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Os patos de Rui Barbosa

Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Chegando lá,
constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e,
surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
- Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e
sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes
isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e
honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te
reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, diz:
"- Dotô, eu levo ou deixo os pato?"

Falar bonito

Entre nós há uma unanimidade. Adoramos gente que fala bonito. Manipular
palavras com esmero é pura sedução. Com ela sonhamos à noite e nos cochilos
diurnos. A fluência verbal abre portas. Dirime controvérsias. Conquista adeptos. O
orador desenvolto solta o verbo de improviso. Cativa platéias. O que diz? Não
importa. É comum ouvir o suspiro de um deslumbrado. Depois, o comentário:

— Que maravilha! Como ele é culto!

Não captei muita coisa. Mas ele fala tão beeeeeeeeeeem. Ah! A adoração fica por conta do falar. Não do
dizer. Os políticos sabem disso. Não poupam vênias e excelências. Períodos longos, vocábulos
complicados, mil orações intercaladas, metáforas, desvios pra lá e pra cá, vale tudo. No final, a gente
não entende o recado. Mas bate palmas.

Como explicar a verbolatria? “O brasileiro desconfia do que entende”, diagnosticou Nelson Rodrigues.
“O brasileiro tem alma de vira-lata. Sempre se sente diminuído”, deduziu Glauber Rocha. Antonio
Cândido chamou o fenômeno de deslumbramento do colonizado. É mais ou menos isto: a meia dúzia de
instruídos que existiam no Brasil dos séculos 17, 18 e 19 estudaram na Europa. Chegando a Pindorama,
encontravam uma população formada por analfabetos. Para quem falar? Para quem escrever? Fizeram
uma mágica. O corpo ficou aqui, mas a cabeça em Lisboa, Paris ou Londres. Quando abriam a boca ou
pegavam a pena, dirigiam-se a um público imaginário — culto e refinado.

FALAR BONITO

A moda pegou. Falar bonito tornou-se obsessão. Virou motivo de gozação de escritores e humoristas.
Quer um exemplo? Vale lembrar a piada que ironiza Rui Barbosa. O baiano exibido ignorava o leitor ou o
ouvinte. Só tinha olhos para a ponta do nariz ou o próprio umbigo. Exibia erudição a quem se
apresentasse a sua frente. Eis a história:

Ao chegar em casa, Rui Barbosa ouviu um barulho estranho vindo do quintal. Chegando lá,
constatou haver um ladrão tentando levar os patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do
indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com as amadas penosas, disse-lhe:

— Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas pelo ato
vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à
socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia
de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o
farei com tal ímpeto que te reduzirei à qüinquagésima potência que o vulgo denomina nada.

O ladrão, confuso, perguntou:

— Doutor, eu levo ou deixo os patos?

RECEITA PARA CHEGAR LÁ

Augusto Marzagão, obcecado por falar e dizer, perdeu a paciência com as páginas de economia de
jornais e revistas. Mandou às redações brincadeira publicada pela Newsweek em 1985. A revista ensina
as pessoas a falar economês sem entender patavina de economia. Em outras palavras: ensina os sabidos
a fazer o leitor de bobo. Como? A publicação americana agrupou, em três colunas, as seguintes palavras
mágicas:

Coluna 1: programação, estratégia, mobilidade, planificação, dinâmica, flexibilidade, implementação,


instrumentação, retroação, projeção. Coluna 2: funcional, operacional, dimensional, transacional,
estrutural, global, direcional, opcional, central, logística. Coluna 3: sistemática, integrada, equilibrada,
totalizada, insumida, balanceada, coordenada, combinada, estabilizada, paralela.

E agora? Para fazer carreira com o discurso empolado, basta escolher ao acaso três vocábulos — um de
cada coluna. A eleição dará, por exemplo, "projeção transacional equilibrada". O trio não diz nada. É
uma tolice. Mas impressiona os bobos na casca do ovo.

RESUMO DA ÓPERA

Quer impressionar? Siga o exemplo de Rui Barbosa ou a receita da Newsweek. Quer dar o recado? Seja
claro e direto como o ladrão de patos. Você decide.

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