos getais, de concepcio fiancional e _pragnitica. O que a marca é visio do fendmeno lingiistico como produto e proceso dla interagio humana, da atividade sociocultural. Segundo tal concepcio, os sentidos veiculados pelas estruturas da lingua tém relagéo motivada, o que significa que estas so moldadas em termos daqueles. De modo geral, podemos dizer que do capitulo “Sociolingifstica” ao capitulo “Lingiifstica textual” encontramos uma concepgio funcional, em que se destaca a questo do uso da linguagem como resultante das condigées intra ¢ extralingtiisticas de sua produgio e recepcio. No ambito da sociolingiiistica, por exemplo, as formas da lingua sio vistas como portadoras de marcas resultantes da interferéncia de fatores sociais, como escolaridade, localidade, sexo, profisséo, entre outros. Nesse tipo de abordagem entendem-se os diversos usos lingtifsticos como contextos reveladores da pluralidade e diversidade de lugares sociais cocupados pelos membros de uma comunidade. A influéncia da abordagem sociolingtifstica, também chamada “variacionista”, no ensino de ingua materna no Brasil tem histéria recente e mais efetiva, em termos gerais, a partir da tiltima década do século xx. Ha intimeras publicagGes na rea em tomo da sociolingiiistica na sala de aula, tratando dos aspectos que dizem respeito as variagdes no uso da lingua ¢ sua relagio direta com o ensino. Quando as aulas de portugués se voltam para a obscrvacio e anilise de distintos ¢ especificos usos lingtifsticos — como as girias, os jargdes profissionais, as marcas dialetais das diversas regides brasileiras, entre outras manifestagdes , relacionando esses usos com os fatores sociais que cercam os grupos que assim se expressam, assume-se uma forma especifica de concepgao funcional de linguagem. Uma das grandes contribuigées daabordagem variacionista para ensino delingua foi a possibilidade efetiva de se superar o tratamento estigmatizado dos us0s lingiifsticos por intermédio da consideracao de que todas as express6es tém sua legitimasao € motivacio justificadas pela multiplicidade de fatores intervenientes do ambito social. Com base nessa perspectiva, a chamada “norma culta” ou “lingua padrio” passa a ser vista como mais uma variante de uso, uma forma de expressio tao eficiente como todas asoutras que circulam na comunidade lingiiistca, queassumea posicio de forma modelar cexemplar do “bom” uso idiomético mais por raz6es extralingiiisticas, ligadas a situagio de prestigio (social, politico, cultural, financeiro, por exemplo) do grupo que a detém. Assim, a norma culta passa a ser entendida como uma, entre outras tantas possiveis, marca de status social; seu dominio é entendido como o aprendizado de uma pritica necesséria & ocupagio dos postos de prestigio, uma ferramenta capaz de concorrer para a ascensio a lugares de maior visibilidade ¢ métito social. Outra contribuigao efetiva da abordagem variacionista esté relacionada com a formagio de professores, notadamente os de lingua materna, Por intermédio das lingtiisticaeensino 239 contribuig6es da abordagem sociolingiistica, pode o professoriniciarseu trabalho a partic dos usos de seus alunos, incorporando c valorizando essa expressio em suas aulas. No nos esquegamos de que, nos dias atuais, com a democratizacio do ensino em nivel nacional, 2s chamadas “classes populares” tém acesso a escolarizagio,¢ esses grupos expressamse por marcas linglisticas especificas muitas vezes distantes e distintas da chamada norma culca da lingua, mas nem por isso menos eficientes ou lingiiisticamente inferiores. Portanto, cabe a escola munir-se de instrumental teérico e metodolégico eficiente para lidar com esses novos alunos, cidadios brasileiros com dircito a uma educacio de qualidade. Nesse sentido, uma das primeiras tarcfas da escola é a consideracéo dos usos lingilisticos desses alunos como formas genuinas de expressdo da lingua Portuguesa, convenientes ¢ adequadas & sua insergio social, A partir da experiéncia educacional, deverao ser apresentadas as demais variantes sociolingiiisticas do Portugués, dentre as quais se destaca, como forma prestigiada de expressio, a norma