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(20230407-PT) Ípsilon - Público
(20230407-PT) Ípsilon - Público
conseguimos
ler um livro?
José Alves (Ilustrações) em dia… Mas ando para aqui a desperdiçar o meu tempo
nas redes sociais.”
menta, podemos permitir que as ferramentas necessárias tura” foi passada com o telemóvel entre as mãos.
para manter a atenção fiquem enferrujadas — o que não A leitura sempre foi um dos maiores passatempos de
favorece actividades como a leitura de um livro. Rita Constantino, mas hoje dá por si a dedicar-lhe menos
tempo. A jovem de 22 anos, que está a tirar um mestrado
A Internet estupidiÄcou-nos? em Engenharia do Ambiente, tem algumas estratégias
A influência que a Internet pode ter no nosso cérebro, seja para ler melhor ou manter a concentração, entre as quais
a curto ou a longo prazo, é um tema que vem sendo estu- deixar o telemóvel noutra divisão da casa ou definir pe-
dado há já alguns anos, não existindo ainda noções clara- quenos objectivos — “Por exemplo: ‘Hoje avanço 30 pá-
mente consensuais (de estudos diferentes, cada um com ginas e não vou dormir sem as ler’” —, mas isto nem
a sua metodologia, saíram observações contraditórias). sempre tem produzido os resultados desejados.
Ainda assim, a literatura científica disponível parece, no Depois de um dia passado no seu estágio curricular,
geral, indicar que de facto a Internet pode alterar a nossa Rita quer “desligar o cérebro”. “Ver um episódio de uma
capacidade para prestar atenção. Di-lo, por exemplo, um série ou passar algum tempo no Instagram a ver reels, ou
estudo de 2019 que parte de várias descobertas psicoló- então simplesmente ouvir música, é mais ‘fácil’. O resul-
tado é que ando a passear o livro na mochila”, descreve
esta residente em Alcabideche (Cascais).
O algoritmo vai permanentemente recomendando
VALTER HUGO MÃE, ESCRITOR conteúdos que à partida estão relacionados com os nos-
Criar um “teatro de leitura” é uma boa estratégia sos interesses, pelo que “é muito fácil acabarmos em duas
para ler melhor. “Gosto de ter um certo aparato. horas diárias de divagação digital”, observa a escritora
Leio melhor quando estou sentado à mesa. Yara Monteiro, que destaca a importância da automoni-
Gosto que o livro esteja pousado, gosto também torização. A autora de livros como Essa Dama Bate Bué
de uma boa luz…” gosta de consultar o relatório semanal em que o seu
aperfeiçoou
ç o modelo Isto deriva do facto de nos termos autotreinado para
estarmos dependentes do telemóvel.
Se conseguirmos quebrar essa ligação entre ele e
da distracção”
nós próprios durante pelo menos uma parte do dia,
penso que essa será uma forma importante de
começarmos a “retreinar” o cérebro para voltar a ser
capaz de prestar mais atenção. Mas é difícil, porque,
desde o início, as pessoas começaram a andar com o
smartphone no bolso o dia todo.
“A Internet está a treinar-nos para sermos pessoas distraídas, A segunda coisa que faço é tentar passar pouco
tempo nas redes sociais (mesmo que isso implique
e não para mantermos a atenção”, diz o escritor. Por Daniel Dias sacrificar alguma da minha vida social). E a terceira é
simplesmente desactivar as notificações.
Tem “rituais de leitura”, uma certa receita que siga
H
á 15 anos, o escritor norte-americano Nicholas acontecer à nossa volta, porque era uma forma de para ler melhor?
G. Carr escreveu um artigo chamado Is Google sobrevivência (queríamos conseguir ver ameaças Oxalá pudesse dizer que sim. Como escrevo livros de
making us stupid? (Estará o Google a antes que fosse impossível escaparmos a elas). Somos não-ficção, uso muito a Internet nas minhas
tornar-nos estúpidos?) para a revista The distraídos por natureza. Se nos é dada uma pesquisas. O meu trabalho exige alguma leitura na
Atlantic. Este ensaio crítico da forma como a quantidade ilimitada de informação nova a toda a diagonal, o que depois dificulta eu ter a disciplina
Internet pode afectar a nossa capacidade de hora, sentimos um desejo muito forte de a recolher. A para, no meu tempo de descanso, ler uma obra
manter a atenção durante um período prolongado de capacidade de prestar atenção é algo que temos de literária de forma imersiva. Se for tentar ler durante
tempo foi altamente debatido. Alguns elogiaram-no ensinar a nós próprios, porque vai contra a nossa um período prolongado de tempo, desligo o
por ter ajudado a acelerar um debate sobre a possível natureza como recolhedores de informação. telemóvel, mas não posso dizer que tenha
influência das tecnologias no nosso cérebro. Outros Se juntarmos isto àquelas que são as estratégias das aperfeiçoado um protocolo para ler melhor.
acharam que o texto era alarmista. empresas de redes sociais… O Facebook, o Twitter e as Um crítico do seu artigo de 2008 definiu a sua tese
Mais de uma década depois, Carr, que no livro Os outras plataformas querem manter-nos distraídos. como “provocadora” e escreveu que os “adultos
Superficiais (ed. Gradiva, 2012) explora ainda mais Quanto maior for a velocidade com que passamos de responsáveis” sempre tiveram de lidar com várias
este tema, defende ao Ípsilon que o tempo veio uma informação para outra, mais oportunidades têm distracções. Como responderia?
demonstrar que tinha razão. Diz que as ameaças à de nos mostrar anúncios publicitários e de recolher Acho que o defeito dessa crítica é que esquece o facto
nossa concentração estão a crescer e que, imersos que mais informações sobre nós. de que as distracções são cumulativas. É claro que já
estamos no mundo das redes sociais, tornamo-nos Diria que as ameaças à nossa concentração estão havia distracções há 50 anos, e há 100, e há 500. Mas
pessoas cada vez mais distraídas, habituadas a a crescer, até com a emergência de novas redes agora temos uma série delas em conjunto — e nunca
conteúdos breves e com dificuldade em sociais como o TikTok? tivemos uma tecnologia como a Internet e o
mergulharmos num livro. Diria que sim, e diria que, por agora, o TikTok smartphone, que nos inundam constantemente de
Em 2008, perguntou se o Google estava aperfeiçoou o modelo da distracção. Isto é, pequenos pedaços de informação interessante. Nunca
a tornar-nos estúpidos. Passados 15 anos, aperfeiçoou esta habilidade de usar a inteligência estivemos numa situação como aquela em que
como responderia à sua própria questão? artificial para descobrir precisamente aquilo que estamos hoje.
O que tentei expressar foi algo que estava a sentir na agarrará a nossa atenção durante pelo menos alguns
minha própria vida: estava a passar tanto tempo segundos — e depois dar-nos a próxima coisa, e depois
online, a recolher tanta informação e a levar com a próxima, e depois a próxima. Há 15 anos, o escritor norte-americano Nicholas
tantos estímulos que estava a ter dificuldade em Uma coisa que importa realçar quando se fala de G. Carr escreveu “Is Google making us stupid?”
manter o foco por muito tempo. A área do dia-a-dia ameaças à concentração é que a leitura atenta exige para a Atlantic. A situação só piorou, defende.
em que me apercebi mesmo disto foi a leitura: estava a que a pessoa se afaste um pouco da sociedade, de MERRICK CHASE
ter dificuldade em ler livros, ensaios… certa forma. O ambiente digital permite-nos socializar
Qualquer tipo de leitura que exija atenção a toda a hora. E nós somos criaturas sociais, portanto
sustentada. Senti, então, que a Internet está é difícil criar o ambiente ideal para uma pessoa estar
a treinar-nos para sermos pessoas distraídas, sozinha a prestar atenção a uma só coisa, como um
e não para mantermos a atenção. livro, durante um período longo de tempo.
Infelizmente, penso que a minha tese foi Já conseguiu superar os problemas de
comprovada. Tudo tem piorado. Quando concentração de que falava no seu artigo?
escrevi esse artigo, os smartphones e as redes Ainda preciso de fazer um esforço considerável para
sociais ainda eram uma coisa nova. O meu ler durante algum tempo. E estamos a falar de algo
texto antecede essa revolução. Os que eu conseguia fazer com muita naturalidade. A
smartphones são algo que levamos connosco Internet e o meu computador pessoal têm tornado a
para todo o lado, portanto estão sempre a leitura uma tarefa cada vez mais complicada. E
roubar a nossa atenção. Quanto às redes mesmo sabendo que isto é algo que me afecta,
sociais, elas mantêm-nos a ler a toda a hora, continuo a ter dificuldade em me manter longe de
mas encorajam-nos a passar de uma coisa distracções.
para a outra constantemente. Estão sempre a dar-nos Tem regras de utilização da Internet
notificações e alertas. O ambiente que criam é e do telemóvel?
contrário ao ambiente calmo de que precisamos para Há algumas coisas que tento fazer. A principal, que é
ler atentamente. também a mais desafiante, é simplesmente não andar
Os humanos gostam de ser entretidos. E nós somos o dia todo com o telemóvel de um lado para o outro.
recolhedores de informação. Quando a espécie estava Como estamos sempre a transportar este objecto que
a desenvolver-se, queríamos saber tudo o que estava tem uma quantidade ilimitada de informação
em sintonia
bitos de leitura à medida que vai entrando “na vida estipulamos para as sessões não chegam e as discussões
adulta, caótica e rápida do trabalho”. Aproveitar o tempo continuam ali.”
passado nos transportes públicos é essencial. Optou re- “Esse sentido de pertença a um grupo através de um
centemente por comprar auscultadores com cancela- livro é muito interessante”, diz Isabel Machado,
mento de ruído para conseguir manter a concentração coordenadora da Biblioteca/Espaço Cultural Cinema
e ouvir a narração da sua “voz interna” mesmo nas horas Europa, que dinamiza com Teresa Monteiro,
de maior rebuliço. bibliotecária da Casa Fernando Pessoa, o novíssimo
Joana também tenta gerir a sua lista de leitura em
função da sua vida. Passa a explicar: “Se estiver num
Se a Internet nos distrai e rouba Clube de Leitura de Poesia. “Desmistifica e traz para o
nosso dia-a-dia a literatura, de uma forma muito
período mais trabalhoso, opto sempre por livros mais
‘leves’, que requeiram menos da minha atenção — livros
a atenção do livro, por todo o simples.” Os leitores sentem-se à vontade para discutir
um livro sem se ter medo de errar. “Cria-se um
de poesia pequenos, livros de leitura rápida, coisas desse
género. Quando tenho mais tempo livre, opto sempre
país nascem comunidades de compromisso com a leitura, que muitas vezes sozinhos,
nas nossas lides diárias, perdemos”, continua uma das
por ler coisas novas e que me desafiem, como psicologia
e filosofia.”
leitores apostadas em resistir. dinamizadoras deste encontro mensal criado no âmbito
da Feira do Livro de Poesia, em Lisboa.
Daniela Sá passou a ler mais e-books. “Percebi que com
o livro físico consultava o telemóvel à procura de um
“Cria-se um compromisso com “Muitas vezes o que estou a ler nem com o meu
marido partilho. Pode até acontecer falar-lhe do livro;
significado e, mal isso acontecia, perdia-me. Há um cha-
mamento inexplicável para estarmos sempre ligados.”
a leitura.” Por Isabel Coutinho ele ter vontade de o ler. Mas não estamos em sintonia,
não estamos na mesma página. Estes clubes têm isto de
Vera Gonçalves também tem, como Rita Constantino, engraçado: o podermos partilhar.”
