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Dois loucos no bairro

Um passa os dias
chutando postes para ver se acendem.

O outro às noites
Apagando palavras
Contra um papel branco

Todo bairro tem um louco


Que o bairro trata bem
Só falta mais um pouco
Pra eu ser tratado também.

Paulo Leminski, 1978

Dedico este trabalho a todas as pessoas


que são marginalizadas por seu sofrimento
e que, ao passarem pela minha vida,
despertaram um fascínio por essa
instigante aventura que é o ser humano.

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2
AGRADECIMENTOS
Primeiramente quero agradecer meus pais, pelo apoio constante em todos os momentos da minha
vida, incluindo, especialmente, esses dois anos e meio de Mestrado. Sem o apoio amoroso que me
proporcionaram, nada disso seria possível. Sou muito grata por terem me dado desde sempre a
oportunidade de estudar e “virar alguém na vida”. Ao meu pai, agradeço o carinho, a atenção e a
prestatividade para resolver as minhas dificuldades com a informática. Sem o presente que me deu no
início do Mestrado, meu trabalho teria sido muito mais difícil. À minha mãe agradeço a torcida calorosa e
o empenho em me mostrar tudo o que dissesse respeito ao meu trabalho. Aos dois a minha sincera
gratidão e amor.

A minha irmã Carolina, muito obrigada pela paciência com que sempre acolheu os meus
devaneios. Agradeço o carinho e a assertividade, que sempre foram a sua marca e que muito me
ensinaram. Valeu pelo bom humor nas horas em que eu precisava.

À Angela, minha orientadora e “mãe acadêmica”, agradeço de todo o coração o incentivo para
que esse trabalho se tornasse realidade. A confiança no meu trabalho e a disponibilidade para ensinar,
ouvir, dividir, fizeram com que nossa relação ultrapassasse os limites frios das paredes acadêmicas e se
transformasse em uma amizade de muito valor em minha vida. Amizade essa que já vem de outros
tempos, mas que vem se consolidando a cada dia, e que assim continue. Muito grata pela aposta no meu
crescimento.

Agradeço também à Margarida, minha co-orientadora de Vitória, que desde o momento que nos
conhecemos, foi uma grande incentivadora do trabalho. Obrigada pelas sugestões e pela leitura atenciosa
do trabalho.

Aos amigos do LAPES que sempre compartilharam das angústias e descobertas do trabalho
acadêmico. Lembro com felicidade todas as vezes que apresentei o trabalho nas reuniões e fui
contemplada com boas sugestões, críticas e incentivo, muito incentivo. A vocês todos, que tornaram essa
caminhada mais leve e agradável, a minha gratidão e amizade.

À Denise Jodelet dedico minha admiração pelo seu trabalho de fôlego na Colônia Familiar
d’Ainay-le-Chateau. Um trabalho belo e inovador que inspirou a elaboração da presente pesquisa e que
lançou uma nova luz às questões relativas à saúde mental. Estendo minha admiração a todos os teóricos
que se dedicaram a pensar este tema tão instigante que é a loucura, na tentativa de conferir um sentido a
este fenômeno, desmistificando-o e rompendo preconceitos.

Agradeço à INVERSO – ONG em Saúde Mental que, juntamente com Karime, Lídia, Ivan,
Renata, e tantos outros, ajudei a conceber e hoje a vejo andar com suas próprias pernas, já virando “quase
gente grande”. Agradeço imensamente a todos que participaram desse sonho que se transformou em
realidade. A INVERSO sempre foi um lugar de aprendizagens e desafios que me fizeram crescer e
fortalecer a crença em uma saúde mental livre das amarras institucionais e da violência
manicomial.Agradeço também a Fabiana, Claudete, Merê, Marlene, Lorena, Janisse, Rose, pela força de
trabalho e a todos os freqüentadores que dão vida àquele espaço e que fazem da INVERSO o seu lugar de
encontro e convivência. O meu agradecimento especial à Eva Faleiros, que com sua paixão pela saúde
mental, seu apoio constante e sua disposição para o engrandecimento da vida humana, vem sustentando a
continuidade desse trabalho.

Agradeço também aos amigos, que espero, compreendam a minha ausência nesses últimos dois
anos em que estive mergulhada na elaboração desse trabalho. Valeu a força e a torcida de todos vocês
para que eu conseguisse terminar e espero retribuir todo o carinho e compreensão, lembrando sempre que
a amizade é uma das coisas mais preciosas da vida.

Das várias amigas, quero agradecer uma em especial, pelo apoio e presença constante durante
esse período do Mestrado. À Ana Flávia, que sempre me contagiou com sua empolgação com a vida

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acadêmica, a minha eterna gratidão. Sua companhia nas disciplinas e trabalhos acadêmicos foi um
presente, pelas coisas que me ensinou. A você o meu carinho e minha eterna amizade.

E por falar em Ana, também sou muito grata à Ana Carmem, pela força que vêm me dando nos
últimos meses, quando eu me encontrava quase sem energia para concluir o que tinha que ser concluído.
A você Ana, o meu carinho e o desejo de muita Luz, Paz e Amor.

A Fredinho Maia, o meu muito obrigada por ter lido tão atentamente a primeira parte deste
trabalho, me incentivando sempre com suas palavras otimistas e empolgadas com a vida.
Ao Luiz André, meu primo e amigo, o meu agradecimento por ter traduzido o resumo para o
inglês, o que me poupou algumas horas de trabalho.

À Paula que com seu toque especial confeccionou as capas da dissertação, o meu carinho
especial.

Agradeço também a compreensão e a paciência dos funcionários da coordenação da Pós-


Graduação do Instituto de Psicologia, que sempre atenderam prontamente aos (inúmeros) pedidos que
foram feitos. Agradeço também o apoio dos órgãos financiadores CNPq e CAPES ⁄ PROCAD que
possibilitaram a continuidade do curso de Mestrado. O apoio desses órgãos possibilitou a viagem a
Campinas para realizar a pesquisa de campo.

Em Campinas são muitos os agradecimentos, pois desde meu primeiro momento na cidade, fui
presenteada com uma aconchegante recepção por parte de todos.

Primeiramente, agradeço minhas companheiras de casa: Marcela, Regina e a doce Pâmela, que se
tornaram amigas, parceiras de farra e companhia para os momentos de solidão e saudade. À Marcela, o
meu agradecimento por ter aberto sua casa, sua vida e ter compartilhado comigo o seu ciclo de amizades,
que foram muito valiosas nos seis meses que morei em Campinas.

Aos “meninos do Corindó”, que me “introduziram” na cidade, preenchendo com alegria todos os
momentos que estivemos juntos. A amizade de todos, especialmente, Carlos, Ítalo, Guido e Baldú foram
preciosas e me levaram a conhecer outras pessoas, igualmente preciosas: Marcão, a querida Ana Rita e
Cris. A todos vocês o meu carinho.

Também sou grata aos amigos da UDV que fiz em Campinas e que me fizeram sentir como se
estivesse em casa.

Ao querido Pablo, minha gratidão pela companhia e pelos vários bons momentos em que nos
divertimos juntos. Obrigada por aceitar o convite para ser meu co orientador extra-oficial, função que
cumpriu com esmero e dedicação. Obrigada pelos toques valiosos na construção da pesquisa de campo. A
você, meu grande amigo, o meu eterno carinho.

Da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, agradeço primeiramente a Florianita Campos,


que foi o meu primeiro contato na cidade. Pela Florianita, cheguei à Clarice, que desde o primeiro
momento se mostrou aberta e acolhedora, me carregando para as reuniões e me apresentando para as
demais pessoas. Muito agradecida por ter sido a minha “porta de entrada” para a rede de saúde mental.

Sou grata a todas as gerentes dos CAPS, que me receberam muito bem e disponibilizaram as
informações que precisava. Agradeço a Carla, que me mostrou uma realidade diferente da vivida no
Cândido Ferreira, com seu jeito festivo e simpático. A Rosana agradeço pela atenção em me mostrar o seu
“estimado” CAPS e pela tranqüilidade que transmite para as pessoas que se aproximam. A Patrícia
agradeço a atenção e a companhia nos sambas. A Rosa pela preciosidade das informações oferecidas.

Agradeço em especial a Telma Palmieri, que além de me contar todas as histórias possíveis e
imagináveis, me auxiliando a destrinchar a vivência do CAPS Esperança, se tornou uma amiga e

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companheira de “balada”, compartilhando momentos de alegria. Sua amizade e disponibilidade foram
fundamentais para a realização dessa pesquisa.

Agradeço também ao Márcio, que me apresentou o Núcleo Clínico e me abriu as portas das
residências terapêuticas, ao Lairto, que com seu jeito tranqüilo e sensível, abriu as portas do Centro de
Convivência e Arte e me apresentou todo o Cândido Ferreira em minha primeira visita. Valeu pelas
conversas e pela recepção.

Um abraço afetuoso também para a Dani, do NAC e Emelice, por ter me recebido com seu jeito
gracioso no Centro de Convivência e ter me escutado em alguns momentos de angústia acadêmica.
Agradeço também à Mariana, a garota “mundial”, pela companhia e por ter aberto espaço para que
pudéssemos compartilhar todas as surpresas e perplexidades que aquele cotidiano inovador nos causavam.

Do Cândido Ferreira, agradeço de uma forma geral toda a equipe, que parece ser especialista em
receber pessoas de fora. Ao Dr Oki, a minha enorme admiração pela dedicação e simplicidade no trato
com as pessoas que, de certa forma, dão o tom das relações que se estabelecem no Cândido.

Não poderia deixar de agradecer imensamente ao Willians Valentini pelas conversas


maravilhosas e esclarecedoras, nas quais aprendi muito sobre o que é o respeito, a liberdade e a confiança
no ser humano. O modo sensato e respeitador como lidava com as pessoas, com os grupos e com a
instituição despertou a minha admiração e me fez crer que é possível um novo “projeto de humanidade”,
expressão que entrou para o meu vocabulário após conhece-lo.

Agradeço, sobretudo, aos usuários dos serviços de saúde mental de Campinas que me acolheram
de uma forma bastante carinhosa e me ensinaram muitas coisas preciosas com suas histórias de vida e
com o prazer da convivência. A lembrança de cada um permanecerá viva por muito tempo ainda, pois fui
cativada pelo olhar e pelo aconchego que me proporcionaram e que me fizeram desacreditar nos
estereótipos que eu, mesmo sem querer, ainda carregava comigo.

Neste sentido, agradeço a todas as pessoas que em momentos difíceis de suas vidas - nas quais
foram chamadas de usuárias, loucas, portadoras de transtornos mentais, acometidas de intenso sofrimento
psíquico (ou qualquer outro nome que se queira dar...) - passaram pela minha vida. Todas essas pessoas
plantaram algo de precioso no meu coração, despertando em mim um interesse em conhecer cada vez
mais a fundo todos os cantos e caminhos dessa estranha e maravilhosa aventura que se chama ser
humano.

Por último, quero demonstrar a minha eterna gratidão ao meu companheiro Shêro. Sua paciência,
compreensão, incentivo e sobretudo, seu amor, fizeram com que essa caminhada se tornasse menos árdua.
Com ele venho descobrindo a doçura do cotidiano e desvendando, no dia-a-dia, os segredos da
convivência harmoniosa. Aprendendo o valor da dignidade e do companheirismo. Aprendendo a fazer
mais, a buscar mais, a me doar mais... enfim, “divago, quando o que quero é só dizer te amo”, como diria
Adélia Prado.

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Sumário

AGRADECIMENTOS ................................................................................................................ iii


LISTA DE FIGURAS ................................................................................................................. viii
LISTA DE ANEXOS .................................................................................................................. ix
RESUMO ..................................................................................................................................... x
ABSTRACT ................................................................................................................................. xi

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 13

Parte I
CONTEXTUALIZANDO A LOUCURA .......................... 19

1. A História da Loucura ............................................................................................................ 22


As várias faces da loucura ............................................................................................................. 23
A loucura como fruto da intervenção dos deuses ............................................................... 24
Loucura: a batalha perdida do homem contra suas paixões ............................................... 33
A loucura como doença do corpo ....................................................................................... 35
A loucura entre Deus e o Diabo .................................................................................................... 44
A loucura do cotidiano .................................................................................................................. 50
O aprisionamento da loucura ......................................................................................................... 58

2. Breve história da Psiquiatria e sua inserção na cultura brasileira ..................................... 66


A chegada da Psiquiatria no Brasil ................................................................................................ 72
A loucura na colônia ...................................................................................................................... 72
Nacionalismo e República: as transformações no tratamento da loucura .................................... 78
A ampliação da Psiquiatria no Brasil: do Tratamento Moral à Higiene Mental ........................... 80
A instauração do modelo manicomial e seus contrapontos ........................................................... 85
A indústria da loucura ................................................................................................................... 90

3. A Reforma Psiquiátrica .......................................................................................................... 92


Os antecedentes históricos da Reforma Psiquiátrica Brasileira .................................................... 94
Comunidades Terapêuticas e Psicoterapia Institucional .................................................... 94
Psicoterapia de Setor e Psiquiatria Preventiva .............................................................. 96
Antipsiquiatria e Psiquiatria Democrática Italiana (tradição basagliana) .......................... 98

4. A Reforma Psiquiátrica no Brasil .......................................................................................... 110


A história de uma luta ................................................................................................................... 114
O Movimento Social ..................................................................................................................... 127
O estado da arte da Reforma Psiquiátrica Brasileira ..................................................................... 130
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): o carro chefe da Reforma ................................ 134
Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT): a importância do morar ................................. 140
Reabilitação Psicossocial: a idéia chave para um novo projeto de humanidade ................ 145

Parte II
A APROXIMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS ............. 149

1. Reflexões metodológicas .......................................................................................................... 149


Situando campo de pesquisa .......................................................................................................... 152

6
Ajustando teoria e objeto: a abordagem culturalista e monográfica como opção metodológica .. 159
A construção do desenho da pesquisa ........................................................................................... 161
2. O desenho metodológico ......................................................................................................... 165
Observação participante ................................................................................................................ 165
A memória documentada ............................................................................................................... 170
As entrevistas: os participantes, a elaboração dos roteiros e o contexto em que foram realizadas 172
Procedimento de análise dos dados ............................................................................................... 174

Parte III
O QUE A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS NOS REVELA .......... 176

1. Alguns comentários para início de conversa... ..................................................................... 176

2. A organização da experiência vivida ..................................................................................... 180


A história da saúde mental em Campinas ........................................................................... 181
Os CAPS e o funcionamento da rede ................................................................................. 182

3. A saúde mental em Campinas: uma história de transformação do cuidado ..................... 186


3.1. De Hospital de Dementes de Campinas a Sanatório Dr. Cândido Ferreira (1924 a 1989):
antecedentes históricos da rede de saúde mental de Campinas .................................................... 187
3.2. A Co-Gestão na Saúde Mental. De Sanatório a Serviço de Saúde Cândido Ferreira (1989-
1992) .............................................................................................................................................. 190
A criação da Unidade de Reabilitação de Moradores: o ponto de partida para outras
iniciativas .......................................................................................................................... 192
A criação e trajetória do Hospital Dia ................................................................................ 195
A criação do Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT) ........................................................ 197
3.3. A construção da Rede de Saúde Mental de Campinas: A criação dos CAPS (de 1992...) ..... 199
A criação dos CAPS Integração e Aeroporto: um momento de adversidades ................... 200
A criação do CAPS Estação ............................................................................................... 202
A criação do Caps Antônio da Costa Santos (CAPS Toninho) .......................................... 205
A criação do NAC e NADEC ............................................................................................. 208
CAPS Esperança: uma história de resistências e aprendizagens ........................................ 212
O CAPS Esperança em Nova Campinas ................................................................... 213
O CAPS Esperança no SSCF e no Taquaral ............................................................. 223
O CAPS no “olho do furacão”: algumas reflexões sobre o funcionamento da rede de saúde
mental ............................................................................................................................... 225

4. Tecendo a rede ......................................................................................................................... 231


As residências terapêuticas em Campinas: o valor da convivência .............................................. 233
Centro de Convivência e Arte: aprendendo a delicada arte de conviver ....................................... 237
A contribuição da comunicação para a Reforma Psiquiátrica ....................................................... 244

5. A saúde mental em Campinas: uma tentativa de síntese ..................................................... 250

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 253

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................... 263

ANEXOS ...................................................................................................................................... 270

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LISTA DE FIGURAS

1. O Triunfo de Baco – Velasques (1628) ..................................................................................... 32


2. Expressões das paixões da alma: a coléra - Charles Lebrun ..................................................... 34
3. The Trinity - Lucas Cranach (Renascimento Alemão) .............................................................. 47
4. A Nau dos Loucos - Hyeronimus Bosch ................................................................................... 52
5. A Queda dos Anjos - Peter Brueghel (1562) ............................................................................. 53
6. O jardim das delícias (detalhe) – Hyeronimus Bosch ............................................................... 53
7. Os quatro cavaleiros do apocalipse - Albretch Durer ............................................................... 54
8. Retrato de Erasmo de Roterdam - Albretch Durer .................................................................... 55
9. Prisioneiros se exercitando – Van Gogh ................................................................................... 59
10. Pintura de Emydgio de Barros. Foto retirada do site do Museu do Inconsciente ................... 88
11 Emydgio de Barros no ateliê de terapia ocupacional. Foto tirada do site do Museu do
Inconsciente ............................................................................................................................ 88
12. Pintura de Fernando Diniz. Foto tirada do site do Museu do Inconsciente ............................. 89
13. Nise da Silveira – foto retirada do site do Museu de Imagens do Inconsciente ...................... 112
14. Pintura de Pedro Paulo Ferrarezi – CAPS de Marília ⁄ SP utilizada na publicidade da
III Conferência Nacional de Saúde Mental ............................................................................ 125
15. Cartaz produzido pelo Conselho Federal de Psicologia .......................................................... 126
16. Mapa da cidade de Campinas .................................................................................................. 156
17. Resultado da análise fornecida pelo ALCESTE ...................................................................... 181
18. Aparelho de Eletrochoque. Foto de Jossonhir Brito, 2003 ...................................................... 189
19. Capa do Catálogo do Armazém das Oficinas – Foto Jossonhir Brito, 2005 ........................... 198
20. Oficina de Mosaico do Núcleo de Oficinas do SSCF ............................................................. 198
21. Oficina de Papel Reciclado do Núcleo de Oficinas do SSCF ................................................. 199
22. Foto do CAPS Toninho ........................................................................................................... 205
23. Edição especial do Jornal Candura – Foto de Jossonhir Brito, 2005 ...................................... 222
24. Foto do CAPS Esperança no Taquaral .................................................................................... 223
25. Arranha-céu – pintura de João Jordão premiada no concurso Arte de Viver .......................... 236
26. Fachada do prédio do Centro de Convivência e Arte do SSCF .............................................. 237
27. Saguão de entrada do Centro de Convivência e Arte do SSCF ............................................... 238
28. Roda para convivência do Centro de Convivência e Arte ....................................................... 238
29. Convite da exposição de Sarita Romano – freqüentadora e monitora do Espaço 8 Ateliê do
Centro de Convivência e Arte ......................................................................................... 239
30. Espaço Costurando a Imaginação do Centro de Convivência e Arte ...................................... 239
31. Painel do Clube dos Saberes Arte – Foto de Jossonhir Brito .................................................. 240
32. Clube dos Saberes – Foto de Jossonhir Brito ......................................................................... 240
33. Bonecos produzidos no Clube dos Saberes – Foto de Jossonhir Brito ................................... 241
34. Fachada do Centro Cultural Cândido FUMEC (Casa-Escola) ............................................... 241
35. Convite produzido pelo Espaço 8 Ateliê para o Jantar Árabe, realizado na Casa-Escola
pelos jornalistas do Cândido ................................................................................................... 243
36. Unidos do Candinho ................................................................................................................ 243
37. “Abre-alas” do Unidos do Candinho ....................................................................................... 244
38. Campanha publicitária da Organização Mundial de Saúde. Foto de Régis Moreira ............... 246
39. Algumas edições do jornal Candura. Foto de Jossonhir Brito .................................... 247

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LISTA DE ANEXOS

Anexo 1: Cronologia da Reforma Psiquiátrica brasileira ............................................................ 271


Anexo 2: Carta de 1996 do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial ao Senado ............. 273
Anexo 3: Histórico da rede de saúde mental da cidade de Campinas ......................................... 275
Anexo 4: Ação cautelar contra a instalação do CAPS Esperança no bairro de Nova Campinas. 277

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RESUMO

O presente trabalho teve por objetivo investigar as relações entre as Representações


Sociais da Loucura e o processo de implementação da Reforma Psiquiátrica no contexto
brasileiro. Foi utilizada como aporte teórico a Teoria das Representações Sociais que orientou a
construção de um resgate histórico das concepções de loucura na cultura ocidental e sua
transformação, ao longo do desenvolvimento da Medicina, em um objeto do discurso
psiquiátrico. Buscou-se resgatar como a Psiquiatria chegou ao Brasil e como surgiram os
primeiros movimentos de contestação do saber e das práticas psiquiátricas, em âmbito
internacional e no contexto brasileiro.
O resgate histórico foi empreendido no sentido de ancorar as reflexões sobre a relação da
reorientação do modelo de atenção à saúde mental no Brasil com as possíveis transformações das
representações sociais da loucura. Foi realizado um estudo de caso, dentro de uma perspectiva
etnográfica, na cidade de Campinas, considerada uma experiência modelo no contexto brasileiro.
A pesquisa de campo durou seis meses e foi adotada uma abordagem plurimetodológica
(observações participantes, consultas a registros históricos e entrevistas com agentes de saúde).
As entrevistas foram analisadas pelo software ALCESTE e evidenciaram a existência de dois
eixos temáticos. O primeiro eixo foi relativo à história de constituição da rede de saúde mental e
transformação do modelo de atenção no município. O segundo eixo mostrou a função dos
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no funcionamento da rede. A experiência de
implementação da Reforma Psiquiátrica em Campinas revela uma mudança nas práticas
relacionadas aos usuários dos serviços de saúde mental, o que vem viabilizando uma
transformação das atitudes com relação a esta população. Mudança de atitude que possibilita, em
um período a médio ou longo prazo uma transformação das representações sociais da loucura.
Apesar do momento transitório em que se encontra a Reforma Psiquiátrica no Brasil a
experiência de Campinas demonstra a viabilidade da transformação da atenção à saúde mental no
país.

