Você está na página 1de 52
Eprror: Marcos Marcionilo Cara € Proseto Grisico: Andréia Custédio Iuustracdss: Renata Junqueira/ Bamboo Studios [www.bamboostudio.com.br] Conseuo Eorroniat Ana Stahl Zilles (Unisinos} Carlos Alberto Faraco [UFPR] Egon de Oliveira Rangel [PUCSP] Gilvan Miller de Oliveira [UFSC, ipo} Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela] José Carlos Sebe Bom Meihy [NEHO/USP] Kanavilit Rajagopalan (Unicamp} ‘Marcos Bagno [UnB] ‘Maria Marta Pereira Scherre [UFRJ, Un8} Rachel Gazolla de Andrade (PUC-SP] Salma Tannus Muchail [PUC-SP} Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB} CIP-BRASIL. CATALOGACAO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI a5 Bago, Maro, 1961 Nada na ingua €or caso: or uma pedagogia da vaacolngistica/acos Banna dof ul: Pahl tor, 207 (baucaaolngitica;1) Incl bibngeatia ISBUSTE 8S S855 62-4 | Lingua portuguesa sto ensina 2. Lingua portuguesa - Vara -Estudo€ sino Tu er ras 069.756 ua A320 Direitos reservados a PARABOLA EDITORIAL Rua Clemente Pereira, 327 - Ipiranga 04216-060 So Paulo, SP Fone: [11] 6914-4932 | Fax: [11] 6215-2636 home page: www,parabolaeditorial.com.br e-mail: parabolaaparabolaeditorial.com.br ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podeserreproduzcda ‘outransmitda po qualquer forma e/ou quaisquer meioseletrénico oume- énico,incluindofotocdpia e gravacdo) ouarquivada em qualquer sistema ‘ou banco de dados sem permissao por escrito da Parabola Editorial Ltda, ISBN: 978-85-88456-62-4 © do texto: Marcos Bagno, 2007 © da edigao: Pardbola Editorial, S40 Paulo, fevereiro de 2007 Mas 0 que € mesmo variacao linguistica? Ailusao da lingua homogénea $ pessoas que vivem em sociedades com uma longa tradigao escrita, com uma histéria literaria de muitos séculos e um sis- tema educacional organizado se acostumaram a ter uma idéia de /ingua muito influenciada por todas essas instituigdes. Para elas, sO merece 0 nome de /ingua um conjunto muito particular de prontincias, de palavras e de regras gramaticais que foram cuidadosamente selecionadas para compor 0 que vamos chamar nesse livro aqui de_norma-padrdo, isto é, 0 mo- A gente vai estudar mais demorada- delo de lingua “certa”, de “bem falar” que, nes- ‘Mente no capitulo 3 o proceso his- t6rico de constituigéo da norma- sas sociedades, constitui uma espécie de tesou- ro nacional, de patrim6nio cultural que, assim como as florestas, Os rios, a flora, a fauna e os monumentos arquitetonicos, precisaria ser preservado da ruina e da extin¢ao... padrao do portugués. Ora, a escrita, a literatura e a escola sao instituig¢des eminentemente sociais, sao invencdes culturais, criacdes artificiais e muito recentes na historia da humanidade — as formas mais antigas de escrita tem menos de 6.000 anos, ou seja, durante 99% da historia da nossa espécie ninguém escreveu nem leu nada, e até hoje uma grande parcela dos seres humanos permanece assim, excluida da escrita e da leitura! Portanto, 0 que se convencionou chamar de “lingua” nas sociedades letradas 6, na verdade, um produto social, artificial, que nao corresponde aquilo que a lingua realmente 6. Mas sera que a gente pode mesmo pensar nesse modelo de lingua Mas 0 que é mesmo variagao lingiistica? como um produto, semelhante ao iogurte, ao vinho, a borracha, ao papel, ao azeite e a tantas outras invengdes humanas? Pode, mas com uma diferenga essa “lingua” 6 um produto de um tipo diferente, um produto sociocultural, elabo- rado ao longo de muito tempo, pelo esforgo de muita gente — por isso ela é uma grande abstracao ou, como se diz hoje em dia, um patriménio imaterial. Bem, entdo, se 0 que nds chamamos de “lingua” é so uma aparéncia, uma ilus€o nascida dos nossos habitos culturais e das nossas relacdes sociais, como é a lingua, de fato? A realidade heterogénea das linguas Ao contrario da norma-padrao, que é tradicionalmente concebida como um produto homogéneo, como um jogo de armar em que todas as peas se encaixam perfeitamente umas nas outras, sem faltar nenhuma, a lingua, na concep¢ao dos sociolingilistas, é intrinsecamente heterogénea, muiltipia, varidvel, instavel e esté sempre em desconstrugao e em reconstrugao. Ao contrario de um produto pronto e acabado, de um monumento histérico feito de pedra e cimento, a lingua é um processo, um fazer-se permanente e nun- ca concluido. A lingua é uma atividade social, um trabalho coletivo, empre- endido por todos os seus falantes, cada vez que eles se pdem a interagir por meio da fala ou da escrita. Justamente pelo carater heterogéneo, instavel e mutante das linguas huma- nas, a grande maioria das pessoas acha muito mais confortavel e tranqililizador pensar na lingua como algo que ja terminou de se construir, como uma ponte firme e solida, por onde a gente pode caminhar sem medo de cair e de se afoger na correnteza vertiginosa que corre lé embaixo. Mas essa ponte nao & feita de concreto, é feita de abstrato... O real estado da lingua é 0 das aguas de um rio, que nunca param de correr e de se agitar, que sobem e descem conforme o regime das chuvas, sujeitas a se precipitar por cachoeiras, a se estreitar entre as montanhas e a se alargar pelas planicies. Também ao contrario do que muita gente acredita, a lingua nao esta regis- trada por inteiro nos dicionarios, nem suas regras de funcionamento sao exa- tamente (nem somente) aquelas que aparecem nos livros chamados grama- ticas. E mais uma ilusdo social acreditar que é possivel encerrar num Unico livro a verdade definitiva e eterna sobre uma lingua. Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao lingilistica Com tudo isso, a gente esta querendo dizer que, na contramao das cren¢as mais difundidas, a variac¢éo e a mudan¢a linguisticas @ que sao o “estado natural” das linguas, 0 seu jeito proprio de ser. Se a lingua é falada por seres humanos que vivem em sociedades, se esses seres humanos e essas socie- dades sao sempre, em qualquer lugar e em qualquer época, heterogéneos, diversificados, instavels, sujeitos a conflitos e a transformagdes, o estranho, 0 paradoxal, o impensavel seria justamente que as linguas permanecessem estaveis e homogéneas! Por isso, nao tem sentido falar da variacao lingilistica como um “problema” Vira e mexe recebo mensagens de pessoas que perguntam como tratar em sala de aula o “problema da variagao". Podemos comecar respondendo que 0 problema esta em achar que a variaco lingtiistica é um “problema” que pode ser “solucionado”. O verdadeiro problema é considerar que existe uma lingua perfeita, correta, bem-acabada e fixada em bases solidas, e que todas as inumeras manifestagdes orais e escritas que se distanciem dessa lingua ideal sao como ervas daninhas que precisam ser arrancadas do jardim para que as flores continuem lindas e coloridas! Assim, nado sao as variedades linguisticas que constituem “desvios" ou “distorcdes” de uma lingua homogénea e estavel. Ao contrario: a construgéo de uma norma-padrao, de um modelo idealizado de lingua, 6 que represen- ta um controle dos processos inerentes de variagao e mudan¢a, um refreamento artifi- cial das forgas que levam a lingua a variar e a mudar — exatamente como a construgao de uma barragem, de uma represa, impede que as aguas de um rio prossigam no cami- nho que vinham seguindo naturalmente nos ultimos milhdes de anos. Vamos pensar no caso do Brasil. Sem duvida, a nossa sociedade €, sob os mais diversos pontos de vista, uma das mais heterogéneas do mun- do. Em qualquer rua movimentada de uma cida- de brasileira passam — a pé, de carro, de éni- bus, de bicicleta, de motocicleta, de cadeira Ao contrario do que declaram algu- mas pessoas desavisadas, os lingitis- tas ndo consideram 0 processo de constituicdio de uma norma-padrao como uma coisa intrinsecamente negativa. Eles sabem que a vida social é regulada por normas, entre as quais esto as normas de compor- tamento lingiiistico. Os lingitistas simplesmente chamam a atengao para 0 fato da normatizacao da Ifn- gua ndo ser um processo “natural”, mas sim 0 resultado de agdes huma- nas conscientes, ditadas por necessi- dades politicas ¢ culturais, e nas quais impera freqiientemente uma ideologia obscurantista, dogmatica ¢ autoritdria, Alguns lingitistas (mas nem todos!) acreditam que uma norma-padrao poderia até ser um elemento cultural desejavel, desde que constituida com 0 auxilio da pesquisa cientifica e com base em Projetos sociais democraticos ¢ no- excludentes. Mas 0 que & mesmo variacao lingtistica? de rodas, as vezes até a cavalo... — pessoas de ambos os sexos, das mais diferentes faixas etarias, de multiplas origens étnicas, de todas as Classes sociais, de todos os graus de escolaridade, das mais diferentes profissdes, das mais diferentes religides, de diversas orientacgdes sexuais, de diferentes opinides politicas, vestidas de todos os modos possiveis etc. Como seria possivel imaginar que toda essa gente, tao diversificada em tudo 0 mais, tivesse que falar a sua lingua sempre da mesma maneira? Heterogeneidade lingilistica e social O objetivo central da Sociolingtlistica, como disciplina cientifica, € precisamen- te relacionar a heterogeneidade linguistica com a heterogeneidade social. Lin- gua e sociedade estao indissoluvelmente entrelagadas, entremeadas, uma in- fluenciando a outra, uma constituindo a outra. Para o sociolinguista, é impossi- vel estudar a lingua sem estudar, ao mesmo tempo, a sociedade em que essa lingua é falada, assim como também outros estudiosos — socidlogos, antropé- logos, psicdlogos sociais etc. — ja se convenceram que nao da para estudar a sociedade sem levar em conta as relagdes que os individuos e os gru- iA pos estabelecem entre si por meio da linguagem. Assim, 0 que temos nas sociedades com- plexas e letradas é uma realidade lingtis- tica composta de dois grandes pdlos: (1) a va- riaco linguistica, isto 6, a lingua em seu es- mn tado permanente de : a transformacao, de flui- d = dez, de instabilidade e * b (2) anorma-padrao, produ- ig) “to cultural, modelo artificial °) 2 de lingua criado justamente £ para tentar “neutralizar” os efei- Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica tos da variacao, para servir de padrao para os comportamentos lingtiisticos considerados adequados, corretos e convenientes. Entre esses dois polos, existe uma grande zona intermediaria, em que a nor- ma-padrao influencia a variacao lingUistica e a variagao lingUistica influencia a norma-padrao. Por isso, mesmo reconhecendo que a norma-padrao é um produto cultural, uma “lingua” artificial, por assim dizer, a gente nao pode deixar de reconhecer que ela existe — ainda que somente no nivel do discur- so, da ideologia —, faz parte da vida social, e tem que ser levada em conta sempre em toda investigacao sobre lingua e sociedade. O conceito de variacao lingUistica é a espinha dorsal da Sociolinguistica. Para ajudar a gente a compreender