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Bagno Variacao Mudan A
Bagno Variacao Mudan A
+ monitorado
Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguisticaO-continuum rural-urbano diz respeito aos ante-
cedentes sociais e culturais do falante: ter
nascido e vivido na zona rural (ou numa cidade
pequena) ou ter sido criada numa grande
métropole so fatores que influenciam muito a vi-
so de mundo da pessoa, suas crengas e valores,
sua relacao com o meio ambiente e, é claro, seu
modo de falar a lingua. Sabemos que ha todo um
vocabulario e toda uma série de regras fonético-
fonolégicas e morfossintaticas que caracterizam
mais os falares rurais do que os urbanos e vice-
versa, € que tudo isso também varia de uma re-
gio geografica para outra. Também existe, no cen-
tro deste continuum, um espaco sociocultural que
Bortoni-Ricardo classifica de rurbano: so as peri-
ferias das nossas metrdpoles, onde vivem impor-
tantes contingentes de pessoas que migraram do
campo para a cidade, em busca de melhores con-
digdes de vida, e que nao se integraram ainda com-
pletamente a cultura urbana e também nao aban-
donaram totalmente sua cultura rural.
E isso que explica, por exemplo, por
que tantos jovens nascidos e criados
na periferia de Sdo Paulo, uma das
maiores aglomeragées urbanas do
mundo, usam o chamado “R caipi-
ra”, antigamente restrito as cidades
do interior do estado e & zona rural
— € provavel que seus familiares te-
nham vindo do interior para a capi-
tal mas ndo tenham podido se incor
porar totalmente a cultura urbana e,
por conseguinte, incor-
porar plena-
mente os tra-
gos lingifs-
ticos que ca-
racterizam
tradicional-
mente a va- Wi
riedade pau-
listana (como o
It} simples vi-
brado em pa-
lavras como
“porta”, “sor
te”, “curva”
etc,).
O continuum oralidade-letramento nos indica se a atividade verbal naquele
momento da interacao esta mais proxima das praticas orais ou mais proxi-
ma das praticas letradas, ou seja, praticas que de algum modo se apdiam na
leitura e na escrita. Durante uma mesma aula, por exemplo, a professora
pode alternar entre esses dois tipos de praticas: quando se dirige aos alunos
para chamar sua aten¢ao, para pedir alguma mudanga de atitude deles, para
contar a eles alguma historia ou comentar algum relato de experiéncia pes-
soal feito por eles, a professora esta no universo da oralidade, e seu modo de
falar certamente vai trazer as marcas disso. Se, logo em seguida, ela comeca
a explicar algum conceito que esta sendo estudado, usando a terminologia
prdpria da disciplina, ou se escreve algo na lousa e comenta, ou se lé em voz
alta um texto escrito, sua fala decerto apresentara caracteristicas diferentes
da que apresentava ainda ha pouco. Por exemplo, na conversa com os alu-
nos ela pode dizer coisas como “péxe”, “béjo”, “fala”, “as coisa”, “océs",
“fizemo”, enquanto na atividade mais marcada pelas praticas de letramento
Mas 0 que mesmo variacao linglistica?€ provavel que ela use formas como “peixe”, “beijo”, “falar”, “as coisas”, “vocés'
“fizemos", mais proximas da ortografia oficial e das regras normativas.
O continuum de monitoramento estilistico nos indica o grau de atencao que
0 falante presta ao que esta dizendo. Como ja explicamos mais acima, esse
monitoramento maior ou menor € decorrente do entrecruzamento de diver-
sos fatores presentes no momento da interacao.
© monitoramento também pode le- Quanto mais monitorado 0 estilo de fala, mais
var ao fenémeno da hipercorrecdo, provavel € a ocorréncia das formas prescritas
como dizer “houveram problemas’, —_ pala norma-padrao, de construcdes gramaticais
“eles devem permanecerem aqui mes-
mo”, “eu entregare’-lhe o relatério” etc.,
mais claboradas e de vocabulario considerado.
em que, num excesso de zelo pela “Mais requintado e erudito.