Palavras-chave: 1) Representações Sociais; 2) Loucura; 3) Reforma Psiquiátrica; 4) Saúde


Mental; 5) Reabilitação Psicossocial

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ABSTRACT

The goal of the current thesis is to investigate the relationships between the social
representations of madness and the process of implementation of a psychiatric reform in the
Brazilian context. The theory of social representations was used as the theoretical basis, and
oriented the construction of a historic reconstruction of the concept of madness in Western
culture and its transformation, along the development of medicine, as an object of psychiatric
discourse. The attempt was to understand how Psychiatry arrived in Brazil and how the first
knowledge pleas and psychiatric practices movements appeared in the international scope and
the Brazilian context.
The historic reconstruction was undertaken as a way of anchoring reflections about the
relationship of reorientation of mental health in Brazil with possible transformations of the social
representations of madness. A case study was done within an ethnographic perspective in the city
of Campinas, considered a model in the Brazilian context. The field research took six months
and a plurimethodology approach (subject observations, historic records consultations and
interviews with health practitioners) was adopted. The interviews were analyzed using the
ALCESTE software, and showed the existence of two thematic axles.
The first axle was relative to the history of the constitution of a mental health network
and the transformation of the county’s attention model to the subject. The second axle showed
the role of CAPS (Psycho Social Attention Center) in the functioning of this network. The
experience of implementation of the pychiatric reform in Campinas reveals a change in practices
related to users of mental health services, which in turn, has promoted a shift in the attitudes
towards this population possible. In the long run, this shift in attitude also made the
transformation of the social representations of madness possible.
Despite the transitory moment in which the Brazilian Psychiatric Reform finds itself, the
Campinas experience shows that a shift of attention to mental health in Brazil is viable.

Keywords: 1) Social representations; 2) Madness; 3) Psychiatric reform; 4) Mental Health; 5)


Psychosocial rehabilitation

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Este estudo é fruto de algumas inquietações experimentadas no trabalho com a Saúde Mental, ao
qual venho me dedicando nos últimos anos. O contato com a loucura, com o inusitado que a caracteriza,
com os sentimentos de surpresa, estranheza, fascínio e, por vezes, com o temor que ela desperta,
alimentaram inquietações que extrapolam o âmbito profissional e acadêmico. Inquietações que dizem
respeito ao profundo impacto que a loucura protagoniza na vida dos que são por ela acometidos e em toda
a rede de relações na qual o sujeito considerado louco está imerso.
Ao longo deste período pude perceber que o trabalho em saúde mental é um convite para ir além
do preparo teórico e técnico. Este preparo constitui, creio eu, uma das portas de entrada para o inquietante
universo humano. O trabalho em saúde mental exige uma disposição para mergulhar rumo a imensidão do
ser humano e suas vicissitudes. Um mergulho no qual outros recursos são necessários, além da bagagem
teórica e técnica, cuidadosamente construída. Ao aprendizado profissional devem se aliar a coragem para
criar e aprender a reaprender sempre, a ousadia necessária para voltar atrás e ir um pouco mais além. É
preciso se render à ternura e à simplicidade para que elas nos ensinem um novo modo de olhar aquilo que
já nos parecia óbvio. Esses e outros “recursos humanos” nos são apresentados e se fazem essenciais a
todo momento ao longo de um trabalho que se pretende definir como saúde mental. São justamente eles
que abrirão outras fendas neste universo a ser desvendado e reconstruído.
A reconstrução do campo da saúde mental requer, antes de tudo, um acolhimento da diferença
que se apresenta no outro e a disposição para transformar o olhar que a ele se dirige. Implica em um
“eterno ressignificar” a diferença desse outro, muitas vezes incompreendido, e que teve sua vida marcada
pela exclusão e pelo estigma da loucura.
No trabalho em saúde mental é preciso que se aprenda a habilidade de reconhecer o que se
interpõe entre si e esse outro. Em que pontos nos diferenciamos e em quais nos aproximamos. A
aproximação se mostra, a princípio, uma tarefa árdua, mas à medida que os olhares se transformam,
aproximações tornam-se possíveis, ou melhor, inevitáveis. Por sua vez, as aproximações também têm o
poder de transformar os olhares. Possivelmente seja disto que se trata em saúde mental: da capacidade do
ser humano em aproximar-se das diferenças, e reconhecer no outro alguém que significa e produz
sentidos. E isso vale para todos os atores envolvidos.
O contato com a loucura é, muitas vezes, marcado por angústias e tristezas, remetendo seu
interlocutor a um sentimento de impotência diante das vicissitudes da existência humana. A partir deste
contato, no entanto, também é possível redescobrir o fascínio da aventura humana frente às inúmeras
possibilidades que se descortinam diante de olhos sensíveis e atentos. Possibilidades de ser e estar no
mundo que o ser humano carrega consigo, porém muitas vezes desconhecidas de quem as carrega.
Desta descoberta resulta uma ampliação da visão de Homem, tornando-se este mais complexo e
potente pelo mistério que nele se revela. Além disso, o convívio com pacientes da saúde mental, estas
pessoas consideradas loucas e taxadas com a marca da exclusão, mostra que a loucura, tão temida por sua
estranheza, é algo muito mais próximo e cotidiano do que “normalmente” se imagina. Com o convívio, a
loucura começa a se configurar como algo essencialmente humano, ao qual todos, em maior ou menor

13
grau de comprometimento, estamos sujeitos. Em pouco tempo se constata que os limites entre o que se
convencionou chamar de loucura e normalidade, na vida real, são mais tênues do que os limites colocados
nos compêndios e manuais da tradicional psiquiatria.
A tentativa de recuperar sentidos e reconstruir a história de vida das pessoas por meio de seus
relatos, muitas vezes faz-nos deparar com realidades dolorosas, quase indescritíveis, devido ao intenso
sofrimento de várias ordens e em várias dimensões da vida. Sofrimento absurdo, que desencadeia
processos de crescente fragilidade e vulnerabilidade.
Em inúmeros relatos, deparamos-nos com uma realidade assustadora, que merece ser destacada
devido às conseqüências desastrosas causadas à vida de milhares de pessoas: a internação psiquiátrica
prolongada em manicômios, instituições estigmatizantes, fundadas no isolamento e na violação dos
direitos humanos. Ainda hoje é possível nos depararmos com muitas pessoas que permaneceram
internadas durante 10, 20, 30, 40 anos, ou por toda a vida. Outras tantas tiveram internações um pouco
mais curtas, mas com inúmeras recorrências1. Essas (re)ocorrências revelam a absoluta ineficácia deste
modelo de tratamento em sua pretensão de acolher o sofrimento, compreender o funcionamento humano e
oferecer a tão proclamada “cura”.
A internação é um tipo de intervenção que traz em seu cerne a marca da exclusão e da violência.
A forma como as pessoas relatam suas internações, torna visível o abandono e a violência característicos
do modelo de (des)atenção que confina as pessoas acometidas de transtornos psíquicos em hospitais
psiquiátricos. Tal modelo de exclusão cresceu em importância, sendo implementado a partir da criação da
psiquiatria enquanto disciplina científica que, atendendo às necessidades de estabelecimento de critérios
de normalidade para a viabilidade de um “bom funcionamento social”, aprisionou a loucura nos limites
do hospital psiquiátrico.
Dentro deste modelo de atenção, é retirado do sujeito tudo aquilo que sustenta sua identidade
pessoal e social. O confinamento restringe ao mínimo possível toda possibilidade de agir de forma
autônoma e personalizada. O lugar social do sujeito se perde no tempo e no espaço do hospital
psiquiátrico.
A violência vivenciada por essas pessoas não mais se restringe à própria doença, que
desestabiliza o sujeito e lhe retira o controle da própria vida. A violência assume proporções institucionais
e legitima-se pela força da exclusão. O sujeito, a despeito de todas suas experiências de vida, fica ilhado,
restrito ao mundo de uma instituição de características totalizantes2, exposto a toda sorte de maus tratos e
sem qualquer possibilidade de pedir auxílio pois, de sua condição, advém a destituição de toda sua

1
Em uma das instituições nas quais trabalhei, conheci algumas pessoas que já foram internadas mais de 40 vezes,
em um intervalo de poucos anos.
2
Utilizo aqui a concepção de instituição total, tal como Goffman (1961) a define: uma instituição em que todos os
aspectos da vida são realizados no mesmo local, sob uma única autoridade, na companhia de um grupo grande de
pessoas que são tratadas exatamente da mesma forma, sem nenhuma personalização. As atividades são obrigatórias
e tem seus horários e objetivos rigorosamente estabelecidos pela própria instituição. A principal característica das
instituições totais, enfatizada neste trabalho, é o “fechamento”. Este é simbolizado pela “barreira à relação social
com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico...”(Goffman,
1961, p.16)

14
credibilidade. Tudo lhe é retirado: seus pertences, seus documentos, seu direito de ir e vir, seu convívio
familiar e o contato com seu grupo social. A pessoa internada perde, inclusive, seu estatuto de cidadão e
sujeito. Sua identidade é seqüestrada, e a fala perde seu valor humano, sendo desqualificada enquanto
forma primordial de expressão.
Antonin Artaud (1896-1948), pensador francês, passou nove anos de sua vida (1937 a 1946)
encarcerado em um hospital psiquiátrico. Em sua emblemática Carta aos médicos-chefes dos manicômios
(1925) exemplifica este “seqüestro da fala” quando pergunta: “Quantos, por exemplo, acham que o sonho
do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais do que uma salada de
palavras?”.
A estrutura desse tipo de instituição leva as pessoas a uma perda da referência temporal e
espacial. O tempo passa a ser o tempo do corpo, à medida que todos os outros referenciais lhes vão sendo
usurpados. Aos internos dessas instituições é negada qualquer forma de auto-cuidado. A vida, por fim, se
desumaniza.
Na peça teatral Artaud, inspirada nos textos que este autor escreveu durante suas internações, o
personagem faz referência a sua aparência física. Dentre as várias descrições da miséria marcada em seu
corpo, ressalta a perda dos dentes por ter-lhe sido negada, durante anos, o uso da escova de dente.
No documentário “Em Nome da Razão”, filmado no Complexo Psiquiátrico de Barbacena, na
década de 80, Helvécio Ratton, cineasta brasileiro, revela a desumanidade dos manicômios. Expoente da
indignação dos poucos grupos que tiveram acesso a ele, este documentário revela de forma
impressionante e precisa a situação absolutamente precária em que viviam os quase 18 mil “detentos”
desse hospital. Suas imagens, ao denunciarem a completa negligência, abandono, falta de tratamento, de
cuidado, de higiene..., chocam pelo sórdido atentado aos direitos humanos fundamentais que ocorria em
Barbacena. O documentário, ao despertar no expectador sentimentos amalgamados de indignação, raiva,
repulsa, culpa e piedade, toca mesmo os mais insensíveis à questão.
Há algumas décadas o hospital psiquiátrico vem sendo alvo de inúmeras denúncias e movimentos
que objetivam extingui-lo, seja pela sua ineficácia terapêutica e seu caráter iatrogênico, seja pela violação
dos direitos humanos que o caracteriza. Dentro de um manicômio, parece haver um acordo implícito entre
os personagens presentes nesse cenário, no qual qualquer forma de experiência humana é desvalorizada.
Os únicos elementos a serem agregados são o estigma, o preconceito e a exclusão em sua forma mais
absoluta. Valentini (2000), ao se remeter a esse “acordo” de desumanização, imerso nesse contexto de
extrema miséria relacional, caracteriza os hospitais psiquiátricos como “projetos de manutenção de
imensos jardins de bonsais, onde todos compartilham um pacto que mantém um estado de ‘aqui não se
pode crescer” (Valentini, 2000, p.11).
É importante destacar que são milhares de pessoas submetidas a esse tipo de tratamento
excludente e marcado pela violência, caracterizando não somente um problema circunstancial, ou de um
pequeno grupo. Trata-se, sobretudo, de um grave problema social merecendo ser tratado enquanto tal.

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Faz-se necessário, neste sentido, pensar no significado que a instituição psiquiátrica assumiu na cultura
ocidental e o que sustenta até hoje sua existência, a partir de uma perspectiva histórica e cultural.
A prática das longas internações em hospitais psiquiátricos faz parte de um funcionamento social
que a respalda e corresponde a uma visão de homem, construída historicamente, com suas implicações
políticas, econômicas e sociais. A persistente existência de tais instituições revela uma visão de homem
cindido: o homem que pode circular no espaço social e o homem que deve permanecer anônimo,
escondido em seu “buraco”. O homem “útil” e o homem sem valor. O homem de razão e o homem da
loucura. Em outras palavras, o manicômio pode ser considerado como um dos símbolos da exclusão. Uma
instituição característica das sociedades modernas e urbanizadas, que marca cegamente a diferença entre
os que devem estar dentro ou fora de seus muros, a partir de critérios construídos ao longo da História e
respaldados culturalmente, que servem ao “bom funcionamento” desta mesma sociedade.
Como todo símbolo, o manicômio atravessou vários anos. Ao longo da história, entretanto, as
relações sociais estabelecidas com o manicômio e seus habitantes, não permaneceram intactos. É
importante lembrar também que o manicômio não existiu sempre. Ele teve um começo e espera-se, um
fim. Isso revela que o homem nem sempre se viu da mesma forma, ou seja, a concepção de ser humano
também é atravessada por um processo contínuo de transformações. A história da humanidade abriga
continuidades e rupturas, hegemonias e concomitâncias de diversas representações, que podem nos
auxiliar a compreender a forma como nos situamos atualmente diante do fenômeno inquietante que é a
loucura.
Ao propor uma aproximação com o universo da loucura no âmbito deste estudo, não
pretendemos, evidentemente, desvendar toda sua complexidade, nem tampouco temos a intenção de
dominá-la, tarefa evidentemente impossível e ingênua. Apoiados pela história, é nosso objetivo investigar
as Representações Sociais da loucura que ainda hoje influenciam a maneira como o homem
contemporâneo a concebe e com ela se relaciona. O estudo das representações sociais acerca da loucura
cumpre também a função de lançar olhares sobre um outro objeto: a Reforma Psiquiátrica e seu processo
de implantação no contexto brasileiro.
A Reforma Psiquiátrica é a busca de uma outra forma de olhar, escutar e tratar a loucura,
decorrente de um processo histórico de questionamentos e reelaborações das concepções e práticas
psiquiátricas clássicas. O termo Reforma Psiquiátrica, tal como o utilizamos no âmbito deste estudo,
refere-se a um conjunto de práticas técnicas, sociais e políticas que visa a transformação do paradigma da
psiquiatria e do modelo asilar para o tratamento da loucura. A Reforma tem também por objetivo a
construção de um novo espaço social para a loucura, espaço este que lhe foi negado durante séculos.
O conhecimento das representações sociais da loucura poderá fornecer novos elementos para
compreender a formatação que a Reforma Psiquiátrica vem assumindo no contexto brasileiro, bem como
as diversas significações que esta adquire nos diferentes grupos (aqueles que a formulam, aqueles que a
vivenciam ou o encontro de ambos). O estudo das representações sociais da loucura e a investigação de

16
suas possíveis transformações podem servir como mais um indicador da efetividade que a Reforma
Psiquiátrica e seus muitos dispositivos de cuidado vêm alcançando nos últimos anos.
A importância de se estudar as representações sociais da loucura também reside no fato de haver
uma estreita correspondência entre as representações que se tem acerca de um fenômeno e as práticas
sociais a ele dirigidas. Conseqüentemente, a forma de tratar a loucura está diretamente relacionada com as
representações que se tem da mesma.
O conhecimento das Representações Sociais da loucura elaboradas pelos diversos atores que
participam do processo de Reforma Psiquiátrica torna-se assim instrumento importante para a
compreensão, avaliação, proposição e orientação de novas ações e serviços. As Representações Sociais da
loucura nos permitem conhecer a forma com que os diferentes grupos negociam no cotidiano as
concepções e práticas dirigidas a esse objeto.
Um trabalho de representações sociais necessita, entretanto, de alguns recortes na realidade, tendo
em vista a impossibilidade de abarcá-la como um todo. Da mesma forma, para empreender um estudo que
visa conhecer o processo de implementação da Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro algumas
escolhas são necessárias, por ser esse processo marcado essencialmente pela diversidade de experiências.
Desta forma, como parte de nosso recorte, foi escolhido a cidade de Campinas, no Estado de São
Paulo, como local de investigação. Campinas foi escolhida pelo fato de abrigar uma experiência
considerada como um modelo para a implantação da Reforma Psiquiátrica no Brasil e em outros países da
América Latina, constituindo-se em um estudo de caso dentro da Reforma Psiquiátrica brasileira. Um
estudo de caso para se conhecer o processo de implementação da Reforma no Brasil se mostra
interessante por permitir conhecer quais são as dimensões e fatores importantes que viabilizam ou
dificultam este processo em nível local. Acreditamos que as reflexões acerca de uma experiência
particular possa lançar luz sobre o desenvolvimento do projeto de reforma em outras localidades.
A estrutura deste trabalho compõe-se de três partes, sendo a primeira dedicada a uma
contextualização da loucura, a partir de um enfoque histórico, articulada com algumas reflexões trazidas
pela Teoria das Representações Sociais. A história da loucura, empreendida no primeiro momento do
trabalho, não tem por objetivo esgotar o tema, tendo em vista sua complexidade, mas visa essencialmente
ancorar as representações sociais da loucura presentes na atualidade. Nesta reconstrução serão relatados
apenas algumas épocas e episódios que evidenciem as diversas significações que a cultura ocidental
atribuiu à loucura, ao longo dos diferentes momentos históricos. Serão incluídos na reconstrução histórica
alguns trechos importantes da história da Psiquiatria e da Reforma Psiquiátrica em nível mundial e no
contexto brasileiro.
Na segunda parte será apresentada a metodologia utilizada na pesquisa de campo e o
procedimento de análise dos dados coletados. A abordagem monográfica será explicitada, juntamente
com a reconstrução das etapas de pesquisa e apresentação das técnicas utilizadas, quais sejam, a utilização
de registros históricos e documentos atuais, a observação participante e entrevistas.