culta, em sua modalidade falada ¢ escrita, que cabe também 8 escola trabalhar, considerando sempre o cariter politico e ideolégico que recobre essa questio. Infelizmente, os manuais didsticos, embora jé apresentem a preocupagio em apontar para os diferentes usos da lingua, o fazem, em geral, de forma desvinculada das situages reais de comunicacio, isto é, desconsiderando as relagGes entre lingua ¢ homem ¢ entre este ¢ seu meio social. O material didtico di isponivel no mercado, em geral, ainda mancém a visio uniforme e homogénea da lingua, seja na forma de concebé-la, seja no modo com que elabora os enunciados c estrutura as unidades, As denominadas “correntes funcionalistas”, apresentadas a partir do capitulo “Sociolingiistica”, inserem-se, como o préprio nome indica, nessa concep¢ao funcional ‘mais ampla. Dois pressupostos bisicos orientadores da abordagem funcionalista podem set considerados valiosos pata a atividade de ensino de lingua a) 0s usos lingiisticos sio forjados ¢ organizados nos contextos de interagio, nas situag6es comunicativas e, a partir dai, se sistematizam para formar as rotinas ou padrées convencionais de expressios b) as Fungdes desempenhadas pela lingua séo motivadas por fatores externos, € € possivel em alguns niveis de andlise, como o textual e 0 morfossintético, se chegar a depreensio dessas fungoes. Desse aparato tebrico destacamos como subsidio 20 ensino de lingua a concepcio de gramética, entendida, nesse contexto, como o conjunto de regularidades fixadas e definidas pela comunidade lingitistica como as formas ritualizadas de uso, ou seja, aquelas que se tornam rotineiras ¢ se constituem como valor de troca e interagéo entre 0s usudrios. Assim, quando, no trato dos contetidos gramaticais, a escola privilegiar as questdes mais regulares, as expresses de maior freqiiéncia, ou debrucat-se sobre tuma investigagéo de categorias que passa do que & mais sistemético e geral para, postetiormente, lidar com as chamadas “exceges”, ela estard efetivamente trabalhando com base num enfoque funcionalista 240 Manual de lingtistica Em termos de avaliagao, esse entendimento de gramatica pode responder satisfatoriamente aalgumas quest6es sobreas quais reflctem hoje os professores delingua, taiscomo:a) O queé saber gramatica”?; b) Para que conhecere sistematizar os contetidos gramaticais?; c) Como se verifica ou se avalia a aprendizagem de uma categoria gramati- cal—pelo conhecimento deseus representantes mais gerais ou dos casos raros, as excegies? Como a abordagem funcionalista tem seu foco de investigacio mais amplo, tratando nao s6 dos constituintes que se limitam ao periodo, mas chegando 3 andlise da instancia textual, algumas das questoes examinadas por essa abordagem séo de interesse para as aulas de lingua. Nos dias atuais, em que o magistério se pergunta como lidar com o texto em sala de aula sem transformé-lo em pretexto para continuar privilegiando antigas priticas de ensino de contetidos gramaticais, a abordagem funcionalista pode realmente trazer alguma luz a essa indagagao. ‘Com 0 advento da pragmatica, a concepgao funcional do ensino de lingua enriquece-se pela incorporagio, na investigagao do fendmeno lingtiistico, de elementos constitutivos dos contextos externos de produgio e de recep da linguagem sob 0 ponto de vista da interagao entre as pessoas. Ganham destaque os modos de dizer, as intengoes (conscientes ou nao) comunicativas, as informagoes implicitas, a eficécia do ato de fala, isto é as condigdes de felicidad desse ato; enfim, privilegia-se o contexto extralingiistico € 0 ponto de vista do usuario da lingua para se atingir os sentidos veiculados pelo texto. Da abordagem pragmética podemos citar algumas contribuicées relevantes para o io, que focam nao especificamente os contetidos veiculados, mas os modos de producio e de organizacio do dizer; b) a investigacio das formas de comportamento eexpressio de sentimentos, calcadas nateoriada polidez, deacordo coma cultura de cada comunidade;.c)arelevincia do caréter interacional da linguagem, da necesséria e previsivel presenga do outto, do interlocutor, a quem se dirige qualquer mensagem