Você está na página 1de 40
7 PIERRE CLASTRES A Sociedade contra o Estado Ph rureace wives Pierre Clastres A SOCIEDADE CONTRA O ESTADO (INVESTIGAGOES DE ANTROPOLOGIA POLITICA) rnovtaxer0/roRT0 | "BSS Ea DID PFES wenwor — Smpenho: — 2 us Hole Fiscal: — mgstee yoo OK MAGI \BBEVS Data: SOLAS Direttos de tradusio reservados para Portugal por Publicagées Escorpifio/ [BAighes Afrontamento, Porto, 1975. ‘Traducto de Bemardo Frey Revisdo de Miguel Serras Pereira capa de Jose B. EDIGOES AFRONTAMENTO R, Costa Cabral, 859 — 4200 Porto CAPITULO 1 COPERNICO E OS SELVAGENS «On disoit a Socrates quo quelqwan no sicstoit ‘sucumement amendé en son voyage: Je croy bien, ditt, Tl stestoit emports aveeques soy. ‘Montaigne Poder-nos-emos interrogar seriamente a propésito do poder? Um fragmento de Para além do bem ¢ do mal comeca da seguinte maneira: «Se € verdade que ao longo de todos os tempos, desde que os homens existem, existiram tam- ‘bém rebanhos humanos (confrarias sexuais, comunidades, tri- bos, naghes, Igrejas, Estados) e sempre um grande némero de homens obedecendo a um pequeno mimero de chefes; se, Por conseguinte, a obediéncia é o que melhor e durante mais tempo foi exereido e cultivado entre os homens, estamos no direito de presumir que, por principio, cada um de nés possui em si a necessidade inata de obedecer, como uma espécie de consciéncia format que ordena: ‘Tu farés isto, sem dis- cutir; tu abster-te-4s daquilo, sem diseutir’; resumindo, de um ‘tu fards’ que se trata». Pouco preocupado, como habitual- mente, com 0 verdadeiro ¢ 0 falso dos seus sarcasmos, Nietzs- che, & sua maneira, no obstante isola e cireunsereve exacta- mente um campo de reflexdo que, dantes confinado unicamente 0s horizontes do pensamento especulativo, se vé desde hé dois Geeénios, aproximadamente, ligado 205 esforcos de uma inves- tigagio de vocacio a bem dizer cientifica. Referimo-nos ao espaco do politico, no centro do qual o poder coloca a sua questo: temas novos, em antropologia social, estudos cada vez mais numerosos. Que a etnologia no se tenha interessado, sendo tardiamente, pela dimensio politica das sociedades arcai- cas — seu objecto preferencial, no entanto—eis o que de resto nao é estranho, tentaremos demonstré-lo, & prdpria proble- matica do poder: indice sobretudo dum modo espontaneo, ima- nente & nossa cultura e portanto fortemente tradicional, de apreender as relagdes politicas tais como se ligam em culturas outras, Mas 0 atraso ultrapassa-se, as laeunas preenchem-se; ha doravante textos e deserigdes suficientes pare que possa~ mos falar de uma antropologia politica, medir os seus resul- tados ¢ reflectir sobre a natureza do poder, sobre a sua origem, sobre as transformagées que a histéria lhe impoe consoante os tipos de soeiedade em que ole se exerce, Projecto ambicioso, mas tarefa necesséria que a obra considerével de J. W. Lapierre Ensaio sobre 0 fundamento do poder politico leva a cabo’. Trata-se de um trabalho tanto mais digno de interesse, quanto neste livro se eneontra antes do mais reunida e explorada uma massa de informagées respeitantes néo ape- nas As sociedades humanas, mas também as espécies animais sociais, e em seguida porque o autor é um filésofo cuja refle- io se exerce sobre 0s dados fornecidos pelas disciplinas modernas que sio a de poder polftico que cada uma de entre elas oferece A observa- ‘co, podendo estz quantidade de poder tender para o zero, «...certos grupos humanos, em condicdes de vida determina- das que Ihes permitiam subsistir em pequenas ‘sociedades fechadas’, puderam passar sem poder politicos (pag. 525). Reflictamos na propria natureza desta classificacio. Qual 0 seu critério? Como se define aquilo que, presente em maior ou menor quantidade, permite assinalar tal lugar a tal socie- dade? Ou, noutros termos, que se entende, mesmo que a titulo provisério, por poder politico? A questo é, admitir-se-4, de importAneia J4 que, no intervalo que se supe separar sociedades sem poder e sociedades com poder, se deveriam evidenciar simul- taneamente a esséncia do poder e o seu fundamento. Ora, nfo se fica com a impresso, seguindo as andlises, minuciosas no entanto, de Lapierre, de assistir a ume ruptura, a uma des- continuidade, a um salto radical que, arrancando os grupos humanos & sua estagnacdo prepolitica, os transformaria em sociedade civil. Deveremos portanto concluir que entre as sociedades de signo + ¢ as sociedades de signo — a passagem é progressiva, continua e da ordem da quantidade? Se assim 6, a propria possibilidade de classificar as sociedades desapa- reve, pois entre os dois extremos—sociedades com Estado e sociedades sem poder—figuraré a infinidade de graus intermediarios, definindo no limite cada sociedade particular como uma classe do sistema. Este é, de resto, 0 destino de 8 qualquer projecto taxinémico desta espécie, & medida que se aprofunda 0 conhecimento das sociedades arcaicas ¢ que, em consequéncie, melhor se desvendam as suas diferencas. Por coneeguinte, tanto num caso cémo noutro, na hipétese da des- eontinuidade entre nio-poder e poder ou na da continuidade, parece correcto pensar que nenhuma classificacio das socie- dades empiricas nos pode esclarecer nem sobre a natureze do poder politico nem sobre as circunsténcias do seu advento. ¢ que 0 enigma persiste no seu mistério, «O poder realiza-se numa relagio social caracteristica: [lcomando-obediéncia» (pag, 44). Daqui resulta que as socic- dades onde néo se observa esta relacio essencial sao socie- dades sem poder. Voltaremos a este assunto, 0 que convém desde jf revelar 6 0 tradicionalismo desta concepeéio que exprime com bastante fidelidade o espirito da investiga- eGo etnolégica: 2 certeza nunca posta em divida de que 0 poder politico existe unicamente numa relacio que se resolve, em definitive, numa relagio de eoereso. De modo que, sobre ‘este ponto, entre Nietzsche, Max Weber (o poder do Estado como monopélio do uso legitimo da violéncia) ow a etnologia contemporanea, o parentesco € mais intimo do que parece, ¢ as linguagens diferem pouco, pois partem dum mesmo principio: a verdade e 0 ser do poder eonsistem na violencia e nfo se pode pensar no poder sem 0 seu predicado, a violencia, Talvez seja efectivamente assim, e nesse caso a etnologia nao & rigo- ‘rosamente culpada de aceitar sem discussio aquilo que o Oci- dente pensa desde sempre. Mas, precisamente, 6 necessirio que nos asseguremos disso e verifiquemos sobre o proprio terreno —0 das sociedades arcaicas—se quando nio existe coercio oi violncia deixamos de poder falar de poder. Que acontece com os Indios da América? Sabe-se que & excepeio das altas culturas do México, da América Central ¢ dos Andes, todas as sociedades indias so ereaicas: ignoram a. eserita e «subsistem», do ponto de vista econémico. Por outro lado, todas, ou quase todas, séo dirigidas por Ifderes, chefes , caracteristica decisiva digna de reter a atengio, nenhum 9 me destes caciques possui «poder». Encontramo-nos portanto con- frontados com um enorme conjunto de sociedades onde os detentores do que noutro lado se designaria por poder esto de facto sem poder, onde 0 politico se determina como campo fora de toda a coereio e de toda a violéncia, fora de toda a subordinagio hierarquica, onde, numa palavra, nfo se pro cessa nenhuma relac&o de comando-obediéncia. esta a grande diferenga do mundo indio e o que permite falar das tribos americanas como dum universo homogéneo, apesar da extrema variedade de culturas que o habitam, Portanto e de acordo com 0 eritério retido por Lapierre, 0 Novo Mundo cairia nna sua quase-totalidade no campo prepolitico, quer dizer, no ‘iltimo grupo da sua tipologia, aquele que engloba as soci dades onde ? Pois que se xo polf- tico respeita ao funcionamento da sociedade global» (pag. 41) ese cexereer um poder, é decidir pelo grupo inteiro» (pag. 44). entio no se pode afirmar que os cinguenta sachems que com- punham 9 Grande Conselho iroqués formavam um Estado: a Liga niio era uma sociedade global, mas uma alianca poli- 10 tica de cinco sociedades globais que eram as cinco tribos iro- quesas, A questio do poder entre os Iroqueses deve portanto pér-se, no a0 nivel da Liga, mas ao nivel das tribos: e a esse nivel, nfio haja dfividas, os sachems nio estavam certamente mais investidos de poder do que o resto dos chefes indios, As tipologias briténicas das sociedades africanas sio talvez per- tinentes para 0 continente negro; ndo podem servir de modelo para a América dado que, reincidamos neste ponto, entre 0 sachem irogués ¢ 0 lider do mais pequeno bando némada nio existe diferenca de natureza, Indiquemos por outro lado que se a confederagio iroquesa suscita, a justo titulo, o interesse dos especialistas, houve noutros Iados ensalos, menos noté- veis porque descontinuos, de ligas tribais, nomeadamente entre os Tupi-Guarani do Brasil ¢ do Paraguai, ‘As