17
Na terceira parte do estudo, será apresentada uma descrição do campo de pesquisa, mostrando a
estruturação da rede de saúde mental do município de Campinas. Faz parte da descrição, a história de
construção da rede, a partir do processo de transformação do Sanatório Dr. Cândido Ferreira em Serviço
de Saúde Cândido Ferreira, hoje responsável, em regime de co-gestão com a prefeitura, pelo
gerenciamento da rede de saúde mental da cidade. Também será feita uma caracterização dos principais
equipamentos de saúde mental de Campinas e apresentada a história da criação de cada um desses
equipamentos.
Ao longo da história de construção da rede de saúde mental, serão enfocados, de forma breve,
alguns temas de relevância dentro da Reforma Psiquiátrica, tais como: o funcionamento geral dos
serviços, algumas características das equipes, a relação dos serviços com as comunidades em que estão
inseridas e a importância da reorientação do modelo assistencial, do ponto de vista dos usuários e dos
profissionais.
Tendo em vista que a efetivação do projeto da Reforma Psiquiátrica se dá necessariamente em seu
contato e aceitação por parte da população, e em consonância com os valores da cultura, faz-se
imprescindível conhecer as representações sociais da loucura na implementação desse projeto. A
importância de tal conhecimento reside no fato de que alguns elementos considerados arcaicos, e que
foram social e historicamente construídos, ainda exercem alguma influência nas práticas dirigidas aos
usuários dos serviços de saúde mental, ora favorecendo, ora dificultando o processo de implementação da
Reforma Psiquiátrica.
Neste sentido, conhecendo as Representações Sociais da loucura e os elementos que a compõem,
alguns subsídios podem ser oferecidos para a implementação de estratégias políticas, econômicas, sociais,
assistenciais, afetivas, dentre outras. O conhecimento das representações poderá apontar novos caminhos
nesta luta pela superação da lógica manicomial de assistência à loucura.
No momento das considerações finais, algumas reflexões feitas ao longo do estudo serão
retomadas à luz do estudo de caso do município de Campinas. Esta experiência, situada em um contexto
específico, não poderá simplesmente ser transposta para outros contextos, no entanto, ela nos permite
elucidar as relações entre as representações e as práticas, num movimento de mútua influência, remetendo
à necessidade de uma atenção e investigação contínua dos elementos de representação, em qualquer
contexto onde se pretende iniciar algum projeto de Reforma Psiquiátrica.

18
Parte I
CONTEXTUALIZANDO A LOUCURA
A loucura na maior parte dos casos, transforma radicalmente a experiência de vida das pessoas
que por ela são acometidas. Não somente a vida individual, mas especialmente a inserção na vida coletiva
passa a ficar comprometida com o aparecimento da loucura. Isso se deve em parte ao fato da loucura
carregar consigo uma dimensão outra, que é a do desconhecido, do insólito, que gera nas pessoas que com
ela convivem um certo grau de medo e insegurança, ou por vezes encantamento e admiração. A despeito
das inúmeras explicações já elaboradas pelos diversos especialistas e por outros atores sociais, a loucura
ainda não foi totalmente desvendada, dada sua complexidade e infinidade de formas pelas quais se
manifesta. Esse desconhecido de alguma forma suscita a necessidade de uma significação, que a torne
algo mais palpável, compreensível, passível de algum tipo de domínio.
Herzlich (1991), ao falar sobre os processos de adoecimento, afirma que a doença, por ser um
evento que ameaça ou transforma a vida individual, bem como a inserção social do indivíduo e o
equilíbrio coletivo, engendra a necessidade de um discurso, de uma interpretação complexa e contínua de
toda a sociedade. Apesar de no contexto deste trabalho estarmos considerando a loucura para além de seu
significado atual enquanto doença, alguns paralelos podem ser traçados em relação a esta afirmação de
Herzlich, no sentido de compreender a necessidade de formulação de significados acerca da loucura ao
longo do tempo de sua existência.
A loucura, por ser um fenômeno essencialmente humano e que vem acompanhando a história da
humanidade desde os mais remotos tempos, ao longo de sua trajetória foi adquirindo diversos
significados, construídos sob os mais diferentes processos e pontos de vista. Porém, no âmbito deste
trabalho, adotaremos um enfoque psicossociológico para compreendê-la, considerando-a como o
resultado de um processo de construção de significados, que se dá na interface entre o indivíduo e o
coletivo no qual está imerso.
Assim, nos ocuparemos dos diferentes significados que vão sendo construídos em torno da
loucura e da figura do louco, no seu transitar pelos espaços sociais. Nosso olhar se voltará para a forma
como o homem comum e os grupos que ocupam os diversos espaços sociais se posicionam diante desse
fenômeno em seu cotidiano. Buscaremos compreender a loucura por meio do que se fala e⁄ou se cala a seu
respeito nos encontros corriqueiros, nas conversas formais e informais, nos tabus e nos silêncios.
As incertezas que rondam a loucura, as diferentes necessidades de lidar com ela no cotidiano e as
tentativas do homem comum em se diferenciar do sujeito considerado louco engendram um processo de
construção da loucura enquanto objeto polimorfo. Um objeto passível de inúmeras significações,
elaboradas e negociadas de forma peculiar entre os mais diversos grupos sociais. Tais elaborações podem
ser consideradas como verdadeiras teorias do senso comum, também denominadas representações
sociais, referentes a um tipo de conhecimento validado socialmente, e que serve aos propósitos dos
grupos que as elaboram.

19
Nesse sentido, a Teoria das Representações Sociais (TRS) se mostra um importante instrumento
de investigação do objeto do presente trabalho, qual seja as representações sociais da loucura e suas
implicações para o processo de implementação da Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro. Essa
teoria se dedica justamente à investigação, a partir de uma concepção psicossociológica do conhecimento,
das teorias elaboradas no âmbito do senso comum e seus respectivos processos de elaboração. A TRS foi
elaborada por Sergé Moscovici, na segunda metade do século XX e explicitada em sua obra seminal A
Representação Social da Psicanálise (1961⁄1978).
As representações sociais designam estas teorias elaboradas no âmbito do senso comum, ou como
definiu Jodelet (2001, p.22), se referem a “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e
partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um
conjunto social”. Jodelet também define as representações sociais enquanto um fenômeno totalizante, na
medida em que encerram diversos elementos: informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças,
valores, atitudes, opiniões, imagens. Esses elementos reunidos, dentre outros, oferecem uma explicação
sobre a realidade, organizada na forma de um saber.
O conceito de representações sociais, elaborado por Jodelet, (2001), é bastante pertinente quando
nos referimos às concepções de loucura, pois, de forma geral, tais concepções abarcam uma grande
quantidade de elementos, para além dos informativos e cognitivos. As concepções de loucura geralmente
aparecem fortemente permeadas por crenças, valores, atitudes e elementos normativos, dentre outros, que
foram sendo construídos sob as mais diversas combinações ao longo da história.
Além disso, as representações sociais têm um objetivo prático, concorrendo para a construção de
concepções acerca da loucura que atendam às necessidades dos diversos grupos sociais que mantêm
relações diferenciadas com o fenômeno. As relações estabelecidas dos indivíduos e seus grupos com a
loucura são influenciadas por uma infinidade de fatores, dentre os quais nos parece muito importante a
proximidade que se tem com a mesma. Um sujeito ou grupo que convive com um louco em sua casa,
construirá um significado específico para este fenômeno, de forma a sustentar e justificar sua prática para
com o mesmo. Por outro lado, um sujeito e⁄ou grupo que têm um convívio com a loucura em sua
vizinhança ou em seu local de trabalho construirão representações distintas entre si, e distintas também
daqueles que nunca tiveram uma aproximação direta com a loucura, a não ser pelo cinema, televisão ou
pela literatura.
Outros inúmeros fatores também vêm contribuir para a elaboração das representações sociais, das
quais podemos destacar a história do grupo, sua formação cultural, o nível sócio-econômico e os valores
da classe social em que tal grupo está inserido. Destacamos também o nível de escolaridade, a
religiosidade, a história pessoal de cada indivíduo que compõe o grupo, os dados sócio-demográficos
(idade, sexo, etc), apenas para citar alguns dos elementos que vêm compor a complexa trama que
favorece a emergência de uma representação social.
Assim, a TRS pode nos fornecer elementos importantes para compreender como os mais diversos
grupos sociais, engajados em diferentes realidades e mantendo com a loucura relações a partir de

20
diferentes pontos de vista, constroem suas representações acerca deste fenômeno. Da mesma forma,
torna-se possível compreender de que forma são engendradas as diversas práticas dirigidas ao sujeito
louco, intimamente relacionadas com tais representações.
Atualmente, vivemos no contexto brasileiro, um momento de transição dos modos de cuidar da
loucura. De um lado, estão as iniciativas de transformação do modelo asilar, com a implantação, em
vários municípios do país, de redes de serviços substitutivos aos manicômios, preconizados pelos ideais
da Reforma Psiquiátrica. De outro lado, ainda temos um grande número de leitos hospitalares, localizados
dentro dos vários hospitais psiquiátricos ainda existentes no Brasil.
Estes dois modelos concorrentes revelam, dentre outras coisas, a co-existência de diferentes
representações sociais acerca da loucura. Se por um lado há uma forte tentativa de romper com uma
representação que associa o louco à periculosidade, imprevisibilidade, irresponsabilidade e
improdutividade, de outro lado persiste o medo, a insegurança mediante o confronto com este “outro da
razão”, que fortalecem, juntamente com outros fatores, o conservadorismo das práticas manicomiais.
No sentido de permitir uma reflexão acerca do lugar da loucura na atualidade e promover um
diálogo entre os distintos posicionamentos que ela suscita, recorremos à história deste fenômeno na
cultura ocidental. Cabe atentar para o fato de que, ao longo da história da cultura ocidental, a loucura nem
sempre esteve neste lugar do “outro da razão”. Fruto de uma trajetória construída ao longo de vários
séculos, a loucura foi significada de inúmeras formas e ocupou os mais diversos lugares na dinâmica
social.
Empreenderemos um resgate de alguns dos momentos nos quais a loucura foi alvo de
ressignificações. Serão capturados passagens e eventos históricos que se constituíram como importantes
pontos de ancoragem3 para as representações atuais. Momentos em que alguns significados foram
atribuídos à loucura e foram, por meio de sua vivência, integrados ao sistema de representação. Este
resgate se justifica pelo fato de que, apesar do sistema representacional comportar algumas mudanças, ele
possui força de resistência ao tempo, atravessando a história da humanidade.
Assim, percorrer a história, mesmo que de forma breve, tem por objetivo buscar a origem de
alguns elementos de representação da loucura que, apesar de longínquos, atravessaram a história da
humanidade e continuam a expressar sua força por meio de algumas práticas visivelmente arcaicas e
estigmatizantes. Nos interessa conhecer o contexto em que estes elementos foram sendo ancorados, bem
como as antigas práticas relativas à loucura, considerando a correspondência intrínseca entre práticas e
representações.

3
A ancoragem é um dos dois processos subjacentes à formação das representações sociais. Segundo Moscovici
(2003), ancorar é classificar e dar nome a alguma coisa. De acordo com este autor, quando se classifica, se abre um
processo de comparação generalizadora ou particularizadora entre o novo objeto e os sistemas de significação que o
sujeito ou grupo já possui. Empreende-se, então, uma “decisão” se tal objeto se inclui ou se afasta de qual categoria
dentro destes sistemas. Ocorre também, por outro lado, um “rearranjo” de todo o sistema representacional original,
no sentido de acolher o novo objeto.

21
E esperamos ter, a partir deste conhecimento, uma compreensão mais clara da origem de nossas
representações e práticas, e do sentido para onde apontam nossas intervenções e proposições. Com o
conhecimento do processo histórico, fazemos do presente um mirante privilegiado, de onde podemos
mergulhar no passado para vislumbrar o futuro, percebendo entre eles uma relação de continuidade, pois
ao vislumbrarmos o futuro, também ressignificamos o passado.
A partir do conhecimento dos pontos de ancoragem das representações e práticas ao longo da
história, poderemos propor ações que considerem os elementos de representação, sem negligenciar
aqueles que dificultam a implementação de um novo modelo de atenção4 e reforçando os que a
favorecem.
O resgate da historicidade da loucura tem também como um de seus objetivos, desnaturalizar a
relação de alteridade estabelecida com a mesma, evidenciando a possibilidade de construção de um novo
lugar social para o sujeito dito louco, considerado como um dos princípios fundamentais da Reforma
Psiquiátrica.

1. A HISTÓRIA DA LOUCURA
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança.
Todo mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades.”
(Luís de Camões)

A História da Loucura pode ser considerada como paralela, ou mesmo intrínseca, à história da
humanidade, se compreendermos a loucura enquanto perda - total ou parcial, permanente ou temporária -
da consciência, da capacidade racional e/ou do controle sobre as emoções. Considerando a loucura
enquanto um fenômeno essencialmente humano, podemos pressupor que sua peculiar estranheza esteja
acompanhando o Homem desde os tempos mais remotos, desde o início do reconhecimento pelo homem
da própria existência.
No âmbito deste trabalho é necessário, entretanto, que façamos um recorte dentro da História
geral, com o propósito de salientar contextos importantes na construção do que compreendemos
atualmente por loucura. Com este fim apontaremos, na história da cultura ocidental, alguns pontos de
ancoragem relativos às representações sociais da loucura.

4
Ao invés do termo “modelo assistencial”, utilizaremos “modelo de atenção”, por considerarmos este último mais
abrangente, não se restringindo na dimensão da assistência.

22
As várias faces da loucura
“O sentido que buscamos na própria filosofia
para entender arcké, o início, o princípio, não
se refere apenas ao âmbito temporal,
mas implica a origem ou fonte espiritual,
a que sempre, seja qual for o grau de
desenvolvimento em que estivermos, tem-se
de regressar para encontrar orientação.”
(Mário Nogueira de Oliveira)

Neste trabalho deter-nos-emos em uma reconstrução histórica a partir da Grécia antiga, mais
especificamente a partir de Homero (século XI a.C.). Tal recorte empírico nos parece pertinente, tendo em
vista que a civilização grega é considerada o “berço” do pensamento ocidental. Não significa dizer que
todo e qualquer pensamento ocidental seja decorrente da Grécia antiga, mas certamente essa cultura e
momento histórico no qual estava inserida, tiveram uma importância fundamental, tanto na nossa forma
de organização social e política, como na construção de elementos do nosso pensamento e mitos atuais.
Outro motivo para o recorte empreendido é que na literatura ocidental não são muitos os relatos
sobre a loucura e a relação que as civilizações anteriores à civilização grega mantinham com os loucos.
Quando existem, os relatos são inconsistentes e provenientes de fontes bibliográficas pouco precisas, não
nos permitindo tirar conclusões, ou mesmo fazer reflexões seguras sobre as concepções acerca da loucura
naquelas civilizações.
Nas produções gregas foram encontradas três concepções de loucura consideradas marcantes,
pois influenciaram sobremaneira a história e a cultura ocidental, e até hoje influenciam a forma como
significamos a loucura e dirigimos nossas intervenções para com os sujeitos ditos loucos.
Segundo Pessoti (1994),
No fim do século II d.C. a loucura pode ser vista pelo menos de três perspectivas. Numa ela
aparece como obra da intervenção dos deuses, noutra, afigura-se como um produto dos conflitos
passionais do homem, mesmo que permitidos ou impostos pelos deuses; numa terceira a loucura
afigura-se como efeito de disfunções somáticas, causadas eventualmente, e sempre de forma
mediata, por eventos afetivos. (p.78)

As concepções mítico-religiosas, psicológicas e organicistas alternaram-se ao longo desse


período, predominando ora uma, ora outra concepção. Tais considerações acerca da loucura, intimamente
ligadas a uma concepção específica de homem, diferiam entre si no que tange à natureza, à etiologia e à
terapêutica recomendada para seu tratamento. Cabe lembrar, que todas essas formas de compreender a
loucura deixaram profundas marcas no pensamento da época, e se perpetuaram ao longo da história, como
podemos perceber nas diversas maneiras como as culturas ocidentais a concebem na atualidade.
Pode-se dizer, didaticamente, que essas três concepções de loucura se referem a diferentes
momentos da história da Grécia, evidenciando, dentre outros elementos, a relação entre as concepções de
loucura e o contexto político, social, cultural e ideológico de uma sociedade.

23
A loucura como fruto da intervenção dos deuses

Homero (século XI a.C.), um dos mais importantes poetas de todos os tempos, retratou em suas
famosas epopéias, Ilíada e Odisséia, a história da civilização grega, o que nos permite, no contexto deste
trabalho, evocá-lo enquanto historiador de seu tempo. Nas epopéias, Homero foi amplamente
influenciado pelos antigos aqueus, povo que habitava a Grécia antes de sua invasão pelos dórios, no
século XII a.C. Nessas obras foram relatados os grandes feitos daquele povo em algumas áreas do
conhecimento, suas conquistas e técnicas na arte recém-aprendida de navegar, além de ser recorrente, o
tema da invasão da Grécia pelos dórios (Dufour & Raison, 1997).
O pano de fundo histórico de sua obra parece importante, pois revela nesse período, conhecido
como Idade Média helênica, a instauração de uma onipotente influência dos deuses na vida cotidiana das
pessoas, fruto de um desconhecimento do homem sobre si mesmo. Pessoti (1994) afirma que até os
tempos pré-socráticos (os primeiros pré-socráticos aparecem por volta do século VII a.C.) o homem não
havia construído uma concepção estruturada acerca da “natureza humana”, compreendida até então de
forma fragmentada. Em virtude desse desconhecimento, todas as “distorções ou aberrações desta
‘natureza’ são concebidas vagamente e atribuídas, na ausência de qualquer vislumbre de psicologia, às
forças e entidades conhecidas” (p.13).
Na Ilíada, Homero evidenciou uma visão mítico-teológica do “homem manipulado”, à mercê dos
caprichos dos deuses. Havia deuses, ou entidades enviadas por estes para regular o destino dos homens,
que possuíam grandes poderes sobre os mesmos, inclusive o de turvá-los a consciência. Os efeitos da
ação dos deuses sobre os homens implicavam em alguma forma de descontrole mental. Segundo essa
concepção, a intervenção dos deuses tinha por objetivo fazer o homem desviante retornar para o seu
destino, sobre o qual este não possuía nenhum arbítrio. Assim, o turvamento da consciência - também
conhecido como Atê, entendido ora como mania, ora como melancolia5, dependendo de sua natureza - era
considerado como um instrumento de resgate da ordem.
Nesse cenário, pode-se depreender uma significação da loucura que, longe de ser caracterizada
como algo negativo ou que acarretasse culpabilização e estigma por parte de quem fosse por ela
interpelado, coloca-a como parte do cotidiano da existência, quase que como um “acidente de percurso”,
ao qual todos os seres humanos estavam sujeitos. Assim, a terapêutica recomendada era o
restabelecimento das relações sociais abaladas com o advento da perturbação da consciência, a reparação
e a expiação dos erros cometidos, de acordo com critérios impostos pelas divindades. Em alguns casos
também se recomendava o uso de um determinado pharmakon considerado “um segredo de rainhas”, a
“bebida do esquecimento, que acalma as aflições da melancolia, atenua os tormentos da ansiedade e induz
a aceitação tranqüila da sentença dos deuses, da própria moira (destino)” (Pessoti, 1994, p.19).

