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Na era dos smartphones, do multitasking e da distracção permanente,

conseguimos
ler um livro?

Sexta-feira | 7 Abril 2023 | publico.pt/culturaipsilon


ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 12.029 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Na era dos
smartphones, ainda
conseguim
ler A tentação de ver
se caiu mais
alguma notiÄcação,
as sugestões
intermináveis
do feed, o vício dos
conteúdos breves…
Os smartphones e a
Internet mudaram
a forma como lemos?
sem
distracções?
S
ara Jesus costumava ser uma leitora ávida. Desde
cedo se apaixonou por grandes autores e autoras
da Inglaterra (onde agora vive), como Jane Aus-
ten, de Orgulho e Preconceito. A hematologista
portuguesa de 35 anos reverencia tanto esta obra
que até deu o nome de um dos seus personagens
principais, Fitzwilliam Darcy, ao seu cão de cinco anos
(um spitz alemão).
A leitura é uma parte fundamental da sua vida, dizíamos.
Mas hoje em dia Sara costuma ter dificuldade em ler uma
página de uma assentada. Volta e meia, sente a necessidade
de fazer uma interrupção, quase sempre para ir ao tele-
móvel ver se tem alguma chamada perdida ou mensagem
por ler. Se por acaso acontecer apanhar numa rede social
algo que desperte o seu interesse (não é uma ocorrência
rara, até porque é justamente essa a especialidade dos
algoritmos), cai num scroll longo e sem propósito.
“É um vício”, admite a profissional de saúde, ao tele-
fone com o Ípsilon. Um vício que está a combater, embora

Daniel Dias (Texto) de forma imperfeita, considera. “Enquanto esperava pela


chamada, estava a ver vídeos no Instagram. Não faz sen-
tido. Estou em casa, este seria o dia ideal para pôr a leitura

José Alves (Ilustrações) em dia… Mas ando para aqui a desperdiçar o meu tempo
nas redes sociais.”

2 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023


DANIEL ROCHA
mos A leitura é uma actividade que exige concen-
tração, e os nossos smartphones são fornecedo-
gicas e psiquiátricas recentes para examinar uma série de
hipóteses científicas sobre este tema. Tem como título
RITA CONSTANTINO, LEITORA
A jovem de 22 anos define pequenos objectivos
res de entretenimento ininterrupto. Estarão os “The ‘online brain’: how the Internet may be changing our para tentar manter os seus hábitos de leitura.
telemóveis a condicionar aquela que é a nossa cognition” (O “cérebro online”: como a Internet pode estar “Por exemplo: ‘Hoje avanço 30 páginas e não vou
capacidade de manter o foco? E estará a natureza a mudar a nossa cognição). dormir sem as ler’”
tipicamente breve dos conteúdos que consumi- Este assunto foi explorado de forma que ficou famosa
mos online a tornar mais desafiante o acto de ler por Nicholas G. Carr, escritor norte-americano de 64
um livro com algumas centenas de páginas? anos, num texto publicado em 2008 na revista The Atlan-
“Estamos agora mais habituados a trechos: tic. O artigo “Is Google making us stupid?” (Estará o Google sermos pessoas distraídas, e não para mantermos a aten-
descrições, vídeos curtos, áudios no WhatsApp a tornar-nos estúpidos?) resultou de uma observação ção. Quanto maior for a velocidade com que passamos
cuja velocidade aceleramos em 1,5 ou duas ve- pessoal: Carr apercebeu-se na altura de que estava a sen- de uma informação para outra, mais oportunidades têm
zes. Estamos a habituar-nos a que as coisas se tir cada vez mais dificuldade em realizar aquilo que em o Facebook, o Twitter e as restantes redes sociais de nos
tornem mais rápidas e curtas”, sublinha Moshe inglês se designa deep reading (leitura imersiva, ou mostrar anúncios publicitários e de recolher mais infor-
Bar, neurocientista reconhecido internacional- atenta). Até livros e artigos que no passado conseguira mações sobre nós.”
mente e autor do livro Divagação Mental (ed. Te- ler sem esforço estavam agora a exigir mais de si. O autor A leitora do PÚBLICO Rita Constantino confessa-se
mas e Debates, 2022), que versa sobre a tendência passou a argumentar que a raiz dos seus problemas de vítima de alguma distracção. Há alguns dias, estava sen-
do nosso cérebro para ir atrás de devaneios e pensamen- concentração estavam no seu uso da Internet. tada no comboio, pronta para iniciar a sua viagem de
tos que não têm necessariamente que ver com a tarefa O artigo de Carr fará 15 anos no Verão. À conversa com regresso a casa. O livro que anda a ler estava pousado no
que estamos a executar num dado momento. o Ípsilon (ver entrevista nestas páginas), o autor sente colo; ia ser a sua companhia nos caminhos-de-ferro. A
A neurologista portuguesa Liliana Letra complementa que, desde 2008, o panorama só piorou. O seu texto, jovem tirou o telemóvel do bolso apenas para ver as ho-
a intervenção do israelita. Diz que a atenção sustentada explica, foi escrito numa altura em que os smartphones ras. Acabou desbloqueando o ecrã e indo ao Instagram.
— aquela por intermédio da qual o nosso cérebro passa e as redes sociais eram ainda uma coisa nova, emergente. Foi então que viu um apelo do PÚBLICO: há umas sema-
um período de tempo mais ou menos comprido concen- Agora, há uma quantidade extraordinária de estímulos, nas, a pensar neste texto, pedimos aos nossos leitores
trado numa tarefa específica que queremos realizar — “é coisas interessantes que podem, a qualquer momento, para nos falarem sobre os seus hábitos de leitura e sobre
algo que se treina”. “Quando nós começamos a ficar ape- surgir no nosso feed. “A Internet está a treinar-nos para até que ponto conseguem ler sem distracções. Começou
nas com estes apontamentos de informação, habituamo- a escrever-nos o seu depoimento — e foi assim que “a
nos a um certo facilitismo.” Consequentemente, argu- maior parte” de uma viagem que “seria destinada à lei-
PAULO PIMENTA

menta, podemos permitir que as ferramentas necessárias tura” foi passada com o telemóvel entre as mãos.
para manter a atenção fiquem enferrujadas — o que não A leitura sempre foi um dos maiores passatempos de
favorece actividades como a leitura de um livro. Rita Constantino, mas hoje dá por si a dedicar-lhe menos
tempo. A jovem de 22 anos, que está a tirar um mestrado
A Internet estupidiÄcou-nos? em Engenharia do Ambiente, tem algumas estratégias
A influência que a Internet pode ter no nosso cérebro, seja para ler melhor ou manter a concentração, entre as quais
a curto ou a longo prazo, é um tema que vem sendo estu- deixar o telemóvel noutra divisão da casa ou definir pe-
dado há já alguns anos, não existindo ainda noções clara- quenos objectivos — “Por exemplo: ‘Hoje avanço 30 pá-
mente consensuais (de estudos diferentes, cada um com ginas e não vou dormir sem as ler’” —, mas isto nem
a sua metodologia, saíram observações contraditórias). sempre tem produzido os resultados desejados.
Ainda assim, a literatura científica disponível parece, no Depois de um dia passado no seu estágio curricular,
geral, indicar que de facto a Internet pode alterar a nossa Rita quer “desligar o cérebro”. “Ver um episódio de uma
capacidade para prestar atenção. Di-lo, por exemplo, um série ou passar algum tempo no Instagram a ver reels, ou
estudo de 2019 que parte de várias descobertas psicoló- então simplesmente ouvir música, é mais ‘fácil’. O resul-
tado é que ando a passear o livro na mochila”, descreve
esta residente em Alcabideche (Cascais).
O algoritmo vai permanentemente recomendando
VALTER HUGO MÃE, ESCRITOR conteúdos que à partida estão relacionados com os nos-
Criar um “teatro de leitura” é uma boa estratégia sos interesses, pelo que “é muito fácil acabarmos em duas
para ler melhor. “Gosto de ter um certo aparato. horas diárias de divagação digital”, observa a escritora
Leio melhor quando estou sentado à mesa. Yara Monteiro, que destaca a importância da automoni-
Gosto que o livro esteja pousado, gosto também torização. A autora de livros como Essa Dama Bate Bué
de uma boa luz…” gosta de consultar o relatório semanal em que o seu 

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 smartphone lhe indica quantas horas passou a inter- YARA MONTEIRO, ESCRITORA
agir com o ecrã e quais as aplicações que mais usou. Lê de lápis na mão, para sublinhar ideias
A Internet é óptima para pesquisar rapidamente in- interessantes. É uma boa estratégia para manter
formações sobre aquilo que está a ler, por exemplo, mas a atenção: “Não consigo ler sem lápis. É como
há que usar as tecnologias com moderação, diz Yara, se fosse a minha bússola ao longo do mapa
cujos hábitos de leitura não têm sido muito prejudicados da narrativa.”
pelo telemóvel (justamente por causa das barreiras que
impõe a si mesma). “Se for possível, consigo estar oito
horas a ler”, refere a autora. Lê de lápis na mão, para
sublinhar ideias que considere interessantes. É uma boa mais algumas páginas, em vez de ir ao telemóvel. Outra
estratégia para manter a atenção, sugere. “Não consigo estratégia que diz estar a funcionar: “Estabelecer um
ler sem lápis. É como se fosse a minha bússola ao longo objectivo numérico de livros a ler por ano” [no Goo-
do mapa da narrativa.” dreads].” Trata-se de um site que é usado pelos utiliza-
Maria do Rosário Pedreira, editora do dores para estes darem pontuações aos livros que já
grupo Leya e autora, também conti- leram e apontarem os que ainda querem ler. Ana Lídia
nua a ler muito. “Já levo 35 anos de faz um “compromisso” consigo mesma no início do ano,
edição. São muitos anos a ler, [a tecnologia] e isso é algo que de certa forma a ajuda: há um objec-
não me afecta muito.” Mas afecta um pouco, tivo, por ela própria estabelecido, pelo qual tem de
confessa, re- parando que já não tem paciência batalhar.
para determinadas manchas de texto. Valter Hugo Mãe dá outra sugestão para uma leitura
Dá por si a perder a concentração quando um de qualidade: criar um “teatro de leitura”. “Gosto de ter
autor à procura de editora lhe envia um certo aparato. Leio melhor quando estou sentado à
uma cópia do seu manuscrito e apre- mesa. Gosto que o livro esteja pousado, gosto também
senta a obra que está a escrever através de uma boa luz…”
de um texto muito longo. “Eu chego a Por estes dias, as leituras do escritor não são particu-
meio e já não tenho paciência. Penso: larmente de dar prazer. Mas isto não será defeito da es-
‘Deixe-se lá de rodriguinhos.’ Já estou que, devido às necessidades da sua mãe idosa, vive tratégia, sugere. O problema é outro.
treinada para o rápido. Acho que isto “numa situação de plantão permanente”, não podendo, O escritor começa a sentir-se “cada vez mais cansado”,
molda as nossas cabeças.” portanto, passar muito tempo longe do telemóvel. “A o que contamina tudo, incluindo a leitura. “Não sei se é
Nos últimos anos, a editora tem realidade não se compadece com os nossos prazeres nem da idade, ou então se é um defeito específico da minha
mesmo dado conta de “alterações si- com a nossa avidez de conhecimento”, afirma, contando personalidade. Mas depois de ter visto a minha vida mu-
gnificativas na escrita de livros”. De- que conseguir “mais do que meia hora de sossego para dada por causa dos livros, há uma certa sensação de que
pois de a Internet e o streaming terem ler um livro” é, por estes dias, “um desafio”. não volta a acontecer. Depois dos 50 [fará 52 anos em
conquistado espaço aos livros, houve Se a leitura pode ser encarada como uma maneira de Setembro], sinto que dificilmente encontrarei algum li-
“tempos verbais que desapareceram escaparmos momentaneamente da realidade, o autor de vro que volte a mudar-me, que me faça voltar a ter uma
dos textos”, diz. “São cada vez mais os A Máquina de Fazer Espanhóis escapa apenas “de trela”. esperança profunda no mundo.”
autores que escrevem com os tempos simples, nomeada- “Fujo, mas, ao mesmo tempo, sou sempre capaz de voltar Sara Jesus continua a retirar muito prazer da leitura.
mente o presente do indicativo. Isto é um espelho do à realidade de forma tão imediata quanto possível.” E está a tentar adoptar diferentes estratégias para voltar
audiovisual: a história é contada em tempo real, com Ana Lídia, uma das leitoras do PÚBLICO que respon- a ser uma leitora ávida — ela que em tempos já conse-
muitos diálogos e pouca descrição. É como se estivésse- deram ao nosso repto nas redes sociais, diz que o pro- guiu ler um livro por semana. Todas visam, de uma
mos a ver uma série.” blema não está só no telemóvel. Embora este tenha im- maneira ou de outra, atacar o tal vício do telemóvel que
pacto no número de livros que esta “ávida leitora” con- ela diz ter.
Estratégias para ler segue ler por ano, a profissional de saúde diz que “não A hematologista programou o seu smartphone para
Teoricamente, podemos simplesmente pôr o telemóvel há como ignorar o impacto da actual crise no cansaço este exibir um aviso quando ela atinge 15 minutos de
em silêncio ou deixá-lo longe de vista, quando queremos generalizado e na pouca disponibilidade para ler”. utilização diária de algumas aplicações, entre as quais
dedicar algum tempo a uma leitura imersiva. Mas há “A crise e a inflação levaram-me a sentir mais stress o Facebook e o Instagram. “As apps que eu acho que só
pessoas para quem isto não é assim tão simples. relativamente a situações que antes estavam mais ou me roubam tempo.” Até agora, o sucesso desta estra-
Valter Hugo Mãe é uma dessas pessoas. O escritor diz menos asseguradas na minha cabeça”, conta, dizendo tégia tem sido limitado. O aviso tem uma opção que é
que vem acusando um “maior desgaste diário”. “A leitura um pouco como o snooze dos despertadores: permite
implica uma capacidade de memória e de concentração a Sara passar mais 15 minutos a utilizar aquela app (pas-
que, honestamente, tenho sentido que tem vindo a di- sado esse tempo, surge novo alerta). Muitas vezes, a
MOSHE BAR, NEUROCIENTISTA minuir nestes últimos tempos. No entanto, não deixei profissional de saúde cede. “Dou-me mais 15 minutos,
“Estamos a habituar-nos a que as coisas se de ler por completo — e tento activamente adoptar es- e depois mais 15, e depois mais 15, e a dada altura penso:
tornem mais rápidas e curtas”, diz. “Há tanta tratégias que por vezes ajudam.” ‘Vá, este aviso já me irrita.’” Acaba por retirar o limite
informação disponível e que queremos consumir Uma delas é andar sempre com um livro na mochila diário, passando bem mais tempo do que o pretendido
que acabamos por sentir alguma dificuldade.” — e aproveitar os “momentos mortos” do dia para ler na aplicação.
Independentemente de esta estratégia ainda não estar
ESTELA SILVA/LUSA

a surtir grande efeito, a leitora encontra-se numa fase


em que diz precisar que o aviso apareça. Quando surge,
ele “mexe com o pensamento”. “Há ali uma espécie de
jogo psicológico: ‘Não caias na tentação.’”
A outra estratégia que costuma aplicar é um tanto cu-
riosa. Por motivos profissionais, Sara tem passado os
últimos tempos a ler muitos documentos científicos, a
maioria dos quais através do computador. “Está a ver o
vício das pessoas que querem deixar de fumar?”, per-
gunta-nos. “Há fumadores que, quando estão a tentar
deixar, têm de ter alguma coisa entre os dedos (um lápis,
por exemplo). Eu passo as minhas horas de estudo 

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA,


EDITORA E ESCRITORA
Tem dado conta de “alterações significativas
na escrita de livros”. Há “tempos verbais que
desapareceram dos textos” e um recurso muito
forte ao presente do indicativo – “espelho do
audiovisual”. “A história é contada em tempo
real, com muitos diálogos e pouca descrição.
É como se estivéssemos a ver uma série.”

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Nicholas Carr: “O TikTok
interessante para nos mostrar, andamos sempre a
alternar entre três estados: ou estamos a olhar para o
nosso smartphone, ou estamos a pensar em pegar
nele, ou estamos a suprimir o desejo de pegar nele.

aperfeiçoou
ç o modelo Isto deriva do facto de nos termos autotreinado para
estarmos dependentes do telemóvel.
Se conseguirmos quebrar essa ligação entre ele e

da distracção”
nós próprios durante pelo menos uma parte do dia,
penso que essa será uma forma importante de
começarmos a “retreinar” o cérebro para voltar a ser
capaz de prestar mais atenção. Mas é difícil, porque,
desde o início, as pessoas começaram a andar com o
smartphone no bolso o dia todo.
“A Internet está a treinar-nos para sermos pessoas distraídas, A segunda coisa que faço é tentar passar pouco
tempo nas redes sociais (mesmo que isso implique
e não para mantermos a atenção”, diz o escritor. Por Daniel Dias sacrificar alguma da minha vida social). E a terceira é
simplesmente desactivar as notificações.
Tem “rituais de leitura”, uma certa receita que siga

H
á 15 anos, o escritor norte-americano Nicholas acontecer à nossa volta, porque era uma forma de para ler melhor?
G. Carr escreveu um artigo chamado Is Google sobrevivência (queríamos conseguir ver ameaças Oxalá pudesse dizer que sim. Como escrevo livros de
making us stupid? (Estará o Google a antes que fosse impossível escaparmos a elas). Somos não-ficção, uso muito a Internet nas minhas
tornar-nos estúpidos?) para a revista The distraídos por natureza. Se nos é dada uma pesquisas. O meu trabalho exige alguma leitura na
Atlantic. Este ensaio crítico da forma como a quantidade ilimitada de informação nova a toda a diagonal, o que depois dificulta eu ter a disciplina
Internet pode afectar a nossa capacidade de hora, sentimos um desejo muito forte de a recolher. A para, no meu tempo de descanso, ler uma obra
manter a atenção durante um período prolongado de capacidade de prestar atenção é algo que temos de literária de forma imersiva. Se for tentar ler durante
tempo foi altamente debatido. Alguns elogiaram-no ensinar a nós próprios, porque vai contra a nossa um período prolongado de tempo, desligo o
por ter ajudado a acelerar um debate sobre a possível natureza como recolhedores de informação. telemóvel, mas não posso dizer que tenha
influência das tecnologias no nosso cérebro. Outros Se juntarmos isto àquelas que são as estratégias das aperfeiçoado um protocolo para ler melhor.
acharam que o texto era alarmista. empresas de redes sociais… O Facebook, o Twitter e as Um crítico do seu artigo de 2008 definiu a sua tese
Mais de uma década depois, Carr, que no livro Os outras plataformas querem manter-nos distraídos. como “provocadora” e escreveu que os “adultos
Superficiais (ed. Gradiva, 2012) explora ainda mais Quanto maior for a velocidade com que passamos de responsáveis” sempre tiveram de lidar com várias
este tema, defende ao Ípsilon que o tempo veio uma informação para outra, mais oportunidades têm distracções. Como responderia?
demonstrar que tinha razão. Diz que as ameaças à de nos mostrar anúncios publicitários e de recolher Acho que o defeito dessa crítica é que esquece o facto
nossa concentração estão a crescer e que, imersos que mais informações sobre nós. de que as distracções são cumulativas. É claro que já
estamos no mundo das redes sociais, tornamo-nos Diria que as ameaças à nossa concentração estão havia distracções há 50 anos, e há 100, e há 500. Mas
pessoas cada vez mais distraídas, habituadas a a crescer, até com a emergência de novas redes agora temos uma série delas em conjunto — e nunca
conteúdos breves e com dificuldade em sociais como o TikTok? tivemos uma tecnologia como a Internet e o
mergulharmos num livro. Diria que sim, e diria que, por agora, o TikTok smartphone, que nos inundam constantemente de
Em 2008, perguntou se o Google estava aperfeiçoou o modelo da distracção. Isto é, pequenos pedaços de informação interessante. Nunca
a tornar-nos estúpidos. Passados 15 anos, aperfeiçoou esta habilidade de usar a inteligência estivemos numa situação como aquela em que
como responderia à sua própria questão? artificial para descobrir precisamente aquilo que estamos hoje.
O que tentei expressar foi algo que estava a sentir na agarrará a nossa atenção durante pelo menos alguns
minha própria vida: estava a passar tanto tempo segundos — e depois dar-nos a próxima coisa, e depois
online, a recolher tanta informação e a levar com a próxima, e depois a próxima. Há 15 anos, o escritor norte-americano Nicholas
tantos estímulos que estava a ter dificuldade em Uma coisa que importa realçar quando se fala de G. Carr escreveu “Is Google making us stupid?”
manter o foco por muito tempo. A área do dia-a-dia ameaças à concentração é que a leitura atenta exige para a Atlantic. A situação só piorou, defende.
em que me apercebi mesmo disto foi a leitura: estava a que a pessoa se afaste um pouco da sociedade, de MERRICK CHASE
ter dificuldade em ler livros, ensaios… certa forma. O ambiente digital permite-nos socializar
Qualquer tipo de leitura que exija atenção a toda a hora. E nós somos criaturas sociais, portanto
sustentada. Senti, então, que a Internet está é difícil criar o ambiente ideal para uma pessoa estar
a treinar-nos para sermos pessoas distraídas, sozinha a prestar atenção a uma só coisa, como um
e não para mantermos a atenção. livro, durante um período longo de tempo.
Infelizmente, penso que a minha tese foi Já conseguiu superar os problemas de
comprovada. Tudo tem piorado. Quando concentração de que falava no seu artigo?
escrevi esse artigo, os smartphones e as redes Ainda preciso de fazer um esforço considerável para
sociais ainda eram uma coisa nova. O meu ler durante algum tempo. E estamos a falar de algo
texto antecede essa revolução. Os que eu conseguia fazer com muita naturalidade. A
smartphones são algo que levamos connosco Internet e o meu computador pessoal têm tornado a
para todo o lado, portanto estão sempre a leitura uma tarefa cada vez mais complicada. E
roubar a nossa atenção. Quanto às redes mesmo sabendo que isto é algo que me afecta,
sociais, elas mantêm-nos a ler a toda a hora, continuo a ter dificuldade em me manter longe de
mas encorajam-nos a passar de uma coisa distracções.
para a outra constantemente. Estão sempre a dar-nos Tem regras de utilização da Internet
notificações e alertas. O ambiente que criam é e do telemóvel?
contrário ao ambiente calmo de que precisamos para Há algumas coisas que tento fazer. A principal, que é
ler atentamente. também a mais desafiante, é simplesmente não andar
Os humanos gostam de ser entretidos. E nós somos o dia todo com o telemóvel de um lado para o outro.
recolhedores de informação. Quando a espécie estava Como estamos sempre a transportar este objecto que
a desenvolver-se, queríamos saber tudo o que estava tem uma quantidade ilimitada de informação

“Já havia distracções há 50 anos, e há 100, e há 500.