observaces acima expostas quereriam problematizar 8 forma tradicional da problematiea do poder: nfo é evidente para nés que coergio € subordinacio constituam a esséneia do poder politico em toda a parte ¢ em todo o sempre. De tal modo que se abre uma alternativa: ou o coneeito cléssico de poder é adequado & realidade que ele pensa, ¢ nesse caso & necessirio apontar-Ihe o nio-poder, justamente onde foi assi- nalado; ou ele ndo é adequado, e entio é necessério abando- né-lo ou transformé-lo, Mas convém que antes disso nos inter- roguemos sobre 2 atitude mental que permite elaborar uma tal concepeaio, E, nessa perspectiva, o proprio vocabulério da etnologia € susceptivel de nos indiear o caminho. Consideremos antes do mais os critérios do arcaismo: auséneia de escrita e economia de subsisténcia, Nada hi a dizer sobre 0 primeiro, pois trata-se de um dado factual: uma sociedade ou conhece a escrita ou nfo a conhece, A pertinén- cia do segundo parece pelo contrério menos segura, Com efeito, © que é «subsistirs? B viver na fragilidade permanente do equilfbrio entre as necessidades alimentares © os meios de as satisfazer. Uma sociedade de economia de subsisténcia é aquela que consegue alimentar os seus membros apenas o estrita- mente necessério, e que se encontra assim 4 mereé do mfnimo n ————__ acidental natural (seca, inundacéo, ete.), j& que 2 diminuigio dos recursos se traduziria mecanicamente pela impossibilidade de alimentar toda a gente. Ou, noutros termos, as sociedades arcaicas néo vivem, mas sobrevivem, a sua existéncia 6 um combate interminavel contra a fome, pois sio incapazes de produzir excodentes, por caréncia tecnolégica ¢ também cul- tural. Nao hé nada mais obstinado do que esta visio da sociedade primitiva, ¢ 20 mesmo tempo nada mais falso. Se se pode falar recentemente dos grupos de eacadores-colectores ‘paleoliticos como do conceito de cconomia de subsisténcia, que traduz muito mais as atitudes @ habitos dos observadores ocidentais face as sociedades pri- mitivas do que a realidade econémica sobre a qual repousam estas culturas, Néo foi, em todo 0 caso, pelo facto de a sua economia ser de subsisténcia que as sociedades arcai- eas ¢sobreviveram em estado de extremo subdesenvolvimento até aos nossos dias» (pag. 225), Parece-nos mesmo que, nestes termos, 6 antes o proletariado europeu do século XIX, iletrado e subalimentado, que seria conveniente qualificar como areaico. Na realidade, a ideia de economia de subsisténcia remonta a0 * -M. Shalins, (pag, 365). E ainda: (pig. 435, nota 134) +. Que significa de facto este tipo de voca- buldrio onde os termos embriondrio, nascente, pouco desen- volvido, aparecem muito frequentemente? Nao se trata eviden- temente da nossa parte de declarar guerra a um autor, pois sabemos bem quanto esta linguagem & prépria da antropo- logia, Tentamos aceder ao que se poderia chamar a arqueolo- gia desta linguagem e do saber que cré através dela dar-se a ver, e perguntamo-nos: que é que esta linguagem diz exacta- mente e @ partir de que lugar diz aquilo que diz? Constatamos que a ideia de economia de subsisténcia queria ser um julgamento de facto, mas envolve ao mesmo tempo um julgamento de valor sobre as sociedades assim qualifica- das: avaliacdo que destréi imediatamente a objectividade que para si reclame. © mesmo preconceito — pois, em altima ané- lise, € de um preconesito que se trata—perverte e vota ao falhango o esforgo para julgar o poder politico nessas mes- mas sociedades. Sebendo que 0 modelo ao qual é relacionado ea unidade que o mede so anteoipadamente constituidos pela ideia do poder tal como foi desenvolvida e formada pela civi- lizagio ocidental. A nossa cultura, desde as suas origens, pense © poder politico em termos de relagées hierarquizadas ¢ autori- térlas de comando-obediéncia. Qualquer forma, real ou pos- sivel, de poder & por conseguinte redutivel 2 esta relagdo pri- vilegiada que exprime « priori a sua esséncia, Se a reducio nio & possivel, é porque nos encontramos aquem do politico: a auséneia da relagio comando-obediéncia acarreta ipsofacto a ausénela do poder politico, Existem ndo apenas socieda- des sem Estado, como ainda sociedades sem poder. Desde 4 muito reconhecemos 0 adversirio sempre desperto, o obs- ‘téoulo constantemente presente na investigacio antropolégica, ‘0 etnocentrismo que mediatiza todo o olhar sobre as diferencas + © euptinnads 6 nosso. “4 pera as identificar ¢ finalmente as abolir. Existe uma espéore de ritual etnoldgico que consiste em denunciar vigorosamente os riscos desta atitude: a intengdo é louvavel, mas nem sempre impede os etnélogos de a ela sucumbirem por sua vez, mais, ou menos tranquilamente, mais ou menos distraidamente, Evi- dentemente que 0 etnoventrismo é como muito justamente o sublinha Lapierre, a coisa mais bem partilhada do mundo: toda a cultura é poder-se-ia dizer por definigio, etnocentrista na sua relagio narcisica consigo prépria, Nao obstante, uma diferenca consideravel separa o etnocentrismo ocidental do seu homélogo «primitivos; o selvagem de qualquer tribo india ou australiana considera a sua cultura superior a todas as outras sem se preocupar em assegurar sobre elas um discurso cientifico, enquanto que a etnologia pretende situar-se duma ‘86 vez no elemento da universalidade sem se dar conta de que ermanece em muitos pontos solidamente instalada na sua particularidade, e que o seu pseudo-discurso cientifico se degrada rapidamente em ideologia. (Isto reduz & sua justa medida algumas afirmagdes afectadas sobre a civilizagio oci dental como tinico lugar capaz de produzir etndlogos). Decidir que certas culturas sio desprovidas de poder politico porque nada oferecem de comparivel ao que a nossa apresenta nfo é uma proposta cientifiea: antes denota, no fim de contas, uma pobreza evidente do conceito. © etnocentrismo néo portanto um ilusério entrave a reflexio e as suas implicacdes sio de maiores consequéncias do que poderiamos supor, Nao pode deixar subsistir as dife- rengas cada uma por si na sua neutralidade, mas quer com- preendé.tas como diferencas determinadas a partir do que The é mais familiar, o poder tal como & experimentado e pensado na cultura do Ocidente. O evolucionismo, velho compadre do etnocentrismo, nao esta longe, A diligéncia a este nivel é dupla primeiramente recensear as sociedades segundo a maior ou menor proximidade 2 que o seu tipo de poder esta relativa- mente ao nosso; afirmar em seguida explicitamente (como ontem) ou implicitamente (como hoje) uma continwidade entre 6 todas estas diversas formas de poder, Por ter, a seguir a Lowie, abandonado como ingénuas as doutrinas de Morgan ou Bagels, a antropologia j& nfo pode (pelo menos no que se refere & questo do politieo) exprimir-se em termos sociolégicos, Mas como, por outro lado, a tentacdo de continuar a pensar segundo o mesmo esquema é demasiado forte, existe o recurso a metéforas bioldgicus. Donde 0 vocabulério anteriormente salientado: embriondrio, nascente, pouco desenvolvido, etc. Ha aproximadamente meio-século, o modelo perfeito que todas a culturas, através da historia, tentavam realizar, era o adulto ocidental sio de espirito ¢ letrado (se possivel doutor em ciGneias fisieas), Isto pensa-se ainda hoje, sem diivida, mas A nfo se diz. No entanto, se pelo seu lado a linguagem mudou, 0 discurso permaneceu 0 mesmo. O que é um poder embrionério senio 0 que poderia e deveria desenvalver-se até atingir o estado adulto? E qual é ease estado adulto de que se descobrem, aqui e ali, as premissas embriond- rias? ®, bem entendido, o poder a que o etndlogo esti acos- tumado, o da cultura que produz etnélogos, o Ocidente. E porque se encontram sempre votados & desgraga estes fetos culturais do poder? Qual a razo por que as sociedades que os con- cebem abortam regwlarmente? Esta fraqueza congénita é facil- mente explicével pelo seu areaismo, pelo seu subdesenvolvi- mento, pelo simples facto de elas ndo serem 0 Ocidente, As sociedades arcaicas seriam assim axolotles* sociolégicos inca~ pazes de aceder, sem ajuda exterior, ao estado adulto normal. © biologismo da expressio nio é evidentemente mais que a mAscara furtiva da velha conviecéo oeidental, de facto muitas vezes partilhada pela etnologia, ou pelo menos por numerosos dos seus praticantes, de que a histéria possui um sentido {inico, que as sociedades sem poder sio a imagem do ‘que j4 nfo somos e que a nossa cultura é para elas a imagem do que & necessirio ser, E no apenas o nosso sistema de poder + Axolotles: formas larvares de betréquios urodelos anfibios do género amblistomo, origintrios do México (NAT) 16 € considerado como o melhor, como se chega mesmo ao ponto de atribuir As sociedades arcaicas uma certeza andloga, Por- que dizer que «nenhum povo nilético se pode elevar ao nivel da organizacao politica centralizada dos grandes reinos bantos» ou que «a sociedade lobi néo conseguiu dar-se uma organi zagio politieas, 6 num certo sentido afirmar acerca destes ovos 0 esforgo para se darem um verdadeiro poder politico. Que sentido teria dizer que 08 Indios Sioux nao conseguiram rea- lizar 0 que haviam atingido os Aztecas, ou que os Bororo foram incapazes de se elevar ao nivel politico dos Incas? A arqueo- logia da linguagem antropolégica conduzir-nos-ia, e sem que fosse necessério perfurar um solo na realidade bem pouco espesso, @ por a nu um parentesco secreto entre a ideologia ¢ a etnologia, votada esta, se néo estivermos atentos, a mer- galhar no mesmo pantano lamacento da sociologia e da psi- cologia, Seré possivel uma antropologia politica? Poder-se-ia duvidar, se fossemos a cousiderar a maré sempre crescente da literatura consagrada ao problema do poder. O que sobretudo chama @ atengao 6 constatar nela a dissolugdo gradual do politico que, néo se descobrindo onde se esperava justamente encontré-lo, se eré assinalar em todos os niveis das socie- dades arcaicas, Tudo cabe entao no campo do politico, todos ‘05 sub-grupos e unidades (grupos de parentesco, classes de idade, unidades de produgio, ete.) que constituem uma socie- dade sio investidos, a propésito de tudo e de nada, duma signi- ficagdo politica, a qual acaba por recobrir todo 0 espago do social e perder, em consequéncia, 2 sua especificidade, Pois que, se 0 politico existe em todo o lado, ele néo existe em parte alguma. E caso de resto para nos perguntarmos se nio é pre- eisamente isso que se procura dizer: que as sociedades arcaicas no séo verdadeiras sociedades, j4 que no so sociedades poli- ticas. Resumindo, serlamos levados a decretar que o poder politico no & pensavel, uma vez que € aniquilado no proprio acto de o captar. Nada impede no entanto de supor que a etno- logia niio se coloca senfo os problemas que pode resolver. & a a preciso entao que nos perguntemos: em que condigées 0 poder Politico 6 pensivel? Se o antropologia faz finca-pé é porque Se encontra no fundo nun impasse, torna-se portanto neces- sério tomar outra via. O caminho pelo qual ela se extravia é © mais fécil, o que podemos seguir cegamente, o que indica 0 nosso préprio mundo cultural, nfo pelo facto de se desdobrar no universal, mas antes por se revelar téo particular como qualquer outro, A condigéo & renunciar asceticamente, dire- mos n6s, & concepeic exética do mundo areaico, concepeio que, em tiltima anilise, determina massivamente o discurso pretensamente cientifico sobre este mundo. A eondicéo sera neste caso a decisio de tomar finalmente a sério 0 homem das sociedades primitivas, sob todos os seus aspectos e em todas as suas dimensdes: também sob 0 Angulo do politico, mesmo sobretudo se este se realiza nas sociedades arcaicas como negagio daquilo que é no mundo ocidental. B preciso aceitar a ideia de que negacio nao signifies o nada, e que quando fo espelho no nos devolve a nossa imagem isso nfo prova que nada haja para olhar, Mais simplesmente: da mesma maneira que @ nossa cultura acabou por reconhecer que © homem pri- mitivo no é uma crianga, mas, individualmente, um adulto, poderé também ela progredir um pouco se Ihe reconhecer uma equivalente maturidade colectivs Os povos sem eserita no sao portanto menos adultos que as sociedades letradas. A sua histéria 6 tio profunda como a nossa e, a menos que seja por racismo, no hé razéo alguma para os julgar incapazes de reflectir na sua propria experiéncia ¢ de inventar para os seus problemas as solucdes apropriadas. Eis porque néo poderiamos contentar-nos em enunciar que nas sociedades onde ndo se observa a relagio de ‘comando-obediéneia (quer dizer, nas sociedades sem poder politico), a vida do grupo como projecto colectivo se mantém por meio do controle social imediato, imediatamente qualifi- cado de apolitica. Que se entende ao certo por isto? Qual é referente politico que permite, por oposicéo, falar de apoli- tico? Mas, justamente, néo hé politico visto tratarse de 18 Sociedades sem poder: como se pode entio falar de apolitica? Ou bem que o politico esta presente, mesmo nestas sociedades, ou entio a expresso de controle social imediato apolitico é si contraditoria e de qualquer maneira tautolégica: que nos ensina ela, com efeito, relativamente as sociedades as quais a aplicamos? E que rigor possui a explicagio de Lowie, por exemplo, segundo a qual, nas sociedades sem poder politico, existe néo soube até aqui ultrapassar, Julgamos detecté-lo no etnocentrismo cultural do pensamento Ceidental, ele proprio ligado a uma visio exética das socie- dades nio ocidentais, Se nos obstinarmos em reflectir sobre © poder partindo da certeza de que a sua forma verdadeira se encontra realizada na nossa cultura, se persistirmos em fazer desta forma o molde de todas as outras, inclusivamente o seu telos, entéo seguramente renunciaremos & coergncia dos discursos e deixarmos que a ciéneia se degrade em opiniao. A eléncia do homem no é talvex necessdria. Mas a partir do momento em que a queremos constituir e articular o discurso etnolégico, entio convém mostrar um poueo de respeito pelas culturas arcaicas, e interrogarmo-nos sobre a validade de eate- gorias como as de economia de subsisténeia ou de controle social imediato, A néo ser efectuado este trabalho critico, expo- moos desde logo 2 deixar escapar o real sociolégico, ¢ em seguida a desviarmo-nos da propria deserigéo empirica: che- gamos assim, segundo as sociedades ou segundo a fantasia dos 19 seus observadores, a encontrar 0 politico por todo o lado ou no 0 encontrar em lado nenhum, © exemplo anteriormente evoeado das sociedades indias da América ilustra perfeitamente, estamos em crer, a impos- sibilidade efeetiva de falar de sociedades sem poder politico. Nao é este o lugar proprio para definir o estatuto do politico ‘neste tipo de culturas. Limitar-nos-emos @ recusar a evidéneia etnocentrista segundo a qual o limite do poder & 2 coereio, para ‘além ou para aquém da qual nada mais haveria; que o poder existe de facto (néio somente na América mas em muitas outras ‘culturas primitivas) totalmente separado da violéncia e exte- ior a toda a hierarquia; que, por conseguinte, todas as socie- dades, arcaicas ou nio, sio politicas, mesmo se 0 politieo se diz em sentidos miltiplos, mesmo se esse sentido no é imedia- tamente decifravel e se 6 necessario desvendar 0 enigma de ‘um poder simpotenter, Isto leva-nos a dizer que: 1) Nao se pode repartir as sociedades em dois grupos: sociedades de poder ¢ sociedades sem poder. Julgamos, pelo contrario (em toda a conformidade com os dados da etnogra- fia) que 0 poder politico é universal, imanente ao social (quer ‘© social seja determinado pelos elagos de sangue> quer pelas classes soviais), mas que se realiza com base em dois modelos principais: poder coereivo, poder nao coereivo. 2) © poder politico como coeredo (ou como relagio de comando-obediéneia) nio é 0 modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente um caso particular, uma realizagio concreta do poder politico em certas culturas, como a ocidental (que nao é a nica, naturalmente). Néo ha portanto razio cienti- fica alguma em privilegiar esta modalidade particular do poder para dela fazer 0 ponto de referéneia e 0 prineipio de explica- Go doutras modalidades diferentes. 3) Mesmo nas scciedades onde esti ausente a insti- tuigio politica (por exemplo, onde niio existem chefes), mesmo ai o politico esta presente, mesmo ai se pde a questio do poder: néo no sentido enganador que incitaria a querer dar conta de uma auséneia impossivel, mas pelo contrério no sentido pelo qual, talvez misteriosamente, alguma coisa existe na auséncia. Se o poder politico néo é uma necessidade inerente & natu- reza humana, ao homem como ser natural (e aqui Nietzs- che engana-se), ele 6 em contrapartida uma necessidade ine- rente & vida social, Pode pensar-se o politico sem a violéncia, néo se podle pensar o social sem o politico: noutros termos, néo existem sociedades sem poder. F por isso que, duma certa maneira, poderiamos retomar por nossa conta a formula de B, de Jouvenel, «A autoridade surgiu-nos como criadora do laco social», e a0 mesmo tempo subserever absolutamente a critica que dela faz Lapierre, Pois se, como 0 pensamos, o politico se encontra no coragéo do social, néo certamente no sentido em que o encara o senkor de Jouvenel, para quem 0 campo do politico se reduz aparentemente ao eascendente pessoal» das personalidades fortes, Néo se poderia ser mais ingenuamente (mas tratar-se-4 realmente de ingenuidade?) etnocentrista. As observagées anteriores abrem a perspectiva na qual se pode situar a tese do senhor Lapierre euja exposic¢iio ocupa a quarta parte da obra: «O poder politico deriva da inova- sao social» (pag. 529), e ainda: «O poder politico desenvolve-se tanto mais quanto @ inovacio social 6 mais importante, o