“corregao”, a pessoa acaba infringin-
do regras da gramatica normativa. Com esse modelo de analise proposto por
Bortoni-Ricardo fica mais facil compreender a
ocorréncia de variagao lingulistica num mesmo espaco-tempo de interacao
verbal, na fala de uma mesma pessoa, como a professora que ora diz “vamo
vé" e ora diz “veremos”, que ora diz “xové" e ora diz “deixe-me ver", ou 0
aluno que normalmente diz “paiaco” e “trabaia" mas, ao ler em voz alta o
texto do livro, diz “palhaco” e “trabalhar”... Essa mesma professora, se tiver
antecedentes rurais, digamos, do interior de Sao Paulo, pode usar o "R caipi
ra" ao ralhar com um aluno chamado Eduardo e usar um /r/ vibrado ou um /h/
aspirado ao ler em voz alta um texto como “o vento forte fez bater a porta
verde da casa de Marcia”, por considerar a prontincia “caipira” inadequada
em situacgdes mais monitoradas, em atividades mais letradas.
Podemos representar esses dois momentos distintos da produ¢ao verbal da
professora do seguinte modo:
(1) EdualiJdo, cé qué presta'tengao e paré de brinca?
+ rural spss esse eee 4 urbano
oral aQpeeeeeeeeeeeeee + letrado
-monit.«Q)=eeeeeeeeeeee + monit.
(2) [leitura] “O vento fo[r}te fez bate[r] a pofrjta vefrjde da casa de Malr]eia”
+ rural ##=seeeeeeeee=e (= 4 urbano
tora] aeeeeesenenene (Oe + letrado
smonit.eeeeeeeeeeeeee Qe +monit,
Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da variagao linguisticaEste modelo de andlise da variacao linguistica tem se revela-
do muito Util para a compreensao do que acontece em sala
de aula (e também, é claro, em outras situagdes de comuni-
cagao). Por isso, Sugiro que vocé leia o livro de Bortoni-Ricardo,
que é a primeira (e bem-sucedida) experiéncia de formulacao
de uma pedagogia da varia¢do linglistica. Tenho certeza que
educa¢gao em
vai Ihe ser muito util para o trabalho e para a vida! lingua oie
‘Jota Mors Soon side
PARAN ACESQUECER
Toda lingua humana é heterogénea por sua propria natureza.
Aheterogeneidade lingilistica esta vinculada a hetero-
geneidade social.
{> Os elementos que determinam a variacao podem ser de or-
dem lingiifstica (estrutural) ou extralingilistica (social) ou
uma combinagao das duas.
[> Nao existe falante de estilo Unico. Todo faiante dispoe de
uma gama variada de estilos mais ou menos monitorados.
{f2_ Uma variedade lingilistica ¢ 0 modo de falar a lingua ca-
racteristico de determinado grupo social ou de determinada
regiao geografica
[> Variantes lingiiisticas sao maneiras diferentes de dizer a
mesma coisa.
SO vernaculo ¢ 0 estilo de lingua falada em que a pessoa
monitora o minimo possivel sua produc4o verbal.
Mas 0 que é mesmo variagao lingiistica?Como uma onda
esses versos simples da cancao de
Lulu Santos e Nélson Motta abor-
e- dam um tema que tem inquietado
a espécie humana desde a mais
mota antiguidade: a passagem
do tempo, a transformacao inevi-
tavel de tudo, a permanente instabilidade do
mundo. 0 filésofo grego Heraclito (c. 540-470 a.C.)
sintetizou essa verdade na célebre formula
panta rhei, “tudo flui’, todas as coisas se trans-
formam, tudo se move, tudo muda. —————
4
Ye
i
para entender
‘a mudansa
Yinguistica
“Nada do que foi sera / De novo do
jeito que jé foi um dia / Tudo passa
/ Tudo sempre passaré / A vida vem
em ondas / Como um mar / Num
indo e vindo infinito. / Tudo 0 que
se vé ndo é / Igual ao que a gente
viu h4 um segundo / Tudo muda 0
tempo todo / No mundo. / Nao adi-
anta fugir / Nem mentir pra si mes-
mo agora / Hé tanta vida lé fora /
Aqui dentro sempre / Como uma
onda no mar.”