N
uma estratégia ancorada em metas diárias. “Tento obri- este século XXI, pode uma actividade tão O Clube de Leitura de Poesia funcionará até Junho na
gar-me a não pegar no telemóvel até terminar um deter- antiga como um clube de leitura transformar os Casa Fernando Pessoa e depois, de Setembro a
minado número de capítulos ou chegar a uma certa pá- hábitos de alguém que habitualmente não lê? A Dezembro, na Biblioteca/Espaço Cultural Cinema
gina. Às vezes resulta, outras nem por isso”, assinala. “É história de Andreia Nascimento, licenciada em Europa, também em Lisboa. Com a especificidade de
preciso muito autocontrolo para dizer: ‘Nestas duas ho- Tecnologias da Informação e Multimédia que ser dedicado a poetas, à sua obra e à sua vida, e não a
ras, vou simplesmente colocar o telemóvel em silêncio e trabalhou em marketing digital, prova que sim. livros específicos, teve a primeira sessão dedicada ao
ler’”, reconhece a neurologista Liliana Letra. “Quem diz Participante desde o primeiro dia no clube do livro poeta António Ramos Rosa em Março. “O papel do
‘ler’ diz ‘trabalhar’ ou outra coisa qualquer. Temos muita feminista Heróides, o projecto da estrutura artística moderador é também deixar os participantes à vontade
dificuldade em desligar, o que causa muito stress.” Cassandra que a actriz Sara Barros Leitão lançou em para uma leitura em voz alta e abrir caminho para uma
Lúcia Nunes gosta de ler livros físicos — para admirar 2021 com sessões mensais online, Andreia é agora partilha mais performativa”, conta Isabel Machado. Por
a capa, para sentir o cheiro do papel… —, mas diz co-curadora do projecto. isso, lançaram a ideia de no futuro se realizar uma
que os audiolivros também são uma “Vou ser sincera. Quando fui para este clube do livro sessão informal, aberta ao público, em que todos
boa opção, permitindo-lhe fazer ou- tinha poucos hábitos de leitura, não sei se por poderão fazer leitura de poemas em voz alta.
tras coisas em simultâneo (coisas que não “des- hiperactividade ou por aborrecimento”, conta por Os participantes não têm de gastar dinheiro a
viem” a atenção, como fazer tricô, o u t r o telefone. Nas Heróides não há obrigatoriedade de se ter comprar os livros caso não os possuam, porque as obras
hobby seu). A editora Maria do Rosário Pedreira lido o livro em destaque, mas, como Andreia queria ter existem nas duas bibliotecas para empréstimo. E a
considera que os audiolivros “funcio- ideias sobre o que tinha lido e participar na discussão, biblioteca da Casa Fernando Pessoa, onde se realizou a
nam para cursos de línguas”, bem teve de arranjar um método para conseguir ler as obras tertúlia, é especializada em poesia nacional e
como para “pessoas que têm de fazer escolhidas. “No início foi custoso. Obrigava-me a ter estrangeira, no original ou em tradução.
viagens grandes de carro todos os dias”, mas sente uma rotina. Mas, com o tempo, acho que o gosto da Apareceram jovens universitários que não conheciam
que têm uma desvantagem: “Já trazem a entoação leitura me foi incutido.” Além de ler os livros do clube a obra do autor de Não Posso Adiar o Coração, mas
de quem está a ler. O leitor não faz o mesmo tipo do livro feminista, começou a comprar e a ler os que também houve quem levasse os seus poemas preferidos
de participação na história.” eram sugeridos nas sessões. “Quando dei por mim do poeta. As mulheres estavam em maioria e as 20
Yara Monteiro refere que a meditação, en- estava a ler três livros por mês.” vagas abertas foram preenchidas. “Todos mostraram
quanto prática diária, pode ser benéfica para a Neste terceiro ano de actividade, as Heróides já se vontade de continuar. As pessoas estavam satisfeitas
leitura: ajuda a reorganizar os pensamentos e a vêem como uma comunidade em que todos os com a existência deste clube e com o que vieram aqui
reduzir o ruído mental, diz a escritora. participantes disponibilizam a sua ajuda seja para o que encontrar”, recorda Teresa Monteiro. Querem
Em termos de receitas, a Associação Portuguesa for. Juntam-se cerca de 200 pessoas por sessão, as continuar numa linha de poetas do século XX. Na
de Editores e Livreiros, que recorre a dados disponi- idades vão dos 20 aos 80 anos, e perto de 70% assistem votação saiu vencedor Ruy Belo, o escolhido para a
bilizados pela consultora GfK, indica que em 2022 o às sessões desde o início. As inscrições estão já abertas próxima sessão, a 18 de Abril. “Cada um vai estar às
mercado do livro em Portugal cresceu 16% face ao ano para a próxima sessão online, a 29 de Abril, das 11h às voltas com os seus poemas preferidos de Ruy Belo e
anterior. Ao todo, foram vendidos no ano passado 12,7 13h: discutir-se-á Poemas, de Hannah Arendt, e a vamos fazer também a ligação com António Ramos
milhões de livros, principalmente do género infanto-ju- convidada é Isabel do Carmo. Rosa. Aos poucos, queremos ir encontrando um
venil (quase 34%). No ano passado começaram a ter algumas sessões possível alinhamento de poemas que poderão depois
Entre o comprar e o ler há um caminho a trilhar. Rita presenciais. Notaram uma diferença enorme na ser trabalhados com a actriz Teresa Lima, que há-de
Constantino diz que no último ano deixou três livros a interacção entre os participantes. Este ano estão chegar em Junho para trabalhar a leitura em voz alta
meio. “Comprava, ou então emprestavam-me outro que marcadas três. Nas sessões presenciais sem convidados com os elementos do grupo”, explica Isabel Machado.
me chamava mais a atenção ou que estava mais ‘na haverá leituras encenadas das obras que discutem em Zulaica Mendes Gusmão, 75 anos, que vive no
moda’.” conjunto. “Sempre numa perspectiva feminista.” Entroncamento, veio de propósito a Lisboa para
A jovem diz que perder a vontade de acabar um livro é Com o apoio de editoras, têm estado a deixar livros participar no Clube de Leitura de Poesia. Vai voltar
algo que se tem tornado mais recorrente. “Antes, ler era a espalhados por vários locais de algumas cidades. Têm todos os meses. “O meu entusiasmo vem da minha
minha escapatória. Agora, o telemóvel veio substituir isso. uma carta dentro com a apresentação do clube e um sensibilidade para a poesia”, conta por telefone a
O problema no meio disto tudo é que fico a sentir-me mal convite à participação. “Tem sido espectacular. Temos professora reformada de Educação Musical. “Senti-me
comigo mesma: julgo-me a mim própria por passar mais
tempo no telemóvel em vez de estar a ler um livro.”
“Não se trata de querermos mais superficialidade — a
nova geração não é menos inteligente do que a minha —,
a questão é que há tanta informação disponível e que
queremos consumir que acabamos por sentir alguma
“Tem sido surpreendente que uma estratégia d
dificuldade”, diz Moshe Bar, que não é imune aos pro-
blemas discutidos neste texto (o neurocientista pratica-
mente já só lê coisas no âmbito da sua investigação, já
e antiga quanto os grupos de leitores c
não lê por prazer como outrora). “Não é culpa nossa.”
(Então, conseguiu ler este texto sem distracções?) e a chegar a novos canais de comunicação”, d
6 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
promoção da leitura tão tradicional e tão antiga quanto
os grupos de leitores continue a captar interesse, a
evoluir e a chegar a novos canais de comunicação e a
criar espaços de socialização através da leitura.”
Aspecto também importante é não ser um fenómeno
urbano. “Temos um mapa bastante homogéneo pelo
país, desde o interior do Alentejo à zona das beiras,
Serra da Estrela ou a zona de Trás-os-Montes. É bastante
equilibrado, por vezes até surpreendentemente
equilibrado tendo em conta outras assimetrias que
temos no acesso à leitura e bens culturais.”
Para Bruno Eiras, que dinamizou grupos de leitores
durante 14 anos na biblioteca de Oeiras com mais dois
colegas, este formato resulta também porque trabalha
as questões da leitura num contexto de socialização. “As
pessoas encontram-se, o livro é o tema da conversa
central, mas naturalmente há outras actividades em
paralelo”. Aquelas pessoas continuam a encontrar-se
depois da sessão e a falar sobre o livro, vão ao teatro, ao
cinema, e criam laços sociais também através da leitura.
“O facto de se ler entre pares é um fenómeno também
muito interessante de ser visto”, continua. Lembra
como exemplo de grande sucesso em Portugal os
grupos de leitura que Helena Vasconcelos, crítica
literária do Ípsilon, dinamizava na Culturgest (também o
fez na Gulbenkian e no CCB) ou de Maria da Conceição
TERESA PACHECO MIRANDA
Caleiro (também antiga crítica literária do PÚBLICO) na
muito à vontade, porque às vezes as pessoas sentem-se variedade de profissões representadas, o que enriquece Um encontro livraria Buchholz, em Lisboa, tendo elas sido pioneiras
muito inibidas para dizer poesia. O ambiente parecia de sobremaneira a forma como encaram os livros.” Não das Heróides em Portugal no formato. “Os casos das comunidades de
quase familiar.” se fica pela Maia: mais de metade do grupo são pessoas em Torres leitores que hoje existem são bastante informais e são
Descobriu recentemente a tertúlia Tesouros Poéticos, do Porto, Matosinhos, Gaia, Ermesinde, Trofa. “A Vedras, em claramente grupos de leitura entre pares. Aquilo não
dinamizada pela declamadora Maria Maya, no Museu dinâmica e o espírito de camaradagem criam laços Maio de 2022 são aulas de literatura, não são aulas de crítica literária
dos Coches, e já há alguns anos é sócia da Casa-Memória afectivos muito fortes. Isso acaba por fazer a diferença.” ou de análise textual. São leitores a falar com leitores
Camões em Constância, onde faz parte de um grupo Na próxima sessão será discutido o romance A Loja sobre aquilo que leram, a concordar e a discordar, a
que organiza uma tertúlia mensal sobre um tema. O das Duas Esquinas, de Fernando Campos. Organizam trocar opiniões e cada um a trazer o seu contributo.”
próximo encontro acontece a 15 de Abril e será sobre intercâmbios com outras comunidades. “Tinha sempre Nestes grupos de leitura são por vezes propostos
poesia de intervenção. a ideia que as pessoas estavam muito fechadas e um livros que algumas pessoas teriam reticências em pegar
Também Eugénia Faria se divide por várias Verão fui a Coimbra e assisti à comunidade de leitores neles. “Mas a dinâmica de grupo tem isto: abrem-se
comunidades de leitores. Aos 77 anos, esta professora que havia na biblioteca. Desafiei-os para que nos caminhos e espaço para descobertas que a pessoa
de Português reformada coordena a Comunidade de fizessem uma visita e discutimos O Arquipélago da sozinha não o faria”, conclui Bruno Eiras.