seu ritmo mais intenso, o seu aleance mais alargado> (pig. 621). A demonstracio, apoiada em numerosos exemplos, parece-nos rigorosa e convineente ¢ nada mais podemos fazer do que afir- mar a nossa concordancia com as andlises e as conclusdes do autor, Com uma restrigio, no entanto: 6 que o poder politico de que aqui se trata, aquele que provém da inovacio social, € © poder que, pelo nosso lado, designamos como coercivo. Queremos com isto dizer que a tese do senhor Lapierre visa 5 sociedades onde se manifestam as relagdes de comando- -obediéneia, mas no as outras: que, por exemplo, néo se pode evidentemente falar das sociedades indias como sociedades ‘onde 0 poder politico provém da inovacdo social. Noutros ter- mos, a inovacio social é talvez o fundamento do poder pol coercivo, mas nfo é eertamente o fundamento do poder politico néio coereivo, a menos que se decida (o que € impossfvel) que nao ha poder que nao seja coercivo. O alcance da tese do senhor Lapierre esté limitado a um certo tipo de sociedade, a uma modalidade particular do poder politico, ja que significa inpli- citamente que onde ndo ha inovacio social 0 poder politico néo existe, Ela traz-nos, nfo obstante, um ensinamento pre- cioso: a saber, que o poder politico como coerefio ou como violéncia é a marea das sociedades histdricas, quer dizer, das sociedades que trazem consigo a causa da inovacio, da mu- danca, da historicidade. E poderiamos assim dispor as diversas sociedades segundo um novo eixo: as sociedades de poder poli- tieo ndo coereivo sio as sociedades sem histéria, as socieda- des de poder politico coereivo sio as sociedades histéricas, Disposigao bem diferente daquela que implica a reflexio actual sobre o poder, que identifica sociedades sem poder e socieda- des sem histéria, # portanto da coergio e nio do politico que a inovagéo € 0 fundamento, Daqui resulta que o trabalho de Lapierre nndo realize senfio metade do programa, visto nfo ter respon- dido & questéo do fundamento do poder no coercivo, Questiio que se enuncia mais sucintamente e de forma mais virulent: porque existe poder politico? Porque h& poder politico em vez de coisa nenhuma? Nao pretendemos trazer a resposta, quisemos apenas dizer porque é que as respostas anteriores no so satisfatérias e em que condigdes uma resposta justa € possfvel, Trata-se em suma de definir a tarefa de uma antro- pologia politica geral, endo mais regional, tarefa que se divide em duas grandes interrogacées: 1) © que & o poder politico? Quer dizer: o que é @ sociedade? 2) Como e porgué se passa do poder politico nfo coer- civo ao poder politico coercivo? Quer dizer: o que é a histéria? Limitar-nos-emos a constatar que Marx e Engels, apesar da sua grande cultura etnolégica, nunca conduziram a sua reflexio neste sentido, mesmo supondo que tenham formulado correctamente a questo. Lapierre nota que «a verdade do marxismo é que ndo haveria poder politico se nfo houvesse conflitos entre as forcas sociais>. & uma vendade sem dtivida mas valida unicamente para as sociedades em que forces sociais estio em conflito. Que ndo se pode compreender 0 poder como violéncia (e a sua forma Gltima: 0 Estado cen- ‘tralizado) sem 0 conflito social, 6 indiscutivel, Mas que se passa nas sociedades sem conflito, naquelas onde reina © 270, Nov. 1989). Ey CAPITULO II TROCA E PODER: FILOSOFIA DA CHEFIA INDIA A teoria etnolégica oscila, deste modo, entre duas ideias, opostas e no entanto complementares, do poder politico: se- gunda uma, as sotiedades primitivas so, no limite, desprovi- das na sua maior parte de qualquer forma real de organizacio politica; a auséncia de um orgéo aparente e efectivo do poder conduziu a que se recusasse a propria funcdo desse poder a essas sociedades, a partir dai consideradas como tendo estag- nado num estédio histérieo prepolitico ou anérauico. Para a segunda, pelo contrério, uma minoria de entre as sociedades primitivas ultrapassou a anarquia primordial pera aceder a esse modo de ser, que 6 0 tinico autenticamente humano, do grupo: a instituigéo politica; mas entio vé-se 0 edefeitos, que caracterizava a massa das sociedades, converter-se aqui em «excesso>, ¢ a instituicdo perverter-se em despotismo on tira- nia, Tudo se passa portanto, como se as sociedades primi- tivas se encontrassem colocadas perante uma alternativa: ou a falta da instituigfo e 0 seu horizonte andrquico, ou, entio, 0 excesso dessa mesma institui¢ao ¢ o seu destino despético. Mas esta alternativa constitui de facto um dilema, porque, para aquém ou para além da verdadeira condicio polf- tea, 6 sempre esta dltima que eseapa ao homem primitivo, E 6 justemente na certeza do falhanco quase fatal a que eram ingenuamente condenados os nio-ocidentais pela etnologia nas- 25 a fiiterens Hee cente que se detecta essa complementaridade dos dois extre- mos, acordados cada um pelo seu lado, um por extesso, outro por defeito, em negar a «justa medida» do poder politico. ‘A América do Sul oferece a este respeito uma ilustragio marcada dessa tendéncia para inscrever as sociedades primi- tivas no quadro dessa macrotipologia dualista: ao separa- tismo anérquico da maioria das sociedades indias, opée-ce a massividade de organizacio inca, cimpério totalitario do passados, De facto, a consideri-las segundo a sua organiza- eo politica, & esseneialmente pelo sentido da democracia e pelo gosto da igualdade que se distinguem a maior parte das sociedades indias da América, Os primeiros viajantes do Brasil e os etnégrafos que se Thes seguiram por muitas vezes 0 subli- nharam: o atributo mais not&vel do chefe indio consiste na sua earéneia quase completa de autoridade; a func&o politica parece ser. no seio dessas populacées, s6 muito tenuemente diferenciada, Apesar da sua disperséo ¢ insuficiéncia, ¢ docu- mentacio que possuimos vem confirmar essa viva impressio de democracia a que foram sensiveis todos os americanistas. De entre a enorme massa das tribos recenseades na América do Sul, 2 autoridade da chefia néo foi explicitamente atestada senio no caso de alguns grupos, tais como os Taino das ilhas, 0s Caquetio, os Jirajira, ou os Otomac. Mas eonvém notar que estes grupos, quase todos Arawak, esto localizados no noroeste da América do Sul, e que a sua organizagio social apresenta uma nitida estratificagio em castas: nfo se eneontra este ‘iltimo traco senfo entre as tribos Guaycuru e Arawak (Guana) do Chaco. Pode-se além disso supor que as sociedades do noroeste estfio ligadas a uma tradicio cultural mais pré- xima da eivilizacio Chibeha e da rea andina do que das cul- turas ditas da Floresta Tropical, Portanto & sobretudo a ausén- cia de estratificaeéo social e de autotidade do poder que se deve reter como traco pertinente da organizacio politica do maior niimero das sociedades indias: algumas de entre clas, como os Ona e os Yahgan da Terra de Fogo, nio possuem sequer @ instituigio da chefia; e dizse dos Jivaro que a sua lingua nfo possuia termo algum para designar o chefe. Para um espirito formado por culturas em que 0 poder polities é dotado de poderio efectivo, o estatuto particular da chefia americana impée-se portante como sendo de natu- reza paradoxal; o que é pois esse poder privado dos meios de se excreer? Através de qué se define o chefe, uma vez que a autotidade lhe falta? E imediatamente nos sentiriamos incl nados, cedendo as tentagdes de um evolucionismo mais ou menos consciente, a concluir por um caricter epifenomenal do poder politico nessas sociedades, eujo areaismo impediria a invencdo de uma auténtica forma politica. Resolver assim © problema s6 pode conduzir no entanto a ter de recolocd-lo de uma maneira diferente: onde vai buscar uma tal instit Go sem a forea para subsistir? JA que o que se trata de compreender é bizerra persisténcia de um «poder» praticamente impotente, de uma chefia sem autoridade, de uma funcdo que funciona no vazio, Num texto de 1948, R, Lowie, analisendo os tragos dis- tintivos do tipo de chefe acima evocado, a que chamou titwar chief, isola trés propriedades essenciais do lider indio, euja recorréncia ao longo das duas Américas permite tomar como condicéo necessiria do poder nessas regides: 1*—0O chefe 6 um «fazedor de paz»; é a instancia mode. radora do grupo, tal como o atesta a divisio frequente de poder em civil e militar. 