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VERSÃO PARA ARQUIVO 12 de Abril de 2023

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“O QUE TEMOS ASSISTIDO ATÉ HOJE


É O ATAQUE AOS EFEITOS E MÃO AS CAUSAS

“Volvidos cerca de cinco anos e alguns meses do primeiro mandato do


Presidente João Lourenço, estando já no segundo, era altura de
procedermos à um balanço do que se fez, quais são os resultados que

A
cidade do Lobito acolheu no passado dia 12 (Abril) no Salão
Nobre da Administração Municipal, a 1ª Conferência Provincial
Tripartida do Processo Penal Angolano, promovida pelo
Conselho Provincial da Ordem de Advogados, numa parceria
com a Procuradoria-Geral da República e o Tribunal da Comarca do
Lobito.

A conferência, digna dos maiores elogios, congregou operadores da


Justiça angolana em Benguela e não só, envolvidos nos mais diferentes
sectores e contou com a participação de cinco prelectores,
designadamente, da Dra. Laurinda Cardoso, Veneranda Juíza
Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional, que abordou o
tema “O papel do Tribunal Constitucional e a tramitação dos
recursos extraordinários de inconstitucionalidade”; de Ramos Queta
Barros, Juiz de Direito, que dissertou sobre “A relação entre juízes,
procuradores e advogados”; Núria Viegas, Sub-procuradora Geral da
República em Benguela, sobre “A institucionalização da figura do juiz
de Garantia e a sua importância na celeridade processual penal”;
Dilma Correia, advogada, sobre “O papel da mulher advogada e seus
desafios”; Comissário Aristofanes dos Santos, Delegado Provincial do
Minint, sobre “A segurança pública e a garantia dos arguidos nos
processos penais”.

O ciclo de apresentação de temas foi encerrado pelo advogado Sérgio


Raimundo, que teve a seu cargo a apresentação do tema sobre “Os
principais instrumentos jurídicos do ordenamento angolano para o
combate a corrupção”. Matéria sempre suculenta e de actualidade que
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pela sua relevância, decidimos reproduzir integralmente porque


pensamos ser de grande utilidade para percebermos os diferentes
meandros desse e de outros “combates”. Claro que, numa vertente
pedagógica, de academia, como fez de ressaltar o orador, e
numa “perspectiva crítica positiva” de contribuição para o êxito dessa
empreitada, que é afinal, da responsabilidade de todos.

O objectivo, reafirmamos fazendo nossos os argumentos de razão


esgrimidos por esse destacado causídico, é “ajudar ou sugerir alguns
caminhos para melhorar o combate a corrupção e torná-lo mais eficaz
e eficiente” até porque, embora existam muitos angolanos que não
encaram de bom grado a participação livre dos que são tidos como
os “outros” nessa espinhosa empreitada de construção de uma nação
livre, democrática e de direito, “a verdade não se tapa com a peneira”.

Eis a intervenção do Dr. Sérgio Raimundo, que é a expressão do


seu conhecimento, da prática de muitos anos de exercício
jurídico activo, de academia, de cidadania, mas, sobretudo, de
expressão do seu sentimento e comprometimento com a Nação e
com todos.

“Alguém anda a enganar o Presidente”


Procurarei fazer uma abordagem sucinta, mas numa perspectiva
crítica positiva, não entrando no âmago de todas as questões,
uma vez que pelo formato deste evento, não temos muito tempo
para falar com profundidade de um tema tão complexo, como é
o combate à corrupção, que para muitos parece resumir-se em
dois aspectos simples: prender pessoas e metê-las na cadeia.
Mas não é bem assim.

Mas, antes disso, gostaria de sugerir para aqueles que realmente


estão interessados neste tema, a leitura de dois livros: um deles,
de uma pessoa que conhecem bem aqui em Benguela, professor
de muitos de vocês, que se tem dedicado muito ao estudo dessa
dessas matérias. Refiro-me ao professor Hermínio Carlos Silva
Rodrigues. Tem uma obra sobre “Recuperação de Activos e Perda
Alargada de Bens em Angola”. A outra obra, é de autor brasileiro
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Antenor Baptista, “A Corrupção, o 5º Poder”. Ele denominou a


corrupção como o quinto poder, tendo em atenção o Poder
Legislativo, o Poder Judiciário, o Poder Executivo e a Imprensa,
que é tida como o quarto poder. Então, ele coloca nessa
sequência a corrupção como o quinto poder. E na introdução da
sua obra, ele até diz que a corrupção deveria ser até o primeiro
poder, porque influencia todos os demais poderes.

Para dizer que vou abordar o meu tema essencialmente com base
em dois ou três instrumentos jurídicos essenciais, para facilitar a
compreensão e aproveitarmos o tempo, e para que o resultado
deste nosso encontro possa ser mais prático e proveitoso do
ponto de vista de resultados.

É verdade que todos nós estamos interessados em combater a


corrupção em Angola. Não há dúvidas quanto a isso e, aliás, já o
antigo Presidente José Eduardo dos Santos dizia que, “depois da
guerra, o segundo maior mal que tem prejudicado o
desenvolvimento do país e a promoção do bem-estar social
dos angolanos, é a corrupção”. E declarou, naquela altura,
tolerância zero à corrupção. Mas, infelizmente, quando terminou o
mandato, vimos que os níveis de corrupção que deixou eram
altos.

Serve isso para dizer, que a nova liderança também elegeu o


combate a corrupção como uma das principais bandeiras da sua
governação. E não podia ser diferente, porque se nós
continuarmos com uma sociedade corrupta, por melhores que
forem as intenções políticas na promoção do desenvolvimento e
do bem-estar social dos angolanos, dificilmente poderemos atingir
algum resultado positivo.

Mas, penso que o problema não está em combater ou não à


corrupção. E como já disse, até estamos todos de acordo. O
problema está na estratégia de combate à corrupção: qual é a
melhor estratégia para combater a corrupção? Porque, como
disse, o anterior Presidente também proclamou (declarou)
tolerância zero e não conseguiu. Porque, não houve uma
estratégia inclusiva. E parece-me que a actual liderança está a

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trilhar o mesmo caminho. Apenas com uma única diferença: há


alteração legislativa acelerada para facilitar este combate a
corrupção, que muitas vezes é aprovada no calor das emoções.
Com pressa de que precisamos receber isso... precisamos de
prender aquele... e muitas vezes não se olha para o que é
fundamental: as causas da corrupção, porque elas se mantêm lá
todas, intactas.