Leitores APRe! (Associação de Reformados Pensionistas Insónia, de António Lobo Antunes”, conta Jorge Silva.
e Idosos), que acontece na primeira quarta-feira do “Depois fizemos o mesmo convite à Comunidade de
mês, às 15h, na biblioteca municipal de Matosinhos, e é Leitores da Figueira da Foz. Eles vieram à Maia, nós
aberta à comunidade. “Há verdadeiros amantes da fomos a Coimbra, depois fomos discutir Júlio Dinis a
leitura, gostam de debater as ideias e por isso se Ovar na casa-museu do escritor. Fomos depois à
aproximaram”, conta ao Ípsilon. Em Maio irão discutir Figueira e eles vieram cá.”
o romance A Ronda da Noite, de Agustina Bessa-Luís. O objectivo foi sempre “quebrar muros, quebrar
Costumam fazer actividades extraclube. Quando leram barreiras”, diz Jorge Silva, que queria que as pessoas
Amadeo, de Mário Cláudio, fizeram uma visita guiada ao percebessem com estes intercâmbios que as
museu sobre o pintor em Amarante. dificuldades de um leitor na Maia são as mesmas de um
Eugénia Faria é também assídua no Encontro de leitor de outra parte do país. “Isso dá muita segurança e
Leituras, o clube de leitura do PÚBLICO e do jornal ajuda-os a situarem-se enquanto leitores. É uma coisa
brasileiro Folha de S. Paulo que existe há mais de dois muito curiosa e tem sido uma escola de vida.”
anos, e participa também nas sessões mensais da
Comunidade de Leitores da Maia, criada há 17 anos. Foi Cada vez mais participantes
no ano do centenário do nascimento de Agostinho da Os últimos dados que a Direcção-Geral do Livro, dos
Silva, em 2006, que se iniciaram estes encontros com Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) possui são relativos
dinamização de Jorge Silva, professor de filosofia. “No a 2021 e dão conta de 101 grupos de leitores a
final desse ano, esgotada a obra do Agostinho da Silva, acontecerem nas bibliotecas da Rede Nacional de
os leitores concordaram que se mudasse de género”, Bibliotecas Públicas. Um aumento de dez comunidades
conta o moderador. Continuaram a reunir-se discutindo em relação ao ano anterior, com um total de 25.991
sobretudo ficção, mas também teatro e poesia. “É participantes em 1722 sessões. “O número de novos
constituído por 42 leitores activos que se dividem por grupos é crescente ainda que de forma moderada, mas
dois horários por forma a dar espaço a cada um para o número de novos participantes é expressivo”, refere
falar sobre o livro. A média de assiduidade este ano tem Bruno Eiras, subdirector-geral da DGLAB.
sido de 28 leitores por encontro”, refere Jorge Silva. Depois da pandemia, algumas destas bibliotecas
“É formado maioritariamente por mulheres, na passaram a fazer os seus encontros destas comunidades
generalidade com formação superior, mas não só. Cerca em modo híbrido — presencial e em plataformas como o
de 20% do grupo tem menos de 40 anos de idade. Em Discord — e assim ganharam novos utilizadores. “Tem
termos de grupos profissionais há uma grande sido surpreendente que uma estratégia de incentivo e
Chama-se Onde o Lobo Espreita e clássicos em falta, como O Vermelho ou puxar-lhe o cabelo, ou empurrá-la
nele a escritora volta a um dos seus e o Negro, de Stendhal, ou The Custom no momento em que eu me fosse
temas mais preciosos: a casa. Entre- of the Country, de Edith Wharton, embora? Olhava a ver qual poderia
tanto, vai respondendo a questões recentemente traduzido para língua ser o potencial predador da minha
Isabel Lucas
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íípsilon
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rilil 2023
202
20
2023
02
“Queremos admirar e de repente começa a duvidar de
quem é o lobo; de que o seu filho
Concurso
casada com Mikhael, um alto quadro
O que me interessa
Sardinhas 2023
contra um ex-militar israelita. Ainda
não sabemos nada disto quando a
1001
família, em que toda Espreita. “Olho para aqueles dedi-
nhos do bebé acabado de nascer e
sardinhas
cheia de lobos de quatro anos. E ser a vítima ou o predador? Tinha ali
como é que cada pai tinha a certeza o ADN do romance”, prossegue a
de que a sua cria era a boa e a outra escritora. “É como se estivesse em
o potencial lobo mau? E porque é cada página, a pergunta central, essa
que nenhum de nós parava para pen- discussão que tive com o meu ma-
sar na possibilidade de que a nossa rido. Ele é um homem israelita e
cria poderia ser esse lobo mau; que respondeu que era evidente que pre-
a minha filha poderia ser a criança feria que o seu filho fosse o predador
que ia empurrar alguém? Nesse mo- e não a vítima. Respondi-lhe que ele
mento este romance nasceu”, conta era o típico macho israelita.”
Ayelet Gundar-Goshen, que em Ou- O marido de Ayelet disse mais ou
tubro estará no Folio — Festival Lite- menos o que Mikhael dirá no ro-
rário Internacional de Óbidos. mance sem ter ideia da turbulência
É mais um livro que incentiva a que passa pela cabeça de Lila, a
ideia de muitos críticos acerca da lite- quem chama Lilu. “Lilu, são justa-
ratura que produz: a de uma versão mente essas as duas possibilidades:
israelita do thriller do Norte da Eu- aquele que faz aos outros e aquele a
ropa. Gundar-Goshen não rejeita a quem os outros fazem. […] Eu não
comparação. Pelo contrário, gosta quero criar uma vítima. Um brigão
dela. Sobretudo que a situem no noir, não é bom, mas pode ser educado.
ainda que com as reservas que tem Uma vítima é-o para toda a vida.”
em relação às tais gavetas onde se Ayelet pensa nas palavras do ma-
tentam arrumar escritores “para me- rido e pergunta como responderiam
lhor os venderem”. “Gosto muito do a maior parte dos portugueses.
género noir. É como se me sentasse Conta: “Quando o livro foi publicado
num cavalo de Tróia. Quando se es- na Alemanha, os homens e mulheres
creve um noir, de fora parece que que estavam no lançamento, diante
somos guiados pelo enredo. Temos o dessa pergunta, disseram-me que
thriller, temos um cadáver e, a partir preferiam que o filho fosse o agre-
daí, alguém a investigar um crime. E dido na escola em vez de ser o agres-
digo um cavalo de Tróia porque nos sor; que não queriam criar um agres-
deixamos ir com a sensação de que é sor, que isso seria um fracasso en-
apenas um thriller, um cadáver sem quanto pais. É fascinante como os
nada que ver connosco. Mas depois alemães, com a sua história, têm esta
percebemos que envolve grande pro- resposta e os judeus, também com a
fundidade psicológica por detrás da sua história, dizem que não querem
investigação do crime. O género per- ser a vítima, que querem ser os mais
mite-nos lidar com tópicos que são fortes. Pergunto-me se tem que ver
muito mais profundos do que pare- com género ou com cultura, política,
cem quando vistos de fora”, afirma a memória colectiva.”
escritora antes de voltar à génese, ao Onde o Lobo Espreita é um romance
dia em que, vinda da escola, depois profuso em perguntas. Lila quer co-
de deixar a filha “entregue aos lobos”, nhecer melhor Adam para tentar
percebeu que queria contar a história
de uma mãe que sente o que sente
qualquer mãe, que a sua tarefa é a de
chegar ao mistério que envolve a
morte de um adolescente negro, filho
de uma família pobre num lugar de
Concorre em egeac.pt
proteger o seu filho dos lobos lá fora ricos, numa terra marcada pela
de massa em Israel
fazê-lo, põe em paralelo duas socie-
dades — a israelita e a norte-ameri- a sociedade pessoas do mundo. Seria o lugar do
sonho, Silicon Valley.
por alguma coisa ou com alguém,
porque de outra forma como poderá
cana —, mas também anseios e temo-
res globais. Para isso, a autora socor- e a política israelitas Numa conversa à beira de um lago,
num fim-de-semana, Lila, Maikhael,
provar que já não é um miúdo?”
E tanto num lugar como no outro
re-se da sua experiência na Califórnia,
enquanto professora em Berkeley, de são muito negras; Adam e o amigo de Adam, Uri, o ho-
mem misterioso que tem o poder de
há medo. Notícias de mortes em es-
colas contra notícias de mortes em
onde saiu devido à pandemia. Fala-
nos agora a partir de Telavive, a ci- há qualquer coisa alterar o comportamento do adoles-
cente, discutem Israel. Lila é antibe-
autocarros com bombas. A violência
é latente, mas não faz da escrita de
dade onde nasceu em 1982.
“É interessante falar de noir muito violenta ligerante, discorda de tudo o que
sejam acções de retaliação contra o
Ayelet menos delicada, curiosamente
o adjectivo que usa para descrever a
quando falamos de Israel porque
tudo é solar. Não há nada de noir na sociedade povo palestiniano defendidas por
Uri. Mikahel interpela-a: “Eu não per-
de David Grossman, uma das suas
inspirações literárias e cívicas. Como
quando comparado à Escandinávia.
Imaginamos o noir num Inverno com moderna israelita cebo o teu entusiasmo pela política,
Lilu, isso é o que dá cabo do Médio
Amos Oz, Toni Morrison ou o francês
Roman Gary. Eles surgem na con-
neve e chuva a cair, céu cinzento.
Israel tem céu azul e laranjas, sol, actual. Vemos Oriente. Se as pessoas esquecessem
a ideologia e se concentrassem no
versa quando ela fala de uma espécie
de pais fundadores da literatura em
praia. Mas a cultura, a sociedade e a
política israelitas são muito negras; muita violência sob seu bem-estar pessoal, tudo seria
diferente.” Uri também tem ideolo-
língua hebraica moderna por con-
traste, por exemplo, à falta de mães
há qualquer coisa muito violenta na
sociedade moderna israelita actual.
Vemos muita violência sob a super-
a superfície” gia. Pergunta a Mikhael se em nome
do bem-estar há que prescindir da
ideologia. Mikhael argumenta: “Vê o
fundadoras porque as mulheres não
ocupavam então o palco. Agora elas
estão no centro, como Ayelet Gun-
fície. Não temos o cenário de um noir que acontece aqui na América: as dar-Goshen e uma das suas palavras
nórdico, mas a essência, no que tem pessoas vêm para Silicon Valley para favoritas: aparente e o seu advérbio
que ver com a humanidade, o bem e Fazia críticas duras às sociedades enriquecer. Põem de lado a naciona- de modo, aparentemente.
o mal, o demoníaco que existe em que sancionavam quem vinha da lidade, a política, a fim de ganhar “Sou escritora, mas também tra-
cada um de nós, é universal e existe antiga Eritreia em barcos. Lem- dinheiro. E graças a isso o mundo balho como psicóloga e nos dois
em Israel.” brando — de dedo apontado a Israel avança. Olha para Sundar Pichai, o territórios a palavra ‘aparente’ é cru-
Guionista, professora, psicóloga, — que os judeus, séculos antes, ha- homem nasceu na índia e tornou-se cial. E se quisermos escolher uma
Ayelet Gundar-Goshen tem trazido viam feito o mesmo percurso. E CEO da Google. O capitalismo venceu palavra para descrever Silicon Valley
essas questões essenciais para a sua agora eram eles a fechar as portas o racismo. Imagina como seria o será aparente. A diferença entre o
literatura. Autora de quatro roman- aos que vinham. Nesse sentido, de mundo se em vez de ‘israelita’ e que se vê e o que está encoberto é
ces que lhe valeram o reconheci- forma também muito redutora, ‘árabe’ houvesse apenas engenheiros fascinante. Quero contar a história
mento internacional, três dos quais diz-se que se trata de um romance na Amazon, programadores na do sonho americano, porque acho
publicados em Portugal — além político. O que dizer deste? Que es- Apple, pessoas que não se definem que não é apenas americano: todos
deste, Só Uma Noite, Markovitch (Gra- tamos no mesmo domínio: o das pela religião, cor ou sexo, mas apenas vivemos a perseguir a fantasia desse
diva, 2017) e Despertar os Leões (Elsi- decisões pessoais e de como estas pela avaliação da sua performance.” sonho. E é estranho. Durante anos
nore, 2021) — usa as técnicas do ro- espelham as sociais, as políticas, as Uri não parece convencido. “A andámos atrás da Terra Prometida
mance noir para mergulhar no culturais, as religiosas. mim, isso assusta-me. O dinheiro é a e agora muitos israelitas não querem
mundo doméstico e, daí, no que há Diz Ayelet Gundar-Goshen: “Para ideologia mais perigosa que existe. estar na Terra Prometida; querem ir
de mais intrigante na natureza hu- mim, o grande mistério não está no Não venera nada e permite que faça- para a América.” Que é como que
mana. A sua matéria-prima é a inti- fundo do oceano ou noutras galáxias. mos tudo.” dizer: se esse é o derradeiro sonho,
midade familiar ou as relações do O grande mistério é o que se passa na Paradoxalmente, Uri está mais pró- é lá que quero que esta família es-
quotidiano com as quais tece um nossa própria casa; no íntimo das ximo de Lila. E de Ayelet. “O que há teja. E mostrar, depois de eu ter vi-
universo complexo marcado por te- pessoas com quem dormimos, com de mais fascinante em Silicon Valley”, vido lá, o grande fosso entre a bolha
mas como a identidade, o medo, a quem partilhamos a casa de banho, diz a escritora, “é o fosso entre a ima- e a realidade. Uma das coisas de que
guerra, a fuga. De uma maneira que encontramos todos os dias à gem e a vida real. Mesmo pessoas que gostamos mais enquanto autores é
muito simplista, os refugiados esta- mesa, de quem sabemos tantos deta- nunca visitaram os Estados Unidos de abanar bolhas e mostrar como
vam no centro de Despertar os Leões. lhes, mas ao mesmo tempo não sabe- têm uma visão muito viva do que são são frágeis.”