esse fendmeno complexo e fascinante, os sociolinguistas formularam alguns conceitos e definigdes, todos derivados do verbo variar. E importante ter clareza dessa terminologia para evitar emprega- la de forma equivocada como, infelizmente, acontece com muita frequéncia Variagao O primeiro desses conceitos, como ja vimos, € 0 de variagao. Dizer que a lingua apresenta variagao significa dizer, mais uma vez, que ela € heterogé- nea. A grande mudanc¢a introduzida pela Sociolingilistica foi a concepcdo de lingua como um “substantivo coletivo”: debaixo do guarda-chuva chamado Lincua, no singular, se abrigam diversos conjuntos de realizagdes possiveis dos recursos expressivos que estado a disposigao dos falantes. A variacao ocorre em todos os niveis da lingua: © variacdo fonético-fonologica > pense em quantas prontincias vocé conhece para 0 R da palavra PorTA no portugués brasileiro; “Quase me apetece dizer que ndo hd uma lingua portuguesa, hd linguas em portugués.” (Jost Saraaco, escritor portugués, em depoimento registrado no filme Lingua: vidas em portugués, dirigido por Victor Lopes e exibido no Brasil em 2004). ‘Mas o que é mesmo variagao linguistica? B® variacao morfoldgica > as formas PEGAJOSO e PEGUENTO exibem sufixos diferentes para expressar a mesma idéia; ® variacao sintatica > nas frases UMA HISTORIA QUE NINGUEM PREVE O FINAL / UMA HISTORIA QUE NINGUEM PREVE O FINAL DELA / UMA HISTORIA CUIO FINAL NIN- GUEM PREVE, O sentido geral € 0 mesmo, mas os elementos estao organiza- dos de maneiras diferentes; ® variagaéo semantica > a palavra vexame pode significar "vergonha” ou “pressa", dependendo da origem regional do falante; B® variagao lexical > as palavras muo, xix! € URINA se referem todas a mes- ma coisa; B variacao estilistico-pragmatica > os enunciados QUEIRAM SE SENTAR, POR FAVOR € VAMO SENTANO Al, GALERA Correspondem a situagdes diferentes de interagao social, marcadas pelo grau maior ou menor de formalidade do ambiente e de intimidade entre os interlocutores, e podem inclusive ser pronunciados pelo mesmo individuo em situagdes de interacao diferentes. Heterogeneidade, sim, mas ordenada Um dos postulados basicos da SociolingUistica € 0 de que a variacéo nao é aleatoria, fortuita, cadtica —- muito pelo contrario, ela é estruturada, organi- zada, condicionada por diferentes fatores. Dai o titulo do nosso livro ser: Nada ha lingua é por acaso. A Sociolinguistica trabalha com o conceito de heterogeneidade ordenada. Vamos ver 0 que é isso. Pronuncie com cuidado as duas palavras abaixo: RASPA RASGA Observe que na primeira palavra aparece um som [s], enquanto na segunda aparece um som [z], embora as duas se escrevam com a mesma letra s. Por qué? Muito simples: 0 s de RasPa vem antes de um /p/, que 6 uma consoante surda, isto €, produzida sem a participacao das pregas (ou cordas) vocais, e por isso 0 $ se pronuncia como [s], que também 6 um som surdo. Ja no caso de RASGA, O S esta diante de uma consoante sonora, 0 /g/ (produ- zida com a participacao das pregas vocais), e por isso ele se realiza como um [z], que também é€ uma consoante sonora. E 0 contexto fonético, ou seja, a influéncia de uma consoante sobre a outra, que vai explicar, neste caso, a Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica variacao [s] ~ [2]. A sonoridade (ou vozeamento) de um fonema vai provocar asonorizacao do outro; a nao-sonoridade (ou néo-vozeamento) de um fonema vai provocar a néo-sonoridade do outro. Aqui estamos diante de um fendmeno de variagdo que esta condiciona- do apenas lingulisticamente — todo e qualquer falante de portugués, in- dependentemente de sua origem social ou regional, sexo, grau de esco- laridade etc., vai apresentar, na sua fala, essa alternancia [s] ~ [z] em Pares COMO RASPA/RASGA, ESCAMA/ESGANA, FISCO/FISGO, DESTINO/DESMA\O etc. E um fendmeno tao impregnado na lingua que ninguém se da conta dele, ele nao chama a aten¢ao, nado desperta nenhum tipo de reacgao negativa ou positiva da parte dos falantes, que nem sequer tém consciéncia de que ele acontece. A coisa ja muda de figura quando, com 0 mesmo par de palavras raspa/ RASGA, acontece a seguinte variacao RASPA ————— RASGA | ! ’ i] [3] N.B.: 0 simbolo [f] representa o som do x em xixi, € 0 [3] representa o som do em4A. Quando um falante que pronuncia ra[s]Pa ouve uma pessoa pronunciar ra[s]PA, com 0 “s chiado”, essa variacéo de pronuncia logo chama a atengao, provo- ca alguma reacao da parte do primeiro falante, que tem consciéncia da diferen¢a — 6 muito - Alias, se vocé € falante do “s chia- provavel que procure identificar seu interlocutor . » Percebeu a alternancia [f] ~ [3] Jogo no primeiro caso. Se comega- como proveniente de um estado ou de uma re- mos pelo outro par é porque cu gido diferente da sua) }+—_-____-______ mesmo, autor do livro, nao sou fa- lante do “s chiado”... Aqui estamos diante de um tipo de variagao que nao € condicionada apenas lingUisticamente, mas também extralinguistica- mente, isto €, condicionada por algum fator de ordem social — neste caso, a origem geogrdafica do falante. No portugués brasileiro, diversas areas geogra- ficas apresentam 0 “s chiado”, como 0 Rio de Janeiro, o Para, 0 Nordeste em geral, zonas do Mato Grosso, algumas comunidades da ilha de Santa Catarina (onde fica Florianopolis), entre outras. ‘Mas 0 que € mesmo variago linguistica? Outro exemplo da heterogeneidade ordenada, des- ta vez no plano morfossintatico, esta nos casos variaveis de concordancia nominal. Observe as trés frases abaixo: (a) aquelas casinha amarelinha (b) *aquela casinhas amarelinha (c) *aquela casinha amarelinhas Somente a frase (a) ocorre no portugués bra- sileiro, enquanto (b) e (c) nao ocorrem (por isso, est&o assinaladas com um asterisco, simbolo usado pelos linguistas para identificar uma construgao improvavel ou impossivel). A fra- se (a) € usada por praticamente todos os bra- sileiros, inclusive os altamente escolarizados em situagdes de fala espontaneas, distensas. Dai se deduz claramente que existe uma regra por tras dessa construcao, uma regra que diz: , regra que é per- feitamente obedecida por todos os que se servem dela. Atengao! A palavra REGRA esta sendo usada aqui com um sentido muito diferente daquele que aparece nas gramaticas normativas. Ali, regra é uma espécie de “lei” que dita e impde o que é “certo” e condena o que é “errado”. Na perspectiva cientifica, regra 6 tudo aquilo que revela uma regularidade (as palavras regra e regular tem a mesma origem). Quando conseguimos detectar e descrever aiguma coisa que acontece na lingua com regularidade, com previsibilidade, segundo uma ldgica lingulistica coe- rente, fazemos essa descrig¢ao na forma de uma regra (como a que enun- ciei acima: ). Quando, no discurso do senso comum, se diz que determinado uso vai “contra as regras da lingua” ou “desobedece as regras do portugués”, 0 que se esta querendo dizer é que tal uso desrespeita as regras exclusivas e excludentes, padronizadas e escolhidas artificialmente como as “cer- tas" pela tradigao normativa. Usos COMO AQUELAS CASINHA AMARELINHA OU VOCE SABE QUE EU TE AMO OU O TIME QUE EU TORGO etc. sdo perfeitamente regrados, e a prova maior disso é justamente a regularidade com que eles ocorrem na lingua! Com isso, fica claro que é simplesmente impossivel Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacdo linguistica desrespeitar as regras da lingua, simplesmente porque é impossivel fa- lar sem obedecer regras lingijisticas! A heterogeneidade ordenada tem a ver, entaéo, com essa caracteristica fas- cinante da lingua: o fato dela ser altamente estruturada, de ser um sistema organizado e, sobretudo, um sistema que possibilita a expressao de um mes- mo conteUdo informacional através de regras diferentes, todas igualmente légicas e com coeréncia funcional. E mais fascinante ainda: um sistema que nunca esta pronto, que o tempo todo se renova, se recompée, se reestrutura, sem todavia nunca deixar de proporcionar aos falantes todos os elementos necessarios para sua plena interacao social e cultural. E la- mentavel que uma coisa tao maravilhosa, complexa e apaixonante tenha sido reduzida, na tradigao escolar, a uma diviséo estupida entre “certo” e “errado”, ainda mais estupida porque se baseia em preconceitos sociais € culturais que ja deviamos ter abandonado ha muito tempo... Fatores extralingiiisticos Para fazer um trabalho de investigagao minucioso sobre a variacdo linglisti- ca, 0s sociolinglistas seleclonam um conjunto de fatores sociais que podem auxiliar na identificac¢aéo dos fendmenos de variacao linglistica. Que fatores sociais S40 esses? Dentre os muitos possiveis, os que tém se revelado mais interessantes para a pesquisa sdo os seguintes: © ORIGEM GEOGRAFICA: a lingua varia de um lugar para 0 outro; assim, podemos investigar, por exemplo, a fala caracteristica das diferentes re- gides brasileiras, dos diferentes estados, de diferentes areas geograficas dentro de um mesmo estado etc.; outro fator importante também é a origem rural ou urbana da pessoa; STATUS SOCIOECONOMICO: as pessoas que tém um nivel de renda muito baixo nao falam do mesmo modo das que tém um nivel de renda médio ou muito alto, e vice-versa; i GRAU DE ESCOLARIZACAO: 0 acesso maior ou menor a educacao for- mal e, com ele, cultura letrada, a pratica da leitura e aos usos da escrita, € um fator muito importante na configuragéo dos usos linglisticos dos diferentes individuos; © IDADE: os adolescentes nao falam do mesmo modo como seus pais, nem estes pais falam do mesmo modo como as pessoas das geragdes anteriores; Mas 0 que é mesmo variagao lingitstica? ® SEXO: homens e mulheres fazem usos diferenciados dos recursos que a lingua oferece; I MERCADO DE TRABALHO: 0 vinculo da pessoa com determinadas pro- fissdes e oficios incide na sua atividade lingilistica: uma advogada nao usa 0$ mesmos recursos lingliisticos de um encanador, nem este os mes- mos de um cortador de cana; B® REDES SOCIAIS: cada pessoa adota comportamentos semelhantes aos das pessoas com quem convive em sua rede social; entre esses compor- tamentos esta também o comportamento linguistico. AS pesquisas lingtisticas empreendidas no Brasil tem mostrado que o fator social de maior impacto sobre a variacao lingilistica 6 o grau de escolarizagao que, em nosso pais, esta muito ligado ao status socioecondémico: a escola de qualidade e a possibilidade de permanéncia mais prolongacia no sistema educacional séo bens sociais limitados as pessoas de renda econdmica mais elevada. Estudos sociolégicos apontam que existe uma relacéo muito estreita entre escolaridade e ascensdo social: os melhores empregos e os postos de comando da sociedade estdo reservados predominantemente aos cidadaos mais escolarizados. Com esse conjunto de fatores podemos estudar a lingua falada por grupos sociais especificos: como falam os jovens do sexo