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INTRODUCAO
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Poesia e poema
‘A poesia é conhecimento, salvage, poder, abandono. Operago capaz
de mudar 0 mundo, a atividade poética é revolucionaria por natu
reza; exercicio espiritual, é um método de libertagio interior. A poe-
sia revela este mundo; cia outro, Pio dos escolhidos;alimento mal-
‘dito. Isola; une. Convite a viagem; retorno & terra natal. Inspiracio,
respiracio, exercicio muscular. Preve ao vazio,dialogo coma ausén-
cia: otédio,a anglistia ¢ 0 desespero a alimentam. Oragio, adainha,
epifania, presenca. Exorcismo, conjuro, magia, Sublimago, com-
pensagio, condensacio do inconsciente. Expressio historica de
ragas,nagSes, classes, Nega a historia: em seu seiotodos os conflitos
objetivos se resolver e o homem finalmente toma consciéncia de
ser mais que passagem. Experiéncia, sentimento, emocio, intuigio,
pensamento nio ditigido. Filha do acaso; fruto do céleulo. Arte de
falar de uma forma superior; linguagem primitiva. Obediéncia as
regras;criagao de outras. Imitagao dos antigos,c6pia do real, cépia
de uma c6pia da ideia, Loucura, éxtase, logos. Retorno a infancia,
coito, nostalgia do paraiso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, ati-
vidade ascética. Confissio. Experiéncia inata. Visio, miésica, sim-
bolo. Analogia: 0 poema é um_ caracol onde ressoa a masica do
mundo e metros e rimas sio apenas cortespondéncias, ecos, da
harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelagao, danga,
didlogo, mondlogo. Voz do povo, ingua dos escolhidos, palavra do
solitario, Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritaria,
coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta to-
dos os rostos mas ha quem afirme que nao possui nenhum: 0
poema é uma mascara que oculta o vazio, bela prova da supérflua
grandeza de toda obra humana!
‘Como nao reconhecer em cada uma dessas formulas 0 poeta que
a justifica e que, ao encarnécla, Ihe dé vida? Expresses de uma coisa
vvivenciada ¢ padecida, nio temos outra safda senao aderir a clas ~
condenados a trocar a primeira pela segunda‘e esta pela seguinte.
Sua propria autenticidade mostra que a experiéncia que justificacada um desses conceitos os transcende. Ser preciso, entio, inter-
rogar os testemunhos diretos da experiéncia poética. A unidade da
poesia s6 pode ser captada pelo trato nu.com o poema,
Ao indagar do poema o ser da poesia, nio estaremos confun-
dindo arbitrariamente poesia e poema? Aristételes ja dizia que
“nada hé em comum entre Homero e Empédocles exceto a métrica;
€ por isso, com justica, 0 primeiro é chamado poeta e o segundo
fisi6logo".E de fato: nem todo poema ~ou, para ser exato, nem toda
obra construfda de acordo com as leis do metro contém poesia.
‘Mas essas obras métricas sio verdadeiros poemas ou sio artefatos
artisticos, didaticos ou retéricos? Um soneto nao ¢ um poema,e
sim uma forma literaria, exceto quando esse mecanismo retérico —
estrofes, metros e rimas ~foi tocado pela poesia. Ha miquinas de
rimar, mas ndo de poetizar. Por outro lado, ha poesia sem poemas;
paisagens, pessoas ¢ fatos muitas vezes sao poéticos: 20 poesia
sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia se d& como conden-
sagio do acaso ou é uma cristalizacio de poderes ¢ citcunstincias
alheios 4 vontade criadora do poeta, deparamos com 0 poético,
Quando = passivo ou ativo, acordado ou sondmbulo~0 poeta é 0
fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na pre-
senga de uma coisa radicalmente diferente: uma obra. Um poema
éuma obra. A poesia se polariza, congrega ¢ isola em um produto
humano: quadro, cancio, tragédia. O poético é poesia em estado
amorfo; 0 poema é criagao, poesia erguida. $6 no poema a poesia se
isola e se revela plenamente. £ Keito perguntar a0 poema pelo ser
dda poesia se deixamos de conceber este tiltimo como uma forma ca-
paz de ser preenchida com qualquer contetido, 0 pocma nao é uma
forma literéria, mas o ponto de encontro entre a poesia eo homem,
Poema é um organismo verbal que contém, suscita ow emite poesia.
Forma e substincia sio a mesma coisa.
‘Nem bem desviamos os olhos do poético para fixi-los no poema,
somos surpreendidos pela multidao de formas que assume esse set
que pensavamos tinico. Como captar a poesia, se cada poema se
apresenta como algo diferente e irredutivel? A cigncia da literatura
pretende reduzir a vertiginosa pluralidade do poema a géneros. Por
sua propria natureza, essa tentativa padece de dupla insuficiéncia.