2° — Tem de ser generoso com os seus bens, ¢ nfo pode permifir-se, sob pena de se desautorizar, repelir os incessantes Pedidos dos seus cadministrados», 3° — Apenas um bom orador pode aceder & chefia. Este esquema da tripla qualifieacto necesséria ao deten- tor da funefo politica 6 evidentemente tio pertinente para ‘as sociedades sul- como norte-americanas, Com efeito, é antes do mais notivel 0 facto de as atribuicdes da chefia serem muito opostas em tempo de guerra e em tempo de paz, e que com muita frequéneia a direeesio do grupo seja assumida por dois 7 individuos diferentes, como por exemplo entre 0s Cubeo, ou nas tribos do Orenoco: existe um poder civil e um poder mili- tar, Durante a expedicio guerreira, o chefe dispSe de um poder considerfvel, por vezes mesmo absolute, sobre 0 con- junto dos guerreiros. Mas, uma vez refeita a paz, 0 chefe de guerra perde todo o seu poderio. Portanto, o modelo do poder coercive nio é aceite senfio em casos excepeionais, quando © grupo se vé confrontado com uma ameaca exterior. Mas a conjuncéo do poder e da coergéo cessa assim que o grupo passa a estar em relacio apenas consigo mesmo, Era assim que a autoridade dos chefes tupinamba, incontestada durante as expedicdes guerzeiras, se encontrava estreitamente subme- tida a0 controle do conselho dos ancidos em tempo de paz, Do mesmo modo, og Jivaro no teriam chefe senio em tempo de guerra, O poder normal, civil, fundado no consensus omaium € niio na coaceéo, é assim de natureza profundamente pacifica; a sua funcio € igualmente «pacificadoray: 0 chefe tem 2 seu cargo a manutencéo da paz ¢ da harmonia no grupo. Assim, € a ele que compete apaziguar as querelas, regular os diferen- dos, nfo pelo uso de uma forca que no possui e que nao the seria reconhecida, mas valendo-se apenas das virtudes do seu prestigio, da sua equidade e da sua palavra, Mais do que um juiz Que sanciona, é um arbitro que procura reconciliar, Néo é por- tanto surpreendente constatar que as fungdes judiciérias da chefia sejam tao raras: se o chefe falha 2 reconciliacio das partes adversas, néo pode impedir que o diferendo se trans- forme em hostilizagio miitua prolongada *. E isto revela cla- ramente a disjuncio entre 0 poder e a coereéo, © segundo trago caracterfstico da chefia india, a gene- rosidade, parece ser mais do que um dever: uma servidio. Com efeito, os etndlogos notaram no seio das mais diversas 7 No original, a palavra feud, termo inglés que designa uma hostilizacto mdtua prolongada (be at fend with), entre duas tribos, ‘familias, ete, com ataques sangrentos Inspirados pelo desejo de vinganca de uma Injirla felta anteriormente (NaT). populagées da América do Sul que essa obrigagéo de dar, a que 0 chefe esté vinculado, é de facto vivida pelos indios como uma espécie de direito de o submeter a uma pilhagem permanente. E se o infeliz lider procura refrear essa fuga de presentes, todo o prestigio, todo o poder Ihe sio imediata- mente denegados. Francis Huxley escreve a propésito dos Urubu; «O papel do chefe é ser generoso ¢ dar tudo o que Ihe pedem: em certas tribos indias pode sempre reconhecer-se © chefe pelo facto de ele possuir menos que os outros e usar os ornamentos mais pobres. O resto foi-se, em presentess + A situagio & perfeitamente andloga entre os Nambikwara, descritos por Claude Lévi-Strauss: <...A generosidade desem- penha um papel fundamental na determinacio do grau de popu- laridade de que gozaré o novo chefe...» +. Por vezes, 0 chefe, uultrapassado pelos repetidos pedidos, exclama: sio executadas: esta fragilidade permanente de um poder que ndo cosa de ser contestado aa ‘© seu tom ao exerefeio da fungio: o poder do chefe depende unicamente do muito bem querer do grupo. Compreende-se a partir dai o interesse directo do chefe em manter a paz: a irrupedo de uma crise destruidora da harmonia interna obriga & intervengio do poder, mas suscita ao mesmo tempo essa ‘intengao de contestacio para euja superagéo 0 chefe nio pos- sui 08 metos ‘A fungdo, exercendo-se, indica assim aquilo cujo sentido aqui se procura: a impoténcia da instituicéo. Mas é no plano da estrutura, isto é, 2 um outro nivel, que reside, mascarado, esse sentido, Como actividade conereta da funcio, a pra- tica do chefe nfo remete portanto para a mesma ordem de fenémenos que os trés outros critérios; ela deixa-os subsistir ‘como uma unidade estruturalmente articulada & propria essén- cia da sociedade, , com efeito, notével- constatar que esta trindade de predicados: dom oratério, generosidade, poliginia, ligados & pessoa do lider, est relacionada com os mesmos elementos de 35 entre 0s quais a troca e a circulagio constituem a sociedade como tal, e sancionam a passagem da natureza & cultura. # antes de mais pelos trés niveis fundamentais da troca dos bens. das mulheres e das palavras que se define a sociedade; é igual- mente por referéncia imediata a esses trés tipos de «sinais> que se constitui a esfera politica das sociedades indias. poder esté pois aqui em relacdo (desde que se reconheca a essa con- corréneia um valor outro que nfo o de uma coineidéneia sem significagio) com os trés niveis estruturais essenciais da sovie- dade, isto é, com o préprio cerne do universo da comunicacéo. portanto em clucidar a natureza desta relagio que nos deve- mos doravante esforgar, para tentar extrair dela as impli- cagées estruturais, Aparentemente, o poder é fiel & lei de troca que funda e rege a sociedade; tudo se passa, parece, como se o chefe recebesse uma parte das mulheres do grupo, em troca de bens econémicos ¢ de sinais linguisticos, resultando a tinica dife- renga do facto de aqui as unidades cambistas serem por um lado um individuo e por outro o grupo tomado globaimente, ‘Uma tal interpretagio, no entanto, fundada sobre impressio de que o principio da reciprocidade determina a relacao entre poder e sociedade, rapidamente se revela insuficiente: sabe-se que as sociedades indias da América do Sul nfo possuem em geral uma tecnologia mais do que relativamente rudimentar, que, por conseguinte, nenhum individuo, nem sequer © chefe, pode concentrar entre as suas mios uma grande quantidade de riquezas materiais. 0 prestigio de um chefe, como jé vimos, depende em grande parte da sua generosidade, Mas, por outro lado, as exigéneias dos Indios ultrapassam frequentemente as possibilidades imediatas do chefe. Este é portanto obrigado, sob pena de se ver rapidamente abandonado pela maior parte das suas gentes, a tentar satisfazer os seus pedidos. Sem diivide que as suas esposas podem, em grande medida, apoid-lo na sua tarefa: o exemplo dos Nambikwara ilustra bem o papel deci- sivo das mulheres do chefe, Mas certos objectos — areos, fle- chas, ornamentos masculinos—, de que so gulosos os caca- dores e guerreiros, nfo podem ser fabricados senfio pelo seu chefe; ora, as suas capacidades de producio siéo muito redu- ridas, e isso limita de imediato o alcance das prestacées em bens do chefe ao grupo. Sabemos também, por outro lado, que, para as sociedades & impressionante: ela nfo se pode- ria explicar senio no seio de sociedades em que o poder, munido de uma autoridade efectiva, estivesse por isso mesmo nitida- mente diferenciado do resto do grupo. Ora, é precisamente essa autoridade que falta ao chefe indio: como compreender entio que uma fungdo gratificada com privilégios exorbitantes seja por outro lado impotente em se exercer? ‘Ao analisar em termos de troca a relacéo do poder com o grupo, mais depressa se consegue destruir este para- doxo, Consideremos pois o estatuto de eada um dos trés niveis de comunieacio, tomado em si mesmo, no seio da esfera poli- tica, B claro que, no que se refere as mulheres, a circula- Go se faz em «sentido tinieo»: do grupo para o chefe; porque este filtimo seria, como é evidente, incapaz de reper em circuito, em direcgio ao grupo, um némero de mulheres equivalente Aquele que dele recebeu. Evidentemente, as esposas do chefe dar-Ihe-Ao filhas que mais tarde serio outras tantas esposas potenciais para os jovens do grupo. Mas deve-se considerar que a reinsereio das fithas no ciclo das trocas matrimoniais nfio chega para compensar a poliginia do pai. Com efeito, na cd maior parte das sociedades sul-americanas, a chefia herda-se patrilinearmente, Assim, e tendo em conta as aptidées indi viduais, o filho do chefe, ou, falta deste, o filho do irmio do chefe, ser o novo lider da comunidade, E ao mesmo tempo que’o cargo, ele receberé o privilégio da funedo, a saber, a poliginia, © exercicio. deste privilégio amtla pois, em cada geracio, 0 efeito do que-poderla neutralizar, por intermédio das filhas, a poliginia da geracéo precedente. Nao é sobre o plano diserénico das’ geracSes sucessivas que se desenrola 0 drama do poder, mas sobre o plano sinerénico da estrutura do grupo. A subia. ao poder-de ‘um chefe reproduz sempre @ mesma situagio; essa estrutura de repetigio nao pode- ria ser abolida senio na perspectiva elctiea de um poder que ercorresse sucessivamente todas as familias do grupo, sendo 0 chefe escolhido,- em cada geracéo, numa familia diferente, até reeneontrar a primeira familia, inaugurando assim um novo ciclo, Mas o-eargo é hereditério: no se trata pois aqui de troca, mas de dédiva pura e simples do grupo ao sew lider, diva sem contrapartida, aparentemente destinada a saneionar © estatuto social: do detentor de um cargo instituido para néo se exercer. Se nos -voltarmos para o nivel