masculino, entre 18 € 25 anos, com escolaridade inferior a 4 anos, que vivem na periferia da cidade de S40 Paulo? Como falam as mulheres agricultoras do sertéo da Paraiba com mais de 60 anos, analfabetas? Como falam os homens com mais de 40 anos, com curso superior completo, com renda superior a dez salarios minimos, moradores da zona sul do Rio de Janeiro? Selecionando fatores sociais € fenémenos lingilisticos relevantes para o estudo, a pesquisa sociolinguistica permite que a gente faca um retrato bastante fiel de como é a realidade dos usos da lingua no Brasil Mas a variacao lingilistica nado ocorre somente no modo de falar das diferen- tes comunidades, dos grupos sociais, quando a gente compara uns com os outros. Ela também se mostra no comportamento lingilistico de cada indivi- duo, de cada falante da lingua. Nos variamos 0 nosso modo de falar, individual- ‘Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica mente, de maneira mais consciente ou menos consciente, conforme a situa- co de interagéo em que nos encontramos. Essa situacdéo pode ser de maior ou menor formalidade, de maior ou menor tensdo psicologica, de maior ou menor pressdo da parte do(s) interlocutor(es) e do ambiente, de maior ou menor inseguranga ou autoconfianga, de maior ou menor intimidade com a tarefa comunicativa que temos a desempenhar etc. Cada um desses tipos de situagao vai exigir do falante um controle, uma aten¢gado e um planejamento maior ou menor do seu comportamento em geral, das suas atitudes e, evidentemente, do seu comportamento verbal. Tudo isso pode ser sintetizado no conceito de monitoramento estilistico. O monitoramento estilistico € uma escala continua, que vai do grau minimo ao grau maximo, a depender de todos os fatores que acabamos de elencar: minimo ouaes0WUOWU OuwIxeU O monitoramento opera néo s6 na lingua fala- Esppregamos na Sociolingtistica os da, mas também na lingua escrita. Nao escre- termos estilo ou registro para desig- vemos um bilhete para 0 namo- nar a variacdo presente na fala de |. ss omen um individuo segundo a situa- escrevemos uma carta de apre- 40 em que ele se encon- tra, Para classificar os es- sentagao a uma empresa onde estamos tentando obter uma tilos ou registros, é mais adequado usar as grada- ball gdes de monitoramento vaga para trabalhar. (mais monitorado, menos OD monitorado etc.) do que Os sociolingilistas Let : certos termos vagos e im- enfatizam sempre . que nao existe fa- lante de estilo Unico: todo e qual- quer individuo varia a Sua maneira de falar, monitora mais ou menos o seu precisos como “estilo co- loquial”, “registro culto”, comportamento verbal, independente- mente de seu grau de instrugao, classe ® “estilo cuidado” etc. Mas 0 que é mesmo variacao lingtistica? social, faixa etaria etc. Trata-se de um comportamento que é adquirido muito rapidamente no convivio social, como € facil verificar observando a variagao dos modos de falar das criangas quando se dirigem a outras criangas da mesma idade, a criangas maiores, a adultos familiares, a adultos desconhecidos etc. 0 monitoramento da fala, sobretudo quando se trata de exibir respeito e conside- racao pelos outros, faz parte do aprendizado das normas sociais que prevale- cem em cada cultura, normas que sao apreendidas por observacao e imitacao, mas também ensinadas explicitamente as criancas pelos pais e outros adultos. No caso do monitoramento da escrita, ele vai depender, é claro, do grau de letramento do individuo, isto é, 0 grau de sua inser¢do na cultura da leitura € da escrita. Uma pessoa que foi alfabetizada, mas n&o ultrapassou os primeiros anos da escola formal nem criou o habito de ler e de escrever com freqliéncia, certamente nao vai dispor dos mesmos recursos de monitoramento estilistico de alguém que cursou a universidade, tem bom desempenho no dominio da escrita, conhece as convengées dos diferentes géneros textuais, maneja um vocabulario mais amplo e diversificado etc. O grau de letramento elevado tam- bém favorece, é claro, a produ¢ao de textos falados mais monitorados, em que a pessoa tenta reproduzir na oralidade mais formal tracos caracteristicos dos géneros textuais escritos mais monitorados. Classificagao da variacao sociolingiistica A variacao sociolingiistica costuma vir acompanhada, nos textos especializados, de alguns adjetivos que vale a pena conhecer: © variagao diatopica > é aquela que se verifica na comparacdo entre os. modos de falar de lugares diferentes, como as grandes regides, os es- tados, as zonas rural e urbana, as areas socialmente demarcadas nas. grandes cidades etc. O adjetivo DIATOPICO provém do grego DIA-, que signi- fica “através de", e de TOPos, “lugar” © variagao diastratica > € a que se verifica na comparagao entre os modos de falar das diferentes classes sociais. 0 adjetivo provém de DiA- e do latim stratum, “camada, estrato” ® variacdo diamésica > é a que se verifica na comparacao entre a lin- gua falada e a lingua escrita. Na andlise dessa variacdo é fundamental 0 conceito de género textual. O adjetivo provém de piA- e do grego mesos, “Meio”, no sentido de “meio de comunicacao” ‘Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao lingustica B variagao diafasica > é a variacao estilistica que vimos mais acima, isto 6, 0 uso diferenciado que cada individuo faz da lingua de acordo com o grau de monitoramento que ele confere ao seu comportamento verbal. O adjetivo provém de oIA- e do grego PHAsis, “expressao, modo de falar” © variacao diacrénica ~ é a que se verifica na comparacao entre diferen- tes etapas da histéria de uma lingua. As linguas mudam com o tempo (vamos ver isso mais de perto no capitulo 8) e o estudo das diferentes etapas da mudanca é de grande interesse para os lingllistas. O adjetivo provéem de bIA- e do grego KHRONOS, “tempo”. Variedade Outro conceito muito importante na Sociolingtistica € o de variedade lingiiisti- ca. Uma variedade lingilistica € um dos muitos “modos de falar” uma lingua. Como ja vimos, esses diferentes modos de falar se correlacionam com fatores sociais como lugar de origem, idade, sexo, classe social, grau de instru¢ao etc. Podemos delimitar e descrever quantas variedades lingUisticas quisermos, de acordo com os fatores sociais que incluirmos na nossa investigagao, como nos exemplos que dei mais acima: o modo de falar dos jovens do sexo mas- culino, entre 18 e 25 anos, com escolaridade inferior a 4 anos, que vivem na periferia da cidade de Sao Paulo é uma variedade lingulistica. O uso que fa- zem da lingua as mulheres agricultoras do sertéo da Paraiba com mais de 60 anos, analfabetas, € outra variedade. Os tracos lingiisticos caracteristicos dos homens com mais de 40 anos, com curso superior completo, com renda superior a dez salarios minimos, moradores da zona sul do Rio de Janeiro também constitui uma variedade especifica — e assim por diante... Partindo da nogdo de heterogeneidade, a Sociolinglistica afirma que toda lingua é um feixe de variedades. Cada variedade lingilistica tem suas ca- racteristicas proprias, que servem para diferencia-la das outras variedades. Por exempio, nem todas as variedades lingilisticas do portugués brasileiro apresentam 0 “s chiado” em final de silaba (Fe[J}ra) ou final de palavra (Fe[s]ra[s]); algumas variedades usam Tu como pronome de 2° pessoa, enquanto outras usam voce; a maioria das variedades que apresentam 0 TU eliminaram a ter- minagao -s na conjugacao verbal (Tu FALA, Tu COME), enquanto outras (poucas) conservam 0 -S (TU FALAS, TU COMES), € por ai vai Mas o que é mesmo variacao linguistica? Outro postulado fundamental da Sociolingtiistica é esse aqui: toda e qual- quer variedade lingiiistica € plenamente funcional, oferece todos os recursos necessarios para que seus falantes interajam socialmente, €é um meio eficiente de manuten¢ao da coesao social da comunidade em que é empregada. A idéia de que existem variedades linguisticas mais “feias" ou mais “bonitas”, mais “certas” ou mais “erradas”, mais “ricas” e mais “po- bres” € fruto de avaliacdes e julgamentos exclusivamente socioculturais € decorrem das relagdes de poder e de discriminagaéo que existem em toda sociedade — vamos tratar disso melhor no capitulo 3. Para o estudioso da linguagem, todas as variedades linglisticas se equivalem, todas tem sua logica de funcionamento, todas obedecem regras gramaticais que podem ser descritas e explicadas. Classificando as variedades lingiisticas Assim como a variacao lingtistica é classificada em tipos, também as varie- dades lingUisticas costumam ser designadas por nomes particulares: ® dialeto >é um termo usado ha muitos séculos, desde a Grécia antiga, para de- signar 0 modo caracteristico de uso da na. A diferenca entre as duas disci- lingua num determinado lugar, regiao, plinas é que a Dialetologia se inte- provincia etc. Muitos linguistas empre- ressava sobretudo em descrever os gam 0 termo dialeto para designar 0 que falares ruivais, isolados, considerados a Sociolingilistica prefere chamar de va- na época como mais “puros” e “au- —. ténticos”, nao influenciados pelas 0 estudo dos dialetos fez surgir, no século XIX, uma disciplina chama- da Dialetologia, considerada a pre- cursora da Sociolingiistica moder- modas e corrupgées da vida urbana moderna. A Sociolingiifstica abando- nou essa visdo romantica e passou a se interessar também pelos modos de falar das aglomeragées urbanas, socialmente complexas, do mundo socioleto > designa a variedade linguisti- ca propria de um grupo de falantes que com- partilham as mesmas caracteristicas socioculturais (classe socioeconémica, ni- vel cultural, profissao etc.) contemporaneo. 