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MEMÓRIA E

HISTÓRIA ORAL

Autoria: Graciela Márcia Fochi

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Ivan Tesck

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Prof.ª Bárbara Pricila Franz
Prof.ª Tathyane Lucas Simão
Prof.ª Kelly Luana Molinari Corrêa
Prof. Ivan Tesck

Revisão de Conteúdo: Rubia Carla Erthal de Souza


Revisão Gramatical: Iara de Oliveira
Revisão Pedagógica: Bárbara Pricila Franz

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI
Copyright © UNIASSELVI 2017
Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial.

709
F652m Fochi, Graciela Márcia
Memória e história oral / Graciela Márcia Fochi. Indaial :
UNIASSELVI, 2017.

135 p. : il.

ISBN 978-85-69910-41-1

1. Arte – História.
I. Centro Universitário Leonardo da Vinci
Graciela Márcia Fochi

Possui mestrado em Patrimônio Cultural


e Sociedade pela Universidade da Região de
Joinville/UNIVILLE (2011), no qual apresentou a
pesquisa Morte, Cemitérios e Jazigos: um estudo
do Cemitério Municipal de Joinville/SC; graduação em
História pela Universidade de Passo Fundo/UPF (2003).
Atua como docente no curso de História, Filosofia e Serviço
Social, na modalidade EAD da Uniasselvi, nas disciplinas de
Ética, Política e Sociedade e Homem, Cultura e Sociedade
nos cursos de Engenharia Civil, Engenharia Elétrica e
Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Leonardo
da Vinci. Possui experiência em cursos de formação
continuada de professores, como docente em curso de
pós-graduação e na educação básica, educação inclusiva/
especial e educação de jovens e adultos/EJA. Atualmente,
estuda e pesquisa temas de morte e cemitérios, patrimônio
histórico e cultural, memória e identidade na região do
Vale do Itajaí-SC. Realizou estágio junto ao Museu de
História e Artes, participou de projetos de levantamentos
antropológicos junto a comunidades remanescentes de
quilombos, atuou como bolsista/pesquisadora para os
temas de produção do conhecimento e didática da
História, relações interétnicas, genealogia e história
oral, patrimônio histórico e cultural (material e
imaterial). Endereço para acessar este CV: http://
lattes.cnpq.br/3683103831654119
Sumário

APRESENTAÇÃO.......................................................................7

CAPÍTULO 1
História, Tempo e Memória......................................................9

CAPÍTULO 2
Memória Individual e Memória Coletiva...............................41

CAPÍTULO 3
Os Ditos e Não Ditos, os Usos e Abusos
na História Oral......................................................................71

CAPÍTULO 4
Memória e História Oral: A Pesquisa, Aspectos
Metodológicos e Éticos......................................................103
APRESENTAÇÃO
Estudar e analisar a memória e a história oral, apropriar-se das conceituações
e dos pressupostos teórico-metodológicos não representam um ofício nada
simples e sistemático, mas não é impossível, pelo contrário, é desafiador. O estudo
requer conhecer as referências historiográficas que tratam e problematizam o
tema, como, por exemplo, os profissionais da história e os métodos/técnicas de
sensibilização, abordagem, registro e captação.

O momento da realização de atividades com história oral e a memória exige


do pesquisador sensibilidade e cuidados éticos, desde o ato de despertar, acessar
até o manejar e o cuidar das lembranças e das memórias que os indivíduos se
dispuseram a compartilhar. Quando a fala do entrevistado flui e se concatena com
as imagens que ele possui do passado, quando o pensamento se ilumina e clareia,
quando os objetivos, as perguntas, as questões começam a ser respondidas e
reveladas, esse é momento clímax. Comove, fascina, é sublime... parece que
a audição experimenta as emoções e as sensações de pleno encantamento e
êxtase...é sagrado... eis a recompensa!

Porém, tratam-se de momentos e experiências que não possuem muita


relevância em meio à sociedade na qual nos encontramos inseridos, que é
caracterizada por contradições, desigualdades, inversão de valores, extremismos,
intolerâncias, desafetos e desencantos. Presencia-se a fugacidade e a liquidez do
tempo e das relações humanas, o encurtamento das distâncias espaciais, o que,
por sua vez, não significa aproximações emocionais e sociais, antes cadenciam
o enfraquecimento das tradições e servem de aporte à fragmentação de
identidades. Surgem grupos, espécies de nichos que formam mônodas, ilhas de
diferenciação e distinção dos indivíduos em meio ao coletivo, tais como feministas,
ambientalistas, vegetarianos, separatistas, neonazistas ou neofacistas.

Este cenário cada vez mais consolidado e expandido em meio às sociedades,


impinge suas marcas. A lógica racional e instrumental da globalização pretende
homogeneizar e pasteurizar o desejo de consumo, os traços culturais, as
experiências locais e regionais, bem como promover a obsolescência e a
superação descartável de objetos e utensílios que fizeram e fazem parte do
cotidiano, do viver e conviver dos indivíduos. Sendo assim, a memória tende a
desaparecer gradualmente. O fato de ela ser socialmente mencionada e cogitada
indica que a memória já não ocorre mais, de que está ausente e que não compõe
as relações humanas e a experiência dos indivíduos.

Benjamin (1994, p. 228) escreveu, no começo do século XX, que “o dom


de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do
historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se
o inimigo vencer”. Borges (2000, p. 64) disse que “o passado é indestrutível, mais
cedo ou mais tarde as coisas retornam, e uma coisa que sempre volta é o projeto
de destruir o passado”.

Então, para você, pós-graduando(a) e profissional da história, ao


pesquisador da memória e história oral é lançado o desafio de lembrar aos outros
o que esqueceram e continuam esquecendo, juntar os fragmentos dispersos
de lembranças, memórias, fatos, acontecimentos e movimentos; o que está
condenado ao silêncio, acordar os mortos, rememorar, desvencilhar as memórias
e o passado das quinquilharias e das forças que os mantém soterrados.

Ao longo do caderno de estudos você encontrará quatro capítulos que


almejam alcançar determinados objetivos. Veja:

• Capítulo 1 (história, tempo e memória): serão apresentadas as concepções/


categorias teóricas e referências historiográficas que compõem e
acompanham os conceitos e temas de história, tempo, memória e história
oral; será possível constatar a dinâmica e a abordagem que os conceitos
relacionados ao campo da história, memória e história oral receberam em
outras épocas e em diferentes sociedades.
• Capítulo 2 (memória individual e memória coletiva): serão problematizados
os principais significados atribuídos à memória coletiva e individual, pública
e privada, bem como a relação existente entre memória e as representações
sociais e políticas; serão descritas as expressões, manifestações, espaços
e lugares depositários da memória, do patrimônio histórico e cultural e dos
bens simbólicos e imateriais.
• Capítulo 3 (ditos e não ditos, usos e abusos na história oral): serão
avaliadas as relações de codependência e/ou conflitos que existem entre
as concepções de tradição e modernidade, novo e velho/antigo, testemunho
(ver) e relato (ouvir), silêncio e repetição, lembrança e esquecimento,
subjetividade e fragilidade, memória e imaginário; será abordado o campo
de forças ideológicas e culturais que perpassam e forjam os interesses e os
sentidos que são atribuídos à memória e às identidades.
• Capítulo 4 (história oral: aspectos metodológicos e éticos): arrolar-se-á os
principais procedimentos metodológicos que são utilizados na realização da
pesquisa em história oral, ou seja, a estruturação de questionários/entrevistas
e os trâmites/cuidados éticos; ilustrar-se-á as principais formas de registro,
sistematização, discurso/narrativa e comunicação do conhecimento histórico
produzido a partir das fontes da história oral.

Deseja-se uma construtiva e satisfatória jornada de estudos pela frente.

Cordialmente,
A autora.
C APÍTULO 1
História, Tempo e Memória

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Definir as concepções/categorias teóricas e as referências historiográficas que


compõem e acompanham os conceitos/temas de história, tempo, memória e
história oral.

 Apresentar, de forma problematizada, a dinâmica que os conceitos relacionados


ao campo da história, da memória e da história oral receberam em outras
épocas e em diferentes sociedades.

 Relacionar as principais abordagens, relevâncias e finalidades que a


historiografia contemporânea atribui à história, ao tempo e à memória.
Memória e História Oral

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Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

ConteXtualiZaÇão
Felix (1998) discute que, quando perguntamos no presente pelo passado,
a história tende a responder diante da inquietude da busca do sentido de nossa
vida individual e da coletividade. Cada época faz as suas próprias perguntas ao
passado e essas perguntas traduzem a essência dos problemas e da perplexidade
em que o presente se debate.

A velocidade e a liquidez do tempo, verificadas no conjunto das relações


humanas no espaço de trabalho e nos espaços de convívio social, são responsáveis
também por influenciar as relações do homem com ele mesmo, do homem com a
natureza e do homem com sua espiritualidade. As descontinuidades, as rupturas, a
fragmentação do tempo passado e a aceleração do tempo presente desencadeiam
um processo de desreferencialização que, em um determinado momento, toma
de assalto os indivíduos quando se veem sem referências imediatas, fazendo com
que estes questionem a sua inserção social, sintam necessidade de identificar
laços comuns e criar lugares de memória comuns/coletivos que preencham o
vazio, que aplaquem a sensação de insegurança, que confiram afeto, conforto,
senso de beleza, harmonia e que os humanizem sensivelmente.

As indagações pelo sentido da origem, da condição humana e de sua


trajetória estão na base da explicação que confere sentido e relevância ao fazer
histórico. Nesse contexto, a memória, como saber-investigação-testemunho,
representa um dos aportes essenciais ao encontrar-se, ressignificar-se, refazer-
se e superar-se diante de momentos de crise, tanto em situações particulares
quanto coletivas.

A DinÂmica do Conceito de História


“História, corpo do tempo”.
José Honório Rodrigues

Le Goff (1990) apresenta que a palavra história é oriunda do grego antigo,


da expressão historie, que pertence primeiramente ao dialeto jônico e que tem
sua raiz na palavra indo-europeia wid (weid), que designa a capacidade de ver.
No sânscrito, no dialeto indo-árico do norte da Índia, a expressão tem como
correspondente a palavra vettas, que designa testemunha e, no grego histor,
que designa, também, testemunha, cuja decodificação significa aquele que vê.
A síntese dessas expressões está na visão, considerada a fonte essencial de
conhecimento.

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Memória e História Oral

Heródoto (1985) apresenta que o termo historein, no grego antigo, já


incorporava a designação de procurar saber, informar-se, que solicitava o ofício
de investigar e, por consequência, instaurou o primeiro ofício e problema real ao
profissional da história, que é o de investigar, procurar, verificar e saber.

Nas línguas românicas, que se desenvolveram posteriormente, a história


adquiriu até três conceitos diferentes. Todos partem das teorizações apresentadas
por Heródoto e reforçam a ideia de que consiste na procura das ações realizadas
pelos homens, reforçando a necessidade de construí-la como uma ciência,
a ciência histórica propriamente dita. Outro sentido é o da narração, no qual
o repertório de referências do historiador é empregado, uma vez que é nesse
aspecto que se cadenciam as discussões sobre parcialidade e imparcialidade,
verdade e farsa/fábula histórica.

Le Goff (1990) apresenta que o problema de verdade versus não verdade,


história versus farsa/fábula, não ocorre na língua inglesa. Os termos history
(história) e story (conto ou ficção) desfazem este impasse e ausentam o
conhecimento histórico de maiores discussões e implicações epistemológicas.
Outras línguas europeias esforçam-se por evitar esta ambiguidade. O italiano,
por exemplo, utiliza da palavra storiografia para designar a ciência histórica. O
alemão estabelece a diferença entre a atividade científica (geschichtschreibung) e
a ciência histórica propriamente dita (geschichtswissenschaft).

Bosi (1994) reforça que, na cultura grega, ocorria uma síntese plástica entre
as instâncias da linguagem, do ver e do pensar. Contavam com a palavra eidos,
que designava forma ou figura e que, por sua vez, possui afinidade coma palavra
idea do latim. No latim, a expressão vídeo (eu vejo) e idea ilustram a síntese
grega. Quando conjugadas e interpretadas, ambas sugerem a concepção de
história como uma visão-pensamento que aconteceu.

Uma questão em que as discussões entre história e lenda estão presentes,


é sobre a fundação e povoamento das cidades e a formação dos
Clio a patrona/
primeiros governos. Roma talvez possua o exemplo mais expressivo
musa da história,
Heródoto, o pai da dessa questão, inclusive, relacionado com a própria noção de história,
história. que também possui uma versão mitológica (Clio a patrona/musa da
história) e uma versão histórica (Heródoto, o pai da história).

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Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

Figura 1 - Clio, de Pierre Mignard, século XVII

Disponível em: <http://goo.gl/cWrmTa>. Acesso em: 20 fev. 2016.

Na mitologia grega existe Clio, que é filha de Zeus/Júpiter (deus dos deuses)
e Mnemósine (deusa da memória). Clio deriva da palavra grega “celebrar” e, pelo
fato de cantar a glória dos guerreiros e as conquistas de um povo, tornou-se a
patrona da história.

O fato de Heródoto de Halicarnasso ser considerado o pai da história,


justifica-se quando no escrito de seu livro I expressa a seguinte declaração:

Os resultados das investigações de Heródoto de Halicarnasso


são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos
não se apague entre os homens com o passar do tempo e para
que os feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos
bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões
pelas quais eles guerrearam (HERÓDOTO, 1985, p. 19).

Heródoto de Halicarnasso manifestava preocupação com o fato de que os


acontecimentos humanos estão fadados ao esquecimento. Entendia que era
necessário distinguir os fatos e feitos humanos dos demais seres e coisas da
natureza. Felix (1998) aponta que desde a Grécia antiga estavam postuladas as
categorias fundamentais que recaem até hoje sobre o conhecimento histórico.
Veja:
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Memória e História Oral

Caro(a) pós-graduando(a), observe abaixo as categorias


históricas que foram defendidas ainda na Grécia antiga:

• A história é constituída de relato e narração.


• A finalidade da história é que a memória dos acontecimentos não
se apague.
• A história é temporal, baseada na sucessão de épocas e sociedades.
• Existe um contraponto na história entre subjetividade e objetividade.

Le Goff (1990) escreve que o saber ocidental parte do pressuposto de que


a história nasceu com os gregos. Essa tese se encontra veiculada a motivação
e necessidade em distinguir os gregos dos povos bárbaros, ou seja, trata-se de
uma noção de diferenciação de desenvolvimento civilizacional.

Hartog (2013) ilustra a questão, apontando que Heródoto considerava os


líbios, os egípcios e, principalmente, os citas e os persas, os bárbaros de seu
tempo. Isso, por sua vez, transferia aos povos não gregos certo olhar étnico
de diferenciação. Le Goff (1990) explica que, para os gregos, o nomadismo
dos povos citas os inferiorizava como povo e civilização. Na perspectiva de
julgamento grega, noção de fronteira, de imperialismo e hegemonia não podem
ser desconsideradas. Na concepção de mundo dos gregos, os líbios, egípcios,
citas e persas, ou melhor, os estrangeiros, representavam a barbárie. Os citas
que atravessavam a fronteira e se aproximavam da civilização foram mortos.

Arendt (1992) argumenta que o surgimento da historiografia na história


ocidental acontece na antiguidade, quando ocorre a necessidade de distinguir
a mortalidade dos homens da imortalidade dos seres da natureza, baseado na
percepção das coisas que existiam por si mesmas na natureza e as que haviam
sido feitas pelo homem, conforme é possível identificar na passagem abaixo:

Todas as coisas que devem a sua existência aos homens,


tais como obras, feitos e palavras, são perecíveis, como que
contaminadas com a mortalidade de seus autores. Contudo,
se os mortais conseguissem dotar suas obras, feitos e palavras
de alguma permanência, e impedir sua perecibilidade, então
essas coisas ao menos em certa medida entrariam no mundo
da eternidade e aí estariam em casa, e os próprios mortais
encontrariam seu lugar no cosmo, onde todas as coisas são
imortais, exceto os homens (ARENDT, 1992, p. 72.)

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Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

Na obra intitulada a Ideologia Alemã, de 1846, Marx (1818-1883) e Engels


(1820-1895) abordam as bases do materialismo histórico e procuram defender
que o homem é fruto do seu trabalho e das relações de produção, mas não da
vida espiritual. Para Marx e Engels (2010), o trabalho diferencia e distingue os
seres humanos das outras espécies. A concepção de história defendida por Marx
e Engels reside na vida material, no modo de produção e na estruturação da
sociedade civil.

O historicismo, corrente historiográfica que prevaleceu na segunda metade


do século XIX, dedicou-se especialmente a formular, pela primeira vez, a ideia
da interpretação histórica como sendo a operação essencial do pesquisador. A
interpretação histórica consistia em transformar os dados empíricos em fatos
históricos, tecê-los em uma narrativa erudita uniforme e linear.

Dosse (2003) discute que no século XIX, em meio às concepções metódicas


e historicistas, prevaleceu uma noção de que o bom historiador era o que
expressava amor e devoção ao trabalho, que deveria ser realizado com modéstia
e profunda erudição, baseado em critérios incontestáveis de julgamento científico
e controle da subjetividade, obtidos a partir da pesquisa para épocas distantes do
presente.

O movimento dos annales, a partir do século XX, dedicou-se à crítica da


historiografia historicista, retomando a noção grega de história, ou seja, que a
história constitui uma interpretação do passado que se dá a partir do presente.
O aporte teórico e referencial dos estudiosos dos annales foi Benedetto Croce
(1866-1952), responsável por escrever La storia come pensiero e come azione (A
história como pensamento e como ação).

Croce (1962) explica que, por mais afastados no tempo que pareçam os
acontecimentos, a história liga-se e encontra-se legitimada às necessidades e às
situações presentes, nas quais esses acontecimentos têm ressonância e impacto
na realidade. De fato, Croce (1962) pensa que a partir do momento em que os
acontecimentos históricos podem ser repensados constantemente, deixam de
estar no tempo de forma aleatória e gratuita, pois, quando tomados aos estudos
e à inteligibilidade pela história, fatos e acontecimentos adquirem caráter de
conhecimento do eterno presente.

Para Felix (1998, p. 27):

A polissemia da palavra história permite que seja entendida


como: ciência ou disciplina do acontecido, isto é, história-
conhecimento; história como notícia dos fatos e história
como fatos acontecidos, ou seja, história-processo. Os fatos
históricos (em sua dimensão individual ou agrupados em

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Memória e História Oral

dimensões conjunturais e estruturais), objetos da história-


conhecimento, foram percebidos e analisados diferentemente
ao longo da trajetória da história-processo, permitindo, assim,
a existência de um campo próprio do conhecimento histórico
voltado para sua análise: a historiografia, à qual compete
examinar as diferentes formas de conceber e escrever a história
nos espaços e tempos. A história como conhecimento, isto é,
como operação intelectual, envolve registro, distanciamento,
problematização do objeto, crítica e reflexão.

Ginzburg (1991 apud PALLARES-BURKE, 2000) afirma que a história é como


a química antes de Boyle ou a Matemática antes de Euclides, ou seja, não houve
um Galileu ou Newton que criasse um paradigma da história, e talvez jamais haja.
Os historiadores podem dizer muitas coisas distintas e conflitantes, mas ainda
assim serem considerados profissionais da história.

Hegel (1798 apud NICOLA, 2005), dizia que a coruja de minerva


A coruja de minerva
alça seu voo ao alça seu voo ao crepúsculo, ou seja, o pássaro da história alcança
crepúsculo. seu voo quando a noite estiver caída, quando o presente estiver
definitivamente morto. Os historiadores do século XIX defendiam
que a história só nasce para uma época quando ela está inteiramente morta. A
partir da renovação do pensamento histórico, em especial da história nova dos
anos de 1970, a incumbência do historiador do presente está em fazer, de forma
consciente, o passado manifestar-se no presente, ao invés de fazer o presente se
manifestar no passado. Nesse processo apela à memória para renovar e ampliar
o campo da história contemporânea.

O Sentido da História
“Para quem não tenha a alma pequena e vil, a experiência
da história é de uma grandeza que nos aniquila”.
Henri-Irenée Marrou

Mesmo em meio a terreno incerto, é possível enumerar algumas definições


que são historicamente legitimadas, que auxiliam no momento da experiência
profissional e que justificam o conhecimento válido.

Buscar o sentido da história é uma questão difícil, por isso, acaba


embaraçando muitos estudiosos, não somente historiadores, mas também
filósofos, pois na tentativa de apresentar respostas imediatas e eficientes, há risco
de cair em definições simplistas, mecânicas e reducionistas. Por muito tempo
a história foi definida como sendo um saber de natureza particular, que ocorre
apenas uma vez, ou seja, um fato único, um acontecimento que não se repete,
porém foi reelaborada e mais contemporaneamente se tornou consenso entre os

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Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

historiadores, assim como das demais ciências que tratam do estudo do passado.

Dosse (2003) reflete, dizendo que a disciplina de história constitui um


conhecimento indireto, um saber que só chega, é captado e compreendido
por meio de vestígios; e o que se faz é tentar preencher os vestígios em suas
ausências. O passado é um conceito que pertence a uma temporalidade, o qual
se encontra, de forma aleatória, desorganizado ou até sobreposto e que, por
sua vez, pode ser transformado e sistematizado em conhecimento por meio das
perguntas/problemas e das concepções teóricas/metodológicas, atribuídas a ele
pelos pesquisadores/estudiosos.

Le Goff (1990) descreve que os historiadores da antiguidade, quando estavam


debruçados sobre as histórias de suas civilizações, impérios, povos e cidades,
acreditavam estar dando conta de toda a história da humanidade. Os historiadores
da época medieval, em sua maioria cristãos, dedicavam-se a escrever a história
de deus, dos santos e da própria igreja. Os estudiosos do renascentismo e do
iluminismo estavam convictos de que pesquisavam a história do homem. Já
os pesquisadores da modernidade, entendiam que a história consistia em uma
ciência em evolução, preocupando-se com a evolução das sociedades humanas.

O teórico revolucionário do movimento comunista, Karl Marx (1818-1883),


em suas reflexões sobre as teorias da história, descrevia que os homens são
os responsáveis por fazer a sua própria história, mas devem estar atentos,
pois existem condições e estruturas herdadas do passado, que influenciam e
determinam o agir e o viver no presente. Júlio de Castilhos (1860-1903), político
que se manteve atuante por muitos anos no Estado do Rio Grande do Sul pela
vertente política do positivismo, gravou na lápide de seu jazigo no cemitério da
Santa Casa da Misericórdia, na cidade de Porto Alegre/RS, a seguinte frase: “os
vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”.

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Memória e História Oral

Figura 2 - Jazigo de Júlio de Castilhos

Disponível em: <http://goo.gl/91eqkv>. Acesso em: 21 fev. 2016.

Ambos, pertencendo ao mesmo momento histórico, porém em contextos


políticos e ideológicos diferentes, apresentam uma compreensão semelhante
sobre a influência do passado no presente, reconhecendo que a consciência dos
vivos pode sofrer ou sofre a influência e determinação das gerações passadas.

Rodrigues (1984) chama a atenção para a perspectiva de que a afirmação


expressa por Júlio de Castilhos possui pouco espírito crítico e comprometido com
o presente, pois pretende defender e restaurar o passado diante do presente,
representando um equívoco que os historiadores não podem se dar ao luxo de
cometer. O passado não volta, o historiador precisa estar comprometido com o
seu tempo, o presente.

Rüsen (1996) aborda que quando a história foi reconhecida como uma
ciência (a ciência do passado), na segunda metade do século XIX, os estudiosos
18
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

historicistas herdaram toda uma tradição que atribuía à história a função de


julgar o passado e instruir os homens para que tirassem o melhor proveito para
sua geração e para as gerações sucessoras. No entanto, posicionaram-se
contrários àquela função da história e defenderam que os historiadores, a partir
do século XIX, deveriam somente mostrar e explicar como as coisas efetivamente
aconteceram.

Bloch (1886-1944), um dos principais idealizadores da escola do annales,


procurou combater a ideia de estudar o passado pelo passado, dos fatos pelos
fatos, posição que havia sido defendida no centro do movimento historicista e,
com os demais adeptos dos annales, defendeu que o interesse pelo passado
deveria ser o de esclarecer o presente, pois o passado é atingido/explicado a
partir do presente.

Essa concepção de história requer, por parte do historiador e dos profissionais


da história, uma postura de deslocamento de percepção e entendimento, a qual,
por sua vez, parte do presente em busca do tempo passado e, quando ambientado
e contextualizado em meio ao passado, identifica/reconhece os embriões e as
sementes que se desenvolvem no presente.

Outra discussão de Bloch (2001) está na ideia de que a história se encontra


desfavorável às certezas. A história é essencialmente equívoca, no sentido de que
é virtualmente événementielle (eventual - eventualidade) e virtualmente estrutural.
Le Goff (1990) contribui com as teses de Bloch, explicando que a história é um
campo do inexato e isto é estrategicamente favorável ao historiador, pois o ponto
de partida da investigação histórica é o da incerteza e o da dúvida.

Segundo Bloch (2001), o que mais importa é mostrar, em primeiro plano,


por meio de alguns exemplos, o tipo de relações que as sociedades históricas
mantiveram com o seu passado e o lugar que a história ocupa no seu presente.
Nesse sentido, as teorizações de Lucien Febvre (1978-1956), contemporâneo e
parceiro intelectual de Bloch, defendem que a história recolhe sistematicamente,
classificando e agrupando os fatos passados, em função das suas necessidades
atuais, pois, segundo o autor, organizar o passado em função do presente alcança
a função social da história.

Tais teorizações, em contrapartida, foram amplamente criticadas por


Hobsbawm (1998), interpretando que a história atualmente é revista ou inventada
por gente que não procura ou deseja saber do passado como ele realmente
ocorreu, mas pelo passado que sirva aos objetivos e aos interesses de quem o está
buscando. O autor ainda prossegue, refletindo que hoje, no interior da produção
do conhecimento histórico, vive-se uma grande era da mitologia histórica.

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Memória e História Oral

Le Goff (1990) descreve que a ciência histórica conheceu, a partir dos anos
de 1970, avanços e renovações surpreendentes nos aspectos de novos temas,
objetos e questões de pesquisa, enriquecimento de técnicas e métodos, bem
como de aportes teóricos e de categorias de análise.

Collingwood (1989) defende que existe uma relação muito próxima entre
passado, presente e o ato de reflexão do historiador sobre o seu trabalho. O
passado é um aspecto e/ou uma função do presente e é sempre assim que ele
deve aparecer ao historiador o qual reflete inteligentemente sobre o seu próprio
trabalho, ou, dito de outro modo, deve-se ter em vista a ideia de fazer também
uma espécie de filosofia da história.

No tempo presente, existe um grande fardo de tarefas e explicações que são


herdadas das gerações anteriores, bem como são frutos de nosso próprio tempo
(equívocos, injustiças e desigualdades). Isso faz com que muitos indivíduos
prefiram, estrategicamente, refugiar-se em algum lugar do passado, quase
sempre em um passado romântico, idealizado, isento de conflitos, impasses ou
situações para resolver.

O peso das tarefas do presente, muitas vezes, recai mais sobre os jovens
do que sobre os antigos integrantes das gerações anteriores, pois aos jovens é
conferida a missão de transformar a realidade. Quando ocorre a oportunidade de
implementar algo novo no sentido de agir/transformar o presente, é comum surgir
dicotomia nas opiniões dos indivíduos, na perspectiva de que alguns defendam
que é necessário conservar tudo e outros, por sua vez, defendam que é preciso
desfazer tudo e edificar/reescrever outra vez.

Diante disso, Rodrigues (1913-1987) aponta que ambos os pontos de vista


dialoguem no sentido de estabelecer uma proximidade de equilíbrio entre o ritmo
da vida (presente) e da história (passado). Veja:

O passado não deve ser estudado como um objeto morto,


como uma ruína, nem como uma autoridade, mas como uma
experiência. Uma experiência aprendida e consolidada. Por
mais arrogante que seja o presente, nele se inserem forças do
passado, sem cujo conhecimento a compreensão do presente
é incompleto (RODRIGUES, 1966, p. 212-213).

O citado autor defende que a história deve ser tanto mais viva quanto mais
próxima da problemática da vida, assim terá condições de deixar de ser uma
seara de fatos mortos e infecundos. Veja novamente:

O objetivo da história é dar sentido ao passado; é conhecer


e compreender não para contemplar um passado morto, mas
para agir, para libertar consciências, para dar força às forças
do progresso, para identificar e integrar o país com sua história

20
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

e seu futuro, essa é toda a tarefa da história (RODRIGUES,


1984, p. 39).

Nos escritos de Glenisson (1991) também se encontram outras definições


para a história e para orientação do profissional dessa área, tais como a de Henri
Pirenne (1862-1935) para quem o historiador nada mais é do que um homem
que se dá conta da mudança das coisas – a maioria das pessoas não
toma consciência disso – e que procura a razão dessa mudança. Já O objeto da história
para André Piganiol (1883-1968), a história está para a humanidade é por natureza, o
assim como a memória está para o indivíduo, considerando que a homem.
história é a memória coletiva. Para Gabriel Monod (1844-1912), trata-
se do conjunto das manifestações da atividade e do pensamento humano, ambas
consideradas em sucessão e desenvolvimento, com relações de conexão e/ou
dependência. Para Marc Bloch (1866-1944), o objeto da história é por natureza, o
homem.

A história pode ajudar a conectar as estratégias que as pessoas dispunham


em seu momento histórico para transcender a realidade e mobilizar forças
espirituais e psíquicas, a fim de conscientizar-se das chances de criatividade
cultural e potencial de superação humana que há no presente, bem como as
dificuldades em percebê-las e captá-las.

Atividades de Estudos:

Caro(a) pós-graduando(a), acerca das indagações e reflexões que


vão desde o campo teórico/metodológico até o fazer histórico
propriamente dito, responda às seguintes perguntas:

1) De onde vem sua motivação pela história? Qual o motivo da sua


decisão ou escolha pela história?
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____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) Qual é a moral e o sentido que você atribui para a história?


____________________________________________________
____________________________________________________
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21
Memória e História Oral

____________________________________________________
____________________________________________________

As DiFerentes NoÇÕes de Tempo


“História: homem no tempo”.
Marc Bloch

Na mitologia grega, existe a narrativa do deus do tempo, chamado de


Cronos, filho de Urano (deus do céu) e Gaia (deusa da terra), o principal deus
da linhagem dos titãs que regia os domínios da agricultura e do tempo, casado
com Reia (também filha de Urano e Gaia). Para se precaver da profecia de que
seria destronado por um dos filhos, devorou-os no momento do nascimento.
Reia conseguiu esconder um deles, Zeus (deus dos deuses), no interior da ilha
de Creta. Quando adulto, liberou os titãs e fez o pai, Cronos, regurgitar os filhos
devorados. Uma vez que Zeus derrotou Cronos, o deus do tempo adquiriu o poder
da imortalidade, que atribuiu aos demais deuses.