Por isso é que hoje ouvimos na sociedade, que a corrupção


atingiu níveis superiores àqueles que José Eduardo dos Santos
deixou. Porque o Presidente da República não é omnipotente nem
omnipresente. Ele pode ter muita boa vontade política de
combater a corrupção, mas, se não contar com a participação de
todas as forças vivas da Nação, quando ele terminar os mandatos
todos que tiver vai deixar o país igual, ou pior do que o que
encontrou.

Na realidade, os principais instrumentos jurídicos para o combate


a corrupção no nosso ordenamento, obviamente, em primeiro
lugar está a Constituição. E depois encontramos uma série de leis
ordinárias, como por exemplo, o próprio Código Penal
recentemente aprovado, o Código de Processo Penal que temos
em vigor e que é novo, a lei 3/10 de 29 de Março, a Lei da
Probidade Pública, a lei 9/18 de 26 de Junho, a Lei de
Repatriamento de Recursos Financeiros, ou se quisermos,
de Repatriamento Voluntário, que foi aprovada numa perspectiva
de acelerar a recuperação dos activos que, indevidamente ou
presumivelmente de forma indevida, saíram da esfera jurídico
patrimonial do Estado para a esfera jurídica patrimonial de alguns
particulares, permitindo assim - e se pudéssemos chamar a isto
uma espécie de “Amnistia Parcial temporária” - que essas
pessoas pudessem devolver voluntariamente, ficando isentas de
quaisquer responsabilidades de natureza criminal.

Como vimos, passaram os seis meses e ninguém entregou


praticamente nada. Então, surgiu a lei 15/18 de 26 de Dezembro,
seis meses depois, taxativamente, que é chamada Lei sobre o
Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, que a obra
que eu citei do doutor Hermínio Carlos Silva Rodrigues aborda

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muito bem toda esta matéria. Critica, inclusivamente, algumas


soluções que foram adoptadas nesta lei, com as quais eu
concordo e também subscreve.

Há uma outra obra (que não trouxe) que também recomendo. É


sobre o “Crime de Branqueamento de Capitais em Angola e as
Suas Infracções Subjacentes” da autoria do Dr. Avelino Capaco,
que escrevi o prefácio. Tem lá também muita coisa boa sobre esta
matéria. Ele tem uma outra obra, a primeira, que é sobre
a “Acumulação Primitiva de Capitais”, onde faz uma
abordagem positiva, contrariamente àquela que assistimos
diariamente na nossa sociedade. Quando falamos da “apropriação
primitiva de capitais”, a ideia que se transmite é de anarquia ou
açambarcamento de bens públicos. Mas não! A apropriação
primitiva tem uma perspectiva positiva, no sentido de como é que
as pessoas, pela primeira vez, tiveram acesso à determinadas
riquezas. E nessa obra, ele explica que quer nos Estados Unidos,
quer em França, quer em Inglaterra, quer até em Portugal, à
determinada fase da história dessas nações seculares, tiveram de
tomar decisões políticas para criar a dita burguesia nacional,
definindo critérios para que determinados cidadãos tivessem
acesso fácil a riqueza para assim dar lugar a burguesia nacional.
Porque falar em economia de mercado, de livre concorrência, sem
uma classe burguesa nacional forte, é entregar a soberania
económica do país aos estrangeiros. Esta é a grande realidade, e
temos de ter muito cuidado, porque senão, um dia vamos acabar
todos novamente empregados de estrangeiros.

O outro instrumento jurídico importante a chamar aqui a colação, é


a Lei 5/20 de 27 de Janeiro, a Lei da Prevenção e Combate ao
Branqueamento de Capitais e do Financiamento do
Terrorismo e Proliferação de Armas de Destruição Massiva, a
Lei 13/22 de 25 de Maio de Apropriação Pública, que surgiu na
base da chamada Revisão Pontual da Constituição que
introduziu uma alteração na redacção do Artigo 37 da
Constituição, surgindo aqui o número 4 e o número 5, como
consequência do qual foi aprovada esta Lei Ordinária, que vem
numa espécie de regulamento desta norma programática do
número 4 do Artigo 37 da Constituição, por um lado. Por outro

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lado, essas leis também constituem um dos meios através do qual


o combate a corrupção se concretiza, bem como também, através
dos órgãos da administração da Justiça e não só. Porque foi
necessária a aprovação dessas leis, para que os órgãos de
administração da Justiça tivessem instrumentos capazes de tornar
célere e eficaz o combate a corrupção.

Entendo que, volvidos cerca de cinco anos e alguns meses do


primeiro mandato do Presidente João Lourenço, estando já no
segundo mandato, era altura de procedermos à um balanço do
que se fez, quais são os resultados que foram alcançados com
esses métodos, com esta estratégia de combate a corrupção, e
procurarmos, dentro daquele lema que elegeu o MPLA para
governar este país, “corrigir o que está mal e melhorar o que
está bem”, então corrigir o que está mal na estratégia, e melhorar
alguns aspetos que estão bem nessa mesma estratégia de
combate a corrupção.

E nós temos de começar a aprender com todos, inclusivamente


com os mais novos, com os mais velhos e até com os nossos
adversários políticos. E digo isto porquê? Gostaria de chamar aqui
a colação uma entrevista interessante, que uma das pessoas tidas
como das mais radicais, considerado mesmo um dos líderes mais
radicais do maior partido da oposição, a UNITA, que é o general
Camalata Numa, que deu ao Jornal Vanguarda (em 2018) que já
desapareceu, em que dizia de forma muito resumida, “que
combater a corrupção sim, estamos todos de acordo, mas
não da forma como está a ser feito”. E ele disse
ainda: “Combater a corrupção não pode ser entendido como
combater o antigo Presidente da República, seus filhos e
pessoas mais próximas, porque isto pode pôr em causa todas
as conquistas alcançadas até agora, com sacrifício de vidas
humanas e muito sangue vertido pelos filhos e filhas desta
nação, porque isto pode criar alguma instabilidade até
económica”.