5 cronoleto — designa a variedade propria de determinada faixa etaria, de uma gera- cao de falantes. ® idioleto > designa o modo de falar caracteristico de um individuo, suas preferéncias vocabulares, seu modo proprio de pronunciar as palavras, de construir as sentengas etc. ‘Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica Em todas essas palavras esta presente o elemento -LeTo (também escrito as VeZeS -LECTO), derivado do grego LEKSIS, “palavra, acdo de falar”, de onde tam- bem provém a palavra LEXICcO Essa terminologia, no entanto, néo é muito empregada nos trabalhos sociolingliisticos, onde a gente encontra mais freqtientemente as expressdes variedade regional, variedade social, variedade generacional (ou de geracao) etc. Nem tudo na lingua varia Ao falar da variacao, dissemos que ela pode se verificar em todos os niveis da lingua: fonético-fonoldgico, morfoldgico, sintatico, semantico, lexical, estilistico- pragmatico. A essa altura, pode surgir uma dtivida: tudo o que existe numa lingua pode estar em variagao? A resposta é nao. Muita coisa da lingua nao apresenta varia- ao. Por exemplo: ® a pronuncia da consoante /f/ nao apre- senta (pelo menos que se saiba até agora) diferencas nas multiplas varie- dades regionais, sociais etc. do portu- gués brasileiro. O mesmo ja nao vale para a consoante /s/ que, como vimos, pode ser pronunciada como um som sibilan- te surdo [s] ou sonoro [z], ou como um som chiante surdo [f] ou sonoro [3], dependen- do de contextos fonéticos e das va- riedades regionais; E oartigo definido vem sempre co- locado antes do nome (4 casa) e nunca depois dele (*casa A) Os pronomes obliquos nao ad- mitem outros elementos entre eles 0 verbo: ANA ME SUSTENTOU DU- RANTE MUITO TEMPO, Mas nunca *ANA ME DURANTE MUITO TEMPO SUSTENTOU, Como ja vimos, 0 asterisco (*) enero ne Preteen eerie eat Penn ENTS ‘Mas 0 que é mesmo variacao linguistica? B® os verbos regulares tem sempre uma terminacao -o na 1? pessoa do singu- lar do presente do indicativo (Eu AMO, EU BEBO, FU PARTO), € Nunca uM -A, UM -E ‘ou um -Mos (*EU AMA, *EU BEBE, *EU PARTIMOS). O mesmo n&o acontece com a 1? pessoa do plural, que apresenta, segundo as variedades, uma terminacao -MOS OU -MO para todas as conjugagdes, ou uma terminacdo -A para a 1? conjuga¢ao e -F para a 27 e a 3° conjugacdes (NOs AMAMOS/NOS AMAMO/NOS AMA, NOS BEBEMOS/NOS BEBEMO/NOS BEBE, NOS PARTIMOS/NOS PARTIMO/NOS PARTE); © o verbo costar € sempre seguido da preposigdo be, em qualquer varieda- de linguistica, de modo que ninguém no Brasil vai dizer *EU NAO GOsTO JILO. © mesmo nao acontece com o verbO RESPONDER, que pode ser transitivo direto (RESPONDA 0 QUESTIONARIO) OU indireto (RESPONDA AO QUESTIONARIO). Os exemplos poderiam encher centenas de paginas. O importante é ressaltar que as regras da lingua que nao apresentam variag¢ao sao chamadas de re- gras categoricas, pertencem ao repertorio lingtiistico de todos os falantes, de todas as regides, classes sociais, graus de instrucdo etc. Ja as regras que apresentam variacao, como as que vimos nos exemplos acima, sao chama- das de regras variaveis ou simplesmente variaveis. Variavel & variante Uma variavel sociolingiistica, portanto, é algum elemento da lingua, algu- ma regra, que se realiza de maneiras diferentes, conforme a variedade lin- guistica analisada. Cada uma das realizagdes possiveis de uma varidvel é chamada de variante. A definicdéo mais simples de variante € a de “cada uma das formas diferentes de se dizer a mesma coisa". Por exemplo, ® a variavel (r), no portugués brasileiro, em final de palavra (como em CAN- TAR, FAZER, AMOR), pode apresentar as seguintes variantes: (1) [F] - vibrante simples; (2) [R] - vibrante multipla; (3) [4] — retroflexa ("R caipira’); (4) [h] - aspirada; (5) [2] - zero (“canta”, “am6"), entre outras. © a variavel (pronome-objeto direto de 3* pessoa) pode apresentar as seguintes variantes: (1) pronome obliquo (COMPREI O LIVRO MAS © ESQUECI EM casa); (2) pronome reto (COMPREI 0 LIVRO MAS ESQUECI ELE EM Casa); (3) pro- nome Nulo (compre! o LiVRO MAS ESQUEC! » EM CASA); © a varidvel (transitividade do verbo assistir) apresenta duas variantes: (1) transitividade direta: assis O FILME, € (2) transitividade indireta: Assist! AO FILME. Nada na lingua ¢ por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica O estudo das regras variaveis é a principal tarefa da Sociolingtiistica. Ele per- mite que a gente conheca o estado atual, real da lingua, como ela é de fato usada pelos falantes, por meio da freqiiténcia de uso da variante X e da variante Y. Descobrir quais elementos da lingua se encontram em variagao tem grande importancia também para o entendimento dos fenédmenos da mudanga lingiiistica, que vamos ver no capitulo 8. Vernaculo Se formos procurar a palavra verndculo num bom dicionario, como 0 Houaiss, a gente vai encontrar 0 seguinte: proprio de um pais, nagao, regiao Ex.: 2. Derivagao: sentido figurado. diz-se de linguagem correta, sem estrangeirismos na pronuncia, vocabu- Jario ou construgées sintaticas; castigo ) substantivo masculino 3 a lingua propria de um pais ou de uma regiao; lingua nacional, idioma vernaculo Ex.: 0 ensino do v. A definigao dada pela Sociolinguistica ao termo vernaculo, no entanto, esca- pa dessas acepcoes tradicionais. O lingulista norte-americano William Labov, 0 nome mais importante da Sociolinguistica variacionista, transformou ver- naculo num termo técnico com o seguinte significado: » Vernaculo +“o estilo em que se presta o minimo de atencao ao monitoramento da fala”. O vernaculo parece ser, portanto, a fonte mais segura para a investigac&o dos fendmenos de mudanca lingdiistica que afetam determinada lingua num dado momento historico. Cada grupo social tem 0 seu vernaculo, isto é, 0 estilo que, na variedade linguistica propria dessa comunidade, representa a fala mais esponta- nea, menos monitorada, que emerge sobretudo nas interagdes verbais com menor grau de formalidade e/ou com maior carga de emotividade. Labov, por exemplo, Mas 0 que @ mesmo variagao linguistica? sugere, como estratégia para fazer emergir 0 estilo menos monitorado, que o pesquisador pergunte a seu informante: “Vocé ja esteve numa situacao em que se viu proximo de morrer?" As narrativas resultantes dessa pergunta trazem as marcas mais caracteristicas do vernaculo, uma vez que 0 falante, tomado pela excitacao da narrativa, presta menos atenc¢ao a forma como esta falando e muito mais atengao ao contetido do que esta contando. Por meio do estudo do vernadculo podemos identificar, por exemplo, quais sao as regras gramaticais que realmente pertencem ao portugués brasileiro con- tempordneo, aquelas que sao as mais usualmente empregadas pelas pessoas em suas interagdes cotidianas. Ao mesmo tempo, podemos identificar quais $a0 as regras que estao deixando de ser usadas, caindo em obsolescéncia, com probabilidade de desaparecer da lingua num futuro proximo, Estudando o vernaculo brasileiro mais geral, por exemplo, as pesquisas sociolingtiisticas tém revelado que os pronomes obliquos de 3* pessoa 0/a/os/ aS est&o praticamente extintos da nossa lingua. SO empregam esses prono- mes as pessoas que tiveram acesso a escolarizagao formal plena, e mesmo assim somente em situagdes de alto monitoramento estilistico de sua fala, mas sobretudo na escrita de géneros textuais mais monitorados. Com isso podemos dizer, com boa margem de seguranga, que os pronomes obliquos o/ Wos/as nao pertencem ao vernaculo brasileiro. No lugar deles, nés, brasileiros, estamos usando os pronomes retos ELE/ELA/ELES/ELAS OU simplesmente dei- xando vazio o lugar sintatico que deveria ser ocupado por um objeto direto, como nos exemplos que demos mais acima: COMPREI O LIVRO MAS ESQUEC! ELE EM CASA OU COMPRE! O LIVRO MAS ESQUECI « EM CASA. AS pesquisas tem mostrado que essa Ultima estratégia, a do chamado “pronome nulo”, € a mais empregada por todos os brasileiros, falantes de todas as variedades linguisticas. O vernaculo e o ensino O conceito de vernaculo, tal como definido na Sociolinguistica, pode ser uma contribuigao muito importante para a elaboracao de estratégias de ensino. Se ja sabemos que determinadas regras gramaticais desapareceram do uso normal, cotidiano, como fazer para que elas sejam aprendidas e apreendidas por nossos alunos e alunas? Vale a pena insistir em ensinar coisas que quase ninguém mais usa no dia-a-dia da lingua? ‘Nada na lingua & por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica Como a gente vai ver no capitulo 8 sobre a mudanca linglistica, os géneros escritos mais monitorados sao 0 ultimo refugio dos usos lingUisticos mais con- servadores. E nos textos monitorados que esses usos sobrevivem por mais tempo, antes de desaparecerem por completo. Ora, uma das fungdes mais importantes do ensino é precisamente dotar os alunos e alunas de recursos que Ihes permitam produzir textos (orais e escritos) mais monitorados estilisticamente, textos que ocupam os niveis mais altos na escala do prestigio social. Dai a importancia de reconhecer as formas linglisticas ja desapareci- das da fala espontanea, mas ainda exigidas socialmente na fala/escrita formal, para ensina-las, no sentido mais literal do verbo ensinar, isto 6, transmitir a uma pessoa um conhecimento que ela de fato nao possui nem tem outro modo de adquirir a néo ser pela educacdo formal, sistematica, programada. O caso dos pronomes obliquos 0/a/os/as é exemplar. Nenhuma crianga bra- sileira, seja de qualquer regido ou de qualquer classe social, tem contato com esses pronomes antes de se iniciar na leitura e na escrita, antes de comecar seu processo de letramento. Essa falta de contato revela que os adultos, mesmo os mais letrados, nado empregam esses pronomes na vida familiar, nas situagdes mais intimas e descontraidas de uso da lingua. A coisa é diferente com outros pronomes como Eu, TU, VOCE, NOS, A GENTE, ELE, ELA, ELES, ELAS, ME, MIM, TE, SE, POr Exempla, que esto vivos e atuantes no verna- culo brasileiro e que qualquer criancinha que comeca a falar utiliza sem proble- ma. Dai a importancia de delimitar com precisdo 0 que é necessario ensinar e © que nao € necessario ensinar. Muito tempo de sala de aula é desperdicado com praticas irrelevantes de ensino de coisas que a crianca ja sabe e domina, como boa falante da lingua, enquanto outras coisas, mais importantes e inte- ressantes, sao deixadas de lado. Vamos voltar a isso mais adiante. Como analisar um evento de interacao verbal? A primeira vista, a Sociolinguistica parece trabalhar com uma quantidade muito grande de conceitos, e pode ser dificil para 0 naéo-especialista colo- car todos eles em pratica num exercicio de andlise da lingua real. Tradicio- nalmente, a realidade linguistica brasileira tem sido analisada em termos de pares dicotémicos, de polarizagdes radicais do tipo /ingua-padrao/lin- gua nao-padrao, lingua culta/lingua popular, lingua escrita/lingua falada, lingua formal/lingua coloquial etc., num procedimento que esconde o cara- Mas o que é mesmo variagao linglistica? ter dinamico e mutante das situagdes de interacao verbal. Diante de uma amostra de lingua em uso, 0s analistas costumavam (e ainda costumam) atribuir a ela um rotulo unico e fechado: “Esse € um exemplar de lingua coloquial” ou de “lingua culta” etc. Todos esses adjetivos sdo problemati- cos, € vamos tratar deles nos préximos capitulos. Sera entao que existe um modo diferente de analisar as situagdes de uso da lingua, sem cair nessas oposi¢Ges extremadas? Existe, sim Uma das solugdes para superar esse problema é a adogao do conceito de continuum (uma palavra latina que podemos traduzir, para os nossos obje- tivos, como “linha continua”, “sequéncia que nao se interrompe", e cujo plural 6 continua, com silaba t6nica no TI). Em vez de imaginar a realidade linguistica dividida em duas ou mais variedades estanques, que nao interagem umas com as outras, alguns sociolingulistas que trabalham na vertente chamada interacional preferem investigar a situacao de uso, 0 momento em que ocorre a interagao: quem estd dizendo o qué, a quem, onde, quando, dentro de que relacdes da hierarquia social, com que inten- ¢do etc.? Esses investigadores se concentram entao muito menos nas ques- t6es propriamente lingUisticas, estruturais (fonético-fonologicas, morfossin- taticas etc.) e muito mais no modo como os atores sociais em cena se valem desses recursos da lingua para levar adiante sua tarefa comunicati- va. E onde é que entra a nogao de continuum aqui? A lingdista e educadora Stella Maris Bortoni-Ricardo foi uma das primeiras pes- soas no Brasil a aplicar os postulados teéricos e metodolégicos da Sociolin- guistica (variacionista e interacional) as quest6es da educacao em lingua ma- terna. Depois de muitos anos de reflexao e intensa pratica como professora universitaria, orientadora de pesquisas e formadora de docentes, Bortoni-Ricardo construiu um modelo extremamente simples e ao mesmo tempo muito Util para o estudo da variacao lingUistica nas interagdes verbais, com énfase nas interagdes em sala de aula. Neste modelo, a autora rejeita a analise polarizada e argumenta que toda situacao de interacao verbal pode ser analisada com base em trés continua: UA