O Bando em
passaram uma noite com um grupo pensei que não serviria para teatro”, “o algoritmo entra nas nossas vidas e
de sem-abrigo, escutando as suas confessa o encenador ao Ípsilon, as- é alimentado pela mente humana”.
histórias. sumindo o quanto os seus olhos de Não há robot nas páginas de
Foi na improvisação que se seguiu leitor estão sempre contaminados Tokarczuk, como não há também
a este derradeiro momento de imer- por essa possibilidade de transfor- uma diatribe de Galina acerca da ce-
movimento
são na realidade que Rita Brito, de- mar qualquer texto em matéria para lebração do Dia Mundial da Paz en-
calcando os movimentos de uma os palcos. “E durante as primeiras quanto o mundo avança de guerra
mulher que conhecera na véspera 198 páginas tive razão. Mas quando em guerra, ou do Dia da Caridade,
(incapaz de sossegar um corpo agi- descobri aquele conto, que adorei, e do Dia da Solidariedade, do Beijo, da
tado por um passado heroinómano), li o manifesto que vem em seguida, Religião, da Consciência Negra, do
para fugir
se transformou na Anoushka escrita percebi que tudo batia certo com as Orgulho Gay, do Combate da Violên-
por Tokarczuk. Não é por acaso, questões de tecnologia sobre as quais cia contra as Mulheres, dos Profes-
aliás, que Neca escolheu nomear andava a ler.” sores, da Cultura ou da Liberdade de
como Nómadas este espectáculo ba- De repente, as palavras de Tokarc- Imprensa — quando durante o resto
seado num dos capítulos de Viagens zuk ganhavam todo um outro signi- do ano todas as causas são varridas
ao controlo
e no manifesto que se lhe segue. Por- ficado quando Anoushka e Galina, para longe da consciência e dinami-
que há nestas duas mulheres (se são as duas mulheres, podiam ser pro- tadas pelo tal algoritmo que enreda
duas ou uma, na verdade, é toda jectadas numa cidade digital: “Ba- cada um(a) no seu pequeno mundo.
uma outra questão) uma pulsão lança, mexe-te, anda! Só assim podes Mas há em Tokarczuk uma relação
constante, uma necessidade de não escapar-lhe. Aquele que governa o com as estruturas de poder e uma
mundo não tem poder sobre o mo- brecha de possibilidade na tomada
vimento e sabe que o nosso corpo de microescolhas que criam lugares
em movimento é sagrado. E tu só e caminhos distintos.
podes escapar-lhe quando estás em Daí que Galina e Anoushka possam
movimento.” ser a mesma mulher, afinal, condu-
Estas palavras que Galina repete zida a dois destinos e dois tempos
para si, num torvelinho de discurso, diferentes. Daí que Galina e
enquanto roda sobre si mesma, ten- Anoushka possam ser duas mulheres
tando proteger-se a si mesma dessa colocadas perante uma mesma situa-
força invisível de governança sobre o ção. Diante da solidão que sentem
mundo, desses mecanismos das ins- sentadas no parapeito de uma janela
tituições que escravizam e domesti- da escola, uma levanta-se e foge, a
cam, vincam a relação que João Neca outra deixa-se ficar. Uma age e re-
sublinha com uma tecnologia contro- clama uma narrativa, a outra fica-se
ladora e manipuladora, espelhada, e aceita a que para ela foi inventada.
desde logo, na projecção de um mapa Olga Tokarczuk, que cria várias ca-
da cidade digital habitada por Galina madas autorais na sua literatura,
e Anoushka. Essa cidade percorrida sabe que há que ter cuidado com os
por dois pontos, azul e vermelho (as narradores — não se lhes pode deixar
cores das roupas das personagens), o controlo da história por inteiro.
DIANA MARTINS
relacionado com
SORCHA FRANCES RYDER
L
ucy Dacus, Julien Baker e espe- com menos de 30 anos, cresceram A capa do primeiro EP remetia para
cialmente Phoebe Bridgers quase em público. Quando foram, ao das partes Crosby, Stills & Nash (anos depois,
não são as mesmas pessoas longo dos anos, falando com o Ípsilon O álbum de 12 canções arranca a quando Bridgers partiu uma guitarra
que eram em 2018. Nesse ano, para promover os seus discos sozi- cappella, com as três a cantarem, e a a actuar em Saturday Night Live, Da-
as três editaram o primeiro EP nhas, as três escritoras de canções juntarem as vozes que funcionam tão vid Crosby criticou o gesto no Twitter,
do seu supergrupo de indie- iam explicando que ainda se estavam bem juntas, num tema de Baker, fazendo a compositora chamar-lhe
rock Boygenius. Depois, deram al- a conhecer. Em 2020, por exemplo, Without you without them. Seguem-se “little bitch”, insulto que retomou
guns concertos e foi cada uma à sua Bridgers estava fascinada com uma as três canções que já tinham saído quando este fez comentários anti-sin-
vida a solo — com a ocasional mini- epifania que tinha acabado de ter: em Janeiro como aperitivo para o dicalistas). Desta feita, para promo-
reunião em disco. Dacus e Baker fo- que não precisava de gostar daquilo disco: $20, também de Baker, com verem o disco na capa da Rolling
ram tendo mais e mais atenção e de que toda a gente gostava nem de uma descarga de guitarras e gritos; a Stone, vestiram fatos como os que os
respeito graças aos — bons — discos a pedir desculpa por isso. Passado um onda mais folk de Emily I’m sorry, de Nirvana usaram em 1994 na mesma
solo que se seguiram. ano, Baker andava a perceber quem Bridgers, que terá sido o mote para revista, que agora classificou The Re-
Mas nada que se compare a Brid- era e qual era a sua identidade, e Da- se voltarem a juntar e fazerem mú- cord como “clássico instantâneo”.
gers. Ela tornou-se, entre Punisher cus estava a refazer a sua vida após sica outra vez; e True blue, de Dacus, É uma imagem que funciona a vá-
(o seu disco de 2020, que lhe valeu ter entendido que tanto ela quanto a que fala de sair da cidade onde se rios níveis, a começar no facto de a
quatro nomeações para Grammy), cidade onde tinha crescido estavam cresceu e descobrir-se quem se é, capa original reflectir o desconforto
noivados com actores nomeados diferentes e era preciso sair de lá. mas também de se dar a alguém. dos Nirvana com a fama, passando
para Óscares, possíveis enlaces com São pessoas distintas que surgem Essas três canções são também o por todas as lutas que as Boygenius
cómicos vencedores de Grammys e agora em The Record, o primeiro foco de The Film, uma curta de 15 partilham com a banda de Kurt Co-
colaborações com SZA, Paul disco propriamente dito das três, co- minutos/teledisco com realização da bain, e a ideia que está por detrás do
The Record McCartney e Taylor Swift, o foco de produzido por elas e por Catherine actriz Kristen Stewart que envolve próprio nome deste novo trio, a de
Boygenius notícias de tablóides. É o tipo de pes- Marks. Marca a primeira vez que elas casas a arder, monster trucks e tinta que é preciso muito pouco para um
Interscope soa cuja vida sentimental é dissecada lançam algo por uma grande editora, azul. As canções são “de” alguém no homem ser automaticamente consi-
a fundo e que não pode sair à rua a Interscope, por oposição aos selos sentido em que foram originadas por derado génio quando o contrário
sem ser fotografada. independentes em que têm feito toda cada uma das escritoras de canções: não acontece com mulheres. E ainda
Não é só isso. Elas, todas ainda hoje a sua vida musical. cada uma tem elementos das outras o facto de as três Boygenius se iden-
e todas cantam. tificarem como queer, se referirem
É que Boygenius é, agora como entre elas como “boys”, e usarem as
SHERVIN LAINEZ
sempre, mais do que a soma das par- suas (agora consideráveis) platafor-
tes. Em 2021, Dacus dizia que, depois mas para contrariarem o ataque cer-
do seu segundo disco (Historian, rado que, no seu país e um pouco
saído no mesmo ano do EP da banda, por todo o mundo, identidades
um álbum bastante “sério” e que a queer, mulheres, pessoas trans, etc.,
apresentava às pessoas), podia agora andam a sofrer.
abrir-se “de uma forma mais diver- “Always an angel, never a god”,
tida”. Teve a ajuda da amizade das cantam em Not strong enough, que
colegas nessa tarefa de aligeirar a sua começou com Bridgers mas é clara-
música. “Todas trazemos isso ao de mente das três, algo que também
cima uma nas outras. Algumas das poderá ter que ver com essa ideia:
canções de Boygenius são muito hi- sempre anjas, nunca deusas do rock.
lariantes”, não necessariamente em A canção, inspirada em Sheryl Crow,
termos de letras, mas também na lança mais achegas para as delibera-
produção. das confusões de género que elas
Isso continua aqui. Há hinos à ami- tanto apreciam: “The way I am not
zade e o amor que existe entre as strong enough to be your man”.
três, como We’re in love, de Dacus, Em Leonard Cohen, Dacus, que
sobre as outras duas. Continua tam- parece ser quem quer mais abordar
bém a tristeza que tantas vezes so- a amizade entre as três, canta sobre
bressai frequentemente com humor uma viagem a três em que Bridgers
(“I don’t wanna die, that’s a lie, but I’m queria mostrar às outras uma canção
afraid to get sick, I don’t know what de Iron & Wine sem refrão. Desviou-
that is”, canta Bridgers em Revolution se, por isso, da rota que era suposto
0), e com a qual elas são frequente- seguir. Pouco depois, menos séria,
mente associadas, mesmo que a mú- cita Cohen a dizer que “há uma fenda
sica que fazem reflicta um espectro em tudo, é assim que a luz entra”.
grande de emoções. Apesar de “não ser um homem velho
com uma crise existencial num mos-
Crosby, Cobain e Cohen teiro budista a escrever poesia com
Mantém-se também uma certa rela- tesão”, ela “concorda” com tal afir-
ção de amor/ódio com o passado do mação. É uma canção que soa a Da-
As “boys” estão
rock. Ou seja, há respeito pela música cus, mas é complicado não vir à ca-
do passado, mas há falta de paciência beça Moon song, de Bridgers a solo,
para a misoginia e anos e anos de mu- de 2020, que gozava com Eric Clap-
lheres terem sido mantidas fora do ton (“We hate Tears in Heaven, but it’s
panteão. E há uma vontade enorme sad that his baby died”), aproveitando
bem: as Boygenius
de estarem lá, nesse mesmo panteão depois a compositora as entrevistas
ao lado dos homens todos. Afinal, para se referir à fase racista de Clap-
elas juntaram-se após partilharem ton, em que este apoiou o ultranacio-
datas na estrada e serem comparadas nalista Enoch Powell e, pela negativa,
umas às outras, apesar de fazerem inspirou toda a formação do movi-
The Record é o primeiro longa duração do trio Lucy Dacus, Julien Baker
e Phoebe Bridgers, supergrupo indie-rock que está mais famoso do que nunca.