Se olharmos hoje para o cenário económico fruto do combate a


corrupção na base dessa estratégia, vamos encontrar muitas
situações que trouxeram alguma instabilidade, como o aumento

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do desemprego, a destruição e desvalorização de activos quer


dentro como fora do país. E, portanto, temos de ser humildes o
suficiente, para aceitar parar para ir ao espelho, e reparar se
estamos bem ou mal vestidos. O general Camalata Numa disse
também, que o “Presidente João Lourenço não pode fazer do
combate à corrupção uma bandeira exclusiva do MPLA”. E é
verdade! A corrupção em Angola é endémica, é transversal, está
enraizada em todas as instituições, mesmo até nos partidos
políticos da oposição. E portanto, é preciso chamar todas as
forças vivas da Nação, incluindo as igrejas, a sociedade civil
organizada, através das ONG’s para num debate amplo e
inclusivo, sob a liderança do Governo e do partido que governa
porque têm responsabilidades acrescidas, trazer um projecto de
estratégia de combate a corrupção, chamar a sociedade civil
organizada e outras forças vivas da Nação e não apenas os
partidos políticos e dizer: “O pensamento estratégico do
Governo de combate a corrupção é este, mas queríamos ouvir
as vossas opiniões e contribuições para enriquecermos essa
estratégia, e sairmos daqui com uma estratégia única,
consensual, comum, para que cada cidadão deste país se
sinta participe deste combate”.

O que nós estamos a ver, é que ninguém se sente participe directo


do combate a corrupção. Todos entendem que o combate a
corrupção é da PGR (Procuradoria-Geral da República), é do
MPLA, é uma tarefa do Presidente João Lourenço. Mas não! Eles
sozinhos não vão conseguir fazer nada.

Portanto, este debate impõe-se. A própria Igreja Católica que é a


maior no país, também já sugeriu várias vezes e de forma pública,
que é necessário um debate mais amplo à volta das grandes
questões transversais da nossa sociedade. E muito recentemente,
inclusivamente a CEAST foi mais longe e gritou mesmo no sentido
de uma revisão profunda da Constituição. Eu também subscrevo
isso, embora a minha opinião não seja convergente sobre a
revisão profunda como muitas outras, quando oiço dizer que é
preciso mudar a bandeira, o hino e outros símbolos. Angola tem
outras prioridades, tem gente a morrer de fome nas ruas. Tem
gente a comer no contentor (de lixo). Não é mudando os símbolos

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que se vai tirar essas pessoas dos contentores (do lixo). E dou
muitas vezes o exemplo do próprio colonialismo português que
nos governou – e eu ainda tive a infelicidade de nascer no tempo
colonial e viver aí uns 12 anitos no tempo do colono. Portugal
continua com a mesma bandeira que flautava aqui em Angola
enquanto província ultramarina de Portugal, o mesmo hino que
nós éramos obrigados a cantar no início das nossas aulas, a
mesma bandeira, o mesmo hino que flutua na democracia
portuguesa. E porquê? Porque eles têm noção do quanto custa a
uma nação, a mudança dos símbolos. Têm-se despesas
adicionais como mudar os bilhetes de identidade, os passaportes,
até os papéis utilizados pela administração central e local. Isso
tem custos elevadíssimos. Tem custos políticos, económicos e
diplomáticos. Portanto, devemos definir o que constitui prioridade,
e essa é, sem dúvidas, o salvar a vida dos angolanos que morrem
de fome todos os dias.

Por imperativos de tempo, vou pegar em duas ou três leis para


tentar esmiuçar um pouco, na tal perspectiva critica positiva, no
sentido de ajudar ou sugerir alguns caminhos para melhorar o
combate à corrupção e torná-lo mais eficaz e eficiente.

Começando pela Lei 9/18 de 26 de Junho, como disse, ela visava


aligeirar o combate a corrupção, na perspectiva da recuperação
rápida dos activos, concedendo uma espécie de Amnistia
Provisória e Parcial. Mas, infelizmente, já o disse e volto a
repetir, esta lei constituiu um ‘nado morto’ à nascença. E também
já disse publicamente no ano passado na Conferência Nacional
dos Advogados, que o Presidente João Lourenço – que até
conheço muito bem porque já foi meu chefe duas vezes – não é
jurista, é um político nato – portanto, deve ter juristas à sua volta
que o aconselham – e no mínimo está a ser enganado. Porque
quando ele vem à público dizer “que nós demos seis meses de
período de graça para devolverem as coisas que tiraram e não
aproveitaram”, alguém enganou o Presidente. Esta lei é
um ‘nado morto’ à nascença. E vou demonstrar agora aqui, por
que razão afirmo que é um ‘nado morto’.

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O número 2 do Artigo 2º desta lei diz coisas incríveis. No mínimo


tem duas inconstitucionalidades, mas, primeiro, queria dizer que
mata a eficácia dessa lei, torna ineficaz essa lei, quando refere
que “esta lei não se aplica aos casos de peculato”, como diz a
alínea k e a alínea l desta mesma lei, e os crimes relacionados
com a subtracção de recursos financeiros do erário público. A
questão que coloco é a seguinte: “Então, se nós queremos
recuperar dinheiro e bens que saíram do erário indevidamente
e não há notícia de que o Banco Nacional ou o Tesouro
Nacional, no sentido figurativo, foram alvo de assaltos a mão
armada, é óbvio que esses bens só saíram dali através de
quem? De um funcionário público que tinha a guarda ou a
responsabilidade da gestão desses bens. Logo, na origem
está um crime de peculato”. Quando vem alguém dizer que ela
não se aplica aos casos de peculato, está a dizer que não
beneficia os destinatários dessa mesma lei. E por isso é que
ninguém entregou. Isto é quase dizer assim, vai à Rádio Lobito e
emite um comunicado: “Olha! Quem tirou o plasma da minha
casa, que se apresente ou que deixe ficar o plasma na porta
da minha casa que vou retirar a queixa”. Toda a gente sabe que
se ele arrombou a porta é roubo, se não arrombou nem utilizou
violência é furto, e pelo valor do plasma (porque não são baratos)
é um crime público. E os crimes públicos não admitem perdão.
Portanto, não é verdade que se devolver o plasma, quem roubou
fica isento de responsabilidade criminal. O que pode acontecer é
uma atenuação da pena aplicada. Portanto, essa lei foi ineficaz
por causa deste propósito, que vem falecer com as
alíneas k e l deste mesmo Artigo, no seu nº 2.