econémieo da troca, apereebemo-nos de que os bens sofrem-o mesmo tratamento; € unicamente do chefe para o grupo que se efectua o ‘seu movimento. As sociedades indias da América. do Sul sio, com efeito, raramente obrigadas a prestacSes econémicas para com 0 seu chefe e este iltimo, como qualquer outra pessoa, deve cultivar a-sua: mandioea e matar a sua eaga, Excepeio feita. para-certas sociedades do noroeste da América do Sul, 0s privilégios da-chefia no se situam geralmente sobre o plano material, ¢ apenas algumas tribos fazem da ociosidade a marca de um estatuto social superior: os° Manasi-da’ Bolivia ou os Guarani-cultivam os jardins do chefe ¢ fasem as suas colhei- 4tas;B preciso ainda’ fazer notar que;-entre-os Guarani, 0 ‘uso deste direito honra talver, menos o’chefe do que‘o xamane, ‘Seja como for, a maiorig dos'lideres indios est longe de ofe- recer a imagem de um rei preguigoso: muito pelo contrario, o chefe, obrigado a responder & gencrosidade que dele se espera, deve incessantemente pensar em atranjar presentes para ofe- recer ao seu povo, O coméreio com outros grupos pode ser uma fonte de bens; mas, mais frequentemente, € no seu. engenho e to seu trabalho pessoal que o chefe confia. De modo que, curiosamente, € 0 lider quem, na América do Sul, trabalha mais duramente. Finalmente, o estatuto dos sinais lingufsticos € ainda mais evidente: em sociedades ‘que souberam proteger a lin- guagem da degradagio que Ihe infligem os nossos, a palavra 6 mais do que um privilégio, um dever do chefe: 6 nele que recai o dominio das palavras, ao ponto de se ter podido esere- ver, a propésito de uma tribo norte-americana: «Pode dizer-se, nfio que o chefe é um homem que fala, mas que aquele que fala é um chefe», formula facilmente aplicével a todo o continente sul-americano, Porque 0 exereicio deste quase monopélio do chefe sobre a linguagem se reforea ainda pelo facto dos indios no 0 apreenderem de modo algum como iotivo para uma frustracio. A divisio est4 tio nitidamente estabelecida, que os dois assistentes do lider Trumai, por exemplo, embore g0- zando de um certo prestigio, néo podem falar como 0 ‘chefe: no em virtude de uma interdicio exterior, mas por causa do sentimento de que a actividade falante seria uma afronta tanto a0 chefe como @ linguagem; porque, diz um informador, qual- quer outro que no o chefe «teria vergonha> de falar como ele. ‘Na medida em que, recusando a ideia de uma troca das mulheres do grupo contra os ‘bens e as mensagens do chefe, se examina por conseguinte 0 movimento de cada segundo 0 seu circuito proprio, descobrimos que esse triplo movimento apresenta uma dimenséo negativa comum que con- fere a estes trés tipos de um destino idéntieo: nao aparecem mais como valores de troca, a reciprocidade deista de regular a sua circulagio, e cada um deles cai a partir de entéo no exterior do universo da comunieacio. Portanto, révela-se aqui uma relacéo origifal entre a regio do poder e a esséncia 39 do grupo: o poder mantém uma relagdo privilegiada com os elementos cujo movimento reeiproco funda a propria estrutura da sociedade; mas esta relago, denegando-thes um valor que é de troca ao nivel do grupo, instaura a esfera politica néo apenas como exterior a estrutura do grupo, mas, mais do que isso ainda, como negadora desta: o poder esta contra o grupo, ea recusa da reciprocidade, como dimensao ontolégica da sociedade, é a recusa da propria sociedade. ‘Uma tal conelusio, articulada & premissa da impotén- in do chefe nas sociedades indias, pode parecer paradoxal; é nela no entanto que se desfaz o problema inicial: a auséncia de autoridade da chefia. Com efeito, para que um aspecto da estrutura social esteja & medida de exercer uma influéncia, seja ela qual for, sobre essa estrutura, é preciso, no minimo, que a relagéo entre esse sistema particular e o sistema global no seja inteiramente negativa, na condico de ser de alguma maneira imanente ao grupo que se poderé desdobrar efectiva- mente a funeo polities. Ora, esta, nas sociedades indias, encon- tra-se exclufda do grupo e mesmo exclusiva dele: 6 pois na relagéo negativa mantida com o grupo que se enraiza a impo- téneia da funcao politica; a rejeicéo desta para o exterior da Sociedade & o proprio meio de a reduzir & impoténeia, Conceber assim a relacéo do poder e da sociedade nas populagées indias da Amériea do Sul pode parecer implicar ‘uma metafisica finalista, segundo a qual uma vontade miste- riosa usaria de meios desviados a fim de denegar ao poder politico precisamente a sua qualidade de poder. Nao se trata no entanto de modo algum de causas finais; os_fenémenos aqui analisados dizem respeito a0 campo da. gctividade incons- Jabora modelos: modelo siente Dela qual_o grupo elabora os seus modelos: e 69 modelo ‘Seine doselacio-do_srupo_socisl_om_o-poder_polftco Gue_estamos a tentar descobrir. Este modelo permite integrar dados recebidos como contraditérios numa primeira abordagem. Nesta etapa da anélise, damo-nos conta de que a-impoténcia do poder se articula directamente com a sua situacio de «i margem> relativamente ao sistema total; ¢ essa situacdo 40 resulta ela propria da ruptura que o poder introduz no ciclo decisive das trocas de mulheres, de bens e de palavras, Mas ver nessa ruptura a causa do nao-poder da funcdo politica nfo esclarece no entanto a sua razio de ser profunda. Deve- remos interpretar a sequéncia: ruptura da troca —exteriori- dade — impoténeia, como um desvio aeidental do processo cons- titutivo do poder? Isso deixaria supor que o resultado efectivo da operagio (a falta de autoridade do poder) apenas é contin- gente relativamente & intengdo inicial (a promogio da esfera politica). Mas seria preciso aceitar entio a ideia de que esse «erro» & coextensivo ao proprio modelo e que se repete inde- finidamente através duma area quase continental: nenhuma das culturas que @ ocupam se mostraria assim capaz de se dar uma auténtica autoridade politica, Esta aqui subjacente © postulado, completamente arbitrario, de que essas culturas néo possuem criatividade: & ao mesmo tempo, o retorno ao preconceito do seu areaismo. Nao se pode portanto conce- ber a separagio entre funcdo politica e autoridade como o fracasso acidental de um proceso que visava & sua sintese, como o eresvalars de um sistema apesar de tudo desmen- tido por um resultado que o grupo seria incapaz de corrigir. Recusar a perspectiva do acidente conduz a supor uma certa, necessidade inerente 20 proprio processo; @ procurar a0 nivel da intencionalidade sociolégica — lugar de elaboragio do modelo—a razdo iiltima do resultado, Admitir a confor- imidade deste com a intengio que preside A sua produgio nao sAdle significar outra coisa que nio a implicaco deste resul- todo na intencio original: 0 poder € exactamente o que estas societiades quiseram que ele fosse, E como esse poder néo & i, para o dizer esquematicamente, nada, o grupo revela, ac proceder assim, a sua reeusa radical da autoridade, uma nega- Go absoluta do poder. Sera possivel dar conta dessa das culturas indias? Deveremos julgé-la como fruto irracio- nal da fantasia, ou poderemos, pelo contrario, postular uma racionalidade imanente a este «escolha>? A propria radicali- dade da recusa, 2 sua permanéneja e a sua extensio, sugerem a talvez a perspectiva na qual a situar. A relagio do poder com a troca, Por ser negativa, néo deixou por isso de nos mostrar que é ao nivel mais profundo da estrutura social, lugar da constituigéo inconseiente das suas dimensées, que advém e se esconde a problemética desse poder. Para o dizer noutros ter- mos, é a propria cultura, como diferenca maior da natureza, que se investe totalmente na recusa deste poder. E nio é jus- tamente na sua relago com @ natureza que a cultura mani festa um desmentido duma igual profundidade? Esta ident dade na recusa leva-nos a descobrir, nestas sociedades, uma identificaco do poder e da natureza: a cultura é a negagéo de um e da outra, no no sentido em que poder ¢ natureza seriam dois perigos diferentes, euja identidade no seria senao aquela — negativa — de uma relagio idéntica ao tereeiro termo, mas justamente no sentido em que a cultura apreende o poder como a propria ressurgéncia da natureza. Tudo se passa, com efeito, como se estas sociedades constituissem a sua esfera politica em fungio de uma intuic¢ao que thes asseguraria o lugar de regra: a saber, que o poder 6 na sua esséneia coeredo; que a actividade unificadora da fungo politica se exereeria, nfo a partir da estrutura da socic- dade © conformemente com ela, mas a partir de um além incontrolével e contra ela: que o poder na sua natureza nfo 6 sono um alibi furtive da natureza no seu poder. Longe por- tanto de nos oferecer a imagem terna de uma incapacidade para resolver a questio do poder politico, estas sociedades espantam-nos pela subtileza com que 0 colocaram e o