Mas nunca estivemos numa situação
como aquela em que estamos hoje”
ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 5
Clubes
 a segurar uma espécie de bola anti-stress. Mantenho recebido feedback das pessoas que apanharam os
a mão ocupada para evitar pegar no telemóvel.” livros”, conta a curadora. Estão a preparar “um
micropodcast” a partir do que é dito nas sessões e
“Sempre ligados” criaram uma conta na plataforma Discord. “A
Outras leitoras do PÚBLICO partilham outras dicas para
ler melhor. Joana Cardoso, de 21 anos, está a tentar per-
ceber qual a melhor forma de manter vivos os seus há- de leitura:ler comunidade é muito acesa lá, partilha várias sugestões,
é melhor do que uma agenda cultural! [risos] Tem sido
muito bom porque muitas vezes as duas horas que

em sintonia
bitos de leitura à medida que vai entrando “na vida estipulamos para as sessões não chegam e as discussões
adulta, caótica e rápida do trabalho”. Aproveitar o tempo continuam ali.”
passado nos transportes públicos é essencial. Optou re- “Esse sentido de pertença a um grupo através de um
centemente por comprar auscultadores com cancela- livro é muito interessante”, diz Isabel Machado,
mento de ruído para conseguir manter a concentração coordenadora da Biblioteca/Espaço Cultural Cinema
e ouvir a narração da sua “voz interna” mesmo nas horas Europa, que dinamiza com Teresa Monteiro,
de maior rebuliço. bibliotecária da Casa Fernando Pessoa, o novíssimo
Joana também tenta gerir a sua lista de leitura em
função da sua vida. Passa a explicar: “Se estiver num
Se a Internet nos distrai e rouba Clube de Leitura de Poesia. “Desmistifica e traz para o
nosso dia-a-dia a literatura, de uma forma muito
período mais trabalhoso, opto sempre por livros mais
‘leves’, que requeiram menos da minha atenção — livros
a atenção do livro, por todo o simples.” Os leitores sentem-se à vontade para discutir
um livro sem se ter medo de errar. “Cria-se um
de poesia pequenos, livros de leitura rápida, coisas desse
género. Quando tenho mais tempo livre, opto sempre
país nascem comunidades de compromisso com a leitura, que muitas vezes sozinhos,
nas nossas lides diárias, perdemos”, continua uma das
por ler coisas novas e que me desafiem, como psicologia
e filosofia.”
leitores apostadas em resistir. dinamizadoras deste encontro mensal criado no âmbito
da Feira do Livro de Poesia, em Lisboa.
Daniela Sá passou a ler mais e-books. “Percebi que com
o livro físico consultava o telemóvel à procura de um
“Cria-se um compromisso com “Muitas vezes o que estou a ler nem com o meu
marido partilho. Pode até acontecer falar-lhe do livro;
significado e, mal isso acontecia, perdia-me. Há um cha-
mamento inexplicável para estarmos sempre ligados.”
a leitura.” Por Isabel Coutinho ele ter vontade de o ler. Mas não estamos em sintonia,
não estamos na mesma página. Estes clubes têm isto de
Vera Gonçalves também tem, como Rita Constantino, engraçado: o podermos partilhar.”

N
uma estratégia ancorada em metas diárias. “Tento obri- este século XXI, pode uma actividade tão O Clube de Leitura de Poesia funcionará até Junho na
gar-me a não pegar no telemóvel até terminar um deter- antiga como um clube de leitura transformar os Casa Fernando Pessoa e depois, de Setembro a
minado número de capítulos ou chegar a uma certa pá- hábitos de alguém que habitualmente não lê? A Dezembro, na Biblioteca/Espaço Cultural Cinema
gina. Às vezes resulta, outras nem por isso”, assinala. “É história de Andreia Nascimento, licenciada em Europa, também em Lisboa. Com a especificidade de
preciso muito autocontrolo para dizer: ‘Nestas duas ho- Tecnologias da Informação e Multimédia que ser dedicado a poetas, à sua obra e à sua vida, e não a
ras, vou simplesmente colocar o telemóvel em silêncio e trabalhou em marketing digital, prova que sim. livros específicos, teve a primeira sessão dedicada ao
ler’”, reconhece a neurologista Liliana Letra. “Quem diz Participante desde o primeiro dia no clube do livro poeta António Ramos Rosa em Março. “O papel do
‘ler’ diz ‘trabalhar’ ou outra coisa qualquer. Temos muita feminista Heróides, o projecto da estrutura artística moderador é também deixar os participantes à vontade
dificuldade em desligar, o que causa muito stress.” Cassandra que a actriz Sara Barros Leitão lançou em para uma leitura em voz alta e abrir caminho para uma
Lúcia Nunes gosta de ler livros físicos — para admirar 2021 com sessões mensais online, Andreia é agora partilha mais performativa”, conta Isabel Machado. Por
a capa, para sentir o cheiro do papel… —, mas diz co-curadora do projecto. isso, lançaram a ideia de no futuro se realizar uma
que os audiolivros também são uma “Vou ser sincera. Quando fui para este clube do livro sessão informal, aberta ao público, em que todos
boa opção, permitindo-lhe fazer ou- tinha poucos hábitos de leitura, não sei se por poderão fazer leitura de poemas em voz alta.
tras coisas em simultâneo (coisas que não “des- hiperactividade ou por aborrecimento”, conta por Os participantes não têm de gastar dinheiro a
viem” a atenção, como fazer tricô, o u t r o telefone. Nas Heróides não há obrigatoriedade de se ter comprar os livros caso não os possuam, porque as obras
hobby seu). A editora Maria do Rosário Pedreira lido o livro em destaque, mas, como Andreia queria ter existem nas duas bibliotecas para empréstimo. E a
considera que os audiolivros “funcio- ideias sobre o que tinha lido e participar na discussão, biblioteca da Casa Fernando Pessoa, onde se realizou a
nam para cursos de línguas”, bem teve de arranjar um método para conseguir ler as obras tertúlia, é especializada em poesia nacional e
como para “pessoas que têm de fazer escolhidas. “No início foi custoso. Obrigava-me a ter estrangeira, no original ou em tradução.
viagens grandes de carro todos os dias”, mas sente uma rotina. Mas, com o tempo, acho que o gosto da Apareceram jovens universitários que não conheciam
que têm uma desvantagem: “Já trazem a entoação leitura me foi incutido.” Além de ler os livros do clube a obra do autor de Não Posso Adiar o Coração, mas
de quem está a ler. O leitor não faz o mesmo tipo do livro feminista, começou a comprar e a ler os que também houve quem levasse os seus poemas preferidos
de participação na história.” eram sugeridos nas sessões. “Quando dei por mim do poeta. As mulheres estavam em maioria e as 20
Yara Monteiro refere que a meditação, en- estava a ler três livros por mês.” vagas abertas foram preenchidas. “Todos mostraram
quanto prática diária, pode ser benéfica para a Neste terceiro ano de actividade, as Heróides já se vontade de continuar. As pessoas estavam satisfeitas
leitura: ajuda a reorganizar os pensamentos e a vêem como uma comunidade em que todos os com a existência deste clube e com o que vieram aqui
reduzir o ruído mental, diz a escritora. participantes disponibilizam a sua ajuda seja para o que encontrar”, recorda Teresa Monteiro. Querem
Em termos de receitas, a Associação Portuguesa for. Juntam-se cerca de 200 pessoas por sessão, as continuar numa linha de poetas do século XX. Na
de Editores e Livreiros, que recorre a dados disponi- idades vão dos 20 aos 80 anos, e perto de 70% assistem votação saiu vencedor Ruy Belo, o escolhido para a
bilizados pela consultora GfK, indica que em 2022 o às sessões desde o início. As inscrições estão já abertas próxima sessão, a 18 de Abril. “Cada um vai estar às
mercado do livro em Portugal cresceu 16% face ao ano para a próxima sessão online, a 29 de Abril, das 11h às voltas com os seus poemas preferidos de Ruy Belo e
anterior. Ao todo, foram vendidos no ano passado 12,7 13h: discutir-se-á Poemas, de Hannah Arendt, e a vamos fazer também a ligação com António Ramos
milhões de livros, principalmente do género infanto-ju- convidada é Isabel do Carmo. Rosa. Aos poucos, queremos ir encontrando um
venil (quase 34%). No ano passado começaram a ter algumas sessões possível alinhamento de poemas que poderão depois
Entre o comprar e o ler há um caminho a trilhar. Rita presenciais. Notaram uma diferença enorme na ser trabalhados com a actriz Teresa Lima, que há-de
Constantino diz que no último ano deixou três livros a interacção entre os participantes. Este ano estão chegar em Junho para trabalhar a leitura em voz alta
meio. “Comprava, ou então emprestavam-me outro que marcadas três. Nas sessões presenciais sem convidados com os elementos do grupo”, explica Isabel Machado.
me chamava mais a atenção ou que estava mais ‘na haverá leituras encenadas das obras que discutem em Zulaica Mendes Gusmão, 75 anos, que vive no
moda’.” conjunto. “Sempre numa perspectiva feminista.” Entroncamento, veio de propósito a Lisboa para
A jovem diz que perder a vontade de acabar um livro é Com o apoio de editoras, têm estado a deixar livros participar no Clube de Leitura de Poesia. Vai voltar
algo que se tem tornado mais recorrente. “Antes, ler era a espalhados por vários locais de algumas cidades. Têm todos os meses. “O meu entusiasmo vem da minha
minha escapatória. Agora, o telemóvel veio substituir isso. uma carta dentro com a apresentação do clube e um sensibilidade para a poesia”, conta por telefone a
O problema no meio disto tudo é que fico a sentir-me mal convite à participação. “Tem sido espectacular. Temos professora reformada de Educação Musical. “Senti-me
comigo mesma: julgo-me a mim própria por passar mais
tempo no telemóvel em vez de estar a ler um livro.”
“Não se trata de querermos mais superficialidade — a
nova geração não é menos inteligente do que a minha —,
a questão é que há tanta informação disponível e que
queremos consumir que acabamos por sentir alguma
“Tem sido surpreendente que uma estratégia d
dificuldade”, diz Moshe Bar, que não é imune aos pro-
blemas discutidos neste texto (o neurocientista pratica-
mente já só lê coisas no âmbito da sua investigação, já
e antiga quanto os grupos de leitores c
não lê por prazer como outrora). “Não é culpa nossa.”
(Então, conseguiu ler este texto sem distracções?) e a chegar a novos canais de comunicação”, d
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promoção da leitura tão tradicional e tão antiga quanto
os grupos de leitores continue a captar interesse, a
evoluir e a chegar a novos canais de comunicação e a
criar espaços de socialização através da leitura.”
Aspecto também importante é não ser um fenómeno
urbano. “Temos um mapa bastante homogéneo pelo
país, desde o interior do Alentejo à zona das beiras,
Serra da Estrela ou a zona de Trás-os-Montes. É bastante
equilibrado, por vezes até surpreendentemente
equilibrado tendo em conta outras assimetrias que
temos no acesso à leitura e bens culturais.”
Para Bruno Eiras, que dinamizou grupos de leitores
durante 14 anos na biblioteca de Oeiras com mais dois
colegas, este formato resulta também porque trabalha
as questões da leitura num contexto de socialização. “As
pessoas encontram-se, o livro é o tema da conversa
central, mas naturalmente há outras actividades em
paralelo”. Aquelas pessoas continuam a encontrar-se
depois da sessão e a falar sobre o livro, vão ao teatro, ao
cinema, e criam laços sociais também através da leitura.
“O facto de se ler entre pares é um fenómeno também
muito interessante de ser visto”, continua. Lembra
como exemplo de grande sucesso em Portugal os
grupos de leitura que Helena Vasconcelos, crítica
literária do Ípsilon, dinamizava na Culturgest (também o
fez na Gulbenkian e no CCB) ou de Maria da Conceição
TERESA PACHECO MIRANDA
Caleiro (também antiga crítica literária do PÚBLICO) na
muito à vontade, porque às vezes as pessoas sentem-se variedade de profissões representadas, o que enriquece Um encontro livraria Buchholz, em Lisboa, tendo elas sido pioneiras
muito inibidas para dizer poesia. O ambiente parecia de sobremaneira a forma como encaram os livros.” Não das Heróides em Portugal no formato. “Os casos das comunidades de
quase familiar.” se fica pela Maia: mais de metade do grupo são pessoas em Torres leitores que hoje existem são bastante informais e são
Descobriu recentemente a tertúlia Tesouros Poéticos, do Porto, Matosinhos, Gaia, Ermesinde, Trofa. “A Vedras, em claramente grupos de leitura entre pares. Aquilo não
dinamizada pela declamadora Maria Maya, no Museu dinâmica e o espírito de camaradagem criam laços Maio de 2022 são aulas de literatura, não são aulas de crítica literária
dos Coches, e já há alguns anos é sócia da Casa-Memória afectivos muito fortes. Isso acaba por fazer a diferença.” ou de análise textual. São leitores a falar com leitores
Camões em Constância, onde faz parte de um grupo Na próxima sessão será discutido o romance A Loja sobre aquilo que leram, a concordar e a discordar, a
que organiza uma tertúlia mensal sobre um tema. O das Duas Esquinas, de Fernando Campos. Organizam trocar opiniões e cada um a trazer o seu contributo.”
próximo encontro acontece a 15 de Abril e será sobre intercâmbios com outras comunidades. “Tinha sempre Nestes grupos de leitura são por vezes propostos
poesia de intervenção. a ideia que as pessoas estavam muito fechadas e um livros que algumas pessoas teriam reticências em pegar
Também Eugénia Faria se divide por várias Verão fui a Coimbra e assisti à comunidade de leitores neles. “Mas a dinâmica de grupo tem isto: abrem-se
comunidades de leitores. Aos 77 anos, esta professora que havia na biblioteca. Desafiei-os para que nos caminhos e espaço para descobertas que a pessoa
de Português reformada coordena a Comunidade de fizessem uma visita e discutimos O Arquipélago da sozinha não o faria”, conclui Bruno Eiras.
Leitores APRe! (Associação de Reformados Pensionistas Insónia, de António Lobo Antunes”, conta Jorge Silva.
e Idosos), que acontece na primeira quarta-feira do “Depois fizemos o mesmo convite à Comunidade de
mês, às 15h, na biblioteca municipal de Matosinhos, e é Leitores da Figueira da Foz. Eles vieram à Maia, nós
aberta à comunidade. “Há verdadeiros amantes da fomos a Coimbra, depois fomos discutir Júlio Dinis a
leitura, gostam de debater as ideias e por isso se Ovar na casa-museu do escritor. Fomos depois à
aproximaram”, conta ao Ípsilon. Em Maio irão discutir Figueira e eles vieram cá.”
o romance A Ronda da Noite, de Agustina Bessa-Luís. O objectivo foi sempre “quebrar muros, quebrar
Costumam fazer actividades extraclube. Quando leram barreiras”, diz Jorge Silva, que queria que as pessoas
Amadeo, de Mário Cláudio, fizeram uma visita guiada ao percebessem com estes intercâmbios que as
museu sobre o pintor em Amarante. dificuldades de um leitor na Maia são as mesmas de um
Eugénia Faria é também assídua no Encontro de leitor de outra parte do país. “Isso dá muita segurança e
Leituras, o clube de leitura do PÚBLICO e do jornal ajuda-os a situarem-se enquanto leitores. É uma coisa
brasileiro Folha de S. Paulo que existe há mais de dois muito curiosa e tem sido uma escola de vida.”
anos, e participa também nas sessões mensais da
Comunidade de Leitores da Maia, criada há 17 anos. Foi Cada vez mais participantes
no ano do centenário do nascimento de Agostinho da Os últimos dados que a Direcção-Geral do Livro, dos
Silva, em 2006, que se iniciaram estes encontros com Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) possui são relativos
dinamização de Jorge Silva, professor de filosofia. “No a 2021 e dão conta de 101 grupos de leitores a
final desse ano, esgotada a obra do Agostinho da Silva, acontecerem nas bibliotecas da Rede Nacional de
os leitores concordaram que se mudasse de género”, Bibliotecas Públicas. Um aumento de dez comunidades
conta o moderador. Continuaram a reunir-se discutindo em relação ao ano anterior, com um total de 25.991
sobretudo ficção, mas também teatro e poesia. “É participantes em 1722 sessões. “O número de novos
constituído por 42 leitores activos que se dividem por grupos é crescente ainda que de forma moderada, mas
dois horários por forma a dar espaço a cada um para o número de novos participantes é expressivo”, refere
falar sobre o livro. A média de assiduidade este ano tem Bruno Eiras, subdirector-geral da DGLAB.
sido de 28 leitores por encontro”, refere Jorge Silva. Depois da pandemia, algumas destas bibliotecas
“É formado maioritariamente por mulheres, na passaram a fazer os seus encontros destas comunidades
generalidade com formação superior, mas não só. Cerca em modo híbrido — presencial e em plataformas como o
de 20% do grupo tem menos de 40 anos de idade. Em Discord — e assim ganharam novos utilizadores. “Tem
termos de grupos profissionais há uma grande sido surpreendente que uma estratégia de incentivo e

a de incentivo da leitura tão tradicional


s continue a captar interesse, a evoluir
, diz o subdirector da DGLAB Bruno Eiras
ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 7
“C
orremos para a rua de que têm que ver com outro dos seus hebraica; das razões pelas quais de-
pijama, as crianças nas assuntos: o país. cidiu que os filhos deveriam crescer
nossas mãos. Corre- “Quando temos o privilégio de em Israel apesar de ser uma opositora
mos para a rua como poder pegar numa caneta e as pes- ao governo do partido Likud.
se a nossa casa esti- soas lêem o que escrevemos, tam- “Vi-me diante dessas questões
vesse a arder, porque bém temos uma responsabilidade quando vivia na Califórnia. Sabia que
sabíamos que a nossa casa estava moral. Escrevemos para falar do que se saísse para Israel iria criar os meus
mesmo a arder. A nossa democracia é importante.” Mas rejeita esparti- filhos num país onde aos 18 anos têm
foi incendiada pelo nosso primeiro- lhos. Não a arrumem na prateleira de integrar o exército, coisa da qual
ministro.” Não é o princípio de um dos que escrevem sobre o conflito discordo. Seria um regresso com um
Onde o Lobo romance; não é ficção. São as primei- israelo-palestiniano nem na prate- preço, com um fardo. E sabia que
Espreita ras linhas de um artigo assinado por leira das mulheres escritoras. “Isso ficar na Califórnia significava mantê-
Ayelet uma escritora israelita sobre a situa- é limitador. Gosto da liberdade na los afastados da sua identidade, si-
Gundar-Goshen ção actual em Israel depois de sema- literatura, de escrever sobre o que gnificava ser assimilado pelo sonho
(Trad. Lúcia nas de protestos e que teve um dos me apaixona, mas, ao mesmo tempo, americano, que, para mim, é uma
Liba Mucznick) pontos altos a 25 de Março, quando ainda que saiba que a minha litera- identidade enganadora. Em especial
Elsinore o ministro da Defesa instigou o pri- tura é livre de ditados, sinto-me, quando temos a fantasia de que se
meiro-ministro, Benjamin Ne- enquanto cidadã, bastante compro- trabalharmos bastante seremos ca-
 tanyahu, a suspender com urgência metida politicamente. O meu traba- pazes de os proteger de tudo. Até
a reforma da Justiça. lho enquanto escritora não é ficar percebermos que isso não está de-
No dia seguinte, à noite, o ministro fechada numa sala afastada da vida pendente do nosso controlo. Esse
Guionista, era demitido. E foi então que as ruas do dia-a-dia e entregue aos meus momento é um momento difícil.”
professora, se encheram com gente a protestar. pensamentos. O meu trabalho en- Na entrevista ao Ípsilon, falou
psicóloga, Ayelet Entre os manifestavam estavam Aye- quanto escritora também é detectar também de como, directa ou indi-
Gundar-Goshen let Gundar-Goshen e a sua família. o que se passa e adoptar uma atitude rectamente, essa decisão acabou
é autora de quatro “Estou a escrever estas palavras às de responsabilidade. Não significa por transparecer em Onde o Lobo
romances que lhe três da manhã, hora de Israel, depois que isso deva estar presente nos ro- Espreita, o seu único romance que
valeram o de ver as ruas encherem-se de mani- mances. Pode manifestar-se no meu teve um dia preciso para nascer, 1 de
reconhecimento festantes espontâneos, a marchar, a trabalho enquanto activista.” Faz Setembro, quando a escola começa
internacional, gritar, a cantar, a bloquear as estra- uma pausa. Retoma: “Mas creio que em Israel.
três dos quais das. Foi uma noite assustadora, sa- os escritores têm a obrigação moral “Este romance nasceu no primeiro
publicados bendo quão delicada é a linha entre de serem activistas.” dia de escola. Levei a minha filha
em Portugal o protesto e o caos. E, no entanto, ao para o infantário, entrei com ela e dei
mesmo tempo, foi uma das noites E se a minha Älha for a por mim a olhar para todas as outras
mais belas da história deste país.” predadora? crianças com muita suspeição. Eu
O texto, publicado na revista Na noite de 26 de Março, Ayelet Gun- estava a examiná-las, a analisá-las, a
Time, data de 27 de Março. Uma se- dar-Goshen saiu para a rua com o passá-las a pente fino para ver qual
mana antes, a escritora falava ao marido e os três filhos. O mais novo, daquelas crianças podia fazer mal à
Ípsilon a propósito do seu quarto e um bebé de dez meses. Na conversa minha menina. Todas tinham quatro
mais recente romance, que chega a com o Ípsilon, Ayelet falara dessa anos, todas eram amorosas, mas qual
Portugal antes da edição inglesa, criança, de como as noites em que daquelas crianças doces iria dizer
anunciada para Agosto deste ano. tem amamentado lhe permitem ler qualquer coisa horrível à minha filha,
LEONARDO CENDAMO/GETTY IMAGES

Chama-se Onde o Lobo Espreita e clássicos em falta, como O Vermelho ou puxar-lhe o cabelo, ou empurrá-la
nele a escritora volta a um dos seus e o Negro, de Stendhal, ou The Custom no momento em que eu me fosse
temas mais preciosos: a casa. Entre- of the Country, de Edith Wharton, embora? Olhava a ver qual poderia
tanto, vai respondendo a questões recentemente traduzido para língua ser o potencial predador da minha

Israel e o dilema do escritor:


como separar
literatura
e activismo
Um noir a partir do mistério do mundo doméstico
ou como a Terra Prometida pode ser um equívoco
chamado sonho americano. Estamos no último
romance da israelita Ayelet Gundar-Goshen.