Rodrigo Nogueira
14 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
Luta Livre
N
RITA CARMO
este início de Abril, eis que deão entrou a seguir, na Fruta da sabemos se eles têm coragem ou não
à crise
já se envolveu (Peste & Sida, Despe e reiro, ajustados à crise que Portugal história dos meus pais”, explica Luís
Siga, Linha da Frente, A Naifa, Pólo atravessa. “Eu queria fazer uma letra Varatojo. “Eu não tive de ir trabalhar
Norte ou Fandango) acrescentou sobre o problema da habitação, mas aos 12 anos, consegui ir estudar, mas
mais este, aborda neste novo disco, sempre que a ia escrevendo estava a eles não. Sou filho de operários, neto
assinado Luta Livre, a crise social e ver a história da minha filha que está de agricultores, e esta canção é tam-
política por um ângulo mais pessoal em Londres a trabalhar e que não bém um apelo, dizendo que pode-
e menos geral. Daí o título, como ex- pode ficar cá porque não lhe pagam mos mudar essa história e fazer al-
plica ao Ípsilon: “A temática tem que um salário suficiente para poder pa- guma coisa se nos entendermos, se
ver com política e questões sociais, gar as rendas que estão no mercado. nos juntarmos.”
só que aqui são casos mais pessoais, Há uma série de amigos dela, da Por fim, O povo é que manda faz
que me estão mais perto, retratos da mesma geração (ela tem 25 anos), com versos de António Aleixo o que
minha actualidade: a minha filha que estão na Holanda, na Alemanha José Mário Branco fez há mais de
emigrou, a minha mulher foi despe- e noutros países da Europa porque meio século com Mudam-se os tem-
dida ao fim de 30 anos de trabalho, não conseguem ficar cá.” pos, mudam-se as vontades, de Luís
chamaram-lhe ‘colaboradora’, todos Varatojo diz que “está a loucura de Camões, usando os versos, mas
aqueles assuntos que nós sabemos total, em todas as áreas”. A começar acrescentando-lhe um refrão pró-
que andam aí e que agora estão na pelas prestações da casa: “Aumentam prio. Aqui, Varatojo escreveu: “Só
nossa casa. Este disco é mais isso.” brutalmente, sem aviso (ainda tenho manda no povo/ quem o povo qui-
Na música, também trabalhou de uma prestação de um empréstimo ao ser/ quando ele acordar/ ninguém o
outra forma: “Enquanto no outro fiz banco), estamos assim desde a crise vai enganar.” E explica: “Já andava
as composições a partir de samples de 2008, com a qualidade de vida e há algum tempo para fazer alguma
que ia tirando dos discos, aqui pe- o poder de compra de todos a desce- coisa com as quadras do Aleixo, que
guei na guitarra e voltei um bocado rem. Sempre a bem de qualquer coisa são sobejamente conhecidas, não
às origens, compondo a partir de que não sabemos bem o que é, uns são nada de novo, mas neste con-
riffs de guitarra, acordes, sequências dizem que é o mercado, outros a eco- texto o refrão reforça a direcção des-
harmónicas — eu tinha começado a nomia. Não posso perder a oportuni- sas quadras e tira ali uma conclusão
compor como no anterior, mas, dade de poder fazer um disco, para que no fundo é esta: nós é que vota-
como o resultado era igual, parei.” comunicar com as pessoas, e não fa- mos, nós é que sabemos quem é que
Além de Luís Varatojo, autor de to- lar disso. Não consigo.” queremos lá, e, esclarecidos, esco-
das as letras e músicas e também da lhemos quem realmente nos inte-
capa do disco, que fez todas as bases “Só manda no povo ressa. Achei que seria um bom tema
das canções, participaram nas gra- quem o povo quiser” para fechar este disco.”
vações Ivo Palitos (voz), Manuel Wi- Fruta da época, uma chula, lembra- Ao vivo, há já duas apresentações
borg (voz), Pedro Mourão (guitarra nos as abordagens musicais de Fausto marcadas, ambas incluídas nas cele-
acústica), Diogo Santos (piano), João Bordalo Dias, Pontinha disseca a de- brações do 25 de Abril: na noite de
Gentil (acordeão), Quiné Teles (per- sumanizadora rotina casa-trabalho- 24, no Porto, numa celebração sin-
cussão) e o Gospel Collective (coro, trabalho-casa e Vamos todos ao ar fala dical, e no dia 25, em Sesimbra. Mas
com arranjos de Lino Guerreiro). Dois anos passados sobre da guerra como Country Joe falou do não é fácil levá-lo a todos os palcos,
“Comecei a construir estas can-
ções assim que comecei a rodar o Técnicas de Combate, Luís Vietname no Woodstock de 1969, gri-
tando ironicamente “Whopee, we’re
diz Luís Varatojo. “Estamos a viver
uma época em que as modas têm
outro ao vivo”, lembra Varatojo.
“Duas delas, a Balada do trabalhador
Varatojo regressa ao all gonna die!” no refrão de I-feel-like-
I’m-fixin’-to-die-rag. “Fiz os primeiros
espaço, mesmo quando são causas.
Falar, por exemplo, dos direitos
e O povo é que manda, chegámos até projecto Luta Livre com versos dessa letra há uns anos, depois LGBT, das alterações climáticas ou
a tocá-las nos concertos de 2021. Defesa das invasões do Iraque e da guerra do da questão racial, todas causas alta-
Como tenho o meu pequeno estúdio, Defesa Pessoal, dez novas Pessoal Afeganistão”, recorda Varatojo. mente importantes, sem qualquer
fui trabalhando diariamente, cons-
truindo isso.” A maior parte do tra-
canções onde a crise Luta Livre
Edição de autor
“Agora surgiu a oportunidade de aca-
bá-la, de compor o resto do texto,
dúvida, ainda passa no crivo. Mas
quando se fala em trabalhadores,
balho foi feita em 2022, mas foi ini-
ciado em finais de 2021. “Gravei
actual é musicalmente com esta guerra e tudo o que ela traz
para a nossa qualidade de vida, com
sindicatos ou ‘colaboradores’, que
no fundo é onde estamos todos me-
tudo, basicamente: programações contestada em discurso os aumentos dos preços, a instabili- tidos, parece que estamos a usar
de bateria, guitarras, sintetizadores,
fui um bocado multi-instrumentista. directo. dade, o desvio de verbas que deviam
vir para as pessoas e estão a ir para
uma linguagem explícita que não é
aceite, que está fora de uso ou que
Neste aspecto, o disco foi feito da munições e armamento, e foi a altura não deve ser transmitida. Acho que
mesma forma que o outro. Foi cons-
truído e arranjado e depois o acor- Nuno Pacheco certa para a lançar.” O título reflecte
o regresso da ameaça nuclear: “Não
isso é estúpido, evidentemente, mas
a verdade é que acontece.”
Deslocar, deslocando-se
Retomamos, por instantes, a conversa
com Artur Barrio, vencedor do
Grande Prémio Fundação EDP Arte
2016. Não pode a arte, animada por
essa (ou outra) sensibilidade, prote-
ger-nos da chuva negra? “A arte? Não,
não...”, responde bem-humorado o
artista. “As questões do mundo per-
18 | ípsilon | Sexta-feira
Sexta-fe
eira
ra 7 Abril
Abr 2023
202
23
nos mais jovens frequentam cursos
com os artistas mais velhos. Havia já “Procurei e encontrei
algo de experimental nos domínios
de criação. Isso permitiu aos artistas uma ideia libertária
jovens, mais arredios, a possibilidade
de se expressarem contra a acomo- de arte, mas não dei Artur Barrio escreveu nas
dação imposta pelo regime.”
As acções realizadas entre 1969 e nada à arte. Foi ela paredes do CIAJG
“Chuva negra”. “Essas palavras
1970 — as intituladas “Situações” (que
podemos ver em fotografias) — são que me deu a mim”, lembram-me Nagasáqui.
Depois da explosão da bomba
exemplares dessa energia que tor-
nará, por vezes, de ruptura do e no
espaço público. Assim foi com as ac-
diz Artur Barrio atómica, caiu uma chuva negra.
Estamos perto dessa história
ções intituladas Trouxas Ensanguen- outra vez, não é?”
tadas, realizadas no Museu de Arte
Confronto e alegria
A rua (tal como o corpo) aparece in-
separável da produção de Artur Bar-
rio. Vemo-la em Viana do Castelo, no
Rio de Janeiro ou evocada num baldio
sem nome. É ela enquanto contexto
que está na base da escolha de um
vocabulário artístico.
“Ele usa materiais considerados
abjectos ou perecíveis. Estamos a
falar de lixo, papel higiénico, es- a exposição, nada restará a não ser sante pensar uma experiência de
perma, vómito, café, vinho”, revela fotografias, documentos. não-lugar do Artur Barrio, tanto no
Marta Mestre. “Essa opção dialoga “Há neste espaço”, comenta o cu- Brasil como em Portugal”, comple-
com uma emergência discursiva e rador brasileiro, “coisas muito pre- menta Luiz Camillo Osorio. “Ele traz
também crítica da ideia de ‘Terceiro sentes na vida do Artur Barrio. O café, uma experiência do corpo, como
Mundo’. Não enquanto lugar subal- o vinho, o pão e até o mar que apa- uma espécie de potência erótica, na
terno, mas lugar que, através dessa rece nestas texturas, brilhos, pontos sua pulsão de gesto de intervenção.
precariedade, poderia alcançar uma de luz”. A relação entre a vida e a arte Isso não é evidente na produção
autonomia, uma potência, inclusive manifesta-se na experiência da insta- portuguesa. Pense no registo do
naquele que foi o contexto da dita- lação ou no encontro com as fotogra- corpo na Helena Almeida, é muito
dura militar e das intervenções dos fias onde vemos o artista a segurar diferente. É mais plástico. No Artur
EUA na América do Sul.” farripas contra o vento e sobre o mar, Barrio, encontramos um corpo de
Acção, precariedade, circulação, a interagir com pessoas em Viana do confronto com as precariedades,
ruptura, gesto, assemblage, interac- Castelo ou fazer uma mímica com o com as adversidades. A sua condi-
ção. Estas são palavras que fazem rosto encostado a um vidro. “São to- ção é trágica.”
sentido a fim de pensar a obra de das acções precárias destituídas da Replicamos que o artista não deixa
Artur Barrio. Longe do aparato da produção de objecto como fim. Nesse de sorrir e de rir nas imagens que
esteticização ou do desejo de objec- sentido, servem de contraponto a um captaram as suas acções. Marta Mes-
tualizar os trabalhos, o artista mos- certo modelo de produção interna- tre responde: “É um riso cáustico ou
tra-nos apenas o que ficou. Ou, como cional do artista, tanto nacional como que apenas exprime a alegria do
é o caso de Interminável, enfrenta o internacional. Por isso, quis que esta criar. Uma pulsão da vida.” Porven-
cubo branco, transformando-o com exposição chegasse ao CIAJG”, ob- tura, concluímos com prudência,
pão, vinho, café, goma indiana, de- serva Marta Mestre. contra as ameaças de todas as chuvas
senhos, na certeza de que, concluída “Olhando de fora, acho interes- negras.
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Sexta-feira
x -feira 7 Abril 2023 | 19
xta
V
amos abrir, mais uma vez, Muito menos secreto é o seu tra-
a arca do cinema clássico balho como actriz. Aí, evidente-
japonês. Pela mão da The mente, o nome de Kinuyo Tanaka é
Stone & the Plot, que já fez famosíssimo. Forma com Machiko
chegar às salas dois progra- Kyo e Setsuko Hara aquele que por-
mas de “Mestres Japoneses ventura é o trio de actrizes clássicas
Desconhecidos”, da arca sai agora a japonesas mais conhecidas dos ciné-
íntegra da obra de Kinuyo Tanaka filos ocidentais, pelo menos dos ini-
como realizadora. ciados nas obras dos “mestres co-
De novo em colaboração com o nhecidos”, Kenji Mizoguchi, Yasujiro
programador Miguel Patrício, grande Ozu, Mikio Naruse, Akira Kurosawa.
conhecedor do cinema japonês, a Tanaka trabalhou com todos eles (e
distribuidora estreará, em dois to- mais ainda: Gosho, Shimizu, Ki-
mos, os seis filmes dirigidos por Ta- noshita, Ichikawa, Kumai, Masu-
naka, uma das poucas mulheres (mas mura, em lista não exaustiva), numa
não a primeira) a trabalhar como longuíssima carreira que começou
realizadora dentro da indústria japo- ainda adolescente, em meados dos
nesa. Para já, vamos ver os primeiros anos 20, e foi até meados da década
três filmes de Tanaka, dirigidos entre de 1970, concluindo-se num filme de
1953 e 1955 — Carta de Amor, A Lua Yasuzo Masumura (precisamente um
Ascendeu e Para Sempre Mulher. Mais dos cineastas revelados nos progra-
tarde chegarão os três últimos, rea- mas de “Mestres Desconhecidos”),
lizados também em rápida sucessão estreado em 1976.