rerat: Jaram, Desde muito cedo pressentiram que a transcedéncia no poder eseonde um risco ‘mortal para o grupo, que o principio de uma autoridade exterior ¢ criadora da sua propria legali- dade 6 uma contestacéo da propria cultura; foi a intui¢do dessa ameaga que determinou a profundidade da sua filosofia poli- tica, Porque, descobrindo o grande parentesco do poder e da natureza, como dupla limitacéo do universo da ‘cultura, as sociedades indias souberam inventar um meio de nettralizar ‘a viruléncia da autoridade politica. Escolheram ser elas préprias 42 as suas fumdadoras, mas de maneira a ndo deixar aparecer © poder senio como negatividade imediatamente dominada: elas instituem-no segundo a sua esséncia' (a negagdo da cul- tura), mas justamente para lhe denegar todo 0 poderio efec- tivo. De modo que 2 emergéncia do poder, tal como é, se ofe- rece a essas sociedades como 0 proprio meio de o anular. A mesma operagio que instaura a esfera’ politica proibi-lhe © seu desdobramento: é assim que a cultura utiliza contra o poder » propria armaditha da natureza; é por isso que se chama chefe a0 homem em quem se vem quebrar a troca das mulheres, das palavras ¢ dos hens. Enquanto devedor de riquezas e de mensagens, o chefe nio traduz outra coisa senio a sua dependéncia relativamente ‘a0 grupo, e a Obrigagio em que se encontra de manifestar em ‘ada instante a inocéncia da sua func&o. Poder-se-ia com efeito pensar, se-fossemos a medir a confianca com que 0 grupo cre- dita o sew chefe, que através dessa liberdade vivide pelo grupo na sua relago com o poder se torna evidente, como que subrep- ticiamente, um controle, tanto mais profundo quanto menos aparente, do chefe sobre a comunidade. Porque; em certas circunstdncies, singularmente em periodo de escassez, o grupo volta-se totalmente para o chefe; quando a fome ameaga, as ‘comunidades do Orenoco instalam-se na casa do chefe, a cujas expensas, doravante, decidem viver; até & chegada de melho- res dias. Do mesmo modo, o bando Nambikwara, com falta de alimentacdo depois duma dura etapa, espera do chefe e nio de si proprio que a situagio melhore. Parece neste caso que o-grupo, nfo podendo passar sem chefe, depende integralmente dele. Mas essa subordinagio 6 apenas aparente: ela mascara de facto uma espécie de chantagem que 0 grupo exeree sobre © chefe, Porque, se este tiltimo néo faz aquilo que se espera dele, 2 sua aldeia ou o seu bando muito simplesmente abando- nam-no-para se irem juntar a um lider-mais fie! para com os, ‘seus deveres. 8 somente por meio desta dependéncia real quo o chefe pode manter 0 seu estatuto, Isso aparece muito niti- damente na relagio do poder e da palavra: porque, se a lin- 43 guage € 0 proprio oposto da violéncia, a palavra deve inter- pretar-se, mais do que como privilégio do chefe, como o meio que © grupo se oferece de manter o poder no exterior da vio- éneia coereiva, como que a garantia cada dia repetida de que essa, ameaca esté afastada, A palavra do lider oculta em si a ambiguidade de estar desviada da funcio de comunicagéo imanente & linguagem. B tio pouco mecessirio ao discurso do ‘chefe ser eseutado que og Indios as mais das vezes mio The prestam atencéo alguma, A linguagem da autoridade, dizem ‘0s Urubu, é um ne eng hantan: uma linguagem dura, que nfo espera resposta, Mas essa dureza nfio compensa de modo algum a impoténeia da instituicio politica, A exterioridade do poder responde 0 isolamento da sua palavra que carrega, por ser dita duramente justamente para nfo se fazer ouvir, o testemu- nho da sua docura. A poliginia pode interpretar-se da mesma maneira: para 1 do seu aspecto formal de dom puro e simples destinado 2 coloear 0 poder como ruptura da troca, desenha-se uma fun- io positiva, andloga A dos bens e da linguagem. O chefe, pro- prietario de valores essenciais do grupo, & por isso mesmo responsével diante dele, e por intermédio das mulheres, de algum modo 0 prisioneiro do grupo, Assim, este modo de constituigio da esfera. politica pode compreender-se como um verdadeiro mecanismo de defesa das sociedades indias, A cultura afirma o prevalecimento daquilo que a funda—a troca—precisamente ao visar no poder a negacéo deste fundamento, Mas € preciso para além disse notar que estas culturas, privando os «sinais» do seu valor de troca na regitio do poder, tiram as mulheres, aos bens e as palavras justamente a sua funcdo de sinais para trocar; e é ‘entio como puros valores que so apreendidos esses elementos, porque 2 comunicacéo deixa de ser o seu horizonte. O estatuto da linguagem sugere com uma forca singular essa conversio do estado de sinal ao estado de valor: 0 discurso do chefe, na sua solidio, lembra a palavra do poeta para quem as pala- vras sio valores ainda mais do que sinais. Que pode pois significar esse duplo processo de des-significagio ¢ de valori- zacio dos elementos da troca? Talvez exprima, mesmo para além da ligacdo da cultura aos seus valores, a esperanca ou a nostalgia de um tempo mitico em que cada um pode- ria aceder @ plenitude de uma fruigio no limitada pela exigéncia da troca, Culturas indias, culturas inguietas por recusar um poder que as faseina: a opuléncia do chefe é 0 sonho acordado do grapo, E € justamente por exprimir ao mesmo tempo a preo- eapacio que tem de sia cultura e 0 sonko de se ultrapassar, que o poder, paradoxal na sua natureza, é venerado na sua impoténcia: metéfora da tribe, imago do seu mito, eis o chefe indio*. + Estudo inietalmente publicado em L'Homme II (1), 1962. Que forga impelia o jovem Mandan? Concerteza que nfo se tratava de nenhuma pulsio masoquista, mas pelo con- ‘trério do desejo da fidelidade & lei, da vontade de ser, nem mais nem menos, 0 igual dos outros iniciados. ‘Toda a lei, diziamos, é escrita, Aqui esté como se recons- titui, de uma certa mancira, a tripla alianga jé recomhecida: corpo, eserita, lei. As cicatrizes desenhadas sobre o corpo so 0 texto inserito da lei primitiva, so, nesse sentido, uma escrita sobre 0 corpo. As sociedades primitivas sio, néo se eansam de 0 dizer os autores do Anti-Bdipo, sociedades do testemunho, E nesta medida, as sociedades primitivas sio com efeito sociedades sem escrita, ma medida em que @ escrita representa, antes do mais, a lei separada, longinqua, despética, a lei do Estado que os ¢o-detidos de Martchenko eserevem sobre © seu corpo, E, precisamente, nunca seri demais sublinhar que para conjurar essa lei, lei fundadora e garante da Wesigualdade, 6 contra a lei de Estado que se coloca a lei primitiva. As sociedades arcaicas, sociedades da marea, rao sociedades sem Estado, sociedades contra o Estado. A marca sobre 0 corpo, igual sobre todos os corpos, enunela: tu ndo ters 0 desejo do poder, tu ndo terés 0 desejo da submisséo. B essa lei ndo separada nfo pode encontrar para se inscrever seno um espago nfo separado: o préprio corpo. Profundidade edmirével dos Selvagens, que de wntemdo sabiam tudo isso, ¢ velavam, a prego de uma terrivel cruel- dade, por impedir o advento de uma crucldade ainda mais terrivel: @ lei escrita sobre 0 corpo é uma recordagio ines- quecivel *, + Bstudo infclsimente publicado em L/Homme XIII (3), 1978. CAPITULO XI A SOCIEDADE CONTRA 0 ESTADO As sociedades primitivas sio sociedades sem Estado: este julzo de facto, em si préprio exacto, dissimula na verdade uma opinido, um juizo de valor que impede A partida a pos- sibilidade de constituir uma antropologie politica como cién- cia rigorosa, O que de facto é enunciado é que as sociedades primitivas esto privadas de alguma coisa —o Estado —que Ihes 6 como para qualquer outra sociedade—a nossa por exemplo—necessiria. Estas sociedades sio pois incompletas Blas no sio completamente verdadeiras sociedades —elas no sho policiadas —, subsistem na experiéneia talver dolorose de uma caréncia—caréncia do Estado—que elas tentariam, sempre em vo, preencher, De um modo mais ou menos confuso, 6 claramente isto que dizem as erénicas dos viajantes ou os trabathos dos investigadores: nfo se pode pensar a sociedade sem o Estado, 0 Estado € 0 destino de toda a sociedade, De- tecta-se nessa perspectiva uma fixagio etnocentrista tanto mais sélida quanto é, a3 mais das vezes, inconsciente. A refe- réneia imediata, espontdnea, é se niio o que melhor se conhece, pelo menos o que é mais familiar. Com efeito, eada um de nés traz, em si, interiorizada como a £6 do erente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado, Como conceber entio a propria existéncia das sociedades primitivas, sendo como espé cies enjeitadas da histéria universal, sobrevivéncias anacré- nicas de um estddio longinquo h4 j4 muito ultrapassado por toda a parte? Reconhece-se aqui 0 outro rosto do etnocen- trismo, a convieedo complementar de que a histéria tem um imico sentido, que tods 2. sociedade esté condenada 2 envolver- -se nessa, histéria e a pereorrer-Ihe as otapas que, desde a