5
A caracterização das perturbações enquanto mania e melancolia, mesmo que de forma não sistemática tal como
conhecemos hoje, já existia à época de Homero.

24
Com o fim da “Idade Média” helênica, a partir do século V a.C. aproximadamente, surgiram as
obras dos trágicos e de filósofos importantes como Sócrates, Platão e Aristóteles. Contemporâneos, visto
que viveram praticamente na mesma época (mais especificamente no mesmo século), esses trágicos e
filósofos retrataram a condição humana, com as aberrações e dramas de sua existência, evidenciando a
busca do homem pelo conhecimento de sua natureza.
Os trágicos não pretenderam construir nenhum corpo teórico sobre a loucura, mas em vários de
seus textos, apareceram histórias de loucos sob as mais variadas formas, sendo a loucura compreendida
basicamente como desequilíbrio, destempero e exacerbação. Para termos uma idéia melhor do que era
considerado como loucura, cabe dizer que, para os trágicos, seu oposto era a temperança, a prudência e a
moderação. Em seus textos percebe-se uma pequena mudança no conceito de Atê, apresentado em
Homero. Ela a partir de então não era mais somente o estado de espírito de quem transgredia a ordem.
Significava também as desgraças reais decorrentes da transgressão, a ruína em conseqüência do desvio
cometido (Pessotti, 1994).
Para Santos (2003), a tragédia grega, para além de uma manifestação cultural que rompeu com a
6
epopéia , traduz uma consciência dilacerada, um movimento que apontava para o sentimento das
contradições que o ser humano presencia em seu interior. Segundo a autora, as peças trágicas marcaram
uma nova etapa na constituição do “homem interior”, do homem enquanto sujeito responsável,
acentuando aspectos da experiência humana até então não percebidos.
É visível nas tragédias a permanência da influência de entidades míticas na manifestação da
loucura, a despeito do componente psicológico da mesma, que já começava a ser cogitado. A
permanência destes componentes míticos fez com que o homem mantivesse com a loucura uma relação,
ao mesmo tempo, de distância e proximidade. A distância podia ser evidenciada pela falta de uma
mediação entre homens e deuses, uma “distância inapelável do sagrado, reverência perplexa às forças do
mundo, exterioridade da loucura em relação ao sujeito, estranheza da mensagem que ela porta” (Pelbart,
1989, p.42). Essa exterioridade pôde ser testemunhada especialmente nas obras dos primeiros trágicos,
Ésquilo e Sófocles.
A proximidade era expressa pelo fato da loucura habitar a vizinhança do homem e seu discurso,
fazendo parte de seu cotidiano. Como à época de Homero, todos estavam sujeitos à loucura e não havia,
portanto, a necessidade de exclusão da mesma.
Na obra de Ésquilo, segundo Pessotti (1994), percebe-se uma visão da loucura como uma
imposição injusta de circunstâncias desfavoráveis ao homem. A loucura, nessa obra, remete-nos à
fatalidade da existência humana, sujeita à ação de forças apresentadas pelo destino e pelas divindades,
contra as quais o homem não tinha condições de lutar. Entretanto, a intervenção dos deuses, por vezes
considerada uma possessão demoníaca, é referida não mais somente como a causa da loucura, mas
principalmente no que tange à sua natureza, sendo esta caracterizada como a perda do bom senso,
alucinações e oscilações entre a lucidez e o delírio.
6
Gênero literário e teatral popular e predominante à época de Homero.

25
Percebe-se, na obra deste trágico, uma concepção de loucura na qual co-existem duas
explicações: uma que admite no próprio destino do homem o processo causador de desvarios e outra
mítico-teológica. De qualquer forma, a loucura era fruto de conflitos impostos pelas divindades e pelos
destinos, ou seja, forças exteriores ao próprio homem. A obra de Ésquilo tornou-se conhecida pela
popularização de dois grandes personagens considerados loucos: Orestes e Cassandra, que figuram nas
peças Agamêmnon, As Coéforas e Eumênides. Esses dois personagens tiveram suas vidas marcadas pela
intervenção dos deuses, que os turvaram a consciência, levando-os à loucura.
Na obra de Sófocles, considerado um dos três mais importantes trágicos da Grécia antiga, ao lado
de Ésquilo e Eurípedes, também merece destaque um outro personagem da mitologia: Ajax. Ao saber que
Ulisses recebera o título de mais valente entre os gregos, Ájax foi tomado por uma loucura furiosa. Na
madrugada saiu pelos campos e matou, de forma feroz e torturante, os animais pertencentes a Ulisses. Ao
passar sua fúria, se deu conta do que fez e se jogou sobre sua espada. Antes de Ájax morrer mergulhado
em sangue e delírio, a deusa Atena convidou Ulisses para encontrá-lo. A deusa explicou que turvou a
mente de Ájax para que este, inconsciente de seus atos, não atingisse Ulisses e seus homens, matando
somente seus animais. Ulisses recusou o convite da deusa para encontrar Ájax, justificando: “Se ele fosse
são de espírito, eu não teria medo”, frase por meio da qual demonstrou seu temor diante da loucura.
Percebe-se que, para Ulisses, a loucura era considerada um desfavor divino, uma maldição, uma
infelicidade. (Pelbart, 1989).
Em Sófocles, a loucura continuou permeada pela exterioridade, pela força dos deuses que se
manifestavam por meio das vicissitudes do destino, tal como na obra de Ésquilo. Sófocles ficou bastante
conhecido na atualidade devido à peça Édipo Rei, imortalizada pela Psicanálise, cujo conceito
fundamental “Complexo de Édipo”, tem seu embasamento nessa tragédia. A atualização da obra de
Sófocles pela Psicanálise comprova a profundidade de sua visão de homem e sua influência no
pensamento ocidental contemporâneo.
O período em que surgiram os trágicos ficou conhecido historicamente como o “Iluminismo
grego”, onde começou a ser esboçada a noção de uma responsabilidade pessoal, intimamente ligada ao
compromisso com a racionalidade. A valorização da razão, a partir deste momento histórico, passou a ser
o centro de toda a organização da cultura helênica, devendo ser observadas, no entanto, as devidas
diferenças na forma como compreendemos a razão na atualidade e o logos grego. A razão e seu oposto
são um tema recorrente na obra dos filósofos e pensadores da época, dos quais destacamos Sócrates,
Platão e Aristóteles, fundadores do pensamento filosófico ocidental pela importância, inovação e
atualidade de suas reflexões.
Sócrates (470/469 a.C.), considerado o fundador da Filosofia, iniciou um movimento de
“descosmologização” e conseqüente “humanização” nessa área de saber. Interessado inicialmente nas
ciências naturais, seu foco mudou de direção e ele passou a se dedicar ao estudo do ser humano e suas
complexidades (Mannion, 2004).

26
Esse filósofo, apesar de uma visível influência religiosa, rompeu com o pensamento existente até
então a respeito dos deuses, inaugurando um novo período na história da Filosofia e do pensamento
ocidental. Até então, os deuses tinham os mesmos vícios e paixões que os humanos, ao que Sócrates se
contrapõe, elaborando uma nova concepção de Deus, que se aproxima ao deus do (futuro) cristianismo,
como sendo “fonte única de inteligência, a providência universal, algo presente no mundo e em nós”
(Navarro, 2002, p.22).
Em seu Deus residia o Bem supremo, a Verdade e a Justiça, ao qual o homem deveria buscar a
aproximação mais estreita possível. Tal proximidade com Deus, entidade que emanava o conhecimento
verdadeiro e universal, se daria, no entanto, somente por meio do conhecimento de si mesmo pelo próprio
homem. Para Sócrates, o instrumento para o autoconhecimento era a razão, na medida em que, os
sentidos e a experiência, são fontes de opinião e não de sabedoria.
A razão para Sócrates, além de instrumento de autoconhecimento, era também identificada com a
felicidade e a virtude. O sábio era aquele que possuía a vida integral do espírito, atingindo a perfeição
moral e criando em si mesmo uma contínua fonte de satisfação espiritual independente do exterior. Para
Sócrates, o sábio era necessariamente bom, pois ninguém que conheça o bem há de obrar ações más.
Razão e caráter tornaram-se assim coisas inseparáveis. A virtude passou a significar o cuidado da alma
para aperfeiçoá-la e torná-la mais próxima do estado divino. A ciência, conhecida através da razão,
tornava o homem senhor de si mesmo, ao passo que a falta da razão, bem como a busca incessante de
prazer, tornava o homem escravo das paixões e dos impulsos irracionais (Navarro, 2002).
Segundo Navarro (2002) em Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que, para Sócrates “onde há
ciência não pode faltar o domínio de si mesmo, pois ninguém que tenha inteligência age contra o melhor
ou, se por acaso o faz, é por ignorância” (p.29). Percebe-se um crescimento progressivo da
responsabilidade pessoal na busca do equilíbrio e do autoconhecimento, na busca do Bem e da Verdade,
consideradas como “coisas divinas”.
Em sua busca de ascensão ao conhecimento universal, Sócrates valorizou a dialética, que
utilizava tão somente a razão como instrumento, e criou a maiêutica, um método filosófico que objetivava
a busca do conhecimento por meio da refutação purgativa. Com este tipo de refutação, despertava nos
homens a consciência de sua ignorância, na intenção de direcioná-los à busca de um conhecimento mais
próximo da verdade. Sócrates comparava seu método ao de uma “parteira” e ressaltava-lhe o caráter
educativo. Em seus diálogos, fez algumas analogias entre o papel do educador e o do médico. Para ele, o
médico tratava das afecções do corpo, restituindo-lhe a saúde física, enquanto que o educador cuidava das
afecções da alma, retornando-a para o caminho de busca da verdade. O que Sócrates considerava como as
afecções da alma, de alguma forma guardam semelhança com o que entendemos como loucura na
atualidade, pois, esta também se associa à ignorância e à falta de razão.
Encontramos alguns resquícios dessa equivalência entre médico e educador na obra de alguns
alienistas do século XIX, com destaque para Pinel e sua conhecida “Pedagogia Moral”. Guardadas as
devidas diferenças entre as idéias de Pinel e Sócrates, e do tempo histórico que os separa, em sua

27
terapêutica, Pinel pareceu ser tomado por alguma inspiração socrática, pois também conferia à atuação
médica um caráter educativo, na medida em que comparava a atuação do médico à de um “diretor
espiritual”. O médico se encarregaria de empreender algum tipo de regime físico e moral, no sentido de
eliminar a alienação mental de seus pacientes, restituindo-lhes ao estado de razão. Para Pinel a loucura era
um erro, um desvio que poderia ser consertado por meio de um processo educativo, que consistia na
correção de tais desvios.
Na obra de Platão (428 a.C.), Sócrates é apresentado como uma espécie de “médico da alma”. Tal
consideração se deve justamente ao caráter educativo de suas ações, na medida em que Sócrates usou sua
Filosofia para modificar a cidade por meio da transformação do homem com o aprimoramento de sua
razão. Para Platão, a exemplo de Sócrates, a busca pessoal da verdade, não poderia ignorar o “dever da
educação do outro”, mesmo se sabendo que o conteúdo de tal processo educativo teria grandes chances de
permanecer incompreendido. Esse dever da educação do outro tornou-se um dever político, na medida em
que a educação na Grécia “não é uma propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade”
(Oliveira, 2003, p.135).
O engendramento dos campos da filosofia, pedagogia e política, e seus possíveis pontos de
intersecção com as reflexões sobre as afecções da alma, podem lançar alguma luz acerca da função
“político-pedagógico” que a Psiquiatria assumiu à época de sua criação, enquanto disciplina científica, a
partir do século XIX. A Psiquiatria, aliada ao Estado e seus interesses, assumiu uma função terapêutica e
educativa, ao mesmo tempo em que a ela foi atribuída a função de coerção, controle e “normalização” da
cultura. A necessidade de “educação”, de “adestramento” da população por parte da Psiquiatria, atendeu a
um projeto político-social, que visava à manutenção da ordem e do “bom funcionamento da sociedade”,
para além de uma preocupação com o desenvolvimento do ser humano enquanto tal.
Para Droz (1997, p.82), “filosofia, pedagogia e política estiveram, desde a própria aurora de nossa
civilização, íntima e indissoluvelmente unidas”. Considerando a organização da sociedade ocidental a
partir do século XIX e a crescente necessidade de um controle da população e seu enquadramento nos
novos modos de produção, podemos acrescentar um quarto elemento a esta afirmação, qual seja a
Psiquiatria.
Essa concepção de educação voltada para os interesses do Estado pode ser encontrada na obra de
Platão, em especial em A República. Nesse texto, Platão defendia que as crianças deveriam ser retiradas
de suas famílias e educadas pelos filósofos, pois estes teriam melhor capacidade de educá-las e/ou
doutriná-las de acordo com as necessidades do Estado.
Apesar das profundas transformações no pensamento ocidental e dos vários séculos transcorridos
entre a Grécia de Sócrates e Platão e a criação da Psiquiatria, algumas analogias se fazem cabíveis no que
tange às concepções de homem como ser racional por excelência, sua íntima relação com o contexto
social e político, e as relações de poder que decorrem dos diferentes lugares sociais nos quais os homens
se encontram na estrutura social.

28
Com relação à loucura, é importante destacar um ponto (aparentemente) paradoxal na filosofia de
Sócrates. Em Fedro (Platão, ? ⁄ 1999), Sócrates travou um discurso a respeito da “mania” (na época
sinônimo da loucura) contrapondo a mesma à moderação, ao autocontrole. Sócrates, no entanto, exaltava
a loucura como superior ao autocontrole e como expressão divina, o que parece contraditório com o lugar
central que a razão assumiu em sua obra. Nesse diálogo, Sócrates afirmava que os maiores bens chegam à
humanidade por meio da loucura, concebida então como um dom divino. Segundo ele, as profetisas de
Delfos, no momento em que estavam possuídas pela loucura (loucura profética), proporcionaram à Grécia
inúmeros progressos, tanto em nível individual como coletivo. A despeito da centralidade da razão na
obra de Sócrates, a loucura assumia o lugar de algo divino, de um instrumento de comunicação entre os
homens e a divindade.
Pelbart (1989), filósofo contemporâneo7, em suas reflexões sobre a mania e o logos grego, a
respeito desta aparente incoerência presente nas reflexões de Sócrates, atenta para o fato de que, naquele
momento histórico, a insensatez não era necessariamente o oposto da razão, haja vista a exterioridade que
ainda caracterizava o insensato. Segundo o autor, para que possamos compreender o significado da
loucura na Grécia, “seria preciso pensar a dimensão do insensato numa relação outra, com o sujeito e a
razão, que não a da contradição” (Pelbart, 1989, p.43). Essa ausência de contradição entre loucura e
razão, expressa na Grécia, parece-nos inconcebível atualmente. Tal constatação, no entanto, nos é
importante por mostrar que a oposição razão-loucura não é algo natural, mas sim construído social e
culturalmente, a partir de um determinado momento histórico.
A loucura para Sócrates apresentava-se de quatro tipos, cada uma relacionada a um dos deuses da
mitologia: a loucura profética (Apolo), a loucura dionisíaca ou dos mistérios (Dionísio), a loucura poética
e a erótica, sendo estas duas últimas, derivações das primeiras, respectivamente.
Em Fedro, Platão(? ⁄ 1999) caracteriza a loucura a partir de duas vertentes: a loucura humana e a
loucura divina. A loucura humana foi concebida por Platão como produto das doenças dos homens, a
partir de um desequilíbrio do corpo, mais especificamente o desequilíbrio dos humores, entre as três
partes nas quais subdivide a psyche: a racional (encéfalo), afetiva-espiritual (coração) e apetitiva (vísceras
abaixo do diafragma). Percebe-se, nesta formulação acerca da loucura humana, uma influência da
concepção organicista de Hipócrates, seu contemporâneo, considerado o pai da Medicina. Pessotti (1994)
afirma que conviviam, na obra de Platão, uma visão compreensiva e uma visão organicista da loucura,
chegando a definir sua concepção como psicofisiológica.
Nas alusões de Platão à loucura era predominante a atenção concedida ao que denomina loucura
divina, especialmente considerada como um favorecimento dos deuses. Para ele, era preferível a profecia

7
Peter Pal Pelbart é formado em Filosofia pela Universidade de Paris, Sorbonne. Realizou estudos e trabalhos de
tradução em história da Filosofia e empreendeu também estudos no campo da loucura, tanto no âmbito da Filosofia
quanto da Psicanálise. Fez estágio no Instituto “A Casa”, o primeiro hospital-dia do país, e participou durante anos
da equipe de acompanhantes terapêuticos da instituição. Dirigiu um grupo de teatro formado por usuários do
Instituto, atualmente conhecido como Companhia Ueinz de teatro. Trabalha como terapeuta do Instituto “A Casa” e
é professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

29
que vinha de um deus do que aquela de origem humana, pois a profecia divina era portadora de um saber
transcendente ao saber do homem. Platão (? ⁄1981) no Timeu, chegou a afirmar que para se ter uma
revelação divina, era preciso estar em estado de sono ou de loucura, ou seja, fora do bom senso. Por outro
lado, afirmava que a interpretação das palavras proferidas em tais estados só poderia ser realizada pelo
homem em estado de bom senso, o que nos leva a concluir, concordando com Pelbart (1989, p.32), que
“da desrazão à razão há passagem e vai-e-vem, não exclusão”. Ou seja, razão e desrazão não eram
considerados como estados opostos, como já foi explicitado anteriormente.
Essa “revelação divina”, que traria um conhecimento a princípio inacessível ao homem comum,
guarda algumas semelhanças com as reflexões presentes em uma das mais conhecidas passagens da obra
de Platão: o mito da caverna. Para ele, havia um mundo sensível e um mundo inteligível - ou das idéias- o
qual somente alguns poucos poderiam acessá-lo. O mundo sensível, ou seja, o mundo que reconhecemos
como realidade é, na verdade, uma cópia grosseira do mundo inteligível. Platão representou o mundo
sensível através da caverna, habitada por ilusões mentirosas, que escravizavam o homem dentro de uma
visão limitada de um mundo artificial, “do qual só percebemos a aparência, a sombra, o eco ou as
miragens sempre cambiantes, fugazes e efêmeras, apenas verossímeis” (Droz, 1997, p.78).
A “tragicidade” da condição humana foi compensada por um “otimismo racionalista”, que
acreditava na libertação do homem por meio da busca de conhecimento dos elementos do mundo
inteligível, pelo reconhecimento e abertura a este mundo das idéias, externo à realidade vivida
cotidianamente pelo homem comum. Podemos dizer, seguindo este raciocínio, e apostando na lógica
interna da obra de Platão, que a loucura poderia ser um dos caminhos para acessar este mundo inteligível.
Platão estabeleceu uma subdivisão da loucura divina em quatro tipos, de forma semelhante àquela
que aparece em Sócrates. A loucura erótica, segundo Platão, era considerada a mais bela, por ser o
caminho que levava à filosofia, e era também uma subclassificação da loucura ritual, ou seja, um tipo de
loucura também regida por Dionísio. A loucura poética era relativa às produções artísticas, influenciadas
pelas musas, sendo esta, uma subcategoria da loucura profética, regida pelo deus Apolo. Percebe-se que,
para estes filósofos, a loucura, em suas variadas formas, era ser considerada como instrumento de
aquisição e revelação de conhecimento, elemento de importância central na cultura grega.
Cabe lembrar que a concepção de loucura apresentada por estes filósofos, não era a única
concepção existente na cultura grega. Por outro lado, não podemos considerar que esta seja uma
concepção particular, ou como diria Pelbart (1989), “uma exceção lírica ou poética”, dada a importância
que a loucura profética assumiu naquela cultura. Em alguns contextos podemos perceber ainda hoje a
reverberação destas idéias, quando, por exemplo, valorizamos o brilhantismo na loucura Van Gogh,
Artaud, dentre outros “loucos célebres” de nosso tempo.
A loucura profética foi extremamente valorizada na Grécia, chegando mesmo a ser considerada
como a “matriz da sabedoria”, segundo Colli (1992). Naquele momento histórico, o conhecimento
representava o valor máximo da vida e, apesar de ser sabido que outros povos tiveram contato com a arte
divinatória, os gregos foram os que mais a exaltaram, erguendo inúmeros santuários destinados à sua