Se reduzirmos a poesia a umas poucas formas ~épicas,liicas, dra-
maticas -, o que faremos com os romances, os poemas em prosa, ¢
esses livros estranhos que se chamam Aurélia, Os cantos de Maldoror
ou Nadja? Se aceitarmos todas as excegSes e formas intermedisrias ~
decadentes, selvagens ou proféticas - a classificagio se transforma
em um catélogo infinito, Todas as atividades verbais, para nio sait
do ambito da linguagem, sfo suscetiveis de mudar de indole e trans-
formar-se em poema: da interjeigio até o discurso l6gico. Essa nao
€a inica limitagio, nem a mais grave, das classificagSes da retorica.
Classificar nao é entender. E menos ainda compreender. Como
todas as classificacbes, as nomenclaturas sio instrumentos de tra-
balho. Mas so instrumentos que se mostram sem utilidade quando
ueremos usé-los em tarefas mais sutis quea mera ordenacio extern:
Grande parte da critica nao passa de uma aplicagao ingénua e abusiva
das nomenclaturas radicionais.
‘Acusagio semelhante deve ser feita As outras disciplinas utiliza-
das pela critica, da estilistica& psicanslise. A primeira pretende di-
zet-nos o que é um poema por meio do estudo dos habitos verbais
do poeta. A segunda, da interpretagao de seus simbolos. O método
estilistico pode ser aplicado tanto a Mallarmé como a uma coletanea
de versos de almanaque. O mesmo acontece com as interpretagées
dos psicélogos, as biogeafias e outros estudos com que algumas pes-
s0as tentam,¢ is vezes conseguem, explicar-nos 0 porqué,o como e
0 para qué foi escrito um poema.A retbrica,a estilistica,a sociologia,
a psicologia e as demais disciplinas literdrias si0 imprescindiveis se
quisermos estudar uma obra, mas nada podem nos dizer quanto a
sua natureza dltima.
‘A dispersio da poesia em mil formas heterogéneas poderia incitar-
-nos.a construir um tipo ideal de poema.O resultado seria um monstro
ou um fantasma. A poesia nao é a soma de todos os poemas. Cada
criacdo poética é uma unidade autossuficiente. A parte é 0 todo.
Cada poema é tinico, irredutivel inigualivel. E, assim, sentimo-nos
2inclinados a concordar com Ortega y Gasset: nada justifica que se
designem com 0 mesmo nome objetos tao diversos como os sone-
tos de Quevedo, as fébulas de La Fontaine e o Cnticoespiritual.
Essa diversidade se oferece, a primeira vista, como filha da his-
t6ria. Cada lingua e cada nacdo geram a poesia que o momento e
seu génio particular lhes ditam. Mas 0 critério histérico nao resolve:
ele multiplica os problemas. No interior de cada periodo e de cada
sociedade reina a mesma diversidade: Nerval e Hugo s3o contem-
poraneos, assim como Velazquez e Rubens, Valéry e Apollinaire. Se
€ por um mero abuso de linguagem que aplicamos 0 mesmo nome
aos poemnas védicos e ao haicaijaponés, nao seré também um abuso
utilizar o mesmo substantivo para designar experiéncias tio di-
versas como as de Sao Joao da Cruz e seu modelo profano indireto:
Garcilaso? A perspectiva hist6rica —consequéncia de nosso fatal
distanciamento —nos leva a uniformizar paisagens ricas em anta-
gonismos e contrastes. A distancia nos faz esquecer as diferencas
que separam S6focles de Euripides, Tirso de Lope. E tais diferen-
gas nao sao fruto das variag6es histéricas, mas de algo muito mais,
sutil e inapreciavel: a pessoa humana. Entio, nao é tanto a ciéncia
historica, mas a biografia, que poderia oferecer-nos a chave da com-
preensio do poema. E aqui surge um novo obsticulo: no interior
da produgao de cada poeta, cada obra também é tinica, isolada e
irredutivel. A Galateia ou a Viagem ao Parnaso no explicam o Dom
Quixote da Mancha; Ifigénia é algo substancialmente diferente de
Fausto; Fuente Ovejuna, de Doroteia, Cada obra tem vida propria, as
Ecogas nao sao a Eneida. As vezes, uma obra nega a outta: o prefi-
cio &s poesias nunca publicadas ~de Lautréamont langa uma luz
‘equivoca sobre Os cantas de Maldoror, Uma estadia no inferno declara
loucura.a alquimia do verbo de Tluminagées.A histdria ea biografia
podem nos proporcionar a tonalidade de um perfodo ou de uma
vida, desenhar as fronteiras de uma obra e descrever externamente
aconfiguracao de um estilo; também sao capazes de esclarecer o sen-
tido geral de uma tendéncia e até de revelar-nos o porguée o como
de um poema. Mas nao podem dizer-nos o que é um pogma.
CO tinico ponto em comum de todos os poemas consiste em que