Eu falava da existência de duas inconstitucionalidades no mínimo


– e a Dra. Laurinda deu-nos aqui uma lição muito positiva,
referindo designadamente que “tudo bem não vou dizer que a
Lei não está correcta, mas isto é a Lei”. É verdade que é a lei e
cada um de nós tem os meios legais para poder atacar isto. Eu,
pessoalmente, já ataquei e confesso que há anos. Não obtive
resposta. Até parece que há uma orientação política expressa que
vai no sentido de ignorar quem ataca essas leis, para ninguém se
pronunciar sobre esse assunto. Eu já ataquei, porque o número 2,
vem dizer assim: “Esta Lei não se aplica aquelas pessoas que

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já foram constituídas arguidas antes da sua entrada em vigor,


ou que estejam a responder em processos administrativos ou
inquéritos policiais”. Ora, onde é que fica a presunção da
inocência? O facto de eu ser constituído arguido não afasta a
presunção da inocência da minha pessoa. O que foi constituído
arguido hoje, e o que foi constituído arguido ontem antes da
entrada em vigor desta lei, estão na mesma situação. Há aqui
também uma violação do princípio da igualdade. Sim! É uma
aberração. Como é que você vai dizer que quem está a responder
um inquérito policial, não pode beneficiar desta medida? Se não
há uma decisão condenatória com trânsito em julgado, que é o
único fundamento legal e bastante, que vem dizer que “este
indivíduo cometeu este crime”, por que até aí, presume-se que
eu cometi o crime, por força do princípio da presunção de
inocência, com dignidade constitucional do Artigo 67.º do
número 2 da Constituição, até que haja essa decisão proferida em
última instância com trânsito em julgado, eu sou inocente.

Por isso, quando as pessoas perguntam, “mas doutor, você é


advogado dos marimbondos”? Uma vez eu respondi: “Mas na
Constituição há alguma norma que consagra a protecção de
insectos? Não há! Eu só defendo pessoas”. E mais: os
advogados só defendem o cidadão que a própria Constituição o
considera inocente. E, portanto, qualquer um de nós, enquanto
advogado, não defende o criminoso. Defende o cidadão que a
própria Constituição lhe confere uma presunção de inocência. E
quem tem de fazer prova de que ele cometeu aquele crime, é
quem o acusa. Não é ele, nem é o advogado, quem tem de fazer
prova disso. Quando ele for condenado com trânsito em julgado,
aí já não o podemos defender. O que temos de fazer é aconselhá-
lo: “Olha aproveite o tempo da privação de liberdade para
repensar a sua conduta, para que amanhã quando voltar à
liberdade, mostrar a sociedade o lado positivo que ficou
ofuscado com a sua condenação”. Este é o nosso papel.

É preciso que a sociedade compreenda isso, e a Ordem dos


Advogados aqui tem uma grande responsabilidade de passar esta
mensagem à sociedade porque, infelizmente, muitos de nós não
defendemos determinados casos porque temos medo de ser

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linchados. Eu já vivi situações do género. Falo com propriedade,


porque já vivi essas situações. Eu sei que aqui, nesta sala, há
advogados que nem querem defender processos críticos de
natureza criminal, porque têm medo de ser conotados. Até a
minha própria mulher, quando fui defender a Nerika, perguntou-
me:

- Mas você mesmo, aquilo que eu vi na televisão é verdade?


Então estas a defender aquela mulher que matou o marido?

Intrigado, perguntei também se ela, sendo mulher, não estava


solidária com a outra? - Quem é que te disse que ela matou o
marido?

- Mas é o que estão a dizer!

Ah, é o que estão a dizer!

Eu não defendo criminosas. Eu defendo aquela cidadã a quem


recai sobre ela, por força da Constituição, a presunção de
inocência.

Vamos agora a outra lei, a 15/18 de 26 de Dezembro. Esta lei


também tem um problema, e eu chamo aqui a colação essas
insuficiências na minha perspectiva crítica construtiva de apontar o
que está mal, mas também apontar soluções. Esta lei também tem
um problema sério. Todas elas podem comprometer no futuro,
tudo aquilo que está a ser feito hoje. Este é que é o meu receio.
Esta é a minha preocupação.

A lei 15/18 de 26 de Dezembro, no seu Artigo 1.º diz que ela só se


aplica às situações resultantes de condenação em processo
penal. Mas o que é que nós assistimos hoje? O Serviço Nacional
de Recuperação de Activos e a PGR no seu todo (com o devido
respeito) aplicam esta lei na fase inicial do processo. Quase todos
os bens que foram apreendidos no âmbito do combate a
corrupção, os prédios do CIF, por aí... por aí... foi com base nessa
Lei, quando ela está a dizer que só se aplica em situações
resultantes de condenações em processo penal. Quer dizer o
quê? Que tem de existir primeiro uma condenação, para que esta

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lei possa ser chamada a colação para responder a determinadas


situações concretas. Fora disso, ela não se aplica. Está aqui a
violação do princípio da legalidade. A própria lei é que diz isso.
Está a ser violado o Artigo 1.º que define o âmbito ou objecto da
sua aplicação.

Eu não acredito que é um problema de interpretação, porque a lei


é expressa e é clara. Não tem nada que nos dificulte compreender
o alcance da norma. Mas, depois esta norma encontra
consistência em outros artigos seguintes. Mas há um outro caso
curioso que está no Artigo 9.º que diz assim: “O Ministério
Público requerer a todo o tempo ao juiz, a apreensão dos
bens”, o arresto, que é apreensão judicial de bens. E no
número 3 diz assim: “Quem ordena o arresto é o juiz”. Mas
depois, vamos encontrar no Artigo 13.º, porque o 12.º cria o
Serviço Nacional de Recuperação de Activos e o 13.º define as
suas atribuições, o seguinte: “Compete ao Serviço Nacional de
Recuperação de Activos: alínea a) Identificar, localizar e
apreender bens”. Há claramente uma incongruência na estrutura
normativa desta lei. Se no Artigo 9º está a dizer que o juiz é que
tem de ordenar a apreensão, é porque o legislador no Artigo 13.º
número 1 da alínea a) disse mais do que aquilo que pretendia.
Logo, é missão nossa enquanto intérpretes e operadores do
Direito e da Justiça, fazer uma interpretação corretiva ou restritiva
para evitar essas incongruências ou antinomias estruturais da
própria lei. Porque o que a lógica do pensamento do legislador nos
aconselha, é, em conclusão, que ele disse mais do que pretendia,
porque o que ele quis dizer é: “Compete ao Serviço Nacional de
Recuperação de Activos identificar, localizar e requerer a
apreensão de bens”. Esqueceu-se de colocar a
palavra “requerer”, porque senão todas as outras normas é que
estariam mal. E não pode ser! Por maioria de razão, esta é a única
norma que está na contramão e então tem de ser corrigida.