Como uma onda (Lulu Santos e
Nélson Motta)
‘Como uma ondaE com a lingua nao poderia ser de outro jeito. A lingua de ontem nao é
a de hoje, e a de hoje nao sera a de amanha: “Tudo o que se vé [e se
fala e se ouve e se /é] nao é igual ao que a gente viu [e falou e ouviu e
leu] ha um segundo”. Por isso, como também diz a cangao, “nao adian-
ta fugir nem mentir pra si mesmo" — a mudanca é inevitavel, irrefrea-
vel, eo melhor mesmo é aceitd-la, compreender seus mecanismos €
aprender a lidar serenamente com ela.
Toda lingua muda com 0 tempo
Por mais que isso parega Obvio, vale a pena repetir: toda lingua muda com
o tempo. Basta a gente comparar um texto escrito em portugués na Idade
Média, ou em 1600 ou mesmo ha cem anos atras com qualquer coisa
publicada nos dias de hoje. As diferencas saltam aos olhos, e as dificuldades
de compreensao vao crescendo quanto mais a gente recua no tempo:
Vallis autem ipsa ingens est vallis, iacens
Peregrinatio ad loca sancta (Peregri- daa
subter latus montis Dei, quae habet forsitan,
nagao aos lugares santos), século V,
de autoria da monja Etéria ou quantum potuimus videntes aestimare aut ipsi
Egéria, natural da Galiza (noroeste dicebant in longo milia passuum forsitan
da Espanba, regiéo-bergo da lingua
portuguesa), texto em que aparece:
algumas construgées tfpicas do cha-
mado “latim vulgar”, origem das lin- mus, ut possimus montem ingredi.
guas romanicas, como 0 portugués.
sedecim, in lato quattuor milia esse appella-
bant. Ipsam ergo vallem nos traversare habeba-
De noticia de torto que fecerii a Laurécius
Fernadiz por plazo qve fece Gécauo Ramiriz antre suos filios e Lourézo
Fernadiz quale podedes saber: e oue auer, de erdade e dauer, tato quome
uno de suos filios, daquato podes: auer de bona de seuo pater; e fiolios seu
pater e sua mater. E depois fecerti plazo nouo e céu: uos a saber quale; in
ille seem taes firmamentos quales podedes saber Ramiro Gocaluiz e Gocaluo
Géca [luiz e] Eluira Gécaluiz forii fiadores de
“Noticia de Torto” (entre 1214 € .
sua irmana que ofto}rgase aqulejle plazo come
1216), um dos registros escritos
mais antigos da lingua.
illos Super isto plazo ar fe[ce]ra suo plecto.
Easy segujmos nosso caminho per este mar delomgo ataa terga feira doitauas
de pascoa que foram xxj dias dabril que topamos algiitis synaaes de tera seemdo
da dita jlha segundo os pilotos deziam obra de bjc Ix ou Ixx legoas - os quaaes
hera muita camtidade deruas compridas aque os mareantes chama botelho ¢
Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguisticaasy outras aque tam bem chama Rabo dasno Eaaquarta feira segujmte pola
manhaa topamos aves aque cham fura buchos - e neeste dia aoras de bespera
‘ouuemos vista de tera primeiramente dhiii gramde monte muy alto .e Redomdo
e doutras serras mais baixas ao sul dele e de terra
chaa com grandes aruoredos ao qual monte alto Carta de Pero Vaz de Caminha
(1? de maio de 1500)
ocapitam pos nome o monte pascoal
Rio de Janeiro 11 Setembro 1857
Presado Pai
Aqui chegamos sem novidade e tendo felizmente escapado a grande chuva
que ainda hoje dura. As cartas todas esto entregues e o Joaquim leva a peca
de riscado da loja do primo José e os 12#000, como tambem uma lamparina
ou lampio que me pedio para comprar. Peco a meu Pai queira recommendar-
me ao primo Manoel e ao Senhor Veludo a langar a sua bengao sobre
Seu filho
amante Carta do poeta brasileiro Casimiro
Casimiro José Marques de Abreu de Abreu ao pai (1857).
MAIS UMA VEZ
AQUELE PRODUTO ee ee
: licidade do Prémio Top of
QUE VOCE NEM PRECISA 2006, estaimpada na Folha de S-Paiilo
DIZER O NOME de 18/10/2006, e na qual aparece 0 uso
GANHOU AQUELE da chamada oracdo relativa cortadora
PREMIO (‘aquele produto que vocé nem preci-
fs sa dizer 0 nome"), caracterfstica da
QUE VOCE gxamiética do portugués brasileiro.