30
prática. “Símbolo decisivo, pelo qual, no mais alto grau, a potência exprime-se em conhecimento...
Adivinhar implica conhecer o futuro e manifestar, comunicar tal conhecimento” (Colli, 1992, p.12).
A importância dos oráculos pode ser percebida pela sua presença em várias tragédias gregas, com
destaque a peça Édipo Rei de Sófocles. Nesta peça, o oráculo lança a profecia do parricídio de Édipo e
desposamento de sua mãe, que se cumpre anos depois, a despeito das providências tomadas para evitar tal
tragédia. Essa reconhecida tragédia de Sófocles aponta também para o caráter fatalista do delírio apolíneo
que, mesmo interpretado, trazido à luz da razão, fazia-se cumprir, confirmando a verdade e o saber
contido em si mesmo. Esta loucura profética, personificada nos oráculos, pode ser concebida como uma
“ilustração mitológica da origem comum entre sabedoria e delírio” (Pelbart, 1989, p. 27).
É interessante observar que esta concepção divinizada da loucura, associada à figura dos oráculos,
pode, a princípio, parecer-nos arcaica, diante da postura de oposição entre razão e loucura presente em
nossa cultura atual. Entretanto, é possível perceber que em vários contextos, inclusive dentro de um
contexto clínico e profissional, ainda é comum atribuir um caráter profético ao delírio de alguns usuários
dos serviços de saúde mental, denotando um resquício desta concepção “apolínea” da loucura. Percebe-
se, mesmo que de forma velada, que a atitude de algumas pessoas diante de outras acometidas por intenso
sofrimento psíquico guarda, ainda, uma crença neste "saber inacessível e sobrenatural” que a loucura traz
em si, associando a irrupção de um delírio a alguma forma de revelação.
Um exemplo recente desse “resquício profético” na caracterização da loucura é a relação que
alguns estagiários de um Centro de Convivência em Saúde Mental em Brasília estabeleceram com um dos
usuários. No delírio desse usuário figuravam “viajantes”, espíritos encarnados que se diferenciavam dos
homens comuns pelos conhecimentos que tinham do mundo sobrenatural, sendo ele próprio um desses
“viajantes”. Um de seus vários atributos era reconhecer o grau, em porcentagens, de trevas e luz no qual
as pessoas comuns se encontravam. Era freqüente a reunião de estagiários em volta deste usuário para
saber qual o seu “grau” de trevas e luz naquele momento. Apesar do tom de “brincadeira” e despojamento
com relação a esta espécie de “consulta espiritual”, em algumas situações era evidente o desconforto
daqueles para quem era atribuído um grau maior de trevas. A despeito da predominância na equipe de um
olhar técnico para a condição desse sujeito, era perceptível um relativo fascínio e, algumas vezes, até um
certo temor que perpassavam a relação de alguns membros da equipe com o usuário, dentre outros
motivos, pelo tom profético presente em sua fala.
O delírio deste e de outros sujeitos considerados loucos, nos dias atuais, guarda algumas
semelhanças com a atuação dos oráculos no contexto da Grécia antiga. Em suas falas, os oráculos
deixavam entrever certa ambigüidade do deus Apolo, na medida em que o saber era revelado por meio de
uma fala obscura e de árdua decifração. Coexistiam obscuridade e revelação do saber, o que colocava os
oráculos em uma posição diferente em relação aos outros homens, mas não de exclusão como atualmente,
já que imperava uma visão divinizada desta “fala obscura”, hoje considerada delírio. O delírio nos dias
atuais, apesar de também ser revelador de um saber - o do próprio sujeito - é visto como um fenômeno de
outra ordem, que não a do divino.

31
Podemos dizer que talvez uma das distinções importantes entre a fala divina e a fala delirante seja
a sua implicação para a coletividade. A fala divina, que caracteriza a loucura profética, continha em si
uma revelação com efeitos sociais, que tinha um profundo impacto na vida do grupo, oferecendo
orientações quanto às formas de condução do mesmo. O caráter divino da fala conferia à loucura profética
um lugar de destaque na cultura grega, ao contrário da fala delirante nos dias atuais. A fala atualmente
considerada delirante, mesmo apresentando conteúdos de caráter profético, traz em si uma revelação que
aponta para as imperfeições, para as trevas individuais, portanto sem uma implicação maior para o grupo
social a priori.
Empreender uma distinção entre a fala profética e a fala delirante é, na verdade, uma árdua tarefa,
pois tal diferenciação se dará fundamentalmente em função do contexto onde tais falas ocorrem. Em
muitos casos pessoas são investidas de um poder profético pela coletividade a qual pertencem. É o caso
de alguns líderes religiosos, considerados por seu grupo social como legítimos representantes do saber
divino, cujas falas podem adquirir um caráter delirante em outros contextos onde predomine uma
concepção mais racionalista.
A ambigüidade de Apolo, evidenciada na loucura profética, é também percebida na loucura
dionisíaca, revelada nas diversas modalidades do ritual báquico. Dionísio, ou Baco, é considerado o deus
libertador em dois sentidos: libertava os homens das amarras do inferno e os livrava do peso das
preocupações e misérias da vida. A mania dionisíaca era considerada uma transgressão de caráter
sagrado, sendo extática, sobretudo feminina, coletiva, catártica, liberadora, festiva e associada aos ciclos
agrícolas. Dionísio era associado à iniciação nos
mistérios, o que culminava em “uma visão mística... que
de certa forma pode ser chamada de conhecimento”
(Colli, 1992, p.13). Ao mesmo tempo, esse alcance dos
mistérios é possível graças a um despojamento completo
da condição de indivíduo e à total entrega ao êxtase,
onde o “sujeito cognoscente não se distingue do objeto
conhecido, o que deve ser considerado como o
pressuposto do conhecimento, e não o próprio
conhecimento” (Colli, 1992, p.13).
Figura 1: O triunfo de Baco – Velasques (1628)

Para Santos (2003, p.143), por presentificar a ambigüidade da condição humana, Dionísio “é um
deus bastante adequado para presidir um novo espaço, o espaço do imaginário, do artifício na cultura
grega”.
Este caráter ambíguo da loucura dionisíaca pode ser observado em As Bacantes de Eurípedes.
Nesta peça as pessoas “possuídas” pelo deus apresentavam um comportamento que revelava, a um só
tempo devoção e liberdade, escravidão das próprias paixões e força sedutora. Amor e ódio ao deus

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Dionísio aparecem de forma quase que inseparável, revelando uma ambigüidade na relação estabelecida
com esse deus, que pune seus oponentes e aqueles que o odeiam, com a loucura. A reverência ambígua ao
deus Dionísio pode ser interpretada como a relação que o homem estabelece com suas paixões e os
diferentes destinos que podem ser construídos, resultantes dessa relação.

Loucura: a batalha perdida do homem contra suas paixões

Nas Bacantes, bem como em outros escritos que compõem a obra de Eurípedes, surge uma
concepção de loucura que rompe, de certa forma, com os pensadores descritos até então. A loucura em
sua obra começa, de fato, a ser concebida como a quebra do compromisso com a racionalidade.
Eurípedes, nascido no ano de 481 a.C., ficou conhecido pela originalidade de sua obra. Além de
trazer para suas tragédias a problemática social de sua época, coube a ele a “humanização” da loucura no
teatro, nas artes e, conseqüentemente, no pensamento de forma geral. Eurípedes traz a tragédia, do alto e
inacessível Monte Olimpo, para o alcance do homem comum. Sua importância para a atualidade reside no
fato de que esse trágico iniciou a “desmitologização” da loucura. Afasta-a do mito, compondo
personagens cuja loucura era um produto da intensidade dos conflitos vividos dentro do próprio homem.
A loucura não era mais uma conseqüência da ação dos deuses, mas sim, um produto das paixões. Era o
resultado de uma batalha perdida, da ética baseada na razão, contra as paixões e apetites humanos. As
divindades mencionadas nas peças de Eurípedes podem ser interpretadas como personificações das
diferentes paixões que compõem a “natureza humana”. Com ele, inaugura-se uma visão das paixões como
uma dimensão inerente a esta natureza, fazendo parte da própria existência do homem, e “cujo surgimento
independe de se ter maior ou menor sensatez”. (Pessotti, 1994, p.29).
É pertinente observar a atualidade da discussão relativa ao lugar das paixões na organização da
subjetividade, a despeito dos diferentes enfoques que foram sendo dados à paixão ao longo dos séculos.
Na atualidade, inúmeros autores dedicam parte de suas reflexões a esse tema instigante, como pode ser
exemplificado na obra denominada O Sentido da Paixão, de 1987, composta por textos de pensadores de
diversas áreas do conhecimento8, e que atingiu grande popularidade, demonstrando o interesse atual pelo
tema paixão.
Eurípedes, em contraponto às aspirações de Sócrates quanto a uma ordenação interna, expõe a
idéia de uma contradição fundante do ser humano, sua inconsistência e fraqueza (Pessotti, 1994). Tais
características colocam o homem em posição completamente vulnerável diante das paixões, apesar de
uma consciência ética baseada na razão, como pode ser observado claramente nos personagens de suas

8
Sérgio Cardoso, Marilena Chauí, Jorge Coli, Luzilá Gonçalves Ferreira, Maria Rita Kehl, Michel Lahud, Gerard
Lebrun, Paulo Leminski, Luiz Renato Martins, Olgária Matos, Renato Mezan, Kátia Muricy, Benedito Nunes, Hélio
Pellegrino, José Américo Motta Pessanha, Renato Janine Ribeiro, Sérgio Paulo Rouanet e José Miguel Wisnik.

33
tragédias: Medéia, Fedra, Orestes, Bacantes, entre outros. Considera-se, que foi em sua obra, a primeira
vez que um desejo sexual foi associado à loucura.
A concepção de paixão como algo inerente à existência humana, bem como a relação do ser
humano com suas paixões, foram discutidas e refletidas na obra de Aristóteles, filósofo grego, discípulo
de Platão. Aristóteles aprofundou as reflexões acerca deste tema,
modificando o caráter fatalista das paixões empreendido por Eurípedes.
Apesar de ter estudado com Platão por mais de quinze anos, ao longo
de sua vida Aristóteles foi se distanciando filosoficamente de seu mestre. Um
dos pontos de divergência é o fato de que para Aristóteles, diferentemente de
Platão, não havia duas dimensões da realidade. Para ele, o aqui e agora eram
bastante reais e todos os objetos do mundo real comportavam em si a matéria
e a forma.
Figura 2: Expressões das paixões da
alma: a cólera – Charles Lebrun

Para Aristóteles, a matéria era o que conferia uma particularidade para cada objeto específico, e a
forma seria o princípio da especificação e generalização, ou seja, o que havia de universal na
caracterização do objeto que o permitia ser classificado enquanto tal. Uma mesa, por exemplo, tem
características particulares, como o material de que é feito, suas cores, dentre outras características
peculiares (matéria), mas existem características essenciais que a incluem na categoria mesa (forma).
Assim, para Aristóteles, não havia uma distinção entre o mundo sensível e o mundo inteligível, pois todos
os objetos existentes possuem em si mesmos, uma matéria e uma forma, o particular e o universal, o
físico e o conceitual (Braga, Guerra & Reis, 2003).
Esta idéia se reflete em sua compreensão das paixões, na medida em que Aristóteles as considera
como algo inerente à natureza humana, e não fruto de uma exterioridade. Para ele, razão e paixão fazem
parte de uma mesma essência sendo, portanto, inseparáveis. Esses movimentos da alma, como são
consideradas as paixões, “são um dado da natureza humana e não se trata de extirpá-los nem de condená-
los” (Lebrun, 1987).
O conceito de paixão em Aristóteles assemelha-se ao atual conceito de pulsão, na medida em que
as paixões aparecem como preciosas auxiliares da razão. Na Retórica, Aristóteles afirma que a paixão é
tudo aquilo que “faz variar os juízos, e de que se seguem sofrimento e prazer”, o que aponta para as
diferentes qualidades de relação possíveis de serem estabelecidas com as paixões. Em Aristóteles, já que a
paixão é algo inerente ao homem e impossível de ser extirpada, ela deve estar a serviço do logos, ou seja,
deve estar à disposição da razão, o que revela a possibilidade – e necessidade - da paixão ser educada. A
educação, ou regulação das paixões não é proveniente de Deus, ou de outra forma de exterioridade, mas
sim, um produto das relações com os pares e das situações vividas pelos homens em seu cotidiano.
Para Aristóteles, o homem não escolhe suas paixões, ou seja, não é responsável pela sua
existência, sendo esta um fato. O homem é, entretanto, responsável pelo modo como faz com que as
paixões se submetam à sua ação. O domínio das paixões pela razão é, assim, uma meta do homem que

34
pretende tornar-se virtuoso e a supremacia das paixões sobre a razão caracteriza o processo de
enlouquecimento. A virtude consiste na aplicação de uma intensidade adequada de paixão a cada uma das
situações vividas no cotidiano, o que equivale a um domínio das mesmas. Essa intensidade de paixão nos
remete a uma escala passional, que resulta na idéia de que sem as paixões, não haveria uma escala de
valores éticos, compreendendo a ética enquanto uma dosagem e equilíbrio das mesmas (Lebrun, 1987).
Neste sentido, com Aristóteles, empreende-se uma maior responsabilidade na construção e consolidação
da razão em nível individual, na medida em que as paixões, elementos inerentes à existência humana, são
passíveis de educação e domínio.
Esta idéia de que paixão e razão são inseparáveis e que o homem deve utilizar a paixão como
“tempero” da razão, foi profundamente combatida pelos estóicos que o sucederam, e que tinham uma
influência platônica. Os estóicos discordavam, também, da idéia de que a paixão era parte da essência do
homem. Esta escola filosófica considerava “o lado exaltado da natureza humana como uma perversidade
que deveria ser erradicada” (Mannion, 2004, p.50). O estoicismo separa o racional do passional,
introduzindo uma fenda que vai se tornar cada vez mais profunda, expressa na dualidade radical entre a
razão e a paixão, entre racional e irracional.
Para os estóicos, a dimensão passional era voluntária, fruto da interpretação errônea das emoções.
As paixões eram uma espécie de afrouxamento do Logos, um fenômeno mórbido, patológico. Um erro
que deve ser banido da subjetividade, um obstáculo a ser transposto, uma força a ser vencida. A paixão
foi considerada uma fraqueza da alma, um deslize que infringe a lei que constitui o ser razoável, o que
justifica a necessidade de extirpá-la (Lebrun, 1987).
Pode-se dizer que os estóicos, de alguma forma, anteciparam o olhar da futura medicina com
relação à loucura. Enquanto Aristóteles considerava o pathos como paixão, disposição essencial e a ele
contrapunha um posicionamento ético, os estóicos caracterizaram o mesmo pathos enquanto patológico
associando, em contraposição a ele, um diagnóstico médico (Lebrun, 1987). Partindo do âmbito da
Filosofia, esta idéia foi mais tarde apropriada e aprimorada pelo paradigma positivista no âmbito das
ciências médicas, transformando a paixão em um dos elementos causadores e⁄ou característicos da
loucura.

A loucura como doença do corpo

As idéias defendidas pelos estóicos tiveram, provavelmente, grande influência da concepção


organicista da loucura, também existente neste período considerado como o Iluminismo grego
(aproximadamente entre os séc. V a.C. e III d.C.) Esta concepção organicista foi contemporânea às
concepções de loucura enquanto influências dos deuses, ou fruto das paixões humanas, mencionadas
anteriormente.
A concepção organicista teve em Hipócrates (460–370 a.C.) o seu grande representante.
Conhecido como o “Pai da Medicina”, Hipócrates representou o ideal da Grécia antiga de libertar a

35
medicina das suas influências mágico-religiosas. Em sua obra foi encontrada a primeira referência à
relação médico-paciente como ponto importante no restabelecimento do doente, e foi a primeira vez que
se atribui à Medicina a necessidade de uma postura ética com relação aos pacientes. Defendeu uma visão
global do ser humano, compreendendo a saúde por meio de uma concepção holística e ecológica,
admitindo uma continuidade entre a natureza circundante e a economia orgânica interna. A saúde, para
Hipócrates, era o resultado de um estilo de vida consoante com as leis naturais e equilíbrio harmonioso do
organismo, marcando desta forma uma ruptura com os filósofos e trágicos contemporâneos, introduzindo
novos elementos na compreensão da saúde.
Hipócrates abandonou a concepção de saúde restrita ao indivíduo e sua relação com as
divindades, ampliando a saúde para a relação do homem com seu ambiente natural. Estabeleceu desta
forma uma estreita ligação entre as condições do ambiente natural e os efeitos deste ambiente no
funcionamento do organismo. Tal relação era mediada pelos hábitos e comportamentos que o homem
adota em seu cotidiano e no contato com este ambiente natural. Esta concepção de saúde foi elaborada
tendo em vista sua visão holística e ecológica de ser humano, em contraposição a uma concepção mítico-
teológica.
Hipócrates, conseqüentemente, considerava as doenças como resultado de causas naturais e do
rompimento da continuidade entre a natureza e o organismo. Para ele, o equilíbrio do organismo era
determinado pelo funcionamento dos quatro humores fundamentais presentes no corpo humano, quais
sejam: sangue, bílis negra, bílis amarela e fleuma. Com o reconhecimento destes humores corporais,
Hipócrates elaborou a “Teoria dos Humores”, adotada como suporte explicativo dos processos de saúde-
doença por um longo período de nossa história. De acordo com esta teoria, cada um dos humores estava
relacionado a um dos elementos naturais e a uma estação do ano. O desequilíbrio desses humores
fundamentais determinava todos os tipos de doença, inclusive a loucura9.
Hipócrates inaugurou, assim, a vertente organicista para explicação da loucura na cultura
ocidental. O cérebro, lesado pelo desequilíbrio humoral, foi considerado o órgão responsável pela
loucura, na medida em que era no cérebro que se situavam as emoções, e todo o funcionamento psíquico.
A loucura seria conseqüência de um processo de umedecimento do cérebro e as diferentes formas de
loucura - epilepsia, mania, melancolia, histeria e paranóia - correspondiam às diferentes variações deste
processo de umedecimento.
Para cada tipo de transtorno, Hipócrates prescrevia uma terapêutica diferenciada, que
compreendia dietas, modificação dos hábitos de higiene, passeios ao ar livre, novas ocupações e recreação
como forma de restabelecer o equilíbrio do organismo com seu ambiente natural. Prescrevia ainda uma
terapêutica que assegurasse a diluição ou a expulsão dos humores para seus “sítios orgânicos normais”,
ou para fora do organismo, por meio de métodos catárticos ou purgativos. Afirmava, ainda, que para

9
Cabe lembrar que a Teoria dos Humores de Hipócrates não foi uma unanimidade neste momento histórico, mas a
destacamos tendo em vista sua importância para a explicação dos transtornos mentais e a forte influência que
exerceu sobre o pensamento ocidental até a atualidade.