Isabel Lucas
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p illon | S
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Sexta-feira
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rilil 2023
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20
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02
“Queremos admirar e de repente começa a duvidar de
quem é o lobo; de que o seu filho

os filhos e pensar pode ser o lobo. E isso torna-se uma


espécie de obsessão.”
Cultura em Lisboa.
que são anjinhos. “O noir é o que se passa
debaixo da mesa”
Não me interessa Lila — ou Lilakh, como se escreve em

explorar um hebraico — é essa mulher. Israelita,

Concurso
casada com Mikhael, um alto quadro

psicopata num de uma empresa de tecnologia de


Silicon Valley, vive em Palo Alto, e é

corredor escuro. mãe de Adam, um adolescente reser-


vado, solitário, até ao dia em que en-

O que me interessa
Sardinhas 2023
contra um ex-militar israelita. Ainda
não sabemos nada disto quando a

é um jantar de ouvimos na sua voz de narradora,


logo nas frases iniciais de Onde o Lobo

1001
família, em que toda Espreita. “Olho para aqueles dedi-
nhos do bebé acabado de nascer e

a gente fala, e há luz. procuro entender como é possível


que possam vir a ser dedos de um

O noir é o que assassino. O rapaz que morreu cha-


ma-se Jamal Jones. Na fotografia do

se passa debaixo jornal os seus olhos são negros como


veludo. O meu filho chama-se Adam

da mesa” Schuster. Os seus olhos são da cor do


mar de Telavive. Dizem que ele o ma-
tou. Mas não é verdade.”
Lila, no seu posto de mãe inquieta,
será a detective vital desta história
filha. Quando saí, percebi que não começada naquele dia 1 de Setembro
era a única a ter esse medo: todas as por outra mãe, Ayelet. “Quando con-
mães e os pais à minha volta partilha- tei a experiência no infantário ao
vam a mesma tensão, a de terem meu marido, perguntei-lhe o que
deixado a sua cria numa floresta faria se pudesse escolher: o seu filho

sardinhas
cheia de lobos de quatro anos. E ser a vítima ou o predador? Tinha ali
como é que cada pai tinha a certeza o ADN do romance”, prossegue a
de que a sua cria era a boa e a outra escritora. “É como se estivesse em
o potencial lobo mau? E porque é cada página, a pergunta central, essa
que nenhum de nós parava para pen- discussão que tive com o meu ma-
sar na possibilidade de que a nossa rido. Ele é um homem israelita e
cria poderia ser esse lobo mau; que respondeu que era evidente que pre-
a minha filha poderia ser a criança feria que o seu filho fosse o predador
que ia empurrar alguém? Nesse mo- e não a vítima. Respondi-lhe que ele
mento este romance nasceu”, conta era o típico macho israelita.”
Ayelet Gundar-Goshen, que em Ou- O marido de Ayelet disse mais ou
tubro estará no Folio — Festival Lite- menos o que Mikhael dirá no ro-
rário Internacional de Óbidos. mance sem ter ideia da turbulência
É mais um livro que incentiva a que passa pela cabeça de Lila, a
ideia de muitos críticos acerca da lite- quem chama Lilu. “Lilu, são justa-
ratura que produz: a de uma versão mente essas as duas possibilidades:
israelita do thriller do Norte da Eu- aquele que faz aos outros e aquele a
ropa. Gundar-Goshen não rejeita a quem os outros fazem. […] Eu não
comparação. Pelo contrário, gosta quero criar uma vítima. Um brigão
dela. Sobretudo que a situem no noir, não é bom, mas pode ser educado.
ainda que com as reservas que tem Uma vítima é-o para toda a vida.”
em relação às tais gavetas onde se Ayelet pensa nas palavras do ma-
tentam arrumar escritores “para me- rido e pergunta como responderiam
lhor os venderem”. “Gosto muito do a maior parte dos portugueses.
género noir. É como se me sentasse Conta: “Quando o livro foi publicado
num cavalo de Tróia. Quando se es- na Alemanha, os homens e mulheres
creve um noir, de fora parece que que estavam no lançamento, diante
somos guiados pelo enredo. Temos o dessa pergunta, disseram-me que
thriller, temos um cadáver e, a partir preferiam que o filho fosse o agre-
daí, alguém a investigar um crime. E dido na escola em vez de ser o agres-
digo um cavalo de Tróia porque nos sor; que não queriam criar um agres-
deixamos ir com a sensação de que é sor, que isso seria um fracasso en-
apenas um thriller, um cadáver sem quanto pais. É fascinante como os
nada que ver connosco. Mas depois alemães, com a sua história, têm esta
percebemos que envolve grande pro- resposta e os judeus, também com a
fundidade psicológica por detrás da sua história, dizem que não querem
investigação do crime. O género per- ser a vítima, que querem ser os mais
mite-nos lidar com tópicos que são fortes. Pergunto-me se tem que ver
muito mais profundos do que pare- com género ou com cultura, política,
cem quando vistos de fora”, afirma a memória colectiva.”
escritora antes de voltar à génese, ao Onde o Lobo Espreita é um romance
dia em que, vinda da escola, depois profuso em perguntas. Lila quer co-
de deixar a filha “entregue aos lobos”, nhecer melhor Adam para tentar
percebeu que queria contar a história
de uma mãe que sente o que sente
qualquer mãe, que a sua tarefa é a de
chegar ao mistério que envolve a
morte de um adolescente negro, filho
de uma família pobre num lugar de
Concorre em egeac.pt
proteger o seu filho dos lobos lá fora ricos, numa terra marcada pela 

ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 9


SAEED QAQ/ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES
mos quase nada. Literariamente in- os Estados Unidos. Não é um lugar
teressa-me essa imensa lacuna entre real, mas um símbolo. É impressio-
a grande quantidade de conheci- nante como podemos ter uma ideia
mento que temos acerca das pessoas tão nítida de um lugar onde nunca
com as quais partilhamos a vida e o estivemos. Podemos perder-nos den-
mistério que existe no interior da tro de uma imagem. E uma das coisas
própria casa. E muitas vezes no inte- mais impressionantes nos Estados
rior da própria cabeça, porque es- Unidos, e, em particular, na Califór-
condemos coisas de nós mesmos. nia, são o capitalismo e a globaliza-
Muitas vezes temos uma espécie de ção, como se pudéssemos mergulhar
percepção acerca dos nossos filhos, na globalização e perder, por exem-
ou parceiros, ou pais; sabemos coisas plo, a identidade nacional. Todos
e fazemos o que podemos para per- estão ali para ganhar dinheiro. Isso
manecer cegos em relação ao que pode parecer uma ideia muito boa,
sabemos porque queremos admirar porque metemos a política de lado,
os nossos pais, não queremos saber a religião, a raça; todas as diferenças
tudo acerca deles. E queremos admi- são postas de lado em nome de um
rar os nossos filhos e pensar que são objectivo: fazer dinheiro, criar bons
uns anjinhos. É um território fasci- negócios. Não sei esse é o sonho ame-
nante para explorar quando se es- ricano, mas é um sonho.”
creve ficção. Não me interessa explo- Lila e Mickael foram atrás dessa
rar um psicopata num corredor es- ideia. “Lila quer tirá-lo de Israel por-
curo. O que me interessa é um jantar que ela rejeita o nacionalismo, o po-
de família, em que toda a gente fala, pulismo; não quer que ele se identi-
e há luz. O noir é o que se passa de- fique como um israelita; ela quer que
baixo da mesa.” ele seja um cidadão do mundo até
perceber que ele não quer ser um
O sonho americano cidadão do mundo. Ele quer ser
e a realidade parte de uma nação, quer fazer parte
Dividido em três partes, o romance de qualquer coisa maior do que ele
atravessa diferentes geografias. Há a mesmo. Quer fazer parte de um
Califórnia, há um Israel distante, há grupo de homens que luta por uma
o México. E há um lugar como que causa. Enquanto mãe, ela não quer
Ayelet Gundar-Goshen
e a família participaram nos
mais recentes protestos
 gentrificação que veio com o
dinheiros das novas tecnologias. Ao “A cultura, asséptico, apolítico, criado artificial-
mente para nele caberem todas as
que ele combata, mas enquanto ado-
lescente é claro que ele quer lutar

de massa em Israel
fazê-lo, põe em paralelo duas socie-
dades — a israelita e a norte-ameri- a sociedade pessoas do mundo. Seria o lugar do
sonho, Silicon Valley.
por alguma coisa ou com alguém,
porque de outra forma como poderá
cana —, mas também anseios e temo-
res globais. Para isso, a autora socor- e a política israelitas Numa conversa à beira de um lago,
num fim-de-semana, Lila, Maikhael,
provar que já não é um miúdo?”
E tanto num lugar como no outro
re-se da sua experiência na Califórnia,
enquanto professora em Berkeley, de são muito negras; Adam e o amigo de Adam, Uri, o ho-
mem misterioso que tem o poder de
há medo. Notícias de mortes em es-
colas contra notícias de mortes em
onde saiu devido à pandemia. Fala-
nos agora a partir de Telavive, a ci- há qualquer coisa alterar o comportamento do adoles-
cente, discutem Israel. Lila é antibe-
autocarros com bombas. A violência
é latente, mas não faz da escrita de
dade onde nasceu em 1982.
“É interessante falar de noir muito violenta ligerante, discorda de tudo o que
sejam acções de retaliação contra o
Ayelet menos delicada, curiosamente
o adjectivo que usa para descrever a
quando falamos de Israel porque
tudo é solar. Não há nada de noir na sociedade povo palestiniano defendidas por
Uri. Mikahel interpela-a: “Eu não per-
de David Grossman, uma das suas
inspirações literárias e cívicas. Como
quando comparado à Escandinávia.
Imaginamos o noir num Inverno com moderna israelita cebo o teu entusiasmo pela política,
Lilu, isso é o que dá cabo do Médio
Amos Oz, Toni Morrison ou o francês
Roman Gary. Eles surgem na con-
neve e chuva a cair, céu cinzento.
Israel tem céu azul e laranjas, sol, actual. Vemos Oriente. Se as pessoas esquecessem
a ideologia e se concentrassem no
versa quando ela fala de uma espécie
de pais fundadores da literatura em
praia. Mas a cultura, a sociedade e a
política israelitas são muito negras; muita violência sob seu bem-estar pessoal, tudo seria
diferente.” Uri também tem ideolo-
língua hebraica moderna por con-
traste, por exemplo, à falta de mães
há qualquer coisa muito violenta na
sociedade moderna israelita actual.
Vemos muita violência sob a super-
a superfície” gia. Pergunta a Mikhael se em nome
do bem-estar há que prescindir da
ideologia. Mikhael argumenta: “Vê o
fundadoras porque as mulheres não
ocupavam então o palco. Agora elas
estão no centro, como Ayelet Gun-
fície. Não temos o cenário de um noir que acontece aqui na América: as dar-Goshen e uma das suas palavras
nórdico, mas a essência, no que tem pessoas vêm para Silicon Valley para favoritas: aparente e o seu advérbio
que ver com a humanidade, o bem e Fazia críticas duras às sociedades enriquecer. Põem de lado a naciona- de modo, aparentemente.
o mal, o demoníaco que existe em que sancionavam quem vinha da lidade, a política, a fim de ganhar “Sou escritora, mas também tra-
cada um de nós, é universal e existe antiga Eritreia em barcos. Lem- dinheiro. E graças a isso o mundo balho como psicóloga e nos dois
em Israel.” brando — de dedo apontado a Israel avança. Olha para Sundar Pichai, o territórios a palavra ‘aparente’ é cru-
Guionista, professora, psicóloga, — que os judeus, séculos antes, ha- homem nasceu na índia e tornou-se cial. E se quisermos escolher uma
Ayelet Gundar-Goshen tem trazido viam feito o mesmo percurso. E CEO da Google. O capitalismo venceu palavra para descrever Silicon Valley
essas questões essenciais para a sua agora eram eles a fechar as portas o racismo. Imagina como seria o será aparente. A diferença entre o
literatura. Autora de quatro roman- aos que vinham. Nesse sentido, de mundo se em vez de ‘israelita’ e que se vê e o que está encoberto é
ces que lhe valeram o reconheci- forma também muito redutora, ‘árabe’ houvesse apenas engenheiros fascinante. Quero contar a história
mento internacional, três dos quais diz-se que se trata de um romance na Amazon, programadores na do sonho americano, porque acho
publicados em Portugal — além político. O que dizer deste? Que es- Apple, pessoas que não se definem que não é apenas americano: todos
deste, Só Uma Noite, Markovitch (Gra- tamos no mesmo domínio: o das pela religião, cor ou sexo, mas apenas vivemos a perseguir a fantasia desse
diva, 2017) e Despertar os Leões (Elsi- decisões pessoais e de como estas pela avaliação da sua performance.” sonho. E é estranho. Durante anos
nore, 2021) — usa as técnicas do ro- espelham as sociais, as políticas, as Uri não parece convencido. “A andámos atrás da Terra Prometida
mance noir para mergulhar no culturais, as religiosas. mim, isso assusta-me. O dinheiro é a e agora muitos israelitas não querem
mundo doméstico e, daí, no que há Diz Ayelet Gundar-Goshen: “Para ideologia mais perigosa que existe. estar na Terra Prometida; querem ir
de mais intrigante na natureza hu- mim, o grande mistério não está no Não venera nada e permite que faça- para a América.” Que é como que
mana. A sua matéria-prima é a inti- fundo do oceano ou noutras galáxias. mos tudo.” dizer: se esse é o derradeiro sonho,
midade familiar ou as relações do O grande mistério é o que se passa na Paradoxalmente, Uri está mais pró- é lá que quero que esta família es-
quotidiano com as quais tece um nossa própria casa; no íntimo das ximo de Lila. E de Ayelet. “O que há teja. E mostrar, depois de eu ter vi-
universo complexo marcado por te- pessoas com quem dormimos, com de mais fascinante em Silicon Valley”, vido lá, o grande fosso entre a bolha
mas como a identidade, o medo, a quem partilhamos a casa de banho, diz a escritora, “é o fosso entre a ima- e a realidade. Uma das coisas de que
guerra, a fuga. De uma maneira que encontramos todos os dias à gem e a vida real. Mesmo pessoas que gostamos mais enquanto autores é
muito simplista, os refugiados esta- mesa, de quem sabemos tantos deta- nunca visitaram os Estados Unidos de abanar bolhas e mostrar como
vam no centro de Despertar os Leões. lhes, mas ao mesmo tempo não sabe- têm uma visão muito viva do que são são frágeis.”

10 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023


N
a companhia de teatro O estarem paradas, como se a vida as que acompanham em permanência
Bando, acredita-se que os pudesse apanhar e engolir em qual- as deslocações das duas no emara-
mesmos processos podem quer momento de indecisão, des- nhado das ruas em que vivem.
conduzir aos mesmos es- canso ou contemplação.
pectáculos. O que significa O cenário de Nómadas — em cena Robots e algoritmos
algo aparentemente muito no Teatro O Bando, Vale dos Barris, Seguindo o rasto do conto de Olga
simples: para cada nova criação, há Palmela, de 13 de Abril a 14 de Maio Tokarczuk mas autorizando-se a criar
uma procura pela elaboração de um — aponta para essa transitoriedade novas ligações com o mundo exterior,
processo distinto. sorvida de Tokarczuk: módulos bas- a encenação de Nómadas faz surgir,
Foi assim que João Neca, desta vez tante altos guardam nas suas costas às tantas, a figura de um frágil robot

Gonçalo Frota encenador (numa estrutura em que


ninguém tem funções fixas), sabendo
que queria trabalhar sobre um ex-
filas de cacifos, de onde saltam ade-
reços, figurinos, histórias e até
mesmo personagens.
em cena.
É um robot que, à primeira vista,
dir-se-ia inútil e inofensivo. Para João
certo de Viagens, livro da autora po- Foi essa viagem no espaço e no Neca, a intenção era a de que pudesse
A leitura de Viagens, de laca Olga Tokarczuk, desenhou um tempo, com que Tokarczuk liga as criar “empatia” com o público. Mas
Olga Tokarczuk, levou plano de criação que passaria por
chamar as duas actrizes para três
várias narrativas autónomas do seu
livro — da irmã de Chopin que leva o
é essa sua fragilidade que o torna in-
suspeito e confiável, tornando-se
João Neca até Nómadas, semanas de trabalho espalhadas pe-
los últimos três meses de 2022. Em
coração do compositor de volta para
Varsóvia à mulher que se desloca
transparente, ignorado por quem
passa a viver na sua companhia como
uma peça em que os cada uma dessas sessões, Ana Lúcia para envenenar o seu primeiro amor, se nenhuma presença ali existisse.
Palminha e Rita Brito eram desafia- passando por estas duas mulheres Sem cair num discurso de diaboliza-
corpos em movimento das a entregar-se a uma “vivência” de Nómadas, presas no momento em ção da tecnologia, ao encenador in-
tentam fugir ao controlo e, em seguida, carregar essa expe-
riência para improvisações que po-
que ambas assistem a uma rapariga
que espanca um cavalo e uma delas
teressa sobretudo jogar com este
“lado acessível” dos telemóveis, ta-
das estruturas de poder — deriam vir a alimentar a peça. resolve pagar à agressora na mesma blets, computadores e outros apetre-
Em Outubro, João Neca pediu-lhes moeda —, que cativou João Neca chos nos quais despejamos toda a
representadas pela que passassem uma manhã inteira a quando, depois de ter ficado fasci- nossa vida, uma acessibilidade desa-
presença “inofensiva” da viajar sozinhas no metro de Lisboa
(à semelhança de algumas das per-
nado com o discurso de aceitação do
Nobel por parte da escritora polaca,
companhada “da consciência ou da
alfabetização tecnológica” que, na
tecnologia. De 13 de Abril sonagens de Tokarczuk, entregues a
uma cortante solidão em ambiente
conseguiu vencer a resistência em
relação à produção literária (que as
sua opinião, “seria fundamental”
para uma convivência saudável. Cru-
a 14 de Maio, em Palmela. urbano). Em Novembro, foram lar- horas de trabalho em volta de textos zando Tokarczku com a leitura de Olá
gadas na cidade e caminharam sem lhe tinham erguido). Futuro — Como Ser Humano na Era
parar durante duas horas, sendo re- “Quando comecei a folhear o livro dos Algoritmos, da matemática Han-
colhidas mais tarde. Em Dezembro, e percebi que era todo fragmentado, nah Fry, Neca refere-se à forma como

O Bando em
passaram uma noite com um grupo pensei que não serviria para teatro”, “o algoritmo entra nas nossas vidas e
de sem-abrigo, escutando as suas confessa o encenador ao Ípsilon, as- é alimentado pela mente humana”.
histórias. sumindo o quanto os seus olhos de Não há robot nas páginas de
Foi na improvisação que se seguiu leitor estão sempre contaminados Tokarczuk, como não há também
a este derradeiro momento de imer- por essa possibilidade de transfor- uma diatribe de Galina acerca da ce-

movimento
são na realidade que Rita Brito, de- mar qualquer texto em matéria para lebração do Dia Mundial da Paz en-
calcando os movimentos de uma os palcos. “E durante as primeiras quanto o mundo avança de guerra
mulher que conhecera na véspera 198 páginas tive razão. Mas quando em guerra, ou do Dia da Caridade,
(incapaz de sossegar um corpo agi- descobri aquele conto, que adorei, e do Dia da Solidariedade, do Beijo, da
tado por um passado heroinómano), li o manifesto que vem em seguida, Religião, da Consciência Negra, do

para fugir
se transformou na Anoushka escrita percebi que tudo batia certo com as Orgulho Gay, do Combate da Violên-
por Tokarczuk. Não é por acaso, questões de tecnologia sobre as quais cia contra as Mulheres, dos Profes-
aliás, que Neca escolheu nomear andava a ler.” sores, da Cultura ou da Liberdade de
como Nómadas este espectáculo ba- De repente, as palavras de Tokarc- Imprensa — quando durante o resto
seado num dos capítulos de Viagens zuk ganhavam todo um outro signi- do ano todas as causas são varridas

ao controlo
e no manifesto que se lhe segue. Por- ficado quando Anoushka e Galina, para longe da consciência e dinami-
que há nestas duas mulheres (se são as duas mulheres, podiam ser pro- tadas pelo tal algoritmo que enreda
duas ou uma, na verdade, é toda jectadas numa cidade digital: “Ba- cada um(a) no seu pequeno mundo.
uma outra questão) uma pulsão lança, mexe-te, anda! Só assim podes Mas há em Tokarczuk uma relação
constante, uma necessidade de não escapar-lhe. Aquele que governa o com as estruturas de poder e uma
mundo não tem poder sobre o mo- brecha de possibilidade na tomada
vimento e sabe que o nosso corpo de microescolhas que criam lugares
em movimento é sagrado. E tu só e caminhos distintos.
podes escapar-lhe quando estás em Daí que Galina e Anoushka possam
movimento.” ser a mesma mulher, afinal, condu-
Estas palavras que Galina repete zida a dois destinos e dois tempos
para si, num torvelinho de discurso, diferentes. Daí que Galina e
enquanto roda sobre si mesma, ten- Anoushka possam ser duas mulheres
tando proteger-se a si mesma dessa colocadas perante uma mesma situa-
força invisível de governança sobre o ção. Diante da solidão que sentem
mundo, desses mecanismos das ins- sentadas no parapeito de uma janela
tituições que escravizam e domesti- da escola, uma levanta-se e foge, a
cam, vincam a relação que João Neca outra deixa-se ficar. Uma age e re-
sublinha com uma tecnologia contro- clama uma narrativa, a outra fica-se
ladora e manipuladora, espelhada, e aceita a que para ela foi inventada.
desde logo, na projecção de um mapa Olga Tokarczuk, que cria várias ca-
da cidade digital habitada por Galina madas autorais na sua literatura,
e Anoushka. Essa cidade percorrida sabe que há que ter cuidado com os
por dois pontos, azul e vermelho (as narradores — não se lhes pode deixar
cores das roupas das personagens), o controlo da história por inteiro.
DIANA MARTINS

ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 11


Fechados sobre si
mesmos, mar aberto à
N
ão era uma prisão, mas era são referidos habitualmente quando
ali que passavam os dias,
impossibilitados de viajar
mais de cinco quilómetros
em redor. Não era uma pri-
se descreve o som da banda), não
será, neste sentido, desvirtuar as
suas origens, pelo contrário, é asse-
gurar que a força vital que a anima
sua frente, os Lankum
são, realmente. Uma torre
Martello, uma das dezenas de fortes
erguidos na costa irlandesa e britâ-
nica no século XIX para conter uma
continuará intacta, constantemente
alimentada, renovada.
Neste momento, os Lankum são
uma das mais inspiradas e arrojadas
construíram um
possível invasão das tropas de Napo-
leão. Edifício circular observando lá
do alto, pensativamente, a imensi-
dão de mar estendida à sua frente.
Ali estiveram os Lankum, dia após
dia nos dias do confinamento, rodea-
bandas a revolver a tradição para
dela extrair algo novo — False Lankum
surge como fortíssimo argumento. É
um álbum, ao mesmo tempo, assus-
tador e inebriante, feroz e delicado,
de uma moderníssima ancestrali-
monumento
dos de instrumentos, absorvidos por dade, com o bordão de gaita-de-foles
velhas canções animadas por espíri- tornado verdadeira arma sensorial,
tos perenes, a erguer um novo mo- com um conjunto de vozes assom-
numento chamado False Lankum. brosas — como resistir ao timbre e à
É o quarto álbum da banda irlan- força expressiva de Radie Peat? Num
desa nascida do encontro entre Ra- momento, tudo é delicado e lumi-
die Peat e Cormac Mac Diarmanda, noso, profundamente melancólico;
amigos desde a adolescência, envol- noutro, acordeões, banjos, guitarras,
vidos desde sempre na cena folk de violinos e harmónios são trespassa-
Dublin, com os irmãos Ian e Daragh dos por percussão marcial, ambiente
Lynch, o primeiro com passado em de tempestade e as nuvens carrega-
espaços ocupados por anarquistas e das do doom — toda uma imponente
bandas punk em Londres, desco- sonoplastia noise criada a partir de
brindo depois no sentido comunal loops de fita, de órgãos ou viola-de-
da folk e na verdade que emanava arco, que expõe e acentua a profun-
das suas composições e prática um deza emocional das canções. Estas,
espelho do seu punk activista — é prolongam-se durante largos minu-
hoje um especialista e investigador tos e evoluem lenta e demorada-
do folclore da ilha. mente para que não escapemos ao
Uns e outros, sendo praticantes e seu impacto, para que mergulhemos
conhecedores profundos da folk do verdadeiramente no som e na ver-
seu país, vêem-na e abordam-na não dade que cada canção esconde.
como bolha isolada, como reserva a O repertório dista tão longínquo
proteger de contaminações a todo o quanto o século XVI, garimpa os sé-
custo. Precisamente o contrário. culos seguintes, passa pelas aborda-
Quando os entrevistámos em 2018, gens modernas à tradição dos anos
Daragh apontou Brian Eno como 1960, inclui também música com-
influência marcante, destacou o in- posta pelos Lankum. Entre ele en-
teresse de Ian no black metal escan- contramos Go dig my grave, canto de
dinavo e de Radie e Cormac no krau- uma mulher de coração despeda-
trock de Can e Neu!. Cinco anos de- çado que se despede da vida, parte
pois, diz ao Ípsilon que, “noutras de uma família de canções com ori-
partes do mundo, cantar velhas can- gem no início do século XVII;
ções pode ganhar um elemento Newcastle, também nascida nesse
quase de cosplay”. Na Irlanda, por século, um marinheiro em busca de
sua vez, “é simplesmente uma prá- um amor fugido; Netta Perseus, saída
tica social e cultural que vem de há da pena de Cormac Mac Diarmada,
muito e que continua. Uma velha com “the woman with eyes like an
canção não é um artefacto de museu, ocean” no centro; The New York tra-
é só uma canção”. Garimpadas na der, conto de um capitão no alto mar,
passagem do tempo, sobrevivem atormentado pelo crime macabro
aquelas que se mostram “continua- que cometeu, sobre quem o oceano
mente relevantes”, acrescenta Radie e os companheiros de bordo descar-
Peat. “Se conseguirmos trazer para regam a sua ira. O repertório é, de
bordo a emoção nuclear da canção certa forma, mero alinhamento de
e vivê-la outra vez, não repararás na títulos. False Lankum, álbum organi-
sua idade. Para cantá-la, tenho de a zado como sequência de música
interiorizar como real, tenho de contínua, canções vertendo umas
acreditar que é real, sentir que é nas outras, intercaladas com curtas
real” — abri-la a outros contextos, peças extraídas de improvisações da
deixá-la contaminar-se de novos ele- banda, é outra coisa.
mentos (os Sunn O))) ou os Swans “Não concebo a ideia de podermos