JASABE
QUALE
Lendo as gramaticas normativas (e até mesmo algumas descri¢6es feitas por
linguistas), a gente tem a Impressao que a lingua esta pronta e acabada, que
ela pode até ter sofrido transformagdes no passado mas que, agora, as regras
esto fixadas para sempre. Mas isso € uma ilusdo. Enquanto tiver gente falando
uma lingua, ela vai sofrer variacao e mudanga, incessantemente. Os mesmos
processos que fizeram a lingua mudar no passado continuam em acao, fazen-
do a lingua mudar neste exato momento em que vocé |é o que eu escrevo.
Apesar dessa obviedade, a mudanga lingilistica sempre foi encarada como um
problema, como uma coisa negativa, como um sinal de ruina, decadéncia e
corrup¢ao da lingua (e da moral de seus falantes). No entanto, ela é inevitavel
tudo no universo, na natureza e na sociedade passa incessantemente por pro-
Como uma ondacessos de mudanga, de obsolescéncia, de reinvencao, de evolugao... Por que
sO a lingua teria de ficar parada no tempo e no espaco? Todas as demais
instituigdes humanas sofrem mudanca, por que a lingua nao sofreria?
De quem é a culpa?
Para sermos mais exatos, no entanto, seria melhor reformular aquele titulo 1a
de cima e escrever assim: os falantes mudam a lingua o tempo todo.
Porque é isso mesmo que acontece: somos nos, os falantes, que, impercep-
tivelmente, inconscientemente, vamos alterando as regras de funcionamen-
to da lingua, tornando ela mais adequada e mais satisfatoria para nossas
exigéncias de processamento mental, de comunicacao e interacao. Nao existe
lingua sem falantes. Por isso, nao é “a lingua” que muda — a lingua, afinal, nao
existe sozinha, solta no espago, como uma entidade mitica... S40 os falan-
tes, em sociedade, que mudam a lingua.
Conforme vimos no capitulo 3, existe na cultura ocidental uma velhissima
“tradicao da queixa” contra a mudanga lingliistica. Em cada momento dessa
tradic&o, as pessoas tentam atribuir a “culpa” da mudanca linglistica a al-
guém ou a algum grupo social: ora sao os jovens ("nao sabem mais falar a
lingua, sO usam giria” etc.), ora sé os professores (“que ndo sao mais téo
bons como antigamente" etc.), ora sao os escritores ("que se deixam conta-
minar pelos vicios da linguagem relaxada de hoje"), ora sao os meios de co-
municagao modernos, ora € a “mistura de racas” resultante dos contatos de
povos de “cultura superior” com povos de “cullura primitiva” (ou nenhuma
cultura, melhor dizendo....), ora S40 as “babas, cozinheiras e engraxates” (como
escreveu, num primor de preconceito social, 0 célebre gramatico brasileiro
Napoledo Mendes de Almeida). Enfim, nao faltam candidatos para ocupar 0
lugar do réu no julgamento do “crime” da mudanga lingtiistica.
No entanto, ninguém em particular tem “culpa” nenhuma neste caso. Como
escreveu em tom divertido 0 linguista Guy Deutscher:
Rastrear 0 suspeito pode, de inicio, parecer uma missdo um tanto ardua, ja
que € bastante dificil imaginar alguém que esteja realmente tentando mu-
dar a lingua. (Vocé esta?) Mas a identificacdo revela ser de uma absoluta
simplicidade, j4 que embora ninguém em particular esteja mudando a lin-
"Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variagao linguisticagua, o fato é que somos todos nds que provocamos as mudangas, mesmo que
nunca queiramos is
o, Existe um grande ntimero de coisas que as pessoas
provocam sem ter intengdo. Basta pensar nos engarrafamentos. Ninguém
jamais saiu de casa para sua locomogao didéria com o firme propésito de
criar um engarrafamento e, no entanto, cada mo- Guy Deutscher, The Unfolding of
torista contribui para 0 congestionamento a0 _ Language. New York: Metropolitan —
acrescentar um carro mais a uma avenida ja Books, 2005, p. 61.
superlotada.
O mesmo autor comenta que as
mudan¢as involuntarias nem sem-
pre precisam ser prejudiciais como
os engarrafamentos do transito.