Figura 3 - Cronos: o deus do tempo

Disponível em: <https://goo.gl/3MBKEr>. Acesso em: 20 fev. 2016.

22
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

O deus mitológico Cronos vincula-se à representação que a palavra tempo


adquire quando associada à idade. As pessoas de maneira geral não se sentem
muito à vontade quando indagadas sobre sua idade. Isso é um fato da sociedade
contemporânea, na qual os indivíduos almejam pela eterna juventude e os
sentimentos de angústia e desespero, bem como as técnicas de rejuvenescimento
e as tecnologias controlam e informam a passagem do tempo.

Nesse contexto, José Saramago (1922-2010) possui uma crônica que pode
promover uma relação mais sensível, significativa e valorativa da passagem do
tempo, bem como da sua ação sobre o homem. Observe:

QUANTOS ANOS TENHO?

Tenho a idade em que as coisas são vistas com mais calma,


mas com o interesse de seguir crescendo.

Tenho os anos em que os sonhos começam a acariciar com os


dedos e as ilusões se convertem em esperança.

Tenho os anos em que o amor, às vezes, é uma chama intensa,


ansiosa por consumir-se no fogo de uma paixão desejada. E outras
vezes é uma ressaca de paz, como o entardecer em uma praia.

Quantos anos tenho? Não preciso de um número para marcar,


pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo
caminho ao ver minhas ilusões despedaçadas…

Valem muito mais que isso.

O que importa se faço vinte, quarenta ou sessenta?

O que importa é a idade que sinto.

Tenho os anos que necessito para viver livre e sem medos.

Para seguir sem temor pela trilha, pois levo comigo a experiência
adquirida e a força de meus anseios.

Quantos anos tenho? Isso a quem importa?

23
Memória e História Oral

Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que


quero e o que sinto.

Fonte: SARAMAGO, José. Quantos anos tenho? Disponível em:


<http://goo.gl/OhAhWM>. Acesso em: 23 mar. 2016.

Le Goff (1990) descreve que o calendário é o produto e a expressão


da história. Encontra-se ligado às mais remotas origens míticas e religiosas
da humanidade (festas), que, posteriormente, foi adaptado aos progressos
tecnológicos e científicos (medida do tempo), à evolução econômica, social e
cultural (tempo do trabalho e tempo de lazer).

Ele manifesta o esforço das sociedades humanas em transformar/domar


o tempo cíclico da natureza e dos mitos, do eterno retomo num tempo linear e
sistemático em grupos de anos: triênios, lustros, décadas, olimpíadas, século,
milênios, eras, entre outros. Os principais processos consistem na definição de
pontos de partida cronológicos (fundação de Roma, era cristã, mês de ramadã,
pentecostes, entre outros), na busca de uma periodização e na criação de
unidades iguais e mensuráveis de tempo: dia de vinte e quatro horas, décadas,
século, etc.

Tem-se o calendário solar, que foi utilizado por inúmeras comunidades


antigas e serviu de base para a formação do calendário gregoriano, o qual foi
imposto pelo papa Gregório XIII no século XVI e que rapidamente foi adotado por
quase todas as nações cristãs ocidentais da época.

Le Goff (1990) analisa que a capacidade de universalização alcançada pelo


calendário gregoriano foi possível porque congregou três dimensões temporais
fundamentais: o tempo cíclico dos acontecimentos litúrgicos, como o natal, a
páscoa e o dia dos principais santos; o tempo evolutivo, antes e depois de cristo;
o tempo salvacionista, o tempo futuro da ressurreição e da redenção dos homens
no reino de deus.

Os tempos que sucederam a divulgação do calendário gregoriano foram os


das grandes navegações e o da revolução industrial, em que os instrumentos de
medição e controle do tempo foram aprimorados cada vez mais. Aliado a isso,
ocorreram também mudanças na percepção e no valor atribuído ao tempo, em que
o tempo adquire conotação do sistema econômico do capitalismo, caracterizado
pelas noções de capital, produção, dinheiro e lucro.

24
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

A partir da sistematização do calendário gregoriano, os historiadores


procederam a outras reorganizações do tempo, criando idades, décadas, séculos,
milênios e situando os mais expressivos acontecimentos, eventos, revoluções e
feitos em cada um deles, no sentido de demarcar o início e o término, a passagem
de um para outro.

Um dos problemas da criação das padronizações de tempo está no fato de


que muitas vezes a passagem do tempo tende a ser percebida numa dinâmica
linear, progressiva, evolucionista e triunfante, isenta de contradições, involuções,
permanências, retrocessos, danos e perdas do ponto de vista técnico, em meio à
natureza e de valores humanitários/ civilizacionais.

Le Goff (1990) descreve que, até o renascimento ou mesmo até o final do


século XVIII, as sociedades ocidentais valorizaram o passado, o tempo das origens
e dos ancestrais, entendidos como tempos e épocas de inocência, fertilidade,
proteção e felicidade. Imaginaram-se eras míticas: idades-do-ouro, o paraíso
terrestre e o jardim do éden, porém conforme se aproximava do tempo presente,
a história do mundo e da humanidade aparecia como uma longa decadência, de
paraíso perdido, de privações e lamentos.

Le Goff (1990) descreve que surgiu na Europa da segunda metade do século


XVII e na primeira metade do século XVIII a evidência da oposição e disputa entre
antigo/moderno. O debate foi proposto e sustentado em meio às teorias científicas,
literárias e artísticas que estavam em crescente consolidação na época. O debate
propunha a concepção de que o antigo era sinônimo de superado e o moderno,
de novo, progressista e sofisticado. Essa concepção reinou absoluta ao longo do
século XIX e nas primeiras décadas do século XX, somente sendo questionada a
partir das catastróficas experiências das guerras mundiais.

O autor prossegue, dizendo que os fracassos dos projetos de modernidade


(industrialização, urbanização, racionalização do pensamento, secularização da
sociedade, laicidade do Estado), modelos globalizantes, como o do marxismo,
as denúncias das práticas stalinistas e do gulag, os horrores do fascismo e,
principalmente, do nazismo, os campos de concentração, a revolução cultural
chinesa, os mortos e as destruições das cidades pela segunda guerra mundial,
a bomba atômica, somados aos processos de descoberta e reconhecimento de
culturas distintas e distantes do norte do Atlântico e do Mediterrâneo, podem ser
indicadas como as principais evidências desse processo (LE GOFF, 1990).

Le Goff (1990) explica que essa avalanche, que vem renovando e


multifacetando a produção do conhecimento histórico e que colocou ainda
mais em xeque a crença no progresso linear, contínuo, triunfante e irreversível,
sustentada em um único modelo totalizante e homogeneizante, também carrega

25
Memória e História Oral

consigo outros problemas. A história passou a se defrontar com crenças que


ganharam proporções de verdadeiras coqueluches mundiais, caracterizadas por
uma espécie de grande revival, em que são retomadas profecias e visões, em
geral catastróficas do fim do mundo ou, pelo contrário, revoluções iluminadas, que
invocam milenarismos, favorecendo o surgimento de seitas neopentecostais, as
quais abarcaram tanto as populações dos países em desenvolvimento como as
do chamado primeiro mundo. Trata-se de um retorno à já conhecida escatologia.

Escatologia: doutrina do destino último do homem (morte,


ressureição, juízo final) e do mundo (estado futuro) (MICHAELIS,
2009).

A preocupação com o tempo é um dos atributos específicos e particulares


da história. Independente de qual for a concepção de história adotada, o tempo
se impõe aos profissionais dela. Os fatos humanos são, por essência, fenômenos
delicados e que podem escapar a qualquer medida matemática. O tempo
verdadeiro constitui uma espécie de continuum e ao mesmo tempo uma perpétua
mudança (BLOCH, 2001). Segundo Glenisson (1991), não é possível escapar da
necessidade de datar ou fixar cronologias e, mais especificamente, impedir de
determinar a duração dos fatos e eventos históricos.

Historiadores, como Henri Pirenne e Marc Bloch, defendem que o profissional


da história é aquele que percebe a mudança das coisas. Percepção que se dá
somente quando são analisados os eventos e os acontecimentos por meio de
uma dada organização cronológica.

A experiência Tanto os esquemas (modos de produção) marxistas, como a


humana, pensada cronologia europeia francesa, representam casos limites significativos,
na sua diversidade e permitindo análises coerentes e seguras em termos de tempo histórico
complexidade, não
e dinâmicas políticas, econômicas, sociais e culturais, porém ambas
cabe, transborda.
representam condições históricas localizadas e generalizantes que, por
sua vez, são frágeis para servirem de recipientes suficientes da complexidade
das experiências e dos processos históricos que compõem a humanidade. A
experiência humana, pensada na sua diversidade e complexidade, não cabe,
transborda.

Existem inúmeras noções que podem ser utilizadas na tentativa de captar


o desenrolar do tempo, como a noção de tempo vivido (que é marcada no

26
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

intervalo transcorrido entre o nascimento e a morte), o tempo psicológico, o tempo


biológico, o tempo concebido (que varia conforme cada sociedade compõe seu
universo de valores e crenças), o tempo cronológico (geralmente regulado com
a adoção de calendários), o tempo astronômico (caracterizado pelas órbitas de
planetas ou presença de estrelas, cometas, etc.), o tempo geológico (que condiz
com a formação do planeta terra e da natureza), entre outros.

Outro processo que é necessário conhecer refere-se às sucessivas


revoluções técnicas, à substituição de matérias-primas e aos novos objetos que
são adicionados aos modos de vida que ampliam desmedidamente o intervalo
psicológico entre uma geração e outra. Bloch (2001, p. 62) afirma que “não sem
alguma razão, talvez o homem da era da eletricidade e do avião se sinta bem
longe de seus ancestrais”.

Outro aspecto que pode enriquecer a ampliar a percepção da passagem do


tempo é alcançado relacionando e comparando a dinâmica de vida dos indivíduos
que residem em cidades e se encontram num contexto de trabalho industrial,
regrados pelos horários dos meios de transporte, das atividades comerciais; com
a relação que as comunidades rurais e campesinas estabelecem com os ciclos e
estações do ano, no manejo da terra e trato de animais, na percepção a partir dos
rituais de grupos indígenas, na percepção do tempo das comunidades ribeirinhas
diante da oscilação do nível das águas, das épocas de chuva e estiagem,
assim como não se pode perder de vista a existência de lapsos, amnésias,
esquecimentos (voluntários e involuntários), doenças como o mal de Alzheimer,
entre outros fatores que sugerem observação e compreensão do tempo como
sendo uma ocorrência relativa.
Conforme Bittencourt
Conforme Bittencourt (2008, p. 204), “um dos objetivos básicos da (2008, p. 204),
história é compreender o tempo vivido de outras épocas e converter o “um dos objetivos
básicos da história
passado em nossos tempos”. Ou seja, aproximar e tornar familiar na
é compreender o
experiência do tempo presente, os tempos distantes, o tempo passado, tempo vivido de
no sentido de reconhecer o que aquele conhecimento do passado pode outras épocas e
contribuir para com as problemáticas e impasses que se apresentam converter o passado
na época presente. em nossos tempos”.

Ao dar conta desse exercício, o historiador pode utilizar-se de categorias


temporais como o acontecimento, o ciclo, a estrutura, a conjuntura e, por sua
vez, as noções de tempo qualitativo dos processos e das durações que procuram
evidenciar as sucessões diacrônicas e marcar mudanças/rupturas, bem como a
simultaneidade, as permanências e as continuidades.

Caro(a) pós-graduando(a), não se esqueça das ressalvas proferidas por


Bloch (2001): o tempo humano permanecerá sempre rebelde, tanto para a

27
Memória e História Oral

implacável uniformidade como também para a divisão rígida do tempo do relógio.


Faltam medidas adequadas que contemplem a variabilidade do ritmo e do
desenrolar do tempo.

Diante desse contexto de tensões e impasses sobre a periodização da história


da humanidade, Fernand Braudel (1902-1985), estudioso francês, incorporou os
fundamentos da antropologia, da economia e da geografia, no sentido de captar e
perceber os diferentes ritmos e níveis que impregnam o tempo histórico.

Braudel (2005) propôs três ordens que apresentam ritmos e dinâmicas


diferentes: o acontecimento, a conjuntura e a estrutura.

O acontecimento possui breve duração e engloba fatos de ordem acidental


e individual, tal como um nascimento, uma morte, uma greve/invasão/ataque, um
ato público ou um discurso, encontrando-se vinculado mais à esfera política das
atividades humanas.

A conjuntura apresenta média duração e registra as flutuações e os


movimentos, como de uma revolução, uma guerra, os regimes de ditadura e
democracia na américa latina, as crises econômicas, geralmente tratando das
relações de poder que possuem dinâmica econômica e determinam as relações
sociais.

A estrutura corresponde à longa duração dos fenômenos que os marcos


cronológicos não limitam ou não alcançam devido à lentidão na qual se processam
no interior dos comportamentos coletivos. Os fenômenos estão fortemente
sedimentados nas mentalidades dos indivíduos e são compostos de ideologias
oriundas das tradições religiosas/culturais (judeus, islâmicos, cristãos) que, por
sua vez, permeiam várias épocas, como, por exemplo, a prática da escravidão, os
valores cristãos, as leis e os códigos morais.

Le Goff (1990) discute que a aplicação à história dos dados da filosofia, da


ciência, da experiência individual e coletiva, tende a introduzir, junto aos quadros
mensuráveis do tempo histórico, a noção de duração, de tempo vivido, de tempos
múltiplos e relativos, de tempos subjetivos ou simbólicos. Nesse cenário, o tempo
histórico tem a oportunidade de encontrar, em um nível muito sofisticado de
percepção do tempo, o velho tempo da memória, que atravessa a história e a
alimenta.

Le Goff (1990) prossegue e alerta que existe uma relação de dependência


da história do passado com a história do presente, requerendo, por sua vez, uma
postura cautelosa por parte dos estudiosos, pois o passado não cessou de viver,
de se atualizar e de se apresentar como presente com uma roupagem de novo.

28
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

Por outro lado, a consciência dessa perpetuação e perduração do passado não


pode se tornar um empecilho e muito menos fazer o historiador de refém num
passado longínquo. É prudente que o historiador e/ou o profissional da história
mantenha uma distância reverente, respeitosa e necessária para evitar os
possíveis anacronismos (o fato de atualizar ou utilizar elementos e personagens
de outras épocas no tempo presente de forma equivocada).

Atividades de Estudos:

1) Caro(a) pós-graduando(a), relacione os principais marcos


temporais da sua vida, apresentando um resumo dos respectivos
fatos e acontecimentos.
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____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

2) Em conjunto com outros integrantes da sua família, relacione


os principais marcos temporais que compõem a história dessa
família, apresentando um pequeno resumo dos respectivos fatos
e acontecimentos.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
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3) Qual a participação e a relação que você reconhece existir entre os


fatos ocorridos no contexto familiar e os fatos que são específicos
da sua vida?
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29
Memória e História Oral

O EspaÇo e as RelaÇÕes AtribuÍdas À


Memória
“O mundo esquece tanto que nem sequer dá pela falta do que esqueceu”.
José Saramago

Sentados em círculo, rodeando uma fogueira, aquecidos e acalentados


pelas labaredas, os membros de tribos caçadoras e coletoras do período neolítico
acompanhavam, de forma encantada e apreensiva, as narrativas sobre os
nobres feitos de seus ancestrais, dos deuses, dos líderes guerreiros ou de seus
sacerdotes.

Nos tempos de Nos tempos de forte predomínio das narrativas mitológicas


forte predomínio da Grécia antiga, existia a deusa Mnemosine, a personificação da
das narrativas memória. A atribuição de Mnemosine naquela sociedade era revelar
mitológicas da o que foi (passado) e o que seria (futuro). Presidia a função poética,
Grécia antiga, concedia aos poetas e adivinhos o poder de voltar às origens e à
existia a deusa
essência (geralmente identificadas com o passado) para lembrá-las à
Mnemosine, a
personificação da coletividade. Também conferia o dom da imortalidade, uma das forças
memória. de vencer o tempo (BOSI, 2001).

Figura 4 - Escultura de granito representando Mnemosine

Fonte: Disponível em: <https://goo.gl/kEuQAO>. Acesso em: 15 fev. 2016.

30
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

Mnemosine era filha de Urano (céu) e Gaia (terra), irmã de Cronos (deus do
tempo). Era protetora das artes e da história e costumava ser invocada diante
dos perigos do esquecimento e da finitude. Foi casada com Zeus, com quem
teve nove filhos, entre eles, nasceu Clio, a musa da história, da criatividade e a
responsável por divulgar e celebrar as realizações.

Segundo Dantas (2010), uma das funções mais importantes da memória é ser
fonte de respostas às questões que intrigam o ser humano, como, por exemplo, a
sua origem, a sua identidade e a sua posição/papel no mundo, motivo pelo qual
é muito significativo que Mnemosine esteja ligada à faculdade da orientação e da
desorientação no tempo e no espaço.

Outra função importante de Mnemosine era a seleção das informações que


seriam transmitidas, havendo uma relação de dualidade diante da existência de
Lemosyne (deusa do esquecimento).

Enquanto vigorou e prevaleceu a sociedade mítica e oral na Grécia antiga, a


memória era valorizada como imprescindível à coesão dos laços sociais. O aedo
(inspirado pelas musas que cantavam em voz alta as mais diversas epopeias) foi
o responsável por resgatar a memória e a sua importância. O grego Homero (928
a. C – 898 a. C) escritor de Ilíada e Odisseia foi um aedo. Aedo pode ser traduzido
como poeta, que, em suas narrativas e declamações, confere grandeza, fama e
glória aos seus personagens, com o intuito de monumentalizar e imortalizar os
feitos dos deuses e homens.

Alétheia é a palavra grega que designa verdade. Alétheia


resulta da composição de a - alfa privativo + letheia – esquecimento,
logo deduz-se que para os gregos a verdade poderia corresponder
ao não esquecimento.

O termo grego alétheia se refere ao que é conservado pela memória e pela


palavra. A palavra deriva de léthe, que compreendia o campo do esquecimento,
do silêncio e da obscuridade. Na mitologia grega, léthe foi um dos rios de hades,
no mundo dos mortos, que ficava nos subterrâneos da terra. No mundo inferior,
qualquer ser humano que bebesse ou se banhasse nas águas de léthe ficava
sentenciado com a perda da memória e das lembranças.

31
Memória e História Oral

A verdade, como consta na designação grega, não possui mais condições


de ser associada ao sentido que a verdade recebe na época moderna, agora com
conotação racional, que só é aceita a partir de comprovação por meio de fontes
e testemunhos, que foram rigorosamente submetidos e testados por métodos
científicos.

Le Goff (1990) apresenta que, desde muito cedo, os chineses cumpriram


dois gestos constitutivos do procedimento histórico, quais sejam, formar arquivos
e datar os documentos. O autor prossegue dizendo que na China a história está
estritamente ligada à escrita, porém os escritos não têm função de memória, mas
sim função ritual, sagrada e mágica. São meios de comunicação com as potências
divinas e com os ancestrais. São anotados para que os deuses os observem e,
assim, tornem-se eficazes num eterno presente. O documento não é feito para
servir de prova, mas para ser um objeto mágico, um talismã. Não é produzido
para ser dedicado aos homens, mas sim aos deuses.

Os gregos, quando da consolidação do pensamento racional, desconfiavam


da memória, em especial Tucídides (460 a. C - 395 a. C), que privilegiava o
testemunho ocular. Segundo Tucídides (2001), aquele que narra, esquece, não
resiste ao prazer de agradar àquele que escuta ao ouvido.

Esse debate foi reforçado no século XIX pelos historiadores do historicismo e


somente ganhou espaço novamente a partir dos anos de 1970, porém com fortes
ressalvas de que o historiador deveria saber se servir da memória e história oral
com cautela e resguardos narrativos.

Sigmund Freud (1856-1939) foi quem iniciou amplos debates em torno da


memória humana, trazendo à tona seu caráter seletivo, ou seja, o fato de que nos
lembramos das coisas de forma parcial, a partir de estímulos externos, escolhendo
as lembranças que guardamos e relembramos. Freud (1970) distinguiu a memória
de um simples repositório de lembranças, pois, para ele, nossa mente não é um
museu. Nesse aspecto, remete à Platão, que, na antiguidade, apresentava a
memória como um bloco de cera no qual nossas lembranças são impressas.

O estudo da memória não fica restrito à história e à psicanálise, mas passa


da psicologia à neurofisiologia, pois cada aspecto seu interessa para uma ciência
diferente, sendo a memória social um dos meios fundamentais para abordar os
problemas do tempo e da história. A memória compõe os alicerces e as estruturas
iniciais da história, permeia e se confunde com o documento, com o monumento e
com a oralidade. Foi somente a partir dos anos de 1970, em meio às discussões
do grupo da nova história, que passou a ser reconhecida pela historiografia. Para
abordar os temas da memória, estreitou-se o diálogo com as áreas da filosofia,
sociologia, antropologia, etnologia, psicanálise e história das mentalidades. Em

32
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

1970, nos países onde ocorriam regimes militares, como, por exemplo, no Brasil
e no Chile, foi necessário mais tempo para que a temática da memória e história
oral fosse contemplada.

Coelho (1997) discute que a memória não consiste em referências


passivas, fragmentadas e isoladas, pois entende que memória é Memória é um ícone,
um ícone, uma fração que reserva um todo. A memória participa da uma fração que
natureza do imaginário (conjunto de imagens) não gratuito, tratando- reserva um todo.
se de um princípio de organização que ordena o conjunto de todas as
referências.

Ki-Zerbo (2010) defende que a oralidade é uma atitude diante da realidade


e não a ausência de uma habilidade, no caso, a habilidade de escrever. São
justamente as sociedades orais que melhor preservam a capacidade de
compreensão de seu passado por meio da memória coletiva. As sociedades
africanas podem fornecer exemplos expressivos dos processos de transmissão
da história, dos rituais e dos saberes por meio da oralidade.

Conforme Abbagnano (2007), a memória parece ser constituída por duas


condições ou momentos distintos. A primeira é a conservação ou persistência de
conhecimentos passados que, por serem do passado, não estão mais à vista. É
chamada memória retentiva. A segunda trata da possibilidade de evocar, quando
necessário, o conhecimento passado e torná-lo atual ou presente; é propriamente
a recordação.

Para Bergson (1999), a memória não consiste na regressão do


A memória possui
presente para o passado, mas, ao contrário, no progresso do passado
também função
ao presente. É no passado que nos situamos de chofre e de um ponto fantástica de
estratégico. Segundo o autor, partimos de um estado virtual que, pouco eufemismo, que
a pouco, por meio de uma série de planos de consciência diferentes, ignora a decadência
vamos conduzindo até o termo em que ele se materializa no contexto e a morte, afronta
e configuração atual, ou seja, até o ponto em que se transforma num o tempo, alisa e
disfarça as marcas
estado presente e agente, até o plano extremo de nossa consciência
físicas/conceituais
sobre o qual se desenha e sustenta nosso corpo. Segundo o autor, a e transveste o
memória possui também função fantástica de eufemismo, que ignora passado com uma
a decadência e a morte, afronta o tempo, alisa e disfarça as marcas aura idealizada e
físicas/conceituais e transveste o passado com uma aura idealizada e romântica.
romântica.

Nora (1993) descreve que a memória é vida e é sempre carregada por


grupos vivos, assim ela está em permanente evolução, suscetível à dialética
da lembrança e do esquecimento, da desmemoria, do inconsciente de suas
deformações sucessivas, descontextualizações, recontextualizações, vulnerável a

33
Memória e História Oral

todos os usos, abusos e demais manipulações, susceptível de longas latências,


silêncios, vazios e de repentinos resgates, revitalizações, supervalorizações,
sendo, nesse percurso, tudo enraizado no concreto, nos objetos, no espaço, nos
costumes, nos gestos, nas imagens, nos imaginários, nas mentalidades e nos
corpos.

Brandão (2008) chama a atenção para o fato de que o passado não pode
ser entendido somente a partir das marcas e vestígios vistos como explícitos e
evidentes, pois, muitas vezes, tratam-se de situações e circunstâncias que são
somente do presente e não possuem origem e recorrência com o passado. A
tristeza, o sentimento de perda ou as cicatrizes físicas causadas por um acidente
constituem os vestígios e não a memória do acidente, ao passo que as recordações
podem estar disponíveis e prontas, latentes no campo emocional, sem precisar da
ajuda de nenhum vestígio ou outro recurso para serem sensibilizadas e acionadas.

As memórias e os Le Goff (1990) discute que uma das grandes preocupações das
seus espaços não classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as
são espontâneos sociedades históricas esteve e está em forjarem estruturas legais/oficiais
e naturais, seus e se tornarem senhores monitores da memória e do esquecimento.
agentes antes Assim, as memórias e os seus espaços não são espontâneos e naturais,
vigiam e definem
seus agentes antes vigiam e definem o que há de ser lembrado e o que
o que há de ser
lembrado e o que deve e pode ser esquecido. Fato que ilustra isso são os arquivos de
deve e pode ser guerras e de ditaduras, em que os governos, com receio do ônus e da
esquecido. responsabilidade que lhes possam recair, destroem os vestígios e/ou
restringem o acesso das partes interessadas e da imprensa.

Nora (1993, p. 13) diz que ao abordar a memória pelo aspecto do que deve e
pode ser lembrado, comemorado e festejado, é necessário não perder de vista os
seguintes aspectos:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que


não há memória espontânea, é preciso criar arquivos, é preciso
manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios
fúnebres, notoriar atas, porque essas operações não são
naturais. [...] Sem vigilância comemorativa, a história depressa
as varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se
o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria,
tampouco, a necessidade de constituí-los. Se vivêssemos
verdadeiramente as lembranças que elas envolvem, eles
seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se
apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, salvá-
los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória.
É este vai e vem que os constitui. [...] Museus, arquivos,
cemitérios, coleções, festas, aniversários, tratados, processos
verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos
testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade.

34
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

Nora (1993) adverte que os empreendimentos e movimentos oficiais/festivos


possuem caráter nostálgico, representando rituais de uma sociedade sem
ritual, de sacralizações passageiras, que é dessacralizada e desespiritualizada;
de fidelidades particulares de uma sociedade que enquadra e aplaina os
particularismos; de diferenciações efetivas numa sociedade pós-moderna, que
nivela por princípio; de sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo
numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais, comuns e idênticos.

A sociedade que Nora (1993) explica como sociedade sem ritual, carrega
consigo um estigma de vazio, falta de sentido e significado; o momento presente
tem aspecto de frustração, fazendo com que se busque no passado o conforto; o
retorno ao passado se dá de uma forma romântica e idealizada, em que cenários
de outras épocas são refeitos, conceitos são atualizados (vintage, o rústico,
o retrô), no sentido de conferir e agregar bem estar aos espaços e ambientes
tanto públicos (restaurantes, cafés, bares) como privados (residências); o
rompimento dos vínculos reais com o passado causa um sentimento de vazio e
sem perspectiva de consolo.

Hartog (2013) diz que nossa memória hoje é história, vestígio e triagem.
Preocupada em fazer memória de tudo, ela é arquivística, uma espécie de
historicização do presente e de caráter psicologizado. É instrumentalizadora de
quem procura diferenciar sua identidade, como, por exemplo, descendente de
indígenas, de portugueses, de italianos, de alemães e de espanhóis. A tarefa
acaba em mim, sujeito com receio da desreferencialização e consciente de que
o passado não está mais no mesmo plano. Assim, passou-se de uma história
preocupada com a continuidade da memória, para uma memória que se projeta na
descontinuidade da história, ou seja, a memória é o que faz com que o presente
seja presente para si mesmo.

Hartog (2013) problematiza ainda mais esse contexto de uso da memória,


afirmando que as rupturas modernas conduziram a uma multiplicação de
memórias coletivas, de maneira que a história se escreve agora sob sua pressão,
ou seja, a própria história científica vê seus interesses e suas curiosidades ditadas
por elas. Sendo assim, a análise das memórias deve se tornar a ponta da lança
de uma história que se pretende contemporânea. A história é uma, enquanto
há tantas memórias coletivas quantos grupos, nas quais cada um imprime sua
própria duração.

Felix (2002) entende que memória é essencialmente um ato de evocação,


ou seja, é o ato de recuperar mentalmente a imagem. Portanto, é um ato de
representação do real que se dá por meio de imagens mentais, pois o passado,
como tal, não volta, ele apenas retorna em forma de lembranças.

35
Memória e História Oral

Segundo Felix (2002), a evocação dessas imagens mentais se dá por meio


de diferentes suportes e exemplares depositários de memória, que podem ser
de natureza icnográfica, fotográficas e álbuns, como também de natureza objetal,
com os diversos tipos de objetos materiais associados a uma determinada
memória e que compõem o universo dos bens ou patrimônios materiais. Pode
ser de natureza perspectiva e sensorial, quando desencadeada por ideias/
associações, como também de natureza do universo da memória dos sentidos,
como, por exemplo, sons, ruídos e cheiros que compõem o rico e diversificado
universo denominado de bens e patrimônios imateriais.

O potencial da memória reside, também, em sensibilizar o que está à beira


do esquecimento e trazer à luz o que se encontra em processo de ofuscamento,
perda do brilho em meio à dinâmica do tempo, tirar o pó. Isso favorece a
elaboração de genealogias, em que o enriquecimento narrativo na redação de
biografias e demais temas da história solicita a compressão e a abordagem pelo
campo da interdisciplinaridade. Pode ser feita a partir dos lugares topográficos,
monumentos ou símbolos funcionais onde a sociedade deposita voluntariamente
suas lembranças. Pode contemplar também o patrimônio imaterial/intangível que
se encontra latente nos dialetos, sotaques, cheiros, constelações, paisagens,
sons, antigos fazeres e dizeres.

Além dos autores que foram arrolados durante o desenvolvimento do presente


capítulo, a temática da memória também é abordada pelos pesquisadores das
áreas de história, linguística, filosofia, antropologia e sociologia, como, por
exemplo, Michael Pollack, Maurice Halbwachs, Vidal Naquet, Marcel Detiènne,
Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Nicole Lourax, Adélia Bezerra de Menezes,
Regina Horta Duarte, Miriam Barros, Ulpiano Bezerra de Menezes e outros.
Conforme for possível, procure aproximar-se e se apropriar dos estudos desses
autores!

Sobre o tema da memória, sugere-se a leitura da seguinte obra:


PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Lisboa:
Relógio d’ água, 2003, 7 volumes. Tradução: Pedro Tamen.