selvajaria, conduzem até A civilizagio, tecnolégicas: 0 equipamento téenico de uma sociedade no € comparével directamente ao de uma sociedade diferente, € no serve de nada contrapor a espingarda ao arco. Nem de facto, dado que a arqueologia, a etnografia, a botanica, etc. demonstram-nos precisamente a capacidade de rentabilidade e de eficdcia das teenologias solvagens, Portento, se as socic- dades primitivas repousam sobre uma economia de subsis- téncia, nio é por falta de habilidade técnica, Esté aqui a ver- dadeira questo: 2 economia dessas sociedades seré realmente uma economia de subsisténcia? Se dermos um sentido as pala- ‘yras, se por economia de subsisténeia néo nos contentarmos com entender economia sem mereado e sem excedentes — 0 que seria um simples truismo, a pura constatagao da diferenca —, entio afirmamos com efeito que este tipo de economia per- mite & sociedade que sustenta subsistir apenas, afirmamos que essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade 186 das suas forcas produtivas com vista a fornecer aos seus membros 0 minimo necessirio & subsisténcia, Aloja-se af um preconesito tenaz, curiosamente coexten- sivo & aldeia contradit6ria e nao menos corrente de que 0 Sel- vagem & preguigoso. Se ma nossa linguagem popular dizemos strabalhar como um negro», na América do Sul, em contra- partida. diz-se epreguicoso como um Indio». Entdo, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas, amerieanas ¢ ‘otras, vive em economia de subsisténcia e passa a maior parte do seu tempo A procura de alimento; ou entio nio vive em economia de subsisténcia ¢ pode pois permitir-se lazeres prolongados fumendo na sua cama de rede. Foi isso 0 que espantou, sem diivide, os primeiros observadores europens dos Indios do Brasil. Foi grande sua reprovacio a0 cons- tatarem que rapazolas cheios de saiide preferiam adornar-se como mulheres com pinturas ¢ pumas, em lugar de transpirar nag suas hortas, Gentes que ignoravam que preciso ganhar © pio com o suor do seu rosto. Isso era demasiado, e nio durou muito: rapidamente os fndios foram postos a traba- Thar, e por isso pereceram. Com efeito, dois axiomas pare- cem guiar a marcha da civilizagio ocidental, desde a sua aurora: o primeiro estipwla que a verdadeira sociedade se desenvolve & sombre protectora do Estado; © segundo enuncia um imperative eategérico: € preciso trabalhar. 05 Indios nfo consagravam efectivamente senfo pouco tempo aquilo-a que se chama trabalho. E nfio morriam de fome, no entanto, As erénicas da época séo unénimes em descre- ver a bela aparéncia dos adultos, a boa satide das numerosas eriangas, a abundancia e @ variedade dos recursos alimentares. Por conseguinte, a economia de subsisténcia que era a das tri- bos fndias no implicava de modo algum a procura angustiada, a tempo inteiro, de alimento. Portanto, uma economia de sub- sisténcia € compativel com uma considerivel limitagio do tempo consagrado as actividades produtivas. Veja-se 0 caso das tribos sul-americanas de agricultores, os Tupi-Guarani por ‘exemplo, cuja indoléncia tanto frritava os franeeses ¢ os portu- 187 ee gueses. A vida econémica desses Indios fundava-se principal- mente sobre a agricultura, acessoriamente sobre a caga, a pesca ea recoleceao, Uma mesma horta era utilizada durante quatro seis anos eonsecutivos. Depois era abandonada, por causa do esgotamento do solo ou, 0 que parece mais verosimil, por causa da invasio desse espaco por uma vegetacio parasitaria dificil de eliminar. 0 grosso do trabalho, efectuado pelos homens, eonsistia em desbravar, com o machado de pedra e pelo fogo, a superficie necessria, Esta tarefa, realizada no fim da esta- gio das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agricola — plantar, sachar, colher—em conformidade com a divisio sexual do trabalho, era assumido pelas mulheres. Dai resulta portanto esta engragada conclusio: os homens, isto é, metade da popu- lacéo, trabalhavam cerca de dois meses de quatro em quatro anos! Quanto ao resto do tempo, votavam-no a ocupagées sentidas néo como obrigacéo mas como prazer: caga, pesca; festas e beberetes; finalmente, a satisfazer o seu gosto apai- xonado pela guerra. Ora estes dados massivos, qualitativos, impressionistas, encontram uma confirmacio incontestivel nas investigagSes recentes, das quais algumas ainda em curso, de cargeter rigo- rosamente demonstrativo, dado que elas medem o tempo de trabalho nas sociedades com economia de subsisténcia. Quer se trate de cagadores némadas do deserto do Kalahari, ou de agricultores sedentarios amerindios, as cifras obtidas reve. Jam uma reparticio média do tempo de trabalho diario inferior a quatro horas por dia. J. Lizot, instalado ha varios anos entre os Indios Yanomami da Amazénia venezue- lana, estabeleceu cronometricamente que a duracio média do tempo consagrado diariamente ao trabalho polos adultos, tendo em conta todas as actividades, mal ultrapassa. trés horas. Nés proprios no chegamos a efectuar medidas and- logas entre 08 Guayaki, cacadores némadas da floresta para: guaiana, Mas podemos assegurar que os Indios, homens ¢ mulheres, passavam pelo menos metade do dia numa ociosi- 188 dade quase completa, dado que caca € colecta se realizavam, € nio todos os dias, entre as seis ¢ as onze horas da manha mais ou menos, E provavel que estudes semelhantes, leva- dos a cabo entre as ditimas populagées primitivas, chegas- sem, tendo em conta as diferengas ecolégicas, a resultados semelhantes, Hisnos pois bem longe do miserabilismo que envolve a ideia de economia de subsisténcie, Nao sé o homem das sociedades primitivas nio é obrigado a essa existéncia ani- mal que seria a procura permanente para assegurar a sobre- vivéneia, como inclusivamente esse resultado é obtido pelo prego de um tempo de actividade notavelmente reduzido, Isso significa que as sociedades primitivas dispéem, se o desejarem, de todo o tempo necessério para aumentar a produgio dos bens materiais. 0 bom-senso pergunta entio: porque 6 que os homens dessas sociedades quereriam tra- ‘balhar e produzir mais, quando trés ou quatro horas quo- tidianas de actividade pacffica bastam para assegurar as necessidades do grupo? Para que Ihes serviria isso? Para que serviriam os excedentes acumulados? Qual seria o seu destino? E sempre pela forea que ox homens trabalham para além das suas necessidades, E precisamente essa forga esti ausente do mundo primitive, a auséncia dessa forca externa define a propria natureza das sociedades primitivas, Doravante pode- mos admitir, para qualificar 2 organizagio econémica destas sociedades, a expressio de economia de subsisténcia, desde que se entenda por isso, no a implicagio de uma curén cia, de uma incapacidade, inerentes a esse tipo de socie- dade ¢ 2 sua tecnologia, mas pelo contrério a recusa de um ezcesso infitil, a vontade de adequar a actividade pro- dutiva & satisfacdo das suas necessidades, E nada mais. ‘Tanto mais que, vendo as coisas mais de perto, hé ofectiva- mente produgio de excedentes nas sociedades primitivas: = quantidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, tabaco, algodio, ete.) ultrapassa sempre o que é necessério 20 consumo do grupo, estando esse suplemento de producio, enten- 139 da-se, inciuido no tempo normal de trabalho, Wese excesso, obtido sem sobretrabalho, 6 usado, consumido, para fins propriamente politicos, quando das festas, convites, visitas de estrangeiros, etc, A vantagem de um machado metélico sobre um machado de pedra é demasiado evidente pare que nos detenhamos sobre ela: pode-se realizar com o pri- meiro talvez dex vezes mais trabalho do que com o se- gundo, num mesmo perfodo de tempo; ou entdo fazer o mesmo trabalho em dez vezes menos tempo. B quando os Indios descobriram a superioridade produtiva dos machados dos homens brancos, desejaram-nos, néo para produzir mais no mesmo tempo, mas para produsir a mesma coisa num ‘tempo dez vezes mais curto. Foi exactamente o contrério que se produziu, porque com os machados metilicos fize- ram irrupgio no mundo primitivo dos Indios a violéncia, a forea, o poder que exerceram sobre os Selvagens os recém- -chegados civilizados. As sociedades primitivas so, como esereveu J. Lizot @ propésito dos Yanomami, sociedades de recusa do traba- Iho: «0 desprezo dos Yanomami pelo trabalho e 0 seu desin- teresse por um progresso tecnolégico auténomo é evidente> * Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abun- dincia, segundo a justa e feliz expressao de M. Sehlins Se © projecto de estabelecer uma antropologia econé- mica das sociedades primitivas como disciplina auténoma tem um sentido, este nfo pode advir da simples apreen- so da vida econdmica destas sociedades: ficamos por uma etmologia descritiva, pela descriczo de uma dimensio nao autnoma da vida social primitiva, B pelo contrério quando essa dimensio do

Você também pode gostar