Para explicar o processo da mudan-
ihaais
¢a linguistica, ele recorre a
uma comparacao bastante
interessante. Imagine dois
prédios publicos — por
exemplo, numa grande uni-
versidade — com um amplo
terreno cheio de mato sepa-
rando eles. O Unico caminho ee
previsto para ligar os dois
prédios € um passeio pavi-
mentado (uma calgada) que
contorna o terreno. Como
esse percurso leva muito tempo, as pessoas que tém de ir frequientemente de
um prédio ao outro comecam a atravessar 0 mato para atalhar. A primeira
pessoa que faz isso tem que abrir caminho pisando no capim alto, e as pes-
soas que vém depois descobrem que a trilha que a primeira pessoa Criou é0
percurso mais convidativo, porque parte do capim e outras plantas ja foi aplai-
nada. A medida que mais e mais gente atravessa 0 terreno, mais e mais
vegetacao fica esmagada, até que, por fim, a trilha se transforma num cami-
nho liso e limpo. O importante a salientar é que ninguém em particular criou
‘Como uma ondaesse novo caminho, e ninguém em particular teve a inten¢ao deliberada de
fazer isso. O caminho novo nao surgiu de algum projeto de paisagismo urba-
no, mas das aces esponténeas acumuladas dos atalhadores.
E assim também que a lingua muda — durante algum tempo, existe um Uni-
co modo de dizer determinada coisa e esse modo Unico pode até vir oficial-
mente registrado nas gramaticas e nos dicionarios (como a calcada que foi
oficialmente criada para levar de um prédio ao outro). Em determinado mo-
mento, porém, algumas pessoas comecam a dizer a mesma coisa de um
modo ligeiramente diferente (talvez por ser um modo mais facil, mas rapido,
mais enfatico, mais preciso de se expressar um atalho lingilistico). Com o
passar do tempo, essa forma nova é usada por cada vez mais pessoas, até
se firmar totalmente no uso da maioria dos falantes. Com isso, a forma antiga
(a calgada pavimentada) pode até continuar oficialmente existindo, mas nin-
guém ou quase ninguém mais segue por ali... E assim como em alguns luga-
res 0 poder pliblico acaba reconhecendo a utilidade do atalho e manda pavi-
mentar 0 caminho novo, também as novas formas de uso da lingua acabam
sendo incorporadas (so que muito, muito lentamente e com muita, muita resis-
téncia) pelas gramaticas e pelos dicionarios.
Mais uma vez: nada na lingua é por acaso
Tudo o que acontece numa lingua viva, falada por seres humanos,
tem uma razao de ser. E essa razao de ser nao tem nada a ver com a
preguica, 0 descaso, a corrupcao moral, a falta de inteligéncia, a mistura de
racas, e outras alegacdes preconceituosas que vém sendo repetidas desde
antes de Cristo.
A lingua é uma atividade social, ela é parte integrante (e constitutiva) da
vida em sociedade. Por isso as mudangas que ocorrem na lingua sao fruto da
acao coletiva de seus falantes, uma acdo impulsionada pelas necessidades
que esses falantes sentem de se comunicar melhor, de dar mais precisdo ou
expressividade ao que querem dizer, de enriquecer as palavras ja existentes
com novos sentidos (principalmente os sentidos figurados, metafdricos), de
Criar novas palavras para dar uma idéia mais precisa de seus desejos de
interacao, de modificar as regras gramaticais da lingua para que novos mo-
dos de pensar e de sentir, novos modos de interpretar a realidade sejam ex-
pressos por novos modos de dizer.
Nada na lingua @ por acaso: por uma pedagogia da variagaio linguisticaA mudanca linglistica € resultado da interacdo entre fatores internos — os
mecanismos cognitivos que processam a linguagem dentro do nosso cére-
bro — e fatores externos a lingua, ou Seja, fatores sociais e culturais.
As mudancas lingUisticas nao ocorrem aleatoriamente e por isso é que repe-
timos: nada na lingua é por acaso. Quando as pessoas sem conhecimento
especifico dos processos de mudanca falam de “erro”, na verdade o que elas
estado chamando de “erro” € algum fendmeno de transformagao pelo qual a
lingua esta passando. Uma transformagao que nada tem de fortuito, de ca-
sual, nem de aleatorio. E que é fruto, insistimos, da agao dos préprios falan-
tes sobre a lingua, a mesma acdo que transformou o indo-europeu em
latim, o latim em portugués, e que esta transformando o portugués numa
lingua que amanha nao sera a mesma de hoje... Se nds tivermos que aceitar
a doutrina do “erro”, vamos ser obrigados a dizer que o portugués, 0 espa-
nhol, 0 catalao, o francés, 0 italiano, o romeno etc. sao “latim falado errado”, o
que é totalmente absurdo numa perspectiva cientifica minimamente criteriosa.