Portanto estamos aqui também perante uma incongruência, ou


uma antinomia estrutural do próprio diploma, que pode pôr tudo
isso em causa. E aqui também está em jogo o princípio da
legalidade. Mas também é discutível a aplicação retroactiva desta
mesma lei, porque contém normas de natureza processual-penal e

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de natureza penal. E por isso as pessoas questionam: “Mas como


é que esta lei está a ser aplicada, retroactivamente”? O Artigo 65,
no número 4 da Constituição diz que, “As leis não se aplicam
retroactivamente salvo se for em benefício do destinatário”. E
essas normas não são aplicadas em benefício do seu destinatário.
Antes pelo contrário, agrava a situação das pessoas. E então,
levanta-se aquela discussão: “É correcta a sua aplicação
retroactiva”?

Bom! A nossa Procuradoria tem usado aqui um artifício e eu já


levantei essa questão. E o que me deram a entender é o seguinte:
eles usam sempre a figura do crime continuado, para justificar a
aplicação dessa lei à casos ocorridos antes da sua entrada em
vigor, que se entende que arguido continuou a praticar os actos
proibidos e só cessou quando se detectou que esta pessoa estava
em contramão. Mas, esqueceram-se que o crime continuado, do
ponto de vista doutrinário, tem requisitos, até porque o instituto
do crime continuado é em benefício do arguido e não em
desfavor do arguido. Porque ele comete vários crimes e só
responde como se tivesse cometido apenas um.

Mas o que é que nós assistimos? Que as pessoas não olham para
os pressupostos do crime continuado, que é a identidade dos
sujeitos que, em regra, está sempre lá, porque é o cidadão que
era funcionário público que se locupletou presumivelmente do
dinheiro ou dos bens do Estado, e o ofendido é o Estado.
Portanto, há aqui uma identidade de sujeitos que não está em
causa. Mas há um outro problema, que é a identidade espacial e
temporal. O crime continuado não pode ser um acto praticado
ontem e dois dias depois você vai lá outra vez e tira um outro
objecto. Nestas situações já não há crime continuado. O tolerável
é até dentro das 24 horas. Se eu vou a sua casa de alguém
subtrair um rádio e levo para minha casa, regresso, verifico que
ainda não está ninguém na mesma casa, volto a entrar e tiro o
ferro de engomar, deixo em minha casa, volto outra vez, não está
ninguém, tiro o televisor, se me apanharem com ele, o crime é
continuado. Há entidade de sujeitos, há identidade espacial (o
espaço da acção é o mesmo) e há identidade temporal, porque
está dentro das 24 horas. Mas nós temos assistido casos que

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ocorreram em 2012, outro em 2014, um no Bié, outro em


Benguela, outro em Luanda e traz-se à colação a figura do crime
continuado para se legitimar a aplicação desse diploma.

Eu poderia falar muito mais coisas aqui, mas só para vos dizer
que todas essas insuficiências que infelizmente muita gente faz
para agradar o Chefe, estão a enterrá-lo. Como aconteceu no
passado, estamos a repetir a história. Eu só não quero é que ao
Presidente João Lourenço amanhã, terminados os seus
mandatos, venha a acontecer aquilo que aconteceu com José
Eduardo dos Santos. E, portanto, quem é amigo do Presidente
João Lourenço, quem de facto está interessado em ajudar Angola
a melhorar e a ajudar o Executivo a governar melhor, tem que ter
a hombridade e a coragem intelectual de dizer as coisas em fórum
próprio. E este é um fórum apropriado, porque aqui estamos num
debate académico. Portanto, eu falo a vontade, assumo e assino
por baixo.

A outra questão é a Lei da Probidade. Não se vai conseguir


combater a corrupção em Angola, na minha perspectiva humilde,
continuando a ter declarações de rendimento ocultas em
envelopes A/4 selados. Não estou a pedir que se publique no
Diário da República. Não é isso. Não é assim noutros países e o
exemplo de Portugal está aí. Há um banco de dados que é
público, onde qualquer um tem acesso. Se o meu amigo Zé Carlos
for nomeado governador não sei de onde, se eu quiser saber com
quanto, ou com que bens é que ele entrou quando nomeado para
o exercício daquele cargo, bastará ir ao site digitar o seu nome e
aparece tudo: se entrou com um carro chefe máquina que ele
gosta muito, se mais um camião.... Volvidos dois anos posso voltar
para nova consulta: “Eh pá! O Zé Carlos já tem uma frota de
caminhões, têm três padarias, tem mais não sei o quê?...” e
posso atacar e exigir que ele justifique onde foi que tirou dinheiro
para comprar tudo isso. Até pode justificar, que foi a um banco e
pediu dinheiro emprestado..., mas tem de justificar o crescimento
brusco do seu património. Porque aquilo enquanto ficar fechado,
até eu se for chamado amanhã para exercer esse cargo, também
posso pensar, como se diz na gíria, que “agora chegou a minha
vez”. Então, a primeira intenção é encher o bolso. E se não

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cometer nada, se ninguém me apanhar a cometer nada, quando


sair recebo o envelope fechado e até já...

Entendo que o combate a corrupção, mais do que aprovarmos


boas leis, temos de identificar e atacar as causas. Porque o que
temos assistido até hoje, é o ataque aos efeitos da corrupção. Isto
é: quando ouvimos dizer que há alguém que deve ser indiciado
por crime de corrupção, o crime está consumado. E, portanto, aí
estamos a atacar o que é? Os efeitos da corrupção. Estamos a
tapar o sol com a peneira e o sol passa. Por isso é que eu disse
no início, que as causas continuam as mesmas, e estão lá. Então,
qualquer um de nós (não é falar mal dos outros) nessas
circunstâncias e naquelas condições, faríamos igual ou pior que
aqueles que estão lá hoje. E muita gente aqui em baixo critica os
outros que estão lá em cima. Mas quando chegam lá ficam piores.
Isso não é mentira!