False Lankum é um disco


assustador e inebriante, feroz e
delicado, de uma moderníssima
ancestralidade

12 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023


False Lankum,
novo álbum de
uma das mais
arrojadas bandas a
revolver a tradição ir longe demais [na abordagem à mú- qualquer instrumento. À escala in- trações do pintor francês do século
para criar algo sica tradicional]”, diz Radie Peat,
com Daragh Lynch a seu lado, na
dependente, os Lankum transforma-
ram-se em estrelas. E, agora, com os
XIX Gustave Doré]. Estávamos a ten-
tar sinalizar, propositadamente, o
novo, é portentoso. entrevista por videoconferência com holofotes postos sobre eles, esgota- alcance épico da experiência hu-
o Ípsilon. “Aquilo que precisas de das quase todas as datas da digressão mana”, refere Radie Peat.
“Não concebo a saber já está na canção. Se vestirmos britânica e irlandesa que cumprem Com todo o tempo nas mãos, o
ideia de podermos a personagem como uma caricatura,
ou se aquilo que fizermos começar a
esta Primavera, chega False Lankum,
obra-prima arrancada ao confina- False Lankum
que não acontecia desde o primeiro
álbum, Cold Old Fire (2014) — depois
ir longe demais”, ser mais sobre música experimental
do que sobre a história no coração
mento, num equilíbrio perfeito entre
luz e escuridão, vozes e instrumen-
Lankum
Rough Trade
disso chegaram os muitos concertos,
as digressões, os prazos a cumprir de
diz a vocalista da canção, então vamos ter proble- tação tradicional entrelaçadas na uma carreira em crescendo —, com
Radie Peat. mas. Quando a mensagem da canção
e a instrumentação não estão alinha-
perfeição com o trabalho magistral
de captação e manipulação sonora.
 John “Spud” Murphy envolvido em
todo o processo desde o início — “é
das no mesmo objectivo, aí sim, diria “A cada novo álbum temos de pro- realmente o nosso quinto elemento,

Mário Lopes que se está a ir longe demais.” Os


Lankum vão muito longe, mas nunca
se perdem.
Com Between the Earth and Sky
curar algo mais, qualquer coisa nova.
Qual seria o propósito de fazer o
mesmo disco duas vezes?”, pergunta
retoricamente Radie Peat. “Nesse
também nos concertos: as pessoas
não o vêem, mas ele usa pedais, toca
a mesa de mistura como um piano,
é o maestro” —, False Lankum come-
(2017), o segundo álbum — arranque sentido, temos de perceber que ele- çou a nascer, canção a canção, de
imaculado, portentoso, com a voz de mentos queremos que sobressaiam improviso em improviso. Um reel
Radie Peat a agarrar-nos pelos cola- ou para que elementos nos inclinar. como Master Crowley’s, dança pagã
rinhos em What will we do it we have Queríamos que a escuridão fosse infernizada, chapas de metal a mar-
no money? —, começaram a fazer vol- mais escura, queríamos incluir tam- car o ritmo, sons tétricos a sobrevoar
tar cabeças na sua direcção, culpa da bém partes luminosas, doces, verda- o movimento do acordeão, canções
forma como aplicavam uma sensibi- deiramente doces, o que não tínha- assombradas como a impressionante
lidade noise, na forma como o som mos no último álbum”. False Go dig my grave, baladas delicadas
era trabalhado, à música tradicional, Lankum: em fundo, o rumor do mar, como Clear away in the morning, vo-
descobrindo nela novas dimensões refúgio idílico; altas como monta- zes etéreas em harmonia, instrumen-
sonoras que, rejeitando ceder a pa- nhas, rodeando-nos por todos os tos feitos eco ambiental, psicade-
lavrões como “fusão”, tornavam
mais evidente a verdade intemporal
lados, vagas erguem-se ameaçado-
ras, e nós minúsculos e impotentes “Há muito imaginário lismo gentil como o da Incredible
String Band ou dos Fleet Foxes ini-

relacionado com
SORCHA FRANCES RYDER

das canções. perante a força da tempestade. ciais (é um original de Gordon Bak


O álbum seguinte, Between the editado em 1983).
O rumor do mar
Earth and Sky (2019), sem alterar a
natureza da música, aprofundou e “A casa estava dividida em duas par- o mar em várias Atravessando todo o álbum, o
mar como cenário, como em The
tornou mais intensa aquela aborda-
gem, revelando-os mestres no desta-
tes. A parte mais antiga, a torre circu-
lar, e a extensão moderna. Entre os canções folk, mas New York trader, os sons calmantes
do rumor plácido das ondas, o ruído
par das diversas camadas (de história,
de significado) que cobrem as can-
dois edifícios havia uma ponte de
ferro. Tomávamos o pequeno-almoço o mar nunca é uma de engenhos navais em laboração.
No fim, The turn, 12 minutos de mú-
ções. Ouça-se o que fazem a Wild ro-
ver, canção habitualmente interpre-
todas as manhãs e atravessávamos a
ponte para a torre, onde estavam os coisa apenas. sica, canção que avança do bailar
gracioso, redondo, das guitarras em
tada como hino folgazão a uma vida
de copos e bailarico, mas nas mãos
instrumentos. Chegávamos pelas 11
da manhã, tocávamos até às 16h. Fi- Podemos observá-lo redor das vozes, o som a aproximar-
se e a afastar-se de nós, como se
deles o lamento atormentado, fantas-
magórico, de alguém que tudo per-
zemos isto todos os dias.” Assim des-
creve Daragh Lynch a rotina diária todos os dias, no seguisse o movimento incerto do
vento, até ser tomado por camadas
deu no fundo do copo enquanto os
outros dançavam e bailavam. Ouça-
dos Lankum, numa das torres Mar-
tello, no período de preparação do mesmo sítio, e ele de ruído, turbilhão sonoro, as vagas
que se erguem novamente, a escu-
mos os nove minutos de Katie cruel,
canção tradicional dos tempos da
luta pela independência americana
álbum, quando experimentaram as
canções horas sem fim, definindo-
lhes a instrumentação e o ambiente
mudará sempre” ridão que regressa, as ondas que
não cessam de arrojar contra o
casco do navio.
imortalizada por Karen Dalton que, sonoro, ampliando-lhes o alcance — “Há muito imaginário relacionado
depois dos Lankum, não mais ouvi- seriam depois gravadas, no formato com o mar em várias canções folk,
remos da mesma forma. Com Between que agora ouvimos, nos Hellfire Stu- mas o mar nunca é uma coisa ape-
the Earth and sky, a banda nascida dios em Dublin. nas. Podemos observá-lo todos os
nos pubs irlandeses onde a música Tudo aconteceu em pleno período dias, no mesmo sítio, e ele mudará
tradicional não é museologia, antes pandémico, quando a Irlanda atra- sempre”, diz Radie Peat. “Foi muito
o som de vida viva a acompanhar o vessava um rígido confinamento. intenso viver aquele tempo tão res-
correr dos dias, viu-se aclamada, re- Durante aquele período, a banda, tritivo a observar aquela coisa bela
conhecida dentro e fora de portas. fechada sobre si mesmo, viveu como e expansiva, que estava sempre ali,
Multiplicaram-se as digressões e os jovens cortesãos do Decameron, que esteve sempre ali, que não quer
foi anunciada a chegada de uns no- de Boccaccio, eles e elas a trocarem saber que existe a covid, que não
vos Pogues, a abordagem punk des- histórias numa villa às portas de Flo- quer saber de nada disso. Estava
tes trocada por ambientalismo noise rença enquanto, lá fora, grassava a mesmo ali e parecia um escape, mas
e manipulação electrónica — cortesia peste negra. “A arte gráfica do álbum ao mesmo tempo estava muito
do produtor John “Spud” Murphy, não tem Boccaccio, mas tem ADivina longe”. False Lankum é o som dessa
hoje considerado membro de facto Comédia de Dante Alighieri [um tra- distância. Está mesmo aqui. E é
da banda, apesar de não tocar nela balho de Alison Fielding sobre ilus- magnífico.

ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 13


Mais do que a soma

L
ucy Dacus, Julien Baker e espe- com menos de 30 anos, cresceram A capa do primeiro EP remetia para
cialmente Phoebe Bridgers quase em público. Quando foram, ao das partes Crosby, Stills & Nash (anos depois,
não são as mesmas pessoas longo dos anos, falando com o Ípsilon O álbum de 12 canções arranca a quando Bridgers partiu uma guitarra
que eram em 2018. Nesse ano, para promover os seus discos sozi- cappella, com as três a cantarem, e a a actuar em Saturday Night Live, Da-
as três editaram o primeiro EP nhas, as três escritoras de canções juntarem as vozes que funcionam tão vid Crosby criticou o gesto no Twitter,
do seu supergrupo de indie- iam explicando que ainda se estavam bem juntas, num tema de Baker, fazendo a compositora chamar-lhe
rock Boygenius. Depois, deram al- a conhecer. Em 2020, por exemplo, Without you without them. Seguem-se “little bitch”, insulto que retomou
guns concertos e foi cada uma à sua Bridgers estava fascinada com uma as três canções que já tinham saído quando este fez comentários anti-sin-
vida a solo — com a ocasional mini- epifania que tinha acabado de ter: em Janeiro como aperitivo para o dicalistas). Desta feita, para promo-
reunião em disco. Dacus e Baker fo- que não precisava de gostar daquilo disco: $20, também de Baker, com verem o disco na capa da Rolling
ram tendo mais e mais atenção e de que toda a gente gostava nem de uma descarga de guitarras e gritos; a Stone, vestiram fatos como os que os
respeito graças aos — bons — discos a pedir desculpa por isso. Passado um onda mais folk de Emily I’m sorry, de Nirvana usaram em 1994 na mesma
solo que se seguiram. ano, Baker andava a perceber quem Bridgers, que terá sido o mote para revista, que agora classificou The Re-
Mas nada que se compare a Brid- era e qual era a sua identidade, e Da- se voltarem a juntar e fazerem mú- cord como “clássico instantâneo”.
gers. Ela tornou-se, entre Punisher cus estava a refazer a sua vida após sica outra vez; e True blue, de Dacus, É uma imagem que funciona a vá-
(o seu disco de 2020, que lhe valeu ter entendido que tanto ela quanto a que fala de sair da cidade onde se rios níveis, a começar no facto de a
quatro nomeações para Grammy), cidade onde tinha crescido estavam cresceu e descobrir-se quem se é, capa original reflectir o desconforto
noivados com actores nomeados diferentes e era preciso sair de lá. mas também de se dar a alguém. dos Nirvana com a fama, passando
para Óscares, possíveis enlaces com São pessoas distintas que surgem Essas três canções são também o por todas as lutas que as Boygenius
cómicos vencedores de Grammys e agora em The Record, o primeiro foco de The Film, uma curta de 15 partilham com a banda de Kurt Co-
colaborações com SZA, Paul disco propriamente dito das três, co- minutos/teledisco com realização da bain, e a ideia que está por detrás do
The Record McCartney e Taylor Swift, o foco de produzido por elas e por Catherine actriz Kristen Stewart que envolve próprio nome deste novo trio, a de
Boygenius notícias de tablóides. É o tipo de pes- Marks. Marca a primeira vez que elas casas a arder, monster trucks e tinta que é preciso muito pouco para um
Interscope soa cuja vida sentimental é dissecada lançam algo por uma grande editora, azul. As canções são “de” alguém no homem ser automaticamente consi-
a fundo e que não pode sair à rua a Interscope, por oposição aos selos sentido em que foram originadas por derado génio quando o contrário
 sem ser fotografada. independentes em que têm feito toda cada uma das escritoras de canções: não acontece com mulheres. E ainda
Não é só isso. Elas, todas ainda hoje a sua vida musical. cada uma tem elementos das outras o facto de as três Boygenius se iden-
e todas cantam. tificarem como queer, se referirem
É que Boygenius é, agora como entre elas como “boys”, e usarem as
SHERVIN LAINEZ

sempre, mais do que a soma das par- suas (agora consideráveis) platafor-
tes. Em 2021, Dacus dizia que, depois mas para contrariarem o ataque cer-
do seu segundo disco (Historian, rado que, no seu país e um pouco
saído no mesmo ano do EP da banda, por todo o mundo, identidades
um álbum bastante “sério” e que a queer, mulheres, pessoas trans, etc.,
apresentava às pessoas), podia agora andam a sofrer.
abrir-se “de uma forma mais diver- “Always an angel, never a god”,
tida”. Teve a ajuda da amizade das cantam em Not strong enough, que
colegas nessa tarefa de aligeirar a sua começou com Bridgers mas é clara-
música. “Todas trazemos isso ao de mente das três, algo que também
cima uma nas outras. Algumas das poderá ter que ver com essa ideia:
canções de Boygenius são muito hi- sempre anjas, nunca deusas do rock.
lariantes”, não necessariamente em A canção, inspirada em Sheryl Crow,
termos de letras, mas também na lança mais achegas para as delibera-
produção. das confusões de género que elas
Isso continua aqui. Há hinos à ami- tanto apreciam: “The way I am not
zade e o amor que existe entre as strong enough to be your man”.
três, como We’re in love, de Dacus, Em Leonard Cohen, Dacus, que
sobre as outras duas. Continua tam- parece ser quem quer mais abordar
bém a tristeza que tantas vezes so- a amizade entre as três, canta sobre
bressai frequentemente com humor uma viagem a três em que Bridgers
(“I don’t wanna die, that’s a lie, but I’m queria mostrar às outras uma canção
afraid to get sick, I don’t know what de Iron & Wine sem refrão. Desviou-
that is”, canta Bridgers em Revolution se, por isso, da rota que era suposto
0), e com a qual elas são frequente- seguir. Pouco depois, menos séria,
mente associadas, mesmo que a mú- cita Cohen a dizer que “há uma fenda
sica que fazem reflicta um espectro em tudo, é assim que a luz entra”.
grande de emoções. Apesar de “não ser um homem velho
com uma crise existencial num mos-
Crosby, Cobain e Cohen teiro budista a escrever poesia com
Mantém-se também uma certa rela- tesão”, ela “concorda” com tal afir-
ção de amor/ódio com o passado do mação. É uma canção que soa a Da-

As “boys” estão
rock. Ou seja, há respeito pela música cus, mas é complicado não vir à ca-
do passado, mas há falta de paciência beça Moon song, de Bridgers a solo,
para a misoginia e anos e anos de mu- de 2020, que gozava com Eric Clap-
lheres terem sido mantidas fora do ton (“We hate Tears in Heaven, but it’s
panteão. E há uma vontade enorme sad that his baby died”), aproveitando

bem: as Boygenius
de estarem lá, nesse mesmo panteão depois a compositora as entrevistas
ao lado dos homens todos. Afinal, para se referir à fase racista de Clap-
elas juntaram-se após partilharem ton, em que este apoiou o ultranacio-
datas na estrada e serem comparadas nalista Enoch Powell e, pela negativa,
umas às outras, apesar de fazerem inspirou toda a formação do movi-

têm o disco música que não tem assim tantos


pontos em comum, apenas porque
são mulheres. Será isso que dá a va-
riação àquilo que fazem juntas.
mento Rock Against Racism.
É a história do rock, ela existe, e
Lucy Dacus, Julien Baker e Phoebe
Bridgers já fazem parte dela.

The Record é o primeiro longa duração do trio Lucy Dacus, Julien Baker
e Phoebe Bridgers, supergrupo indie-rock que está mais famoso do que nunca.
Rodrigo Nogueira
14 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
Luta Livre
N

RITA CARMO
este início de Abril, eis que deão entrou a seguir, na Fruta da sabemos se eles têm coragem ou não

traz Luís Varatojo


regressa o projecto Luta Li- época, porque achava que era bom de carregar no botão, mas já estive-
vre, que em Fevereiro de tê-lo ali, os coros também, nalgumas mos mais longe. Não é inócuo, é uma
2021 nos deu uma dezena canções.” Tal como Ivo Palitos ou ameaça verdadeira.”
de canções de punho no ar Pedro Mourão, que fazem parte da Blá blá blá, de refrão contagiante,
em plena pandemia. A Téc-
nicas de Combate, assim se chamava
o álbum de estreia, sucede agora De-
fesa Pessoal, onde rock, pop, chula,
de volta formação ao vivo: “Foram entrando
já na fase dos arranjos, como no ou-
tro disco. Temos dois percussionistas
convidados, o Iúri de Oliveira e o
fala das conversas do costume, en-
quanto Rendimento básico incondi-
cional apela a um objectivo conside-
rado utópico (“É uma utopia, os
hip-hop e outros ritmos dão corpo a
um novo punhado de canções ajus-
tadas à crise e a temas correlativos
(trabalho, habitação, direitos sociais,
às canções Quiné Teles, na Fruta da época e n’O
povo é que manda, temas que preci-
savam dessa percussão mais portu-
guesa, que eu não sei fazer.”
políticos é que têm talvez noção do
que isso pode trazer, não sei se é pos-
sível, mas que seria desejável, se-
ria.”) e Balada do trabalhador, que
malabarismos políticos, guerra).
Luís Varatojo, músico e composi-
tor que aos vários projectos em que de combate O disco abre com Panela de pressão
(já estreada em videoclipe animado),
O conto do vigário e Um TZero no Bar-
na introdução tem a voz do actor
Manuel Wiborg, traz outra história
pessoal, familiar. “Basicamente é a

à crise
já se envolveu (Peste & Sida, Despe e reiro, ajustados à crise que Portugal história dos meus pais”, explica Luís
Siga, Linha da Frente, A Naifa, Pólo atravessa. “Eu queria fazer uma letra Varatojo. “Eu não tive de ir trabalhar
Norte ou Fandango) acrescentou sobre o problema da habitação, mas aos 12 anos, consegui ir estudar, mas
mais este, aborda neste novo disco, sempre que a ia escrevendo estava a eles não. Sou filho de operários, neto
assinado Luta Livre, a crise social e ver a história da minha filha que está de agricultores, e esta canção é tam-
política por um ângulo mais pessoal em Londres a trabalhar e que não bém um apelo, dizendo que pode-
e menos geral. Daí o título, como ex- pode ficar cá porque não lhe pagam mos mudar essa história e fazer al-
plica ao Ípsilon: “A temática tem que um salário suficiente para poder pa- guma coisa se nos entendermos, se
ver com política e questões sociais, gar as rendas que estão no mercado. nos juntarmos.”
só que aqui são casos mais pessoais, Há uma série de amigos dela, da Por fim, O povo é que manda faz
que me estão mais perto, retratos da mesma geração (ela tem 25 anos), com versos de António Aleixo o que
minha actualidade: a minha filha que estão na Holanda, na Alemanha José Mário Branco fez há mais de
emigrou, a minha mulher foi despe- e noutros países da Europa porque meio século com Mudam-se os tem-
dida ao fim de 30 anos de trabalho, não conseguem ficar cá.” pos, mudam-se as vontades, de Luís
chamaram-lhe ‘colaboradora’, todos Varatojo diz que “está a loucura de Camões, usando os versos, mas
aqueles assuntos que nós sabemos total, em todas as áreas”. A começar acrescentando-lhe um refrão pró-
que andam aí e que agora estão na pelas prestações da casa: “Aumentam prio. Aqui, Varatojo escreveu: “Só
nossa casa. Este disco é mais isso.” brutalmente, sem aviso (ainda tenho manda no povo/ quem o povo qui-
Na música, também trabalhou de uma prestação de um empréstimo ao ser/ quando ele acordar/ ninguém o
outra forma: “Enquanto no outro fiz banco), estamos assim desde a crise vai enganar.” E explica: “Já andava
as composições a partir de samples de 2008, com a qualidade de vida e há algum tempo para fazer alguma
que ia tirando dos discos, aqui pe- o poder de compra de todos a desce- coisa com as quadras do Aleixo, que
guei na guitarra e voltei um bocado rem. Sempre a bem de qualquer coisa são sobejamente conhecidas, não
às origens, compondo a partir de que não sabemos bem o que é, uns são nada de novo, mas neste con-
riffs de guitarra, acordes, sequências dizem que é o mercado, outros a eco- texto o refrão reforça a direcção des-
harmónicas — eu tinha começado a nomia. Não posso perder a oportuni- sas quadras e tira ali uma conclusão
compor como no anterior, mas, dade de poder fazer um disco, para que no fundo é esta: nós é que vota-
como o resultado era igual, parei.” comunicar com as pessoas, e não fa- mos, nós é que sabemos quem é que
Além de Luís Varatojo, autor de to- lar disso. Não consigo.” queremos lá, e, esclarecidos, esco-
das as letras e músicas e também da lhemos quem realmente nos inte-
capa do disco, que fez todas as bases “Só manda no povo ressa. Achei que seria um bom tema
das canções, participaram nas gra- quem o povo quiser” para fechar este disco.”
vações Ivo Palitos (voz), Manuel Wi- Fruta da época, uma chula, lembra- Ao vivo, há já duas apresentações
borg (voz), Pedro Mourão (guitarra nos as abordagens musicais de Fausto marcadas, ambas incluídas nas cele-
acústica), Diogo Santos (piano), João Bordalo Dias, Pontinha disseca a de- brações do 25 de Abril: na noite de
Gentil (acordeão), Quiné Teles (per- sumanizadora rotina casa-trabalho- 24, no Porto, numa celebração sin-
cussão) e o Gospel Collective (coro, trabalho-casa e Vamos todos ao ar fala dical, e no dia 25, em Sesimbra. Mas
com arranjos de Lino Guerreiro). Dois anos passados sobre da guerra como Country Joe falou do não é fácil levá-lo a todos os palcos,
“Comecei a construir estas can-
ções assim que comecei a rodar o Técnicas de Combate, Luís Vietname no Woodstock de 1969, gri-
tando ironicamente “Whopee, we’re
diz Luís Varatojo. “Estamos a viver
uma época em que as modas têm
outro ao vivo”, lembra Varatojo.
“Duas delas, a Balada do trabalhador
Varatojo regressa ao all gonna die!” no refrão de I-feel-like-
I’m-fixin’-to-die-rag. “Fiz os primeiros
espaço, mesmo quando são causas.
Falar, por exemplo, dos direitos
e O povo é que manda, chegámos até projecto Luta Livre com versos dessa letra há uns anos, depois LGBT, das alterações climáticas ou
a tocá-las nos concertos de 2021. Defesa das invasões do Iraque e da guerra do da questão racial, todas causas alta-
Como tenho o meu pequeno estúdio, Defesa Pessoal, dez novas Pessoal Afeganistão”, recorda Varatojo. mente importantes, sem qualquer
fui trabalhando diariamente, cons-
truindo isso.” A maior parte do tra-
canções onde a crise Luta Livre
Edição de autor
“Agora surgiu a oportunidade de aca-
bá-la, de compor o resto do texto,
dúvida, ainda passa no crivo. Mas
quando se fala em trabalhadores,
balho foi feita em 2022, mas foi ini-
ciado em finais de 2021. “Gravei
actual é musicalmente com esta guerra e tudo o que ela traz
para a nossa qualidade de vida, com
sindicatos ou ‘colaboradores’, que
no fundo é onde estamos todos me-
tudo, basicamente: programações contestada em discurso  os aumentos dos preços, a instabili- tidos, parece que estamos a usar
de bateria, guitarras, sintetizadores,
fui um bocado multi-instrumentista. directo. dade, o desvio de verbas que deviam
vir para as pessoas e estão a ir para
uma linguagem explícita que não é
aceite, que está fora de uso ou que
Neste aspecto, o disco foi feito da munições e armamento, e foi a altura não deve ser transmitida. Acho que
mesma forma que o outro. Foi cons-
truído e arranjado e depois o acor- Nuno Pacheco certa para a lançar.” O título reflecte
o regresso da ameaça nuclear: “Não
isso é estúpido, evidentemente, mas
a verdade é que acontece.”

ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 15


H É sobre carne
á artistas que parecem con- O título da exposição que nos assoma a uma janela. Freud conhe-
denados a ter a sua obra ocupa — Lucian Freud, Nuevas Pers- cia não apenas as teorias do avô, mas
subalternizada pelas carac-
terísticas insólitas, escanda-
pectivas — já nos introduz nos objec-
tivos dos dois comissários, Daniel F.
também, ao que tudo indica, tinha
contacto com os últimos represen- que Lucian Freud
losas, míticas até, da sua
biografia. Podemos andar
Herrmann (da National Gallery em
Londres, onde a mostra esteve entre
tantes de um surrealismo já serôdio
que ainda viviam numa Europa ainda exerceu o seu ofício,
para trás no tempo, e lembrar Cara-
vaggio a fugir para Malta por ter as-
Outubro e Janeiro), e Paloma Alarcó,
do Thyssen. O catálogo, que explica
em guerra.
Mas o surrealismo não o interes- a carne sob todas

Lucian as suas formas


sassinado alguém; Van Gogh e as bem quais são estas “novas perspec- sava. Nem a abstracção, como já foi
estadias no hospital psiquiátrico; tivas” de que o título fala, dá lugar a dito. Lucian Freud está totalmente
Picasso e as muitas mulheres; Fran-
cis Bacon e a dependência do álcool;
textos e transcrições de conversas de
artistas que, ou privaram com Freud,
dentro do cânone da representação
do corpo, e é através desta represen- — nova, velha,
e, para coroar esta lista, Lucian ou se sentiram interpelados pela sua tação que ele trabalha, sabota e re-
magra, obesa,
Freud
Freud, neto do fundador da psicaná- obra, o que não é habitual neste tipo constrói a pura materialidade da
lise, frequentador da aristocracia
como dos meios mais sórdidos da
de publicações. Tracey Emin, Chan-
tal Joffe e Gregory Salter, este último
pintura. De princípio não é assim: as
primeiras obras, presentes na expo- doente, saudável,
Londres do pós-guerra, amante de
muitas mulheres, pai de muitos fi-
assistente do pintor e muitas vezes
modelo da sua obra, contribuem
sição, sobretudo um Homem com
folha de cardo (auto-retrato), de 1946, jovem e tudo o mais
lhos e, talvez o mais escandaloso de aqui para abrir linhas de interpreta- e a famosa Rapariga com cão branco,
que se possa dizer
a pintura tudo, literalmente pintor da carne
nua e crua. Sem que isso, numa so-
ciedade que ainda mantinha muito
ção inéditas desta pintura, o que de
resto os comissários, nos ensaios
com que justificam as suas opções de
de 51-52, esta última também apenas
exposta em Madrid, revelam ainda a
perseguição da verosimilhança ob- sobre ela
da
do puritanismo vitoriano, lhe colo- escolha e de montagem, já faziam. sessiva, e sobretudo a procura de
casse qualquer problema. A exposição insere-se nas come- uma pintura que se faz transparente,
Esta maneira de encarar os artistas morações do centenário de Lucian quase invisível ao serviço do modelo
e a arte é sempre redutora, já que faz Freud, que se celebrou em 2022. É a que se quer retratar. Contudo, nesta

condição depender a qualidade e a originali-


dade da obra de qualquer atributo
extraordinário que supostamente as
justifique. Ele é o louco, o devasso, o
mais importante exposição da sua
obra desde a sua morte, em 2011, e
sucede a outras retrospectivas de
renome, sobretudo uma, realizada
fase de juventude, detectamos uma
qualidade enfática, próxima do cari-
catural, nos rostos representados,
lembrando amiúde o estilo da Nova

humana criminoso… e não se fala da obra.


Parte-se do princípio de que o artista
é um ser excepcional, que talvez
nem partilhe muito com o comum
dos mortais, e que essa é a razão pela
em 2002 na Tate Britain (e que foi
depois até Barcelona e Los Angeles),
que foi pretexto para a publicação
de um catálogo de referência. A par-
tir dos anos 90, graças também à
Objectividade alemã da República de
Weimar, que Freud não terá tido
qualquer dificuldade em conhecer.
A exposição do Thyssen segue
uma linha vagamente cronológica
Em Madrid, qual a sua obra sobressai. A crença actividade de uma nova galeria que que os curadores fazem aqui coinci-
celebra-se o começou no século XVI, com a glo-
rificação dos “génios” do Renasci-
passa a representá-lo, a Acquavella,
a obra do pintor entra nas grandes
dir num sentido muito genérico com
cinco grandes grupos temáticos:
centenário do mento feita pelo maneirismo. Hoje,
o cinema e a literatura costumam
colecções internacionais e é objecto
do interesse da parte de críticos e
“Chegar a ser Freud — os anos 1940-
1950”; “Retratar a intimidade — os
pintor inglês. explorar este filão, com algum su- curadores importantes. Este inte- anos 1960-1980”; “O poder e a morte
Lucian Freud, cesso, contribuindo para que o pú-
blico se esqueça que a arte, quando
resse acompanha a falência dos dis-
cursos que opunham a figuração à
— os anos 1970-1990”; “A arte e o ate-
lier — os anos 1980-2000”; e, por fim,
Nuevas é boa, não é fruto de génio algum
extraordinário, mas sim de trabalho,
abstracção, que ainda eram corren-
tes durante a década de 60 e que
mas atravessando todos os núcleos,
“A carne” — assim mesmo, sem datas
Perspectivas é a muito trabalho. estiveram na origem de algum desin- certas. As duas obras já mencionadas
A exposição que inaugurou em teresse pela pintura figurativa, ou incluem-se no primeiro núcleo, que
mais importante meados de Fevereiro no Museu Thys- mesmo pela obra que não se aproxi- denota a procura de uma linguagem
exposição da sua sen-Bornemisza em Madrid, Espa-
nha, onde estará até 18 de Junho,
masse das representações eufóricas
do consumo pop ou da estridência
própria realizada sistematicamente
dentro da própria estrutura tradicio-
obra desde a sua pretende contrariar estas e outras
ideias feitas a propósito de Lucian
psicadélica dessa época. Não se trata
de um fenómeno exclusivamente
nal da pintura. Já nesta época detec-
tamos duas grandes constantes na
morte, em 2011. Freud, o grande pintor inglês, como britânico, e muitos outros exemplos sua obra: por um lado, a prática do
ele sempre se auto-intitulou apesar poderíamos apontar deste facto — retrato com modelo vivo; e, por ou-
de ter nascido em Berlim. A mostra, Júlio Pomar é um deles, e dos mais tro, a estrutura em caixa do espaço

Luísa Soares que abriu uma semana antes da che-


gada do mundo da arte à capital es-
panhola por ocasião da feira ARCO
significantes entre nós.
De um núcleo inicial de cerca de
70 obras, a versão madrilena da ex-
do atelier, obsessivamente represen-
tado e, tantas vezes durante a expo-
sição, facilmente identificado.

de Oliveira Madrid, pretendia, como é hábito no


país vizinho, aproveitar esta conjun-
tura excepcional para atrair o pú-
posição perde cerca de dezena e
meia, mas ganha outras que não via-
jaram até Londres: é o caso do re-
Poder e corpo
Herrmann, no texto de apresentação
blico conhecedor ao museu, onde trato do barão Thyssen-Bornemisza, da exposição, di-lo enfaticamente:
uma outra exposição pelo menos, uma impressionante imagem do po- Lucian Freud não é um pintor de pai-
sobre as vanguardas de há cem anos der que se junta a outras num núcleo sagens, embora pontualmente se
na Ucrânia, valia a visita. Mais longe, dedicado a esta temática; e O quarto possa ter interessado por baldios,
uma grande antológica de Juan do pintor, uma pintura de 1944: num ruas desertas e outros não-lugares
Muñoz, na Sala Alcalá, também inau- espaço fechado onde um divã, teci- que pontuavam a Londres dos anos
gurava pelos mesmos dias, de acordo dos espalhados no chão e uma planta difíceis do pós-guerra. Se a pintura
com uma estratégia global entre mu- verde se dispõem de forma nada ilu- de paisagem é a apropriação do es-
seus por alturas da feira que gosta- sionista, uma enorme cabeça de paço, como António Guerreiro disse
ríamos de ver reflectida por cá. zebra listada de vermelho e branco numa conferência, a pintura de re-

16 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023


trato é a apropriação autoritária e se ter apropriado da figura e da obra
mesmo demiúrgica de um corpo: o de Freud, que preenchia o lugar dei-
retrato fixa a imagem do retratado xado vago por Picasso e encaixava
para a eternidade, segundo a von- na ideia do “génio artístico mascu-
tade, o talento e os propósitos de lino, ocidental, heterossexual e
quem o faz. E Freud, como Picasso, branco”. As mulheres pintadas por
como Francis Bacon (embora sem ele, referia ela, eram sempre loiras,
nomear ninguém) e tantos outros, brancas, passivas, geralmente nuas,
pinta retratos, a começar pelos das com os genitais rosados, ao passo
mulheres que amou e com quem vi- que os homens ou estavam nus e pa-
veu, mas não só: há, na exposição, reciam monstruosos ou estavam
duas extraordinárias pinturas de ho- vestidos e materializavam, como se
De cima para baixo: mens de poder — além da do próprio disse acima, a ideia do poder. Estes
Dois homens (1987-88), barão Thyssen-Bornemisza, de que eram os homens “de verdade”.
Bella e Esther (1988), retrato já falámos, a do 4º barão de A curadoria da exposição consi-
das duas filhas do pintor, Rothschild, Jacob, ambas datadas dos dera que a crítica de Nochlin é válida,
e Leigh com saia de tafetá anos 80. São documentos exempla- mas adiante que o olhar que o pintor
(1993) res de uma tradição deste subgénero pousa sobre os seus modelos não é
que remonta, pelo menos, a Rafael, apenas este. Nota-se também,
passando obviamente por Velásquez adianta Herrmann, o olhar da ami-
e pela extensa galeria de reis, prínci- zade, que se distingue muito nitida-
pes, rainhas e generais que a história mente nos duplos retratos de casais
deixou pelas galerias de todos os mu- hétero ou homossexuais, como os de
seus de arte antiga do Ocidente. Dois Homens, de 1987-88, onde a fi-
Assim, Freud conhece todos os gura vestida pousa familiarmente a
códigos. Ao contrário de Bacon, não mão sobre a barriga da perna da ou-
usa a caixa perspectivada do espaço tra, que se encontra despida; ou
de atelier para desconstruir os cor- ainda em E o noivo, de 1993, que re-
pos até os transformar em muco, presenta um homem e uma mulher
carne sem forma, matéria a caminho dormindo, com as pernas familiar-
de uma decomposição certa. Não, mente entrelaçadas. Mas a mais con-
Freud nunca se deixa cair na arma- tundente resposta a esta crítica vem
dilha do informe e da abstracção. A da própria natureza dos modelos
partir da década de 60, a textura tor- escolhidos por Freud: não há ne-
na-se mais evidente, e liberta-se de- nhum que se possa considerar aquilo
finitivamente da prisão dos contor- que hoje se designa por normativo,
nos e da preponderância do desenho bem pelo contrário: é sobre carne
sobre a mancha. Por essa altura, que o pintor exerce o seu ofício, a
pinta uma Cabeça de rapariga — na carne sob todas as suas formas —
realidade, uma das suas filhas — onde nova, velha, magra, obesa, doente,
as manchas de cor se fazem mais lar- saudável, jovem e tudo o mais que se
gas, mais uniformes, criando massas possa dizer sobre ela.
como um puzzle quase cubista onde Assim, sempre no espaço fechado
tudo — nariz, cabelo, olhos, maçãs do atelier, quase sempre visto de
do rosto, colo, vestido — se encaixa cima para baixo (em picado?), dei-
para traduzir a figura. A cabeça tado no chão, sentado numa cadeira,
ocupa quase todo o espaço disponí- a ler, a dormir, sobre o fundo de far-
vel, e o fundo, sem qualidades de rapos usados para limpar os pincéis
maior, recebe o mesmo tratamento ou da parede manchada de tinta
pictórico que o corpo da retratada. onde Freud enxugava o excesso de
Outra peça deste período é o Re- óleo, a galeria da condição humana
flexo com dois meninos (Auto-retrato), vai-se mostrando sala a sala, núcleo
de 65, onde o pintor representa a sua a núcleo, até aos últimos nus, onde
própria imagem vista num espelho a matéria pictórica é já de tal ma-
Rapariga com rosas, colocado no chão. É também uma neira empastada que duplica as duas
à esquerda, em cima, e Cabeça imagem de poder — se estivéssemos grandes figuras obesas que Lucian
de rapariga, retrato de uma das a falar de cinema ou de fotografia, Freud pintou quase obsessivamente:
filhas de Freud, um puzzle diríamos que o estaríamos a ver em Tilly (em Dormindo junto à tapeçaria
quase cubista onde tudo — do contrapicado, o que tem sempre im- do leão, de 1996) e a advogada (Advo-
nariz ao vestido — se encaixa plicações simbólicas óbvias, cons- gada nua, de 2003). Infelizmente,
para traduzir a figura cientes e quase literais. A presença nesta galeria, faltam duas obras ful-
das duas crianças lembra as questões crais que estiveram em Londres, mas
de escala que uma outra pintora um não chegaram a Madrid: o retrato da
pouco mais nova, mas também a re- rainha Isabel II, pertencente às co-
sidir em Londres, já na altura en- lecções reais, e um auto-retrato nu,
saiava: Paula Rego. de 1993, onde o pintor assume a pose
A propósito das relações de poder do São Bartolomeu da Capela Sistina
estabelecidas entre pintor e modelo, pintado por Miguel Ângelo: mais
Herrmann refere uma polémica pro- duas imagens de poder, sem dúvida,
tagonizada por Linda Nochlin em mas assombradas pelo espectro da
1993, onde acusava o meio da arte de morte próxima.

ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 17


G
uimarães, ano de 2023. O tencem ao ser humano. Foi ele que as datas e nomes de lugares que reme- O percurso biográfico de Artur Castelo, encontra o Egídio Álvaro, o
artista repousa num sofá, colocou, só ele pode tentar resolver tem para espaços e tempos: Rio de Barrio merece ser recordado. Nas- Albuquerque Mendes, o Jaime Isi-
numa pausa merecida e, o problema. Eu limito-me a fazer o Janeiro, 1969; Viana do Castelo, 1974. cido no Porto em 1945, viajou em doro. Chega a mencionar proximi-
sobretudo, necessária. Cha- meu trabalho, com os limites da arte Os cadernos, explica Osorio, têm 1952 com a família para Angola e em dades com o Alberto Carneiro, mas
ma-se Artur Barrio (Porto, e em situações em que proponho o duas funções: “Correspondem ao 1955 para o Brasil, onde viria a esta- acaba por não ficar inscrito naquilo
1945) e acabou de escrever meu corpo...” registo de alguma coisa que já acon- belecer-se. A partir dos anos 1970, já que seria o grupo dessas décadas.”
nas paredes da sala do Centro Inter- Ali, naquela sala, a descansar, an- teceu ou ao laboratório de ideias, na condição de artista, passou lon-
nacional das Artes José de Guimarães tes de voltar às paredes de Intermi- prospecções para coisas que virão. gas temporadas na Europa. Em 1974, Está a acontecer na rua
(CIAJG) duas palavras: “Chuva ne- nável, Artur Barrio não deixou de São dois movimentos que estão pre- visitou Portugal para assistir de No Brasil, antes e depois, a mesma
gra.” confiar na arte que abraçou quando sentes nesses cadernos-livros, nes- perto à Revolução dos Cravos. Ac- experiência de desvio, irredutível a
Vemos outras para além destas, tinha 23 anos. “Deu-me a liberdade ses diários de bordo que acompa- tualmente, vive na baía de Guana- categorias, será um dos aspectos da
mas a conversa começa sob o efeito para sair do corredor onde me que- nham o seu trabalho.” bara, Rio de Janeiro, no interior do sua abordagem à arte. Um lugar sur-
do seu sentido. “Eu escrevo, geral- riam prender”, medita. “Procurei e Marta Mestre aproveita para subli- seu barco Pélagos. Recorte-se, por- gira, entretanto, indissociável do que
mente muito”, diz-nos. “E essas pa- encontrei uma ideia libertária de nhar que não são livros de artista o tanto, a ideia de alguém que não haviam sido os primeiros anos: o
lavras lembram-me Nagasáqui. De- arte, mas não dei nada à arte. Foi ela que temos diante dos olhos. “O ar- apenas desloca, mas que se desloca Museu de Arte Moderna do Rio de
pois da explosão da bomba atómica, que me deu a mim.” tista recusa essas categorias. É inte- em permanente trânsito. Janeiro.
caiu uma chuva negra. Estamos O que a arte deu a Artur Barrio ressante entender o Barrio como Sujeito de uma vincada trajectória “Era um lugar que, nos finais dos
perto dessa história outra vez, não está, revelam-nos Luiz Camillo Oso- alguém que vai deslocando catego- internacional — dificilmente replicá- anos 60, [ele] frequentava muito,
é?” Acenamos que sim, contrariados. rio, curador brasileiro, e Marta Mes- rias. Ritual, uma das suas primeiras vel no campo da arte produzida en- com Cildo Meireles, António Manuel,
“Acho que o processo está determi- tre, directora artística do CIAJG, nas intervenções no Museu de Arte Mo- tre nós —, Artur Barrio construiu-se Guilherme Vaz, Raymundo Collares.
nado. Pode ser uma guerra nuclear paredes e nas vitrinas da exposição. derna do Rio de Janeiro, em 1970, foi como um artista idiossincrático, Uma geração que estava ali e, o que é
de apenas 15 minutos. Seja como for, “Aqui”, aponta o curador, “vão estar uma acção e um manifesto contra quer da arte brasileira, quer da por- muito peculiar, para contestar o lugar
creio que estamos caminhando a os registos das suas ações, das suas essas e outras categorias da arte. tuguesa. Tende, por consequência, do museu”, afirma Osório. A impor-
passos largos para isso...” situações ou, usando um termo que Consistiu na sua entrada no mundo a escapar a filiações ou a inscrições tância do MAM deve ser interpretada
À nossa volta, o cheiro do café e não cabe muito no seu vocabulário, da arte com uma postura de deslo- territoriais. “Quando ele volta a Por- à luz do contexto da época, marcada
do vinho já tomaram conta do es- performances”. Vemo-las em foto- camento, na linha de outros artistas tugal em 1974”, conta Marta Mestre, pela violência e a opressão da dita-
paço que se assemelha a uma gruta. grafias ou em cadernos nos quais o que se encontravam a fazer tensão “vai situar-se numa constelação de dura militar instituída em 1965. “[O
Não fossem alguns tímidos focos de artista foi anotando ideias ou dei- sobre o próprio museu e as noções artistas da época. Nos Encontros In- MAM] foi uma espécie de oásis com
luz, a escuridão seria completa xando desenhos. E reparamos em de objecto artístico.” ternacionais de Arte de Viana de o seu ambiente de formação. Os alu-
nesta instalação que tem o nome de
Interminável.
Pertencente à colecção do museu
SMAK (Gante, Bélgica), realizada
pela primeira vez em 2005 e remon- Interminável é um panorama
tada em outras ocasiões, é o ele- intenso do que foi uma
mento central da exposição homó- sensibilidade estética,
nima que, com a curadoria de Luiz conceptual e política da
Camillo Osorio e Marta Mestre, pode arte contemporânea,
ser visitada no CIAJG até Setembro, que marcou os finais dos anos
graças a uma parceria do SMAK com 1960: eléctrica, visceral,
a Fundação de Serralves. Mas há ou- dada pelo corpo
tras obras para além da instalação:
os registos conceptuais de acções e
situações que Artur Barrio realizou
nos anos 1970 e 1980, filmes, traba-
lhos com tecido, papel, fotografias,
vistas do fundo do mar captadas da
perspectiva do mergulhador.
Reunidas, as obras compõem um
panorama intenso do que foi uma
sensibilidade estética, conceptual e
política da arte contemporânea. Vale
a pena situá-la: aquela que marcou
os finais dos anos 60 do século pas-
sado. É precisamente essa sensibili-
dade — quase eléctrica, visceral,
dada pelo corpo — que a dupla de
curadores veio resgatar.

Deslocar, deslocando-se
Retomamos, por instantes, a conversa
com Artur Barrio, vencedor do
Grande Prémio Fundação EDP Arte
2016. Não pode a arte, animada por
essa (ou outra) sensibilidade, prote-
ger-nos da chuva negra? “A arte? Não,
não...”, responde bem-humorado o
artista. “As questões do mundo per-

O vencedor do Grande Prémio


Fundação EDP Arte 2016 volta
a ter uma importtantee expposição
em Porttugal: Interminávell. Para
ver no Centro Interrnaciional
das Artes José de Guimarães.

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Sexta-fe
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Abr 2023
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23
nos mais jovens frequentam cursos
com os artistas mais velhos. Havia já “Procurei e encontrei
algo de experimental nos domínios
de criação. Isso permitiu aos artistas uma ideia libertária
jovens, mais arredios, a possibilidade
de se expressarem contra a acomo- de arte, mas não dei Artur Barrio escreveu nas
dação imposta pelo regime.”
As acções realizadas entre 1969 e nada à arte. Foi ela paredes do CIAJG
“Chuva negra”. “Essas palavras
1970 — as intituladas “Situações” (que
podemos ver em fotografias) — são que me deu a mim”, lembram-me Nagasáqui.
Depois da explosão da bomba
exemplares dessa energia que tor-
nará, por vezes, de ruptura do e no
espaço público. Assim foi com as ac-
diz Artur Barrio atómica, caiu uma chuva negra.
Estamos perto dessa história
ções intituladas Trouxas Ensanguen- outra vez, não é?”
tadas, realizadas no Museu de Arte

FOTOGRAFIAS DE MANUEL ROBERTO


Moderna do Rio, nas ruas da cidade
do Rio de Janeiro e nas margens do
rio Arruda, em Belo Horizonte. Des-
sas acções restam os “Registros” em
cadernos e em fotografias.
“Esses trabalhos foram vistos como
uma provocação, uma chamada de
atenção para determinadas situações
que estavam a ocorrer durante a vio-
lência da ditadura militar”. Marta
Mestre concorda, sem deixar de en-
fatizar a dupla genealogia desses e de
outros trabalhos. “Há um claro viés
político, mas também um viés origi-
nário da história de arte. Se reparar-
mos, em termos formais, as Trouxas
Ensanguentadas dialogam com [a
peça] The Enigma of Isidore Ducasse,
de Marcel Duchamp, realizada em
1920”. Ainda a propósito de genealo-
gias, Luiz Camillo Osorio acrescenta
que Artur Barrio, embora próximo
de artistas representativos e oriundos
do neoconcretismo, não se lhes vin-
cula. “Ele vem de um outro esquadro
poético, com o surrealismo e o Dada.
Embora absorva muitas estratégias
conceptuais e por mais que esteja
numa relação com o museu, a sua
produção está a acontecer na rua.”