(de 1960 a 1962) depois de um inter- Tanaka morreu no ano seguinte,
valo de cinco anos entre o derradeiro algo prematuramente (com 67 anos),
filme do primeiro grupo e o primeiro em consequência de um tumor ce-
do segundo — Princesa Errante, Mu- rebral, pelo que a sua carreira poder-
lheres da Noite e Senhora Ogin. se-ia facilmente ter estendido mais
Foi uma obra que se manteve rela- ainda. Mas morreu plenamente re-
tivamente “secreta” durante dema- conhecida como actriz, no Japão,
sempre
“modernidade”) do que dúzias de ou- no Festival de Berlim, o Leão de me-
tras obras do período clássico japonês, lhor actriz, pelo seu papel num filme
e mesmo do período pós-clássico — e de Kei Kumai.
uma
os referidos programas de “Mestres Era já bastante conhecida na Eu-
Desconhecidos”, para não sairmos ropa no momento em que passou à
deste contexto delimitado, já deixa- realização, e um sinal claro disso foi
realizadora
ram boas indicações do tanto, tanto a inclusão do seu filme de estreia,
mesmo, que há ainda por recuperar e Carta de Amor, na competição oficial
descobrir no cinema do Japão. do Festival de Cannes de 1954. No ano
Kinuyuo
Tanaka
Mais conhecida como actriz,
a japonesa foi uma presença rara
num mundo então absolutamente
masculino: o dos realizadores
de cinema. Chegam a Portugal todos
os seus Älmes como realizadora.
vídeo-instalação
CORPOS CELESTES
ENTRADA LIVRE
11-22 ABR
C., CELESTE
E A PRIMEIRA
VIRTUDE
© Beatriz Batarda
BEATRIZ BATARDA
2023 M/12
22 ABRIL
D
elphine Seyrig “continua a estéticas e o colocar em causa de
falar-nos. Mais do que nunca forma radical um funcionamento so-
desde o seu desapareci- cial e um sistema de pensamento, ela
mento ela parece nossa con- fez melhor do que o preparar. Ela tor-
temporânea”, escreve Jean- nou-o possível.”
Marc Lalanne. É a “tese” de
Delphine Seyrig, En Contructions. E A dama e o cadáver
fora já das páginas finais deste livro- É neste tom que termina En Construc-
ensaio sobre alguém que fez figura tions, ensaio assumidamente “admi-
de diva do cinema de autor nos anos rativo e amoroso”. Na sua carreira de
Delphine Seyrig: 60 e 70 (filmes de Alain Resnais, Luis crítico, Jean-Marc foi destilando o seu
a “dama” nos filmes, Buñuel, Chantal Akerman, Jacques imaginário, onde figurava a Delphine-
a “radical” na vida Demy) mas que se tornou demasiado fada de Peau d’Âne ( Jacques Demy,
radical no seu percurso estético e 1970) e a Madame Tabard objecto do
político, o autor continua: “Ela nunca desvario do Antoine Doinel ( Jean-
esteve tão presente no imaginário da Pierre Léaud) de Baisers Volés (Fran-
nossa época. Quando desapareceu çois Truffaut, 1968). Eram as fantasias
[Beirute, 1932-Paris, 1990], os seus de adolescente a que juntariam mais
filmes de realizadora estavam invisí- tarde, evidentemente, a “grande
veis e, na sua carreira de actriz, pra- dama” de O Último Ano em Marienbad
ticamente não filmava, a não ser fil- (1961, Alain Resnais) e o enigma Anne
mes radicais.” É que os anos 80, ex- Marie Stretter de India Song (Margue-
plica o redactor-chefe da revista Les rite Duras, 1975). Filmes em que as
Inrockuptibles, foram “uma década intervenções de Resnais e Duras so-
de restauração formal e ideológica”. bre a figuração e sobre o som, a des-
Isto é, de conservadorismo. continuidade entre imagem e texto,
“Mas há cerca de dez anos”, con- como tesouradas num modelo, insti-
tinua, conversando com o Ípsilon, gavam o “vestir” e simultaneamente
“houve um regresso a ela, com o mo- o desconstruir dos códigos de repre-
vimento #MeToo, com a narrativa sentação da mulher no cinema clás-
feminista, e os vídeos com as suas sico, a diva. Faltará determinar se
intervenções na TV a favor da legali- essa desconstrução foi assim perce-
zação do aborto tornaram-se virais bida ou se Delphine Seyrig ficou re-
no YouTube, fizeram dela um ícone. fém, no imaginário público, desses
Vários espectáculos de teatro nos paramentos etéreos, dos rituais orga-
últimos quatro anos viraram-se para nizados por Resnais e Duras.
Delphine e para a associação Les In- Há dez anos Lalanne teve a pri-
soumuses [criada com Carole Rous- meira proposta editorial para escre-
sopoulos e Iona Wieder, dedicada à ver um livro sobre a actriz. Não estava
criação vídeo feminista] e um filme disponível. Agora, ainda com a edi-
realizado por ela, e produzido pelo tora Capricci, foi “o bom momento”.
colectivo, Sois belle et tais-toi, que em As coincidências certificam-no. O re-
1981 teve distribuição quase clandes- gresso a Seyrig faz-se em simultâneo
tina, hoje teve maior repercussão”. com o regresso contemporâneo à
Realizado na verdade entre 1975 e obra de outra actriz realizadora,
1976, entre Hollywood e Paris, Sois Jeanne Moreau, cujo percurso prepa-
belle et tais-toi fazia o ponto da situa- rou uma via para Delphine. Os para-
ção, civilizacional podemos dizer, do lelismos são notórios. A primeira
feminino. Entrevistava 23 actrizes, de chegou aos grandes cineastas,
Jane Fonda, Louise Fletcher, Barbara Truffaut, Losey, Buñuel, Demy, antes
Steele a Juliet Berto, de Anne Wia- da segunda, até que finalmente as
zemsky, Shirley MacLaine, Maria duas vozes mais distintivas do cinema
Schneider a Ellen Burstyn. Nos seus francês estiveram juntas em palco
depoimentos, elas falavam sobre o num espectáculo de 1973 hoje mítico:
ETHEL BLUM-LERIN/ GETTY IMAGES
que significava ser actriz nos filmes La Chevauché sur le lac de Constance,
de homens, sobre o que significava de Claude Regy, encenando o texto
ser uma fantasia e ser mulher. de Peter Handke, com Seyrig e Mo-
“Ela não tinha o conhecimento te- reau, e com elas em cena ao longo de
lepático do futuro” — voltamos de duas horas Gérard Depardieu, Samy
novo ao final de Delphine Seyrig: En Frey e Michael Lonsdale.
Constructions. “Mas entre rupturas No percurso de Delphine aluna de
Vasco Câmara
24 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
KEYSTONE-FRANCE/GETTY IMAGES
teatro, Jeanne Moreau era referência: los homens. Isso provocava nela a
quando no Festival de Avignon em cólera”, diz Jean-Marc. “E por vezes
1951, acompanhada pelo amigo Phi- essa cólera extravasava. Se se encon-
lippe Noiret, viu o Cid de Gérard Phi- trarem relatos da época deparam-se
lippe, quis estar no lugar da jovem com comentários muito feios, misó-
actriz que era Jeanne Moreau. “A voz, ginos, às suas palavras.”
a exigência, a inteligência de cinema”, “Depois daqueles filmes, que cons-
avança Lalanne, aproximam-nas. Mas tituíram a sua façanha de actriz, ela
as diferenças também as marcam: quis fazer outra coisa, queria fazer
“Jeanne Moreau fez filmes mais po- filmes como mulher. Mas participa
pulares, era mais conhecida do pú- tudo do mesmo élan.” Não havia, por- Delphine
blico, enquanto Delphine, mesmo no tanto, contradição, defende, antes Seyring
auge da popularidade, era desconhe- uma continuidade. “Não foi uma ma- Jean-Marc
cida de uma parte da França. Como rioneta de Resnais ou de Duras. Por Lalanne
realizadoras, Jeanne procurou uma exemplo, participou na construção Capricci
palavra mais pessoal, com elementos de O Último Ano em Marienbad, que
de autobiografia”, nos filmes que rea- foi um filme a dois” — e foi o seu pri-
lizou, Lumière (1976), L’Adolescente meiro filme. Trabalharam, Delphine
(1979) e Lilian Gish (1984). “Já Del- e Alain, sobre a imagem de Greta
phine estava à procura de uma pala- Garbo, por exemplo. “É já um grande
vra colectiva e política”: Maso et Miso filme feminista, uma obra-prima so- dade. O filme de Chantal Akerman é
vont en bateau (1975, em co-realização bre a obsessão masculina de possuir um dos mais perfeitos do mundo. É
com Carole Roussopoulos e Iona Wie- a mulher, e é incrível que Delphine uma obra-prima de pensamento,
der), gesto de guerrilha utilizando de não tivesse visto isso. Talvez tivesse que imaginou uma determinada
forma irónica intertítulos e música sido necessário que passasse tempo forma para um determinado con-
para comentar uma emissão televi- para se ver isso debaixo de todo teúdo, e é uma obra-prima de con-
siva dirigida por Bernard Pivot que aquele trabalho formal no filme.” Isto cretização. É um dos filmes mais
teve intervenção da secretária de Es- é, a tese defendida por Jean-Marc La- imparáveis no seu pensamento.”
tado para a Condição Feminina, Fran- lanne de que O Último Ano em Ma- Com a escolha de Seyrig, figura de
çoise Giroud; SCUM Manifesto (1976, rienbad é um filme sobre o assédio. imagem chic para os espectadores,
com Roussopoulos), leitura do mani- “Mesmo em outros títulos, no India para a personagem de dona de casa
festo de Valerie Solanas fundador do Song, de Duras, e no Jeanne Dielman, que repete mecanicamente os gestos
feminismo radical; o referido Sois de Akerman, há uma ironia que faz do dia-a-dia, concretizava-se uma
belle et tais-toi. com que Delphine se aproxime mais violentação pretendida por Aker-
Na época desses filmes, 1975, de- da marionetista, ou seja, de alguém man: impedir que o quotidiano se
cretado Ano Internacional da Mu- que controla o mecanismo, do que da tornasse invisível, que os gestos se
lher, Seyrig estava de tal forma repre- marioneta. E com Duras dá-se a forma diluíssem na sua normalidade, e as-
sentada no Festival de Cannes, qua- mais extenuada, a desintegração do sim evidenciá-los, gestos e rituais —
tro filmes, três dos quais realizados arquétipo, como um cadáver.” por exemplo: cortar batatas — como
por mulheres — Aloise, de Liliane de Mas é com o filme de Chantal Aker- obstáculos de rugosidade, como vio-
Kermadec, India Song, de Duras, e man que aparece outro sinal do lência. A personagem resultou da
Jeanne Dielman, 23 quai du commerce “bom momento” da publicação observação, por Chantal, da sua pró-
1080, Bruxelles, de Chantal Akerman deste ensaio. Jeanne Dielman, 23 quai pria mãe, dos seus gestos e expres-
—, que o júri, presidido por... Jeanne du commerce 1080, Bruxelles acaba sões, coisas que a filha não entendia,
Moreau, lhe dedicou umas linhas no de estabelecer novo cânone ao ser não queria para si.
