Você está na página 1de 8
blo:) INTRODUCAO »3) Poesia e poema ‘A poesia é conhecimento, salvage, poder, abandono. Operago capaz de mudar 0 mundo, a atividade poética é revolucionaria por natu reza; exercicio espiritual, é um método de libertagio interior. A poe- sia revela este mundo; cia outro, Pio dos escolhidos;alimento mal- ‘dito. Isola; une. Convite a viagem; retorno & terra natal. Inspiracio, respiracio, exercicio muscular. Preve ao vazio,dialogo coma ausén- cia: otédio,a anglistia ¢ 0 desespero a alimentam. Oragio, adainha, epifania, presenca. Exorcismo, conjuro, magia, Sublimago, com- pensagio, condensacio do inconsciente. Expressio historica de ragas,nagSes, classes, Nega a historia: em seu seiotodos os conflitos objetivos se resolver e o homem finalmente toma consciéncia de ser mais que passagem. Experiéncia, sentimento, emocio, intuigio, pensamento nio ditigido. Filha do acaso; fruto do céleulo. Arte de falar de uma forma superior; linguagem primitiva. Obediéncia as regras;criagao de outras. Imitagao dos antigos,c6pia do real, cépia de uma c6pia da ideia, Loucura, éxtase, logos. Retorno a infancia, coito, nostalgia do paraiso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, ati- vidade ascética. Confissio. Experiéncia inata. Visio, miésica, sim- bolo. Analogia: 0 poema é um_ caracol onde ressoa a masica do mundo e metros e rimas sio apenas cortespondéncias, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelagao, danga, didlogo, mondlogo. Voz do povo, ingua dos escolhidos, palavra do solitario, Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritaria, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta to- dos os rostos mas ha quem afirme que nao possui nenhum: 0 poema é uma mascara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana! ‘Como nao reconhecer em cada uma dessas formulas 0 poeta que a justifica e que, ao encarnécla, Ihe dé vida? Expresses de uma coisa vvivenciada ¢ padecida, nio temos outra safda senao aderir a clas ~ condenados a trocar a primeira pela segunda‘e esta pela seguinte. Sua propria autenticidade mostra que a experiéncia que justifica cada um desses conceitos os transcende. Ser preciso, entio, inter- rogar os testemunhos diretos da experiéncia poética. A unidade da poesia s6 pode ser captada pelo trato nu.com o poema, Ao indagar do poema o ser da poesia, nio estaremos confun- dindo arbitrariamente poesia e poema? Aristételes ja dizia que “nada hé em comum entre Homero e Empédocles exceto a métrica; € por isso, com justica, 0 primeiro é chamado poeta e o segundo fisi6logo".E de fato: nem todo poema ~ou, para ser exato, nem toda obra construfda de acordo com as leis do metro contém poesia. ‘Mas essas obras métricas sio verdadeiros poemas ou sio artefatos artisticos, didaticos ou retéricos? Um soneto nao ¢ um poema,e sim uma forma literaria, exceto quando esse mecanismo retérico — estrofes, metros e rimas ~foi tocado pela poesia. Ha miquinas de rimar, mas ndo de poetizar. Por outro lado, ha poesia sem poemas; paisagens, pessoas ¢ fatos muitas vezes sao poéticos: 20 poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia se d& como conden- sagio do acaso ou é uma cristalizacio de poderes ¢ citcunstincias alheios 4 vontade criadora do poeta, deparamos com 0 poético, Quando = passivo ou ativo, acordado ou sondmbulo~0 poeta é 0 fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na pre- senga de uma coisa radicalmente diferente: uma obra. Um poema éuma obra. A poesia se polariza, congrega ¢ isola em um produto humano: quadro, cancio, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; 0 poema é criagao, poesia erguida. $6 no poema a poesia se isola e se revela plenamente. £ Keito perguntar a0 poema pelo ser dda poesia se deixamos de conceber este tiltimo como uma forma ca- paz de ser preenchida com qualquer contetido, 0 pocma nao é uma forma literéria, mas o ponto de encontro entre a poesia eo homem, Poema é um organismo verbal que contém, suscita ow emite poesia. Forma e substincia sio a mesma coisa. ‘Nem bem desviamos os olhos do poético para fixi-los no poema, somos surpreendidos pela multidao de formas que assume esse set que pensavamos tinico. Como captar a poesia, se cada poema se apresenta como algo diferente e irredutivel? A cigncia da literatura pretende reduzir a vertiginosa pluralidade do poema a géneros. Por sua propria natureza, essa tentativa