36
Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

Sobre o tema história oral, sugere-se o seguinte filme:


Uma cidade sem passado. Michael Verhoeven. Alemanha,1990
(drama, 93 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=kKiykbMCtRM>.

Atividade de Estudos:

1) Segundo as reflexões de Nora (1993) abordadas neste capítulo,


quais são as principais problemáticas que acompanham a noção
de memória? Enumere-as abaixo:
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Algumas ConsideraÇÕes
Nossa época, marcada pela crise do otimismo, da redenção da ciência, do
homem no futuro, conta com instituições e organizações sociais que se esforçam
em amenizar e compensar os custos causados pelos projetos de modernidade
(urbanização, industrialização, racionalização, secularização). Para tanto, podem
encontrar na apreensão da noção de tempo, espacialidade, historicidade das
memórias e lembranças recursos fundamentais promotores e ressignificadores
dos valores/sentidos culturais da humanidade.

Seixas (2004) nos ajuda a tecer algumas sistematizações mais pontuais


como a de que a memória consiste na tradição viva, que a memória é a vida, é
afetiva, é espontânea, é frágil, que está em processo contínuo de presentificação
e atualização. A história, por sua vez, é construção intelectual, analítica,
problematizadora, crítica e sistemática. A memória possui ritmo e sinuosidade
sensível em meio às categorias de tempo e espaço. A história se debruça sobre
acontecimentos e fatos que são reclamados pela sociedade. Os estudos sobre

37
Memória e História Oral

memória se preocupam como os fatos e os acontecimentos que afetaram e


impactaram numa comunidade e nos indivíduos.

A memória representa uma possibilidade de recuperar o que está submerso


no subsolo, na caixa preta, no sótão, nas mentalidades, no imaginário do indivíduo
e do grupo. A história trabalha com o que a sociedade trouxe a público e, a partir
do acesso e do empoderamento dessas informações, os sujeitos podem se munir
de argumentos para ganhar coesão, sentirem-se pertencentes e contribuintes,
empoderarem-se, no sentido de galgar por sua realização e a da coletividade na
qual se encontram inseridos.

ReFerÊncias
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,
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Capítulo 1 HISTÓRIA, TEMPO E MEMÓRIA

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TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. 4. ed. Brasília: Editora


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40
C APÍTULO 2
Memória Individual e Memória
Coletiva

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Estudar os elementos que corporificam a memória para o indivíduo, para a


família e para a comunidade, ou seja, os componentes que forjam e sustentam
a identidade.

 Perceber a memória na sua dimensão coletiva, bem como a interface e o


trânsito desta com os grupos sociais e a política.

 Problematizar os principais significados que são atribuídos e reconhecidos à


memória coletiva e individual, público e privado, e a relação existente entre
memória, as lembranças e as representações sociais.

 Identificar expressões, manifestações, espaços e lugares depositários de


memória, patrimônio histórico e cultural, bem como os bens simbólicos e
imateriais/intangíveis da humanidade.
Memória e História Oral

42
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

ConteXtualiZaÇão
Tedesco (2001) apresenta que discutir a memória nas suas diversas
dimensões, quer individual, coletiva e social; a relação que possui com a história,
a manifestação oral, os lugares institucionais (museus, monumentos, cemitérios,
arquivos...), informais e circunstanciais (casas, ruas, porões, baús, gavetas,
paredes, galpões, caixas, armários, sótãos, porões...), os silêncios, os não
ditos; representa uma tarefa desafiadora na dinâmica de sociedade em que nos
encontramos.

Halbwachs (1990), que estudou memória e sociedade ainda nas primeiras


décadas do século XX, defendeu que a memória compreende desde o vivido,
o concreto, o múltiplo, o sagrado, a imagem, o afeto, o mágico, enfim, tudo o
que flutua, oscila em torno de um objeto ou lugar. À história, disciplina de
conhecimento, cabe as funções de conceitualização, problematização, exercício
crítico e laicizante. São campos tão distintos que se pode até pensar que a história
começa quando a memória acaba.

Nesse sentido, é possível perguntar: quais são, portanto, os elementos


constitutivos da memória, seja ela individual ou coletiva? Como é possível a
memória, no seu atributo formador de identidade, ao mesmo tempo identificar e
integrar, como diferenciar, distinguir e afastar os indivíduos?

Caro(a) pós-graduando(a), de antemão sugerimos que você tome bastante


cuidado com definições rápidas e generalistas, pois a primeira impressão que
se tem é que a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente
íntimo, próprio e único da pessoa. A memória deve ser entendida também, ou
sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno
construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, invenções e
mudanças constantes.

Tedesco (2001) alerta que existe certa polêmica e diferenciação conceitual


que dividem os estudiosos com relação à definição de memória coletiva, memória
histórica, memória autobiográfica e memória individual. Mas isso está reservado
para as próximas páginas.

Deseja-se uma construtiva e satisfatória jornada de estudos pela frente!

43
Memória e História Oral

Memória Individual: O IndivÍduo e a


FamÍlia
“Uma vida sem memória não seria vida, como uma inteligência
sem possibilidade de se expressar não seria inteligência.
Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação,
nosso sentimento. Sem ela, não somos nada”.
Luiz Brunel

Henri Bergson (1859-1941), filósofo e diplomata francês que publicou o livro


“Matéria e memória (1896)”, procurou debater as ideias deterministas e biológicas
que recaiam sobre as explicações e definições do homem ao longo do século XIX.
Considerou temas como a intuição, o inconsciente e a consciência criadora.

Em seus estudos, o citado autor procurou diferenciar dois tipos


O passado sobrevive
de duas maneiras de memória, uma chamada memória-hábito, que é oriunda das
diferentes: nos experiências e sensações obtidas no campo prático, forjada de forma
mecanismos motores involuntária, sem muita busca, análise e enquadramento. A outra, a
e nas lembranças
independentes. memória-pura, advém do repertório da consciência, das lembranças,
das vivências elaboradas, amalgamadas pelas emoções. Esta última,
por sua vez, é capaz de alcançar autonomia e independência em relação à
primeira. Essas definições serviram de aporte para que Bergson defendesse a
tese de que o passado sobrevive de duas maneiras diferentes: nos mecanismos
motores e nas lembranças independentes.

Bergson exemplificou e dirimiu cada uma delas, ilustrando que a memória-


hábito é aquela em que o passado é ativado e incorporado ao presente como uma
recitação de poema, que exige a competência e habilidade da memorização; e a
memória-pura é a que evoca, rememora psicologicamente uma lembrança ou um
aprendizado ocorrido num acontecimento singular.

MUSEU DA PESSOA

Trata-se de um museu virtual fundado em São Paulo, no ano


de 1991. Tem como objetivo registrar, preservar e transformar em
informação histórias de vida de toda e qualquer pessoa da sociedade
de forma espontânea e colaborativa. O museu conta com um acervo
de mais de 17 mil depoimentos em áudio, vídeo e texto, mais cerca
de 60 mil fotos e inúmeros documentos digitalizados.

44
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

Através das atividades de registro e das ações desenvolvidas


pelo museu, os idealizadores pretendem fomentar e valorizar a
diversidade cultural e a história de cada pessoa como patrimônio da
humanidade e contribuir na ampliação de fontes de conhecimento,
compreensão e conexão entre as mais diversas pessoas, culturas
e povos, bem como a construção e consolidação de uma cultura de
paz e tolerância.

Para conhecê-lo, acesse o seguinte endereço eletrônico: <http://


www.museudapessoa.net/pt/home>.

Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês que se dedicou ao


estudo da memória ainda na primeira metade de século XX. O autor favoreceu
muito a introdução do tema da memória nos estudos históricos, na articulação
metodológica da história e memória oral. A ênfase que Halbwachs atribuiu à
memória foi abordá-la na perspectiva social e no “campo de significados” que ela
comporta, ultrapassando a dimensão individual e psicológica que até então lhe
havia sido conferida.

Barros (1989), à luz das teorizações de Halbwachs, descreve que:

No ato de lembrar, nos servimos de ‘campos de significados’ -


os quadros sociais - que nos servem de pontos de referência.
As noções de tempo e de espaço, estruturantes dos quadros
sociais da memória, são fundamentais para a rememoração do
passado na medida em que as localizações espacial e temporal
das lembranças são a essência da memória. (HALBWACHS,
1990, p.30 apud BARROS, 1989).

Segundo Halbwachs (1990), a memória individual não é inteiramente


individual e fechada, pois remete a pontos de referência que existem fora dela e
que são fixados pela própria sociedade. A existência da memória individual não
é possível sem a dimensão social de referência, uma vez que o social funciona
como um órgão legitimador da memória individual, sem o qual a memória seria
somente invenção resumida e esquemática. O grupo social é responsável por
transformar as lembranças em fenômenos sociais. Diante disso, é importante
que o pesquisador conheça os símbolos e suas significações no tempo, seu
intercâmbio e a forma como são tecidas e forjadas, tanto no trânsito do coletivo ao
individual como vice-versa.

Halbwachs (1990), como sociólogo, parte do pressuposto de que o homem


é um ser social, assim as definições que formulou para memória são que ela só

45
Memória e História Oral

pode ter sentido quando interpretada em um quadro coletivo. Dito de outro modo,
a relatividade da memória é condizente com os quadros sociais e temporais que
o indivíduo viveu e vive, estabeleceu e estabelece com a sociedade (família,
amigos, religião, trabalho, esportes). Mas, por outro lado, o autor não despreza
a existência de uma memória individual, o que chama de “memória individual
relacionada”, a qual reintegra as lembranças no tempo e no espaço.

A família, por sua vez, Tedesco (2001) apresenta que a memória possui uma dupla
é o amálgama mais natureza, que é composta tanto pelo conjunto de lembranças e
favorável na prática
de incorporação imagens como pelo conjunto de representações que se possui em
e transmissão termos de valores e comportamentos. Segundo o autor, é na esfera da
do legado de família que se dá a sucessão entre as diferentes gerações (pais, filhos,
costumes, tradições e
experiências. netos e bisnetos). A família, por sua vez, é o amálgama mais favorável
na prática de incorporação e transmissão do legado de costumes,
tradições e experiências, mesmo assim não se pode almejar homogeneidade nas
lembranças, mesmo que elas sejam de grupos coesos e fechados.

Halbwachs (1990) apresenta que existem costumes e maneiras de


pensar próprios de cada família. Mesmo diante de alterações e reinvenções,
a memória familiar é responsável por reter algo que é comum, que pertence e
existe na condição de grupo. Nesse contexto, o passado, os fatos singulares e o
pensamento comum fortalecem e ritualizam a esfera social e particular da família.

O autor alerta que as memórias familiares não são estagnadas e unânimes,


sofrem oscilações. Com relação às transformações que ocorrem na memória
da família, Halbwachs (1990) compreende que a memória familiar compõe um
quadro que tende a se conservar intacto. Para tanto, é forjada uma espécie de
armadura tradicional da família que tende a dominar o curso do tempo.

Tedesco (2001) descreve que o quadro da memória familiar assegura a


identidade e o valor no interior do grupo, bem como o quadro coletivo da memória.
A esfera do simbólico, a propriedade psíquica, moral, sua normatividade e
genealogia, expressam um grupo vivido em seu interior baseado na afetividade,
na consanguinidade e no sobrenome.

Os quadros asseguram, pela via das lembranças, ao mesmo


tempo a ordem do tempo pelas imagens e a ordem do sentido
pela ideia. Imagens e ideias fornecem significados no tempo,
refletem vividos sociais e comunitários que são manifestos
grupalmente (TEDESCO, 2001, p. 27).

As memórias individuais interessam aos cientistas sociais quando


compartilhadas e constituídas como histórias de vida e instrumentos heurísticos
para a reconstrução da identidade, da reconstituição de si e de seu lugar em

46
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

relação ao outro. Aqui se encaixam a grande parte dos trabalhos em história


oral, que, por sua vez, são utilizados à compreensão de determinadas situações
e realidades nos diferentes recortes e enfoques. Halbwachs (1990) discute que
os nomes são excelentes gêneros de lembranças, pois designam relações de
parentesco que servem para representar os objetos no que eles supõem um
acordo entre os membros do grupo.

Tedesco (2002) apresenta que os sobrenomes não são apenas uma


identificação pessoal que se esgota no indivíduo que os carrega, pois existem
imagens, contatos com outras histórias, com formas de comunicação temporal,
integridades e persistências. Os nomes associam-se às tradições, às moralidades
e aos elementos de continuidade. O autor reflete que o nome, o “bom nome da
família”, constitui uma categoria totalizante que desafia a linearidade do tempo,
assim como o é a família. Ambos desafiam o limite da vida de seus membros
constituintes. Assim, o autor defende que, no sentido de compor o quadro da
memória individual, deve-se considerar como contributo, além da memória, do
nome, do sobrenome e dos parentescos, também a linguagem, o dialeto, a língua-
mãe, a moradia, o território, a posição social e as aspirações, os valores sociais,
as representações e as visões de mundo.

Depois dessa curta explanação, que mostra os diferentes elementos e


fenômenos de projeção e transferência que podem ocorrer dentro da organização
da memória individual, tem-se uma primeira caracterização, aproximada, do
fenômeno da memória. À luz das reflexões de Pollack (1992), para quem a
memória é seletiva e construída, nem tudo fica gravado ou registrado. A memória
é, em parte, herdada, e não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória
também sofre flutuações ditadas pelos contextos em que ela foi forjada e
articulada, bem como do momento em que ela está sendo expressa.

Caro(a) pós-graduando(a), abaixo segue uma sugestão de filme que ilustra


os aspectos da seleção e construção da memória individual e coletiva, assim
como aborda o desejo dos indivíduos que, em um determinado momento, no
caso, diante de sofrimentos e frustrações, desejaram apagar completamente as
memórias que possuíam. Veja:

47
Memória e História Oral

Título do filme: O brilho eterno de uma mente sem lembranças.

Direção: Michel Grondy.

Síntese: Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winlest)


protagonizam o drama de um casal que pretende fazer com que o
relacionamento seja bem-sucedido. Clementine, muito exausta,
resolve esquecer, apagar Joel, e, para isso, aceita passar por
um tratamento experimental capaz de remover as lembranças e
memórias que possuía com Joel. Quando Joel sabe da atitude
de Clementine, também procura pelo tratamento, mas inicia um
processo de luta e resistência ao esquecimento, mas o tratamento
é mais forte e Joel somente consegue resguardar uma lembrança,
aquela em que Clementine pedia que ele a encontrasse em Moutauk,
o que é suficiente para mantê-lo apaixonado por Clementine. A partir
de então, Joel resolve tentar reverter o processo que Clementine
havia acionado, forjando experiências/lembranças para situações
que os dois ainda não haviam vivido.

O filme requer atenção e sensibilidade, no sentido de


acompanhar o recurso de idas e vindas no tempo passado e
presente, o que, por sua vez, pode ser associado aos ritmos e às
flutuações típicas da própria memória. A discussão avança para os
temas de memória, identidade, amnésia (involuntária) e o direito que
temos de esquecer determinadas lembranças.

O pano de fundo do filme remonta à história do romance


conhecido no folclore popular francês do século XII, vivido pelo
teólogo e filósofo, Abelardo, e Heloisa, esta última uma freira
erudita que viveu na França durante aquela época. O filme retomou
também o poema “Eloisa to Abelard”, publicado em 1717 pelo inglês
Alexander Pope.

“Como é imensa a felicidade da virgem sem culpa. Esquecendo o


mundo, e pelo mundo sendo esquecida. Brilho eterno de uma mente
sem lembranças! Cada prece é aceita, e cada desejo realizado”.
Alexander Pope

48
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

Da Memória Individual À Memória


Coletiva: QuestÕes de Identidade
“Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos”.
Stuart Hall

Existe um determinado momento da vida em que os indivíduos passam a


se perguntar sobre sua identidade. Muitas vezes, essa pergunta é fomentada
por um contexto social e político maior, outras vezes, por questões subjetivas,
existências, necessidades pessoais.

Assim, carrega-se um sentimento de medo e temor em ser confundido,


em não ser reconhecido pelo que tanto que se esforça em parecer ser, ou ao
que pertence, acredita e defende. A identidade comporta os elementos que
proporcionam relações de identificação e pertencimento e/ou diferenciação e
distanciamento, tanto aos indivíduos como aos grupos.

A busca pela identidade, que se constata na sociedade, remonta


primordialmente às questões de memória. Felix (1998) descreve que a memória
se liga à lembrança das vivências e ela só existe quando os laços afetivos criam
o pertencimento ao grupo. A autora reforça que não é a dimensão territorial
que garante a existência do grupo, mas sim as relações de reconhecimento e
pertencimento que foram estabelecidas, ou seja, trata-se de uma relação de
identidade.

A identidade se fixa nas lembranças, nos espaços, nos lugares, na paisagem


e nos objetos. Hall (2000) sugere que se compreenda a identidade como algo que
se forma ao longo do tempo, por meio de processos inconscientes, e não algo
inato, existente na consciência desde o momento do nascimento. Existe sempre
um fundo imaginário que indica que a identidade está incompleta, sempre em
processo, em formação.

A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que


já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.
Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ‘identidade’
e construindo biografias que tecem as diferentes partes de
nossos eus divididos numa unidade porque procuramos
recapturar esse prazer fantasiado da plenitude (HALL, 2000,
p. 39).

49
Memória e História Oral

Bauman (2005) apresenta que as pessoas em busca da identidade se veem


invariavelmente diante de uma tarefa intimidadora, que não pode ser realizada em
tempo real, mas que se completará a longo da experiência de vida, na plenitude
do tempo. O autor alerta que não é possível pensar que pertencemos solidamente
a um determinado grupo ou que respondemos por uma determinada identidade.
As pessoas em busca de identidade almejam “alcançar o impossível”, pois se trata
de referências que flutuam, oscilam, transmutam, possuem fronteiras negociáveis
e revogáveis o tempo todo, recaindo este ritmo e perfil tanto sobre à identidade do
indivíduo como à de um grupo.

Bauman (2005) discute que a identidade emerge com a exposição na


relação com a comunidade e que existem comunidades de vida e de destino.
As comunidades de vida se caracterizam pela adesão profunda e absoluta, no
sentido de viver junto, lado a lado, ombro a ombro. Já as comunidades de destino
se configuram nas aderências do campo das ideias, no compartilhamento de
teorias e princípios.

Segundo Felix (2000 apud TEDESCO, 2002), a memória auxilia na definição


dos laços de identidade dos sujeitos coletivos, dá-lhes o suporte necessário para o
“encontrar-se”. A memória confere referências ao individual/particular e ao grupal/
coletivo. De maneira geral, o conhecimento histórico se encontra numa relação
impessoal com a história, ou, dito de outro modo: é ao mesmo tempo de todos e
de ninguém, não possuí os vínculos de pessoalização, de relação com o concreto
e com o espaço.

Bachelard (1978) descreve que a casa é o nosso canto do mundo e possui


jeito da família. O olhar para trás, o juntar de traços vivenciados no passado,
a transferência de símbolos e a invenção de ritos passam a ser expressão de
identidade. A casa é um dos polos de integração entre pensamentos, lembranças
e sonhos. As lembranças da infância estão ligadas à casa, ao solo, ao território
familiar. Segundo Von Simson (2006), o espaço dá vida à memória e vice-versa e
retornar ao lugar de origem, a um lugar remoto no tempo vivido, alivia a memória
e rompe o esquecimento.
A memória coletiva
se apresenta como Tedesco (2001) discute que, na interface entre o universo das
o lugar de múltiplas
passagens que se coisas e o mundo social, a memória coletiva se apresenta como o lugar
abrem não somente de múltiplas passagens que se abrem não somente entre o individual
entre o individual e o
coletivo, mas também e o coletivo, mas também entre o passado e o presente, o vivido e
entre o passado e o o vivendo, o dito e o não-dito, o explícito e o implícito, o interior e o
presente, o vivido e exterior. É o indivíduo e sua memória que gravitam ao redor do grupo e
o vivendo, o dito e o
não-dito, o explícito e do lugar.
o implícito, o interior e
o exterior.
Pollack (1992) diz que quando se fala em construção, em nível

50
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

individual, ela pode ser tanto consciente como inconsciente. O que a memória
individual grava, recalca, exclui e relembra, é evidentemente o resultado de
um verdadeiro trabalho de organização. Há uma ligação fenomenológica muito
estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Em todos os níveis, a
memória é um fenômeno construído social e individualmente.

O sentimento de identidade é o sentido da imagem de si, para si e para os


outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a
ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria serve
para acreditar na sua própria representação e também para ser percebida da
maneira como quer ser percebida pelos outros (POLLACK, 1992).

Na psicologia social, a construção da identidade ocorre a partir de três


elementos essenciais: a) a unidade física, ou seja, o sentimento da existência
de fronteiras físicas, no caso do corpo da pessoa, e fronteiras de pertencimento
ao grupo, no caso de um coletivo; b) a continuidade dentro do tempo, no sentido
físico da palavra, mas também no sentido moral e psicológico; c) o sentimento de
coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são
efetivamente unificados.

A partir das reflexões de Pollack (1992), é possível dizer que a memória


é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como
coletivo, na medida em que ela é também um fator extremamente importante
do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo
em sua reconstrução. Ao assimilar a identidade social à imagem de si, para si e
para os outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa
ao indivíduo e, por extensão, ao grupo, e tal elemento, obviamente, é o outro.
Ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de negociação, de
transformação em função dos outros.

MAE, Walter Hugo. O paraíso são os outros. São Paulo: Cosac


Naify, 2014.

Síntese: neste livro o autor aborda a ideia de vida em conjunto,


a vida a dois, e tece suas narrativas a partir das observações de uma
menina que é fascinada e intrigada pelo amor, que passa seus dias
sonhando com a pessoa que um dia deve encontrar, o seu amor.
Para tanto, fica observando a vida dos outros, os outros, nesse caso,
são casais, casais de pessoas e de animais. O autor procura dar
sequência à reflexão que Jean Paul Sartre fez em “O ser e o nada”,

51
Memória e História Oral

quando analisa as relações amorosas, afirmando que “o inferno são


os outros. ”

Pollack (1992) defende que a construção da identidade é um fenômeno que


se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade,
admissibilidade, credibilidade, que se faz por meio da negociação direta com
outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas
e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma
pessoa ou de um grupo. Se é possível o confronto entre a memória individual
e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores
disputados em conflitos sociais e intergrupais, particularmente em conflitos que
opõem grupos políticos diversos.

A memória familiar pode ser fonte de conflitos entre pessoas, como, por
exemplo, o caso de um nascimento ilegítimo que se torna um ponto importante
quando se trata de resolver os litígios ligados à herança (POLLACK, 1992).

Não se trata apenas de herança no sentido material, mas


também no sentido moral, ou seja, do valor atribuído a
determinada filiação. Sabemos que a memória, bem como o
sentimento de identidade nessa continuidade herdada, constitui
um ponto importante na disputa pelos valores familiares, um
ponto focal na vida das pessoas (POLLACK, 1992, p. 6).

Pode-se dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído


social e individualmente. Quando se trata da memória herdada, pode-se também
dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o
sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado
no sentido mais superficial, que é o sentido da imagem de si, para si e para os
outros, ou seja, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente
a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria,
para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da
maneira como quer ser percebida pelos outros.

Halbwachs (1990) apresenta que a identidade individual é reconstrução


permanente da mesma forma que a realidade social. O indivíduo articula sua
capacidade de memorização conhecendo e se reconhecendo no grupo. Trata-se
de uma relação de mão dupla, o indivíduo se recorda colocando o ponto de vista
do grupo e a memória coletiva se realiza/manifesta na memória individual. O autor
defende também que a memória individual é conservada na memória dos outros,
possuindo origem social e significados coletivos porque seu esforço consiste em
sair da forma atual de compreender as circunstâncias da lembrança. O reencontro

52
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

de um amigo de infância e uma viagem em um país onde passou a juventude


demostram que as lembranças não foram abolidas, mas elas se conservam na
memória dos outros.

Arruda (2006, p. 120) sugere que “o patrimônio cultural expressa certa


solidariedade que une os que compartilham um conjunto de bens e práticas
que os identificam, mas também costuma ser o lugar da cumplicidade social”.
As atividades destinadas a defini-lo, preservá-lo e difundi-lo, amparadas pelo
prestígio histórico e simbólico das instituições patrimoniais, incorre quase sempre
numa simulação/promoção em sustentar que a sociedade não está dividida
de forma desigual entre classes, etnias e grupos, ou também quando afirmam
que a grandiosidade e o prestígio acumulados por esses bens e instituições
transcendem essas frações sociais e pertencem a todos, quando, na verdade,
referem-se apenas a um pequeno e restrito grupo que visa ostentar e preservar o
status quo que detém.

Conforme Yúdice (2004), a cultura deve ser antes um espaço onde as pessoas
se sentem seguras e em casa, onde elas se sentem pertinentes e partícipes de
um grupo numa perspectiva em que ela é a condição necessária para a formação
da cidadania, sendo a matéria-prima e o fator aglutinador entre o patrimônio, seus
sujeitos e a arena onde se galgam as possibilidades de cidadania.

Diehl (2002) descreve que, pelo senso popular, a memória se


encontra profundamente ligada às tradições familiares e aos grupos Os fatores tempo,
espaço e movimento
sociais da comunidade. Nessa instância de componentes ocorre a
são fundamentais
aprendizagem e a socialização, que são responsáveis pela transmissão para compreender
da herança que dará continuidade a determinada tradição. Nesse a constituição das
contexto, o autor apresenta que os fatores tempo, espaço e movimento identidades.
são fundamentais para compreender a constituição das identidades.

Hall (2000) discute que a globalização tem afetado as identidades,


provocando consequências como a desintegração e o declínio de identidades
nacionais, fomentando e reforçando movimentos de resistência por parte de
identidades e particularidades locais. Essa dinâmica pode ser percebida a partir
dos anos 1980, quando passou a ocorrer um amplo movimento de abertura e
aproximação entre as nações, salvo os casos em que vigoravam modelos político-
econômicos não alinhados às democracias e ao capitalismo, como, por exemplo,
Cuba e Coréia do Norte.

A partir dos anos de 1980, novas/outras bandeiras foram confeccionadas


e erguidas, novas questões e causas passaram a ecoar. Novos/outros grupos
se empoderaram e galgaram por representatividade no contexto político,
econômico e cultural de uma comunidade, região, país e continente. Questões

53
Memória e História Oral

de gênero, sexualidade, meio ambiente, direitos humanos, vida cultural,


anticorrupção, economia solidária, modos de vida alternativos, expressos
por minorias, como feministas, gays, lésbicas, travestis, transexuais, índios,
negros, ciganos, migrantes, palestinos, judeus, ribeirinhos, sem-teto, sem-terra,
pessoas com deficiências, pedestres, deportados, exilados, perseguidos e/ou
torturados, ambientalistas, defensores dos animais, pacifistas e grupos religiosos
organizados na forma de movimentos sociais, organizações não governamentais e
voluntariados que procuram ancoragem e representatividade, tanto nas estruturas
oficiais dos governos como nas empresas da sociedade civil organizada e em
meio a comunidade.

Atividade de Estudos:

1) Pesquise e descreva quais são os principais grupos e movimentos


sociais que atuam em prol de alternativas de trabalho e renda,
atividades de educação, artesanato, organização e divulgação de
eventos de cultura, arte, música, sindicatos, associações, grupos
de defesa dos direitos humanos (crianças, idosos) e do meio
ambiente em sua comunidade e região.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Caro(a) pós-graduando(a), como ilustração desses movimentos, observe


abaixo a sugestão de leitura que apresenta a publicação fomentada por uma
organização não governamental (ONG) e que contempla as questões das
comunidades indígenas da região nordeste do Brasil. Veja:

Síntese: Trata-se de em um livro em que 16 indígenas das


tribos Pankararu, Potiguara, Pataxó, Fulni-ô, Kariri-Xocó, Tupinambá,
Quixelô, Pataxó Hãhãhãe, Kanindé, Karapoto Plaki-ô, Payayá e
Xokó, registram e compartilham escritos, fotografias e desenhos que
compõem as memórias, os sentimentos e as visões de seus povos.

54
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

O livro está disponível no seguinte endereço eletrônico: <http://


goo.gl/jDTvAU>.

Para o contexto que se configura a partir dos anos 1980, Bauman (2005)
sugere a reflexão de que uma única teoria ou modelo explicativo, como se
pensou desde a época moderna, são insustentáveis e não dão mais conta da
complexidade da experiência humana e da diversidade que caracteriza o mundo
em que se vive. Em 1994, um cartaz espalhado pelas ruas de Berlim expressava
a ideia de globalização, de movimento e circulação de culturas, que, por sua
vez, expressava a postura de protesto diante das ideias de homogeneização de
identidades e culturas. A frase era a seguinte:

Seu Cristo é Judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana.


Sua democracia, grega. Seu café é brasileiro. Seu feriado,
turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu
vizinho é estrangeiro (BAUMAN, 2005, p. 33).

Bauman (2005) discute que as identidades flutuam no ar. Muitas vezes,


somos os reais responsáveis pelas escolhas que fazemos; outras, são infladas
e lançadas pelas pessoas em nossa volta. Em meio a esse trânsito que permeia
as identidades, faz-se necessário manter alerta constante no sentido de defender
nossas escolhas diante das expectativas e interesses dos outros.

Por outro lado, muitas pessoas se dedicam para estabelecer diferenças em


relação aos demais e não toleram outros pertencimentos, como, por exemplo,
gaúcho, paulista ou nordestino, índio e negro.

Os regionalismos podem favorecer este tipo de relação entre os indivíduos,


em que as cadências e peculiaridades favorecem sentimentos de afastamento e
até situações de isolamento e separatismos (movimentos de separatismo podem
ser identificados no norte da Itália, sul do Brasil, nos escoceses e eslovenos).
Bauman (2005) defende que é deplorável os movimentos separatistas, condena
os sentimentos de intolerância e ódios tribais, mas não os acusa de irracionais e
os despreza, pois foram laboriosamente construídos e expressam questões, como
a erosão da soberania nacional, bem como o desejo de reajustar novos interesses
e novos atores no jogo do poder político e econômico.

Caro(a) pós-graduando(a), observe a sugestão de filme que segue abaixo,


abordando os temas de rebeldia, conflitos étnico-raciais, identidade, integração,
diferenciação, exclusão, violência, ideologias, skinheads, neonazismo, em meio à
juventude norte-americana. Veja:

55
Memória e História Oral

Título do filme: A outra história americana.

Diretor: Tony Kaye.