+ monitorado Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica O-continuum rural-urbano diz respeito aos ante- cedentes sociais e culturais do falante: ter nascido e vivido na zona rural (ou numa cidade pequena) ou ter sido criada numa grande métropole so fatores que influenciam muito a vi- so de mundo da pessoa, suas crengas e valores, sua relacao com o meio ambiente e, é claro, seu modo de falar a lingua. Sabemos que ha todo um vocabulario e toda uma série de regras fonético- fonolégicas e morfossintaticas que caracterizam mais os falares rurais do que os urbanos e vice- versa, € que tudo isso também varia de uma re- gio geografica para outra. Também existe, no cen- tro deste continuum, um espaco sociocultural que Bortoni-Ricardo classifica de rurbano: so as peri- ferias das nossas metrdpoles, onde vivem impor- tantes contingentes de pessoas que migraram do campo para a cidade, em busca de melhores con- digdes de vida, e que nao se integraram ainda com- pletamente a cultura urbana e também nao aban- donaram totalmente sua cultura rural. E isso que explica, por exemplo, por que tantos jovens nascidos e criados na periferia de Sdo Paulo, uma das maiores aglomeragées urbanas do mundo, usam o chamado “R caipi- ra”, antigamente restrito as cidades do interior do estado e & zona rural — € provavel que seus familiares te- nham vindo do interior para a capi- tal mas ndo tenham podido se incor porar totalmente a cultura urbana e, por conseguinte, incor- porar plena- mente os tra- gos lingifs- ticos que ca- racterizam tradicional- mente a va- Wi riedade pau- listana (como o It} simples vi- brado em pa- lavras como “porta”, “sor te”, “curva” etc,). O continuum oralidade-letramento nos indica se a atividade verbal naquele momento da interacao esta mais proxima das praticas orais ou mais proxi- ma das praticas letradas, ou seja, praticas que de algum modo se apdiam na leitura e na escrita. Durante uma mesma aula, por exemplo, a professora pode alternar entre esses dois tipos de praticas: quando se dirige aos alunos para chamar sua aten¢ao, para pedir alguma mudanga de atitude deles, para contar a eles alguma historia ou comentar algum relato de experiéncia pes- soal feito por eles, a professora esta no universo da oralidade, e seu modo de falar certamente vai trazer as marcas disso. Se, logo em seguida, ela comeca a explicar algum conceito que esta sendo estudado, usando a terminologia prdpria da disciplina, ou se escreve algo na lousa e comenta, ou se lé em voz alta um texto escrito, sua fala decerto apresentara caracteristicas diferentes da que apresentava ainda ha pouco. Por exemplo, na conversa com os alu- nos ela pode dizer coisas como “péxe”, “béjo”, “fala”, “as coisa”, “océs", “fizemo”, enquanto na atividade mais marcada pelas praticas de letramento Mas 0 que mesmo variacao linglistica? € provavel que ela use formas como “peixe”, “beijo”, “falar”, “as coisas”, “vocés' “fizemos", mais proximas da ortografia oficial e das regras normativas. O continuum de monitoramento estilistico nos indica o grau de atencao que 0 falante presta ao que esta dizendo. Como ja explicamos mais acima, esse monitoramento maior ou menor € decorrente do entrecruzamento de diver- sos fatores presentes no momento da interacao. © monitoramento também pode le- Quanto mais monitorado 0 estilo de fala, mais var ao fenémeno da hipercorrecdo, provavel € a ocorréncia das formas prescritas como dizer “houveram problemas’, —_ pala norma-padrao, de construcdes gramaticais “eles devem permanecerem aqui mes- mo”, “eu entregare’-lhe o relatério” etc., mais claboradas e de vocabulario considerado. em que, num excesso de zelo pela “Mais requintado e erudito. “corregao”, a pessoa acaba infringin- do regras da gramatica normativa. Com esse modelo de analise proposto por Bortoni-Ricardo fica mais facil compreender a ocorréncia de variagao lingulistica num mesmo espaco-tempo de interacao verbal, na fala de uma mesma pessoa, como a professora que ora diz “vamo vé" e ora diz “veremos”, que ora diz “xové" e ora diz “deixe-me ver", ou 0 aluno que normalmente diz “paiaco” e “trabaia" mas, ao ler em voz alta o texto do livro, diz “palhaco” e “trabalhar”... Essa mesma professora, se tiver antecedentes rurais, digamos, do interior de Sao Paulo, pode usar o "R caipi ra" ao ralhar com um aluno chamado Eduardo e usar um /r/ vibrado ou um /h/ aspirado ao ler em voz alta um texto como “o vento forte fez bater a porta verde da casa de Marcia”, por considerar a prontincia “caipira” inadequada em situacgdes mais monitoradas, em atividades mais letradas. Podemos representar esses dois momentos distintos da produ¢ao verbal da professora do seguinte modo: (1) EdualiJdo, cé qué presta'tengao e paré de brinca? + rural spss esse eee 4 urbano oral aQpeeeeeeeeeeeeee + letrado -monit.«Q)=eeeeeeeeeeee + monit. (2) [leitura] “O vento fo[r}te fez bate[r] a pofrjta vefrjde da casa de Malr]eia” + rural ##=seeeeeeeee=e (= 4 urbano tora] aeeeeesenenene (Oe + letrado smonit.eeeeeeeeeeeeee Qe +monit, Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica Este modelo de andlise da variacao linguistica tem se revela- do muito Util para a compreensao do que acontece em sala de aula (e também, é claro, em outras situagdes de comuni- cagao). Por isso, Sugiro que vocé leia o livro de Bortoni-Ricardo, que é a primeira (e bem-sucedida) experiéncia de formulacao de uma pedagogia da varia¢do linglistica. Tenho certeza que educa¢gao em vai Ihe ser muito util para o trabalho e para a vida! lingua oie ‘Jota Mors Soon side PARAN ACESQUECER Toda lingua humana é heterogénea por sua propria natureza. Aheterogeneidade lingilistica esta vinculada a hetero- geneidade social. {> Os elementos que determinam a variacao podem ser de or- dem lingiifstica (estrutural) ou extralingilistica (social) ou uma combinagao das duas. [> Nao existe falante de estilo Unico. Todo faiante dispoe de uma gama variada de estilos mais ou menos monitorados. {f2_ Uma variedade lingilistica ¢ 0 modo de falar a lingua ca- racteristico de determinado grupo social ou de determinada regiao geografica [> Variantes lingiiisticas sao maneiras diferentes de dizer a mesma coisa. SO vernaculo ¢ 0 estilo de lingua falada em que a pessoa monitora o minimo possivel sua produc4o verbal. Mas 0 que é mesmo variagao lingiistica? Como uma onda esses versos simples da cancao de Lulu Santos e Nélson Motta abor- e- dam um tema que tem inquietado a espécie humana desde a mais mota antiguidade: a passagem do tempo, a transformacao inevi- tavel de tudo, a permanente instabilidade do mundo. 0 filésofo grego Heraclito (c. 540-470 a.C.) sintetizou essa verdade na célebre formula panta rhei, “tudo flui’, todas as coisas se trans- formam, tudo se move, tudo muda. ————— 4 Ye i para entender ‘a mudansa Yinguistica “Nada do que foi sera / De novo do jeito que jé foi um dia / Tudo passa / Tudo sempre passaré / A vida vem em ondas / Como um mar / Num indo e vindo infinito. / Tudo 0 que se vé ndo é / Igual ao que a gente viu h4 um segundo / Tudo muda 0 tempo todo / No mundo. / Nao adi- anta fugir / Nem mentir pra si mes- mo agora / Hé tanta vida lé fora / Aqui dentro sempre / Como uma onda no mar.” Como uma onda (Lulu Santos e Nélson Motta) ‘Como uma onda E com a lingua nao poderia ser de outro jeito. A lingua de ontem nao é a de hoje, e a de hoje nao sera a de amanha: “Tudo o que se vé [e se fala e se ouve e se /é] nao é igual ao que a gente viu [e falou e ouviu e leu] ha um segundo”. Por isso, como também diz a cangao, “nao adian- ta fugir nem mentir pra si mesmo" — a mudanca é inevitavel, irrefrea- vel, eo melhor mesmo é aceitd-la, compreender seus mecanismos € aprender a lidar serenamente com ela. Toda lingua muda com 0 tempo Por mais que isso parega Obvio, vale a pena repetir: toda lingua muda com o tempo. Basta a gente comparar um texto escrito em portugués na Idade Média, ou em 1600 ou mesmo ha cem anos atras com qualquer coisa publicada nos dias de hoje. As diferencas saltam aos olhos, e as dificuldades de compreensao vao crescendo quanto mais a gente recua no tempo: Vallis autem ipsa ingens est vallis, iacens Peregrinatio ad loca sancta (Peregri- daa subter latus montis Dei, quae habet forsitan, nagao aos lugares santos), século V, de autoria da monja Etéria ou quantum potuimus videntes aestimare aut ipsi Egéria, natural da Galiza (noroeste dicebant in longo milia passuum forsitan da Espanba, regiéo-bergo da lingua portuguesa), texto em que aparece: algumas construgées tfpicas do cha- mado “latim vulgar”, origem das lin- mus, ut possimus montem ingredi. guas romanicas, como 0 portugués. sedecim, in lato quattuor milia esse appella- bant. Ipsam ergo vallem nos traversare habeba- De noticia de torto que fecerii a Laurécius Fernadiz por plazo qve fece Gécauo Ramiriz antre suos filios e Lourézo Fernadiz quale podedes saber: e oue auer, de erdade e dauer, tato quome uno de suos filios, daquato podes: auer de bona de seuo pater; e fiolios seu pater e sua mater. E depois fecerti plazo nouo e céu: uos a saber quale; in ille seem taes firmamentos quales podedes saber Ramiro Gocaluiz e Gocaluo Géca [luiz e] Eluira Gécaluiz forii fiadores de “Noticia de Torto” (entre 1214 € . sua irmana que ofto}rgase aqulejle plazo come 1216), um dos registros escritos mais antigos da lingua. illos Super isto plazo ar fe[ce]ra suo plecto. Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo ataa terga feira doitauas de pascoa que foram xxj dias dabril que topamos algiitis synaaes de tera seemdo da dita jlha segundo os pilotos deziam obra de bjc Ix ou Ixx legoas - os quaaes hera muita camtidade deruas compridas aque os mareantes chama botelho ¢ Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica asy outras aque tam bem chama Rabo dasno Eaaquarta feira segujmte pola manhaa topamos aves aque cham fura buchos - e neeste dia aoras de bespera ‘ouuemos vista de tera primeiramente dhiii gramde monte muy alto .e Redomdo e doutras serras mais baixas ao sul dele e de terra chaa com grandes aruoredos ao qual monte alto Carta de Pero Vaz de Caminha (1? de maio de 1500) ocapitam pos nome o monte pascoal Rio de Janeiro 11 Setembro 1857 Presado Pai Aqui chegamos sem novidade e tendo felizmente escapado a grande chuva que ainda hoje dura. As cartas todas esto entregues e o Joaquim leva a peca de riscado da loja do primo José e os 12#000, como tambem uma lamparina ou lampio que me pedio para comprar. Peco a meu Pai queira recommendar- me ao primo Manoel e ao Senhor Veludo a langar a sua bengao sobre Seu filho amante Carta do poeta brasileiro Casimiro Casimiro José Marques de Abreu de Abreu ao pai (1857). MAIS UMA VEZ AQUELE PRODUTO ee ee : licidade do Prémio Top of QUE VOCE NEM PRECISA 2006, estaimpada na Folha de S-Paiilo DIZER O NOME de 18/10/2006, e na qual aparece 0 uso GANHOU AQUELE da chamada oracdo relativa cortadora PREMIO (‘aquele produto que vocé nem preci- fs sa dizer 0 nome"), caracterfstica da QUE VOCE gxamiética do portugués brasileiro. JASABE QUALE Lendo as gramaticas normativas (e até mesmo algumas descri¢6es feitas por linguistas), a gente tem a Impressao que a lingua esta pronta e acabada, que ela pode até ter sofrido transformagdes no passado mas que, agora, as regras esto fixadas para sempre. Mas isso € uma ilusdo. Enquanto tiver gente falando uma lingua, ela vai sofrer variacao e mudanga, incessantemente. Os mesmos processos que fizeram a lingua mudar no passado continuam em acao, fazen- do a lingua mudar neste exato momento em que vocé |é o que eu escrevo. Apesar dessa obviedade, a mudanga lingilistica sempre foi encarada como um problema, como uma coisa negativa, como um sinal de ruina, decadéncia e corrup¢ao da lingua (e da moral de seus falantes). No entanto, ela é inevitavel tudo no universo, na natureza e na sociedade passa incessantemente por pro- Como uma onda cessos de mudanga, de obsolescéncia, de reinvencao, de evolugao... Por que sO a lingua teria de ficar parada no tempo e no espaco? Todas as demais instituigdes humanas sofrem mudanca, por que a lingua nao sofreria? De quem é a culpa? Para sermos mais exatos, no entanto, seria melhor reformular aquele titulo 1a de cima e escrever assim: os falantes mudam a lingua o tempo todo. Porque é isso mesmo que acontece: somos nos, os falantes, que, impercep- tivelmente, inconscientemente, vamos alterando as regras de funcionamen- to da lingua, tornando ela mais adequada e mais satisfatoria para nossas exigéncias de processamento mental, de comunicacao e interacao. Nao existe lingua sem falantes. Por isso, nao é “a lingua” que muda — a lingua, afinal, nao existe sozinha, solta no espago, como uma entidade mitica... S40 os falan- tes, em sociedade, que mudam a lingua. Conforme vimos no capitulo 3, existe na cultura ocidental uma velhissima “tradicao da queixa” contra a mudanga lingliistica. Em cada momento dessa tradic&o, as pessoas tentam atribuir a “culpa” da mudanca linglistica a al- guém ou a algum grupo social: ora sao os jovens ("nao sabem mais falar a lingua, sO usam giria” etc.), ora sé os professores (“que ndo sao mais téo bons como antigamente" etc.), ora sao os escritores ("que se deixam conta- minar pelos vicios da linguagem relaxada de hoje"), ora sao os meios de co- municagao modernos, ora € a “mistura de racas” resultante dos contatos de povos de “cultura superior” com povos de “cullura primitiva” (ou nenhuma cultura, melhor dizendo....), ora S40 as “babas, cozinheiras e engraxates” (como escreveu, num primor de preconceito social, 0 célebre gramatico brasileiro Napoledo Mendes de Almeida). Enfim, nao faltam candidatos para ocupar 0 lugar do réu no julgamento do “crime” da mudanga lingtiistica. No entanto, ninguém em particular tem “culpa” nenhuma neste caso. Como escreveu em tom divertido 0 linguista Guy Deutscher: Rastrear 0 suspeito pode, de inicio, parecer uma missdo um tanto ardua, ja que € bastante dificil imaginar alguém que esteja realmente tentando mu- dar a lingua. (Vocé esta?) Mas a identificacdo revela ser de uma absoluta simplicidade, j4 que embora ninguém em particular esteja mudando a lin- "Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica gua, o fato é que somos todos nds que provocamos as mudangas, mesmo que nunca queiramos is o, Existe um grande ntimero de coisas que as pessoas provocam sem ter intengdo. Basta pensar nos engarrafamentos. Ninguém jamais saiu de casa para sua locomogao didéria com o firme propésito de criar um engarrafamento e, no entanto, cada mo- Guy Deutscher, The Unfolding of torista contribui para 0 congestionamento a0 _ Language. New York: Metropolitan — acrescentar um carro mais a uma avenida ja Books, 2005, p. 61. superlotada. O mesmo autor comenta que as mudan¢as involuntarias nem sem- pre precisam ser prejudiciais como os engarrafamentos do transito. Para explicar o processo da mudan- ihaais ¢a linguistica, ele recorre a uma comparacao bastante interessante. Imagine dois prédios publicos — por exemplo, numa grande uni- versidade — com um amplo terreno cheio de mato sepa- rando eles. O Unico caminho ee previsto para ligar os dois prédios € um passeio pavi- mentado (uma calgada) que contorna o terreno. Como esse percurso leva muito tempo, as pessoas que tém de ir frequientemente de um prédio ao outro comecam a atravessar 0 mato para atalhar. A primeira pessoa que faz isso tem que abrir caminho pisando no capim alto, e as pes- soas que vém depois descobrem que a trilha que a primeira pessoa Criou é0 percurso mais convidativo, porque parte do capim e outras plantas ja foi aplai- nada. A medida que mais e mais gente atravessa 0 terreno, mais e mais vegetacao fica esmagada, até que, por fim, a trilha se transforma num cami- nho liso e limpo. O importante a salientar é que ninguém em particular criou ‘Como uma onda esse novo caminho, e ninguém em particular teve a inten¢ao deliberada de fazer isso. O caminho novo nao surgiu de algum projeto de paisagismo urba- no, mas das aces esponténeas acumuladas dos atalhadores. E assim também que a lingua muda — durante algum tempo, existe um Uni- co modo de dizer determinada coisa e esse modo Unico pode até vir oficial- mente registrado nas gramaticas e nos dicionarios (como a calcada que foi oficialmente criada para levar de um prédio ao outro). Em determinado mo- mento, porém, algumas pessoas comecam a dizer a mesma coisa de um modo ligeiramente diferente (talvez por ser um modo mais facil, mas rapido, mais enfatico, mais preciso de se expressar um atalho lingilistico). Com o passar do tempo, essa forma nova é usada por cada vez mais pessoas, até se firmar totalmente no uso da maioria dos falantes. Com isso, a forma antiga (a calgada pavimentada) pode até continuar oficialmente existindo, mas nin- guém ou quase ninguém mais segue por ali... E assim como em alguns luga- res 0 poder pliblico acaba reconhecendo a utilidade do atalho e manda pavi- mentar 0 caminho novo, também as novas formas de uso da lingua acabam sendo incorporadas (so que muito, muito lentamente e com muita, muita resis- téncia) pelas gramaticas e pelos dicionarios. Mais uma vez: nada na lingua é por acaso Tudo o que acontece numa lingua viva, falada por seres humanos, tem uma razao de ser. E essa razao de ser nao tem nada a ver com a preguica, 0 descaso, a corrupcao moral, a falta de inteligéncia, a mistura de racas, e outras alegacdes preconceituosas que vém sendo repetidas desde antes de Cristo. A lingua é uma atividade social, ela é parte integrante (e constitutiva) da vida em sociedade. Por isso as mudangas que ocorrem na lingua sao fruto da acao coletiva de seus falantes, uma acdo impulsionada pelas necessidades que esses falantes sentem de se comunicar melhor, de dar mais precisdo ou expressividade ao que querem dizer, de enriquecer as palavras ja existentes com novos sentidos (principalmente os sentidos figurados, metafdricos), de Criar novas palavras para dar uma idéia mais precisa de seus desejos de interacao, de modificar as regras gramaticais da lingua para que novos mo- dos de pensar e de sentir, novos modos de interpretar a realidade sejam ex- pressos por novos modos de dizer. Nada na lingua @ por acaso: por uma pedagogia da variagaio linguistica A mudanca linglistica € resultado da interacdo entre fatores internos — os mecanismos cognitivos que processam a linguagem dentro do nosso cére- bro — e fatores externos a lingua, ou Seja, fatores sociais e culturais. As mudancas lingUisticas nao ocorrem aleatoriamente e por isso é que repe- timos: nada na lingua é por acaso. Quando as pessoas sem conhecimento especifico dos processos de mudanca falam de “erro”, na verdade o que elas estado chamando de “erro” € algum fendmeno de transformagao pelo qual a lingua esta passando. Uma transformagao que nada tem de fortuito, de ca- sual, nem de aleatorio. E que é fruto, insistimos, da agao dos préprios falan- tes sobre a lingua, a mesma acdo que transformou o indo-europeu em latim, o latim em portugués, e que esta transformando o portugués numa lingua que amanha nao sera a mesma de hoje... Se nds tivermos que aceitar a doutrina do “erro”, vamos ser obrigados a dizer que o portugués, 0 espa- nhol, 0 catalao, o francés, 0 italiano, o romeno etc. sao “latim falado errado”, o que é totalmente absurdo numa perspectiva cientifica minimamente criteriosa. Igualmente absurdo é dizer que 0 portugués brasileiro é uma maneira “erra- da” de falar a lingua, somente porque aqui no Brasil ela apresenta caracteris- ticas estruturais diferentes das do portugués europeu. A mudanca surge de variantes em concorréncia A heterogeneidade social ¢ um fator importantissimo para se compreender os fenémenos da mudanga lingUiistica — a sociedade € composta por diversos grupos, cada um deles com seu modo caracteristico de falar a lingua (sua varie- dade |ingtiistica), com sua dinémica social propria, com sua cultura particular. Por isso, como em outros aspects da vida social (como os habitos, os compor- tamentos, as crengas, os rituais etc), a mudanga |inglilstica nao ocorre toda de uma vez dentro da comunidade de falantes — uma parte dos falantes adota mais rapidamente a mudanc¢a, outra parte conserva por algum tempo as formas antigas. Assim, 0 que ocorre € uma competicao, uma concorréncia entre a variante inovadora e a variante conservadora. Por isso 0 estudo da variagéo € téo importante para a compreenséo do fendmeno da mudanga lingtiistica — a lingua muda porque varia, isto é, porque algumas pessoas preferem usar um atalho em vez de seguir pelo caminho pavimentado ja existente. As vezes, a forma inovadora