Confronto e alegria
A rua (tal como o corpo) aparece in-
separável da produção de Artur Bar-
rio. Vemo-la em Viana do Castelo, no
Rio de Janeiro ou evocada num baldio
sem nome. É ela enquanto contexto
que está na base da escolha de um
vocabulário artístico.
“Ele usa materiais considerados
abjectos ou perecíveis. Estamos a
falar de lixo, papel higiénico, es- a exposição, nada restará a não ser sante pensar uma experiência de
perma, vómito, café, vinho”, revela fotografias, documentos. não-lugar do Artur Barrio, tanto no
Marta Mestre. “Essa opção dialoga “Há neste espaço”, comenta o cu- Brasil como em Portugal”, comple-
com uma emergência discursiva e rador brasileiro, “coisas muito pre- menta Luiz Camillo Osorio. “Ele traz
também crítica da ideia de ‘Terceiro sentes na vida do Artur Barrio. O café, uma experiência do corpo, como
Mundo’. Não enquanto lugar subal- o vinho, o pão e até o mar que apa- uma espécie de potência erótica, na
terno, mas lugar que, através dessa rece nestas texturas, brilhos, pontos sua pulsão de gesto de intervenção.
precariedade, poderia alcançar uma de luz”. A relação entre a vida e a arte Isso não é evidente na produção
autonomia, uma potência, inclusive manifesta-se na experiência da insta- portuguesa. Pense no registo do
naquele que foi o contexto da dita- lação ou no encontro com as fotogra- corpo na Helena Almeida, é muito
dura militar e das intervenções dos fias onde vemos o artista a segurar diferente. É mais plástico. No Artur
EUA na América do Sul.” farripas contra o vento e sobre o mar, Barrio, encontramos um corpo de
Acção, precariedade, circulação, a interagir com pessoas em Viana do confronto com as precariedades,
ruptura, gesto, assemblage, interac- Castelo ou fazer uma mímica com o com as adversidades. A sua condi-
ção. Estas são palavras que fazem rosto encostado a um vidro. “São to- ção é trágica.”
sentido a fim de pensar a obra de das acções precárias destituídas da Replicamos que o artista não deixa
Artur Barrio. Longe do aparato da produção de objecto como fim. Nesse de sorrir e de rir nas imagens que
esteticização ou do desejo de objec- sentido, servem de contraponto a um captaram as suas acções. Marta Mes-
tualizar os trabalhos, o artista mos- certo modelo de produção interna- tre responde: “É um riso cáustico ou
tra-nos apenas o que ficou. Ou, como cional do artista, tanto nacional como que apenas exprime a alegria do
é o caso de Interminável, enfrenta o internacional. Por isso, quis que esta criar. Uma pulsão da vida.” Porven-
cubo branco, transformando-o com exposição chegasse ao CIAJG”, ob- tura, concluímos com prudência,
pão, vinho, café, goma indiana, de- serva Marta Mestre. contra as ameaças de todas as chuvas
senhos, na certeza de que, concluída “Olhando de fora, acho interes- negras.

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Sexta-feira
x -feira 7 Abril 2023 | 19
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V
amos abrir, mais uma vez, Muito menos secreto é o seu tra-
a arca do cinema clássico balho como actriz. Aí, evidente-
japonês. Pela mão da The mente, o nome de Kinuyo Tanaka é
Stone & the Plot, que já fez famosíssimo. Forma com Machiko
chegar às salas dois progra- Kyo e Setsuko Hara aquele que por-
mas de “Mestres Japoneses ventura é o trio de actrizes clássicas
Desconhecidos”, da arca sai agora a japonesas mais conhecidas dos ciné-
íntegra da obra de Kinuyo Tanaka filos ocidentais, pelo menos dos ini-
como realizadora. ciados nas obras dos “mestres co-
De novo em colaboração com o nhecidos”, Kenji Mizoguchi, Yasujiro
programador Miguel Patrício, grande Ozu, Mikio Naruse, Akira Kurosawa.
conhecedor do cinema japonês, a Tanaka trabalhou com todos eles (e
distribuidora estreará, em dois to- mais ainda: Gosho, Shimizu, Ki-
mos, os seis filmes dirigidos por Ta- noshita, Ichikawa, Kumai, Masu-
naka, uma das poucas mulheres (mas mura, em lista não exaustiva), numa
não a primeira) a trabalhar como longuíssima carreira que começou
realizadora dentro da indústria japo- ainda adolescente, em meados dos
nesa. Para já, vamos ver os primeiros anos 20, e foi até meados da década
três filmes de Tanaka, dirigidos entre de 1970, concluindo-se num filme de
1953 e 1955 — Carta de Amor, A Lua Yasuzo Masumura (precisamente um
Ascendeu e Para Sempre Mulher. Mais dos cineastas revelados nos progra-
tarde chegarão os três últimos, rea- mas de “Mestres Desconhecidos”),
lizados também em rápida sucessão estreado em 1976.
(de 1960 a 1962) depois de um inter- Tanaka morreu no ano seguinte,
valo de cinco anos entre o derradeiro algo prematuramente (com 67 anos),
filme do primeiro grupo e o primeiro em consequência de um tumor ce-
do segundo — Princesa Errante, Mu- rebral, pelo que a sua carreira poder-
lheres da Noite e Senhora Ogin. se-ia facilmente ter estendido mais
Foi uma obra que se manteve rela- ainda. Mas morreu plenamente re-
tivamente “secreta” durante dema- conhecida como actriz, no Japão,

Para siado tempo, mas não mais secreta


(evitemos os reflexos de Pavlov da
onde nunca lhe faltaram as honras,
e na Europa, onde em 1975 recebera,

sempre
“modernidade”) do que dúzias de ou- no Festival de Berlim, o Leão de me-
tras obras do período clássico japonês, lhor actriz, pelo seu papel num filme
e mesmo do período pós-clássico — e de Kei Kumai.

uma
os referidos programas de “Mestres Era já bastante conhecida na Eu-
Desconhecidos”, para não sairmos ropa no momento em que passou à
deste contexto delimitado, já deixa- realização, e um sinal claro disso foi

realizadora
ram boas indicações do tanto, tanto a inclusão do seu filme de estreia,
mesmo, que há ainda por recuperar e Carta de Amor, na competição oficial
descobrir no cinema do Japão. do Festival de Cannes de 1954. No ano

Kinuyuo
Tanaka
Mais conhecida como actriz,
a japonesa foi uma presença rara
num mundo então absolutamente
masculino: o dos realizadores
de cinema. Chegam a Portugal todos
os seus Älmes como realizadora.

Luís Miguel Oliveira


20 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
anterior, precisamente o ano da es-
treia japonesa de Carta de Amor, tinha Eis uma obra uma relação especial deram-lhe todo
o apoio. Keisuke Kinoshita escreveu-
numa questão de corpo (e do corpo)
que a diferencia, sobretudo nesse
acompanhado Mizoguchi numa via-
gem à Europa, fotograficamente bas- que se manteve lhe, de raiz, o argumento de Carta
de Amor, e mais tarde, para o se-
filme estarrecedor (e já lá vamos)
que é Para Sempre Mulher. Mas dir-
tante documentada, quando O Inten-
dente Sansho foi exibido no festival de relativamente gundo filme, A Lua Ascendeu, Yasu-
jiro Ozu passou-lhe um argumento
se-ia que, nos dois primeiros filmes,
a curiosidade de Tanaka, sem perder
Veneza. A viagem passou, natural-
mente, por Paris, a pequena “pátria” “secreta” durante seu que tinha ficado na gaveta dos
projectos não realizados. Mikio Na-
as mulheres, se volta, tanto quanto,
para os homens.
dos Cahiers du Cinéma, revista que
era então a principal responsável pelo demasiado tempo. ruse empregou-a como assistente de
realização antes de Carta de Amor,
Em Carta de Amor, por exemplo:
podia ser descrito, num universo de
Carta
de Amor
endeusamento de Mizoguchi, oposto,
naqueles anos de descoberta euro- Há tanto, tanto para lhe dar algum traquejo, e diz-se
que depois foi visita assídua do pla-
filmes em que os homens olham para
as mulheres, como um filme onde
Koibumi
De Kinuyo
peia a conta-gotas do cinema japonês,
ao mais “popular” Kurosawa, que, no mesmo, ainda teau do primeiro filme de Tanaka,
actuando como seu conselheiro. E
uma mulher olha para os homens a
olhar para as mulheres. É um filme,
Tanaka
Com Yoshiko
entanto, através de As Portas do In-
ferno, dera início à renovação do in- por recuperar se alguém achar que a presença de
tanto homem ainda representa de-
que termina num impasse crudelís-
simo e quase amargo, sobre o olhar
Kuga, Jûzô
Dôsan,
teresse da cinefilia europeia pelo ci-
nema feito no Japão. e descobrir no masiado paternalismo masculino
não perde pela demora: no período
masculino nas muito específicas cir-
cunstâncias em que a narrativa de-
Masayuki Mori,
Jûkichi Uno
É importante notar isto que por-
que foi com Mizoguchi que Tanaka
estabeleceu, como actriz, a relação
cinema do Japão final da obra de Tanaka como reali-
zadora quase todas as personalida-
des determinantes, da produção ao
corre. Os americanos por todo o
lado, a cultura americana a implan-
tar-se, as mulheres procuram a Vo-
Em sala
mais forte, protagonizando vários argumento, tendiam a ser femininas, gue nos quiosques e os arquitectos a
 dos seus filmes mais célebres nos e os seus filmes, portanto, um as- American Home. Muitas mulheres,
anos do pós-guerra, de Utamaro ao sunto de mulheres. sobretudo as viúvas de guerra, en-
Sansho, passando pelos Contos da contram um remédio para a penúria
Lua Vaga entre muitos outros. Cor- Uma mulher olha estabelecendo amizades “especiais”
reu até o rumor, nunca desfeito em- para os homens a olhar (o filme é prodigioso no balanço en-
bora ambos o tenham negado (Ta- para as mulheres tre o implícito e o explícito da descri-
naka: “Éramos casados em frente Seria absurdo, até pelas razões já ção destas relações) com militares
das câmaras, mas não atrás delas”), expostas (a preponderância de per- americanos ou funcionários admi-
de que Mizoguchi e Kinuyo teriam sonagens femininas no cinema japo- nistrativos da ocupação. Mas depois
algum tipo de relação romântica. nês da época), pretender que o foco eles voltam para a América e elas só
Pormenor que, mais uma vez, é im- nas mulheres seja um traço distintivo podem mandar-lhes cartas — outro
portante notar porque o que veio dos filmes de Tanaka. É, quando pequeno negócio, central no filme:
interromper esta relação tão forte e muito, a maneira de habitar esse a redacção de cartas em inglês. O
tão profícua foi, precisamente, a pas- foco, radicalizando-o literalmente protagonista masculino desco- 
sagem de Tanaka à realização. Mizo-
Para Sempre guchi opunha-se, argumentava que
Mulher Tanaka “não tinha feito” para ser certo para a indústria japonesa vol-
Chibusa yo realizadora, e uma vez consumada a tar a acolher uma mulher realiza-
Eien Nare passagem não quis voltar a trabalhar dora, apenas a segunda depois da
De Kinuyo com ela. Num cineasta tão “femi- pioneira Tazuko Sakane nos anos 30
Tanaka nista” como Mizoguchi, e embora (esta, sim, esquecida quase por
Com Junkichi toda a gente possa ter as suas contra- completo: que surpresas guardará
Orimoto, Ryôji dições, custa a crer que a razão de a obra dela?).
Hayam, Yumeji tamanha oposição tenha sido uma Era o tempo do pós-guerra, o
Tsukioka, questão de chauvinismo machista. É tempo de lamber as feridas da “dé-
Hiroko mais provável que o motivo fosse, bacle”, da desonra e da destruição
Kawasaki muito prosaicamente, uma questão do Japão antigo, um tempo em que
Em sala de egoísmo artístico: Mizoguchi ti- — não é preciso ir aos livros de histó-
nha reputação de ser severíssimo ria ou de sociologia, basta ver os fil-
 com os actores (e há declarações de mes, por exemplo, os Naruses do
Tanaka que, por sua parte, o confir- imediato pós-guerra — só as mulhe-
mam), exigir-lhes uma disciplina e res emergiam, subitamente, como
uma entrega totais, e é perfeitamente figuras intactas. O desastre da guerra,
possível que tenha pensado que Ta- quer o rumo para ela quer as suas
naka não voltaria a ser a mesma ac- consequências, fora um assunto
triz, capaz dessa disciplina e dessa masculino, e a falência do Japão uma
entrega, a partir do momento em falência do “macho japonês”. Com
que a cabeça dela passasse a dividir a ajuda da “pedagogia” americana
as preocupações da representação e durante a ocupação (que terminou
as da realização. em 1952, o ano anterior à estreia de
Mizoguchi, com quem Tanaka Tanaka), o Japão aprendia a olhar
tanto aprendera, foi assim uma fi- com outros olhos para as mulheres
A Lua gura distante na entrada da actriz e para as figuras femininas, algo que
Ascendeu no mundo, então absolutamente está reflectido em muito cinema da
Tsuki wa masculino (um pouco por todo o época (mesmo se feito por homens,
Noborinu lado, mas sobretudo no Japão), dos mas não há cinema mais consisten-
De Kinuyo realizadores de cinema. É preciso temente “feminino” do que o cinema
Tanaka dizer que esse mundo era extrema- japonês das primeiras décadas de-
Com Shûji mente ordenado, hierarquizado e, pois da guerra) e que ia tendo conse-
Sano, Hisako de certa forma, “sindicalizado”, e quências práticas na organização
Yamane, Chishû que o acesso ao posto de realizador social do país. Anos depois, Tanaka
Ryû tinha de ser previamente aprovado diria: “De repente, havia mulheres
Em sala pelos pares. A recusa de Mizoguchi no parlamento, pela primeira vez na
não foi acompanhada pelos outros história, mas não havia realizadoras,
 realizadores (pelo menos, pela e pensei: ‘Porque não eu’?”.
maioria), e se a reputação de Tanaka Se bem pensou, melhor o fez. Mi-
lhe conferia um certo privilégio, zoguchi voltou-lhe a costas, mas ou-
aquele também era o momento tros realizadores com quem tinha
ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 21
publico.pt/aovivo

 bre que o seu amor de infância,


por quem espera desde sempre
(atenção à cena do flash-back e so-
bretudo ao seu lançamento: aquele
plano de dentro do comboio que
parte, através da janela, é um apon-
tamento de “mise en scène” que bas-
O clube de leitura dos jornais tava para sustentar que Tanaka tinha
PÚBLICO e Folha de S. Paulo. génio), é uma destas mulheres, viúva
Todas as segundas terças-feiras de guerra que teve um, ou mais do
de cada mês que um, amante americano. E não
consegue ultrapassar isso. O que é
espantoso é que Tanaka, sendo im-
plicitamente crítica do olhar e das
expectativas masculinas, exprima
quase compaixão: nem herói “posi-
tivo” nem “negativo”, aquele homem
é como todo o Japão à volta dele, um
mundo em transformação tão radi-
cal que leva o bebé com a água do
banho, o “bem” e o “mal” do mundo
antigo substituídos por novos “bens”
e “males”, que ninguém sabe se
compensam os outros.
É um pouco assim ainda o que está
em causa em A Lua Ascendeu, quanto
TERÇA-FEIRA, 11 ABRIL, mais não seja por se tratar do mundo Senhora Ogin, Nada nos prepara é para Para
22H (18H EM BRASÍLIA) de Ozu visto, ou revisto, pelos olhos Mulheres Sempre Mulher. Que filme, e que ou-
de uma realizadora. É quase uma da Noite sadia — sobretudo a partir do mo-
homenagem, no respeito de Tanaka e A Princesa mento, a meio do filme, em que a
Isabel Coutinho e Eduardo Sombini pela bonomia agridoce de Ozu, pelo Errante protagonista, uma poetisa divor-
conduzem um encontro entre seu tratamento das questões geracio- ciada que ainda anseia pelo amor e
Rafael Gallo e os seus leitores. nais (os filhos que já não iguais aos pelo reconhecimento, é vista apal-
pais, embora continuem a pensar par o peito. Segue-se uma das mais
Em destaque, o romance “formatados” por eles, quer dizer, dilaceradas e dilacerantes “via cru-
Dor Fantasma. pela “tradição”), pela maneira como cis”, um dos mais espantosos melo-
replica até certos procedimentos de dramas da doença, que alguma vez
Ozu — e nem pensamos tanto nos se fizeram. A ousadia, e esta prova-
Participe por Zoom
sobrevalorizados “planos-tatami” velmente só uma mulher a podia
na reunião com (que naturalmente não são um ex- filmar, de confrontar um corpo “di-
a ID 820 7497 2849. clusivo de Ozu, numa cultura onde minuído” com a sua totalidade de
A senha de acesso tanto, a nível doméstico, se passa “sujeito desejante” (as mãos de Yu-
é 538972. numa relação com o chão e rente ao meji Tsukioka a acariciarem os ca-
chão) mas nos “pillow shots”, nos belos e o corpo do seu último amado
“planos-almofada” como Noel Burch
lhes chamou, aqueles enquadramen- No período final da são uma expressão incrível, podero-
síssima de um desejo, ao mesmo
tos vazios que fazem respirar a nar-
rativa com um sopro melancólico obra de Tanaka como tempo carnal e espiritual, e nunca
se viu isto assim).
indefinível, além da presença do ac-
tor fétiche de Ozu, Chishu Ryu (bre- realizadora quase Mas é como diz a personagem:
quis o destino que o seu “momento
vemente visto, quase um cameo, em
Carta de Amor). Mas dentro disto, e todas as mais glorioso” coincidisse com o seu
“momento mais lastimável”. E desta
duma história de uma família de “ca-
samenteiros” onde todos se preocu- personalidades terrível sobreposição de contrários
não mais se sai, rumo a um final — a
pam com todos mas não consigo
próprios, Tanaka segue um ritmo determinantes com mensagem dela aos filhos, que coisa!,
nem sequer a vamos revelar para
mais espevitado (espevita mais as
personagens, também) e carrega na quem trabalhava não estragar o pranto a ninguém —
onde convém ao espectador ter um
tecla do lirismo de uma forma muito
própria (as cenas ao luar) — é a sua tendiam a ser lenço a jeito. Porque vai sair a fungar,
e a ansiar pela chegada do segundo
primeira obra-prima, depois do tiro-
cínio da estreia. femininas volume das obras completas de Ki-
nuyo Tanaka.
22 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
teatrosaoluiz.pt

vídeo-instalação
CORPOS CELESTES
ENTRADA LIVRE

11-22 ABR

C., CELESTE
E A PRIMEIRA
VIRTUDE
© Beatriz Batarda

BEATRIZ BATARDA
2023 M/12

22 ABRIL
D
elphine Seyrig “continua a estéticas e o colocar em causa de
falar-nos. Mais do que nunca forma radical um funcionamento so-
desde o seu desapareci- cial e um sistema de pensamento, ela
mento ela parece nossa con- fez melhor do que o preparar. Ela tor-
temporânea”, escreve Jean- nou-o possível.”
Marc Lalanne. É a “tese” de
Delphine Seyrig, En Contructions. E A dama e o cadáver
fora já das páginas finais deste livro- É neste tom que termina En Construc-
ensaio sobre alguém que fez figura tions, ensaio assumidamente “admi-
de diva do cinema de autor nos anos rativo e amoroso”. Na sua carreira de
Delphine Seyrig: 60 e 70 (filmes de Alain Resnais, Luis crítico, Jean-Marc foi destilando o seu
a “dama” nos filmes, Buñuel, Chantal Akerman, Jacques imaginário, onde figurava a Delphine-
a “radical” na vida Demy) mas que se tornou demasiado fada de Peau d’Âne ( Jacques Demy,
radical no seu percurso estético e 1970) e a Madame Tabard objecto do
político, o autor continua: “Ela nunca desvario do Antoine Doinel ( Jean-
esteve tão presente no imaginário da Pierre Léaud) de Baisers Volés (Fran-
nossa época. Quando desapareceu çois Truffaut, 1968). Eram as fantasias
[Beirute, 1932-Paris, 1990], os seus de adolescente a que juntariam mais
filmes de realizadora estavam invisí- tarde, evidentemente, a “grande
veis e, na sua carreira de actriz, pra- dama” de O Último Ano em Marienbad
ticamente não filmava, a não ser fil- (1961, Alain Resnais) e o enigma Anne
mes radicais.” É que os anos 80, ex- Marie Stretter de India Song (Margue-
plica o redactor-chefe da revista Les rite Duras, 1975). Filmes em que as
Inrockuptibles, foram “uma década intervenções de Resnais e Duras so-
de restauração formal e ideológica”. bre a figuração e sobre o som, a des-
Isto é, de conservadorismo. continuidade entre imagem e texto,
“Mas há cerca de dez anos”, con- como tesouradas num modelo, insti-
tinua, conversando com o Ípsilon, gavam o “vestir” e simultaneamente
“houve um regresso a ela, com o mo- o desconstruir dos códigos de repre-
vimento #MeToo, com a narrativa sentação da mulher no cinema clás-
feminista, e os vídeos com as suas sico, a diva. Faltará determinar se
intervenções na TV a favor da legali- essa desconstrução foi assim perce-
zação do aborto tornaram-se virais bida ou se Delphine Seyrig ficou re-
no YouTube, fizeram dela um ícone. fém, no imaginário público, desses
Vários espectáculos de teatro nos paramentos etéreos, dos rituais orga-
últimos quatro anos viraram-se para nizados por Resnais e Duras.
Delphine e para a associação Les In- Há dez anos Lalanne teve a pri-
soumuses [criada com Carole Rous- meira proposta editorial para escre-
sopoulos e Iona Wieder, dedicada à ver um livro sobre a actriz. Não estava
criação vídeo feminista] e um filme disponível. Agora, ainda com a edi-
realizado por ela, e produzido pelo tora Capricci, foi “o bom momento”.
colectivo, Sois belle et tais-toi, que em As coincidências certificam-no. O re-
1981 teve distribuição quase clandes- gresso a Seyrig faz-se em simultâneo
tina, hoje teve maior repercussão”. com o regresso contemporâneo à
Realizado na verdade entre 1975 e obra de outra actriz realizadora,
1976, entre Hollywood e Paris, Sois Jeanne Moreau, cujo percurso prepa-
belle et tais-toi fazia o ponto da situa- rou uma via para Delphine. Os para-
ção, civilizacional podemos dizer, do lelismos são notórios. A primeira
feminino. Entrevistava 23 actrizes, de chegou aos grandes cineastas,
Jane Fonda, Louise Fletcher, Barbara Truffaut, Losey, Buñuel, Demy, antes
Steele a Juliet Berto, de Anne Wia- da segunda, até que finalmente as
zemsky, Shirley MacLaine, Maria duas vozes mais distintivas do cinema
Schneider a Ellen Burstyn. Nos seus francês estiveram juntas em palco
depoimentos, elas falavam sobre o num espectáculo de 1973 hoje mítico:
ETHEL BLUM-LERIN/ GETTY IMAGES

que significava ser actriz nos filmes La Chevauché sur le lac de Constance,
de homens, sobre o que significava de Claude Regy, encenando o texto
ser uma fantasia e ser mulher. de Peter Handke, com Seyrig e Mo-
“Ela não tinha o conhecimento te- reau, e com elas em cena ao longo de
lepático do futuro” — voltamos de duas horas Gérard Depardieu, Samy
novo ao final de Delphine Seyrig: En Frey e Michael Lonsdale.
Constructions. “Mas entre rupturas No percurso de Delphine aluna de

Delphine Seyrig, Procurou ser, “dos pés à cabeça,


uma dama”. Poucos
perceberam a frase da actriz de
India Song e Jeanne Dielman...,
nossa contemporânea considerado “o melhor filme de
sempre”. Um livro trá-la, e à sua
ironia, para os nossos dias.