palmarés. Foi precisamente nessa considerado o melhor filme de todos “Chantal podia ter escolhido uma
altura de um cume que deixou para os tempos na votação organizada actriz com uma imagem mais realista
trás o guarda-roupa e as maneiras de pela revista Sight and Sound, termi- e representativa em vez de uma mu-
“dama”, uma sua “construction”, e nando a dança de cadeiras entre lher cujo corpo veiculava uma liga-
chamou a si os gestos da militância. Vertigo, de Hitchcock, e O Mundo a ção a uma elite social. Mas a verdade
Dizia ela que estava farta de falar Seus Pés, de Orson Welles. Em cópia é que as imagens da mãe de Chantal
“entre linhas” através dos filmes dos restaurada e novos materiais de pro- dizem-nos que era uma mulher bela,
outros. Expôs-se então numa via en- moção, Jeanne Dielman... volta por parecida com Dephine Seyrig.” A
gagée, e a sua raiva que até aí se con- estes dias ao circuito comercial. actriz nascida no seio de uma família
tivera desencadearia a raiva dos “Votei nesse filme [para a lista da da alta burguesia alsaciana, meio
(tele)espectadores que não concilia- Sight and Sound]. Estou de acordo erudito, sensível à arte e aos artistas,
vam a turbulência da mulher dos com a escolha, que volta a estabele- que um dia, sobre o papel que a fez
debates e das manifestações com a cer uma ligação entre a cinefilia e o passar do anonimato à notoriedade,
A dama e o seu cadáver: O Último Ano em Marienbad presença chic nas criações de Resnais contemporâneo”, assume Lalanne. A em O Último Ano em Marienbad:
e India Song. O “melhor filme de todos os tempos”: e Duras. “Poucas pessoas viam o que A votação “é o resultado de novos “Procurei ser verdadeiramente, dos
Jeanne Dielman 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles ela via: a opressão das mulheres pe- critérios de diversidade e de pari- pés à cabeça, uma dama.”
music-hall
alfaiataria), e a aceita, pelo menos à Invisível baila e balança com óbvio saber
falta de outra coisa. fazer (Ben Monteiro, dos amigos
Isaura
Nos rostos dos actores, na maior D’Alva, anda por aqui). Texto de Jean-Luc Lagarce
Ed. de autor
parte do tempo filmados em grande Encenação de Rogério de Carvalho
plano, deposita-se uma grande ) Companhia de Teatro de Almada
parte da responsabilidade da
transmissão destes “segredos” e, se O disco começa As irresistíveis
que quer Azabal como Bakri são
impecáveis, é justo que se diga que
com um triunfo:
Olhos em ti,
mudanças de criação
14 Abril a 14 Maio
o filme se ancora demasiado neles, tapete de
sintetizadores,
pele de Caroline Qui. a sáb. às 21h
ou que nem tudo — certas cenas,
talvez demasiadas, tombam ritmo fulgurante Polachek Qua. e dom. às 16h
M/12
naquela neutralidade do campo/ (ora house ora quase drum’n’bass),
contracampo falho da intensidade a voz de Isaura livre e forte como Há nas canções de Desire, I
desejada — o que Touzani tenta leoa à solta. Daqui seguimos para Want to Turn Into You o que
arrancar-lhes vem, de facto, à luz Viagem, um single dançante com
do dia. Mas a atmosfera óbvio apelo pop, operação de de melhor a pop tem. Dura Dita Dura
“subterrânea” assim criada, mesmo catarse em directo: “Os dias agora Gonçalo Frota Texto e canção de Regina Guimarães
que seja um subterrâneo banhado já não passam/ Os medos ficam e Encenação de Igor Gandra
pela luz dourada da fotografia (que dançam/ O ar já não é p’ra respirar/ Desire, I Want to Turn Into You Teatro de Ferro
rima bem com “o azul do cafetã”), Nenhuma viagem nos tira do
Caroline Polachek
acaba por ser um envolvimento lugar”. É pop que absorve The Orchard 15 e 16 Abril
pleno de sentido, para tudo o que interessantes pormenores de Sáb. às 16h • Dom. às 11h • M/6
acossa as personagens (as rusgas da produção, como um loop que )
polícia, a doença), para aquilo que parece pilhado de uma corrida de
as liga umas às outras como para Fórmula 1. Durante uns
aquilo que as “desliga”. É um filme
inteligente, debruado com o
Invisível, sucessor de Human
(2018) e o primeiro álbum em
tempos, como
quem muda Miguel Araújo
mesmo rigor com que Halim português da cantora e radicalmente de
debrua os seus cafetãs, virtudes compositora de Gouveia, é uma corte de cabelo na 15 Abril • Sáb. às 21h • M/6
que permanecem intocáveis conquista estética e pessoal. Isaura ressaca de um
mesmo se considerarmos (e enfrentou um cancro da mama e a rompimento amoroso, Caroline
consideramos) que O Azul do experiência difícil está presente Polachek passou a responder pelo
Cafetã fica um pouco aquém do nestas canções. No fulgor de Olhos nome Ramona Lisa. Só que, na ctalmada.pt
que podia ser. em ti, ela canta: “Há qualquer coisa verdade, Arcadia, o álbum que
ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 27
KEVIN WINTER/GETTY IMAGES
Música M/6 15 a 23
abril
Acção Paralela dimensão superlativa: um hino a si mesmo, é o Meditação na Pastelaria
António Guerreiro que vemos e ouvimos diariamente nos ecrãs. É
interessante verificar que isso se passa não só em Ana Cristina Leonardo
Cherchez la femme
certas zonas mais festivas da programação, mas
do jornalismo
que suspendem tacticamente toda a atitude
crítica.
A
Esses jornais televisivos que duram quase duas tanto idolatrada como odiada
horas não são apenas obscenos pela salada de Camille Paglia escreveu-o em
notícias, directos e reportagens; são também 1994, em Vampes e Vadias. Cito de
obscenos pelo modo como os jornalistas que os cor: na realidade, não é do ódio,
P
arece um pormenor insignificante, mas é apresentam interrompem a sua função de mas do medo masculino às
um daqueles fenómenos de superfície jornalistas e assumem o papel de instrumentos mulheres que se trata.
que indiciam uma estrutura profunda: a de uma produção que nos faz pensar na relação Uma nota: o medo pode gerar ódio
partir de certa altura, num tempo ainda que os media têm com o mediúnico, com forças facilmente, mesmo quando o medo não
próximo, os políticos entrevistados na mágicas, ocultas. Os jornais televisivos, de um tem nenhuma base real. Veja-se o caso do
televisão ou convidados como modo geral, visam uma experiência adictiva do anti-semitismo europeu do século XX
comentadores passaram a nomear os jornalistas, espectador. E os jornalistas que os apresentam anterior ao Holocausto, corrente em
a chamá-los pelo nome próprio, a interpelá-los são os intercessores desse poder mediúnico. lugares, como assinalou o historiador Raul
como se estivessem em família. Todos os Outrora, a palavra-chave na crítica dos media Hilberg, onde nunca, jamais, em tempo
jornalistas? Não, apenas alguns, aqueles que — era a palavra “manipulação”, que serviu para algum se teria avistado um judeu em carne
como se diz na linguagem corrente — “têm uma condenação abstracta. Enquanto e osso.
nome”, isto é, ascenderam ao estatuto de instrumento de crítica e análise, o conceito de Dito isto, a pergunta impõe-se: têm os
celebridades. Para isso, concorrem pelo menos manipulação guarda certamente ainda alguma homens motivos para temer as mulheres?
três factores: uma redução do teor de pertinência, mas está longe de revelar as mais Se nos lembrarmos de Judite, sem
formalidade exigido aos protagonistas da vida profundas distorções actuais. É a este sistema dúvida. Tal como é narrado na colectânea
política; o enfraquecimento ou até a anulação das actual que um lúcido analista e arqueólogo dos a que os cristãos chamam “Antigo
regras protocolares relativas ao discurso e a todo media, Yves Citton, chamou mediarquia. A Testamento”, o episódio que envolve a
o comportamento nas emissões de televisão; e a mediarquia significa que os media e o seu poder viúva de Betúlia, cidade da Judeia então
proximidade e a cumplicidade entre políticos e estão por todo o lado, que eles relevam de uma sitiada pelos assírios, acabaria mal para o
jornalistas como consequência da sobreposição archè, de uma potência constituinte da realidade, general invasor Holofernes. Judite, astuta,
dos dois poderes, o político e o mediático. e não apenas de um cratos, de um poder de consegue penetrar na sua tenda, seduzi-lo,
Repare-se: os jornais, que em muitos aspectos dominação (mediarquia não diz exactamente a embebedá-lo e em seguida cortar-lhe a
imitam os canais de televisão (ou funcionam com mesma coisa que mediacracia). Esta análise da cabeça, levando o troféu ensanguentado
eles numa lógica de complementaridade construção da realidade pelo poder performativo de volta para a cidade dentro de uma saca.
recíproca, como é o caso da relação dos media tem já uma tradição de pensamento Se nos lembrarmos da caprichosa
Expresso-SIC), mantêm, no entanto, algumas que começa na “sociedade do espectáculo” de Salomé, que exige com sucesso a cabeça de
regras de sobriedade, que restam de um mundo Guy Debord e se prolonga na “hiper-realidade” João Baptista oferecida numa bandeja,
antigo, quanto à nomeação ostensiva dos de Baudrillard. Ambos perceberam que os media dúvida alguma.
jornalistas (por exemplo, nas entrevistas, cada tinham caminhado no sentido de confundir o Se nos lembrarmos de Dalila, amada e
pergunta é geralmente antecedida pelo nome do som com o seu eco, o território com o seu mapa, amante de Sansão que aceita ser subornada
jornal ou da revista e não pelo nome do a realidade com a sua representação. para descobrir a origem da força
entrevistador). Nos jornais televisivos dos canais comerciais, sobre-humana do último dos antigos juízes
Porque é que isto tem um valor sintomático onde todo este processo tem uma força maior, de Israel, segundo nos é contado no Livro
que é preciso considerar? Porque é um signo podemos ver como os media são agora feitos para dos Juízes, acabando por convencê-lo a
conspícuo de uma mudança de regime de serem vistos, ao contrário de um antigo preceito. confessar que o segredo estava nos
visualidade: em princípio, os media foram feitos E isto significa que eles se dobram cabelos, que logo los corta, Sansão
para não serem vistos. Isto significa que o seu constantemente sobre si próprios, são indefeso e adormecido no colo de Dalila, a
funcionamento é tanto mais eficaz quanto eles ostensivos, exibem a sua medialidade e troco das moedas combinadas entregue
conseguem simular que se esquecem de si comemoram-na numa festa permanente. E a aos filisteus que sem perderem tempo lhe
próprios. presidir a esta cerimónia estão jornalistas com arrancam os olhos, qual é a dúvida?
Evidentemente, como é fácil perceber, esta nome, que os seus interlocutores políticos Se nos lembrarmos de Jael, a mulher que
antiga regra foi completamente revogada e hoje gostam de pronunciar para dar ares de família e acolhe na sua tenda Sísera, o derrotado
os media e os seus jornalistas, comentadores, para eterna glória da infra-estrutura mediática chefe militar cananeu em fuga após a ruína
colunistas, etc., exibem-se ostensivamente. Nas que nenhuma agenda política, progressista ou infligida ao seu exército pela lama e pelos
televisões (muito especialmente nos canais conservadora, ousa submeter a uma israelitas, o apaparica e cobre de cuidados,
privados), essa espécie de tautologia ganhou uma metamorfose radical. incluindo um cobertor, para durante o
sono dele com recurso a um martelo lhe
desfazer as têmporas com uma estaca
afiada, restarão dúvidas?