suplanta completamente a forma mais antiga, que desaparece da lingua sem deixar tragos. Quando estudamos a historia ‘Como uma onda do portugués e consultamos documentos escritos muito antigos, encontra- mos uma grande quantidade de palavras, express6es, regras fonoldgicas, morfolégicas e sintaéticas que desapareceram com 0 tempo, ndéo. séo mais usadas na lingua de hoje. Por exemplo, no caso dos seguintes verbos: PORTUGUES ANTIGO PORTUGUES ATUAL eu arco eu ardo eu sengo eu sinto eu mengo eu minto eu perco eu perco eu moiro eu morro eu paresco eu pareco Para que as variantes inovadoras (que estao em uso até hoje) se firmassem, elas tiveram primeiro de entrar em concorréncia com as formas que eram entéo as mais empregadas. Nesse caso, estamos diante de uma mudanca que se completou totalmente: nenhum falante de portugués, nem no Brasil nem em Portugal, usa mais as formas SENCO, MENCO, ARGO etc. (lembrando ainda que 0 ¢, naqueles tempos, era pronunciado [ts], coisa que também desapareceu da lingua) Podemos descrever 0 fendmeno da mudanga usando a figura abaixo, em que temos a linha continua do tempo e quatro momentos da histéria da lingua: SENCO SENGO SENTO ~SINTO Me ieee x sinto - senco I 1 - 3 4 No primeiro momento, a forma senco era a Unica que existia na lingua. No segundo momento, aparece a forma siNTo, provavelmente usada por grupos restritos da populagao, e que comega a concorrer com seENGO. No terceiro momento, 0 uso cada vez mais amplo da forma nova siNTo transformou sENco em forma pouco prestigiada e de uso cada vez mais reduzido. Por fim, no Ultimo momento, a forma sinto aparece como Unica possibilidade de expres- sar a 1* pessoa do singular do presente do indicativo do verbo sentir. A forma SINTO esta imperando ha muitos séculos, mas ela também pode vir a ser desbancada, no futuro, por alguma nova concorrente. Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica Em outros casos, a concorréncia acaba dando a vitdria a variante inovadora, sim, mas a variante mais antiga sobrevive em algumas variedades especifi- cas, principalmente em variedades regionais mais isoladas, como no caso das zonas rurais. Para comecar a entender isso, leia 0 seguinte paragrafo: Huma fruita se da nesta terra do Brasil muito sabrosa, e mais prezada de quantas ha. Cria-se numa planta humilde junto do chao, a qual tem humas pencas como cardo, a fruita della nasce como alcachofras e parecem natural- mente pinhas, e sao do mesmo tamanho, chamdo-lhes Ananazes, e depois de maduros tém hum cheiro muito excellente, colhem-nos como sao de vez, € com huma faca tirdo-Ihes aquella casca grossa e fazem-nos em talhadas e desta maneira se comem, excedem no gosto a quantas fruitas ha neste Reino, e fazem todos tanto por esta fruita, que mandao plantar rogas della, como de cardaes: a este nosso Reino trazem muitos destes ananazes em conserva. Esse trecho foi retirado do Tratado da terra do Brasil, no qual se contém a informacao das cousas que hé nestas partes, da autoria do portugués Pero de Magalhaes de Gandavo, que visitou a recém-conquistada Terra de Santa Cruz e escreveu uma detalhada descricao da nossa fauna, da nossa flora, da geogra- fia das regides que visitou etc. Essa visita deve ter ocorrido por volta de 1572, ou seja, ha quase quinhentos anos. No trecho selecionado, ele descreve 0 ana- nas, que hoje chamamos mais comumente de ABACAxI. Gandavo também pu- blicou uma obra gramatical: Regras que ensinam a maneira de escrever (1574). Na leitura desse paragrafo de Gandavo, vocé sg, reas do interior de So deve ter notado, entre tantas coisas curiosas, Paulo, rrur também é outro nome 0 uso que ele faz algumas vezes da palavra ‘Para a auticana. Em variedades nor- 4 : a destinas (Pernambuco, Alagoas), FRUITA. “Que interessante”, pensara vocé, "NOje mura é uma forma depreciativa de nds dizemos e escrevemos FRUTA...” Espere designar o homossexual. masculino, um pouco: nds, quem? Se é verdade que a grande maioria dos brasileiros diz FRuTA, também existem comunidades em que a forma FRuITA sobrevive. Que comunidades sdo essas? Comuni- dades rurais, distantes dos grandes centros urbanos e marcadas pelo aces- so muito restrito a escolarizaco e a cultura letrada. O uso de FRUITA pro- vavelmente vai se reduzir com o avango do tempo, sobretudo por causa da ampla difuséo das formas lingtisticas majoritarias favorecida pelos meios de comunica¢ao, dos quais certamente 0 mais poderoso e influen- te € a televisdo, e também pelo maior acesso a escola. Como uma onda Os falantes urbanos escolarizados acham “esquisita”, “feia”, “engracada” ou “errada” a prontincia FRuITA, com ditongo, porque ela esta ausente da fala e da escrita da grande maioria da populacéo — e as minorias, sejam elas ra- ciais, Sexuais ou lingtisticas, infelizmente sempre sofrem estigmatizacao. Essa avaliacdo negativa também se deve ao fato de que a grande maioria das pessoas nao tem conhecimento da histdria da lingua, dos processos de transformagdo que afetaram o portugués ao longo do tempo. O conheci- mento desses processos talvez levasse a gente a ter a reacao exatamente oposta, a estranhar a forma sem 0 ditongo: por que é que FRUTA perdeu 0 |, se ele se preservou em outras palavras que passaram por processos se- melhantes? Observe: LATIM > PORTUGUES directu- direito factu- feito fructa- fruita iactu- jeito lacte- leite lectu- leito lucta- luita nocte- noite octu- oito pectu- peito profectu- proveito rector- reitor secta- seita Logo se percebe que 0 grupo latino -cr- se transformou regularmente, em portugués, em -It-, e de fato todas as palavras da lista acima conservam até hoje o | diante do 1, com excecéo de FRUTA e LUTA. Nessas duas palavras, 0 processo deu um passo adiante, eliminando-se o ditongo. Provavelmente, a presenca do u nessas duas palavras, uma vogal tao fechada quanto 0 |, favo- receu 0 desaparecimento do ditongo (num processo que chamamos, em lingiistica historica, de assimilagao). Nao por acaso, a variante LuITA é usada pelos mesmos falantes que usam FRUITA. Aqui, ao contrario dos verbos que mostramos mais acima, ainda encontra- Mos variedades lingiiisticas em que as formas FRUIT e LUITA sobrevivem. A ‘Nada na lingua 6 por acaso: por uma pedagogia da variagao linglistica concorréncia entre as variantes inovadoras e antigas, a0 longo do tempo, somente inverteu o prestigio de cada uma delas, mas ndo foi suficiente para eliminar completamente a forma mais antiga: O mesmo acontece com outras palavras que encontramos na fala dos brasi- leiros da zona rural e que soam “estranhas” aos ouvidos dos falantes urba- nos: La (com nasalizagao do u), SOMANA, ENTONCE, PREGUNTAR, OITUBRO, AMENHA, DEREITO — sao todas formas antigas, que a gente encontra facilmente na literatura medieval portuguesa. FRUITA’ |” 1 Uma descricao mais precisa e honesta da mudanca Isso deixa bem claro que a mudan¢a lingilistica é um processo extremamen- te complexo, lento e gradual. Quando consultamos as gramaticas histdricas, o modo de apresentagao dos processos de mudanga é reduzido a uma linearidade que nao condiz com a visao mais dinamica oferecida pela Socio- lingUistica. Nas gramaticas historicas, encontramos a formula a > b, isto é, “A se transformou em 6", como se a transformacao tivesse sido automatica e total, como se todos os falantes da lingua, da noite para o dia, tivessem dei- xado de usar a forma A para so usar a forma B... Ora, para que B apareca como a forma nova e Unica (ou majoritaria), € preciso antes que ela tenha entrado em concorréncia social com A, € preciso que as duas variantes tenham convivido, com diferentes graus de prestigio, durante algum tempo no seio de uma comunidade lingtistica. Outro problema das graméaticas historicas € que elas se baseiam exclusi- vamente na lingua escrita literaria ou nas variedades urbanas de presti- gio, desprezando a coexisténcia, nas diferentes fases histdricas da lingua, de formas antigas e formas inovadoras, como no caso do par FRUTA ~ FRUITA, € O USO Social diferenciado de cada uma delas. Com isso, nao é exato dizer que o latim FRUCTA se transformou em FRUITA e depois em FRUTA. Mais exato é dizer que a forma arcaica FRUITA se transformou, na maioria das variedades da lingua, em FRUTA, mas que ela ainda sobrevive no uso de algumas comunidades de falantes, em concorréncia e co-ocor- réncia com a forma majoritaria. Como uma onda O mesmo desprezo pelas variedades rurais, regionais e carentes de prestigio social aparece no fato das formas inovadoras surgidas nessas variedades nao serem contempladas pelas gramaticas historicas. Se a gente con- sulta a palavra TELHA numa gramatica historica ou num dicionario etimolégico do portugués, 0 que aparece é (latim) TEcULA > TeLHA (portugués) SO que nds sabemos, para comecar, que, por razdes de ordem fonético- fonoldgica. o latim TEGULA nao pode ter se transformado diretamente em TELHA. Entre TEGULA e TELHA devem ter ocorrido diversas etapas de variagao e mudan- ¢a, provavelmente assim (as palavras com um asterisco representam formas hipotéticas, ndo atestadas em nenhum documento escrito, mas deduziveis com base no conhecimento que temos das regras da fonologia historica): TEGULA U| *TEGLA LY *TEYLA -*TELYA -TELHA xe ae eae me eel | *tegla- *teyla- *telya- telha - | Além disso, nos também sabemos que a forma TELHA, pronunciada [tef a], nao é a tinica variante existente na nossa lingua. Milhdes de brasileiros (tal- vez até a maioria deles!) pronunciam [teyal, isto é, deslateralizaram a conso- ante /f/ e dela conservaram apenas 0 tra¢o palatal, levando a mudanga lingiistica um passo adiante. Para descrever mais fielmente (e mais honesta- mente também) a realidade do portugués brasileiro, € preciso portanto incor- porar os novos processos de variagéo e mudan¢a: —_—_—_eeeoeoeoeoeo a h—hrtits«~—O.C—C.CC=iitéiwsOCMCSCO.CSC + undid sreuuojur sogsisodxo 4 ‘Oa{A OF AL 2P OUPISNOU Jeganeay sotsnosip = eens ° ~seaniop ar2)809 « reuiof op se19;08 - soonugprse sory} « wnHnor—-F¢ sivossaa saQSvOINnWOO svonana SIVNOIDNYLSNI 0 S3QSVOINNINOD ' soixat soolmgavov wiuioss eu 9 efey BU slEMxaI Sos9UDE Sop ONUNUOD Op oEdeIUassudoN, Como uma onda Entre os dois pdlos representados por FALA e€ ESCRITA eu inseri corre uma linha pontilhada horizontal que representa o grau de monitoramento estilistico correspondente (sempre aproximadamente) a cada género. Se a pessoa tiver que se apresentar em publico num congresso académico, pronunciando uma conferéncia, € provavel que monitore muito mais a sua fala do que se tivesse de falar dos mesmos assuntos da conferéncia numa reuniao intima na casa de colegas. A advogada que deixa um bilhete preso na geladeira combinando uma ida ao cinema com o marido nao vai monitorar sua escrita ao escrever esse bilhete do mesmo modo como monitora ao produzir uma parecer juridico. A visdo tradicional sempre estabeleceu a falsa sinonimia