veiculada, em versio falada ou escrita. A luz dessas perspectivas 0 professor passa a ser visto e também a agit como um mediador da tarefa de ensino-aprendizagem, deixando o lugar de centro, de primazia sobre um saber pré-concebido uma vez que, assim como o saber € co-construido, as relagbes humanas também o so, seja em que ambito ocorram. ensino-aprendizagem de lingua, como: a) os estudos sobre modalizaca Numa perspectiva marcadamente interacional, como € hoje concebida ¢ proposta a tarefa de ensino de lingua, a abordagem funcional-pragmética tem muito a contribuir na formacdo dos professores, na conscientizacio do deslocamento de seu papel, que passaa set 0 de intermedidrio da experiéncia com o uso lingiiistico. Notemos que nao se trata da diminuigao ou do desprestigio da tarefa de docéncia, mas da mudanca na centragio do grau e da amplitude dessa ago, que passa a recair no conjunto dos elementos envolvidos na atividade interacional, da qual faz parte 0 professor como um interlocutor privilegiado, um mediador mais experiente que ird concorrer para que seus alunos usem efetiva e eficientemente os recursos linglisticos de produzirem e receberem textos com competéncia. Uinguisticae ensno 241 ‘Mas, como afirmamos no inicio deste capitulo, se as concepgdes de lingua © gramitica se alteraram em fungio das novas abordagens e perspectivas adotadas em relagao ao conhecimento teérico, estendendo-se para as nogdes de uso ¢ interacso cabe também ao professor assumir 0 papel que de fato Ihe diz respeito. © professor leitor/(co)produtor de saberes, estudando ¢ pesquisando, atualizando-se nas novas Pesquisas que envolvem o seu trabalho a fim de optar por concepgdes de lingua e gramética afinadas teérica e metodologicamente com os avangos cientificos produzidos para, assim, desenvolver préticas de ensino transformadoras. As dimensées social, funcional, interacional e pragmatica incorporadas 3 nocio de lingua possibilitam a inclusdo da nogio de sujeito. Nao se trata do sujeito teérico. mas de um sujeito real inserido em situagdes concretas, com papéis sociais miltiplos ¢diversificados, sobretudo aqueles pertencentes &s sociedades urbanas ¢ industrializadas © em constante processo de adaptagao ¢ readaptacao. Assumir uma perspectiva te6rico-metodolégica implica assumir crencas e valores acca vinculados. Tais crengas ¢ valores estio relacionados a questio de apropriacio de conhecimento e & forma com que essa apropriagio € realizada, No tocante 4 aquisicio do conhecimento, ¢ imprescindivel lembrar que, se estamos reivindicando uma pritica democritica de ensino, com uma perspectiva de lingua distante do conceito de homogeneidade e idealizacao do modelo lingistico, ¢ preciso ressaltar a importincia do modo como tais priticas so apropriadas e incorporadas pelos alunos de diferentes classes sociais. E preciso haver espago possivel para a circulagio de formas plurais de conhecimento e, conseqiientemente, de linguagem e de tantas competéncias pragmitico-discursivas para quantas manifestagdes de comunicacio ¢ expresso houver. Como propde Orlandi (1993: 93} Dessa maneira, consideto que se deva, de um lado, reivindicar, politicamente, 0 dircito de acesso a0 conhecimento legitimo e, de outro, estabelecer condicdes para que se claborem outras formas de saber que nao sejam a mera reproducio do conhecimento dominante, J4 que as diferentes formas de saber tém fungées sociais distintas ¢ que derivam sua diferenga dos antagonismos das clases. Exercicios 1) Para responder & questio que se segue, consulte um livro diditico de sua escolha. Observe © mmaie ‘como as unidades sio apresentadas em termos da concepsio sobre o trabalho de texto (intexpeceas lingua (gramitica) ¢ redagio, Caso 0 livro seja assim conecbido ou nio {hd obras em que cms dieie pode estar implicita), detenha-se particularmente na segio referente aos aspectos gramaicaie de lingua. Comente a respeito do modo como o autor do livro diditico entende o fendmen gram ‘ou melhor, como ele concebe o ensino de lingua, justifieando seus comentirios cam Base ene te tum dos t6picos citados a seguir.

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