Síntese: A trama central do filme está na história de dois irmãos,


Derek (mais velho) e Danny (mais jovem), envolvendo a história da
perda do pai, ainda jovens, que foi baleado fatalmente enquanto
trabalhava em um bairro de negros nos subúrbios dos Estados
Unidos. Esse fato foi responsável por ativar o sentimento de ódio
dos irmãos diante de negros e imigrantes. Quando Derek era jovem,
liderou um grupo que simpatizava com a ideologia nazista e skinhead
(cabeças raspadas), que acreditava na supremacia de uma raça
pura, incitava o ódio e a discriminação de negros e imigrantes.

Uma noite, três homens negros tentam roubar o carro do


falecido pai. Derek consegue interpelá-los e acaba por matá-
los brutalmente. Em pouco tempo Derek acaba preso, fato que é
responsável por reforçar ainda mais a imagem de Derek como herói
em meio à comunidade de jovens que liderava, porém a estada na
prisão foi responsável por fazer Derek refletir profundamente sobre
seus valores ao ponto de abrir mão da antiga forma de pensamento.
Enquanto toda esta transformação se passava com o irmão mais
velho, Danny o irmão mais jovem, enveredava pelos antigos
caminhos do irmão antes da prisão.

Quando Derek se dá conta de que o irmão reproduziria toda a


trajetória de vingança cega que ele havia percorrido, procura interferir
e recuperar o irmão do destino trágico que o aguarda.

Para maiores informações sobre o filme “A outra história


americana”, leia a análise feita pelo LEMAD (Laboratório de Ensino
e Material Didático), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo-USP, disponível no seguinte
endereço eletrônico: <http://lemad.fflch.usp.br/node/257>.

56
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

Caro(a) pós-graduando(a), as questões de convivência pacífica, tolerante


e solidária, o respeito aos direitos humanos, o reconhecimento da liberdade, da
dignidade de existência do outro e da alteridade dos indivíduos são alguns dos
principais desafios apresentados à humanidade no descortinar das primeiras
décadas do século XXI. Prossiga os estudos, outras problemáticas e desafios
serão apresentados na sequência.

A Dimensão Coletiva da Memória: A


Sociedade e a PolÍtica
“Somos sempre o jovem ou o velho de alguém”.
Pierre Bourdieu

Maurice Halbwachs (1877- 1945), sociólogo francês de grande


identificação com a escola de Emile Durkhein, a partir dos anos de A história é uma,
1920 se dedicou aos estudos da memória coletiva. Sua morte ocorreu enquanto há tantas
memórias coletivas
num campo de concentração de Buchenwald, no interior da Alemanha.
quantos grupos,
Segundo o sociólogo, o pensamento social constitui essencialmente nas quais cada um
uma memória, composta de lembranças coletivas, mas, dessas imprime sua própria
lembranças, somente aquelas que a sociedade, ao trabalhar sobre duração.
seus quadros atuais, pode reconstruir. A história é uma, enquanto
há tantas memórias coletivas quantos grupos, nas quais cada um imprime sua
própria duração. Assim, sob efeito de uma vida social cada vez mais acelerada,
há cada vez mais memórias coletivas (HALBWACHS, 1990).

Halbwachs (1990) defende que a memória coletiva se desenvolve sob


influência de leis próprias, que podem ser entrecruzadas pelas lembranças
individuais, bem como alteradas quando recolocadas no conjunto. A memória
coletiva forma uma corrente de pensamento contínuo (ela só retém do passado o
que ainda é vivo), enquanto o historiador só pode fazer sua obra com a condição
de pôr-se deliberadamente fora do tempo vivido pelos grupos que assistiram aos
acontecimentos, que tiveram com eles o contato mais ou menos direto e que
podem se lembrar. Nesse aspecto Ricoeur (2007) diz que:

Não é somente o caráter penoso do esforço de memória


que dá à relação sua coloração inquieta, mas o temor de ter
esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de
cumprir esta ou aquela tarefa; porque amanhã será preciso
não esquecer... de se lembrar. Aquilo que [...] chamaremos de
dever de memória consiste essencialmente em dever de não
esquecer (RICOEUR, 2007, p. 48).

57
Memória e História Oral

O pensamento coletivo encontra no grupo (família, religião e classes sociais)


os elementos fundantes da memória coletiva. Segundo Halbwachs (1990), a
passagem da memória individual para a coletiva se processa no espaço do vivido
externo, em conjunto. A família não consiste em sentimentos pessoais de regras e
costumes que não dependem de nós, que existem antes de nós, mas que fixam e
sedimentam o nosso lugar.

Para Tedesco (2001), a memória coletiva possui atributos de normatividade


(a família, o religioso, o habitus de classe), simbologias, extemporaneidade,
noções sociais ou experiências (linguagem, classe social, lembranças e outros)
e continuidade. Além desses atributos, a memória coletiva é tipologizada por
gêneros e níveis de memória, que vão desde a diacronia, sua ligação ou não
com a história, até espécies de memória dentro de um gênero de memória, com
a hierarquia das lembranças (níveis de tempo e de sentido). Essas tipologias
manifestam os níveis de agrupamento referentes à memória coletiva de família,
às classes e ao âmbito religioso.

A memória coletiva possui mecanismos mediadores. Halbwachs (1990)


analisa que no caso especial dos velhos, estes não se contentam em esperar
passivamente que as lembranças despertem, eles buscam precisá-las. As
sociedades, ao atribuir aos velhos a função de conservar os traços de seu
passado, os encoraja e estimula a empregar tudo o que lhes resta de energia
espiritual em lembrar-se. Tedesco (2001) sustenta que o fato de existirem
notáveis mediadores e devotos aos trabalhos das lembranças e das memórias se
deve por existir a possibilidade da mudança, do esquecimento, da transgressão,
do multifacetamento dos quadros de memória, ou seja, a memória precisa ser
trabalhada.

Felix (2000 apud TEDESCO, 2002) diz que as memórias coletivas e as


memórias sociais são entendidas como sistemas organizados de lembranças,
cujos aportes são os mais diferentes grupos, os quais, por sua vez, são
responsáveis por conferir coesão ao indivíduo e ao grupo social. Tais lembranças
precisam ser constantemente sensibilizadas e mobilizadas para se manterem
vivas, pertencem ao campo simbólico e ao horizonte mítico, possuem heróis e
anti-heróis e coexistem com outras memórias sociais.

Hobsbawm e Ranger (1984) alertam para o fato de que, muitas vezes, as


tradições parecem ser muito antigas, quando, na verdade, são bastante recentes
e, em alguns casos, não passam de invenções. Quando inventadas, tendem a
inculcar certos valores e normas de comportamento por meio de rituais e práticas
de repetição contínua.

58
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

Pollak (1992) discute que a memória é, em parte, herdada, não se referindo


apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que
pertencem ao momento em que ela foi e é articulada, em que ela está sendo
expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação
da memória. Isso é verdade, também, em relação à memória coletiva, ainda que
esta seja bem mais organizada.

As datas oficiais que compõem os calendários os quais regem um país


são fortemente estruturadas do ponto de vista político (fundação, emancipação,
independência, proclamação da república, revoltas e revoluções). Quando
se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente
selecionadas para as festas nacionais, há, muitas vezes, problemas de luta
política. A memória nacional constitui um objeto de disputa importante e são
comuns os conflitos para determinar as datas e os acontecimentos que serão
gravados na memória de um povo.

Este último elemento da memória - a sua organização em O que a memória


individual grava,
função das preocupações pessoais e políticas do momento - atestam
recalca, exclui,
o pensamento de Pollack (1992) de que a memória é um fenômeno relembra, é
construído. Quando a construção ocorre em nível individual, os modos evidentemente o
podem tanto ser conscientes como inconscientes. O que a memória resultado de um
individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado verdadeiro trabalho
de um verdadeiro trabalho de organização. de organização.

Felix (2000 apud TEDESCO, 2002) distingue que as memórias nacionais,


pertencentes ao conjunto de referências oficiais, possuem um corpo e conjunto
de elementos mais sólidos, unificados e integrados, que também combinam
elementos do horizonte mítico e heroico. O autor indica, como, por exemplo, o
caso de Nossa Senhora Aparecida, que ao mesmo tempo comporta a atribuição
de santidade e padroeira do Brasil, e Tiradentes, o herói nacional, calabar, traidor.

Hall (2000) aborda que as memórias nacionais acabam por construir


identidades de caráter ambíguo, sedimentadas nas dimensões de passado
e de futuro ao mesmo tempo. Sofrem da tentação de se voltar a um passado
confortante, grandioso, mítico, e recuar diante dos desafios, problemas e
incertezas do presente e do porvir.

Conforme Diehl (2002), a memória na esfera pública e coletiva pode assumir


as funções de identificação cultural, controle político-ideológico, diferenciação
e integração. No que tange às questões de identidade, não se pode esquecer
os processos de violência ofensiva e terrorismo, que foram praticados às
culturas americanas pelos portugueses, espanhóis e ingleses nos processos de
colonização.

59
Memória e História Oral

Bosi (1990) explica que é comum utilizar a referência ao passado como


recurso linguístico argumentativo e legitimador de algum tipo de ação, luta
e confronto. O passado reconstruído não é um refúgio, mas uma fonte, um
manancial de razões para lutar.

Casadei (2016) defende que as formas utilizadas na comunicação e


difusão das memórias coletivas e públicas possuem historicidade e precisam ser
reconhecidas e problematizadas. Dentre os casos mais expressivos, tem-se que
na idade média foram utilizadas amplamente pinturas para construir e demarcar
os lugares do inferno, o paraíso e o purgatório na memória e no imaginário das
populações cristãs. Para a autora, os produtos midiáticos mais recentes, que
retratam o passado, tais como produções jornalísticas, cinematográficas ou
radiofônicas, expressam e articulam narrativas coerentes em torno de um passado
que tende a ser comum e a alcançar um vasto número de pessoas.

A imprensa, nesse sentido, insere-se em um contexto de aumento da oferta


da memória coletiva, que deixa de ser matéria somente de museus, arquivos e
túmulos. A invenção da prensa revoluciona a memória ocidental, uma vez que
com a massificação dos impressos, o leitor pode ter contato com um volume
enorme de memórias coletivas. É a memória jornalística que, ao lado da
memória diplomática, promove a entrada em cena da opinião pública nacional e
internacional, que constrói também a sua própria memória (LE GOFF, 1990).

Os entrecruzamentos e as reestruturações de linguagens, proporcionados


pelas novas tecnologias da informação e comunicação, parecem pôr em operação
um redesenho dos modos tradicionais de transmissão da memória e do passado,
a partir do estabelecimento de novos modos de sociabilização e de interação com
os tradicionais lugares de memória. Além de transformar a configuração desses
espaços em seu cerne (por meio da reconfiguração de sua linguagem), esses
novos espaços promovem uma forma diferente de relacionamento das pessoas
com o passado, a partir da abertura da possibilidade de interação e participação
ativa na construção dessa memória relacionada às identidades coletivas
(CASADEI, 2006).

ObJetos e Lugares de Memória


“Ainda que a argila possa receber a forma de vaso, a
essência do vaso reside em seu interior”.
LAO TSÉ

Para que as memórias e as lembranças sejam sensibilizadas, lugares e


objetos desempenham função primordial. Os objetos e os lugares edificados

60
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

desfrutam de reconhecimento irrefutável, unânime e consolidado em meio a uma


determinada população. Uma casa, um prédio que serviu de espaço às instalações
da antiga intendência municipal e que foi posteriormente transformada em museu
são referências que não deixam margem para interpretação e especulação quanto
a sua ocupação.

Os cheiros, os sabores, as músicas, as vivências e as emoções que foram


experimentadas nas possíveis reuniões, celebrações, festas, exposições, a
circulação dos indivíduos e visitantes, formam as memórias e lembranças que
compõem a dimensão imaterial, intangível, individual e subjetiva das referências,
não sendo possível identificá-las, captá-las e expressá-las/exprimi-las com a
mesma facilidade como é feito com os lugares e objetos por eles mesmos. As
memórias e lembranças se encontram na condição relativa dos fatores, em
especial, aos vínculos estabelecidos no tempo e no espaço, compondo o corpo de
sentido e a aura dos espaços e objetos históricos.

Horta (1990) defende que os objetos que pertencem ao uso cotidiano


no interior dos espaços e habitações podem proporcionar uma vasta gama de
estudos e atividades de pesquisa que vão desde o contexto social e histórico
no qual foram elaborados e utilizados, os usos que lhe foram atribuídos, até
as funções que desempenharam e o valor e significado que possuíam e ainda
possuem para os indivíduos e para a sociedade.

Os objetos podem fornecer informações em nível direto/objetivo e indireto/


subjetivo, podendo também revelar gostos, hábitos e costumes, modos de viver
e conviver, nível e tendências tecnológicas e toda a rede de relações sociais
que os cercavam. São exemplos de objetos a cadeira, a cama, o guarda-roupa,
o chapeleiro, a mesa, os cachimbos, os óculos, os lustres, os abajures e as
luminárias, o criado-mudo, os telefones, os rádios, os relógios, as xícaras, os
copos, os pratos, os calçados, os bules, os talheres, as panelas, os acessórios, as
roupas, as malas, entre outros.

61
Memória e História Oral

Figura 5 - Prateleira de antiguidades

Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/9mpoyr>. Acesso em: 14 mar. 2016.

MCB - Museu das Coisas Banais – Universidade Federal de


Pelotas - UFPEL-RS.

Trata-se de um projeto de pesquisa vinculado ao Instituto


de Ciências Humanas da UFPEL, que pretende incluir no mundo
virtual objetos que pertencem ao cotidiano, acompanhados de suas
histórias.

Para acessá-lo utilize o seguinte endereço eletrônico: <http://


wp.ufpel.edu.br/museudascoisasbanais/>.

62
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

Escolha um objeto que acompanha você ou que está sob


seus cuidados, com o qual você estabeleceu vínculos de afeto,
experiências, lembranças e memórias. Procure identificar questões
relacionadas ao nome, dimensões, para que foi usado, que cheiro
possui, que barulho faz, está em uso ou não, que valor possui
para você, entre outros que o objeto possa suscitar. Na sequência,
fotografe-o.

Posteriormente, acesse ao site do Museu das Coisas Banais


(indicado anteriormente), clique no ícone “acervo”, preencha os
dados básicos do cadastro e envie sua história/objeto, contribuindo,
assim, para o projeto.

Nora (1996) defende que um lugar de memória é qualquer entidade


Um lugar de
significante, pode ser de natureza material ou imaterial, que por força
memória é
da vontade humana ou pela ação do tempo se tornou um elemento qualquer entidade
simbólico da herança memorial de uma comunidade. Segundo Kritzman significante, pode
(1996 apud NORA, 1996), os lugares de memória compreendem ser de natureza
determinados espaços (contam ou não com monumentos, personagens material ou imaterial,
e/ou narrativas) que reúnem certas comunidades em torno de valores que por força da
vontade humana
e identidades sociais comuns, bem como são responsáveis por
ou pela ação do
proporcionar um quadro de referências que pode ser usado como tempo se tornou um
legitimação para diversas propostas e ideologias políticas. elemento simbólico
da herança memorial
Hall (2000) defende que o lugar é específico, concreto, conhecido, de uma comunidade.
familiar delimitado, o ponto em que são formadas e moldadas as
nossas identidades e no qual estas se fundamentam. São lugares de memória e
representação do passado os monumentos, os centros, os sítios, os parques, os
marcos e pontos fundantes, os aniversários, as festas, os eventos excepcionais,
as casas, os teatros, os cinemas, os hospitais, as usinas, os largos, as ruas,
as praças, os coretos, os mirantes, as igrejas, os cemitérios, os memoriais,
os santuários, as grutas, os arquivos, os museus, as bibliotecas, os filmes, as
fotografias, as paisagens, os objetos, as medalhas, os títulos, as condecorações,
as coleções, os acervos e outros.

63
Memória e História Oral

Figura 6 - Antigo coreto da cidade de Três Lagoas - MS

Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/Xjw8gu>. Acesso em: 06 mar. 2016.

Atividade de Estudos:
1) Descreva quais são os principais lugares de memória coletiva que
existem na sua cidade.
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Segue abaixo uma sugestão de filme para complementar seus


estudos. Veja:

Título do filme: Cinema Paradiso.


Diretor: Giuseppe Tornatone.

Síntese: Totó foi um garoto que, em 1940, vivia na Sicília, no


interior da Itália, enquanto transcorria a segunda guerra mundial. Na

64
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

infância, a sua principal diversão era passar as tardes no Cinema


Paradiso, ao lado do projecionista Alfredo, que lhe mostrava
todos os segredos e encantos da profissão e do cinema, antes da
popularização dos aparelhos de TV. O filme ilustra todo processo de
transmissão do fazer e da técnica da projeção, bem como, ao mesmo
tempo, remonta à história e à memória cinematográfica. Quando
adulto, vive uma imensa paixão, seguida de desilusão com Elena,
filha de um banqueiro da cidade, fazendo com que Totó se mudasse
para Roma. Uma vez em Roma, Totó envereda pelo campo da sétima
arte, tornando-se um cineasta famoso.

Tedesco (2001) descreve que a seiva da memória é retirada dos lugares e a


comunidade é um lugar privilegiado na produção desse alimento, é uma totalidade
estruturada que ganha sentido, mesmo em meio a conflitos e tensão.

Os lugares de memória promovem a cristalização da memória


social; atestam a ruptura da memória social/grupal partilhada
pelas vivências; manifestam o desvio da passagem no tempo
pela tradição e pelo costume; representam o estique material,
o vestígio que a memória perdeu e que poderá significar o
amanhã. Os lugares e os grupos são objetos de lembrança
que originam fluxos de memória e que denotam expressões
de identidades sociais do informante. Através da memória,
tempo e espaço permanecem, são colocados à disposição
(TEDESCO, 2001, p.54).

Pollack (1992) reforça que além dos acontecimentos e dos lugares, a


memória é constituída por pessoas, personagens. Aqui também é possível aplicar
o mesmo esquema, falar de personagens realmente encontradas no decorrer da
vida, de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim
dizer, transformaram-se em quase conhecidas, e, ainda, de personagens que não
pertenceram necessariamente ao espaço-tempo da pessoa.

Além dos acontecimentos e das personagens, podemos


finalmente arrolar os lugares. Existem lugares da memória,
lugares particularmente ligados a uma lembrança, que pode
ser uma lembrança pessoal, mas também pode não ter apoio
no tempo cronológico. Pode ser, por exemplo, um lugar de
férias na infância, que permaneceu muito forte na memória da
pessoa, muito marcante, independentemente da data real em
que a vivência se deu (POLLAK, 1992, p. 201-202).

Pollak (1992) quer dizer que na memória mais pública, nos aspectos mais
públicos da pessoa, haverá lugares de apoio da memória, que são os lugares de
comemoração. Os monumentos aos mortos, por exemplo, podem servir de base
a uma lembrança de um período que a pessoa viveu por ela mesma ou de um
65
Memória e História Oral

período vivido por tabela. Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida
de uma pessoa, podem constituir lugares importantes para a memória do grupo,
e, por conseguinte, para a própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento
a esse grupo.

Na análise do autor, os critérios de acontecimentos, personagens e lugares,


conhecidos direta ou indiretamente, podem dizer respeito a acontecimentos,
personagens e lugares reais e se encontram empiricamente fundados em fatos
concretos, mas podem se tratar também da projeção de outros eventos.

O autor exemplifica com os casos europeus em relação às suas colônias.


A memória da África, em relação aos Camarões ou Congo, pode fazer parte da
herança da família com tanta força que se transforma praticamente em sentimento
de pertencimento. A confusão que existe entre fatos ligados a uma ou outra guerra,
no caso específico da França, uma vez que a primeira guerra mundial deixou
marcas muito fortes em certas regiões, por causa do grande número de mortos,
ficou gravada como a guerra mais devastadora e, frequentemente, os mortos da
segunda guerra são assimilados aos da primeira, assim como em outras regiões,
as duas viraram uma só, quase que uma grande guerra.

Caro(a) pós-graduando(a), atente para as próximas páginas deste capítulo,


que procuram problematizar a necessidade e o apelo que existe para a memória
pública e os espaços de memória, no sentido de compreender a função que eles
exercem e as questões que preenchem nas sociedades contemporâneas.

Crises e QuestÕes de Memória


“Há lugares de memória por que já não há meios de memória”.
Nora

Nora (1993) problematiza que a aceleração do tempo na história é


responsável por promover a percepção de que o passado e a memória estão cada
vez mais distantes, perdidos e mortos; que só resta o fugaz momento presente.
Porém as ruínas do passado, mesmo parecendo desconectadas com o momento
presente, ainda são capazes de acalentar e confortar as angústias dos indivíduos,
pois naqueles lugares, mesmo interrompidos e esfacelados pelo presente, persiste
um sentimento residual de tradição e cultura.

As sociedades pré-modernas, marcadas fortemente pelo ritmo da natureza,


do trabalho manual e artesanal, pelos valores morais familiares e religiosos em que
prevalecia a sociabilidade comunitária, permitiam o nascimento da tradição, no
qual o coletivo e o individual se fundiam, dando lugar ao espaço de pertencimento
comum.

66
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

O fim das sociedades de memória que presenciamos hoje pode ser


identificado quando ocorre a desestruturação das instituições como a família, a
igreja, a escola ou o Estado. O processo de rompimento com a tradição e com o
passado data de quando essas instituições ocidentais deixaram para traz o mundo
rural, agrícola e artesanal, passando a se tornar urbanizadas e industrializadas
por volta do século XVIII. Essa tal ruptura se acentuou mais recentemente com os
processos de mundialização, massificação e midiatização da cultura.

Diehl (2002) descreve que, diante de um cenário de crise das expectativas


otimistas de redenção do homem no futuro, provocou-se a supervalorização do
momento presente, das ações em tempo imediato. Quando o presente frustra,
o por vir causa ansiedade e angústia e o passado é acionado como válvula de
escape e meio de conforto com efeito tranquilizante. Nesse aspecto, a história
suspeita e questiona as representações do passado e da memória. A história
desestabiliza e a memória sedimenta e cristaliza; logo, a estratégia tem sido a de
reconstruir o passado pela perspectiva de futuro no passado.

Os espaços de memória são entendidos como restos, ruínas, evidencias


remotas que, com muito custo e esforço, ainda ecoam no presente. Diante disso,
faz-se necessário criar arquivos, registrar e reunir o maior número de informações
possíveis, marcar os fatos e as festividades nos calendários oficiais e dispensar
reverências comemorativas, empreender atividades de resgate e tombamento.
Todas essas tentativas, no fundo, acabam por revelar faces de uma nostalgia
quase que esquizofrênica, pois, segundo Dosse (2003, p. 295), configura-se
como que um “jogo das comemorações que tende à dialética da ausência tornada
presente por uma cenografia, uma teatralização e uma estetização do relato”.

Nora (1993) chama todo esse aparato de vigilância comemorativa. Segundo


o autor, todos esses “atos” de piedade e devoção com a memória e a história
nada mais são do que os rituais de uma sociedade sem rituais, sacralizações
passageiras de espíritos dessacralizados, de diferenciações que almejam
o nivelamento, particularismo de uma sociedade que procura aplainar e
homogeneizar o diferente e o peculiar. Se tivéssemos à disposição o passado,
a história e a memória, não conseguiríamos atribuir sentido e valor real às
lembranças que carregamos; os dilemas que o tempo presente nos coloca são
outros, precisam de outras respostas e soluções.

Nora (1993) argumenta que a história age sobre o passado e a memória como
o mar age em relação as conchas dos crustáceos, toma-os, leva-os, devolve-os;
toma-os, leva-os e os devolve novamente, em eternos retornos de resignação, um
vai e vem de conveniências e de interesses.

67
Memória e História Oral

Caro(a) pós-graduando(a), no próximo capítulo do caderno de estudos, as


questões que se referem aos usos, abusos e interesses que são atribuídos à
memória recebem aprofundamento. Sendo assim, não as perca de vista, e se
necessário for, retorne a este capítulo no qual o tema foi introduzido.

Algumas ConsideraÇÕes
“Ao pé das fogueiras acesas, crianças, jovens, adultos, até os já passados dos
noventa, teciam calorosos cantos e contos grupais, envolventes e encantados.
Hoje, em tempos de fogueiras apagadas precisamos fuçar na memória e catar os
cacos dos sonhos para engrandecer a vida e não sufocar o mito e a poesia”.
ELIAS JOSÉ

Nora (1993) sintetiza que a memória é de natureza múltipla, desacelerada,


coletiva, plural e individualizada. Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos
pessoalmente; em segundo lugar, são os acontecimentos vividos por tabela, ou
seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade a qual a pessoa
sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou,
mas que no seu imaginário tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é
quase impossível que ela consiga saber se participou ou não.

Existe também uma tensão de pertencimento e não pertencimento entre o


individual e o coletivo, o particular/privado e o público/coletivo, entre o local e o
global. Pode-se pensar que essa tensão ocorre numa via de mão dupla em que o
fundamentalismo, o regionalismo e o separatismo tendem a defender e legitimar
o primeiro diante do segundo; assim como a universalização e a globalização, em
contrapartida, tendem a incorporar, de forma mercantil e homogeneizada, o local
e o regional, diante da necessidade de legitimar o primeiro.

Bauman (2005) defende que as soluções locais não dão conta, não
conseguem oferecer soluções para problemas globais e vice-versa. Para
problemas globais se fazem necessárias ações globais e para problemas locais e
regionais, soluções locais e regionais. Enquanto não enxergamos ações globais
tomando forma, e ao invés de nos tornarmos reféns da globalização, que exala
ambição por poder, hegemonia e dominação, precisamos demonstrar inteligência
e sabedoria para recriarmos estruturas sociais, grupos, experiências, indivíduos
pensando e refletindo sobre a trajetória humana e como os problemas foram
superados e ultrapassados em outros tempos.

Faz-se necessário, também, atribuir real necessidade ao trabalho,


produção, remuneração, bem-estar, satisfação e realização pessoal. Da
mesma forma em relação às experiências de consumo consciente, em ciclos
de reaproveitamento e com o mínimo de desperdício de materiais, de economia

68
Capítulo 2 MEMÓRIA INDIVIDUAL E MEMÓRIA COLETIVA

solidária e ecologicamente sustentável, nas quais o ser humano possa expressar


e desenvolver dignamente suas capacidades criativas nos campos da poesia, da
literatura, das artes plásticas, do cinema, do artesanato, da dança, da música,
da culinária, na transmissão de experiências, saberes, história e memórias, de
cultivo de tradições e culturas milenares, e condições para que outras sejam
resguardadas até que novas sejam criadas.

Que subsistam e sejam ampliados espaços, locais e momentos que


possibilitem a religação do homem com sua dimensão espiritual, do profano e
do sagrado, de contemplação e reflexão das obras humanas, de percepção da
grandeza e da exuberância do universo, no sentido de viver em harmonia consigo
e com o outro. Enfim, tem-se muito a viver e a fazer, e o tempo não volta atrás,
logo resta seguir adiante!

ReFerÊncias
ARRUDA, G. O patrimônio imaterial: a cidadania e o patrimônio dos sem eira
nem beira. Diálogos, Maringá, v. 10, n. 3, p. 117-144, fev. 2006.

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BARROS, M. M. L. Memória e família. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2,


n. 3, p. 29-42, abr. 1989.

BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge


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BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Cia das
Letras, 1990.

CASADEI. E. B. Os novos lugares de memória na internet: as práticas


representacionais do passado em um ambiente on-line. Disponível em: <http://
goo.gl/iuOZ5m>. Acesso em: 06 mar. 2016.

DIEHL, A. A. Cultura historiográfica: memória, identidade e representações.


Bauru: EDUSC, 2002.

DOSSE, F. A história. Bauru: EDUSC, 2003.

FÉLIX, L. O. História e memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo:


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69
Memória e História Oral

_______. Política, memória e esquecimento, 2000. In: TEDESCO, J. C. (Org.)


Usos de memórias. Passo Fundo: UPF, 2002.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 4. ed. Rio de Janeiro:


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HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (Org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1984.

HORTA, M. de L.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A. Q. Guia básico de


educação patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional-Museu Imperial, 1990.

LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Unicamp, 1990.

NORA, P. Realms of memory. Nova York: Columbia University Press, 1996.

NORA, P. Entre história e memória: a problemática dos lugares. PUC, São Paulo,
v. 10, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. Tradução de: Yara Aun Kyoury.

POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v.


5, n. 10, p. 200-212, abr. 1992.

RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp,


2007.

TEDESCO, J. C. Memória e cultura: o coletivo, o individual, a oralidade e


fragmentos de memórias de nonos. Porto Alegre: Est Edições, 2001.

______. (Org.). Usos de memórias: política, educação e identidade. Passo


Fundo: UPF, 2002.

VON SIMSON, O. B. de M. (Org.). Velhice e diferenças na vida


contemporânea. Campinas: Alínea, 2006.

YÚDICE, G. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo


Horizonte: UFMG, 2004.

70
C APÍTULO 3
Os Ditos e Não Ditos, os Usos
e Abusos na História Oral

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Avaliar as relações de codependência e/ou conflitos que existem entre as


concepções de tradição e modernidade, testemunho (ver) e relato (ouvir),
silêncio, lembrança e esquecimento, subjetividade e fragilidade, memória e
imaginário.

 Discutir o campo das ideologias políticas e culturais que perpassam e forjam os


interesses e os sentidos que são atribuídos à memória e às identidades.

 Abordar as noções de memória e esquecimento nas conjunturas políticas e


ideológicas e nos contextos explicativos de memórias subterrâneas, reprimidas
e silenciadas.

 Compreender a importância da noção de testemunho e função da rememoração


aos temas e estudos de memória e história oral.
Memória e História Oral

72
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

ConteXtualiZaÇão
Estudar memória e história oral requer que se esteja alerta para os
mecanismos de elaboração e manutenção daquelas memórias; que se leve em
consideração os sujeitos como construtores de identidade, o que, por sua vez,
coloca-nos em meio às redes de poder, nos espaços de dominação, e que,
ao mesmo tempo, podem fornecer os subsídios para renovar a produção do
conhecimento histórico e político que se encontra sistematizada e difundida.

Félix (2002) trata de colocar diversos questionamentos e sugestões para que


se reflita sobre o a explosão de estudos sobre a memória nos últimos 40 anos,
uma vez que o tema já se encontrava presente há pelos menos 2.500 anos nos
escritos de Heródoto.

Nora (1993) apresenta que o efêmero da atualidade, a fragmentação do


poder e a busca constante por mudança tendem a fazer com que os lugares de
memória e os monumentos da história sejam cultuados. Como hipóteses desse
entendimento, eis que surgem os eventos que marcaram o maio de 1968 na
França e nos demais países do mundo. São anunciadas as comemorações do
bicentenário da Revolução Francesa (1789) e do centenário da Proclamação
da República Brasileira (1889). Coincidência ou não, ambas comemorações
ocorreram no ano de 1989. Nos preparativos que dariam conta de homenagear
esses eventos, fomentou-se tanto as questões de patrimônio arquitetônico e
histórico como ocorreu a criação e a revitalização de “locais de memória”, tais
como arquivos, museus, monumentos entre outros.