padece de dupla insuficiéncia. Se reduzirmos a poesia a umas poucas formas ~épicas,liicas, dra- maticas -, o que faremos com os romances, os poemas em prosa, ¢ esses livros estranhos que se chamam Aurélia, Os cantos de Maldoror ou Nadja? Se aceitarmos todas as excegSes e formas intermedisrias ~ decadentes, selvagens ou proféticas - a classificagio se transforma em um catélogo infinito, Todas as atividades verbais, para nio sait do ambito da linguagem, sfo suscetiveis de mudar de indole e trans- formar-se em poema: da interjeigio até o discurso l6gico. Essa nao €a inica limitagio, nem a mais grave, das classificagSes da retorica. Classificar nao é entender. E menos ainda compreender. Como todas as classificacbes, as nomenclaturas sio instrumentos de tra- balho. Mas so instrumentos que se mostram sem utilidade quando ueremos usé-los em tarefas mais sutis quea mera ordenacio extern: Grande parte da critica nao passa de uma aplicagao ingénua e abusiva das nomenclaturas radicionais. ‘Acusagio semelhante deve ser feita As outras disciplinas utiliza- das pela critica, da estilistica& psicanslise. A primeira pretende di- zet-nos o que é um poema por meio do estudo dos habitos verbais do poeta. A segunda, da interpretagao de seus simbolos. O método estilistico pode ser aplicado tanto a Mallarmé como a uma coletanea de versos de almanaque. O mesmo acontece com as interpretagées dos psicélogos, as biogeafias e outros estudos com que algumas pes- s0as tentam,¢ is vezes conseguem, explicar-nos 0 porqué,o como e 0 para qué foi escrito um poema.A retbrica,a estilistica,a sociologia, a psicologia e as demais disciplinas literdrias si0 imprescindiveis se quisermos estudar uma obra, mas nada podem nos dizer quanto a sua natureza dltima. ‘A dispersio da poesia em mil formas heterogéneas poderia incitar- -nos.a construir um tipo ideal de poema.O resultado seria um monstro ou um fantasma. A poesia nao é a soma de todos os poemas. Cada criacdo poética é uma unidade autossuficiente. A parte é 0 todo. Cada poema é tinico, irredutivel inigualivel. E, assim, sentimo-nos 2 inclinados a concordar com Ortega y Gasset: nada justifica que se designem com 0 mesmo nome objetos tao diversos como os sone- tos de Quevedo, as fébulas de La Fontaine e o Cnticoespiritual. Essa diversidade se oferece, a primeira vista, como filha da his- t6ria. Cada lingua e cada nacdo geram a poesia que o momento e seu génio particular lhes ditam. Mas 0 critério histérico nao resolve: ele multiplica os problemas. No interior de cada periodo e de cada sociedade reina a mesma diversidade: Nerval e Hugo s3o contem- poraneos, assim como Velazquez e Rubens, Valéry e Apollinaire. Se € por um mero abuso de linguagem que aplicamos 0 mesmo nome aos poemnas védicos e ao haicaijaponés, nao seré também um abuso utilizar o mesmo substantivo para designar experiéncias tio di- versas como as de Sao Joao da Cruz e seu modelo profano indireto: Garcilaso? A perspectiva hist6rica —consequéncia de nosso fatal distanciamento —nos leva a uniformizar paisagens ricas em anta- gonismos e contrastes. A distancia nos faz esquecer as diferencas que separam S6focles de Euripides, Tirso de Lope. E tais diferen- gas nao sao fruto das variag6es histéricas, mas de algo muito mais, sutil e inapreciavel: a pessoa humana. Entio, nao é tanto a ciéncia historica, mas a biografia, que poderia oferecer-nos a chave da com- preensio do poema. E aqui surge um novo obsticulo: no interior da produgao de cada poeta, cada obra também é tinica, isolada e irredutivel. A Galateia ou a Viagem ao Parnaso no explicam o Dom Quixote da Mancha; Ifigénia é algo substancialmente diferente de Fausto; Fuente Ovejuna, de Doroteia, Cada obra tem vida propria, as Ecogas nao sao a Eneida. As vezes, uma obra nega a outta: o prefi- cio &s poesias nunca publicadas ~de Lautréamont langa uma luz ‘equivoca sobre Os cantas de Maldoror, Uma estadia no inferno declara loucura.a alquimia do verbo de Tluminagées.A histdria ea biografia podem nos proporcionar a tonalidade de um perfodo ou de uma vida, desenhar as fronteiras de uma obra e descrever externamente aconfiguracao de um estilo; também sao capazes de esclarecer o sen- tido geral de uma tendéncia e até de revelar-nos o porguée o como de um poema. Mas nao podem dizer-nos o que é um pogma. CO tinico ponto em comum de todos os poemas consiste em que

Você também pode gostar