Igualmente absurdo é dizer que 0 portugués brasileiro é uma maneira “erra-
da” de falar a lingua, somente porque aqui no Brasil ela apresenta caracteris-
ticas estruturais diferentes das do portugués europeu.
A mudanca surge de variantes em concorréncia
A heterogeneidade social ¢ um fator importantissimo para se compreender
os fenémenos da mudanga lingUiistica — a sociedade € composta por diversos
grupos, cada um deles com seu modo caracteristico de falar a lingua (sua varie-
dade |ingtiistica), com sua dinémica social propria, com sua cultura particular.
Por isso, como em outros aspects da vida social (como os habitos, os compor-
tamentos, as crengas, os rituais etc), a mudanga |inglilstica nao ocorre toda de
uma vez dentro da comunidade de falantes — uma parte dos falantes adota
mais rapidamente a mudanc¢a, outra parte conserva por algum tempo as formas
antigas. Assim, 0 que ocorre € uma competicao, uma concorréncia entre a
variante inovadora e a variante conservadora. Por isso 0 estudo da variagéo €
téo importante para a compreenséo do fendmeno da mudanga lingtiistica — a
lingua muda porque varia, isto é, porque algumas pessoas preferem usar um
atalho em vez de seguir pelo caminho pavimentado ja existente.
As vezes, a forma inovadora suplanta completamente a forma mais antiga,
que desaparece da lingua sem deixar tragos. Quando estudamos a historia
‘Como uma ondado portugués e consultamos documentos escritos muito antigos, encontra-
mos uma grande quantidade de palavras, express6es, regras fonoldgicas,
morfolégicas e sintaéticas que desapareceram com 0 tempo, ndéo. séo mais
usadas na lingua de hoje. Por exemplo, no caso dos seguintes verbos:
PORTUGUES ANTIGO PORTUGUES ATUAL
eu arco eu ardo
eu sengo eu sinto
eu mengo eu minto
eu perco eu perco
eu moiro eu morro
eu paresco eu pareco
Para que as variantes inovadoras (que estao em uso até hoje) se firmassem,
elas tiveram primeiro de entrar em concorréncia com as formas que eram
entéo as mais empregadas. Nesse caso, estamos diante de uma mudanca
que se completou totalmente: nenhum falante de portugués, nem no Brasil
nem em Portugal, usa mais as formas SENCO, MENCO, ARGO etc. (lembrando
ainda que 0 ¢, naqueles tempos, era pronunciado [ts], coisa que também
desapareceu da lingua)
Podemos descrever 0 fendmeno da mudanga usando a figura abaixo,
em que temos a linha continua do tempo e quatro momentos da histéria
da lingua:
SENCO SENGO SENTO ~SINTO
Me ieee x
sinto - senco I
1 - 3 4
No primeiro momento, a forma senco era a Unica que existia na lingua. No
segundo momento, aparece a forma siNTo, provavelmente usada por grupos
restritos da populagao, e que comega a concorrer com seENGO. No terceiro
momento, 0 uso cada vez mais amplo da forma nova siNTo transformou sENco
em forma pouco prestigiada e de uso cada vez mais reduzido. Por fim, no
Ultimo momento, a forma sinto aparece como Unica possibilidade de expres-
sar a 1* pessoa do singular do presente do indicativo do verbo sentir. A forma
SINTO esta imperando ha muitos séculos, mas ela também pode vir a ser
desbancada, no futuro, por alguma nova concorrente.
Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da variagao linguisticaEm outros casos, a concorréncia acaba dando a vitdria a variante inovadora,
sim, mas a variante mais antiga sobrevive em algumas variedades especifi-
cas, principalmente em variedades regionais mais isoladas, como no caso
das zonas rurais. Para comecar a entender isso, leia 0 seguinte paragrafo:
Huma fruita se da nesta terra do Brasil muito sabrosa, e mais prezada de
quantas ha. Cria-se numa planta humilde junto do chao, a qual tem humas
pencas como cardo, a fruita della nasce como alcachofras e parecem natural-
mente pinhas, e sao do mesmo tamanho, chamdo-lhes Ananazes, e depois de
maduros tém hum cheiro muito excellente, colhem-nos como sao de vez, €
com huma faca tirdo-Ihes aquella casca grossa e fazem-nos em talhadas e
desta maneira se comem, excedem no gosto a quantas fruitas ha neste Reino,
e fazem todos tanto por esta fruita, que mandao plantar rogas della, como de
cardaes: a este nosso Reino trazem muitos destes ananazes em conserva.
Esse trecho foi retirado do Tratado da terra do Brasil, no qual se contém a
informacao das cousas que hé nestas partes, da autoria do portugués Pero de
Magalhaes de Gandavo, que visitou a recém-conquistada Terra de Santa Cruz e
escreveu uma detalhada descricao da nossa fauna, da nossa flora, da geogra-
fia das regides que visitou etc. Essa visita deve ter ocorrido por volta de 1572,
ou seja, ha quase quinhentos anos. No trecho selecionado, ele descreve 0 ana-
nas, que hoje chamamos mais comumente de ABACAxI. Gandavo também pu-
blicou uma obra gramatical: Regras que ensinam a maneira de escrever (1574).
Na leitura desse paragrafo de Gandavo, vocé sg, reas do interior de So
deve ter notado, entre tantas coisas curiosas, Paulo, rrur também é outro nome
0 uso que ele faz algumas vezes da palavra ‘Para a auticana. Em variedades nor-
4 : a destinas (Pernambuco, Alagoas),
FRUITA. “Que interessante”, pensara vocé, "NOje mura é uma forma depreciativa de
nds dizemos e escrevemos FRUTA...” Espere designar o homossexual. masculino,
um pouco: nds, quem? Se é verdade que a
grande maioria dos brasileiros diz FRuTA, também existem comunidades
em que a forma FRuITA sobrevive. Que comunidades sdo essas? Comuni-
dades rurais, distantes dos grandes centros urbanos e marcadas pelo aces-
so muito restrito a escolarizaco e a cultura letrada. O uso de FRUITA pro-
vavelmente vai se reduzir com o avango do tempo, sobretudo por causa
da ampla difuséo das formas lingtisticas majoritarias favorecida pelos
meios de comunica¢ao, dos quais certamente 0 mais poderoso e influen-
te € a televisdo, e também pelo maior acesso a escola.
Como uma ondaOs falantes urbanos escolarizados acham “esquisita”, “feia”, “engracada” ou
“errada” a prontincia FRuITA, com ditongo, porque ela esta ausente da fala e
da escrita da grande maioria da populacéo — e as minorias, sejam elas ra-
ciais, Sexuais ou lingtisticas, infelizmente sempre sofrem estigmatizacao.
Essa avaliacdo negativa também se deve ao fato de que a grande maioria
das pessoas nao tem conhecimento da histdria da lingua, dos processos de
transformagdo que afetaram o portugués ao longo do tempo. O conheci-
mento desses processos talvez levasse a gente a ter a reacao exatamente
oposta, a estranhar a forma sem 0 ditongo: por que é que FRUTA perdeu 0 |,
se ele se preservou em outras palavras que passaram por processos se-
melhantes? Observe:
LATIM > PORTUGUES
directu- direito
factu- feito
fructa- fruita
iactu- jeito
lacte- leite
lectu- leito
lucta- luita
nocte- noite
octu- oito
pectu- peito
profectu- proveito
rector- reitor
secta- seita
Logo se percebe que 0 grupo latino -cr- se transformou regularmente, em
portugués, em -It-, e de fato todas as palavras da lista acima conservam até
hoje o | diante do 1, com excecéo de FRUTA e LUTA. Nessas duas palavras, 0
processo deu um passo adiante, eliminando-se o ditongo. Provavelmente, a
presenca do u nessas duas palavras, uma vogal tao fechada quanto 0 |, favo-
receu 0 desaparecimento do ditongo (num processo que chamamos, em
lingiistica historica, de assimilagao). Nao por acaso, a variante LuITA é usada
pelos mesmos falantes que usam FRUITA.