entre fala e coloquialidade, informalidade, e entre escrita e formalidade, esmero. Nao € assim, A escrita é tao heterogénea quanto a fala, ¢ isso fica bem claro quando analisamos os géneros escritos em busca dos sinais da mudanga linglistica. Assim, do mesmo jeito como a mudanga lingulistica avanca pouco a pouco das camadas intermediarias da populagao rumo as camadas superiores, até se impor a toda a comunidade de falantes, 0 mesmo acontece no que diz respeito a relacao fala-escrita. As inovacoes linguisticas surgem primeira- mente nos géneros falados mais espontaneos (no vernaculo, ja definido no capitulo 2) e vao se expandindo em diregao aos demais géneros textuais até atingir 0 outro polo do diagrama de Marcuschi, onde se situam os géne- ros escritos mais monitorados: comunicacors | comunicacors textos wescae’® | SOWUatieKS ;wstauciowals | -—AGABEMICos | PA-DoOoMm os bepn CONSTELACAO DE | APRESENTACOESE | — EXPOSICOES ENTHEVISTAS REPORTAGENS | | ACADEMICAS Nada na lingua ¢ por acaso: por uma pedagogia da variacao lingtistica Quando as inovagées lingilisticas que se opdem as prescrigdes da gramatica normativa passam a aparecer com muita freqiiéncia nos géneros escritos mais monitorados, é porque a mudan¢a lingtiistica ja se completou, e mui- to dificilmente a antiga regra normativa voltara a vigorar. Jé vimos isso ao tratar dos conceitos de norma-padrao e norma culta (capitulo 5), quando apresentamos diversos exemplos da ordem verbo-sujeito em que o verbo permanece no singular apesar de um sujeito no plural. O mesmo ocorre nos exemplos acima, todos de textos escritos monitorados, em que os pronomes obliquos aparecem procliticos ao participio passado. Por gozar de um extremo prestigio social, os géneros escritos mais monitorados sao precisamente o “ultimo reduto” das regras normativas, das formas lingUisticas mais conservadoras, gue resistem a inovacdo. Mais cedo ou mais tarde, porém, a pressao do vernaculo sobre os outros usos da lingua acaba vencendo a disputa, e as inovacdes lingiiisticas ganham seu lugar de direito também na escrita mais monitorada Tambeém por causa do prestigio social da escrita mais monitorada é que de- vemos, em sala de aula, apresentar aos alunos aquelas formas lingiiis- ticas conservadoras, que em muitos casos ja desapareceram completa- mente do vernaculo. Afinal, elas também fazem parte da lingua, e todas as pessoas tém pleno direito de querer se servir delas quando bem Ihes parecer. S6 nao podemos apresentar essas formas como se fossem as Unicas corre- tas e bonitas, porque ai 0 nosso trabalho com a variacao lingUistica e com a reeducacao sociolingifstica perderia todo o sentido! Nao existe “erro comum” Em livros e textos de carater normativo, a gente encontra freqdientemente esta frase: “E erro comum hoje em dia falar [ou escrever]..." Isso para nao mencionar os muitos produtos gramatiqueiros a venda que trazem titulos como “os 150 erros mais comuns na lingua” etc. Como ja sabemos, todas as mudangas lingtiisticas ocorrem por agao dos proprios falantes da lingua. E mesmo muito curioso verificar isso: muitas pes- soas se queixam das mudangas na lingua sem perceber que elas mesmas é que fazem a lingua mudar... Mais engracgado ainda é ver pessoas que se queixam dessas mudan¢as usarem em sua propria fala ou em sua propria ‘Como uma onda escrita formas nao autorizadas pelas gramaticas normativas (como o prescritivista Josué Machado no exemplo acima...). Se as mudan¢as ja estado, de certa forma, previstas no proprio sistema da lingua, se os falantes se aproveitam das possibilidades que a lingua oferece para modificar as regras de funcionamento dela, e se essas modificacdes servem para satisfazer multiplas necessidades que os falantes sentem, en- tao nao existe “erro comum" — existe, isso sim, um acerto comum para tornar a comunicagao mais certa. Vamos examinar, por exemplo, 0 caso do verbo assisTir. Existe uma verdadeira obsessao por parte dos puristas em impor uma preposicao A depois do verbo ASSISTIR: ASSISTI AO FILME. Mas todos nds sabemos que no vernaculo brasileiro. se usa quase exclusivamente 0 verbo assistik sem a preposigao, ou seja, como um verbo transitivo direto: assisti 0 FILME. Isso permite, alias, que 0 verbo assis~ TIR apare¢a Na voz passiva — © JOGO FOI ASSISTIDO POR CINQUENTA MIL PAGANTES, © que s6 ocorre com verbos transitivos diretos. O que provocou essa mudanga sintatica? Certamente, uma mudan¢a no sig- nificado de assistir. Originalmente, em latim, AD-sisTERE (de onde vern 0 nosso. ASSISTIR) Significava “estar junto a” alguma coisa, “comparecer a” algum lugar (como demonstra a presenca da preposi¢ao-prefixo Ab, de onde veio a nossa preposicao A). Esse significado original, no entanto, se modificou na historia da lingua e 0 verbo passou a ser interpretado e empregado com o sentido de “presenciar”, “ver”, “observar", “frequentar” assisti 0 filme [= vi o filme]; assisti uma briga [= presenciei uma brigal; assisti a mudan¢a [= observei a mudanga]; assisti um curso [= freqlentei um curso] Por isso, para deixar clara essa sua relacdo direta com o objeto do ato de presenciar/ver/observar/freqlientar, os falantes passaram a usar o verbo AS- sISTIR Sem a preposi¢ao A. Dizer que ASSISTI O FILME 6 UM erro comum 6 uma Contradi¢ao em termos: se € comum, como pode ser erro? Se um numero cada vez mais amplo de pessoas esta preferindo uma forma lingiistica nova, é porque ela acerta em satisfazer as necessidades interacionais, comunicativas, cognitivas dessas pessoas. Se fosse mesmo um “erro”, ninguém ia usar. Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica O falante é o melhor gramatico que existe Poderiamos dizer que a grande tarefa da ciéncia linglistica 6 descobrir e explicar aquilo que os falantes sabem, mas nao sabem que sabem. O conhecimento intuitivo que cada ser humano tem de sua lingua materna é um dos mais fascinantes mistérios da ciéncia. Por mais que lingUistas, psicd- logos, bidlogos, médicos, antropdlogos e fildsofos especulem, teorizem e in- vestiguem, a verdadeira natureza do conhecimento lingliistico — a natureza da propria linguagem humana como fendmeno bioldgico-psicolégico-social — sempre desafiara os cientistas. Por isso, 0 linglista honesto é aquele que reconhece humildemente que qual- quer falante de uma lingua é o melhor gramatico que existe. Ninguém conhece melhor o funcionamento da lingua do que o proprio falante nativo. Uma criancinha de 5 anos de idade ja é perfeitamente capaz de reconhecer uma expressao lingiiistica como pertencente ou nao a sua lingua materna! Nés, pesquisadores, podemos até sistematizar o funcionamento (a gramati- ca) da lingua, criar modelos para explicar esse funcionamento, dar nomes técnicos aos elementos que isolamos e identificamos, mas isso néo conse- gue dar conta de tudo o que esta por tras (ou dentro, ou no fundo, ou aci- ma...) do uso esponténeo, natural, corriqueiro, inconsciente e eficiente que cada pessoa faz de sua lingua materna, ja a partir da mais tenra infancia... As mudanc¢as que acontecem na lingua se devem precisamente a esse Co- nhecimento poderoso que os falantes tém de como ela funciona e a eficiéncia das intervencdes que eles fazem nesse funcionamento. A todo momento — gragas a processos mentais e a fendmenos interacionais que ainda nao conseguimos explicar satisfatoriamente —, cada falante (em socie- dade) esta reanalisando, reinterpretando as regras de funcionamento de sua lingua, conferindo a elas novo alcance, descartando as regras que se mos- tram insuficientes, ampliando os limites de aplicagao de regras até entao restritas a determinados contextos, e por ai vai Cada nova geracao de falantes da a sua contribuigdo nesse processo lento e gradual de transformacao-reajuste-renovacao da lingua. E por isso que hoje nds falamos o portugués brasileiro, e Nao o portugués europeu que chegou aqui ha mais de quinhentos anos, nem muito menos 0 latim, fonte da lingua portuguesa, nem muito menos ainda o indo-europeu, lingua pré-historica da qual se originaram o latim e muitas outras linguas.. Como uma onda Muitas pessoas lamentam que, no processo de mudanca, a lingua perca tan- tas coisas. E que elas deixam de ver que, ao mesmo tempo, a lingua ganha muitas coisas novas, num equilibrio constante entre preservacdo e inovacao. Afinal, se na mudanca a lingua perdesse elementos essenciais, os falantes nao conseguiriam mais se expressar e interagir verbalmente, e isso nunca aconte- ceu em lingua nenhuma, em nenhum momento da historia da humanidade: As linguas nao se desenvolvem, nao progridem, nao decaem, nao evoluem, nem agem de acordo com nenhuma das metaforas que implicam um ponto final especifico ou um nivel de exceléncia, Elas simplesmente mudam, como as sociedades mudam. Se uma lingua morre é porque seu status na socieda- de se alterou, na medida em que outras culturas e linguas a sobrepujaram: ela nao morre porque “ficou velha demais” ou porque “se tornou muito com- plicada”, como as vezes se pensa. Também néo se deve pensar que, quando as linguas mudam, elas o fazem numa direg predeterminada. Algumas estao perdendo flexées; outras estao ganhando. Algumas estao se fixando numa ordem em que o verbo precede 0 objeto; outras, numa ordem em que 0 objeto precede o verbo. Algumas linguas estdo perdendo vogais e ganhan- do consoantes; outras fazem 0 oposto. Se formos usar metaforas para falar da mudanga lingiifstica, uma das melhores é a de um sistema que se man- tém num estado de equilibrio, enquanto as mu- “D. Caystal, The Cambridge Encyclopedia tas ocorrem dentro dele. Outra é a da maré, ~ of Language. Cambridge: Cambridge que sempre e inevitavelmente muda, mas nun- ‘University Press, 1987, pp. 4-5. ca progride, enquanto flui e reflui. Ke -K "Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica Nel =-tel) tei) Nao é a lingua que muda com o tempo: sao os falantes que, em sociedade, mudam a lingua. A lingua muda porque varia: a concorréncia entre as for- mas inovadoras e as formas conservadoras acaba sendo re- solvida pela incorporacao das formas novas ao uso de um numero cada vez maior de falantes, até que elas se firmam como regras do sistema lingUistico, desalojando de vez as formas conservadoras. Amudanca lingUistica é implementada pelas gerac6es mais jovens de falantes e pelas camadas médias-baixas da po- pulacdo, Na relacao entre lingua falada e lingua escrita, as formas inovadoras surgem na fala mais espontanea, menos monitorada (no vernaculo) e, com o passar do tempo, avan- ¢am pelos demais géneros falados, sdo incorporados pela escrita menos monitorada, até atingirem os géneros textuais escritos mais monitorados. Quando isso ocorre, as formas inovadoras ja estao plenamente incorporadas a lingua nao s40 mais sentidas como “erros”. A mudanga se com- pletou e nao ha como voltar atras. ‘Como uma onda

Você também pode gostar