36
pessoas acometidas de loucura “o aparecimento de varizes e hemorróidas alivia a doença” (Hipócrates,
conforme citado por Pessotti, 1994), o que revela também um caráter especulativo na terapêutica de
Hipócrates para a loucura.
As especulações a respeito da loucura e as conseqüências terapêuticas destas especulações
parecem-nos coerente com o pressuposto trazido pela TRS, de que diante de um objeto, sobre o qual há
poucas informações, amplia-se a necessidade de dar um sentido ao mesmo, construindo-se então um
“corpo teórico” que irá orientar, bem como justificar, a priori ou a posteriori, as práticas dirigidas a este
objeto estranho10.
O caráter especulativo sempre rondou as práticas dirigidas ao louco, podendo ser testemunhado
até meados do século XX, onde ainda se faziam inúmeras experiências com os doentes mentais nos
manicômios, baseadas em teorias espontâneas sem nenhuma confirmação terapêutica. Alguns exemplos
destas práticas especulativas são a traumaterapia e a malarioterapia, criadas nos manicômios brasileiros.
Estas “terapias” foram aplicadas a um grande contingente de pessoas e justificadas a partir de
pouquíssimos casos isolados, nos quais coincidentemente, os sintomas foram amenizados, muito
provavelmente em função de outros fatores que não as fortes pancadas na cabeça ou a inoculação do vírus
da malária em seus corpos.
A obra de Hipócrates é considerada instauradora de uma concepção médica da loucura, abrindo
espaço para uma compreensão de cunho organicista, que crescerá em importância na significação e
atribuição de causalidade para a loucura. De acordo com sua teoria, os distúrbios e conflitos afetivos não
têm qualquer função etiológica na loucura, sendo considerados apenas sintomas, o que mostra uma
ruptura com a obra de seus predecessores.
Apesar dos benefícios e da transformação no pensamento instaurados com a obra de Hipócrates,
esta nova forma de conceber a loucura sob o ponto de vista estritamente orgânico e médico, representou
um freio na consideração de fatores psicológicos na etiologia da loucura, que já havia aparecido, ainda
que de forma embrionária, na obra de Eurípedes e mais tarde em Aristóteles. Dentre outros fatores, a
catalogação da loucura enquanto doença parecia resolver, de forma mais cômoda, as questões da
responsabilidade ética, jurídica, política e social, suscitadas com o seu advento (Pessotti, 1994).
A Teoria dos Humores, como afirmado anteriormente, permaneceu em voga por muitos séculos, e
seu caráter organicista exerceu forte influência no pensamento ocidental. Ainda hoje é possível perceber
resquícios dessa teoria na explicação da etiologia de algumas doenças, em especial da doença mental,
como mostra a pesquisa realizada por Denise Jodelet (1989) na Colônia Familiar d’Ainay-le-Chateau.
Em sua pesquisa, Jodelet (1989) investigou as representações sociais da loucura e articulou-as
com as práticas sociais dirigidas aos doentes mentais, buscando identificar os elementos psicológicos e
sociais que as compõem. Por meio de um complexo procedimento metodológico, marcado por um

10
As representações sociais são essas “teorias do senso comum”, elaboradas por diferentes grupos de sujeitos e que,
enquanto uma forma de saber prático, têm como um de seus objetivos procurar dar conta daquilo que é estranho,
tornando-o familiar e permitindo um certo domínio na relação cotidiana com o objeto representado. Tem como uma
de suas funções a elaboração e conseqüente justificação das práticas.

37
pluralismo de técnicas e métodos, Jodelet buscou responder a três perguntas principais: 1) Como
funcionam as representações em uma confrontação desse tipo? 2) Como o doente mental é acolhido na
sociedade? 3) Como se constroem as relações com a alteridade? Tais perguntas direcionaram seu trabalho
de observação para tudo o que pudesse fornecer dados psicológicos, sociais, contextuais e culturais sobre
a relação estabelecida entre os moradores da colônia e seus novos habitantes.
Em sua pesquisa de campo, Jodelet (1989) observou que em algumas casas os doentes mentais
eram impedidos de tocar certos objetos de uso coletivo dos membros da família que o acolhia. Ao
investigar sobre estas práticas, a pesquisadora se deparou com uma forte idéia de contágio, que se daria
pelos vestígios de “líquidos” que os doentes deixariam nos utensílios por eles utilizados, evidenciando
resquícios importantes da Teoria dos Humores, apesar das transformações e distorções em seu conteúdo
ao longo dos séculos. Segundo Jodelet (2001, p.19) os “vestígios da teoria dos humores, relacionam o
contágio pelos líquidos do corpo à sua osmose com sangue e esperma”.
Essa pesquisa revela aspectos importantes que constituem as representações sociais, dentre eles o
dinamismo que caminha ao lado da historicidade. Ao longo do tempo, os vários elementos de
representação acerca de um objeto vão se transformando, sendo ancorados novos elementos e novos
objetos, transformando o antigo sistema representacional construído acerca da loucura. Na pesquisa de
Jodelet (1989) as novas ancoragens podem ser exemplificadas, quando à Teoria dos Humores, vêm se
juntar outros elementos que compõem uma nova representação sobre a loucura, resultando em novas
práticas decorrentes destas representações.
No contexto da Colônia Familiar d’Ainay-le-Chateau nem todas as famílias impediam o doente
mental tocar os objetos, pois a idéia de contágio pelos líquidos, referida anteriormente, se ligava
particularmente àqueles que tinham ‘nascido’ com a doença. Esses sim eram temidos, pois seriam
portadores de uma doença contagiosa. Em contrapartida, aqueles que manifestaram a doença mais tarde,
em virtude de algum acidente ou outra fatalidade, não eram temidos, pois tinham adquirido a doença, não
sendo, portanto, contagiosos. Ou seja, o fato da loucura ser “inata” ou “adquirida” implicava em práticas
diferentes dirigidas a seus portadores, porém essas práticas distintas eram igualmente sustentadas por uma
mesma representação da loucura, cujas bases simbólicas podem ser encontradas na Teoria dos Humores
de Hipócrates, mesmo que ela não tenha sido utilizada tal qual foi elaborada dois mil anos antes.
A partir do estudo acima citado, Jodelet (2001) traz reflexões importantes acerca da permanência
de elementos arcaicos no conteúdo das representações sociais, explicando o ressurgimento dos
conhecimentos arcaicos, dentre outros fatores, em função da falta de informação. A autora corrobora essa
explicação, ao comentar o fato da AIDS ter se tornado um fenômeno social de grande relevância na
década de 90. Para ela “a falta de informação e a incerteza da ciência favorecem o surgimento de
representações que vão circular de boca em boca ou pular de um veículo de comunicação a outro” (p.20).
Cabe lembrar que a AIDS quando surgiu, tendo em vista o desconhecimento geral a respeito da
mesma, foi inicialmente associada à sífilis. Essa associação trouxe consigo muitos dos elementos que
compunham a representação da sífilis, sendo o portador de HIV alvo de representações e práticas muito

38
próximas àquelas dirigidas aos sifilíticos, agregando também toda a carga moral que este último trazia em
si.
A construção da representação social da AIDS, bem como da loucura, é exemplar para evidenciar
os processos envolvidos na construção de qualquer representação, quais sejam a objetivação e a
ancoragem. A objetivação consiste na transformação do objeto de forma a torná-lo familiar. Em função
do contexto e da história dos agentes envolvidos no processo de representação, transformam-se alguns
elementos que caracterizam o objeto, por meio de uma seleção e descontextualização destes elementos.
Simplifica-se o novo objeto, conferindo-lhe uma materialidade por meio da criação de uma imagem
reconhecível, possibilitando assim sua representação. A criação de tal imagem se dá por meio da
formação de um núcleo figurativo e naturalização deste núcleo (Sá, 1993).
O outro processo presente na construção de uma representação social é a ancoragem que consiste
na integração cognitiva do objeto a ser representado em todo o sistema de significações preexistente.
Trata-se de um processo de enraizamento, onde serão empreendidas classificações e denominações,
entrando em jogo um processo de “comparação generalizadora ou particularizadora, pelo qual se decreta
que o objeto se inclui ou se afasta da categoria, com base na coincidência ⁄ divergência em relação a um
único ou poucos aspectos salientes que definem o protótipo” (Sá, 1993, p.38). Em seguida a essa
classificação empreende-se uma denominação do objeto, que confere ao mesmo a possibilidade de ser
caracterizado e diferenciado de outros objetos (Sá, 1993).
Um processo semelhante ao da construção da representação social da AIDS se deu com relação à
loucura no início do Renascimento. Neste período, a loucura herdou algumas representações
anteriormente dirigidas à lepra, como uma tentativa de conferir materialidade e possibilitar uma
compreensão mínima com relação a este fenômeno.
O processo de construção das representações sociais da AIDS e da loucura é marcado pela
permanência de alguns elementos arcaicos, como vimos anteriormente. A permanência de tais elementos
pode ser compreendida sob uma perspectiva estruturalista, também presente no âmbito da TRS. Jean-
Claude Abric, um dos grandes teóricos das representações sociais, ao lado de Denise Jodelet, elabora a
Teoria do Núcleo Central, segundo a qual, as representações sociais se organizam como um duplo sistema
composto pelo sistema periférico e o núcleo central das representações. Nestes dois sistemas estão
marcados tanto o caráter atual e contextual de uma representação, quanto a sua dimensão histórica.
Segundo Abric (1998), no núcleo central estão representados os elementos de determinação
social, histórica e ideológica, estando intimamente relacionados aos valores, normas e história do grupo
que elabora tais representações, indicando uma certa homogeneidade no mesmo. Os elementos presentes
no núcleo central guardam uma relativa independência do contexto imediato, mantendo-se estáveis,
coerentes e resistentes às transformações. É em torno dos elementos do núcleo central que a representação
social se organiza, e tem determinado seu significado. Já o sistema periférico é responsável pelas
adaptações necessárias ao cotidiano e ao contexto em que os indivíduos e grupos estão inseridos. No
sistema periférico as contradições são abarcadas, no sentido de preservar o núcleo central. Neste sistema,

39
estão presentes as modulações individuais, e por meio de sua mediação, a integração de novas
informações e até de novas práticas são permitidas (Abric, 1998).
O conhecimento dos processos de construção das representações sociais permite compreender a
razão da permanência, mesmo depois de muitos séculos, de alguns elementos da teoria dos humores de
Hipócrates e a influência que essa teoria exerceu na construção das representações sociais da loucura.
Cabe ressaltar que, além da popularidade da obra de Hipócrates no pensamento social como um todo, ela
exerceu grande influência na obra dos médicos que o sucederam, tais como Celsus, Areteu de Capadócia
e Galeno, que deram prosseguimento à concepção organicista da loucura, aprimorando os pressupostos da
Teoria dos Humores e/ou propondo novas formas de compreender a etiologia orgânica da loucura, sob o
ponto de vista médico.
Celsus radicalizou a versão organicista de Hipócrates, subdividindo a loucura em três tipos: 1) a
loucura aguda, que denominava como phrenesis. Esta loucura vinha acompanhada de febre, e podemos
associá-la à mania; 2) a melancolia e 3) o que denominou “loucura de Orestes”, em alusão ao personagem
da tragédia grega. Este último tipo de loucura está provavelmente relacionada ao que hoje denominamos
esquizofrenia, devido às características atribuídas por Eurípedes a este personagem.
Celsus também recebeu influência de Asclepíades de Bithynia em sua terapêutica psiquiátrica.
Para os maníacos furiosos, por exemplo, recomendava que fossem acorrentados e submetidos a castigos e
terrores imprevistos. Para os melancólicos recomendava o afastamento de tudo o que pudesse assustá-los
e o elogio às suas obras, como forma de encorajamento. (Pessotti, 1994).
Percebe-se uma atualidade desta “terapêutica”, em especial no que diz respeito às destinadas aos
melancólicos. Com relação às recomendações de Celsus para os maníacos, pode-se testemunhar sua
presença até os dias atuais, considerando a utilização, dentro de alguns hospitais psiquiátricos ainda em
funcionamento, de contenções violentas e emprego de castigos, e algumas vezes até torturas, para com os
doentes mais violentos11.
O exemplo da permanência do uso da terapêutica recomendada por Celsus, parece-nos ilustrativo
dos processos de ressignificação dos elementos das representações sociais. Ao longo do tempo, os
elementos de uma representação vão sendo ressignificados, alguns elementos vêm se incorporar ao
sistema representacional e outros são subtraídos por força das circunstâncias. Percebe-se, entretanto, uma
tendência em rearranjar os elementos de forma a preservar as representações arcaicas, as práticas já
cristalizadas e a identidade do grupo que forjou tais representações. No exemplo apresentado, mantém-se
as recomendações de Celsus, entretanto, ajustadas a novos significados. São mantidas as práticas, mas
suas motivações são outras, adequadas às necessidades de manutenção da identidade do grupo que as
utiliza.

11
Cabe lembrar, no entanto, que os motivos que sustentam atualmente o uso de tais “terapêuticas” vão além dos
motivos médicos sustentados por Celsus. Interesses econômicos, políticos e sociais vêm se somar ao olhar
puramente clínico, que compõe a “atitude psiquiátrica” para com estes “tipos de loucos”.

40
Areteu de Capadócia (séc.II-III d.C.), também conhecido como o “Hipócrates da medicina
mental”, foi considerado o primeiro alienista, devido à sua dedicação e clareza nas posições com relação à
loucura. Fez importantes observações sobre a mania e a melancolia, descrevendo e diferenciando de
forma minuciosa o delírio epiléptico, o delírio histérico e o delírio erótico. Fez referências à “loucura
circular”, que muito se assemelham às descrições atuais dos distúrbios bipolares. Descreveu também, de
forma precisa, a sintomatologia da epilepsia, útil até os dias atuais.
Esse médico afasta-se do critério organicista rígido que caracterizou as obras de Hipócrates e
Celsus, adotando critérios comportamentais na definição da ilusão e alucinação. Faz algumas associações
entre a carência afetiva e sexual com a loucura, retomando algumas das considerações feitas por
Eurípedes em suas tragédias. Reconhece a importância terapêutica da satisfação do desejo para a
melancolia de origem emocional, chegando a afirmar que, em alguns casos de transtornos mentais, o
amor foi de grande importância para a cura, assumindo o lugar de um “verdadeiro médico”. (Pessotti,
1994).
Areteu de Capadócia também reconheceu as limitações na terapêutica psiquiátrica, sendo pioneiro
na recomendação de banhos com substâncias medicinais, como forma paliativa de tratamento das
enfermidades mentais. A utilização de banhos terapêuticos é retomada e largamente empregada na
psiquiatria dos séculos XVIII, XIX e início do século XX, como forma de restabelecer o equilíbrio do
corpo. Bazzo (2000) mostra, por meio de inúmeras ilustrações, as diversas técnicas para tratamento da
loucura que foram empregadas de forma experimental e especulativa pela nascente Psiquiatria, dentre as
quais diversos tipos de banhos tiveram um lugar privilegiado. O próprio Foucault (1980⁄2003, p.VII)
relata o caso de um médico do século XVIII que “tratou e curou uma histérica fazendo-a tomar banhos de
10 a 12 horas por dia, durante dez meses”, com o objetivo de conter o calor que causava o ressecamento
do sistema nervoso.
Areteu de Capadócia incrementa a Teoria dos Humores, aliando a esta uma concepção
“pneumática” das doenças sendo, neste sentido, o precursor de Galeno (129-201 d.C.), cujas concepções
influenciaram toda medicina até a época do Renascimento (séculos XV a XVII).
Galeno desenvolveu a teoria de Hipócrates e, seguindo as orientações de Areteu de Capadócia,
inaugura uma versão pneumática dos humores, definindo o pneuma enquanto elemento intangível, nem
físico, nem espiritual. O pneuma era uma espécie de sopro, de hálito, exalação. Um lócus para mediar a
relação mente-corpo. Este pneuma foi traduzido como spiritus, o que revela a incorporação de categorias
de tipo mentalista. Este enfoque pneumático voltará a ser valorizado, a partir da obra de Descartes cujo
conceito de pneuma aparece com relativa importância, exercendo grande influência sobre vários teóricos
dos séculos XVIII e XIX, incluindo os médicos que se ocupavam do fenômeno da loucura. O enfoque
pneumático considera as doenças, incluindo a loucura, como conseqüência de um desequilíbrio do
pneuma, um deslocamento inadequado do mesmo que gera um desequilíbrio do organismo como um
todo.

41
Introduz também o conceito anatômico de doença, que resultou em uma concepção mais
neuroanatômica ou neurofisiológica da loucura. Defendeu que cada alteração é proveniente de lesões em
uma determinada estrutura corporal. Classificou as doenças em: dos tecidos, dos humores e dos órgãos.
Este conceito anatômico das doenças é proveniente dos estudos de Galeno da anatomia dos animais, a
qual é compreendida como equivalente à anatomia humana. A equivalência da anatomia animal e humana
só é contestada no Renascimento, com a retomada das experiências anatômicas de outros estudiosos,
como Johan Fonteijn, Nicolaes Tulp, Jan Deijman, Frederik Ruysch e, especialmente, Andréas Vesalius
que, em seu tratado de anatomia De Humanis Corporis Fabrica, detectou os erros de Galeno, elevando a
dissecação de cadáveres à metodologia fundamental da Medicina. A título de curiosidade, neste famoso
tratado, escrito em 1543, Vesalius instaura o modelo biomédico no tratamento das enfermidades (Reis,
1998).
Galeno propõe uma nova fisiologia na qual admite que a razão e a percepção guardam relativa
independência das disfunções somáticas, demonstrando uma influência platônica em sua obra. Restaura,
dessa forma, uma identidade própria para a “vida psíquica”, ampliando sua existência para além de um
mero sintoma. A natureza da loucura assume assim, aparentemente, uma característica híbrida, sendo
resultado de processos orgânicos (desarranjo dos humores) e psicológicos. De qualquer forma, não é
abolida a rigidez organicista. Galeno é considerado o primeiro a desenvolver preparações farmacêuticas
específicas para o tratamento da loucura.
Um exemplo da rigidez organicista é a afirmação de Galeno que “desejo e prazer são diretamente
os efeitos de disposições anatômicas e dos processos físicos” (conforme citado por Foulcault, 1984⁄1985,
p.112). Aliás, sobre o desejo e o prazer sexual, Galeno tinha uma compreensão de certa forma ambígua.
Por um lado, considerava-os uma compensação da natureza frente ao fenômeno da morte, enquanto parte
de uma intensa trama fisiológica. Por outro lado, além desta visão positivada dos prazeres e do desejo,
atribuía-lhes um perigo potencial. Colocava o ato sexual na categoria das convulsões, diante das quais o
ser humano ficava impotente. Neste sentido, estabelecia algumas relações entre o exagero da busca pelo
prazer e o advento da epilepsia. “O recurso aos prazeres sexuais, fora do momento oportuno, ao provocar
um ressecamento progressivo e uma tensão sempre maior dos nervos, pode induzir doenças do tipo da
convulsão”. (conforme citado por Foulcault, 1984⁄1985, p.112). Essa menção aos atos e prazeres sexuais
parece cabível tendo em vista o estreitamento cada vez maior da relação entre ambos e o fenômeno da
loucura, a partir desse momento histórico.
Ainda, dentro da concepção organicista, encontramos Soranus de Éfeso, médico pós-hipocrático
que se contrapôs à teoria humoralista para explicação da loucura, propondo uma concepção organicista
que valorizava a contração e a distensão das fibras corporais como provocadoras da loucura. Soranus de
Éfeso traz, em sua concepção, os primórdios do enfoque iatromecânico12 na explicação das doenças
mentais.