Vasco Câmara
24 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
KEYSTONE-FRANCE/GETTY IMAGES
teatro, Jeanne Moreau era referência: los homens. Isso provocava nela a
quando no Festival de Avignon em cólera”, diz Jean-Marc. “E por vezes
1951, acompanhada pelo amigo Phi- essa cólera extravasava. Se se encon-
lippe Noiret, viu o Cid de Gérard Phi- trarem relatos da época deparam-se
lippe, quis estar no lugar da jovem com comentários muito feios, misó-
actriz que era Jeanne Moreau. “A voz, ginos, às suas palavras.”
a exigência, a inteligência de cinema”, “Depois daqueles filmes, que cons-
avança Lalanne, aproximam-nas. Mas tituíram a sua façanha de actriz, ela
as diferenças também as marcam: quis fazer outra coisa, queria fazer
“Jeanne Moreau fez filmes mais po- filmes como mulher. Mas participa
pulares, era mais conhecida do pú- tudo do mesmo élan.” Não havia, por- Delphine
blico, enquanto Delphine, mesmo no tanto, contradição, defende, antes Seyring
auge da popularidade, era desconhe- uma continuidade. “Não foi uma ma- Jean-Marc
cida de uma parte da França. Como rioneta de Resnais ou de Duras. Por Lalanne
realizadoras, Jeanne procurou uma exemplo, participou na construção Capricci
palavra mais pessoal, com elementos de O Último Ano em Marienbad, que
de autobiografia”, nos filmes que rea- foi um filme a dois” — e foi o seu pri- 
lizou, Lumière (1976), L’Adolescente meiro filme. Trabalharam, Delphine
(1979) e Lilian Gish (1984). “Já Del- e Alain, sobre a imagem de Greta
phine estava à procura de uma pala- Garbo, por exemplo. “É já um grande
vra colectiva e política”: Maso et Miso filme feminista, uma obra-prima so- dade. O filme de Chantal Akerman é
vont en bateau (1975, em co-realização bre a obsessão masculina de possuir um dos mais perfeitos do mundo. É
com Carole Roussopoulos e Iona Wie- a mulher, e é incrível que Delphine uma obra-prima de pensamento,
der), gesto de guerrilha utilizando de não tivesse visto isso. Talvez tivesse que imaginou uma determinada
forma irónica intertítulos e música sido necessário que passasse tempo forma para um determinado con-
para comentar uma emissão televi- para se ver isso debaixo de todo teúdo, e é uma obra-prima de con-
siva dirigida por Bernard Pivot que aquele trabalho formal no filme.” Isto cretização. É um dos filmes mais
teve intervenção da secretária de Es- é, a tese defendida por Jean-Marc La- imparáveis no seu pensamento.”
tado para a Condição Feminina, Fran- lanne de que O Último Ano em Ma- Com a escolha de Seyrig, figura de
çoise Giroud; SCUM Manifesto (1976, rienbad é um filme sobre o assédio. imagem chic para os espectadores,
com Roussopoulos), leitura do mani- “Mesmo em outros títulos, no India para a personagem de dona de casa
festo de Valerie Solanas fundador do Song, de Duras, e no Jeanne Dielman, que repete mecanicamente os gestos
feminismo radical; o referido Sois de Akerman, há uma ironia que faz do dia-a-dia, concretizava-se uma
belle et tais-toi. com que Delphine se aproxime mais violentação pretendida por Aker-
Na época desses filmes, 1975, de- da marionetista, ou seja, de alguém man: impedir que o quotidiano se
cretado Ano Internacional da Mu- que controla o mecanismo, do que da tornasse invisível, que os gestos se
lher, Seyrig estava de tal forma repre- marioneta. E com Duras dá-se a forma diluíssem na sua normalidade, e as-
sentada no Festival de Cannes, qua- mais extenuada, a desintegração do sim evidenciá-los, gestos e rituais —
tro filmes, três dos quais realizados arquétipo, como um cadáver.” por exemplo: cortar batatas — como
por mulheres — Aloise, de Liliane de Mas é com o filme de Chantal Aker- obstáculos de rugosidade, como vio-
Kermadec, India Song, de Duras, e man que aparece outro sinal do lência. A personagem resultou da
Jeanne Dielman, 23 quai du commerce “bom momento” da publicação observação, por Chantal, da sua pró-
1080, Bruxelles, de Chantal Akerman deste ensaio. Jeanne Dielman, 23 quai pria mãe, dos seus gestos e expres-
—, que o júri, presidido por... Jeanne du commerce 1080, Bruxelles acaba sões, coisas que a filha não entendia,
Moreau, lhe dedicou umas linhas no de estabelecer novo cânone ao ser não queria para si.
palmarés. Foi precisamente nessa considerado o melhor filme de todos “Chantal podia ter escolhido uma
altura de um cume que deixou para os tempos na votação organizada actriz com uma imagem mais realista
trás o guarda-roupa e as maneiras de pela revista Sight and Sound, termi- e representativa em vez de uma mu-
“dama”, uma sua “construction”, e nando a dança de cadeiras entre lher cujo corpo veiculava uma liga-
chamou a si os gestos da militância. Vertigo, de Hitchcock, e O Mundo a ção a uma elite social. Mas a verdade
Dizia ela que estava farta de falar Seus Pés, de Orson Welles. Em cópia é que as imagens da mãe de Chantal
“entre linhas” através dos filmes dos restaurada e novos materiais de pro- dizem-nos que era uma mulher bela,
outros. Expôs-se então numa via en- moção, Jeanne Dielman... volta por parecida com Dephine Seyrig.” A
gagée, e a sua raiva que até aí se con- estes dias ao circuito comercial. actriz nascida no seio de uma família
tivera desencadearia a raiva dos “Votei nesse filme [para a lista da da alta burguesia alsaciana, meio
(tele)espectadores que não concilia- Sight and Sound]. Estou de acordo erudito, sensível à arte e aos artistas,
vam a turbulência da mulher dos com a escolha, que volta a estabele- que um dia, sobre o papel que a fez
debates e das manifestações com a cer uma ligação entre a cinefilia e o passar do anonimato à notoriedade,
A dama e o seu cadáver: O Último Ano em Marienbad presença chic nas criações de Resnais contemporâneo”, assume Lalanne. A em O Último Ano em Marienbad:
e India Song. O “melhor filme de todos os tempos”: e Duras. “Poucas pessoas viam o que A votação “é o resultado de novos “Procurei ser verdadeiramente, dos
Jeanne Dielman 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles ela via: a opressão das mulheres pe- critérios de diversidade e de pari- pés à cabeça, uma dama.”

ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 25


encenação e documento, encena aqui o “ajuste de contas” da

Cinema As estrelas Jorge


Mourinha
Luís M.
Oliveira
Vasco
Câmara
reconstituição e variação, instala-se
precisamente, e inspiradamente,
nessa linhagem.
Guatemala com o seu passado
através de uma presença ancestral
sobrenatural que entra na casa de
um ex-militar, cercada por
manifestantes durante o seu
julgamento pelas suas
O Azul do Cafetã) —) nnn) nnn O lamento responsabilidades nos massacres de
Estreiam As Bestas)
A Chorona)
—)
mnn)
mnn) mnn
—) —
da história indígenas durante a guerra civil
daquele país.
A balada Carta de Amor) mmn) mmn) mmn Não é bem um filme de
Não lhe falta sequer a presença
tutelar do Prémio Nobel da Paz
de Yann Os Filhos de Ramsès) —) mnn) mnn terror, nem é bem um filme Rigoberta Menchú, interpretando
Great Yarmouth — Provisional Figures) —) nnn) mnn de autor, e é essa indefinição uma das testemunhas do
e Marguerite Império da Luz) mnn) —) mnn que ganha esta pequena julgamento, mas Bustamante evita
com justeza a queda no didactismo
Interdito a Cães Italianos) —) nnn) — surpresa assinada pelo
Entre a reconstituição e o que isso poderia representar,
A Lua Ascendeu) mmn) mmm) mmn guatemalteco Jayro preferindo construir uma sedativa
documento, a invenção e a
Para Sempre Mulher) —) mmm) mmm Bustamante. Jorge Mourinha claustrofobia que suspende
variação, Claire Simon filma qualquer descrença para deixar
Quero Falar Sobre Marguerite Duras) mnn) —) nnn
com delicadeza o ideal entrar uma espécie de “justiça
Terra que Marca) nnnn) mnn) — A Chorona
romântico da relação entre La Llorona kármica” contra a qual de nada
Toda a Beleza e a Carnificina) mnn) mnn) nnn serve clamar inocência.
Marguerite Duras e Yann  Mau  Medíocre  Razoável  Bom  Muito Bom  Excelente
De Jayro Bustamante
Tal como a sua sobrenatural
Andréa. Jorge Mourinha Com María Mercedes Coroy,
Margarita Kenéfic, Sabrina de la personagem principal, Jayro
Quero Falar sobre Marguerite Hoz Bustamante quer levar o
espectador a sentir mais do que a
Duras Em sala
Vous ne désirez que moi compreender, enfeitiçando-o até
De Claire Simon ) nada restar senão o horror da
Com Swann Arlaud, Emmanuelle realidade; A Chorona é um filme
Devos Há tanto filme a debater-se por inteligente e recomendável, uma
ganhar espaço que não é pequena e tardia surpresa a
Em sala
surpreendente que um objecto tão destacar pelo meio de tanta estreia
 interessante como A Chorona se inútil ou recauchutada.
perca algures pelo meio: estreado
Projecto singular, este a que a na paralela Giornate degli Autori de
cineasta francesa Claire Simon se Veneza em 2019, a terceira longa do
atirou: encenar a conversa entre o guatemalteco Jayro Bustamante Um alfaiate
escritor Yann Andréa (1952-2014) e
a jornalista Michèle Manceaux
passara em Portugal no MOTELX
antes de aparecer agora em sala e na
na sombra
(1933-2015) à volta da relação de plataforma de streaming dedicada
Andréa com a lendária escritora ao cinema de género Filmtwist. E Inteligente, mas um pouco
Marguerite Duras (1914-1996). não é surpreendente porque A aquém do que podia ser.
Singular porque Simon, veterana Chorona não encaixa precisamente Luís Miguel Oliveira
documentarista com passagens Quero Falar sobre Marguerite Duras: entre encenação e em nenhuma das caixas onde se
regulares pela ficção, usa como documento quiser metê-lo: é um “filme de O Azul do Cafetã
base de trabalho o som integral da autor” de uma cinematografia rara
Le Bleu du Caftan
entrevista, realizada em 1982 mas que mergulha a fundo na história da
De Maryam Touzani
nunca editada em vida dos seus de Josée Dayan, com Jeanne Moreau Simon, e dos seus dois impecáveis Guatemala, mas é também um filme Com Lubna Azabal, Saleh Bakri,
intervenientes; e porque ela filma o no papel da escritora). actores, do que a sua rendição ao de género no limiar do terror e do Ayoub Missioui
diálogo como uma reconstituição Mas o que Simon filma é, mais do universo Duras: um espaço onde a thriller político, propositadamente
Em sala
ficcionada dos encontros entre que uma relação, um ideal, realidade e a sua transcendência difuso e altamente definido.
Yann e Michèle mas também como romântico mas também literário: podem co-existir através do simples A espaços, não andamos muito 
um “documentário” dessa uma entrega total a uma visão do poder da voz e da palavra, mas onde longe do chileno Pablo Larraín e da
reconstituição, pontuado por mundo, a um olhar sobre o mundo, a imagem não se limita a ser mera sua sofisticação formal, estilizada, Mais notícias de Marrocos, poucos
imagens de arquivo de Duras e que nos arrasta sem regresso na sua ilustração e ganha uma identidade mas esta variação sugestiva sobre a meses depois da estreia de Alto e
excertos dos seus filmes India Song entropia, como se a obra de Duras autónoma. O equilíbrio delicado figura folclórica sobrenatural latina Bom Som — a Batida de Casablanca,
(porque foi numa projecção deste fosse um enorme buraco negro que que Claire Simon estabelece entre da Llorona está mais próxima da de Nabil Ayouch, e a associação
que Yann e Marguerite primeiro se tudo atrai, transforma e relança. as camadas que compõem Quero gravação de Lhasa de Sela do que com O Azul do Cafetã não se faz só
cruzaram) e L’Homme Atlantique Nesse sentido, talvez não possa Falar sobre Marguerite Duras, a sua das suas apropriações pela nacionalidade porque Ayouch
(porque aqui ela o filmou a ele). haver melhor elogio ao trabalho de exploração das fronteiras entre hollywoodianas. Bustamante e Maryam Touzani, realizadora
Na verdade, talvez não existisse
outro modo de este encontro
poder ser filmado — a relação de
Duras com o cinema foi sempre
algo de muito esquivo e
simultaneamente muito directo,
invocação e esconjuro num mesmo
movimento, braço-de-ferro
impossível de vencer entre palavra
e imagem.
Aquando da realização da
entrevista por Michèle Manceaux,
jornalista e escritora que era
também amiga de longa data de
Duras, Yann Andréa era
companheiro da autora de O
Amante e Hiroshima Meu Amor
havia dois anos, e sê-lo-ia até à sua
morte em 1996. A sua relação foi
alvo de livros de ambos (Yann
Andréa Steiner para Duras, Cet
amour-là para Andréa, que foi A Chorona: inteligente e recomendável O Azul do Cafetã valoriza o que não se diz
levado ao cinema em Aquele Amor
26 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
DANIEL COIMBRA
deste filme, formam um casal
(encontramos o nome de Ayouch
no genérico, como co-argumentista
e produtor).
As “notícias” que o filme de
Touzani traz são ambíguas: por um
lado, retrata uma existência
homossexual, no Marrocos
contemporâneo (o local da acção é
a cidade de Salé, no norte do país),
como algo condenado a
permanecer na sombra e na
clandestinidade; por outro, é um
filme com co-financiamento
marroquino, e que conseguiu ser
premiado no próprio país, no
Festival de Marraquexe. Esta
ambiguidade diz qualquer coisa,
sociologicamente, ou politicamente,
sobre a sociedade marroquina da
actualidade, e nesse sentido liga-se
bem ao citado filme de Ayouch e
aos seus retratos de adolescentes
angustiados com a vida que o país
tem para lhes oferecer. Isaura enfrentou um cancro da mama e essa luta está nas canções Pop em constante metamorfose: eis Caroline Polachek no novo
Mas o filme de Touzani não se põe do seu segundo álbum disco. Em Julho actua em Portugal
na posição de “dizer” e, pelo
contrário, toda a sua lógica parte do
que “não se diz”. E “não se diz” a nos medicamentos/ que não me lançou em 2014 sob o nom de plume mas algo mais aproximado de “um
homossexualidade, pelo que o
alfaiate Halim (Saleh Bakri) vive o
seu casamento com a mulher (a
Música deixa viver os momentos/ Vejo
neblina, mas os meus sentimentos/
são mais verdade que os mais
Ramona Lisa, não se seguia à
separação dos Chairlift; era, em vez
disso, um prenúncio daquilo que
género”, ou talvez mais ainda de
“um guião”. “É como um conjunto
de imagens, motivos e formas que,
bem conhecida Lubna Azabal) com, pensamentos.” Ela explica, em viria a acontecer em 2016, quando, para mim, funcionam bem em
mais do que resignação, genuína comunicado: “São as canções mais na sequência de Moth, o duo de conjunto”, acrescentava a cantora,
convicção. Uma das forças do filme honestas e verdadeiras que já dreampop movida a sintetizadores que actuará no Meco, a 14 de Julho,
é a maneira como Touzani não escrevi; há frases que me deixam assinou os papéis para o divórcio no Super Bock Super Rock.
deixa, nem por um segundo, que o Pop desconfortável. É esse desconforto artístico. Ramona Lisa era o alter-ego de
espectador duvide do amor entre que me faz sentir que o trabalho Ao site The Line of Best Fit, Polachek para as canções que foi
aquele casal, reforçado pela doença
da personagem de Azabal e pelos
A catarse de está feito”.
A urgência dos dois temas
Polachek explicava, na altura, que
Ramona Lisa não era uma pessoa,
acumulando no computador
portátil enquanto corria o 
gestos do marido. Isaura é pop inaugurais não é repetida no disco,
E à ordem do amor pertence que se perde em alguns clichés
também o silêncio, o “não-dito”, a Cantado em português, pop-rock. Mas Isaura acerta várias
forma como também nunca se vezes: PHTGDM? entrega-nos voz
duvida de que a mulher sabe
Invisível é um eficaz e criativo transformada em estúdio e beat
perfeitamente da vida dupla do disco pop, particularmente vigorosamente mínimo, Só quero
marido (os encontros furtivos em quando abraça a música de que te sintas bem é pop de
balneários, a relação com o dança. Pedro Rios sintetizadores com baixo dançável
aprendiz contratado para a (catarse: “Tudo vai passar”) e Salto

music-hall
alfaiataria), e a aceita, pelo menos à Invisível baila e balança com óbvio saber
falta de outra coisa. fazer (Ben Monteiro, dos amigos
Isaura
Nos rostos dos actores, na maior D’Alva, anda por aqui). Texto de Jean-Luc Lagarce
Ed. de autor
parte do tempo filmados em grande Encenação de Rogério de Carvalho
plano, deposita-se uma grande ) Companhia de Teatro de Almada
parte da responsabilidade da
transmissão destes “segredos” e, se O disco começa As irresistíveis
que quer Azabal como Bakri são
impecáveis, é justo que se diga que
com um triunfo:
Olhos em ti,
mudanças de criação

14 Abril a 14 Maio
o filme se ancora demasiado neles, tapete de
sintetizadores,
pele de Caroline Qui. a sáb. às 21h
ou que nem tudo — certas cenas,
talvez demasiadas, tombam ritmo fulgurante Polachek Qua. e dom. às 16h
M/12
naquela neutralidade do campo/ (ora house ora quase drum’n’bass),
contracampo falho da intensidade a voz de Isaura livre e forte como Há nas canções de Desire, I
desejada — o que Touzani tenta leoa à solta. Daqui seguimos para Want to Turn Into You o que
arrancar-lhes vem, de facto, à luz Viagem, um single dançante com
do dia. Mas a atmosfera óbvio apelo pop, operação de de melhor a pop tem. Dura Dita Dura
“subterrânea” assim criada, mesmo catarse em directo: “Os dias agora Gonçalo Frota Texto e canção de Regina Guimarães
que seja um subterrâneo banhado já não passam/ Os medos ficam e Encenação de Igor Gandra
pela luz dourada da fotografia (que dançam/ O ar já não é p’ra respirar/ Desire, I Want to Turn Into You Teatro de Ferro
rima bem com “o azul do cafetã”), Nenhuma viagem nos tira do
Caroline Polachek
acaba por ser um envolvimento lugar”. É pop que absorve The Orchard 15 e 16 Abril
pleno de sentido, para tudo o que interessantes pormenores de Sáb. às 16h • Dom. às 11h • M/6
acossa as personagens (as rusgas da produção, como um loop que )
polícia, a doença), para aquilo que parece pilhado de uma corrida de
as liga umas às outras como para Fórmula 1. Durante uns
aquilo que as “desliga”. É um filme
inteligente, debruado com o
Invisível, sucessor de Human
(2018) e o primeiro álbum em
tempos, como
quem muda Miguel Araújo
mesmo rigor com que Halim português da cantora e radicalmente de
debrua os seus cafetãs, virtudes compositora de Gouveia, é uma corte de cabelo na 15 Abril • Sáb. às 21h • M/6
que permanecem intocáveis conquista estética e pessoal. Isaura ressaca de um
mesmo se considerarmos (e enfrentou um cancro da mama e a rompimento amoroso, Caroline
consideramos) que O Azul do experiência difícil está presente Polachek passou a responder pelo
Cafetã fica um pouco aquém do nestas canções. No fulgor de Olhos nome Ramona Lisa. Só que, na ctalmada.pt
que podia ser. em ti, ela canta: “Há qualquer coisa verdade, Arcadia, o álbum que
ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 27
KEVIN WINTER/GETTY IMAGES