Uma vez cientes desta enumeração de eventos e dos preparativos de


comemoração, sobressaem questões e hipóteses do porquê de os temas e as
questões culturais passarem a compor a nova pauta política de nações, governos,
instituições e entidades. Quais são as intenções em fazer com que temas da
memória e da história oral, que são de abordagem e pertencem a esfera micro e
local da história, ganhem ênfase nos contextos globais e macroestruturais?

Caro(a) pós-graduando(a), com estas indagações e preocupações dá-se


início às atividades e aos trabalhos do terceiro capítulo deste caderno de estudos.

73
Memória e História Oral

O Valor de Uso e o Uso Como Valor


da Memória
Felix (2002) atesta que, na época atual, ocorre uma espécie de
Os indivíduos
da sociedade explosão do tema da memória ao ponto de configurar uma verdadeira
contemporânea moda. A necessidade pela memória pode ser compreendida diante
sentem necessidade
de buscar e atribuir do fato de que os indivíduos da sociedade contemporânea sentem
sentido/significado necessidade de buscar e atribuir sentido/significado aos objetos e
aos objetos e bens bens materiais (concretos, palpáveis e tangíveis) e/ou imateriais
materiais (concretos,
palpáveis e tangíveis) (perceptíveis, sensíveis e intangíveis) de que estão munidos ou
e/ou imateriais almejam.
(perceptíveis,
sensíveis e
intangíveis) de que Esse contexto de necessidade pela memória, busca de sentidos e
estão munidos ou significados, pertence à nova episteme, paradigma de conhecimento,
almejam.
que passou a ser cogitado diante das crises e críticas surgidas
a partir da segunda metade do século XX. Tais crises e críticas são
conhecidas também pela denominação de questões da “pós-modernidade”, a
qual se caracteriza pela fragmentação das unidades e utopias que foram forjadas
no bojo da racionalidade e do progresso e vislumbrava o triunfo e redenção do
pensamento iluminista, industrial e científico.

Conforme ilustra Souza (1994, p. 21), na passagem abaixo:

O mundo industrial se descobre não apenas poluidor e


masculino, mas também branco e ocidental. Povos e raças vão
se insurgir como o outro oprimido em busca de libertação [...].
Gênero, raça, natureza, enquanto dimensões de um mundo
plural, rasgam, pelas práticas e denúncias, os horizontes
estreitos das análises político-econômicas e apontam outras
dominações que tinham ficado à margem.

Inaugura-se uma espécie de política das identidades e, em especial, uma


identidade para cada novo movimento: sexuais: gays, lésbicas, trans; raciais:
negros; gênero: mulheres; antibelicistas: paz. Criaram-se nichos, partículas ou
mônadas sociais circunscritas, fracionadas, segmentadas em guetos e redutos
específicos, distantes do todo que forma o coletivo e a sociedade.

Surge, ao mesmo tempo, a busca pelas identidades perdidas, tais como a


onda dos ‘des’ (des-razão, desreferencialização, desconstrução, descolonização
e descentralização), dos ‘ismos’ (feminismo, pacifismo, ambientalismo, racismos,
separatismos) e dos ‘neos’ (neonazismo, neofascismo, neocolonialismo). Todos
eles sendo plasmados em meio aos movimentos e articulações da globalização
acelerada, a qual, por sua vez, pretende homogeneizar as diferenças e apagar as
especificidades.
74
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Observa-se uma forte crise de rupturas que colocam em


Nas palavras de
condições de coexistência propostas antagônicas como ‘pacifismos’
Felix (2002, p. 19)
e ‘neonazismos’, ‘neocolonização’ e ‘descolonização’, enfim, a pós- “presencia-se a
modernidade autorizou que determinados valores e direitos, tidos erosão dos mitos,
como universais, ganhem caráter relativista. Nas palavras de Felix a fragmentação
(2002, p. 19) “presencia-se a erosão dos mitos, a fragmentação das das ideologias,
ideologias, da racionalidade histórica”. Tornamo-nos reféns e estamos da racionalidade
histórica”.
enclausurados pela fluidez e liquidez das situações, a pluralidade de
estilos e a multiplicidade de papéis.

Felix (2002) nos chama a atenção para o aspecto de que, mesmo diante da
verdadeira “onda da memória”, ela sempre esteve presente na construção das
memórias sociais, com a ênfase na evocação. O ato de lembrar/esquecer sempre
esteve presente em meio às sociedades nos mais diferentes momentos históricos,
em especial toda vez que estas necessitavam e almejavam a criação tanto de
heróis, de mártires como de anti-heróis.

Felix (2002, p. 27) discute que a criação ocorreu na seguinte perspectiva:

Os primeiros, como figuras singulares que encarnam as


representações do grupo ou da coletividade, simbolizando
coragem ou rebeldia, mas assegurando, assim a consciência
do pertencimento, ao passo que, ao contrário, os anti-heróis
são aqueles aos quais o grupo social atribui a condição de
traidor e de não-pertencimento.

A autora enfatiza que a criação de heróis e anti-heróis nas memórias sociais


mobiliza dimensões simbólicas e sacralizadas que foram forjadas a partir de juízos
de valor que envolveram toda uma trama de interesses que passam pela noção
de pátria, religião, nação, forças armadas, partidos políticos, movimentos sociais,
marcos de fronteira, povo entre outros. E tais criações podem sofrer alterações
conforme mudam as conjunturas políticas, econômicas e ideológicas.

A título de exemplo no campo das ideologias e conjunturas políticas, tem-


se o caso de Joana D´Arc (1412-1431), que lutou ao lado das forças do exército
francês contra as tropas inglesas durante a Guerra dos Cem Anos, acabou por ser
acusada de feitiçaria e foi condenada pelos ingleses à morte na fogueira. Já no
século XIX, com a valorização dos heróis nacionais e das fortes campanhas de
nacionalismo, a França a reconheceu como heroína de seu país e, nos primeiros
anos do século XX, ela foi canonizada e passou a ser a mais nova padroeira da
França.

Encontra-se em Felix (2002) uma contribuição que ilustra um exemplo oriundo

75
Memória e História Oral

do cenário político brasileiro, que é a data de 31 de março de 1964, quando foi


instaurado o regime de ditadura militar. O referido dia da segunda metade da
década de 1960 e da década de 1970 passou a ser comemorado como feriado
nacional e homenageado com o título e reconhecimento de o dia da grande
revolução, recebendo comemorações cívicas no interior de escolas e instituições
do Estado brasileiro, expressos por meio de discursos e desfiles públicos.

Porém, com as transformações no interior da conjuntura política do país e da


sociedade civil, que ficou marcada pela retomada das atividades democráticas, do
restabelecimento do poder legislativo, das atividades partidárias, dos movimentos
sindicais, com o aumento da literatura que apresentava denúncias dos abusos
de poder político, violação dos direitos humanos e práticas de corrupção que
foram praticadas ao longo do regime de ditadura, o ‘feriado’ passou de oficial à
‘ponto facultativo’, cabendo aos estados e municípios deliberar sobre ele, e, por
conseguinte, o conceito que lhe era reconhecido como o dia da ‘revolução’ foi
gradualmente substituído pelo dia do ‘golpe’. No caso de nomes que foram dados
a unidades escolares, como os antigos governantes do regime militar, houve uma
organização da comunidade escolar e da sociedade civil para que se efetuasse a
troca dos nomes das unidades.

No processo inverso ao de esquecimento visto com o 31 de março, tem-se o


de valoração, no qual cabe a menção à data de 20 de novembro, o dia nacional
da Consciência Negra, instaurado pela lei federal n. 12.519/2011, que foi incluído
no calendário oficial de inúmeros estados e municípios em todo Brasil. O dia 20 de
novembro se deve à data da morte de Zumbi de Palmares, responsável por liderar
o Quilombo de Palmares, comunidade de resistência às práticas escravistas na
Serra da Barriga, no interior do estado de Alagoas, na segunda metade do século
XVII.

A relação dos estados e municípios da federação brasileira que


instituíram o dia 20 de novembro como feriado em seus calendários
oficiais pode ser consultada junto à página da Fundação Cultural
Palmares, que está disponível em: <http://goo.gl/7bydlX>.

No calendário oficial do Brasil, consta o 13 de maio como uma das datas


cívicas, reconhecendo a assinatura da Lei Áurea (1888), que abolia o trabalho
escravo no Brasil. Em meio aos integrantes do movimento negro e demais

76
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

representantes das lutas étnico-raciais não ocorre o reconhecimento e a


comemoração desta data, pois estes argumentam que a data e a abolição da
escravatura constituem somente um marco oficial, que não deu conta de conferir
a integração da população negra na sociedade brasileira e muito menos fornecer
as condições para que os ex-escravos fossem incluídos como trabalhadores livres
e assalariados. Portanto, trata-se de uma data que não representa as questões e
as lutas de tais movimentos.

Caro(a) Pós-graduando(a), no link abaixo você acessa o


documento da Lei Áurea, assinado pela Princesa Isabel, na íntegra.
Aproprie-se!
<http://goo.gl/Dzjqbo>

Atividade de Estudos:

1) Quais são os feriados e datas cívicas que ocorrem em seu


município e sua relação com a história local, regional e nacional?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Caro(a) pós-graduando(a), neste momento, gostaríamos de retomar o


contexto do período do regime de ditadura militar. Na tentativa de tecer exemplos
desta dinâmica histórica, tem-se que inúmeras escolas, avenidas e ruas no
interior do Brasil foram registradas com o nome de governantes, encontram-se
associadas aquele regime, no qual se praticava perseguição e tortura às pessoas
que se expressavam de forma contrária aos feitos do governo; ou de figuras
públicas que foram responsáveis por manterem intactas estruturas de escravidão;
ou pela dizimação de populações indígenas, assim como pelo esgotamento dos
recursos de vida e por catástrofes ambientais.

77
Memória e História Oral

Figura 7 – As referências contidas nas placas de rua

Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/gb8oYh>. Acesso em: 27 mar. 2016.

Atividade de Estudos:

1) Descreva o nome de três das principais ruas da sua cidade,


apresentando os fatores políticos, históricos e sociais que
justificam a escolha destes.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Ante o exposto, é possível compreender que o uso da memória configura


uma trajetória variável, em termos de valor de uso e de uso de valor, como, por
exemplo, a valoração/sacralização (Joana D’Arc e 20 de novembro), reatualização
(customização retrô e vintage de utensílios, decorações e ambientes de
convivência) e esquecimento (31 de março e 13 de maio).

78
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

LembranÇa e esquecimento
“Esquecer? Impossível, pois o que eu vi caiu também sobre mim, e o corpo
e a alma sofridos não podem evitar que a mente esqueça ou que a mente
lembre. Sou um demente escravo da mente. Rima? Rima, sim, e até pode
ser uma rima, mas não uma solução. A única solução é não esquecer”.
Tavares

Platão (2000, p. 108), em seus escritos, no século IV a. C, descrevia que do


Lago da Memória (Mnemosyne) jorrava água fresca e que lá se encontravam a
postos guardas sentinelas. A mensagem código para adentrar ao lago consistia
na seguinte declamação e súplica: "Sou o filho da terra e do céu estrelado, bem o
sabeis; mas estou seco de sede e sinto-me a morrer. Dai-me sem demora a água
fresca que emana do Lago da Memória". Após o término da pronúncia, eis que
os guardas prontamente permitiam que se bebesse da fonte sagrada. Uma vez
ingerida a água do Lago da Memória, o indivíduo, reles mortal, reinaria absoluto
entre os outros heróis.

Na Grécia antiga, em meio a um contexto mítico e épico, a memória conferia


poderes aos indivíduos, promovia distinção entre humanos e heróis, dotava estes
de poderes sobre-humanos. Encontram-se também passagens que falam do
oposto. Existia o rio ‘Lethe’, que ficava em Hades, no qual eram banhados os
indivíduos ao nascer para que se despojassem das memórias que traziam das
vidas anteriores, pois, conforme a concepção dos gregos, um nascimento era
acompanhado de uma reencarnação.

Essa concepção clássica de memória alcança a época contemporânea e


se apresenta de forma distinta, porém com certas aproximações, no sentido de
atribuir à memória a função de evitar a morte e mais que isso, realizar e consolidar
pertencimentos. Segundo Nora (1993, p. 22), a “[...] razão fundamental de ser de
um lugar de memória é parar o tempo, bloquear o esquecimento [...] e imortalizar
a morte [...]”.

Felix (2002, p. 31) aponta que:

Estudar a memória é falar não apenas de vida e de


perpetuação da vida através da história; é falar, também, de
seu reverso, do esquecimento, dos silêncios, dos não-ditos e,
ainda, de uma forma intermediária, que é a permanência de
memórias subterrâneas entre o esquecimento e a memória
social. E, no campo das memórias subterrâneas, é falar
também nas memórias dos excluídos, daqueles que a fronteira
do poder lançou à marginalidade da história, e um outro tipo
de esquecimento ao lhes retirar o espaço social ou regular
da manifestação do direito à fala e ao reconhecimento da
presença social.

79
Memória e História Oral

Para Félix (1998), um dos problemas essenciais que acompanha os temas


de história e memória encontra-se na imbricação/relação que os grupos sociais
estabelecem entre ‘lembrança e esquecimento’, ‘vida e morte’, ‘louvor e censura’,
‘exaltação e banimento’, ‘verdadeiro e falso’, pois ambos se desenvolvem de um
modo dialético e tendem a elaborar uma espécie de síntese última/final.

Aqui se faz necessário retomar os estudos que foram feitos ainda no primeiro
capítulo, quando é apresentado o conceito de verdade (alétheia) e esquecimento
(léthe), e que, em meio a um processo dialético de conjugação de forças, a
verdade tende a submeter e aplacar o esquecimento e vice-versa.

Forja-se, assim, uma espécie de via de mão dupla, em que é traçado um


caminho intermediário, que possibilita, por exemplo, a retomada de lembranças,
quando acometidas pelo esquecimento, e o perdão das experiências dolorosas e
trágicas, numa espécie de trégua e reconciliação com o passado, o que, por sua
vez, é fundamental para melhor orientar a postura e ação do homem em meio ao
presente.

Novais (1990) explica que é preciso rememorar esse desencontro do corpo


e da história. Os antigos ensinam que os mortos são aqueles que perderam a
memória, e não foi por acaso que os gregos escolheram um dos sentidos para
descrever a necessidade de retomada da memória.

Detiènne (1988, p. 85) apresenta que:

Esquecimento ou silêncio, é a potência da morte que se ergue


frente à potência da vida, Memória, mãe das musas. Por trás do
elogio e da censura, o par que representa fundamentalmente
as potências antitéticas é formado por Mnemosyne e Léthe e
que uma não existe sem a outra por que quando as musas
dizem “verdade” anunciam, ao mesmo tempo, o esquecimento
das desgraças e a trégua das preocupações.

Felix (1998) identifica que paira certa ambiguidade entre a memória e o


esquecimento, e nesta mesma ambiguidade reside sua potência, diante do fato de
que quando se é capaz de dirimir as dúvidas que existem entre verdade e engano,
ao mesmo tempo se adquire a capacidade de enganar. Ou seja, ser portador da
verdade também implica a capacidade de enganar.

Yerushalmi (1989) explica que examinar o ‘esquecer-se’ requer que se faça


a distinção do ‘recordar-se’, distinguindo a memória de reminiscência, ou seja, da
lembrança vaga e incompleta. A primeira é ininterrupta, contínua; já a segunda
designa exatamente o que se esqueceu, que pode tanto se manter como está e/
ou vir a se manifestar.

80
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Quando um povo ‘recorda’, quer dizer que primeiro o passado


Quando um
foi ativamente transmitido às gerações contemporâneas por meio de
povo ‘recorda’,
canais e receptáculos de memória, e que, depois, o passado transmitido quer dizer que
foi recebido, carregado de um sentido próprio (YERUSHALMI, 1989). primeiro o passado
foi ativamente
Em contrapartida, quando um povo ‘esquece’, a geração transmitido
possuidora do passado não o transmite à seguinte, ou cessou a às gerações
contemporâneas.
transmissão quando chega o seu momento de fazer a transmissão. A
ruptura na transmissão pode produzir-se bruscamente ou ao término de
um processo de erosão que envolveu várias gerações. Mas o autor alerta que o
princípio segue sendo sempre o mesmo: um povo jamais pode ‘esquecer’ o que
antes não recebeu.

Felix (2002) contribui, dizendo que as memórias sociais envolvem a relação


com o significado público e político que elas possuem, no sentido de que as
decisões tomadas no espaço público por excelência tanto equivalem às escolhas
do que querem esquecer quanto ao fato de conferir perdão do que foi, social e
politicamente, execrado anteriormente. Aqui cabem os exemplos de anistia a
refugiados, exilados e perseguidos.

A consubstanciação política dos processos sociais de censura e banimento


de memórias sociais sempre foi, desde o mundo antigo, objeto de ações dos
governos sob as mais diferentes formas, e foram expressas tanto de formas sutis
como explícitas, inclusive por meio de leis e decretos tornados públicos.

Felix (2002) explica que desde o Antigo Egito há registros de casos de


banimento da memória. Amon, o deus faraó, amparado nos interesses também
de seus sacerdotes, fez ‘apagar da memória’ a vida e a obra de Amenófis IV
(Akenaton), o faraó da XVIII dinastia. Para tanto, o nome do faraó Amenófis IV
foi raspado das inscrições nos monumentos que relatavam suas campanhas
militares e foi substituído pelo de Tutankamnon, o faraó menino que não teve nem
tempo de vida para realizar tais campanhas militares.

Encontra-se em Le Goff (1984) outro exemplo, o das Domnatio memoriae


(a condenação da memória) quando foram aplicados ‘decretos de proibição de
lembrar’ no mundo romano. As Domnatio memoriae foram elaboradas como uma
arma legal contra a tirania do imperador por meio da vingança pela extirpação da
memória. O senado romano podia votar a domnatio, fazendo desaparecer dos
documentos e inscrições monumentais o nome do imperador que morrera, ou
seja, oficializaram e legitimaram a destruição da memória.

81
Memória e História Oral

Atividade de Estudos:

1) Você conheceu ou lembra de casos em que ocorreram situações


de desaparecimento de indivíduos, documentos ou arquivos,
locais que foram acometidos por incêndios suspeitos e criminosos
que, por sua vez, comprometeriam pessoas importantes ou iam
de encontro aos interesses das partes envolvidas? Relate aqui as
informações.
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Já na época contemporânea, Piralian (2000 apud SELIGMANN-SILVA,


2008) retrata a experiência do genocídio de 1.200.000 armênios em meio à uma
população de 1.800.000 indivíduos, que ocorreu entre os anos 1915 e 1916 pelo
ainda existente Império Otomano, atual Turquia.

No ano de 2005, na Universidade de Bogazici, atual Turquia, deveria ter


ocorrido um congresso sobre o genocídio, porém o governo turco interviu,
impedindo sua realização. Segundo Piralian (2000 apud SELIGMANN-SILVA,
2008), neste caso, deparamo-nos com o fato do testemunho negado do genocídio,
e, em consequência, a legitimação do ‘negacionismo’. Assim, o governo turco
promoveu a morte por duas vezes das suas vítimas, uma com o ato do genocídio
e que prossegue por assassiná-las, uma segunda vez, negando-as, agora,
simbolicamente.

Trata-se de uma postura muito perigosa, pois, em termos coletivos, pode


fomentar conflitos paradoxais e desejos por vingança, pois os descendentes das
vítimas estão sendo privados de proceder o trabalho de luto e reconciliação com
seus mortos e o de reestruturação e resiliência no momento presente.

Seligmann-Silva (2008) discute que o genocida, no caso o governo turco, está


comprometido e interessado em eliminar totalmente o grupo em questão, a fim de
impedir a transmissão da trágica narrativa e, com isso, impossibilitar atitudes de
vingança e revanche. Por outro lado, alerta que os algozes estão sempre vigiando
e tentando apagar as marcas e rastros do crime que cometeram, atribuindo aos
testemunhos sobreviventes a condição de ameaça constante.

82
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Segundo Seligmann-Silva (2008), outro fruto do negacionismo surge no


contexto da parte das vítimas e/ou dos herdeiros, nos termos de que passa a
coexistir um sentimento de culpa pela sobrevivência. A condição de não poder
comunicar, expurgar e curar a experiência do extermínio configura um peso de
algo que não existiu, que nunca se ouviu ou ouvirá falar, que tende a desaparecer
no imaginário das gerações sucessoras.

Piralian (2000 apud SELIGMANN-SILVA, 2008) nota que o testemunho no


presente é responsável por promover integração e reconciliação com a experiência
de um passado traumático, e esta condição só é alcançada quando o negacionismo
é vencido e superado. O medo e todo o trauma podem esvair quando a justiça for
capaz de conferir e legitimar o espaço que é designado à verdade. Mas a autora,
sem muitos rodeios, logo problematiza: mas será que tal reconhecimento e direito
será capaz de permitir a construção da desejada passagem entre os indivíduos
traumatizados pela catástrofe e os demais indivíduos da sociedade? Ela permitirá
uma reintegração de fato com o passado?

A autora afirma que a esfera do direito e a instituição do tribunal podem


criar fóruns, atos e momentos para esta construção de reconciliação daqueles
Eus danificados, mas adverte que não sejamos tão confiantes e que estejamos
atentos, pois o direito não está sempre comprometido com o processo de justiça e
de liberdade, sempre persuadido e assediado por parcialidades (PIRALIAN, 2000
apud SELIGMANN-SILVA, 2008).

No relato de Monique Ilbudo, prestado em 1998, sobre o caso do genocídio


dos armênios, há um pouco do retrato do quanto aquela população ainda se
encontra afetada pela trágica experiência. Veja:

Em 1998 as pessoas ainda estavam embrutecidas, perdidas.


Alguns haviam escolhido a loucura para sobreviver e nos
contavam coisas incoerentes. Outros estavam fechados
no mutismo. Outros ainda andavam como fantasmas,
completamente destruídos (PIRALIAN, 2000 apud
SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 76).

Pós-graduando(a), agora analisemos outra situação em que foi concedida e


autorizada a livre expressão e manifestação. Kim Phuc, a menina que é vista na
imagem abaixo, correndo nua em meio aos ataques na Guerra do Vietnã.

83
Memória e História Oral

Figura 8 – Guerra do Vietnã

Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/BPD34z>. Acesso em: 27 mar. 2016.

A sobrevivente Kim Phuc dedica sua vida a prestar seu testemunho de paz
pelo mundo. Nesse caso, recaí sobre o testemunho da experiência trágica o status
de mártir, e lhe é atribuído o sentimento de forte comoção, de compadecimento
e compaixão, instaura-se sobre esta uma espécie de fé universal, que é
legitimada diante do fato de que tal testemunho foi capaz de suportar atrocidades
inomináveis, que agora percebe e experimenta o mundo de maneira a não deixar
que se esqueçam do que uma vez ocorreu no passado.

Atividade de Estudos:

1) Relacione as consequências de práticas aplicadas por


instituições, órgãos ou governos que visam bloquear o acesso às
memórias e histórias relacionadas a algum fato ou acontecimento
histórico.
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84
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Por outro lado, Ferreira (1995) chama a atenção para o fato de que o silêncio
surge como uma estratégia de negociação instaurada justamente para garantir
inserção do sujeito em redes, mantendo as reminiscências e sua expressão
guardadas na intimidade do seu ser, evitando a discriminação daqueles que
facilmente relacionam o relembrar com uma falta de sintonia com o presente ou
do uso do recurso oportuno de vitimização.

Tedesco (2001) explica que, em meio aos estudos de histórias de vida, obtidas
por meio das entrevistas orais, é comum identificar que os relatos ganham ênfase
e entonação conforme o valor e o significado que é atribuído aos momentos e
recordações das situações de mudanças e passagem na trajetória de suas vidas.
Esses momentos são, por exemplo, formaturas e viagens colegiais, casamentos,
mortes, nascimentos, mudanças de cidades, mudanças de trabalhos, entre outros.

Pollak (1989) discute a ideia de zonas de silêncios e de sombras, os não-


ditos da memória se encontram permeados por amplas teias de força, interesses
e poder. Para o autor, tais zonas podem ser identificadas nos esquecimentos
definitivos e nos rompimentos inconscientes, que se encontram em contínuo
deslocamento e jamais se tornam estanques.

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o


inconfessável, separa [...] uma memória coletiva subterrânea
da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma
memória coletiva organizada que resume a imagem que uma
sociedade majoritária ou o estado desejam passar a impor
(POLLAK, 1989, p.8).

Pollack (1989) explica que as ‘zonas de sombras’ permitem a sensibilização


e a configuração das ‘memórias subterrâneas’, ‘memórias reprimidas’ e ‘memórias
silenciadas’, as quais, por sua vez, tendem a ser utilizadas como subterfúgios e
estratégias de sobrevivência individual, social e política.

As memórias subterrâneas subjazem às memórias oficiais e se mantém vivas


para que aquelas experiências históricas vivenciadas não tornem a ocorrer. Como
exemplo deste tipo de memórias, tem-se os testemunhos dos sobreviventes de
guerras, tais como os judeus, que sofreram o holocausto durante a segunda guerra
mundial; sobreviventes dos bombardeios e lançamento de armas biológicas na
guerra do Vietnã; soldados veteranos americanos, que participaram da invasão
no Iraque; torturados e perseguidos políticos por regimes de ditaduras militares;
sobreviventes da chacina na prisão de Carandiru (1992), entre outros.

Segundo Felix (2002, p. 32):

Esse tipo de memória não foi apagado do seu grupo social,


mas submetido a um tipo de “esquecimento”, em geral um

85
Memória e História Oral

silenciamento autoimposto como regra de sobrevivência para


um tempo do ajuste dos ciclos e dos tempos históricos, mas
em nenhum momento como supressão das lembranças.

Antelme (1957), sobrevivente dos campos de concentração alemães, atesta


que existe uma angústia na base da pulsão testemunhal. Relata que quando foi
convocado a testemunhar sobre sua experiência se sentiu tomado por vertigens e
delírios, pelo desejo sufocante e frenético de falar, deslumbrado pela possibilidade
de ser ouvido; e, ao mesmo tempo, percebia o desencadear de todo um processo
de revisitar a experiência vivida e a reconstrução/tradução da própria linguagem,
um estado de espírito que lhe causava inúmeras sensações, que tomavam
músculos, ossos e expressões nervosas pelo corpo.

Mal começávamos a contar e sufocávamos. A nós mesmos,


aquilo que tínhamos a dizer começava então a parecer
inimaginável. Essa desproporção entre a experiência que
havíamos vivido e a narração que era possível fazer dela não
fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos defrontávamos,
portanto, com uma dessas realidades que nos levam a dizer
que elas ultrapassam a imaginação. Ficou claro então que seria
apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação,
que poderíamos tentar dizer algo delas (ANTELME, 1957, p.
9).

Percebe-se todo um conflito e crise que perpassam o processo de


testemunho, que podem se revelar pela incapacidade de testemunhar e
rememorar a experiência, não ser capaz de controlar e equilibrar as memórias e
as emoções que estas acionavam. Os precedentes, desse modo, abrem-se para
que se instaurem rupturas, descontinuidades, brancos ou buracos negros nas
memórias e até a necessidade de bloquear certas lembranças.

Pollack (1989, p. 13) relata que:

As dificuldades e bloqueios que eventualmente surgiram ao


longo de uma entrevista só raramente resultaram de brancos
de memória ou de esquecimentos, mas de uma reflexão
sobre a própria utilidade de falar e transmitir seu passado. Na
ausência de toda a possibilidade de se fazer compreender - o
silêncio sobre si mesmo - diferente do esquecimento - pode
mesmo ser uma condição necessária para a manutenção da
comunicação com o meio ambiente.

As memórias reprimidas situam-se nas ‘zonas de sombras’ e de silêncios


que se formam no ato da evocação, do lembrar e do esquecer. A opção pela
opressão de memórias pode se dar diante do fato de que estas são responsáveis
por ocasionar sofrimento, tanto pessoal como social, maior ainda que as próprias
lembranças guardadas.

86
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Os casos de participação em guerras são exemplares, pois existe todo


um mito de heroísmo em torno do fato de participar destas. Há, também, as
imigrações populacionais da Europa no final do século XIX e na primeira metade
do século XX para o Brasil, em que indivíduos partiam do país de origem em
condições de crise e miséria, estimulados pela propaganda de que encontrariam
no Brasil terras com melhores condições para trabalho e trabalho assalariado nas
indústrias e vida urbana.

Nos dois casos, os mecanismo e estratégias de repressão são colocados


em prática no sentido evitar tocar nos ressentimentos, tais como: o medo, o
sentimento de culpa e a angústia do pós-guerra. A dor de saudade dos familiares
que ficaram na Europa, as mortes que ocorriam em alto mar, as doenças e as
frustrações das condições que foram encontradas em termos de infraestrutura e
de trabalho no Brasil.

As memórias silenciadas constituem os não ditos e silêncios, frutos do custo


social e emocional, uma espécie de omissão que o ato de lembrar pode trazer, e
que, por sua vez, promove uma espécie de indefinição, incerteza, mantém uma
penumbra, promove uma espécie de tabu em torno de um determinado tema
e questão, diante do fato de que existe uma segunda versão que circula nos
bastidores, no sótão, no porão, na caixa preta, na informalidade.

No contexto das relações que os indivíduos estabelecem com


a memória em tempos de regimes ditatoriais de ampla perseguição
e tortura, procura-se indicar dois filmes. O primeiro, remonta ao
contexto do regime fascista que vigorou na Espanha ao longo da
primeira metade do século XX, protagonizado por uma jovem menina
que fica órfã de mãe e passa aos cuidados do padrasto, um temido
capitão militar. O segundo, remonta ao cenário do regime militar
que perdurou no Chile na segunda metade do século XX, em que
uma mulher interpreta a personagem que foi torturada sadicamente
durante o regime, e que anos depois reencontra o carrasco. Veja:

1. O labirinto de fauno. Guilhermo del Toro. México, Espanha, 2006.


118 min.
2. A morte e a donzela. Roman Polanski. EUA, 1994. 103 min.

87
Memória e História Oral

Atividade de Estudos:

1) Quais são as principais sensações e comoções pelas quais


os indivíduos que guardam testemunhos de fatos históricos
relevantes passam quando são convidados a comunicar suas
memórias?
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Caro(a) pós-graduando(a)! Nas memórias e lembranças, além dos


processos subjetivos, psíquicos e emocionais que recaem sobre elas, ocorre
uma rede de interferência, que é realizada pelo grupo familiar, pela sociedade,
pelas conjunturas políticas, na qual o testemunho se encontra inserido. A partir
deste momento, procura-se aprofundar e apresentar maiores elementos no que
diz respeito à natureza do testemunho, às implicações e à relevância do ato de
testemunhar. Prossiga a leitura!