Aqui, ao contrario dos verbos que mostramos mais acima, ainda encontra-
Mos variedades lingiiisticas em que as formas FRUIT e LUITA sobrevivem. A
‘Nada na lingua 6 por acaso: por uma pedagogia da variagao linglisticaconcorréncia entre as variantes inovadoras e antigas, a0 longo do tempo,
somente inverteu o prestigio de cada uma delas, mas ndo foi suficiente para
eliminar completamente a forma mais antiga:
O mesmo acontece com outras palavras que encontramos na fala dos brasi-
leiros da zona rural e que soam “estranhas” aos ouvidos dos falantes urba-
nos: La (com nasalizagao do u), SOMANA, ENTONCE, PREGUNTAR, OITUBRO, AMENHA,
DEREITO — sao todas formas antigas, que a gente encontra facilmente na
literatura medieval portuguesa.
FRUITA’ |”
1
Uma descricao mais precisa e honesta da mudanca
Isso deixa bem claro que a mudan¢a lingilistica é um processo extremamen-
te complexo, lento e gradual. Quando consultamos as gramaticas histdricas,
o modo de apresentagao dos processos de mudanga é reduzido a uma
linearidade que nao condiz com a visao mais dinamica oferecida pela Socio-
lingUistica. Nas gramaticas historicas, encontramos a formula a > b, isto é, “A
se transformou em 6", como se a transformacao tivesse sido automatica e
total, como se todos os falantes da lingua, da noite para o dia, tivessem dei-
xado de usar a forma A para so usar a forma B... Ora, para que B apareca
como a forma nova e Unica (ou majoritaria), € preciso antes que ela tenha
entrado em concorréncia social com A, € preciso que as duas variantes
tenham convivido, com diferentes graus de prestigio, durante algum tempo
no seio de uma comunidade lingtistica.
Outro problema das graméaticas historicas € que elas se baseiam exclusi-
vamente na lingua escrita literaria ou nas variedades urbanas de presti-
gio, desprezando a coexisténcia, nas diferentes fases histdricas da lingua,
de formas antigas e formas inovadoras, como no caso do par FRUTA ~
FRUITA, € O USO Social diferenciado de cada uma delas. Com isso, nao é
exato dizer que o latim FRUCTA se transformou em FRUITA e depois em
FRUTA. Mais exato é dizer que a forma arcaica FRUITA se transformou, na
maioria das variedades da lingua, em FRUTA, mas que ela ainda sobrevive
no uso de algumas comunidades de falantes, em concorréncia e co-ocor-
réncia com a forma majoritaria.
Como uma ondaO mesmo desprezo pelas variedades rurais, regionais e carentes de prestigio
social aparece no fato das formas inovadoras surgidas nessas variedades
nao serem contempladas pelas gramaticas historicas. Se a gente con-
sulta a palavra TELHA numa gramatica historica ou num dicionario etimolégico
do portugués, 0 que aparece é
(latim) TEcULA > TeLHA (portugués)
SO que nds sabemos, para comecar, que, por razdes de ordem fonético-
fonoldgica. o latim TEGULA nao pode ter se transformado diretamente em TELHA.
Entre TEGULA e TELHA devem ter ocorrido diversas etapas de variagao e mudan-
¢a, provavelmente assim (as palavras com um asterisco representam formas
hipotéticas, ndo atestadas em nenhum documento escrito, mas deduziveis
com base no conhecimento que temos das regras da fonologia historica):
TEGULA U| *TEGLA LY *TEYLA -*TELYA -TELHA
xe ae eae me eel |
*tegla- *teyla- *telya- telha - |
Além disso, nos também sabemos que a forma TELHA, pronunciada [tef a],
nao é a tinica variante existente na nossa lingua. Milhdes de brasileiros (tal-
vez até a maioria deles!) pronunciam [teyal, isto é, deslateralizaram a conso-
ante /f/ e dela conservaram apenas 0 tra¢o palatal, levando a mudanga
lingiistica um passo adiante. Para descrever mais fielmente (e mais honesta-
mente também) a realidade do portugués brasileiro, € preciso portanto incor-
porar os novos processos de variagéo e mudan¢a:
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a h—hrtits«~—O.C—C.CC=iitéiwsOCMCSCO.CSC