) mundo em digressão com os algures no meio, sem medo de fazer


Chairlift e que partilhavam um coabitar sob um mesmo tecto essas
mesmo mundo sonoro. Mas a duas pouco óbvias colegas de casa.
cantora não demorou a retirar-lhe o Se há um estilo vocal muito
poder que lhe tinha conferido particular desenvolvido por
quando, já os Chairlift faziam tijolo, Caroline Polachek, com uma
decidiu investir a sério numa tessitura quase operática, há nas
carreira a solo que, afinal, a atirava suas canções igualmente aquilo
numa outra direcção. E, portanto, que de melhor a pop tem —
livrou-se de Ramona Lisa como de melodias que se nos agarram aos
um trapo velho e quando editou dias e conseguem salvá-los de
Pang, em 2019, Caroline Polachek já qualquer ameaça de monotonia, e
era apenas Caroline Polachek, sem uma constante metamorfose,
máscaras ou pistas falsas, e com um trocando de ambientes como quem
despudorado cardápio de melodias troca de sapatos ou de co-autores.
pop equilibradas sobre fundos de E é essa mudança contínua de pele
uma electrónica simples — pensada que, agora se torna claro, melhor
para servir as canções e não para se assenta a Polachek. Ramona era
tornar protagonista. Esse fraquinho “um género”, dizia ela. Caroline
de Polachek por uma pop mais quer ser todos.
escancarada já se percebia na
colaboração com Charli XCX e,
antes disso até, chegara já à lista de
contactos no telemóvel de Beyoncé,
que a chamou para compor para o
seu álbum homónimo de 2013 (é
Livros
co-autora de No angel).
Pang era, então, o nascimento de Bob Dylan: “Se uma canção nos emociona, isso é o que importa”
uma Caroline Polachek que já estava
distante dos Chairlift (em rigor,
também os Chairlift se afastaram de Não-ficção resposta à pergunta, é o simples moderna” em sentido literal — aqui, conduzir-nos a tempos bíblicos e
si mesmos e, depois de um formular da questão. a modernidade é a do momento em reflexões sobre tentação e pecado
excelente disco de estreia, pareciam
ter perdido a ligação ao GPS e,
Dêem a Dylan, Dylan até se atém, aqui a ali, a
detalhar questões técnicas que
que os alicerces da cultura pop
começam a ser lançados e a
ou pôr-nos no coração desumano e
grotesco da guerra. Não raro, somos
consequentemente, o rumo) e fingia canções, ele explicam a qualidade artística de tornarem-se sólida construção também levados a divagações mais
nunca ter ouvido falar de Ramona uma canção. Ensaia pelo caminho (mais de dois terços das canções mundanas, de um humor
Lisa. Mas, agora que ouvimos escreverá algumas hipóteses inesperadas, provêm dos anos 1950 e apenas provocador: uma canção como
Desire, I Want to Turn Into You, o
segundo álbum de Polachek
o mundo como Volare, de Domenico
Modugno, antecipar em dez anos o
duas foram registadas neste
século). A selecção, de resto, não
Cheaper to keep her, de Johnnie
Taylor, é rastilho para perorar sobre
enquanto Polachek, Pang passou a psicadelismo regado a LSD de White procura reflectir uma visão esse demónio na terra, aos olhos de
soar a rascunho e a aproximação Uma porta aberta: 66 rabbit, dos Jefferson Airplane, ou o abrangente e inclusiva, para além Dylan, que são os advogados
tímida da batida que anima o canções comentadas bluegrass ser o outro lado do heavy da discoteca caseira e dos interesses especializados em divórcios e a
coração da cantora. por Bob Dylan. Mário Lopes metal, ou seja, ambas expressões estéticos e afectivos do autor. teorizar sobre os benefícios da
Basta ouvir temas brilhantes imutáveis há décadas, assentes Apenas uma canção, a poligamia.
como Welcome to my island (colado A Filosofia da Canção numa tradição instrumental inesperada Volare, não é cantada Ainda que seja um prazer
aos anos 80), Bunny is a rider definida, em que, “nas respectivas em inglês, e apenas outras três, de acompanhar a leitura de uma
Bob Dylan
(exploração exímia do registo r&b), áreas, as pessoas ainda se vestem Elvis Costello, The Who e The Clash, compilação das 66 canções — a
(Tradução e notas de Pedro
Pretty in possible (não espantaria como Bill Monroe e Ronnie James foram criadas fora dos Estados riqueza do que escreve Bob Dylan
Serrano e Angelina Barbosa)
que tivesse sido desviada da pop Relógio D’Água Dio”. Sugere ainda que My Unidos. Só quatro das entradas são dá a várias delas novas cores e uma
electrónica-diáfana dos Braids, generation, dos The Who, é tanto dedicadas a mulheres músicas maior profundidade —, tal fruição é
outros recomendáveis artífices da ) hino de rebeldia juvenil niilista, (quarteto improvável: Judy secundária perante aquilo que
canção esculpida em teclados), blasé e entediada, quanto a voz “de Garland, Nina Simone, Rosemary verdadeiramente se nos apresenta
Sunset (imagine-se o flamenco O que temos, em um homem de oitenta anos a ser Clooney e Cher). Nomes porventura em A Filosofia da Canção Moderna.
inventado na República descrição conduzido na cadeira de rodas de esperados, como Woody Guthrie, “A História está sempre a
Dominicana), Blood and butter (uma sucinta, mas um lar de idosos”, irritado tudo e Muddy Waters ou Leonard Cohen, repetir-se, e todos os momentos da
improvável canção, novamente em enganadora, são incapaz de “dizer uma palavra sem não são contemplados, mas um par vida são o mesmo momento, com
terreno anos 80, rasgada por um 66 canções e gaguejar”. deles, Willie Nelson e Bobby Darin, mais um nível de significado”,
solo de gaita-de-foles) ou Billions prosa para cada A estrutura de cada capítulo, têm direito a dose dupla. Surgem escreve Dylan. “A mesma velha
(andamento trip-hop a abrir para uma delas. ainda que nem sempre cumprida, várias figuras do crooning canção, a mesma velha melodia, as
arranjos a roçar os Pet Shop Boys) Sucedendo na mostra-nos, primeiro, Dylan a pré-rock’n’roll, como Perry Como, mesmas adivinhas — combatendo a
para se perceber que a veia pop só bibliografia de pôr-se na pele e no espírito do Vic Damone ou Bing Crosby, que o mesma velha batalha contra o
se tornou mais visível e latejante nos Bob Dylan ao já distante Crónicas — protagonista da canção, jovem Dylan desdenhava, mas cujo fôlego, e podemos estar
últimos três anos. Volume 1 (Ulisseia, 2004), A descrevendo o mundo pelos seus repertório o velho Dylan completamente seguros de que já
Quando se passa os olhos pela Filosofia da Canção Moderna olhos, numa prosa viva e rica, homenageou em discos recentes aconteceu antes e acontecerá outra
ficha técnica de Desire, I Want to mostra-o a dar uso a canções que alucinatória. Num segundo como Triplicate. E abundam nomes vez — é inevitável”. Estamos na
Turn Into You, deixa-se o queixo cair admira para viajar mais longe momento, contextualiza o leitor, de que a passagem do tempo obliterou canção derradeira, Where or when,
de espanto ao encontrar Polachek a (passo a passo, completa-se o uma forma mais formal, quanto ao ou que nem sequer tiveram direito de Dion, e Dylan explica de onde
partilhar créditos com Grimes e puzzle de uma visão do mundo) e intérprete e origem da canção. a esse privilégio, como Jimmy vem, afinal, o poder das canções. A
Dido numa mesma canção, Fly to mais perto do que imaginávamos Surge aqui como fundamental o Wages, vizinho de Elvis em Tupelo capacidade evocativa do som
you: as convidadas são discretas o possível (e eis a vida interior de magnífico trabalho de ilustração, que gravou na Sun Records canções reunido à palavra, certamente, e ele
suficiente para não desviarem os uma canção a revelar-se bem mais com cada entrada acompanhada de que só seriam editadas 25 anos escreve sobre essa qualidade
holofotes da voz a que estão vasta do que aparentava). uma selecção de imagens depois. indefinível, mais do que química,
prometidos — esta espécie de Kate “De facto, pode argumentar-se (fotografias, normalmente de Uma canção nunca é alquímica, mas algo mais: “Se uma
Bush para os anos 2020 em que que quanto mais se estuda música, época, directamente ou simplesmente uma canção. É uma canção nos emociona, isso é o que
Polachek parece ter-se menos se a entende. indirectamente relacionadas com a porta aberta para algo mais vasto. importa. Não tenho de saber o que
transformado (seguir directamente Consideremos, por exemplo, duas canção, anúncios publicitários Em A Filosofia da Canção Moderna, ela significa”.
para Butterfly net em caso de pessoas — uma estuda teoria vintage, reproduções de pinturas) uma canção pode levar-nos à A Filosofia da Canção Moderna,
dúvida); canção curiosa na musical contrapontística, a outra que, mais do que complementar, história de Nuta Kotlyarenko, o na visão pessoal e torrencial do
amplitude de posturas que convoca: chora quando ouve uma canção completam o imaginário por onde, costureiro nascido na Ucrânia, homem que o assina, é sobre a
a pop que não pede qualquer outra triste. Qual das duas entende página a página, Bob Dylan nos imigrante fugido dos pogroms, que forma como as canções viajam em
adjectivação de Dido, a pop música melhor?”. O importante, conduz. inventou o “Nudie Suit” nós, sobre os caminhos inesperados
aventureira, misteriosa e arriscada aqui, e é isso que nos dizem as Este não é, declaradamente, um imortalizado por Gram Parsons, que percorrem, sobre a
de Grimes. Tal como em Fly to you, mais de 350 páginas de A Filosofia livro de ensaios sobre composição. pode levar-nos a percorrer trilhos intemporalidade absoluta que
Caroline Polachek dir-se-ia estar da Canção Moderna, não é a Nem é, já agora, sobre “canção revolucionários mexicanos, pode existe nas emoções que carregam.
28 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
Ainda Mais Alto!
Afonso Cabral,
Francisca Cortesão,
Inês Sousa,
Isabel Minhós Martins
e Sérgio Nascimento
© Bernardo P. Carvalho

Música M/6 15 a 23
abril
Acção Paralela dimensão superlativa: um hino a si mesmo, é o Meditação na Pastelaria
António Guerreiro que vemos e ouvimos diariamente nos ecrãs. É
interessante verificar que isso se passa não só em Ana Cristina Leonardo
Cherchez la femme
certas zonas mais festivas da programação, mas

A paródia também nos jornais televisivos, em que os


jornalistas dão a cara e promovem o produto da
casa como se fossem publicitários ou accionistas

do jornalismo
que suspendem tacticamente toda a atitude
crítica.

A
Esses jornais televisivos que duram quase duas tanto idolatrada como odiada
horas não são apenas obscenos pela salada de Camille Paglia escreveu-o em
notícias, directos e reportagens; são também 1994, em Vampes e Vadias. Cito de
obscenos pelo modo como os jornalistas que os cor: na realidade, não é do ódio,

P
arece um pormenor insignificante, mas é apresentam interrompem a sua função de mas do medo masculino às
um daqueles fenómenos de superfície jornalistas e assumem o papel de instrumentos mulheres que se trata.
que indiciam uma estrutura profunda: a de uma produção que nos faz pensar na relação Uma nota: o medo pode gerar ódio
partir de certa altura, num tempo ainda que os media têm com o mediúnico, com forças facilmente, mesmo quando o medo não
próximo, os políticos entrevistados na mágicas, ocultas. Os jornais televisivos, de um tem nenhuma base real. Veja-se o caso do
televisão ou convidados como modo geral, visam uma experiência adictiva do anti-semitismo europeu do século XX
comentadores passaram a nomear os jornalistas, espectador. E os jornalistas que os apresentam anterior ao Holocausto, corrente em
a chamá-los pelo nome próprio, a interpelá-los são os intercessores desse poder mediúnico. lugares, como assinalou o historiador Raul
como se estivessem em família. Todos os Outrora, a palavra-chave na crítica dos media Hilberg, onde nunca, jamais, em tempo
jornalistas? Não, apenas alguns, aqueles que — era a palavra “manipulação”, que serviu para algum se teria avistado um judeu em carne
como se diz na linguagem corrente — “têm uma condenação abstracta. Enquanto e osso.
nome”, isto é, ascenderam ao estatuto de instrumento de crítica e análise, o conceito de Dito isto, a pergunta impõe-se: têm os
celebridades. Para isso, concorrem pelo menos manipulação guarda certamente ainda alguma homens motivos para temer as mulheres?
três factores: uma redução do teor de pertinência, mas está longe de revelar as mais Se nos lembrarmos de Judite, sem
formalidade exigido aos protagonistas da vida profundas distorções actuais. É a este sistema dúvida. Tal como é narrado na colectânea
política; o enfraquecimento ou até a anulação das actual que um lúcido analista e arqueólogo dos a que os cristãos chamam “Antigo
regras protocolares relativas ao discurso e a todo media, Yves Citton, chamou mediarquia. A Testamento”, o episódio que envolve a
o comportamento nas emissões de televisão; e a mediarquia significa que os media e o seu poder viúva de Betúlia, cidade da Judeia então
proximidade e a cumplicidade entre políticos e estão por todo o lado, que eles relevam de uma sitiada pelos assírios, acabaria mal para o
jornalistas como consequência da sobreposição archè, de uma potência constituinte da realidade, general invasor Holofernes. Judite, astuta,
dos dois poderes, o político e o mediático. e não apenas de um cratos, de um poder de consegue penetrar na sua tenda, seduzi-lo,
Repare-se: os jornais, que em muitos aspectos dominação (mediarquia não diz exactamente a embebedá-lo e em seguida cortar-lhe a
imitam os canais de televisão (ou funcionam com mesma coisa que mediacracia). Esta análise da cabeça, levando o troféu ensanguentado
eles numa lógica de complementaridade construção da realidade pelo poder performativo de volta para a cidade dentro de uma saca.
recíproca, como é o caso da relação dos media tem já uma tradição de pensamento Se nos lembrarmos da caprichosa
Expresso-SIC), mantêm, no entanto, algumas que começa na “sociedade do espectáculo” de Salomé, que exige com sucesso a cabeça de
regras de sobriedade, que restam de um mundo Guy Debord e se prolonga na “hiper-realidade” João Baptista oferecida numa bandeja,
antigo, quanto à nomeação ostensiva dos de Baudrillard. Ambos perceberam que os media dúvida alguma.
jornalistas (por exemplo, nas entrevistas, cada tinham caminhado no sentido de confundir o Se nos lembrarmos de Dalila, amada e
pergunta é geralmente antecedida pelo nome do som com o seu eco, o território com o seu mapa, amante de Sansão que aceita ser subornada
jornal ou da revista e não pelo nome do a realidade com a sua representação. para descobrir a origem da força
entrevistador). Nos jornais televisivos dos canais comerciais, sobre-humana do último dos antigos juízes
Porque é que isto tem um valor sintomático onde todo este processo tem uma força maior, de Israel, segundo nos é contado no Livro
que é preciso considerar? Porque é um signo podemos ver como os media são agora feitos para dos Juízes, acabando por convencê-lo a
conspícuo de uma mudança de regime de serem vistos, ao contrário de um antigo preceito. confessar que o segredo estava nos
visualidade: em princípio, os media foram feitos E isto significa que eles se dobram cabelos, que logo los corta, Sansão
para não serem vistos. Isto significa que o seu constantemente sobre si próprios, são indefeso e adormecido no colo de Dalila, a
funcionamento é tanto mais eficaz quanto eles ostensivos, exibem a sua medialidade e troco das moedas combinadas entregue
conseguem simular que se esquecem de si comemoram-na numa festa permanente. E a aos filisteus que sem perderem tempo lhe
próprios. presidir a esta cerimónia estão jornalistas com arrancam os olhos, qual é a dúvida?
Evidentemente, como é fácil perceber, esta nome, que os seus interlocutores políticos Se nos lembrarmos de Jael, a mulher que
antiga regra foi completamente revogada e hoje gostam de pronunciar para dar ares de família e acolhe na sua tenda Sísera, o derrotado
os media e os seus jornalistas, comentadores, para eterna glória da infra-estrutura mediática chefe militar cananeu em fuga após a ruína
colunistas, etc., exibem-se ostensivamente. Nas que nenhuma agenda política, progressista ou infligida ao seu exército pela lama e pelos
televisões (muito especialmente nos canais conservadora, ousa submeter a uma israelitas, o apaparica e cobre de cuidados,
privados), essa espécie de tautologia ganhou uma metamorfose radical. incluindo um cobertor, para durante o
sono dele com recurso a um martelo lhe
desfazer as têmporas com uma estaca
afiada, restarão dúvidas?
Livro de recitações Com base em tais exemplos, não é de
admirar que a alemã-argentina Esther
O comentador [Marques Mendes] disse neste domingo, na SIC, que com o programa Villar tenha chegado à conclusão que afinal
Mais Habitação o Governo “matou a confiança do mercado”. quem manda nisto tudo são as mulheres
In Expresso online, 02/04/2023 recorrendo a estratégias de sedução e
malícia, jogo sujo praticado por diligentes
O comentador Marques Mendes comentou no uma posição mais avançada nos media: aranhas cujo único fito é fazer cair na sua
jornal da noite da SIC. Pouco mais de uma hora também dá notícias em regime de exclusividade teia os pobres homens, tese que explanou
depois, às 22h28, os seus comentários já eram e comenta as suas notícias, para depois ser com assinalável sucesso mediático e de
notícia no Expresso. É assim todas as semanas. objecto de notícia. A isto se poderia chamar “o vendas na década de 70 do século passado
A função de comentador foi tão bem-sucedida jornalismo total”. Não tem, no entanto, um tom no seu livro O Homem Subjugado (também
que apagou a sua história de ministro e grandioso, não tem nada de wagneriano, é traduzido em Portugal), e onde se podem
dirigente partidário. Em relação à figura do mais uma opereta onde se representa a morte ler pérolas como esta: “(…) o homem
comentador Marcelo, Marques Mendes ocupa do jornalismo sob a forma de paródia. procura sempre alguém, ou alguma coisa,
a quem se possa oferecer como escravo,
uma vez que apenas como escravo se sente
seguro — e a sua escolha recai quase
FICHA TÉCNICA: DIRECTOR MANUEL CARVALHO EDITOR PEDRO RIOS DESIGN MARK PORTER, SIMON ESTERSON DIRECTORA DE ARTE SÓNIA MATOS sempre na mulher. Mas quem é ou o que é
DESIGNER ANA CARVALHO E ANA FIDALGO ILUSTRAÇÃO DA CAPA JOSÉ ALVES E-MAIL IPSILON@PUBLICO.PT a mulher para que o homem se deixe
30 | ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023
Crónica
Pedro Rios
e Por outro mundo,
escravizar por ela e para que seja
precisamente junto dela que se sente
seguro, quando é à mulher que deve a sua
obscuros instintos imutáveis
(naturalmente, quanto mais negativos,
melhor…) que serviriam, em última análise,
o Ípsilon quer abrir portas
vida degradante e é pela mulher que é de explicação para tudo — do nazismo ao

U
explorado com todos os requintes?” crime da violação, da homofobia aos ma dasfrases mais repetidas em A Minha Luta, do escritor Karl
Vai agora desculpar-me o leitor o conflitos armados. Ove Knausgård, pode ser traduzida como “o que importa é
parágrafo longo que passo a transcrever, Naturalmente, o que escrevo pode — e focar o olhar”, “ligando-nos àquilo que vemos”, segundo o
mas esta passagem do livro é imperdível: será — mal-interpretado por alguns. Nos filósofo Martin Hägglund.
“Considera-se provado que homens e dias que correm, os riscos hermenêuticos A cultura pode fazer isso: comprometer-nos com o mundo,
mulheres nascem com as mesmas chegam a ser mortais, razão porque me com o que vemos, lemos, ouvimos e sentimos no corpo. Numa
disposições espirituais [vá lá, valha-nos antecipo dando um exemplo, encontrado realidade em que a nossa atenção é disputada por smartphones, apps e
isso!], que não existem, pois, diferenças numa rede social, daquilo que poderá redes sociais, talvez como nunca seja tão importante (até terapêutico)
intelectuais primárias entre os dois sexos. servir no futuro de modelo a uma valorizar isto de nos entregarmos inteiros a um objecto do mundo — um
Está, porém [e eis que dá entrada a temível linguagem não ofensiva: “Gente (animais livro ou um filme que nos convidam a sair de nós, uma canção que não
adversativa!], igualmente provado que também), hoje (mas pode ter sido outro nos larga os ouvidos e nos obriga a dançar, um palco onde outros
todas as potencialidades não desenvolvidas dia) eu vi (sem querer desmerecer quem humanos se comprometem com esta coisa de viver.
se perdem; as mulheres não usam os seus não consegue ver) um filme (mas nada Mas a cultura pode fazer mais: alargar as possibilidades deste mundo,
talentos intelectuais, arruínam contra teatro ou outras formas de abrindo, como diz o mote do PÚBLICO, portas onde se erguem muros.
voluntariamente a sua capacidade de expressão artística) e ri bastante (porém, Abrir possibilidades onde antes havia impasse, impossibilidade,
pensar e após alguns anos de um treino tenho empatia com quem está passando emergência em cima de emergência (antes a covid-19, agora a guerra,
cerebral esporádico caem num estado de por momentos tristes e não consegue rir)”. agora a inflação, agora os bancos, ainda o clima, ainda os populismos).
estupidez irreversível. Por que não usam as E isto, que podia ser a transcrição de um Semear alegria onde cresciam cinismo conformado, resignação.
mulheres o seu cérebro? Não o usam texto humorístico dos vetustos Monty Transformar a nossa relação com os outros, com o tempo.
porque, para se conservarem vivas, não Python, corre o sério risco de estar a ser O mundo precisa de livros, filmes, canções, exposições, corpos em
necessitam de aptidões espirituais. levado a sério no século XXI. palcos, peças de teatro; o mundo precisa de cultura. Quando o mundo e
Teoricamente seria possível uma mulher Tendo deixado lá para trás os exemplos o país se entrincheiram, quando nos isolamos, podemos fazer das artes
ter menos inteligência do que, por bíblicos, note-se como a malícia e o sexo um antídoto, uma reacção, um diálogo — e precisamos tanto de falar uns
exemplo, um chimpanzé e, ainda assim, enquanto terrenos armadilhados com os outros. Como escreveu o escultor Rui Chafes: “Acredito que a
afirmar-se entre os homens”. continuam actuais e as mulheres, arte trata sempre da possibilidade de despertar no Homem o
Após ter elogiosamente comparado as usando-os como arma de arremesso, pressentimento de um outro mundo”.
mulheres a Nkima — o chimpanzé de Tarzan persistem em dar-lhes por vezes um uso Escrevo para este suplemento desde 2004, quando ainda se chamava
que Hollywood baptizaria mais tarde com o pouco estimável. Y, já sob a edição do Vasco Câmara. Com ele aprendi a tirar o melhor de
nome de Chita —, Villar coloca-nos perante Se os franceses, hedonistas e sofisticados, cada história e do jornalista que a quer contar (porque ele fez isso
um quebra-cabeças antropológico de inventaram a expressão chercher la femme comigo, mesmo quando era um jovem escriba com mais sonhos do que
importância capital. — no seu impagável livro de contos Do Outro talento: nunca duvidou que eu conseguiria. São assim o instinto e o
Das duas, uma. Ou as aptidões espirituais Lado do Canal, Julian Barnes garante que o rasgo dos grandes editores).
são mesmo despiciendas no que respeita à encerramento do comércio à hora do Cresci com o Y e com o Ípsilon, páginas onde o cinema dito “de
capacidade de manipulação das mulheres, almoço em França serve para permitir que nicho” se mostra, afinal, compreensível (são humanos como nós que o
e só podemos concluir que os homens são o carteiro se deite com a mulher do leiteiro fazem) e um duo ruidoso de guitarra e bateria é tratado com a mesma
olimpicamente estúpidos; ou, ao invés, as e para que a mulher do carteiro se deite seriedade que um grupo de música de câmara. Aqui, convites ao
aptidões espirituais das mulheres não são com o padeiro e assim sucessivamente… — silêncio convivem com activismo na pista de dança, reggaeton
despiciendas, pelo que o facto de os os norte-americanos, mais puritanos e despudorado e a arte dos silenciados, dos oprimidos. Aqui narram-se
homens se deixarem escravizar adeptos do vil metal, preferem reger-se corpos que vibram dançantes solicitando o nosso compromisso com
voluntariamente implica que as mulheres pela expressão follow the money. Nem eles. Palavras de Knausgård: “Agarrar toda a felicidade, toda a beleza,
são superiormente inteligentes. sempre uma coisa contradiz a outra. todas as promessas que há em todas as coisas.”
Não creio que nenhuma das conclusões Julian Assange sofre injustamente há O Ípsilon que começo agora a editar existe em papel, mas que é
fosse a pretendida pela autora de tão décadas as consequências dramáticas de igualmente lido no site do PÚBLICO, onde podemos contar histórias com
eloquente prosa. uma noite em que não terá conseguido mais do que texto, onde podemos fazer outros formatos — como
Haverá quem considere as opiniões de resistir à ratoeira do sex by surprise. newsletters, podcasts e séries em vídeo.É um suplemento aberto à
Villar demasiado mofentas para serem Strauss-Kahn, apesar de posteriormente cultura, a toda a cultura, atento às novas formas como ela se experiencia
levadas a sério. Nada mais incerto. Os gritos ilibado pela justiça, pagou o libertinismo — numa série em streaming, no telemóvel onde ouvimos a última canção,
aflitos de socorro que se fazem ouvir pelas com o seu cargo de patrão do FMI e o ignorando o resto do disco. Porque a cultura pulsa em todo o país,
bandas masculinas, o receio de feminização ostracismo político, incapaz — como diriam queremos estar onde ela é feita. Foi assim diversas vezes: lembro-me de
e descaracterização dos machos, o pavor à hora do chá senhoras bem-nascidas — de como foram estas páginas que mais valorizaram a música de dança feita
criado pelas hordas de amazonas que se manter fechada a braguilha. É chegada a por afrodescendentes na periferia da Grande Lisboa. Pouco depois,
dedicam a ultrajar o antigo “sexo forte”, vez de Trump, acusado de tentar pagar o esses fabulosos produtores andavam pelo mundo a mostrar a sua arte.
tudo isso só pode ser legitimamente silêncio de uma actriz porno com dinheiros Vamos também procurar pensar a forma como nos relacionamos com
interpretado como a inversão (irónica?) da que não terão saído da sua conta bancária a cultura. É o que fazemos no dossier de capa desta edição no qual
célebre “inveja do pénis” freudiana, (um caso em que o chercher la femme se perguntamos se, na era do smartphone, ainda nos conseguimos
metamorfoseada em medo de ser engolido casa abertamente com o follow the money). concentrar num livro. Para obter respostas, ouvimos escritores,
por uma vagina gigante, sem que, ao Pessoalmente, considero que o único uso editores, um neurologista e outros peritos, mas também leitores.
contrário da baleia de Jonas, haja agora curial do sexo como arma continua a Queremos fazê-lo mais vezes: o Ípsilon é uma comunidade, sinta-se
garantia de saída. encontrar-se no exemplo dado pela incluído nela. Vamos, à boleia dos livros, ouvir filósofos, psicólogos e
Sejamos intelectualmente honestos. A ateniense Lisístrata narrado por sociólogos que nos ajudem a dar sentido ao mundo — voltando ao nosso
contenda a que durante tanto tempo se Aristófanes. Não é um caminho fácil, mas mote, queremos abrir portas onde temos visto sobretudo muros.
chamou guerra dos sexos parece ter há que trilhá-lo se se quer realmente educar “Sinto que o mundo pode ser algo mais próximo de um sonho,
atingido níveis ridículos de paroxismo. Se, os homens. metafórico e poético, do que actualmente cremos ser”, escreveu o
de um lado, existe a recusa radical da músico David Byrne. “Nãoficaria surpreendido se a poesia — a poesia no
biologia, considerando-se que tudo é “Cherchez la femme” é uma expressão sentido mais amplo, no sentido de um mundo preenchido pela
“construção social” e, assim sendo, toca a detectivesca que surge pela primeira vez no metáfora, pela rima, por padrões, formas e desenhos recorrentes —
construir um “homem/mulher novo/nova”; romance novecentista de Alexandre Dumas fosse a forma como funciona o mundo. O mundo não é lógico, é uma
do outro, argumenta-se com os mais Les Mohicans de Paris. canção.” Cantemo-la juntos nestas páginas.
ípsilon | Sexta-feira 7 Abril 2023 | 31
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