O TestemunHo
O ato de testemunhar se refere e remonta à uma experiência cognitiva efetiva
e sensorial, na qual os sentidos registraram as emoções e sensações que foram
sensibilizadas diante de algo, com corpo presente, em que se experimentou,
viu-se, presenciou-se no acontecer e desenrolar de um dado fato ou fenômeno.
Consiste no ato de carregar e conservar o passado vivo no presente.

Segundo Kolleritz (2004), o testemunho constitui uma modalidade


O testemunho
possui o caráter expressiva intersubjetiva que atua em inúmeras vivências concretas.
de peculiaridade e O ato de ver e testemunhar implica/coloca o indivíduo na condição
excepcionalidade
de algo que não de responsável pela verdade. Ver, verdadeiramente ver, é, ao mesmo
é mais alcançável tempo, tornar-se responsável por uma verdade.
e acessível no
momento presente
e pelos demais Geralmente, o testemunho possui o caráter de peculiaridade e
membros e indivíduos excepcionalidade de algo que não é mais alcançável e acessível no
da sociedade.
momento presente e pelos demais membros e indivíduos da sociedade.

88
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Segundo Kolleritz (2004), o testemunho explicita e certifica que um ato ou um


fato constitui uma verdade, como, por exemplo, ‘vi fulano vendendo a sua terra, é
verdade que o vi’.

Por outro lado, Kolleritz (2004, p. 74) descreve que o testemunho não pode
ser reduzido à tradução pura do fato percebido na sua dimensão empírica e
sensorial. Veja:

O ponto de partida, entretanto é este: o que vi, o que senti,


onde doeu. Disso os comuns dos mortais não costumam
duvidar, ao contrário, é dessas experiências que nutrem suas
certezas. O ato de testemunhar tem sentido apenas porque
julgamos que alguém é capaz de dizer a verdade. Confia-se
em primeiro lugar na capacidade cognitiva de um outro, na sua
capacidade pura e simples de presenciar, com olho, ouvido,
olfato, tato, paladar e cérebro bem conformados.

No entanto, o fato de ser testemunho confere prestígio e reconhecimento


ao testemunhador diante dos demais indivíduos, que não possuem aquela
experiência e vivência em específico. Segundo Kolleritz (2004), o indivíduo que
testemunha é considerado digno de fé e lhe são atribuídos vários títulos, tais
como o da capacidade de ver, ouvir, sentir, perceber com apuro, de guardar com
acerto, e a habilidade de contar, transmitir com clareza. A dignidade que lhe é
atribuída advém do fato dele ter sido capaz e hábil de conservar e portar/dispor a
verdade para outros indivíduos.
Quem presta
testemunho depende
Kolleritz (2004) chama a atenção para o fato de que o ato de
também da crença
testemunhar não é suficiente para obter o teor de reconhecimento e de quem ouve,
mérito diante de um fato ou acontecimento. Segundo o autor, quem ou seja, depende
presta testemunho depende também da crença de quem ouve, ou dos interlocutores,
seja, depende dos interlocutores, que, por sua vez, encontram-se que, por sua vez,
num determinado patamar de identificação e comum interesse. Uma encontram-se
num determinado
vez unidos e afinados, o conteúdo do testemunhador e a comunidade
patamar de
de interessados criam as condições para que uma comunidade de identificação e
certezas se estruture. comum interesse.

As relações de dependência não se esgotam somente entre testemunhador


e comunidade de interessados. Existe outro aspecto que tende a tornar o
testemunho vulnerável, que é a credibilidade da própria testemunha. Nem todos
os testemunhos desfrutam de igual credibilidade, pois dependem da informação
prévia dos ouvintes e leitores. Nesse contexto, surge a necessidade dos rituais de
autenticação.

Todo testemunho recebe uma impostação, uma ênfase que


serve a autenticar; vai desde a entonação da voz até fórmulas
de juramento, passando pela inércia indiciária do mártir prestes

89
Memória e História Oral

a ser sacrificado, sem um gesto sequer de defesa; em todos


esses modos de insistência, trata-se de significar a verdade,
consagrando-a pela ênfase gestual ou mímica. A passividade
do mártir é retórica da interioridade: ela significa sua fé, tão
grande que apenas uma força superior a poderia sustentar. A
própria impostação, porém, designa um fenômeno essencial:
que, através do ato testemunhal, não se decide em última
instância. A assertiva testemunhal precisa de um reforço
certificador na exata medida em que não é prova definitiva,
jamais (KOLLERITZ, 2004, p. 77).

Kolleritz (2004) explica que, em outras épocas e contextos, foi comum


a testemunha jurar pelos deuses, pela Bíblia, pelos juramentos de profissão,
e, assim, comprometia-se a não dizer nada além da verdade, toda a verdade.
As declarações eram prestadas solenemente, acompanhadas de fórmulas
consagradas visando à autenticação; fórmulas e percursos talvez mais ritualísticos
do que necessariamente eficazes e garantidores do cumprimento dos combinados
e acordos.

Cientes das possibilidades dos descumprimentos, ocorria a formulação e


a aplicação de penas e sanções que comprometiam, expunham e retalhavam
amplamente os indivíduos, tanto física como moralmente. Como exemplo disso,
pode-se citar a lei de talião, que previa o poder e direito de reciprocidade entre
crimes e penas, da qual se conhece a máxima ‘olho por olho dente por dente’.

Seligmann-Silva (2008) defende que todo testemunho, tal como o evento, é


único, singular e insubstituível. É portador de um conteúdo excepcional, que, na
sua transmissão e tradução, almeja adquirir caráter exemplar e moralizante. O
meio de transmissão é a linguagem, que, por sua vez, é composta de fragmentos
entre o vivido, o imaginado, o simbólico, o real e as referências do mundo.

É neste ponto que o campo jurídico passa a lançar uma suspeita


sobre o testemunho. Ele gostaria de manter a singularidade
total do testemunho, que significaria a chancela de seu teor
de “prova”, de fragmento do real. Mas a engrenagem jurídica
emperra uma segunda vez, justamente ao defender esta
singularidade literal do evento. Pois também as leis – como
a linguagem – são generalizantes, são universais que muito
precariamente cobrem os “delitos” individuais. O testemunho
como híbrido de singularidade e de imaginação, como
evento que oscila entre a literalidade traumática e a literatura
imaginativa, assombra duplamente o direito (SELIGMANN-
SILVA, 2008, p. 72).

A partir da época moderna, as juras, os combinados, os pactos firmados


verbalmente, na palavra dada, nos modos e costumes, no direito consuetudinário,
passam a não ecoar suficientemente para que os indivíduos se sentam seguros
e certos do comprometimento e realização/concretização do que hão tratado;

90
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

é quando passam a ser necessários os tramites e processos institucionais que


pretendem cercar e autenticar a verdade e os tratados com ‘garantias’, agora
chamados de legais.

Na sociedade moderna, os testemunhos passaram cada vez mais a ser


chancelados e autenticados pelos tramites das instituições do Estado (arquivos,
tabelionatos, cartórios, fóruns). Testemunhava-se em nome dos códigos, em nome
das leis e tratados, e, para tanto, precisa-se reunir, além das partes envolvidas e
interessadas, terceiros indivíduos que testemunhassem, que certificassem e que
assinassem abaixo dos acordos e contratos que estavam sendo assumidos.

Jean Norton Cru (1879-1949), quando publicou o livro Témoins, em 1929,


procurou explicar que a noção e a discussão de testemunho, tanto na época antiga
como moderna, encontra-se distante da aplicação que lhe é dada no campo da
produção do conhecimento em memória e história oral na época contemporânea.

A publicação de Jean Norton Cru teve como objetivo fazer uma crítica à
primeira guerra mundial e aos discursos oficiais/belicistas, que enalteciam as
figuras dos heróis guerreiros de altos escalões oficiais e o espirito patriótico
sem considerar os mortos, os mutilados, os desaparecidos, os próprios traumas
e transtornos psíquicos identificados no pós-guerra. Diante disso, propôs como
alternativa que a historiografia se abrisse para os testemunhos dos soldados,
aqueles que haviam estado no campo de batalha, que haviam experimentado os
horrores da guerra em sua face mais crua e má.

Seligmann-Silva (2008) explica que, na América Latina, nos países como o


Brasil e o Chile, que contam com experiências de ditadura militar a partir dos anos
de 1960, os testemunhos ganham centralidade, força de resistência e denúncia
diante dos crimes de censura, assédio, intimidação, perseguição e tortura.

Nesta virada a memória passou a ocupar um lugar de destaque,


submetendo a quase onipresença da historiografia no que tange
à escritura de nosso passado. Neste período também a própria
historiografia se abriu aqui e ali à influência dos discursos da
memória, como vemos em trabalhos de história que introduzem
procedimentos da história oral ou nos que se abrem também ao
trabalho com as imagens. A historiografia positivista tradicional
é avessa às imagens, desconfia delas assim como despreza a
imaginação. Já a memória sempre foi pensada como um misto
de verbalidade e imagens (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 73-
74).

Seligmann-Silva (2008) explica, ainda, que os estudos sobre o testemunho,


anunciados como uma virada culturalista das ciências humanas, constituem
uma espécie de busca no sentido de ler e encontrar na cultura as marcas das
catástrofes do século XX.
91
Memória e História Oral

Atividade de Estudos:

1) Quais são as principais prioridades e potencialidades que são


reconhecidas naquele que é testemunha de um determinado fato,
acontecimento ou fenômeno histórico?
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A FunÇão da Memória
O direito de acesso à memória cumpre também um papel pedagógico de
ensino e aprendizagem. A partir da narrativa da experiência vivida, do exemplo e
do testemunho, criam-se referências e parâmetros ao comportamento moralizante.
Também fornece possibilidade de restabelecimento, resiliência e reconciliação na
vida dos indivíduos e comunidades.

Tedesco (2002, p. 44) contribui, dizendo que:

A questão da cidadania está presente no resgate de memória.


Reconstituir sociabilidade dos simples, na história pequena,
miúda, e muitas vezes naquela em que o tempo e as coisas
no tempo parecem andar mais lentamente, é um imperativo
do presente. Rememorar é uma atividade que se orienta
pelo momento do presente, determinada pelo lugar social e
O direito à memória referencial de significados do imaginário social de um grupo.
gera o pressuposto
de que esta constitui
uma dimensão Felix (2002) defende que a consciência na produção do
fundamental da conhecimento histórico e da problematização atribuída à memória
cidadania, na e aos lugares de memória favorece que se evite o esquecimento,
medida em que a
preservação dos que se negligenciem os processos históricos e que se compreenda
registros da história o presente para além de um dado naturalizado. O direito à memória
e do seu livre acesso
aos diversos sujeitos gera o pressuposto de que esta constitui uma dimensão fundamental
sociais depende da da cidadania, na medida em que a preservação dos registros da
possibilidade de uma história e do seu livre acesso aos diversos sujeitos sociais depende
maior participação
da sociedade civil da possibilidade de uma maior participação da sociedade civil nas
nas decisões que lhe decisões que lhe dizem respeito.
dizem respeito.

92
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Bosi (1994) apresenta que a memória é portadora do corpo espiritual que


pertence à comunidade e à família, da tradição e da honra. Porém a autora
constata que a arte de contar histórias já faz parte dos tempos distantes, bem
como a arte de trocar experiências, de dar conselhos, de narrar os feitos e fatos.
A narração é uma forma artesanal de comunicação. A avalanche de informações,
a vitória da pressa, da técnica e da burocracia presentificaram a percepção do
tempo.

Os momentos de festas de família, no espaço doméstico, as festas de natal


e de páscoa, os aniversários dos avós são momentos que remetem ao tempo
da sociabilidade familiar, momento de lembranças e de comemorações, situações
em que se ritualiza enquadramentos de família pelo retorno ao passado.

Contar histórias e relembrar o passado, como os avós gostam de fazer, não


significa apenas uma recordação verbalizada. Há resíduos dos tempos passados
interessantes para o presente e cada membro de uma geração posterior herda
algo da história, ainda que seja fragmentada.

Bosi (1994) faz a seguinte indagação: - Qual a função da memória? E


prontamente já responde que a memória não é responsável por construir o tempo,
mas que, em contrapartida, não o interrompe ou anula. Antes, permite que se
desfaça a barreira que existe entre o presente e passado, possibilitando que se
construa uma ponte de comunicação e de luz em meio ao mundo dos vivos e de
seus antepassados.

Os Contributos da Memória
A esfera da memória e dos depoimentos orais, genealógicos e biográficos,
estão contribuindo para o campo de análise histórica, ligando temporalidades,
fazendo-as entrecruzarem-se, bem como resgatando atores sociais silenciados,
dimensões do real muito pouco visíveis.

Tedesco (2002, p. 44) explica que:

A memória hoje é fundamental por que a sociedade da


informação, da técnica e da racionalidade econômico-
consumista faça o tempo andar mais rápido, - fala-se de tempo
real – e das diferentes funcionalidades que é conferido ao tempo
e às coisas; os objetos perdem significados mais depressa,
possuem reduzido seu tempo de duração e relevância.

O autor apresenta que o passado social e cultural é importante, além de outros


aspetos, para definir espaços, autoestima, reafirmação social, tanto na dimensão

93
Memória e História Oral

regional quanto local, não com a intencionalidade de restauração sociocultural,


o que seria cair numa alteridade unidimensional ou numa homogeneidade
sem conceber a diversidade e a multiplicidade de elementos intervenientes do
presente, mas de reencontrar valores que promoveram atitudes, projetos de
vida, integrações, configurando padrões de vida, traumatismos culturais, que
resultaram mudanças significativas no grupo, alterando o mundo da vida e a
ordem dos valores existentes (TEDESCO, 2001).

A memória distribui-se em vários planos e esferas do cotidiano, vivido em


contato com a natureza física, com a família (geração após geração), com os
grupos étnicos e de vizinhança, com a comunidade em seus atos de passagem
(nascimento, batismo, casamento, morte), com a substituição de regimes políticos,
de objetos e utensílios de uso doméstico, da comunicação e do trabalho.

Bosi (1994) discute que, de maneira geral, a nossa sociedade rejeita o velho,
não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra. Perdendo a força de trabalho,
ele já não é produtor nem reprodutor, descarta-se, substitui-se, sem maiores
envolvimentos e preocupações.

Tedesco (2001) discute que a memória está ligada a este conjunto de


elementos, que contribuem para a construção da reprodução social, materializa,
(re) constrói e atualiza práticas e interações cotidianas, guarda e resguarda a
lembrança. O autor explica que a memória consiste numa espécie de envelope
(imaginário e resguardo), essa contenção do passado no presente, principalmente
pelos relatos de novos pioneiros da região (após tornarem-se, em grande
parte comerciantes e ‘colonos fortes’), objetiva restabelecer uma continuidade/
redefinição no tempo e, ao mesmo tempo, apreender seu passado pessoal. É
como se eles se movessem por uma memória atemporal, na qual relações vão
sendo esquecidas, e a memória vai sendo refeita com base nas representações
atuais. Um ethos se reconstitui por e para esta dimensão.

Ethos: deriva de caráter moral, utilizado para descrever o


conjunto de hábitos e crenças de uma comunidade ou nação, que a
distingue de outras.

94
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Tedesco (2001) descreve que a corrente da memória, seja ela pela


Memória, seja
ótica da nostalgia, do ufanismo, da comoção religiosa ou do sacrifício,
ela pela ótica
contribui para engajar um ethos no agir social e cotidiano presente, da nostalgia, do
assim como para redefinir e cristalizar laços sociais internos e externos, ufanismo, da
juntando-se ao surgimento de injunções sociais reconstruídas pelas comoção religiosa
novas dinâmicas. O autor defende que o trabalho e a vida familiar ou do sacrifício,
são centralidades que, mesmo redefinidas, permanecem como contribui para
engajar um ethos
símbolo social e como racionalizações de estratégias ético-morais e
no agir social e
econômicas. cotidiano presente,

Os encontros de famílias fornecem múltiplas ocasiões para evocar o passado


mais ou menos recente; levam a pensar sobre sua origem e natureza, as quais
acabam de influenciar suas lembranças e a maneira como são contadas. A casa
da família, por exemplo, é o centro da família conjugal. As casas são testemunhos
edificados do grupo familiar, de sua dimensão mais íntima, dos ritmos diários e
dos rituais, das rupturas e descontinuidades e da sucessão de gerações.

Figura 9 - Família Andreazza. Festa de bodas de ouro. Caxias do Sul, 1903

Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/1GwZ1W>. Acesso em: 22 mar. 2016.

Abaixo segue uma sugestão de leitura de livro que, por meio


das memórias de três gerações de mulheres (avós, mãe e neta),
procura remontar todo o processo histórico e de experiências
familiares transcorrido em meio ao processo de transição da China,
marcada pelas tradições ancestrais, para as mudanças dos modelos
da revolução cultural comunista.
CHANG, Jung. Cisnes selvagens: três filhas da China. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.

95
Memória e História Oral

Atividade de Estudos:

1) Descreva quais são as principais potencialidades que a memória


comporta quando é reconhecida em meio a um grupo de
indivíduos.
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Caro(a) pós-graduando(a)! No texto que você acabou de ler, procurou-


se evidenciar em que sentido a memória e as lembranças podem favorecer o
processo de empoderamento e conhecimento das memórias no seio familiar, bem
como o da conquista e exercício de cidadania. No texto que segue, procurar-se-á
apresentar a abordagem que Walter Benjamin atribui à tradição e à memória.
Reforce a atenção!

O Sentido da ‘RememoraÇão’ em
Walter BenJamin
Caro(a) pós-graduando(a), pudemos estudar que a memória constituiu
essencialmente um ato de evocação, no qual se pretende refazer imagens
mentais que pertencem ao passado. Aqui dar-se-á um passo adiante, no sentido
de procurar compreender a noção de rememoração.

Pode-se dizer que a memória almeja resgatar e conservar as experiências


do passado, já a rememoração pretende desintegrá-las e desestabilizá-las e
desnaturalizá-las. Esta é a proposta que Walter Benjamin (1982-1940), teórico
alemão da Escola de Frankfurt, apresentou em seus escritos.

Benjamin apresenta a possibilidade de rememoração diante dos processos


de interrupção ou perda das tradições, o que ele chama de tempos de barbárie,
quando não existe mais distinção de valores de bem e mal, quando ambos se
equiparam, tornam-se legítimos e, por conseguinte, banalizam-se. Benjamin
testemunhou a primeira guerra mundial e foi uma das vítimas, ainda nos primeiros
anos da segunda guerra mundial.
96
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Benjamin (2010, p. 73) problematiza que:

Sabia-se muito bem o que era a experiência: as pessoas mais


velhas passavam-na aos mais novos. De forma concisa, com a
autoridade da idade, nos provérbios; em termos mais prolixos
e com maior loquacidade nos contos; por vezes, através de
histórias de países distantes, à lareira, para filhos e netos. Para
onde foi tudo isso? Onde é que se encontram ainda pessoas
capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda
moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam
como um anel de geração em geração? Um provérbio serve
hoje para alguma coisa? Quem é que ainda acha que pode
lidar com a juventude invocando a sua experiência?

Cantinho (2015) explica que, além do cenário de barbárie e desencanto que


rodeava Benjamin, em seu imaginário havia todo um acúmulo de custos e perdas,
ocasionados pelo desenvolvimento da técnica que estava em curso desde a
revolução industrial no final do século XIX. A dinâmica da vida passou a solicitar
do homem a capacidade de integrar na sua experiência todas as mudanças
ocorridas em uma velocidade vertiginosa, o que desorientou o homem moderno
de seu processo de renascimento e o conduziu ao de galvanização, ou seja,
sujeitou o homem a fortes estímulos de energia e de vida artificial.

Para Benjamin
Para Benjamin (1987), o desenvolvimento do capitalismo e a
(1987), o
fé no triunfo do progresso são os responsáveis pela perda e pelo desenvolvimento do
enfraquecimento da experiência, memória e individualidade. A nova capitalismo e a fé no
condição do homem foi a de submissão e servidão em meio aos espaços triunfo do progresso
urbanos. A hegemonia da técnica sobre o processo ritual de elaboração são os responsáveis
dos bens culturais ocasionou a perda da aura, da dimensão sagrada pela perda e pelo
enfraquecimento
e dos sentidos daqueles bens. Em contrapartida, como recompensa,
da experiência,
promoveu a valorização aparente do mundo, a transfiguração e a memória e
relatividade de tudo e de todos. individualidade.

Segundo Benjamin (1987), as possibilidades anunciadas pelos meios e


instrumentos de produção, as técnicas e as tecnologias somente entorpecem os
indivíduos e nada mais são do que as novas expressões da barbárie. Isso passou
a se tornar evidente nas formas e aparências das novas coisas, que apresentam
uma fusão de estilos e visões os quais pertencem a outros tempos e sociedades,
revelando um uso anacrônico e esquizofrênico do repertório do passado; que é
incapaz de conduzir ou remeter à uma tradição ou cultura propriamente dita; que
é responsável por desespiritualizar o homem, subtrair seu senso e capacidade
crítica, de refletir e reconhecer sentido e significado moral e ético contido nos
meios, no fazer e no uso de tudo o que o cerca.

Muito bem, caro(a) pós-graduando(a)! Uma pergunta mais: - qual há de ser o


caminho diante deste momento e estado de coisas?

97
Memória e História Oral

Benjamin encontrou resposta e orientação na arte de Paul Klee (1879-


1940), um artista da fase avançada da modernidade, para o qual arte e técnica
encontravam-se associadas ao mesmo tempo ao expressionismo do final
do século XIX e aos movimentos artísticos do século XX, como o cubismo, o
surrealismo e o futurismo.

Na obra Angelus Novus existem elementos que são recorrentes da arte


expressionista, como é o caso dos traços, dos olhos, das asas, do corpo e até da
cor utilizada, que rompe com as formas tradicionais de perspectiva e expectativa,
normalmente atribuídas à representação de um anjo, especialmente em se
tratando do imaginário religioso ocidental.

Figura 10 – Angelus Novus, Paul Klee, 1920

Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/O9KHUP>. Acesso em: 11 abril 2016.

Benjamin (1987, p. 226) propõe a interpretação da obra ou figura anterior nos


seguintes aspectos:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa


um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara
fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada,

98
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto.


Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma
cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a
nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos
e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e
prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais
fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de
ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
de progresso.

Tanto a obra de Paul Klee como o texto de interpretação de Walter Benjamin


expressam um anjo que comporta a atribuição de ‘salvador/redentor’ diante da
maré de tragédias provocadas pelo progresso, que significa o fim das tradições,
da industrialização, o avanço da vida modera de maneira geral.

No Angelus Novus percebe-se certo descaso em relação ao futuro, ao devir,


pois seu olhar encontra-se fixo no passado. Conforme a narrativa de Benjamin, o
que mais interessa ao Angelus Novus é estar realmente no passado, pois existem
inúmeras possibilidades que se encontram encobertas pelas ruínas e destroços
do progresso, que esperam pelo agir e atuar dos indivíduos, no sentido de revirar
o passado, desentulhar, dar voz, ouvir experiências, testemunhos, projetos,
sonhos e expectativas que foram acobertados e esquecidos, pois estes podem
trazer orientação e novos/outros caminhos diante dos impasses do presente.

Para Benjamin, todo acontecimento significa um choque,


Uma data, em si
um trauma, que é irreversível, não há como desfazer. A tradição, mesma, é apenas
incorporando os acontecimentos numa lógica contínua, tem tendência um dado vazio que
a apagar as asperezas e torná-las naturais, confortá-las. Uma data, em é preciso preencher,
si mesma, é apenas um dado vazio que é preciso preencher, ou melhor, ou melhor, animá-lo
animá-lo com o auxílio de um saber que não é o conhecimento, mas com o auxílio de um
saber que não é o
reconhecimento e rememoração do que está guardado e depositado
conhecimento, mas
na memória. Benjamim contribui com a história quando aponta para reconhecimento e
a superação do pensamento de que o passado e o presente se rememoração do
sucedem. Segundo ele, o passado é contemporâneo, simultâneo ao que está guardado
presente, ambos se sobrepõem. Assim, faz-se necessário responder às e depositado na
expectativas, realizar aquele passado que está calado em sofrimento memória.
no interior do presente.

Dosse (2003) reconhece nas teses de Benjamim uma espécie de aporte


criacionista, ou melhor, recriacionista, plasmado por meio de uma espécie de
redenção messiânica, que promove a reconciliação da humanidade com seu
passado, que tanto desespera e angustia o momento presente, sem ser ouvido;
que, por sua vez, reconhece o dom de despertar no passado as centelhas da

99
Memória e História Oral

esperança como privilégio exclusivo do historiador, convencido de que também os


mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.

O inimigo aqui pode ser também o governo, instituições que estudamos


anteriormente, quando adulteram ou destroem documentos, que não permitem
que os indivíduos acometidos por um determinado fato histórico façam seus
processos de retomada das lembranças e as transmitam aos demais membros da
sociedade, como as gerações sucessoras.

As teses de Benjamin dirigiam-se à escola metódica, ao historicismo, à


secularização, à racionalização, ao progresso, ao materialismo histórico, alertando
que processos históricos poderiam sobrepor-se de forma fatal e ressignadora aos
sujeitos históricos e à tradição das populações.

Benjamin foi um homem do século XX, mas que acabou de se despedir do


século XIX, o século por excelência da modernidade. Benjamin recuperou na obra
de Klee alguns pontos que podem servir à reflexão sobre o conceito de história,
orientar o fazer do historiador da memória, do indivíduo e do cidadão em termos
de consciência e atitude, diante do momento histórico no qual nos encontramos.

A título de aprofundamento, neste momento, ao final do capítulo,


sugerimos que você se aproprie um pouco mais do legado deste
autor, o que pode ser feito com a leitura do texto “Teses sobre o
conceito de história”, de 1940. Tratam-se de 18 teses e 2 apêndices,
estas parecem breves, porém não se engane, pois tratam-se de
fundamentos e princípios complexos. O texto se encontra disponível
no seguinte endereço eletrônico: <http://goo.gl/p0wl1R>

Caro(a) pós-graduando(a), os estudos realizados acima sobre Walter


Benjamin podem ser muito proveitosos. As concepções de entendimento e análise
e as preocupações que o autor atribui ao passado, às tradições e à memória
podem ser motivadoras e inspiradoras ao fazer prático, teórico e reflexivo em
memória e história oral.

100
OS DITOS E NÃO DITOS, OS USOS E ABUSOS
Capítulo 3 NA HISTÓRIA ORAL

Algumas ConsideraÇÕes
Vive-se em uma época e em um cenário abalados por crises e enigmas
que aguardam por respostas, mudanças, rupturas e descontinuidades, tanto
do homem com ele mesmo como em relação ao outro, ao seu passado, ao seu
presente e futuro. Não foi diferente ao longo da trajetória humana, mas não é
tempo ainda de conformismos e alienações.

A memória coletiva e história oral podem ser reconhecidas como uma


conquista, mas também como um instrumento de poder. Isso tudo merece
nossa avaliação e julgamento, como profissionais da história que se encontram
engajados na luta pelo reconhecimento e garantia de valores éticos e em defesa
dos direitos universais dos seres humanos e da manutenção da vida de todo um
planeta.

As memórias sociais precisam ser compreendidas na complexidade com que


são constituídas, tais como na percepção do indivíduo e deste no coletivo, na
sua face simbólica, ideológica e política, e como um tema e objeto acadêmico-
científico em que historiadores e sociólogos se debruçam.

ReFerÊncias
ANTELME, R. L’espèce humaine. Paris: Gallimard, 1957.

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e


história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.

_______. O anjo da história. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das


Letras, 1994.

CANTINHO, M. J. A teia de Penélope e o anel da tradição: cultura e


rememoração na obra de Walter Benjamin. Philosophica, 2015. Disponível em:
<https://goo.gl/6BqfvI>. Acesso em: 11 abr. 2016.

DETIÈNNE, M. Os mestres da verdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

DOSSE, F. A história. Bauru: EDUSC, 2003.

FÉLIX, L. O. História e memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo:


UPF, 1998.
101
Memória e História Oral

_______. Política, memória e esquecimento. In: TEDESCO, J. C. (Org.). Usos de


memórias. Passo Fundo: UPF, 2002.

FERREIRA, J. P. Cultura é memória. Revista USP, São Paulo, n. 24, p. 114-120,


dez./jan./fev. 1995.

KOLLERITZ, F. Testemunho, juízo político e história. Revista Brasileira de


História. São Paulo, v. 24, n. 48, p. 73-100, dez. 2004.

LE GOFF, J. Memória. In: ENCICLOPEDIA EINAUDI. Memória-história.


Portugal, v.1, p. 11-50, dez. 1984.

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto


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NOVAIS, A. O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

PIRALIAN, H. Genocidio y transmisión, 2000. In: SLIGMANN-SILVA, M. Narrar o


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Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, dez. 2008.

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POLLAK, M. Memória, esquecimento silêncio. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, n. 3, v. 2, p. 3-15. 1989.

SELIGMANN-SILVA, M. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de


catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n.1, p. 65-82,
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SOUZA, L. Reaprender a pensar o mundo plural e diferente. Revista Tempo e


Presença, n. 276, p. 19-22, jul./ago. 1994.

TEDESCO, J. C. Memória e cultura: o coletivo, o individual, a oralidade e


fragmentos de memórias de nonos. Porto Alegre: Est, 2001.

_______. Usos de memórias: política, educação e identidade. Passo Fundo:


UPF, 2002.

YERUSHALMI, Y. H. Usos del olvido. Buenos Aires: Ediciones Nueva Vision,


1989.

102
C APÍTULO 4
Memória e História Oral: A Pesquisa,
Aspectos Metodológicos e Éticos

A partir da perspectiva do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes


objetivos de aprendizagem:

 Discutir as principais fragilidades e potencialidade que são reconhecidas à


memória e à história oral como fontes na produção do conhecimento histórico.

 Compreender as formas de estruturação, preparação, cuidados preliminares


e éticos pertinentes, que acompanham o campo de pesquisa em memória e
história oral.

 Apresentar os principais modelos e métodos que são utilizados na captação,


no registro, no inventariado e na sistematização de fontes orais e pesquisa em
memória.