Livro de recitações Com base em tais exemplos, não é de
admirar que a alemã-argentina Esther
O comentador [Marques Mendes] disse neste domingo, na SIC, que com o programa Villar tenha chegado à conclusão que afinal
Mais Habitação o Governo “matou a confiança do mercado”. quem manda nisto tudo são as mulheres
In Expresso online, 02/04/2023 recorrendo a estratégias de sedução e
malícia, jogo sujo praticado por diligentes
O comentador Marques Mendes comentou no uma posição mais avançada nos media: aranhas cujo único fito é fazer cair na sua
jornal da noite da SIC. Pouco mais de uma hora também dá notícias em regime de exclusividade teia os pobres homens, tese que explanou
depois, às 22h28, os seus comentários já eram e comenta as suas notícias, para depois ser com assinalável sucesso mediático e de
notícia no Expresso. É assim todas as semanas. objecto de notícia. A isto se poderia chamar “o vendas na década de 70 do século passado
A função de comentador foi tão bem-sucedida jornalismo total”. Não tem, no entanto, um tom no seu livro O Homem Subjugado (também
que apagou a sua história de ministro e grandioso, não tem nada de wagneriano, é traduzido em Portugal), e onde se podem
dirigente partidário. Em relação à figura do mais uma opereta onde se representa a morte ler pérolas como esta: “(…) o homem
comentador Marcelo, Marques Mendes ocupa do jornalismo sob a forma de paródia. procura sempre alguém, ou alguma coisa,
a quem se possa oferecer como escravo,
uma vez que apenas como escravo se sente
seguro — e a sua escolha recai quase
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR PEDRO RIOS DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS sempre na mulher. Mas quem é ou o que é
DESIGNER ANA CARVALHO E ANA FIDALGO ILUSTRAÇÃO DA CAPA JOSÉ ALVES E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT a mulher para que o homem se deixe
30 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
Crónica
Pedro Rios
e Por outro mundo,
escravizar por ela e para que seja
precisamente junto dela que se sente
seguro, quando é à mulher que deve a sua
obscuros instintos imutáveis
(naturalmente, quanto mais negativos,
melhor…) que serviriam, em última análise,
o Ípsilon quer abrir portas
vida degradante e é pela mulher que é de explicação para tudo — do nazismo ao
U
explorado com todos os requintes?” crime da violação, da homofobia aos ma dasfrases mais repetidas em A Minha Luta, do escritor Karl
Vai agora desculpar-me o leitor o conflitos armados. Ove Knausgård, pode ser traduzida como “o que importa é
parágrafo longo que passo a transcrever, Naturalmente, o que escrevo pode — e focar o olhar”, “ligando-nos àquilo que vemos”, segundo o
mas esta passagem do livro é imperdível: será — mal-interpretado por alguns. Nos filósofo Martin Hägglund.
“Considera-se provado que homens e dias que correm, os riscos hermenêuticos A cultura pode fazer isso: comprometer-nos com o mundo,
mulheres nascem com as mesmas chegam a ser mortais, razão porque me com o que vemos, lemos, ouvimos e sentimos no corpo. Numa
disposições espirituais [vá lá, valha-nos antecipo dando um exemplo, encontrado realidade em que a nossa atenção é disputada por smartphones, apps e
isso!], que não existem, pois, diferenças numa rede social, daquilo que poderá redes sociais, talvez como nunca seja tão importante (até terapêutico)
intelectuais primárias entre os dois sexos. servir no futuro de modelo a uma valorizar isto de nos entregarmos inteiros a um objecto do mundo — um
Está, porém [e eis que dá entrada a temível linguagem não ofensiva: “Gente (animais livro ou um filme que nos convidam a sair de nós, uma canção que não
adversativa!], igualmente provado que também), hoje (mas pode ter sido outro nos larga os ouvidos e nos obriga a dançar, um palco onde outros
todas as potencialidades não desenvolvidas dia) eu vi (sem querer desmerecer quem humanos se comprometem com esta coisa de viver.
se perdem; as mulheres não usam os seus não consegue ver) um filme (mas nada Mas a cultura pode fazer mais: alargar as possibilidades deste mundo,
talentos intelectuais, arruínam contra teatro ou outras formas de abrindo, como diz o mote do PÚBLICO, portas onde se erguem muros.
voluntariamente a sua capacidade de expressão artística) e ri bastante (porém, Abrir possibilidades onde antes havia impasse, impossibilidade,
pensar e após alguns anos de um treino tenho empatia com quem está passando emergência em cima de emergência (antes a covid-19, agora a guerra,
cerebral esporádico caem num estado de por momentos tristes e não consegue rir)”. agora a inflação, agora os bancos, ainda o clima, ainda os populismos).
estupidez irreversível. Por que não usam as E isto, que podia ser a transcrição de um Semear alegria onde cresciam cinismo conformado, resignação.
mulheres o seu cérebro? Não o usam texto humorístico dos vetustos Monty Transformar a nossa relação com os outros, com o tempo.
porque, para se conservarem vivas, não Python, corre o sério risco de estar a ser O mundo precisa de livros, filmes, canções, exposições, corpos em
necessitam de aptidões espirituais. levado a sério no século XXI. palcos, peças de teatro; o mundo precisa de cultura. Quando o mundo e
Teoricamente seria possível uma mulher Tendo deixado lá para trás os exemplos o país se entrincheiram, quando nos isolamos, podemos fazer das artes
ter menos inteligência do que, por bíblicos, note-se como a malícia e o sexo um antídoto, uma reacção, um diálogo — e precisamos tanto de falar uns
exemplo, um chimpanzé e, ainda assim, enquanto terrenos armadilhados com os outros. Como escreveu o escultor Rui Chafes: “Acredito que a
afirmar-se entre os homens”. continuam actuais e as mulheres, arte trata sempre da possibilidade de despertar no Homem o
Após ter elogiosamente comparado as usando-os como arma de arremesso, pressentimento de um outro mundo”.
mulheres a Nkima — o chimpanzé de Tarzan persistem em dar-lhes por vezes um uso Escrevo para este suplemento desde 2004, quando ainda se chamava
que Hollywood baptizaria mais tarde com o pouco estimável. Y, já sob a edição do Vasco Câmara. Com ele aprendi a tirar o melhor de
nome de Chita —, Villar coloca-nos perante Se os franceses, hedonistas e sofisticados, cada história e do jornalista que a quer contar (porque ele fez isso
um quebra-cabeças antropológico de inventaram a expressão chercher la femme comigo, mesmo quando era um jovem escriba com mais sonhos do que
importância capital. — no seu impagável livro de contos Do Outro talento: nunca duvidou que eu conseguiria. São assim o instinto e o
Das duas, uma. Ou as aptidões espirituais Lado do Canal, Julian Barnes garante que o rasgo dos grandes editores).
são mesmo despiciendas no que respeita à encerramento do comércio à hora do Cresci com o Y e com o Ípsilon, páginas onde o cinema dito “de
capacidade de manipulação das mulheres, almoço em França serve para permitir que nicho” se mostra, afinal, compreensível (são humanos como nós que o
e só podemos concluir que os homens são o carteiro se deite com a mulher do leiteiro fazem) e um duo ruidoso de guitarra e bateria é tratado com a mesma
olimpicamente estúpidos; ou, ao invés, as e para que a mulher do carteiro se deite seriedade que um grupo de música de câmara. Aqui, convites ao
aptidões espirituais das mulheres não são com o padeiro e assim sucessivamente… — silêncio convivem com activismo na pista de dança, reggaeton
despiciendas, pelo que o facto de os os norte-americanos, mais puritanos e despudorado e a arte dos silenciados, dos oprimidos. Aqui narram-se
homens se deixarem escravizar adeptos do vil metal, preferem reger-se corpos que vibram dançantes solicitando o nosso compromisso com
voluntariamente implica que as mulheres pela expressão follow the money. Nem eles. Palavras de Knausgård: “Agarrar toda a felicidade, toda a beleza,
são superiormente inteligentes. sempre uma coisa contradiz a outra. todas as promessas que há em todas as coisas.”
Não creio que nenhuma das conclusões Julian Assange sofre injustamente há O Ípsilon que começo agora a editar existe em papel, mas que é
fosse a pretendida pela autora de tão décadas as consequências dramáticas de igualmente lido no site do PÚBLICO, onde podemos contar histórias com
eloquente prosa. uma noite em que não terá conseguido mais do que texto, onde podemos fazer outros formatos — como
Haverá quem considere as opiniões de resistir à ratoeira do sex by surprise. newsletters, podcasts e séries em vídeo.É um suplemento aberto à
Villar demasiado mofentas para serem Strauss-Kahn, apesar de posteriormente cultura, a toda a cultura, atento às novas formas como ela se experiencia
levadas a sério. Nada mais incerto. Os gritos ilibado pela justiça, pagou o libertinismo — numa série em streaming, no telemóvel onde ouvimos a última canção,
aflitos de socorro que se fazem ouvir pelas com o seu cargo de patrão do FMI e o ignorando o resto do disco. Porque a cultura pulsa em todo o país,
bandas masculinas, o receio de feminização ostracismo político, incapaz — como diriam queremos estar onde ela é feita. Foi assim diversas vezes: lembro-me de
e descaracterização dos machos, o pavor à hora do chá senhoras bem-nascidas — de como foram estas páginas que mais valorizaram a música de dança feita
criado pelas hordas de amazonas que se manter fechada a braguilha. É chegada a por afrodescendentes na periferia da Grande Lisboa. Pouco depois,
dedicam a ultrajar o antigo “sexo forte”, vez de Trump, acusado de tentar pagar o esses fabulosos produtores andavam pelo mundo a mostrar a sua arte.
tudo isso só pode ser legitimamente silêncio de uma actriz porno com dinheiros Vamos também procurar pensar a forma como nos relacionamos com
interpretado como a inversão (irónica?) da que não terão saído da sua conta bancária a cultura. É o que fazemos no dossier de capa desta edição no qual
célebre “inveja do pénis” freudiana, (um caso em que o chercher la femme se perguntamos se, na era do smartphone, ainda nos conseguimos
metamorfoseada em medo de ser engolido casa abertamente com o follow the money). concentrar num livro. Para obter respostas, ouvimos escritores,
por uma vagina gigante, sem que, ao Pessoalmente, considero que o único uso editores, um neurologista e outros peritos, mas também leitores.
contrário da baleia de Jonas, haja agora curial do sexo como arma continua a Queremos fazê-lo mais vezes: o Ípsilon é uma comunidade, sinta-se
garantia de saída. encontrar-se no exemplo dado pela incluído nela. Vamos, à boleia dos livros, ouvir filósofos, psicólogos e
Sejamos intelectualmente honestos. A ateniense Lisístrata narrado por sociólogos que nos ajudem a dar sentido ao mundo — voltando ao nosso
contenda a que durante tanto tempo se Aristófanes. Não é um caminho fácil, mas mote, queremos abrir portas onde temos visto sobretudo muros.
chamou guerra dos sexos parece ter há que trilhá-lo se se quer realmente educar “Sinto que o mundo pode ser algo mais próximo de um sonho,
atingido níveis ridículos de paroxismo. Se, os homens. metafórico e poético, do que actualmente cremos ser”, escreveu o
de um lado, existe a recusa radical da músico David Byrne. “Nãoficaria surpreendido se a poesia — a poesia no
biologia, considerando-se que tudo é “Cherchez la femme” é uma expressão sentido mais amplo, no sentido de um mundo preenchido pela
“construção social” e, assim sendo, toca a detectivesca que surge pela primeira vez no metáfora, pela rima, por padrões, formas e desenhos recorrentes —
construir um “homem/mulher novo/nova”; romance novecentista de Alexandre Dumas fosse a forma como funciona o mundo. O mundo não é lógico, é uma
do outro, argumenta-se com os mais Les Mohicans de Paris. canção.” Cantemo-la juntos nestas páginas.
ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 31
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