Portanto, temos de atacar as causas. Penso que algumas delas


poderia passar rapidamente a enumerá-las. Temos o problema
dos salários que são míseros. Se o Estado pagar bem os
funcionários públicos, ninguém vai aceitar pôr em risco o seu
futuro profissional por causa de uma gasosa de mil kwanzas. O
meu pai foi funcionário dos Serviços de Identificação Civil no
tempo colonial, e eu nunca o vi a receber gasosa. Tinha um salário
que permitia sustentar a família por 30 dias.

Outra questão importante, é a falta de outras formas ou meios de


pagamento. Aqui tudo tem de se comprar a pronto: queres uma
arca, tens de ter os trezentos mil. No tempo colonial - aqui há
muitos mais velhos que sabem disso - pagava-se à letra.
Chamavam-se a prestações. Você ia a uma loja, levava uma
declaração de serviço de uma instituição idónea, e podia levar os
eletrodomésticos. E todos os meses era descontado no seu
salário. Parece um método supérfluo, mas uma das principais
causas da corrupção é a ausência de outras formas de
pagamento, o que faz com que a generalidade das famílias vivam
sufocadas. E às vezes, as pessoas são obrigadas, mesmo que,
involuntariamente, a envolver-se em esquemas.

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Tenho citado muitas vezes o seguinte exemplo: o polícia que sai à


rua para regular o trânsito, para garantir a segurança pública, de
repente recebe uma chamada telefónica da mulher a dizer que os
miúdos não vão à escola, porque o gás de cozinha acabou e não
tem dinheiro para comprar outra garrafa. Ele está na rua, põe as
mãos nos bolsos e não tem dinheiro nenhum. Olha para o
calendário, vê que ainda é dia 12 e percebe que o final do mês
ainda está longe. Manda parar um automobilista que violou as
regras de trânsito, e que lhe entrega a carta de condução com mil
kwanzas no meio. Ele não vai olhar para trás. Está aí a solução
para comprar o gás.

E tudo começa por aí. Não há pequeno sem grande, nem há


grande sem pequeno. E isso está provado filosoficamente.
Ninguém tem um problema menor se não tiver um problema
maior. E o contrário também é verdade. Não me podem dizer que
esse telefone é grande se não existir o telefone pequeno. Esse
telefone passou a ser grande, depois surgiram os prós, e o que
era normal virou pequeno. Se não se resolve os problemas
pequenos, não se consegue resolver os grandes problemas. Esta
é que é a grande realidade.

Poderíamos citar aqui outras situações relativamente às causas


da corrupção. As famílias estão desestruturadas, estão cada vez
mais empobrecidas, há uma inversão de valores e as pessoas
começam a crescer com determinados hábitos estranhos em
relação ao que eram as nossas tradições éticas e morais da igreja.
Quase todos nós crescemos na igreja. Hoje há casas em que o
pai já não manda. Quem manda é o filho, porque é ele quem
consegue trazer o sustento para casa. E o pai não consegue
repreender o filho.

Portanto, há aqui uma série de situações que é preciso elencar,


para que possamos definir uma verdadeira estratégia de combate
a corrupção. E não apenas ficarmos preocupados se prenderam
mais a ou b, batermos palmas porque hoje prenderam o fulano e
amanhã vão prender o Joaquim. Mas depois não vemos o
resultado desse combate. Ou vemos que o resultado, afinal é
desastroso: são os Kero’s que fecharam, uns estão a trabalhar a

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meio gás e outros não conseguiram abrir até hoje; os Kandando’s


que estão em decadência, não têm a qualidade que tinham no
passado; é a EFACEC que de repente ficou com o Estado
português e não conseguimos dizer nada porque estamos de
mãos atadas, e outras coisas mais...

Resumindo e concluindo, acho que nós temos muito que fazer, e


para isso entendo que é importante um debate inclusivo, ouvir
todas as forças vivas da nação, transformar o combate a
corrupção num combate de todos os angolanos contra este mal
que enferma a nossa sociedade, impede o desenvolvimento e a
promoção do bem-estar social de todos.

Também entendo que é preciso, no âmbito da dita Revisão


Constitucional - eu disse e volto a dizer - que uma das fontes da
corrupção também está no nosso sistema de governo, respeitando
a opinião alheia. Nós temos um sistema de governo, que dizem
ser presidencial, em que o único gestor da coisa pública é o
Presidente da República. Eu acho até um risco para a imagem e
prestígio da instituição Presidente da República, porque fica
exposto num campo ao descoberto. E no nosso sistema, uma vez
que os ministros não têm competências próprias, são meros
auxiliares do Titular do Poder Executivo, sempre que praticarem
um acto duvidoso, o Presidente tem de ser chamado para
confirmar se deu ou não aquela orientação. Isto banaliza,
vulgariza a instituição Presidente da República.

É importante sermos mais ousados a repensarmos esse sistema.


E penso que o apelo da Igreja Católica vai também um pouco
nesse sentido, para que possamos encontrar um outro modelo de
governação. Pessoalmente, sou defensor de um modelo semi-
presidencial, em que o Presidente da República deixa de ser
árbitro e jogador, passa a ser o guardião último da Constituição e
o mediador entre os três outros poderes soberanos, o Legislativo,
o Executivo e o Judicial.

O modelo semi-presidencial permite uma partilha de poder e de


responsabilidades, que resguarda melhor a instituição Presidente
da República. Que haja um primeiro-ministro que lidera o

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Executivo, governa e presta contas periodicamente aos


representantes do dono do dinheiro que é do erário, que são os
nossos deputados. Por outro lado, a eleição e nomeação, dos
Presidentes dos Tribunais Superiores, para mim também é uma
janela que enferma este sistema que nós temos actualmente. Eu
sou apologista que os Presidentes dos Tribunais Superiores
devem ser os mais votados entre pares. É o mais votado quem
deve ser, formalmente, nomeado pelo Presidente da República.
Não estou a dizer que ele deixa de nomear. Nomeia formalmente,
mas não escolhe dentre eles, qual deve ser. Porque aí,
obviamente, somos seres humanos e todos nós temos o coração
do lado esquerdo. Eu vou escolher aquela pessoa que é mais
amiga. Não vou escolher uma pessoa que eu sei que me vai
afrontar, ou que não vai permitir que eu faça o que eu queira ou
não fazer.