 Enumerar as principais abordagens e elementos que podem ser considerados


a partir do momento em que as fontes passam pelo tratamento analítico, crítico
e reflexivo.
Memória e História Oral

104
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

ConteXtualiZaÇão
Pesquisar memórias e se utilizar de fontes orais para narrar a história exige
que nos posicionemos de forma diferente do que se estivéssemos utilizando fontes
documentais e escritas, assim como de forma diferenciada em relação ao próprio
passado. Antes de mais nada, faz-se necessário repensar e problematizar a
matriz de pensamento positivista, que previa o fazer do historiador comprometido
em explicar e mostrar o passado como “realmente” havia acontecido e, em
contrapartida, incluir as problemáticas que agora emergem das novas fontes
historiográficas.

Memória e história oral passaram a ser enfatizadas em meio ao movimento da


Nova História e se fortaleceram mundialmente a partir dos anos de 1980. Ambas
envolvem a dimensão de tempo vivido, a experiência e o testemunho ocular,
compreendem o “vi/vimos com os nossos próprios olhos”. O sujeito/pesquisador e
o objeto de estudo encontram-se na mesma temporalidade; existe a possibilidade
de se estabelecer o confronto entre o conhecimento histórico/narrado, o noticiado,
e o testemunho vivo, a vivência do fato ou acontecimento.

Porém a memória e a história oral carregam consigo certa fragilidade


documental, no que diz respeito ao campo da objetividade. Elas são questionadas
no quesito de que apresentam pouco recuo temporal, que favorece parcialidade, a
tomada de posição diante dos fatos e acontecimentos em questão. No que tange
aos entrevistados, podem suscitar sentimentos como de heroísmo ou vitimização.
O ato de remexer nas memórias pode tocar em traumas, na frustração de
esperanças.

Pois bem, caro(a) pós-graduando(a), estas são algumas das questões que
serão discutidas ao longo do último capítulo deste caderno de estudos. Agora falta
pouco, reforce a atenção e a dedicação, que o aprendizado pode ser ainda mais
proveitoso!

Memória e História Oral Como Fonte


de Pesquisa
A história oral e a memória podem ser entendidas como meio e métodos
de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica) que privilegiam a realização de
entrevistas com pessoas que participaram ou testemunharam acontecimentos,
possuem experiência em meio a determinadas conjunturas, que possuem
determinadas visões de mundo. Segundo Alberti (1990), trata-se de estudar

105
Memória e História Oral

acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais,


movimentos, entre outros, lançando mão de recursos, fontes e evidências
oriundas da história oral.

A história oral, como fonte e conhecimento histórico, na circulação no


interior dos espaços acadêmicos e de produção do conhecimento científico,
possui uma trajetória caracterizada por momentos de forte valorização e outros
de amplo descrédito e esquecimento. Prins (1992 apud BURKE, 1992) discute
que os historiadores das principais sociedades modernas, industriais, urbanas e
maciçamente alfabetizadas se apresentam como céticos em reconhecer as fontes
orais na elaboração do conhecimento histórico.

Na concepção positivista de conhecimento histórico, em especial da escola


rankeana, do final do século XIX, que privilegiava as fontes oficiais e escritas, as
fontes orais representavam uma escolha infeliz, que Prins (1992 apud BURKE,
1992, p. 166) analisa e problematiza nos seguintes termos:

A questão é que o relacionamento entre as fontes escritas e


orais não é aquele da prima-dona e de sua substituta na ópera:
quando a estrela não pode cantar, aparece a substituta: quando
a escrita falha, a tradição sobe ao palco. Isso está errado. As
fontes orais corrigem as outras perspectivas, assim como as
outras perspectivas as corrigem.

Nesse contexto, as sociedades africanas e indígenas são as mais


prejudicadas, ao ponto de serem, por muito tempo, chamadas de povos
a-históricos. Prins (1992 apud BURKE, 1992) apresenta que os historiadores
vivem em sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais
sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada. Para eles,
a palavra escrita é soberana, rebaixam a palavra falada como sendo meramente
utilitarista e de fraco interesse, nem as nuanças e os tipos de dados orais são
levados em conta.

Diehl (2002) alerta que a memória, como qualquer outra fonte


Diehl (2002) alerta histórica, sofre de uma fraqueza, que é o desgaste ao longo do tempo.
que a memória, como
qualquer outra fonte À medida que estiver localizada mais distante do fato, da época, do
histórica, sofre de contexto tomado como objeto de pesquisa, tanto mais desgastada
uma fraqueza, que é
o desgaste ao longo ela estará. Ela sofre um processo natural de corrosão temporal, vai
do tempo. perdendo a força, a capacidade ilustrativa e explicativa de fornecer
informações substantivas e concretas; ao ponto de restarem apenas
rumores, ruídos, ruínas, murmúrios, vestígios e fragmentos.

Caro(a) acadêmico(a), uma vez ciente deste processo histórico a que a


memória não escapa incólume, é que se justificam e fazem necessárias atividades

106
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

de rememoração, inventariamentos, registros escritos e digitais, sistematizações


e socialização.
O pesquisador
em memória e
Tanto Thompson (1992) como Bosi (1994) reconhecem que recaí história oral precisa
ao relato oral a percepção de que se trata de uma instância empírica entender temporal
fragmentada, desconexa, incoerente e ambígua. Nesse contexto, e culturalmente
Tedesco (2001) defende que o pesquisador em memória e história oral tais fragmentos e
precisa entender temporal e culturalmente tais fragmentos e dar-lhes dar-lhes coerência
analítica e
coerência analítica e compreensiva.
compreensiva.

Bosi (1994) defende que o historiador necessita reconstruir os fragmentos


como se estivesse com um vaso antigo despedaçado em suas mãos, fazendo
esforço e tomando o cuidado hermenêutico, de zelo e fidelidade entre
os fragmentos e o contexto a que ele pertenceu. A história oral
possui forte poder
Prins (1992 apud BURKE, 1992) explica que a história oral possui ilustrativo, permite
uma evocação
forte poder ilustrativo, permite uma evocação descritiva, comovente e
descritiva,
que é historicamente libertadora; porém restringe-se à pequena escala, comovente e que
não é capaz de fornecer explicações explanatórias e abrangentes. é historicamente
libertadora.
Prins (1992 apud BURKE, 1992) nos chama a atenção para o fato
de que atribuir uma visão muito confiável às fontes escritas, sem suporte crítico,
pode ser perigoso também. É necessário não perder de vista que as fontes
documentais não são tão voluntárias e naturais como se costuma pensar, elas
também sofrem de seleção à preservação. Muitas vezes, as seleções que os
arquivos possuem podem ser oriundas de escolhas erradas e mal-intencionadas
diante de determinadas ordens, que deliberam entre o que preservar e o que
queimar.

Prins (1992 apud BURKE, 1992) levanta outro aspecto que advoga em
suspeita às fontes documentais. Desta vez, reside no fato de que existe grande
distância entre o texto original oral e o correspondente escrito tornado oficial; e
que é comum a reelaboração conforme a conveniência do público interlocutor. Por
outro lado, o autor defende que os problemas de má utilização de dados orais são
mais fáceis de serem localizados e resolvidos.

Prins (1992 apud BURKE, 1992) discute, ainda, que se vive em um momento
histórico em que ocorre o deslocamento para uma cultura pós-alfabetizada, que
tende a ser globalizante, digital, eletrônica, visual e oral, em especial, com a
popularização de aparelhos de comunicação móveis e aplicativos que favorecem
a comunicação instantânea; o que, por sua vez, é responsável por colocar
em apuros toda a tradição historiográfica que ainda se sustenta nas bases
documentais.

107
Memória e História Oral

Caro(a) pós-graduando(a), quem sabe possa ser o momento estratégico


para que a história oral galgue seu merecido prestígio!

Nora (1993) entende que a memória é e foi sempre suspeita à história, que
a história possui como missão destruir e repelir a memória. Segundo o autor, a
história é a deslegitimação do passado vivido. Postura que é responsável por
inúmeros debates e polêmicas, tanto no campo da história como da memória.

Pollak (1992) discute que se a memória é socialmente construída,


A fonte escrita ou a é óbvio que toda documentação também o é. Para o autor, não existe
fonte oral, podem ser
tomadas tal e qual diferença entre fonte escrita e fonte oral. A crítica da fonte, tal como
elas se apresentam. todo historiador aprende a fazer, deve ser aplicada a fontes de todo
tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparável à
fonte escrita; dito em outros termos, ambas, a fonte escrita ou a fonte oral, podem
ser tomadas tal e qual elas se apresentam.

Agora, é óbvio que a coleta de representações por meio


da história oral, que é também história de vida, tornou-se
claramente um instrumento privilegiado para abrir novos
campos de pesquisa. Por outro lado, à multiplicação dos
objetos que podem interessar à história, produzida pela
história oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de
uma sensibilidade epistemológica específica, aguçada. Por
isso mesmo acredito que a história oral nos obriga a levar
ainda mais a sério a crítica das fontes. E na medida em que,
através da história oral, a crítica das fontes torna-se imperiosa
e aumenta a exigência técnica e metodológica, acredito que
somos levados a perder, além da ingenuidade positivista,
a ambição e as condições de possibilidade de uma história
vista como ciência de síntese para todas as outras ciências
humanas e sociais (POLLAK,1992, p. 205).

Pollak (1992) nos adverte que as partes mais construídas dizem respeito
àquilo que é mais verdadeiro para uma pessoa, mas, ao mesmo tempo, apontam
para aquilo que é mais falso, sobretudo quando a construção de determinada
imagem não tem ligação ou está em franca ruptura com o passado real. O que
mais nos deve interessar, numa entrevista, são as partes mais sólidas e as menos
sólidas, pois no mais sólido e no menos sólido se encontra o que é mais fácil de
identificar como sendo verdadeiro, bem como aquilo que levanta problemas de
interpretação.

Tedesco (2001) descreve que a transmissão da memória depende da maneira


como uma cultura representa a linguagem; do modo como uma sociedade/
comunidade utiliza a linguagem como veículo de expressão e comunicação sem
ficar totalmente dependente do contexto social imediato.

108
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Tedesco (2001, p. 32) analisa que a família é responsável por grande parte
do processo de mediação da memória. Veja:

Nela cristaliza-me memórias afetivas e sociais; constrói-se


personagens centrais, responsáveis por guardar a memória
e transmiti-la no tempo. Há museus de família e há museus
na família. Os avós reconstroem suas vidas, relembrando a
trajetória familiar e estabelecendo, na lembrança, o espaço
familiar, a representação da família e suas relações internas. Os
avós, ao reconstruírem as suas histórias de vida, reconstroem
também a história do modelo familiar, através de caminhos
já marcados por lembranças suas e de seu grupo familiar. O
sobrenome, por exemplo, não é apenas uma identificação
pessoal que se esgota no indivíduo que o carrega; há imagens,
há contatos com a história, com formas de comunicação
temporal, integridades e persistências.

Alberti (1990) apresenta que história oral apenas pode ser empregada
em pesquisas sobre temas contemporâneos, ocorridos em um passado não
muito remoto, isto é, que a memória dos seres humanos alcance, para que
se possa entrevistar pessoas que dele participaram, seja como atores, seja
como testemunhas. É claro que, com o passar do tempo, as entrevistas assim
produzidas poderão servir de fontes de consulta para pesquisas sobre temas não
contemporâneos.

Prins (1992 apud BURKE, 1992, p. 198) descreve que:

Alguns historiadores acham que seu ofício é descrever e,


talvez, explicar por que as coisas ocorreram no
passado. Esta é uma justificativa necessária, mas Tedesco (2001)
não suficiente. Há dois componentes essenciais discute que a esfera
da tarefa do historiador. A continuidade deve ser da memória e dos
explicada. A continuidade histórica, especialmente depoimentos orais,
nas culturas orais, requer mais atenção do genealógicos e
que mudança. A tradição é um processo - vive biográficos pode
apenas enquanto é continuidade reproduzida.
contribuir ao campo
É efervescentemente vital em sua aparente
quietude. Em segundo lugar, a tarefa do historiador
de análise em
é proporcionar ao leitor confiança em sua história, ligando
competência metodológica. temporalidades,
entrecruzando-
as, revelando
Tedesco (2001) discute que a esfera da memória e dos
dimensões do real
depoimentos orais, genealógicos e biográficos pode contribuir ao que permaneciam
campo de análise em história, ligando temporalidades, entrecruzando- opacas e pouco
as, revelando dimensões do real que permaneciam opacas e pouco visíveis, resgatando
visíveis, resgatando e dando voz ativa a atores sociais que haviam sido e dando voz ativa
silenciados. a atores sociais
que haviam sido
silenciados.

109
Memória e História Oral

Os chamados “novos temas e fontes” são novos no olhar do pesquisador,


que, agora, conta com outra percepção ao revolver o passado, mas que estes
temas sempre estiveram no passado e o que não estava desperto e atento era
este olhar e consciência para com os outros sujeitos, objetos, problemas e fontes.

Trata-se de um campo de análise que possibilita amplamente o diálogo


interdisciplinar em termos de áreas do conhecimento, tais como a história,
antropologia, sociologia, paleontologia, psicologia, linguística, e os temas
transversais, como a história política, geopolítica, cultura, tradição e modernidade
novo/antigo, cidadania e direitos humanos.

História oral acaba por reunir e conciliar elementos da mitologia, da


genealogia e da narrativa histórica. Com o pós-guerra mundial e com o movimento
de renovação do conhecimento histórico nos anos de 1960, com a Nova História,
História das Mentalidades, História Local, História da Vida Privada, História das
Mulheres, entre outros, as fontes orais passam a ser valorizadas.

No Brasil, a história oral passou a ser utilizada nos centros de pesquisas e


documentação a partir dos anos de 1980, um tanto em defasagem se comparada
a outros países que, desde os anos de 1960, vinham empregando-a na produção
do conhecimento histórico da época contemporânea. Isso se deve ao
As atividades de fato de que o Brasil (1964-1985) e alguns países da América Latina
registro de memórias
e testemunhos de viveram experiências de regimes políticos de ditadura militar, o que,
forma oral consistem por sua vez, impedia o amplo acesso às fontes e às discussões que
em operações
intelectuais envolvessem a conjuntura política do momento.
que exigem
disponibilidade dos As atividades de registro de memórias e testemunhos de forma
depoentes. Métodos,
equipamentos de oral consistem em operações intelectuais que exigem disponibilidade
captação, atividade dos depoentes. Métodos, equipamentos de captação, atividade de
de transcrição,
ordenação, transcrição, ordenação, sistematização, crítica e reflexão por parte do
sistematização, crítica pesquisador.
e reflexão por parte
do pesquisador.
Nesse ponto, já ocorre o seguinte questionamento: conforme
se avança no inventariamento, na captação e nos registros dos resquícios da
memória e da história oral, que, conforme se adentra ao campo da história, não
estaria sendo perdido o que é genuíno e específico do campo da memória e da
oralidade, o que é a imaterialidade, o intangível?!.

Caro(a) pós-graduando(a), mas quem sabe deixemos estas questões para


um momento futuro, quando da continuidade de seus estudos, em nível de
mestrado, pois o debate avança para o campo epistemológico do conhecimento
e requer ampliação, aprofundamentos e cuidados teóricos nos estudos. Agora

110
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

vamos avançar no que diz respeito ao campo da pesquisa em memória e história


oral propriamente dito!

Mas antes disso, gostaria de fazer uma pequena intervenção sobre um fato/
fenômeno admirável na história da humanidade, prossiga na leitura abaixo:

No sentido de purgar a experiência histórica e de contemplar a causa


das vítimas do holocausto praticado em meio aos campos de concentração da
Alemanha nazista da segunda guerra mundial, foi criado um dia em memória ao
holocausto, que é o 04 de maio:

Figura 11 - Dia 04 de maio: Dia em memória ao holocausto

Fonte: Disponível em: <https://goo.gl/bpdNr3>. Acesso em: 09 maio 2016.

Os sobreviventes do holocausto, os descendentes ou a comunidade judaica


não saíram às ruas a procura de vingança ou revanche diante da tragédia de que
haviam sido vítimas. A postura daqueles indivíduos foi a do perdão e da disposição
voluntária em servir como testemunho sobre o que lhes havia ocorrido.

No Brasil, ao longo do século XX, conta-se com diversos momentos em que


a expressão da opinião pública e a postura de oposição ao regime político não
era tolerada, em especial, ao longo do regime de ditadura militar (1964-1985).
No sentido de investigar, apurar e julgar os crimes cometidos contra os direitos
humanos é criada a Comissão Nacional da Verdade, observe a seguir:

111
Memória e História Oral

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE/CNV

A Comissão Nacional da Verdade/CNV foi criada pela Lei


n. 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. Sua principal
finalidade é apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas
entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.
Maiores informações sobre as atividades da CNV encontram-se
disponíveis em: <http://www.cnv.gov.br/>.

Atividade de Estudos:

1) Existe, em sua comunidade, cidade ou região datas, atos, festas


e eventos que são organizados e comemorados em alusão
ou em memória a alguma pessoa, algum fato e/ou fenômeno
socialmente reconhecido? Quais?
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________
____________________________________________________

Caro(a) pós-graduando(a), neste momento, quem sabe deixemos um pouco


em segundo plano os conteúdos teóricos e conceituais que tratam desde a
conceituação até a problematização dos usos da memória em nossa época, e nos
dediquemos a estudar e a compreender as orientações e as recomendações que
são feitas ao campo da pesquisa propriamente dito. Sedo assim, prossiga nos
estudos com atenção redobrada!

112
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Preparando o Campo de Pesquisa


Caro(a) pós-graduando(a), a captação de entrevistas orais não
O fazer histórico em
pode ser compreendida como um ato simples de registro de dados,
memória e história
gratuito e natural, em que os dados e as informações encontram-se oral reside em
latentes à espera de serem gravados e registrados; o fazer histórico captar as nuances,
em memória e história oral reside em captar as nuances, as sutilezas, as sutilezas, os
os ditos e não ditos, as oscilações, as entonações, os silêncios, os ditos e não ditos,
trejeitos faciais, os traquejos da fala, os significados, as implicações, os as oscilações,
as entonações,
interesses e julgamentos presentes nos discursos.
os silêncios, os
trejeitos faciais, os
Thompson (1992) apresenta que o trabalho de campo, para ser traquejos da fala,
bem-sucedido, exige habilidades humanas e sociais ao trabalhar os significados,
com os informantes, tanto quanto conhecimento profissional. Toda a as implicações,
comunidade carrega dentro de si uma história multifacetada de trabalho, os interesses
e julgamentos
de vida familiar e relações sociais à espera de alguém que a traga para
presentes nos
fora. discursos.

Segundo Santos (2000), uma vez que nos dedicamos aos estudos e
pesquisas em memória e história oral, temos a oportunidade de perceber como os
discursos históricos e historiográficos são produzidos, em especial, perceber que
a história está presente em todos os lugares, em todos os momentos. De que o
lugar, o local seja quando, qual e onde for, encontra-se historicamente inserido em
espaços e contextos mais amplos, que se encontra profundamente enredado em
condições econômicas, políticas, sociais e culturais vividas no dia a dia por seus
habitantes, seja no município, seja no país, seja no mundo.

[...] as entrevistas como formas capazes de fazer com que os


estudos de história local escapem das falhas dos documentos,
uma vez que a fonte oral é capaz de ampliar a compreensão
do contexto, de revelar os silêncios e as omissões da
documentação escrita, de produzir outras evidências, captar,
registrar e preservar a memória viva (SAMUEL, 1989, p. 233).

Halbwachs (1990) explica que a necessidade de escrever a história de uma


pessoa desperta somente quando os interessados estão muito distantes no
passado, como se houvesse a oportunidade de encontrar testemunhas que dela
conservem alguma lembrança.

Félix e Grijó (1999) analisam que lidar com a história oral é uma atividade
ao mesmo tempo agradável e tensa, pois remonta-se, reconta-se toda uma
vida e este desnudar-se profissional, familiar e pessoal diante do outro, envolve
sensibilidades pessoais e alheias. Lida-se com bons e desagradáveis momentos,
com traições, desilusões, pressões, culpas, ressentimentos, marcas, feridas,

113
Memória e História Oral

cicatrizes e perigos. Sendo assim, ao trabalharmos com memórias e fontes orais


também nos tornamos cúmplices da emoção e da comoção que o entrevistado
reviverá.

As atividades do lembrar são muito mais um exercício do e no presente do


que um exercício de trazer/deslocar para o presente fatos já vividos. Rememorar
não é o mesmo que viver novamente o passado, depende da leitura do sujeito
que a produz, em uma sociedade, um contexto e um momento que se diferencia
daquele a qual se refere à lembrança do fato ocorrido.

A memória é como os Certeau (1994) argumenta que a memória produz, num lugar que
pássaros que põem não lhe é próprio, e procura tornar mais inteligível a teoria, utilizando-se
ovos no ninho de da metáfora e analogia. A memória é como os pássaros que põem ovos
outras espécies.
no ninho de outras espécies.

Vansina (2010 apud KI-ZERBO, 2010) explica que a tradição oral é o


testemunho oral transmitido verbalmente de uma geração para a seguinte, ou
mais; e adverte que se torna cada vez menos pronunciada, à medida que a cultura
se move para a generalização da alfabetização.

Prins (1992 apud BURKE, 1992) descreve que outro tipo de fonte oral reside
na reminiscência, que consiste na evidência oral específica das experiências de
vida do informante, tais como os traumas e as sequelas que permanecem depois
da ocorrência de uma determinada experiência e vivência. Em termos de memória
e história oral, diz respeito à dimensão das reminiscências que são reconhecidas
como responsáveis por proporcionar a evocação de memórias e recordações,
ou seja, tornar possível trazer ao momento presente as experiências e vivências
passadas, imbuídas de emoção e comoção.

Imaginamos que você deve estar se perguntando: O que são reminiscências?


Bem, em seguida, vamos tratar de discutir esta questão, mas fique atento, trata-
se de um elemento que requer atenção e cuidado delicado, prossiga na leitura!

Em se tratando de reminiscências no campo da memória e história oral,


pode-se considerar a situação, por exemplo, de quando o barulho de disparos
de metralhadoras ou de sobrevoo de aviões são responsáveis por sensibilizar
a memória e as lembranças de um ex-combatente de guerra; assim como um
determinado cheiro pode sensibilizar as reminiscências dos tempos de infância de
um indivíduo; determinada música, os momentos de tortura que foram vividos em
meio à ditadura militar, causando forte comoção dos sentidos e precipitação das
emoções.

As reminiscências pessoais podem proporcionar inúmeros elementos da


riqueza de detalhes que não estão registrados nos materiais escritos; podem dar
114
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

conta do que Geertz (1989) chamou de “descrição densa”, ou seja, informações


que possuem profundidade, contornos e nuances substanciais, ímpares e
excepcionais.

Prins (1992 apud BURKE, 1992) descreve que a reminiscência pessoal


permite ao historiador extrair elementos e evidências para estudar a variação de
escalas e problemas na história contemporânea, no sentido de que os dados orais
servem para conformar outras fontes, assim como as outras fontes servem para
confirmá-las, proporcionando detalhes insignificantes que, de outra forma, são
inacessíveis e, por isso, estimular a reanalisar outros dados de maneiras novas.

Alguns CaminHos Metodologicos


Caro(a) pós-graduando(a), em termos de estratégias metodológicas
de enquadramento de memória e história oral, serão apresentadas duas
possibilidades, ou seja, a entrevista individual e em grupo focal. Prossiga na
leitura de seu caderno de estudos porque cada estratégia será aprofundada e
explicada a seguir.

Independente da forma de enquadramento e captação, entrevista individual


ou grupo focal, o objetivo ou o problema de pesquisa/entrevista deve previamente
estar bem claro, objetivo e sistematizado. Sendo assim, neste momento, procura-
se apresentar dois principais caminhos no sentido de realizar entrevistas, seguidas
de registros de áudio e vídeo.

Entretanto, existem alguns procedimentos e cuidados que devem ser


tomados, independente da forma de enquadramento em que será realizada a
entrevista. Observe as considerações abaixo:

• Escolha dos entrevistados:

 Na escolha do entrevistado, devem ser levados em consideração


aspectos, tais como o grau de envolvimento e participação que teve com o tema e
problemática da pesquisa;

 Preze por entrevistar indivíduos que possuem informações que


ultrapassam os trabalhos já existentes, bem como possuam algum ponto de vista
ou perspectiva que seja inédita ou excepcional sobre o tema em questão;

 Considere, também, pessoas que são referência e que ocupam cargos


de liderança em uma determinada região, cidade, bairro, comunidade na qual
ocorreram acontecimentos e fenômenos, estas podem fornecer elementos que

115
Memória e História Oral

foram colhidos em meio aos mais diversos indivíduos, bem como estiveram
acompanhando as repercussões que o ocorrido provocou;

 O entrevistado precisa expressar a vontade e a disposição em prestar o


testemunho e que este fato não cause constrangimentos ou que o exponha de
forma indiscriminada, apelativa e sensacionalista, tanto em termos de conteúdo
como de imagem.

Thompson (1992) adverte para que se evite a imposição de entrevista a


quem não esteja e não se sinta disposto para tal, por mais relevante e excepcional
que seja o que esta pessoa possa testemunhar. É de fundamental importância
que ocorra a elaboração prévia de uma pauta que oriente e conduza a entrevista,
e que contemple perguntas historicamente relevantes. Por outro lado, deve-se
evitar o ato de gravar apenas depoimentos seguros e bem articulados.

Para tanto, observe as sugestões que são feitas para os roteiros


semiestruturados:

• Roteiro semiestruturado:

 Organizar um roteiro mínimo de perguntas que subsidiem e articulem a


aproximação e o fechamento do tema em questão;

 O roteiro deve ser disponibilizado ao entrevistado ou aos entrevistados


com uma média de 15 dias de antecedência à data da entrevista;

 Podem ser feitas perguntas como da filiação, do nascimento, da cidade


natal, cidades em que viveu, sobre as experiências de trabalho, da escolaridade
e da tradição religiosa, da filiação partidária, do exercício de cargos de liderança/
destaque na comunidade, da relação direta e indireta com o fato/acontecimento
em questão, da relação e da percepção do fato com o transcorrer do tempo;

 A mudança de pergunta ou de tópico deve ocorrer conforme cada item


anterior for suficientemente respondido e esgotado.

Caro(a) pós-graduando(a), observe abaixo que se procura apresentar um


modelo de roteiro semiestruturado que pode ser feito no momento da entrevista
de trabalhador de sapataria, e, é claro, que alcance os problemas e as questões
de pesquisa propriamente ditas.

116
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Quadro 1 - Roteiro de entrevista oral

1. Nome completo:
2. Naturalidade:
3. Data de nascimento:
4. Nome dos pais:
5. Escolaridade:
6. Trajetória profissional:
7. Quando e como iniciou as atividades na profissão?
8. O que fez com que optasse pela profissão?
9. Mais alguém na família atuava, atuou ou atua neste ramo?
10. Quais eram as principais matérias-primas e ferramentas utilizadas?
11. Quem eram seus clientes? Como chegavam até você?
12. Alguém mais participava e lhe ajudava no trabalho?
13. Que modelos e estilos eram mais procurados?
14. Que mudanças e permanências foram ocorrendo com o passar do tempo?
15. Que importância e significado econômico, político, social e cultural você reconhece para o
exercício desta profissão?
16. Que benefícios e que dificuldades encontrou exercendo esta profissão?
17. Ocorreu-lhe algum trauma, acidente ou doença decorrente da atividade profissional?
18. Quais os fatos curiosos, vivenciados por você ao longo de sua experiência?

Agradecimentos e encerramento.
Fonte: A autora.

O roteiro abaixo é orientador para as principais perguntas que podem ser


feitas na hipótese de um entrevistado que seja de alguma profissão que não é
mais realizada e ou que se encontra em baixa atividade na atualidade, tais como:
sapateiros, alfaiates, parteiras, costureiras, ferreiros, relojoeiros, engraxates,
cobradores de ônibus, telefonistas, ourives, datilógrafos, vendedores ambulantes
e artesãos em geral. Cada pergunta deve ser compreendida no campo amplo de
interpretação que suscitam.

Atividades de Estudos:

1) Descreva aqui quais são as pessoas da sua comunidade, cidade


e região que são fontes potenciais a estudos de memória e
história oral.

117
Memória e História Oral

PROFISSÃO, FUNÇÃO, FATO OU


NOME ENDEREÇO DE CONTATO
FENÔMENO

2) Elabore um roteiro de entrevista oral que se destine a uma antiga


parteira.

ROTEIRO DE ENTREVISTA ORAL PARA PARTEIRA

118
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Caro(a) pós-graduando(a), até aqui procuramos apresentar e discutir no que


consiste e como se procede quando se opta pela metodologia de entrevista oral
individual. A seguir, procura-se apresentar elementos sobre a tomada de entrevista
de forma coletiva.

Prossiga seus estudos e atente para as possibilidades que esta forma de


pesquisa pode proporcionar.

Grupos Focais Como Forma de


Pesquisa
“O sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente
interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais
historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir
dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos à sua volta”.
Spink e Medrado

Como o próprio nome da estratégia já indica, tratam-se de temas, conteúdos


centrais, em foco, em torno dos quais os participantes irão expor as experiências,
vivências, sentimentos, interpretações e percepções que possuem. Podem ser
utilizadas para compreender o processo de construção da percepção, valores
morais e representações sociais. As entrevistas focais favorecem uma grande
quantidade de interações sobre um determinado tema.

Trata-se da tomada de depoimentos e testemunhos em um grupo, ou seja,


na dimensão coletiva. Consiste numa estratégia em que o pesquisador lança um
tópico ou tema em específico a um grupo de indivíduos e coleta os dados por
meio das interações e dos relatos que estes manifestam em meio ao grupo e em
um determinado tempo de conversa.

Logo, a opinião e o pensamento unilateral, bem claro e objetivo,


O entrevistador
não é favorável, ganha-se quando se promove ampla participação e
ocupa uma posição
interação dos participantes, quando se evidenciam os mais variados intermediária, de
pontos de vistas e nuances diante de uma mesma experiência. Nesse mediação entre
caso, o entrevistador ocupa uma posição intermediária, de mediação a observação
entre a observação participante e a pesquisa aprofundada, estruturada participante
por tópicos e questões geradoras. e a pesquisa
aprofundada,
estruturada por
A tomada de entrevistas por meio de grupos focais vem sendo tópicos e questões
utilizada desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Veiga e Gondim geradoras.
(2001) apresentam que foram utilizados grupos focais durante a
Segunda Guerra Mundial para examinar os efeitos de alcance e nível de persuasão

119
Memória e História Oral

da propaganda política e para avaliar a eficácia do material de treinamento de


tropas, bem como identificar os fatores que afetavam a produtividade nos grupos
de trabalho.