12
O enfoque iatromecânico postula que os movimentos e as vibrações das fibras e a obstrução maior ou menor dos
vasos e dutos explicam todas as doenças. Tal enfoque será fortemente reafirmado por Afonso Borelli no século

42
Percebe-se que a obra de Hipócrates foi um marco para o desenvolvimento das várias concepções
organicistas da loucura que surgiram no período do Iluminismo grego. O desenvolvimento de suas idéias
ou a negação das mesmas originou as primeiras reflexões acerca dos três enfoques organicistas da
loucura, que serão desenvolvidos mais tarde na época renascentista no âmbito da nascente “medicina
mental”, quais sejam: o enfoque pneumático, iatromecânico e iatroquímico13.
Apesar da ênfase do presente estudo na cultura helênica, é importante destacar a obra de dois
médicos árabes, contemporâneos do Iluminismo grego, que também se dedicaram ao estudo dos
transtornos mentais: Rhazes de Bagdá e Najab-ub-din-Unhammad. Rhazes de Bagdá tinha, em sua
cidade, um hospital que contava com uma “repartição” especialmente dedicada ao tratamento de doentes
mentais, podendo ser considerado um dos primeiros locais destinados a tratamentos desta natureza de que
se tem notícia. Najab-ub-din-Unhammad por sua vez, escreveu um Tratado de Medicina, no qual se pode
encontrar uma classificação das enfermidades do psiquismo (Silva, 1979). Neste tratado, descreve a
conduta dos desequilibrados sociais, apontando já para o que atualmente consideramos como sociopatia
ou distúrbios de personalidade. Traz, também, os conceitos de Malikholia - involução do homem
atribuída a um calor especial que sobe ao cérebro - e Katrhub - “delírio de perseguição” (Silva, 1979).
As três concepções descritas até então, a mítico-teológica, a psicológica e a organicista, como
afirmado anteriormente, foram concepções de loucura co-existentes na Grécia antiga, consideradas
matrizes do pensamento ocidental com relação a este fenômeno.
A Grécia, como se pode depreender do que foi exposto até então, foi o palco de uma grande
diversidade de experiências e reflexões, as quais deram origem a várias escolas filosóficas como o
Epicurismo, o Estoicismo, Ceticismo, Neoplatonismo, os Cínicos e Ecléticos, que privilegiavam uma
visão de ser humano e um ideal de vida particulares. Cada uma destas escolas tinha uma interpretação
particular dos filósofos que os antecederam, especialmente de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Após a morte de Aristóteles e de seu aluno Alexandre, o Grande, a Grécia inicia seu declínio,
sendo assolada por inúmeras pragas e testemunhando um processo de caos político. Os Romanos
conquistaram todo o Mediterrâneo, iniciando um período de crescimento e fortalecimento de seu Império,
do qual a Grécia passou a fazer parte, concluindo um período de apogeu na produção de conhecimento e
desenvolvimento filosófico.
O declínio da cultura helênica tem conseqüências importantes para o pensamento ocidental, pois a
partir deste momento, inicia-se o fortalecimento do cristianismo e do pensamento teocêntrico. Esta
transformação no pensamento traz também conseqüências significativas para a loucura, pois a diversidade

XVII. Dentro deste enfoque iatromecânico, o delírio (que no século XVII já é considerado o “sintoma” que
caracteriza a loucura) é o resultado imediato do excesso ou “frouxidão” de tensão nas fibras cerebrais.
13
Segundo este enfoque, que teve em Paracelso seu maior precursor, as doenças são alterações dos sais do corpo
(mercúrio, enxofre e sais em geral). Este enfoque também teve adeptos importantes como Jacob Sylvius (séc. XVI) e
Sennert (séc.XVII), que associaram a Psicopatologia à mudança química dos humores. Tal compreensão química da
psicopatologia pode ter tido uma grande importância no desenvolvimento da psicofarmacologia.

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de concepções acerca deste objeto dará lugar ao dogmatismo cristão, que irá conferir a este fenômeno
representações distintas das apresentadas até então.

A loucura entre Deus e o Diabo


“Minha curiosidade pelo avesso valeu-me
muitos anátemas e excomunhões, porque
as pessoas do direito detestam
ser mostradas pelo avesso...”.
(Rubem Alves, Navegando)

Roma, a partir do século I d.C., foi sendo paulatinamente cristianizada, marcando o primeiro
período da Igreja Católica, conhecido como o período de Evangelização. A partir desta época, o
Cristianismo cresce em importância, passando a ser uma religião proeminente no mundo ocidental. A
compreensão cristã do mundo se estabeleceu de maneira bastante intensa, sufocando outras formas de
pensamento e instaurando, a partir do século V, o início da Idade Média, também denominada
equivocadamente de Idade das Trevas.
Essa denominação se deve ao fato do cristianismo ter se estabelecido de maneira contundente
como compreensão hegemônica do mundo e seus fenômenos, em detrimento das outras formas de
pensamento. A Idade Média durou cerca de mil anos e neste período o desenvolvimento científico-
filosófico continuou a empreender avanços, contrariando os interesses da Igreja Católica. Estes avanços,
entretanto, permaneceram à margem do pensamento hegemônico, caracterizado por um intenso retorno a
uma concepção teológica do mundo e da vida, o que leva muitas vezes a consideração deste período da
história como um período de trevas para a filosofia e demais ciências. Esse, no entanto, configura-se
enquanto um “falso retorno”, considerando que se diferencia radicalmente da concepção mítico-teológica
da Grécia antiga. O Cristianismo, que passa a ser o grande mediador da cultura medieval, é baseado em
um dogma, uma “doutrina de crença apresentada como uma verdade absoluta e de forma autoritária”
(Mannion, 2004, p.56).
A forma de compreensão da loucura na Idade Média é bastante ilustrativa quando se trata de
verificar as radicais diferenças no pensamento helênico e medieval. Ao longo da Idade Média foi
construída toda uma cosmologia baseada na existência e atuação do demônio, sendo a loucura concebida
sob a égide dessa “demonologia”. A loucura passou a ser uma expressão do demônio em suas várias faces
e sua cura, quando existente, era baseada nos exorcismos, o que marca uma diferença substancial da
mania grega14. Conta-se, por exemplo, que na época medieval, em alguns lugares, a loucura também era
conhecida como insônia. Isto se devia ao fato de que, baseado na crença da loucura como uma possessão
diabólica, deixava-se o doente alguns dias sem dormir, para que o demônio abandonasse o corpo pela
exaustão (Bazzo, 2000).

14
A mania grega, concebida dentro de parâmetros mítico-teológicos, era provocada pela ira de um deus devido a
alguma ofensa ou não cumprimento de uma promessa ou sacrifício. A “cura” portanto, consistia na “reconciliação
do sujeito com a divindade que o molesta, através de um ritual paroxístico”. (Pelbart, 1989, p.35). O deus não deve
ser expulso nem o mal eliminado, mas sim reintegrado ao culto e realimentado.

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Na Idade Média instaurou-se um pensamento dualista relativo à compreensão do mundo e
explicação dos fenômenos, incluindo a loucura. A dualidade foi uma marca de todo este período da
história, atravessado por constantes tensões entre a autoridade e a dissidência, a comunidade e o
individualismo, materialismo e espiritualismo, erotismo e ascetismo, bem e mal, dentre outras.
Logo nos primeiros anos do cristianismo, inúmeros textos demonológicos foram escritos,
difundindo teorias acerca da existência e atuação do demônio entre os seres humanos. Em nome de
Cristo, abriu-se uma fenda cada vez mais profunda entre o Bem e o Mal, o certo e o errado, o cristianismo
e o paganismo, e foram demonizadas todas as divindades pagãs. Uma vasta literatura encarregou-se de
exaltar o martírio como forma de livrar-se da danação, pregando a união com o Deus cristão como o
único caminho para a salvação. O único conhecimento verdadeiro e concebível era o proveniente de
Deus, sendo todas as outras formas de conhecimento consideradas como obras do demônio. A obra de
Taciano da Assíria (120-180 d.C.), por exemplo, afirmava, dentre outras coisas, que os demônios criaram
a Medicina, como forma de ludibriar o ser humano (Pessotti, 1994).
Uma infinidade de eventos e comportamentos de determinados grupos foram catalogados como
provas e/ou suspeitas da manifestação do demônio. Com a demonização dos hereges, legitimou-se a
intolerância religiosa e a perseguição às várias dissidências. Entre os comportamentos catalogados como
prova da atuação do demônio, muitos eram semelhantes às características e sintomas atribuídos aos
loucos da época, sendo estes então considerados como um “grupo dissidente”, que também foi
demonizado e perseguido. Cabe ressaltar, entretanto, que não havia uma literatura específica a respeito da
loucura propriamente dita. A loucura era um elemento a mais que compunha toda uma complexa
cosmologia demonológica. Apesar de terem sido culpabilizados, demonizados e alvos da intervenção dos
clérigos e outros representantes de Deus, os loucos não eram os únicos a ocupar o lugar de perseguidos,
sendo apenas mais um grupo no grande grupo dos hereges e dissidentes.
A literatura demonológica do início da Idade Média tinha por objetivo a evangelização e a difusão
da idéia de um universo dividido entre Bem e Mal, Deus e Diabo sem, no entanto, uma consistência
filosófica que a sustentasse. Tal sustentação filosófica veio com a obra de Santo Agostinho, que usou o
Neoplatonismo para defender, apoiar e afirmar a teologia cristã. Santo Agostinho empreendeu uma
releitura da obra de Platão, adaptando-a aos dogmas cristãos, iniciando um processo de fusão,
característico do período medieval, entre a filosofia e a fé (Mannion, 2004). A Teoria das Formas de
Platão subsidiou a reafirmação de um Deus perfeito e emanador do Bem e Verdade universais.
Outra característica dos primeiros séculos do período medieval era um apocaliptismo
generalizado, personificado na figura do Anticristo, personagem intensamente impregnado no imaginário
medieval, que atendia à mentalidade essencialmente dualista da época. O Anticristo, associado à morte e
destruição do ser humano e da Terra, assumiu um lugar central na cultura medieval, especialmente no
primeiro milênio após o advento de Cristo. Havia uma forte crença no fim dos tempos quando se
completassem mil anos após o nascimento ou a morte de Cristo. Esta crença foi intensamente reforçada
pela Igreja católica, sobre a qual reafirmava seu poder. As peregrinações, penitências, posturas de

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ascetismo, puritanismo e evangelismo eram bastante difundidas, pois “se o fim do mundo poderia
acontecer a qualquer momento, era vital estar preparado para encontrar o Criador” (Richards, 1993, p.
15).
Após o ano 1033, com a não confirmação do Apocalipse, começou a emergir um movimento de
revitalização, expansão e criatividade no cenário medieval. A paz com outros povos não cristãos se
estabelecia e as cidades invadidas voltaram a se “iluminar”, ganhando nova vida e efervescência. As
atividades de comércio e as viagens foram retomadas com tal intensidade, que causaram uma profunda
transformação e ampliação das cidades, consideradas como o grande legado deste período central da
Idade Média (Richards, 1993).
Ampliou-se, a partir do século XI, o conhecimento dos cálculos, a importância da intelectualidade
e da educação, a reflexão e o recurso às leis, em vez da violência. Iniciou-se um processo de
monarquização e definição das fronteiras e limites das nações-Estado.
Houve, também, uma espécie de revolução técnica, sob forte influência dos árabes que, tendo
dominado parte da Europa no século VIII, contribuíram com seus conhecimentos na fabricação de
diversos mecanismos, nos quais se destacam os moinhos de água e vento e irrigação das terras (Braga,
Guerra & Reis, 2003).
Esse momento de revitalização das culturas, do funcionamento social, das políticas e da economia
manifestou-se no pensamento social da época, produzindo, inclusive, profundas mudanças na própria
concepção de Deus, a partir do século XII. Os homens começaram a libertar Deus de sua imagem
temerosa e punitiva, associando-o cada vez mais a um ser iluminado, como pode ser testemunhado pela
arquitetura gótica criada nesta época que se propunha a representar a idéia de que “Deus é luz” (Richards,
1993).
O pensamento social que emergiu entre os séculos XI e XII nos possibilita um outro olhar sobre a
Idade Média, momento histórico para a qual tradicionalmente são atribuídos somente atrasos, fanatismos
e ignorância. Este período dos séculos XI e XII ilustra o significado da afirmação de Dresden (1968, p.
223), quando diz que “a Idade Média teve a sua própria colheita de renascimentos”.
Um dos resultados de todo este clima renovador dos séculos XI e XII foi a descoberta do
indivíduo, que pode ser considerada uma das mais importantes conquistas da Humanidade. Essa
descoberta engendrou profundas transformações nas representações da época. Novas escolas de
pensamento e universidades emergiram, para além das já criadas pelo imperador Carlos Magno no século
VIII, incentivadas pelo espírito de libertação do indivíduo das amarras do coletivo homogêneo guiado
pela igreja católica. Com as universidades, iniciou-se o desenvolvimento de um conhecimento não
ortodoxo, que se afastava progressivamente dos dogmas cristãos. Houve uma revalorização dos textos
gregos e da cultura antiga, que reverberou na cultura medieval como um todo.
Novas ordens religiosas surgem e o individualismo se refletiu na nova forma com a qual o ser
humano passou a se relacionar com Deus. Emergiu uma nova forma de referir-se a Deus, como acessível
a todos os homens e não mais restrito somente a alguns poucos “escolhidos”. Uma renovação espiritual e

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religiosa despontou resgatando a máxima proferida por Sócrates séculos antes, que pregava o “conhece a
ti mesmo”, proliferando a necessidade de auto-conhecimento, o interesse pelos sentimentos, “a vivência
da realização emocional e espiritual em vez de satisfação física e sexual” (Richards, 1993, p.18)
Transformações também podem ser percebidas em várias áreas do conhecimento, entre elas a
literatura e as artes plásticas. Surgiu o romance, enquanto histórias de indivíduos em contraposição aos
épicos, histórias de civilizações. Surgiram também as sátiras, gênero literário que questiona e critica o
pensamento religioso (e político) estabelecido no início do período medieval. Na pintura, apesar de ser
mantida a centralidade do tema religioso, pôde ser testemunhada uma mudança na representação de
Cristo. Antes representado como glorioso e invencível redentor da humanidade, a partir deste momento,
Cristo começou a ser representado em seu sofrimento físico e emocional, resultante de seu amor
individual pelo ser humano. Obras como O homem em sofrimento, de Aelbrecht Bouts (final do século
XV), Crucifixão (1490) de Nicollo di Liberatore, Cristo Morto sustentado por um anjo (1475) de
Antonello de Messina, Cristo na cruz entre dois ladrões (1620) de Pieter Pauwel Rubens, e a famosa
pintura de Mathias Grünewald, A crucificação do altar de Isenheim (1516), citada na História da Loucura
de Foucault, surgiram mais tarde como exemplos desta nova representação de Cristo.
A obra de Aristóteles foi reafirmada, a partir do século XII, fazendo renascer a noção de cidadão,
enquanto indivíduo de deveres e direitos, idéia esta que passou a influenciar as relações entre senhores e
vassalos. São Tomás de Aquino, filósofo cristão do século XIII, cuja obra influenciou todo o cristianismo,
empreendeu uma releitura cristã da obra de Aristóteles, tal como fez Santo Agostinho com Platão. Se
Aristóteles falava de uma responsabilidade pessoal na
condução da própria vida e da necessidade de domínio das
paixões pelo próprio homem no sentido de tornar-se
virtuoso, São Tomás de Aquino retomou tal idéia no âmbito
do cristianismo, por meio do conceito de consciência
individual, que modificará a partir de então a relação do ser
humano com Deus, atribuindo ao homem uma maior
responsabilidade em sua relação com a divindade.
Essa nova concepção, com ênfase no indivíduo,
trouxe um novo olhar sobre a loucura, agregando à figura do
louco uma maior responsabilização pelo descontrole de suas
paixões. Além de ser compreendida como uma influência
dos demônios, a loucura começa a ser vista também como
fruto de uma fraqueza do indivíduo.
Figura 3: The Trinity – Lucas Cranach

No século XIII, a Igreja católica e as monarquias existentes, preocupadas com a possibilidade de


um enfraquecimento de seu poder, iniciaram um processo de contenção deste “clima renovador” do

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período central da Idade Média. Uma medida inicialmente tomada foi a realização do Quarto Concílio
Lateranense de 1215, onde um conjunto de regras foi introduzido, visando a limitação das liberdades
individuais. Dentre estas regras estavam a proibição da pregação sem licença papal ou episcopal, e a
reorganização do clero, mediante um enrijecimento de sua formação e limitação de seus direitos, com
vistas a uma “moralização” da Igreja perante a população. Outras regras diziam respeito ao combate
ostensivo aos hereges, com premiação para aqueles que auxiliassem a Igreja na caça a estes e outras
minorias, como judeus, homossexuais, prostitutas, muçulmanos, bruxas, hereges e leprosos. Para todas
essas minorias foram ordenados símbolos que estas deveriam usar, no sentido de diferenciá-los dos
cristãos considerados fiéis. Este concílio também institucionalizou a inquisição, a partir da qual a Igreja e
o Estado passavam a ter poderes sobre a vida das minorias, que passariam a ser julgadas pelas instâncias
superiores dos “Tribunais da Santa Inquisição” (Richards, 1993).
Estava instaurada a sociedade persecutória, considerada como um retrocesso no processo de
individualização, na medida em que houve tentativas radicais de limitação às liberdades individuais.
Sociedade marcada pela união entre Igreja e Estado, representada pelas monarquias que empregaram de
forma incontestável uma ditadura nos costumes e no pensamento.
Esse retrocesso no campo da cultura e do pensamento, reiniciado no século XIII, foi
acompanhado pelo advento da Peste Negra, que assolou a Europa em meados do século XIV, dizimando
grande parte da população. A Peste Negra também foi acompanhada por intensas modificações climáticas
que provocaram a devastação pela fome e outras doenças. As conseqüências da Peste foram inúmeras e
diversas no que diz respeito ao pensamento e religiosidade. Por um lado, houve uma espécie de surto
religioso, onde as pessoas buscavam a salvação a qualquer preço. Intensificou-se a busca de “bodes
expiatórios” personificadas nas minorias acima citadas, sendo ampliada a preocupação medieval com a
morte, o juízo final, o paraíso e o inferno. Dentre as minorias, estavam os loucos, misturados aos hereges
e devassos, que também foram vítimas de perseguições.
De outro lado, testemunhou-se um crescimento do ascetismo, ao lado de uma difusão da
devassidão, da promiscuidade, da entrega aos prazeres de forma desregrada, tendo como base a idéia de
que a morte e a desgraça eram inevitáveis, e que já estavam acontecendo, transformando desta forma os
valores pré-estabelecidos. A atividade sexual foi proliferada e vivida de forma intensa, por todos os
lugares. Este abuso do ato sexual foi atribuído, obviamente, aos grupos minoritários e dissidentes, para os
quais, a Igreja intensificou sua intervenção. A representação da Terra como um campo de batalhas entre o
Bem e o Mal, Deus e Diabo, intensifica-se, gerando uma forte reação das esferas dominantes.
Em meio a esse momento de caos, duas publicações aparecem como legítimas representantes
desta tentativa de retomada do poder da “cosmologia demonológica”. Tais publicações são: o Malleus
Maleficarum, de1484, e o Compendio dell’Arte Essorcistica et Possibilita delle Mirabili et Stupende
Operazioni delli Demon et de’ Malefici, de autoria de Hieronimus Menghius, em 1576. Tais publicações
tentam reafirmar de forma radical as teorias demonológicas e vêm atender à necessidade de auxílio aos
inquisidores, no julgamento de qualquer comportamento considerado aberrante ou indecente. Essas

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publicações reiteram a concepção de que qualquer comportamento desviante é obra da atuação dos
demônios e são feitas inúmeras e minuciosas descrições de comportamentos frutos de possessões e/ou
obsessões empreendidas por eles. Para cada uma das formas de possessão e obsessão, são associados
comportamentos, sensações e sentimentos, identificados com o comportamento das minorias e, na maioria
das vezes, identificados com a devassidão e loucura. Esta retomada intensa da doutrina demonista impõe
para a perda da razão e para o descontrole emocional a marca da condenação. O louco, juntamente com as
outras minorias, passa a ser suspeito, evitado, perigoso e temido. Passa a ser compreendido como a
representação do próprio demônio (Pessotti, 1994).
Cabe lembrar, que antes da publicação desses “manuais demonistas”, a lepra havia assumido um
lugar “privilegiado” entre as minorias. A importância que assumiu perante as outras minorias, colocou a
lepra envolvida em uma espécie de “círculo sagrado”, como afirma Foucault (1972). A partir da alta
Idade Média até o fim das Cruzadas foram construídos inúmeros leprosários por toda a Europa, que se
constituíam em campos estéreis e temidos, para onde eram enviados, e assim excluídos, os leprosos. A
palavra lepra passou a ser associada ao pecado, à sodomia, à prostituição. De alguma forma, a lepra
incorporou todo o mal que assolou a Europa neste período.
Em torno da lepra cria-se toda uma ideologia de justificação de sua exclusão. Segundo Frayse-
Pereira (1985, p.50), “a lepra, que é sofrimento, purifica e castiga o pecador. A segregação ritual do
leproso abre-lhe as portas da salvação”. Sua exclusão é compreendida como uma forma de comunhão
com Deus, uma prova de Sua ira e benevolência. A exclusão passa a ser representada, tanto para quem
exclui, como para quem é excluído, uma forma de salvação e obtenção do perdão divino. (Foucault,
1972).
Ao final da Idade Média, no entanto, a lepra havia sido quase extinta e os bens dos leprosários
foram revertidos para instituições de caridade e hospitais gerais já existentes. As doenças venéreas
assumiram, ainda que por pouco tempo, este lugar de doença temível. Apesar do temor e do
pertencimento das doenças venéreas ao campo da moral, ao longo do século XVI, isso não impediu que
tais doenças migrassem, de certa forma, para o domínio médico.
O “círculo sagrado” no qual a lepra estava envolvida passou a envolver, a partir de então, a
loucura. A lepra acaba, enquanto doença predominante, mas a lógica de sua exclusão ritual se perpetua na
nova relação que o mundo ocidental vai estabelecer com a loucura, a partir do início do Renascimento
(Foucault, 1972).