Também entendo que o Procurador-Geral deve ser eleito no


mesmo modelo, entre pares, e o mais votado é quem deve ser
confirmado em nomeação. Assim como nalguns cargos, os
Concelhos de Administração de empresas públicas devem ser
propostas as pessoas a nomear à Assembleia nacional, como se
faz hoje no Banco Nacional, sendo um bom exemplo a seguir. O
governador é proposto pelo Presidente, mas passa pelo crivo da
Assembleia Nacional. Penso também que ao nível do Executivo,
como ocorre no Brasil, nos Estados Unidos também é assim, tem
de passar pelo crivo da Assembleia para que haja aqui uma
partilha de poderes e de responsabilidades e no final, se existir
alguma irregularidade neste sistema, todos eles são chamados à
responsabilidade, cada um à medida da sua participação e
intervenção. E não deixarmos tudo para o Presidente da
República, como tem acontecido. E enquanto estiver no exercício
do poder, toda a gente bate palmas, mas quando sai, toda a gente
arremessa pedras. Aconteceu com José Eduardo, só espero que
não aconteça com o Presidente João Lourenço.

Tenho dito e muito obrigado!

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Perguntas e respostas
Sobre a Conferência...

Essa iniciativa de debate é muito positiva, e por isso acho que no


final se deveria produzir um relatório, para que se tenha
conhecimento mais amplo do que aqui está a ocorrer.
Moçambique, por exemplo, tem o formato de Congresso da
Justiça que se realiza de dois em dois anos, cuja abertura é feita
pelo Mais Alto Magistrado da Nação, e as decisões e as propostas
vão para os órgãos competentes do Estado para análise e
acolhimento. Esta seria uma forma de contribuirmos, de forma
urbana e positiva, para melhorar a qualidade da administração da
Justiça que todos nós clamamos.

Este é o caminho certo para voltar a credibilizar as instituições.


Agora, fica mal na fotografia até o próprio Presidente da República
que usou o Artigo 108 número 5 para tirar a senhora (Exalgina
Gamboa, ex-juíza Presidente do Tribunal de Contas) e não usa o
mesmo Artigo 108 número 5 para tirar o Presidente do Tribunal
Supremo. Eles estão na mesma situação. Eu não estou a dizer
que eles são culpados. Não! Muito longe disso. Estou preocupado
com a imagem das instituições, com a credibilidade das
instituições. E parece que ainda continua a dirigir sessões do
Conselho Superior da Magistratura Judicial. Em Portugal, vocês
viram que aquela senhora que foi administradora da TAP só
porque recebeu determinada importância de indemnização, no
exercício de novas funções de Secretária de Estado, levantou-se a
poeira até ao nível da Assembleia da República, de imediato
demitiu-se para proteger a imagem e credibilidade da instituição
de que era titular. E deveríamos também seguir os bons exemplos
lá de fora.

Porquê que o combate à corrupção não ataca as causas?


Quem rouba galinhas é preso e quem rouba milhões está em
liberdade?

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Põe-se também aqui, como se diz na doutrina, o próprio carácter


de classe do Direito Penal. O meu professor, Dr. Orlando
Rodrigues, perguntava nas suas lições: “Você sabe porque é
que o parricídio é um homicídio qualificado e por isso punido
com uma pena mais grave, mas quando o pai mata o filho é
um homicídio com outro qualquer?”

A resposta é simples: “Porque quem fez a lei foi o pai”.

Claro que o pai ao fazer a lei, fez no sentido de assegurar a sua


própria protecção. Quem faz a lei é quem tem dinheiro e não
quem não tem dinheiro. Mesmo quando abordamos essa matéria
do combate a corrupção, o Código Penal actual, relativamente ao
peculato, foi público que o Presidente da República, a
determinada altura, devolveu o diploma para se agravar a pena.
Mas se vocês olharem para a lei, do ponto de vista técnico, a
penalidade aplicada ao peculato hoje é mais branda até que
aquela que era aplicada no Código Penal Anterior, que no Artigo
421.º número 5, conjugado com o 113.º, que manda agravar,
aplicando-se a imediatamente superior, isto é, a pena era de 12 a
16 anos de prisão maior. Hoje, no Novo Código Penal, a pena vai
de 5 a 14 anos. Até no mínimo é uma penalidade mais branda que
a que constava na lei antiga.

Enganaram o Presidente. O diploma voltou, simularam que


agravaram a pena, o Presidente não viu, porque não entende e
aceitou. Mas se compararmos, vamos concluir que enganaram o
Presidente. Hoje, o crime de peculato é punido com uma pena
mais branda que ontem, porque ontem no mínimo você era
condenado a 12 anos e no máximo 16. Hoje você no mínimo pode
ser condenado a 5 e no máximo 14. Então como fazer a
comparação de agravamento? Não há. Houve sim, uma redução.
Portanto, quem fez a lei é quem tem dinheiro e ludibriou a
intenção política do próprio Presidente da República.

Sobre a apreensão de meios e bens e a sua distribuição a


PGR e tribunais na ordem dos 10% do valor das apreensões...

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Para mim, isso é inconstitucional, porque os bens apreendidos


constituem receitas do Estado. E tudo o que é receita do Estado
deve constar no Orçamento Geral do Estado. Não pode o
Presidente da República dispor de bens públicos, só porque foram
apreendidos, fora do Orçamento. O único instrumento de gestão
da coisa pública, constitucionalmente reconhecido, é o Orçamento
Geral do Estado. E isso está nas competências absolutas da
Assembleia Nacional. O Presidente da República deveria propor à
Assembleia, que o aproveitamento do que possa resultar das
apreensões, 10%, beneficiem os órgãos da administração da
justiça e não apenas a PGR e os tribunais. Porque não são
apenas eles que trabalham no combate à corrupção. A
Investigação também.

Podem argumentar que isso não é para beneficiar pessoalmente


os magistrados, mas sim a instituições, para criar (ou melhorar)
condições de trabalho. Mas os últimos beneficiários são mesmo os
magistrados. E eu comparo essa situação com o instituto da Cota
litis que é proibido aos advogados. No estatuto da Ordem, ao
advogado é proibido que se transforme em parte do problema,
porque senão, ele usa todo o tipo de artifícios para ganhar a
causa. Eu sou contra essa ideia de ganhar causas. Essa é outra
janela de entrada da corrupção na administração da Justiça. É
ganhar causas. E quando um advogado acha que só deve ganhar
causas, e já tem nome na praça que só ganha causas, tudo faz
para continuar a ganhar causas, mesmo que para tal, tenha que
trilhar caminhos ínvios.