A partir de 1980, os grupos focais passaram a ser empregados para entender


e avaliar a interpretação da audiência em relação às mensagens da mídia. Mais
recentemente, a técnica tem sido utilizada pelas áreas do marketing, publicidade
e propaganda, psicologia e saúde pública, almejando verificação de satisfação do
consumidor ou de intervenção e tomada de decisão diante de questões e projetos
que atingem grupos ou comunidades de indivíduos.

Nesta modalidade de entrevistas, o entrevistador assume o papel


O entrevistador
assume o papel de de facilitador de diálogos e dos processos de discussão diante de um
facilitador de diálogos grupo que compartilha uma mesma experiência, portanto, sugere-se
e dos processos de que esta técnica seja conduzida por mais de um pesquisador, para que
discussão diante
de um grupo que estes aspectos sejam melhor observados e acompanhados.
compartilha uma
mesma experiência.
Segundo Gui (2003, p. 140), “o principal interesse é que seja
recriado, um contexto, ou ambiente social, onde um indivíduo pode
interagir com os demais, defendendo, revendo e ratificando suas próprias opiniões
e influenciando as opiniões dos demais”.

No transcorrer da entrevista, o facilitador precisa estar sensivelmente atento


para aspectos, tais como:

• Moderar a postura hegemônica e dominadora de determinados


participantes; zelar pela participação proporcional, democrática e respeitosa;

• Mediar situações como a de abrir mão do controle e se afastar do


tema central ou restringir-se à entrevista, tendo em vista evitar o bloqueio da
espontaneidade e a fluidez da discussão;

• Apresentar tato e percepção para quando o assunto tender a se esgotar e


chegar em pontos ameaçadores e delicados.

Um ponto de dificuldade que se apresenta às tomadas de entrevista por meio


de grupo focal reside na conciliação de datas e horários em que os participantes
estejam disponíveis. É importante, também, que se priorize a participação de
pessoas estranhas ou que não possuam vínculos ou relações de convívio muito
próximas entre elas. É prudente que o número de participantes não exceda a 12
pessoas.

120
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Para estruturar a atividade de pesquisa focal, é importante que pelo menos


existam quatro pessoas envolvidas, um moderador principal, um co-moderador,
um responsável pelos equipamentos de gravação e outro responsável pelo
controle do tempo.
A análise deve
alcançar tanto
No que tange aos temas de memória e história oral, o
a participação
direcionamento que a pesquisa por meio da estratégia de grupo focal do indivíduo no
deve priorizar são as vivências diante de fatos, acontecimentos e/ou grupo como o teor
processos históricos. A análise deve alcançar tanto a participação do das opiniões em
indivíduo no grupo como o teor das opiniões em concordância e em concordância e em
divergência diante do tema. divergência diante
do tema.

A análise deve seguir a preocupação das impressões manifestas


no coletivo, atentando para as formas de comunicação e linguagem do grupo,
as preferências compartilhadas, questões emergentes e latentes, os impactos e
efeitos que o tema em questão exerceu e exerce sobre os indivíduos participantes.

Caro(a) pós-graduando(a), abaixo procura-se apresentar um modelo de


roteiro de entrevista focal, almejando assegurar que alguns tópicos sejam
minimamente discutidos. O roteiro foi pensado a partir da hipótese de entrevista
focal com indivíduos que são devotos de alguma personalidade religiosa
reconhecida em sua região. Observe com atenção:

Quadro 2 - Roteiro de entrevista oral

1. Apresentação dos participantes (nome, naturalidade, atividades na comunidade e confissão


religiosa):
2. Que relação possuem ou possuíam com o(a) religioso(a)?
3. O que sabem sobre a vida pessoal, familiar e pública do(a) religioso(a)?
4. Ocorreu algum fato e fenômeno atípico ou curioso na vida do(a) religioso(a)?
5. Quais são os principais feitos ou poderes que são atribuídos ao religioso(a)?
6. Quando os feitos e poderes se intensificaram?
7. Como souberam dos feitos e/ou dos poderes espirituais do(a) religioso(a)?
8. Qual era o envolvimento/engajamento político, econômico, social e cultural do(a) religioso(a)
na comunidade?
9. Se se encontra falecido(a), como veio a falecer?
10. Quais são os motivos e causas que levam as pessoas a procurar pelo(a) religioso(a)?
11. O local onde ele/ela se encontra é apropriado para atender aos que o/a procuram?
12. O que é mais correto que seja feito no e com o local onde o religioso(a) se encontra?

Agradecimentos e encerramento.

Fonte: A autora.

121
Memória e História Oral

Atividade de Estudos:

1) Elabore um roteiro de entrevista focal que se destina a indivíduos


que presenciaram um evento de incêndio de um antigo cinema ou
teatro.

ROTEIRO DE ENTREVISTA FOCAL

Um dos desafios que recai ao facilitador da entrevista em


Um dos desafios que
recai ao facilitador da grupo é o de favorecer uma atmosfera/clima natural de acolhimento,
entrevista em grupo humanização, contribuição, partilha e solidariedade de memórias e
é o de favorecer lembranças, mostrando que todas as experiências são relevantes e
uma atmosfera/
clima natural de importantes no todo e na teia de informações que compõem.
acolhimento,
humanização,
contribuição, partilha Gui (2003) ressalta que se deve estar atento às fragilidades e
e solidariedade desvantagens que acompanham a tomada de entrevistas por meio de
de memórias grupo focal, como, por exemplo, o fato de o entrevistador criar e dirigir
e lembranças,
mostrando que todas o roteiro de fala, o que, por sua vez, implica a perda da espontaneidade
as experiências das manifestações dos indivíduos entrevistados; assim como o fato de
são relevantes e
importantes no que um indivíduo, na presença de outras pessoas que compartilham
todo e na teia de da mesma experiência, pode melindrar-se, retrair-se, e que isso afeta
informações que o que e como ela se expressaria se perguntada de modo individual e
compõem.
particular.

122
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Caro(a) pós-graduando(a), estando ciente de tais aspectos fica mais fácil


superá-los quando ocorrerem no campo de pesquisa. Agora iremos discutir
cuidados e tratamentos éticos que são cabíveis à prática de pesquisa em memória
e entrevista oral. Prossiga na leitura de forma atenta!

QuestÕes Éticas na Pesquisa em


Memória e História Oral
A metodologia da história oral privilegia a realização e gravação de
entrevistas que podem ser tomadas de modo individual ou em grupos de O entrevistador
deve organizar-
mais pessoas. O entrevistador deve organizar-se no sentido de seguir
se no sentido de
um protocolo mínimo, que norteia a entrevista como um todo. É prudente seguir um protocolo
que a entrevista seja semiestruturada para orientar antecipadamente o mínimo, que norteia
entrevistado, assim como sirva de guia aos entrevistadores. a entrevista como
um todo.
A estruturação das perguntas deve iniciar por aspectos biográficos
(filiação, nascimento, cidade natal, cidades em que viveu, experiências de
trabalho, escolaridade, tradição religiosa, entre outros) para, depois, avançar para
informações de vivências com fatos e fenômenos históricos. O roteiro deve ser
entregue ao participante, no caso da entrevista individual, e aos participantes,
no caso de grupo focal, com um tempo de pelo menos duas semanas de
antecedência.

Procure contatar os entrevistados anteriormente para inteirá-los da


pesquisa e estudo que está sendo proposto; justifique a importância/relevância
da participação para o estudo e procure convidá-los de modo espontâneo a
participar. Neste momento, é importante apresentar, em duas vias, o Termo de
Esclarecimento e Livre Consentimento/TELC, seguido de explicações que o
entrevistado possa solicitar e, por fim, reunir as devidas assinaturas.

123
Memória e História Oral

Quadro 3 - Termo de esclarecimento e livre consentimento

Você está sendo convidado a participar da pesquisa e estudos intitulados __________________


______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
_____________________ cujos objetivos são identificar aspectos da história, memória e cultura
local e regional transcorridos na época de ____________________________________________
______________________________________________________________________________
_________________________________ A sua participação no referido estudo se dará por meio
de entrevista oral gravada e filmada a partir de um roteiro de questões semiestruturadas. Essa
pesquisa tem como objetivos _______________________________________________________
______________________________________________________________________________
_______________________________ e tende a gerar benefícios ao conhecimento histórico, tais
como __________________________________________________________________________
________________________________________________________________ e à localidade, co-
munidade e região ________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_____________________ A pesquisa será realizada somente a partir da leitura, da concordância e
de sua autorização, obtida por meio da assinatura deste termo. Por outro lado, você não será sub-
metido a qualquer tipo de pressão e assédio, a entrevista será a partir da realização de convite de
participação voluntária, considerando a possibilidade da aceitação ou não diante desta e você será
tratado com todo respeito, dignidade e ética cabíveis.

Depois de gravada e transcrita, a entrevista será entregue para você revisar e autorizar o conteú-
do descrito. Você também pode se recusar a participar do estudo, ou retirar seu consentimento
a qualquer momento, bem como optar por sair da pesquisa sem precisar justificar e não sofrerá
qualquer prejuízo por isso.

O pesquisador responsável pelo estudo é _____________________________________________


_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
____________________ , que atua na instituição ______________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
__________________________________________ localizada no endereço _________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
É-lhe assegurada a assistência durante a realização da pesquisa, bem como são garantidos o sigilo
e o livre acesso a todas as informações e esclarecimentos sobre o estudo, enfim, tudo o que você
queira saber antes, durante e depois da sua participação na pesquisa.

Você não receberá e nem pagará nenhum valor econômico para participar do estudo. No entanto,
caso ocorra algum dano decorrente da sua participação no estudo, será devidamente indenizado,
conforme prevê e determina a lei.

O Termo de Esclarecimento e Livre Consentimento se encontrará impresso e assinado em duas vias.


Uma ficará em sua posse, outra de posse do responsável pela pesquisa ou por seu representante
legal, que providenciará o devido arquivamento.

Eu ______________________________________________________________concordo voluntar-
iamente em participar da pesquisa/estudo _____________________________________________
______________________________________________________________________________,

124
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

conforme informações contidas neste TELC, que está impresso em duas vias, ficando uma com o
participante do estudo e a outra com o pesquisador.

Cidade, ____ de __________ de 20__.

________________________ _________________________

Participante Responsável pela pesquisa

Fonte: A autora.

No momento de agendar as entrevistas propriamente ditas,


No momento
atente para datas e horários que favoreçam de forma mais confortável
de agendar
o entrevistado, respeitando os horários de rotina alimentar, saídas e as entrevistas
deslocamentos, compromissos médicos, sociais e de trabalho que o propriamente ditas,
entrevistado possa ter. atente para datas
e horários que
No caso de entrevistas orais individuais, é prudente que não se favoreçam de forma
mais confortável
estendam muito além de uma hora, e, em caso de grupos focais, que
o entrevistado,
não ultrapassem duas horas. respeitando os
horários de rotina
Procure solicitar o acompanhamento e a presença de algum outro alimentar, saídas
familiar do entrevistado no momento da atividade, especialmente, e deslocamentos,
quando se tratar de pessoas com idade avançada ou que demandem compromissos
médicos, sociais e
cuidados.
de trabalho que o
entrevistado possa
É importante que seja dado início aos trabalhos com cumprimentos ter.
e agradecimentos a todos. Apresentando os objetivos da entrevista, o
pesquisador deve ressaltar a importância da fidelidade e verdade às experiências,
de que os participantes podem interromper o processo de entrevista a qualquer
momento e que não serão lesados por isso, de que estes terão livre acesso ao
registros feitos, assim como aos resultados da pesquisa, e, por fim, da explicação
de como vai se dar o funcionamento da entrevista.

A entrevista individual pode ser realizada tranquilamente na casa do


entrevistado ou outro local que seja de preferência deste; já a entrevista de grupo
focal é importante que ocorra em um espaço da comunidade, de fácil acesso e
que proporcione acomodação confortável, que não seja de muita circulação
de pessoas externas, bem como possua ambientação acústica que impeça a
interferência de ruídos e barulhos que desviem a atenção dos participantes ou
que comprometam a captação do áudio.

125
Memória e História Oral

Caro(a) pós-graduando(a), quando estiver em meio a uma entrevista


e observar que o entrevistado começar a silenciar, calar-se, comover-se e
emocionar-se, consulte-o se gostaria de interromper, dar uma pausa, ou até
retomar em outro momento e outro dia. Isso é uma atitude de um profissional
que se comporta de forma responsável e que revela resguardo à dignidade e à
segurança emocional do entrevistado.

Os registros podem ser feitos por áudio e vídeo ou somente áudio,


dependendo de como você, como coordenador e pesquisador responsável, dispor
dos equipamentos e como pretende conduzir a atividade de estudo no momento
posterior à entrevista.

A entrevista deve ser realizada somente a partir da leitura, concordância e


autorização obtida por meio da assinatura do Termo de Esclarecimento e Livre
Consentimento/TELC, conforme modelo anterior, seguido da entrega e assinatura
da Autorização de Uso de Imagem, Som de Voz e Nome que segue. Veja:

126
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Quadro 4 – Autorização de uso de imagem, som de voz e nome

Eu, abaixo assinado e identificado, autorizo o uso de minha imagem, som da minha voz e nome
por mim apresentados na entrevista concedida, além de todo e qualquer material entre fotos e
documentos por mim apresentados, para compor as fontes e material de pesquisa do projeto deno-
minado ________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
____________________________________________ E que estas sejam destinadas à divulgação
ao público em geral e/ou à composição de base de dados e acervo histórico.
A presente autorização abrange os usos acima indicados, tanto em mídia impressa (livros, catá-
logos, revista, jornal, entre outros) como em mídia eletrônica (programas de rádio, vídeos e filmes
para televisão aberta e/ou fechada, documentários para cinema ou televisão, entre outros), inter-
net, banco de dados informatizado multimídia, “home vídeo”, DVD (digital video disc), suportes de
computação gráfica em geral e/ou divulgação científica de pesquisas e relatórios para arquivamen-
to e formação de acervo sem qualquer ônus a __________________________________________
_______________________________________________________________________________
__________________________________ responsável pelo projeto acima referido, ou terceiros por
esse expressamente autorizados, que poderão utilizá-los em todo e qualquer projeto e/ou obra de
natureza sociocultural voltada à preservação da memória, em todo território nacional e no exterior.
Por esta ser a expressão da minha vontade, declaro que autorizo o uso acima descrito sem que
nada haja a ser reclamado a título de direitos conexos a minha imagem, som de voz ou a qualquer
outro e abaixo assino a presente autorização.

Cidade, ____ de __________ de 20__.

___________________________________________
Assinatura

Nome:
Endereço:
Cidade:
RG Nº:
CPF Nº:
Telefone para contato:
Nome do representante legal (se menor de idade):

Fonte: A autora.

Tanto na tomada de entrevista oral individual como no grupo focal,


é importante que o entrevistador mantenha sempre uma postura diretiva Evite o
posicionamento,
e orientadora, que convirja para o tema. Porém, é imprescindível que
manifestar-se de
evite o posicionamento, manifestar-se de forma favorável ou contrária forma favorável ou
em relação à questão em discussão. contrária em relação
à questão em
A credibilidade depositada pelos participantes das entrevistas à discussão.
pesquisa e ao estudo em questão pode ser reforçada com a prática
da devolutiva da transcrição da entrevista aos participantes. Neste momento,
enfatize que estes leiam a transcrição e manifestem se estão de acordo com seu
conteúdo, bem como se é necessário fazer ajustes.
127
Memória e História Oral

O pagamento pela participação na pesquisa é responsável por gerar polêmicas


no campo científico, pois envolve questões de proteção, responsabilidade e zelo
da liberdade e dignidade dos seres humanos. No Brasil, é uma prática vedada,
porém é permitida em países da Europa e nos Estados Unidos.

Segundo Abadie (2015), os pesquisadores que advogam de forma contrária


ao pagamento pela participação em entrevistas e pesquisas sociais alegam que
este consiste numa espécie de coerção e que recai, em especial, a populações
pobres e vulneráveis. As pessoas devem ser capazes de decidir, de forma
livre e informada, sobre sua participação ou não nas entrevistas, e cabe aos
pesquisadores acatarem e respeitarem, independente do potencial, contribuições
e relevância do conteúdo que seriam oriundos do aceite à participação.

Caro(a) pós-graduando(a), geralmente as pessoas não se indispõem,


até esperam e gostam do fato de serem solicitadas a testemunhar, sentem-se
reconhecidas, gostam de compartilhar suas memórias e ficam satisfeitas por
saberem que o que presenciaram é importante e pode fazer a diferença para
outras pessoas.

Aspectos TÉcnicos no Tratamento


das Fontes
Um dos primeiros passos após a captação e o registro das entrevistas reside
no ato de transcrever. Mas, o que é transcrever? De acordo com o dicionário
Houaiss, Villar e Franco (2009, p. 1.866), consiste no processo de “escrever
novamente (um determinado conteúdo) e em outro lugar; transladar, copiar,
reproduzir ou passar para o papel ou equivalente (algo) que está sendo ouvido”.

A transcrição deve ser realizada pelo próprio entrevistador e, logo em seguida


a realização da entrevista, pois, com o passar do tempo, a memória tende a se
tornar menos densa e vivaz, e acaba por negligenciar determinados nuances e
detalhes que foram expressos e percebidos no decorrer da entrevista.

No ato de transcrever, as passagens pouco audíveis devem ser colocadas


entre colchetes; as dúvidas, os silêncios, assinalados por reticências; as pessoas
mencionadas e citadas, designadas por iniciais (se necessário); as passagens
ou as expressões que ganharam forte entonação devem ser sinalizadas com
negrito; os risos, tensões, momentos de dúvidas, intervalos e suspensões da fala
também devem ser registrados; os erros flagrantes para datas, nomes próprios,
endereços, devem ser corrigidos; podem ser criados subtítulos temáticos para
facilitar a leitura da transcrição.

128
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Os arquivos de áudio e/ou as fitas de gravação devem ser guardadas, jamais


destruídas, pois constituem documentos primários e originais que podem ser
consultados em momentos futuros. Tomando estes cuidados com o processo de
transcrição e destino dos registros, as entrevistas poderão servir de fonte para
outros pesquisadores com temáticas correlatas, bem como outras questões
podem ser feitas/verificadas e, por fim, resultar em novas abordagens.

No que diz respeito ao modo de uso da entrevista no interior de pesquisas e


textos, Santos (2000) orienta que pode ser feita de forma direta ou indireta; que é
imprescindível a fidelidade do que foi dito e que a referenciação seja correta, que
permita a verificação, a comprovação e o aprofundamento por parte de qualquer
leitor interessado.

Para tanto, a NBR 10520 recomenda que, na apresentação de trechos de


entrevistas (textos não escritos), deve-se indicar as falas no texto sob a mesma
regra que rege as citações diretas e textuais, ou seja, apresentar sobrenome, ano
e página.

Se houver necessidade de fazer omissões, cortes e suspensões, estes


devem ser identificados utilizando as seguintes sinalizações [...]; quando da
necessidade de acréscimos, interpolações e comentários, devem ser feitos
utilizando os símbolos de [ ]; observe no exemplo hipotético abaixo:

Exemplo: Desse modo, “[...] a explicação sobre as estruturas culturais do


Brasil foi apresentada nos anos de 1960 [e ainda fornece base de interpretação
aos dias atuais] na qual ficam nítidos os vínculos de dependência que ocorriam
(FOCHI, 2016, p. 2).

É importante, também, mencionar os dados existentes em nota de rodapé.


Quando da formulação da referência bibliográfica, deve ser elaborada seguindo o
seguinte exemplo:

Exemplo: FOCHI, Graciela Márcia. Graciela Márcia Fochi: depoimento [mai.


2016]. Entrevistadores: T. P. Costa. Indaial: Uniasselvi, 2016. 2 cassetes sonoros.
Entrevista concedida ao projeto Memória e História Oral da Uniasselvi-Indaial-SC.

Em casos onde se faz necessário manter o anonimato dos entrevistados,


numere-os ou utilize pseudônimos, conforme o exemplo a seguir:

Exemplo: TAL, Fulana de. Entrevista I. [Maio. 2016]. Entrevistador: Graciela


Márcia Fochi. Indaial/SC, 2016. 1 arquivo.mp3 (60 min.).

129
Memória e História Oral

Caro(a) pós-graduando(a), feitos os estudos que dizem respeito aos aspectos


metodológicos e técnicos da pesquisa em história oral, é chegado o momento de
atentarmos para elementos que dizem respeito ao tratamento e análise dos dados
coletos e obtidos em meio aos trabalhos de pesquisa propriamente dito. Sendo
assim, prossiga na leitura do texto que segue.

Aspectos Qualitativos no
Tratamento das Fontes
O campo de pesquisa em memória e história oral reserva inúmeras questões
instigantes, tais como: confrontar testemunho versus testemunho, testemunhos
com documentos escritos; leituras de contexto, o uso de fontes múltiplas,
convergentes e divergentes; implicações de se omitir os elementos subjetivos
(risos, ironias, tensões e severidades) presentes nos depoimentos.

Ao dedicar-se à memória e à história oral, tem-se a oportunidade de


perceber como os discursos históricos e historiográficos são produzidos, em
especial, perceber que a história está presente em todos os lugares, em todos os
momentos, e nas formas mais intangíveis e sensíveis possíveis.

Santos (2000) explica que o lugar, o local seja quando, qual e onde for,
encontra-se historicamente inserido em espaços e contextos mais amplos, e está
profundamente enredado em condições econômicas, políticas, sociais e culturais
vividas no dia a dia dos indivíduos de uma cidade, de um país, uma nação e no
mundo.

Samuel (1989) analisa que, além do campo de pesquisa e produção do


conhecimento histórico, o uso de memórias e história oral pode ser recurso muito
proveitoso também no espaço da sala de aula. Observe as palavras do autor:

[...] as entrevistas como formas capazes de fazer com que os


estudos de história local escapem das falhas dos documentos,
uma vez que a fonte oral é capaz de ampliar a compreensão
do contexto, de revelar os silêncios e as omissões da
documentação escrita, de produzir outras evidências, captar,
registrar e preservar a memória viva. A incorporação das
fontes orais possibilita despertar a curiosidade do aluno e do
professor, acrescentar perspectivas diferentes, trazer à tona o
pulso da vida cotidiana, registrar os tremores mais raros dos
eventos, acompanhar o ciclo das estações e mapear as rotinas
semanais (SAMUEL, 1989, p. 233).

130
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

Quando se analisa, de forma crítica, as entrevistas, não se pode desconsiderar


os interesses próprios e até do grupo ao qual pertencem os depoentes, que
tenderão a embutir e camuflar em meio aos seus discursos. Trata-se de uma
posição a que se referem, de fazer valer determinada versão. Os entrevistados
selecionam e decidem sobre o que irão falar, o que lembrar, o que enfatizar, o que
recortar, o que ocultar, omitir e não contar.
Perguntas e
Perguntas e problematizações sobre quem e por que depõe, problematizações
sobre quem e por
para quem conta, de qual história é testemunho, como este se insere
que depõe, para
e se percebe no contexto mais amplo dos fatos não podem ser quem conta, de
negligenciadas pelo pesquisador. Aspectos, tais como: “a que ponto e qual história é
em que grau de proximidade possuem com os fatos”; o que querem testemunho, como
defender e convencer; que distância existe entre a vivência e o momento este se insere e se
da entrevista; o que se passou de relevante relacionado à experiência percebe no contexto
mais amplo dos
desde o momento vivido até o momento presente, não podem escapar
fatos não podem ser
ao ofício e fazer do pesquisador em memória e história oral. negligenciadas pelo
pesquisador.
Faz-se necessário reconhecer as posições de caráter da diferença
e/ou de alteridade que cada testemunho comporta, tais como a relação de um
padre/pastor e um transexual; um comandante e um fuzileiro; um investigador a
serviço do governo e um militante de oposição; um trabalhador do campo e um
da cidade; um industrial e um operário; o comerciante e seu freguês; homem e
mulher, entre outros.

Pollak (1992) explica que quando se realizam entrevistas de história de vida,


é comum, no decorrer de uma conversa muito longa, que a ordem cronológica
deixe de ser obedecida. Os entrevistados voltam várias vezes aos mesmos
acontecimentos, e há nessas voltas a determinados períodos da vida, ou a certos
fatos, algo de invariante. Segundo o autor, é como se em uma história de vida,
seja coletiva ou individual, houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho
de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de
mudanças.

Em certo sentido, determinados números de elementos tornam-se realidade,


passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos
acontecimentos e fatos possam ser modificados em função do movimento da
própria fala, assim como em função dos ouvintes e interlocutores que estão
participando da pesquisa.

No momento de narrar os resultados encontrados nas fontes, fazem-se


necessárias as competências e habilidades de:

• Decodificar, contextualizar, articular, estabelecer relações;

131
Memória e História Oral

• Comparar, interpretar, revelar circunstâncias, contingências, possibilidades


de causa, efeito, consequências, sutilezas;

• Reconhecer semelhanças, diferenças, peculiaridades;

• Perceber intenções, pretensões, conteúdos implícitos;

• Refletir, compreender, narrar tendo como finalidade última a verdade, além


de reclamar por justiça diante de situações em que os direitos humanos
foram violados.

É preciso associar É preciso associar os resultados às categorias teóricas de análise


os resultados às
categorias teóricas de próprias aos temas de memória e história oral, assim como em relação
análise próprias aos ao tema em específico a que os dados se referem.
temas de memória e
história oral, assim
como em relação ao É prudente que, no decorrer do texto que apresenta um
tema em específico determinado tema e assunto, sejam utilizadas somente frações, trechos
a que os dados se
referem. da entrevista. Esteja atento para selecionar frases e passagens mais
representativas da entrevista e que ilustrem, evidenciem, exemplifiquem
e enfatizem elementos e questões centrais do texto. Se preferir e solicitado for,
inclua a entrevista na íntegra nos anexos no final de seu estudo e trabalho.

Caro (a) pós-graduando (a), obtenha maiores informações para


os temas e questões abordadas ao longo deste caderno de estudos
acompanhando os debates e estudos que estão sendo feitos em
nível nacional e internacional, consultado os seguintes sítios:

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA ORAL- ABHO -


Criada em 1994 e hoje está ancorada na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul-UFGRS. Consulte o site, este reúne um amplo
acervo de entrevistas, a Revista História Oral, anais de eventos
de história oral que ocorrem no Brasil, informações e agenda de
eventos, boletins e notícias entre outras informações. Disponível em:
<http://www.historiaoral.org.br/>.

ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA ORAL – IOHA


- Fundada em 1996. No site você encontrará notícias, publicações,
informações de eventos e congressos que ocorrem nas mais diversas
cidades do mundo. Disponível em: <http://www.ioha.fgv.br/>.

132
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

REVISTA DE HISTÓRIA ORAL – Criada em 1998, procura


fomentar publicações de estudos interdisciplinares sobre teoria
e metodologia em história oral. Disponível em: <http://revista.
historiaoral.org.br/index.php?journal=rho>.

Algumas ConsideraÇÕes
Pesquisar, registrar, transmitir e preservar conteúdos de memória
Existe um mobiliário
e patrimônio é documentar a sociedade da qual somos os herdeiros e histórico e social,
sucessores mais diretos. Existe um mobiliário histórico e social, coletivo coletivo e individual
e individual (símbolos materiais, narrativas, iconografias, escritas, (símbolos materiais,
oralidades) que precisa ser documentado e preservado. narrativas,
iconografias,
escritas, oralidades)
A posse de um registro como uma experiência, testemunho por
que precisa ser
meio de entrevista, pode valorizar o trabalho de um pesquisador no documentado e
sentido de promovê-lo para além do campo das pesquisas comuns, que, preservado.
muitas vezes, resumem-se em apresentar revisionismos bibliográficos
e dados de fontes documentais clássicas, as quais vem sendo utilizadas há muito
tempo.

Estimular e deixar as pessoas falarem não é meramente um


Estimular e deixar
exercício de retórica, de boa vizinhança, “jogar papo pro ar”, “conversa
as pessoas falarem
fora”, recolher e guardar objetos antigos, visitar monumentos, não é meramente
lugares históricos e de memória, isso tudo, hoje, mais do que ontem, um exercício de
significa uma questão de cidadania, do reconhecimento do vivido, da retórica, significa
experiência, da história local, da importância do micro, no qual se dá uma questão de
o compartilhamento e comunhão cotidiana e do imediato do um com o cidadania, do
reconhecimento
outro, e de um com os outros.
do vivido, da
experiência, da
Pensa-se que a partir dos caminhos metodológicos e dos história local, da
cuidados de análise das fontes orais é possível ir além, “alçar voos importância do
maiores”, “mergulhar em águas mais profundas”. É possível valorizar micro.
a experiência do homem, do homem com os seus semelhantes, do homem com
o tempo, significar as subjetividades, contemplar as particularidades, iluminar
contextos e espaços históricos e sociais que pairavam na escuridão; cruzar
fatos e documentos com oralidades; entender conflitos, favorecer tréguas e
reconciliações; acender lembranças, superar esquecimentos, brancos, vazios
entre outros... Como descreve Garcia (1992), trata-se de buscar uma outra
memória, que permita recuperar não só o ocorrido, como ressaltar as esperanças
não realizadas do passado e que se inscrevem em um novo presente, como um
apelo para um futuro diferente.
133
Memória e História Oral

Caro(a) pós-graduando(a), é chegado o final deste caderno de estudos. Não


se dê por satisfeito, prossiga nos estudos e aprofundamentos, prepare-se bem,
retome as sugestões de materiais, filmes e literaturas, busque as bibliografias
aqui mencionadas na íntegra, e siga em frente, confiante de que é possível fazer
um excelente e brilhante trabalho no campo da pesquisa em memória e história
oral. As possibilidades são muitas. Em nosso país existe uma vasta seara a ser
cultivada e desenvolvida.

Votos de um gratificante e satisfatório trabalho pela frente!

ReFerÊncias
ABADIE, R. Além do pagamento: abordando de questões éticas na pesquisa
qualitativa em saúde. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25,
n. 3, p. 701-703, set./out., 2015.

ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação


Getúlio Vargas, 1990.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: Informação


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documentação – citações em documentos – apresentação. Rio de Janeiro, 2002.

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das


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CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes,


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DIEHL, A. A. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação.


Bauru: EDUSC, 2002.

FÉLIX L. O.; GRIJÓ L. A. Histórias de vida: entrevistas e depoimentos de


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GARCIA, M. A. Tradição, memória e história dos trabalhadores. In: SPIX &


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São Paulo, 1992.

134
MEMÓRIA E HISTÓRIA ORAL: A PESQUISA, ASPECTOS
Capítulo 4 METODOLÓGICOS E ÉTICOS

GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC,1989.

GUI, R. T. Grupo focal em pesquisa qualitativa aplicada: intersubjetividade e


construção de sentido. PDT, Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 135-160, jan/jun, 2003.

HALBAWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

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