Eu acho que é inconstitucional, e dei uma entrevista no ano


passado ao semanário Expansão em que considerei isso como a
institucionalização da corrupção do poder político aos órgãos
judiciais e judiciários, porque está aqui a PGR, porque o juiz, o
procurador, não se deve sentir parte do problema. E quando lhe
aparece um processo de milhões de dólares, ele começa a fazer
as contas com base nesses 10% dos milhões que dão outros
milhões, que vão dar para melhorar as condições de
funcionamento do tribunal, comprar mais carros, mudar os
aparelhos de ar condicionado que já não trabalham bem, mudar o
chão.... Portanto fere a verdade material e põe em causa a boa

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administração da Justiça. Na minha opinião esse diploma é


inconstitucional.

Sobre se a inconstitucionalidade não pode ser citada pela


Ordem de Advogados...

Pode sim, e a Ordem já fez isso, inclusivamente na Lei Sobre as


Medidas Cautelares levantou uma inconstitucionalidade que eu já
havia levantado muito antes no caso Quim Ribeiro (que já
transitou em julgado e por isso posso falar dele à vontade). E a
questão era por que razão o Ministério Público aplicava medidas
de coação privativas de liberdade. Eu já coloquei essa questão em
2010/2011. E há um Acórdão do Tribunal Constitucional que dizia,
que “estava bem assim”, porque não há nenhuma norma na
Constituição que consagra a existência do Juiz nesta fase inicial
do processo, hoje chamado de Juiz das Garantias, e fazia-se uma
interpretação errada do Artigo 186, alínea f, primeira parte e
segunda que diz “que o Ministério Público dirige a instrução
preparatória”. E a ideia das pessoas sobre “dirigir a instrução
preparatória” era de que ele era o dono e senhor da instrução
preparatória. Faz e desfaz na instrução preparatória, esquecendo-
se que na alínea f tem uma vírgula e uma segunda parte que
diz, “sem prejuízo da fiscalização das garantias fundamentais
dos cidadãos por Magistrado Judicial, nos termos da lei”.

Portanto, eu nessa altura já defendia que a Constituição


consagrava que um juiz, (chamem o nome que se quiser, das
garantias, das liberdades, ou de instrução ou outro) que não dirige
a instrução preparatória nem era dono e senhor da instrução
preparatória, mas sim, que fiscaliza e garante o respeito pela
liberdade e garantias fundamentais dos cidadãos. Esse é o seu
papel. Nessa altura já defendia isso e diziam que não. Mas depois
veio a Ordem de Advogados a levantar o mesmo assunto, e o
Tribunal Constitucional produziu uma decisão muito interessante.
Reconheceu a inconstitucionalidade da norma, mas repôs a
inconstitucionalidade dessa mesma norma, referindo o
seguinte: “No entanto, enquanto não estiverem criadas as
condições para o funcionamento do Juiz de Garantias, o
Ministério Público pode continuar a aplicar as medidas de

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coação privativas da liberdade, até que o Estado crie


condições”. Se o Estado não criou em cerca de cinco ou dez
anos, não ia criar num ano. E estamos agora em 2023, já se
passaram cerca de três ou quatro anos e só agora, em Maio, é
que se vai ensaiar essa figura.

É só para ver que naquela altura tinha pessoas, até


constitucionalistas, que defendiam que nós não tínhamos
consagrada a figura do Juiz de Garantias no nosso ordenamento
jurídico-constitucional. Porque se fazem interpretações isoladas
das normas, quando elas não devem ser interpretadas fora do
contexto em que estão inseridas, em homenagem ao princípio da
unidade e da harmonia da ordem jurídica. E nessa altura usando
como argumento interpretativo da Constituição, a referência ao nº
2 do Artigo 34, que diz “que para abrir a carta de um cidadão é
preciso autorização de um juiz”. E então para prender o dono
da carta não é preciso também autorização do juiz? Não faz
sentido! Se para você abrir a minha carta tem de ter autorização
do juiz, então para prender o dono da carta não precisa de
autorização daquele entidade? Há aqui uma inversão de valores.

É essa a questão que tem de ser vista, da mesma forma que


induziram o Presidente da República em erro quando interpretou o
Artigo 175.º fora da Constituição. Como que os Tribunais não são
órgãos de soberania independentes na sala de audiência, mas
fora da sala de audiências, o Presidente, na qualidade de Mais
Alto Magistrado da Nação, manda neles. Este artigo deve ser
interpretado em conjugação com outras normas da Constituição,
v.g., o Artigo 2º, número 2, o 105.º, o 108.º e outros.... É preciso
conjugar-se tudo isso para se compreender o alcance dessa
norma. E, portanto, são situações que nós enquanto estudiosos e
juristas devemos ter a coragem de abordar em sede própria e
trazermos soluções para quem de direito, assim, possa corrigir a
situação.

Já ataquei essas questões de inconstitucionalidades aqui


referidas, mas as vezes fico com a impressão de que isso é
intencional, que alguém não faz correctamente e por uma questão
de orgulho, diz que enquanto eu estiver aqui, eu mando e isso vai

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continuar, a espera que saia, para depois acontecer o mesmo que


aconteceu ao ex-Presidente José Eduardo dos Santos.

Não façam isso com o Presidente João Lourenço.

“Enganaram o Presidente. O diploma (Novo Código Penal) voltou, simularam que


agravaram a pena, o Presidente não viu, porque não entende e aceitou. Mas se
compararmos, vamos concluir que enganaram o Presidente. Hoje, o crime de
peculato é punido com uma pena mais branda que ontem, porque ontem no
mínimo você era condenado a 12 anos e no máximo 16. Hoje você no mínimo
pode ser condenado a 5 e no máximo 14. Então como fazer a comparação de
agravamento? Não há. Houve sim, uma redução. Portanto, quem fez a lei é quem
tem dinheiro e ludibriou a intenção política do próprio Presidente da República”.

O sonho, ainda é o mesmo e o desejo, a vontade, tal como o


comprometimento com causas nobres e de todos permanecem vivos. E por
isso, estamos aqui. Aposte em nós. Siga-nos!
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