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A loucura do cotidiano
“Homem! Todas as coisas
te amam e correm para ti:
tudo corre para ti para chegar a Deus.”
Angelus Silesius

O Renascimento foi um momento de renovação dentro da história, iniciado em meados do século


XV, a despeito de todas as tentativas de contenção da sociedade, perpetradas pela Igreja e Estado a partir
do século XIII. Este período guarda semelhanças com alguns momentos existentes no decorrer da Idade
Média, sendo inclusive influenciado por esses “pequenos renascimentos”, dos quais nos fala Dresden
(1968), justificando a dificuldade de precisar, com exatidão, os anos de seu início. O que caracteriza esse
momento, diferenciando-lhe da Idade Média, é justamente a transição da hegemonia do pensamento
teocêntrico, para o pensamento centrado no próprio homem, calcado em um crescente humanismo, que
chega muitas vezes a se confundir com o próprio conceito de Renascimento.
A fé cristã não é veementemente negada, mas são resgatadas e colocadas em lugar de maior
importância as potencialidades do homem em suas várias dimensões, em especial nas artes e nas ciências.
Para Dresden (1968, p.230) “é este realce das potencialidades do homem dentro da fé cristã que dá ao
humanismo o seu autêntico timbre. Com este objetivo em vista [o humanismo] pega nos fios do passado e
tece com eles uma nova teia”. É esta “nova teia” que vem caracterizar o período do Renascimento.
O Renascimento valoriza sobremaneira o estudo, enquanto forma privilegiada para conhecer e
experimentar a natureza do homem e do mundo. Por meio dos estudos nas diversas áreas do saber, inicia-
se a construção de um alicerce sobre o qual se firmará a ciência como fonte primordial de conhecimento
verdadeiro, consolidando a razão como seu principal instrumento. As diversas áreas do conhecimento
científico voltam a se desenvolver com autonomia e visibilidade anteriormente coibida. A partir de então,
a existência de Deus não era mais suficiente para responder às inúmeras dúvidas e perguntas que o
homem renascentista voltou a fazer acerca de si e do mundo que o cercava, pois “o Renascimento no
século XV havia, incomodamente, criado questionamentos em vários campos. Mudavam-se pontos até
então estáveis” (Santos, 2003, p.145).
A introspecção também alcançou um lugar de crescente importância neste conhecimento de si
próprio e prevalecia a convicção de que o homem poderia mudar a si e ao mundo. A religiosidade
presente no Renascimento orientou-se no sentido de conceber o ser humano como “deus na terra”,
instaurando-se assim, uma ambivalência do homem enquanto criador e criatura (Dresden, 1968). O ser
humano, a partir de então, passou a ser a “medida de todas as coisas”.
Essa ambigüidade impregnou todo o imaginário renascentista e influenciou a relação que o
mundo ocidental passou a estabelecer com a loucura. Esta voltou a ser vivenciada em seu estado livre,
como uma experiência possível presente no cotidiano, interpretada segundo um “polimorfismo que não
possuía nenhum fundamento médico” (Frayze-Pereira, 1985, p.50).

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Por ser vivenciada como parte do cotidiano, a cultura renascentista desenvolveu maneiras
diversas de lidar com a loucura que passou, a partir deste momento, ser considerada enquanto um
fenômeno em si mesma, passível de observação e significações múltiplas. A loucura passou a ser um
“objeto” de trânsito na cultura, nas instituições, nas práticas sociais e nos posicionamentos individuais,
podendo ser compreendida desde então, fazendo uma tradução para nosso contexto atual, enquanto um
fenômeno de representações. De acordo com Sá (1998, p.21) os fenômenos de representação social são
“por natureza, difusos, fugidios, multifacetados, em constante movimento e presentes em inúmeras
instâncias da interação social”.
Estas diversas formas do homem renascentista se relacionar com a experiência da loucura,
demonstram uma importante ruptura com relação ao pensamento medieval. Segundo Foucault (1972,
p.44), do final do século XV até o século XVII, o mundo da renascença é
estranhamente hospitaleiro para com a loucura. Ela ali está presente, no coração das coisas e
dos homens, signo irônico que embaralha as referências do verdadeiro e do quimérico, mal
guardando a lembrança das grandes ameaças trágicas – vida mais perturbada que inquietante,
agitação irrisória na sociedade, mobilidade da razão.

Essa “estranha hospitalidade” que nos fala Foucault (1972) não trata, no entanto, de uma
aceitação plena, ou de uma imagem estritamente positivada da loucura. Trata, isso sim, de uma variedade
de posturas e práticas com relação a este fenômeno, em decorrência dos inúmeros significados que a
loucura adquiriu em sua intensa relação cotidiana com o homem ocidental.
Havia, ao final da Idade Média e no Renascimento, alguns lugares de detenção para os loucos.
Estes eram recebidos em hospitais e colocados em dormitórios. Segundo Foucault (1972), em algumas
cidades européias existiam inclusive subsídios e donativos em favor dos loucos. Havia também alguns
centros de peregrinação para onde migravam inúmeros loucos de toda Europa.
Um dos centros de peregrinação é o povoado de Gheel, na Bélgica, que existe até os dias atuais,
como uma comunidade psicoterapêutica, nas palavras de Bazzo (2000). O autor nos conta de uma viagem
que fez até o referido povoado, com a intenção de conhecer a lenda da Santa Dymphne, considerada a
santa protetora dos loucos. A lenda, segundo Bazzo (2000), aparece escrita pela primeira vez em 1247 e
conta a história de uma princesa, filha de um rei irlandês pagão. Dympnhe foi criada nos moldes de uma
educação cristã e quando era ainda muito jovem, a rainha, sua mãe, morre, deixando o rei louco. O rei
desatinado quer desposar a filha, com o argumento de que em todo o reino não havia mais nenhuma
mulher que guardasse em si a beleza de sua ex-esposa. Dympnhe, para se livrar da loucura incestuosa do
pai, foge para Gheel, acompanhada do vigário que a havia batizado, do violinista do reino e sua mulher. O
rei, enfurecido, persegue os fugitivos e mata Dympnhe quando estes chegam nos arredores de Gheel. Diz
a lenda que após o conhecimento do motivo de sua morte, Dympnhe passa a ser reconhecida como a santa
protetora dos loucos, por ter morrido pelas mãos de um insano. Inicia-se assim, uma migração de
inúmeros loucos a Gheel, para cultuar a santa. Tempos depois, foi fundado um hospital no vilarejo
destinado a esta população e uma igreja em homenagem à Dympnhe (Bazzo, 2000).

51
Para Foucault (1972), esses lugares de peregrinação conjugavam, a um só tempo, a preocupação
com a cura e com a exclusão, por meio do encerramento dos loucos no espaço sagrado do milagre.
Segundo este autor, a aldeia de Gheel talvez tenha se desenvolvido desta maneira: “lugar de peregrinação
que se tornou prisão, terra santa onde a loucura espera sua libertação, mas onde o homem realiza, segundo
velhos temas, como que uma partilha ritual” (Foucault, 1972, p. 11).
Além das peregrinações, também era bastante comum a existência de barcos que circulavam pela
Europa levando como tripulantes os loucos que eram expulsos das cidades e entregues a navegantes e
mercadores. Esta prática, dirigida aos loucos, envolvia-os no mesmo círculo sagrado que outrora estava
reservado aos leprosos, guardados os simbolismos particulares de cada um desses fenômenos. A lógica
ritualística deste tipo de exclusão impregnou todo imaginário renascentista, sendo esse tipo de
embarcação conhecida como a “nau dos loucos”, freqüentemente representada pela arte renascentista.
(Foucault, 1972).
Uma destas representações é a pintura de Hieronimus Bosch, também intitulada “Nau dos
Loucos”, em cujo barco, existem inúmeros elementos carregados de simbolismos associados à figura do
louco e seu lugar no mundo. A árvore, um dos símbolos ocultistas da sabedoria, da vida e também do
pecado, ocupa o lugar do mastro, o qual perde sua função de guiar o barco rumo a um destino certo. A
vida aparenta perder sua historicidade. Não há mais passado nem futuro, apenas o eterno presente. A
religiosidade, a morte, a alegria, o medo e o insólito se fazem presentes nesta obra, criando uma imagem
polimorfa e de difícil definição da loucura.
Tais barcos carregavam em si o simbolismo de uma viagem incerta, em que se partia de um lugar,
mas não havia o “onde chegar”, na medida em que a
descida de seus tripulantes nas cidades geralmente não
era autorizada. As paradas eram apenas para reabastecer
o barco para continuar a eterna e desgovernada viagem.
O louco levado pela água, símbolo da purificação, estava
entregue ao sem lugar, ao território de ninguém. Desta
forma, Foucault (1972) considera o louco como
... o Passageiro por excelência, isto é, o
prisioneiro da passagem. E a terra à qual
aportará não é conhecida, assim como não se
sabe, quando desembarca, de que terra vem.
Sua única verdade e sua única pátria são essa
extensão estéril entre duas terras que não lhe
podem pertencer (p.12).

Figura 4: A Nau dos Loucos – Hyeronimus Bosch

Nesses barcos o louco era colocado no interior do exterior, ou seja, dentro de algo que ruma o
fora de tudo. Para Foucault (1972), essa mesma lógica permaneceu, de modo invertido, até os dias atuais

52
quando internamos, com ar de eterno, os loucos em hospitais psiquiátricos colocando-os no exterior do
interior. O lugar reservado para os loucos, fruto de nossas representações, parece continuar sendo esse
lugar inóspito, essa terra de ninguém, imersa em um contexto no qual ao louco é vedado participar.
Até meados do século XV, o grande tema que predominava no imaginário do homem ocidental
era a morte, o limite externo colocado pela própria vida, reforçado pelo dogmatismo cristão e pelas várias
pestes e guerras que assolaram a Europa. A partir daquela época, o pensamento ocidental sofreu uma
transformação radical e o espaço privilegiado ocupado pela morte cede lugar à loucura, limite sentido do
interior da própria existência. Deste nada em que se configurou a existência do homem, passa-se à sua
contemplação desdenhosa, cujo símbolo é a loucura.
Para Foucault (1972, p.16),
“a loucura é o já-está-aí da morte”,
o que confere a esta experiência
uma semelhança ritual com a lepra,
pois ambas representam a presença
da morte no mundo dos vivos. A
loucura, no entanto, subverte a
morte, na medida em que “o que
existe no riso do louco é que ele ri
antes do riso da morte; e
pressagiando o macabro, o insano o
desarma” (p.16).
Figura 5: A Queda dos Anjos – Peter Brueghel (1562)

No início da Renascença, mediante as várias formas de relacionamento com a loucura, pode-se


testemunhar a co-existência de duas concepções que começam a se delinear a respeito deste fenômeno.
Uma “concepção trágica” e uma “consciência crítica” que, naquele período, ainda se misturavam
compondo uma amálgama de significações ainda não definitivas a respeito da loucura. Essas concepções
podem ser percebidas por meio das representações da loucura nas diferentes formas de arte e suas
linguagens específicas.
A concepção trágica é amplamente representada pela pintura que marca uma ruptura com a
iconografia medieval. Como afirmado anteriormente, a
arte da Idade Média era essencialmente religiosa e
representava o triunfo de Deus sobre o demônio,
oferecendo imagens com mensagens claras, que
reforçavam as representações dualistas do bem versus
o mal. O triunfo atribuído sempre ao Bem era retratado
com grandiosidade, harmonia e uma beleza angelical.
Figura 6: O Jardim das Delícias (detalhe)
Hyeronimus Bosch

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As incertezas e temores, frutos do abandono das certezas teológicas, reintroduziram na cultura a
dimensão trágica da condição humana. O homem voltou a se deparar com o descontrole, com o não
domínio de sua natureza. Voltou-se para o desconhecido que o constituía e o inusitado que o assolava.
Com o advento desta nova concepção da loucura no período da renascença, a pintura “abandona as
funções de lembrar e de ensinar, que eram a sua justificação, e sobrecarrega-se de um excesso de
significações” (Frayse-Pereira, 1985, p. 54).
Muitas pinturas do período do Renascimento eram impregnadas de estranhos símbolos mesclando
signos sexuais e transcendentes, compondo uma imagem enigmática, onde a natureza se subverte pela
maldade. O animal, antes domesticado e a serviço do homem, com a subversão desta lógica, passa a
dominar a cena, denunciando a animalidade do próprio homem e
dominando-o.
A imagem da loucura representada a partir de então, abre
uma fenda no imaginário, evidenciando o fascínio e o temor do
homem diante da insanidade. Desta fenda saltam figuras
grotescas, nas quais a imagem do homem se transfigura,
deixando transparecer a monstruosa loucura que o habita. O
apocaliptismo presente na era medieval volta à cena, desta vez
tendo a loucura como vencedora. Não é mais Deus que triunfa
sobre o demônio, mas a loucura que triunfa sobre ambos. Enfim,
o homem é desnudado em sua essência. A loucura exerce,
triunfante, seu fascínio e ocupa seu lugar sagrado em todo o
imaginário renascentista. (Foucault, 1972).
Figura 7: Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse
Albretch Durer

A dimensão trágica refere-se justamente ao fato de que tais imagens provocam não somente um
fascínio ou um temor, mas revelam um saber, um conhecimento inacessível ao homem comum. Saber
este que é trazido somente por meio da loucura, que revela a essência verdadeira do homem,
evidenciando, de alguma forma, um retorno a uma concepção apolínea acerca desse fenômeno. (Foucault,
1972). O louco, em sua inocência, passa a ser portador de um saber que o domina, ao mesmo tempo em
que o escapa.
Por outro lado, na filosofia e na literatura, a loucura começa a trilhar um outro caminho, sendo
concebida não sob a lente do fascínio, do temor, ou de um saber transcendente aos homens comuns. A
loucura, nestas áreas do saber humano, é representada como erro, defeito e denúncia da fraqueza e
natureza viciada do ser humano, ou seja, é introduzida no campo da moral. Ela passa a ser apreendida por
uma “consciência crítica”, que a julga como uma verdade medíocre e a toma como objeto de discurso. Tal

54
“consciência crítica” retira da loucura o seu estranho poder de expressão dos mistérios do mundo, sendo
reveladora de um desequilíbrio do próprio homem.
Erasmo de Roterdam, importante pensador da renascença, em seu
Elogio da Loucura (1509), trata a loucura de forma jocosa, satirizando a
condição humana e sua pequeneza, considerando esse fenômeno como uma
forma de ascensão e crítica ao absurdo e estupidez da guerra, da ciência e
da infelicidade. Sua obra, marcada pela ironia e bom humor, é uma prova
de que as concepções trágica e crítica da loucura, neste momento histórico
se interpenetram, formando uma complexa trama de significações. Na
verdade, sabedoria e loucura ainda estavam muito próximas, não sendo
claramente definidas as fronteiras entre ambas.
Figura 8: Retrato de Erasmo de Roterdam
Albretch Durer

A obra célebre de Cervantes, Don Quixote, apesar de já evidenciar uma consciência crítica
com relação à loucura, ainda revela certa ambivalência, característica do período inicial da renascença, na
forma de concebê-la. Dom Quixote apresenta-se como um sujeito assolado por desvarios de várias ordens
e que nos dias atuais, certamente, seria enquadrado em alguma classificação de doença mental pelos
manuais clássicos de Psiquiatria. Cervantes, no entanto, nos mostra também uma outra face deste sujeito
insano: um ser humano apaixonado e convicto da veracidade de seus sonhos e desejos mais profundos.
Esta obra permite que diversas significações sejam atribuídas à loucura, através das experiências galgadas
por este cavaleiro andante e seu fiel escudeiro. O famoso cavaleiro Don Quixote traz em suas andanças
um misto de desajustamento, transcendência e fascínio.
Ao longo do Renascimento, entretanto, a loucura foi sendo absorvida pela consciência crítica,
como resultado da transformação do pensamento da época como um todo. O desenvolvimento das
ciências naturais, com o crescente fortalecimento de uma ciência calcada nos ideais positivistas culminou,
no século XVII, com a chamada Revolução Científica que marcou uma ruptura com as concepções
científicas e filosóficas existentes até aquele momento. Esta revolução teve como um de seus
pressupostos a postura de que para se chegar à verdade, o observador deveria se despir de todos os seus
“preconceitos ou enviesamentos culturais, pessoais ou subjetivos” (Reis, 1998, p. 54).
Juntamente com Francis Bacon, outros atores da história personificaram este ideal positivista da
ciência, consolidando seus métodos e introduzindo o mecanicismo como forma primordial de
compreensão do mundo e da natureza. Nicolau Copérnico, Kepler e Galileu Galilei combinaram a
experimentação com a linguagem matemática na formulação das leis naturais. Isaac Newton, alguns anos
depois, realizou uma síntese da obra destes cientistas, consolidando esta concepção mecanicista como
eixo orientador da ciência. Dentro desta concepção, o universo “não era mais do que um vasto sistema de
movimentos previsíveis a partir de leis universais. A natureza concebida como uma máquina cujas partes
trabalham de acordo com leis que é possível descobrir” (Reis, 1998, p.55).

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Com a evolução das ciências, iniciaram-se as grandes navegações, que colocaram o homem
europeu em contato com outras culturas, propiciando assim, o surgimento de uma nova classe social, a
burguesia, que trouxe consigo a emergência de novos ideais e o favorecimento dos regimes absolutistas
de governo. A influência do pensamento burguês pode ser observada em nossa cultura, por meio de
alguns de seus legados, como por exemplo, a forma de organização do trabalho, a propriedade privada e a
configuração familiar que predomina atualmente.
Como conseqüência desse momento, o universo passou a ser representado segundo a metáfora do
“mundo-relógio”, que fundamentou as ciências naturais ao longo dos séculos que se seguiram,
expandindo-se também para a compreensão do próprio homem. René Descartes (1596-1650), filósofo
cuja obra influenciou sobremaneira o pensamento ocidental, introduziu uma importante ruptura dentro da
filosofia ao aderir ao mecanicismo nascente nas ciências. Concebe o corpo humano à semelhança de uma
máquina, dividindo a natureza do homem em dois domínios distintos: o do espírito e o da matéria. Este
dualismo defende a idéia da distinção essencial entre estes dois domínios que, no entanto, não funcionam
independentemente. O corpo seria uma máquina sem sentimento, constituindo-se em um sistema passivo,
e o espírito ou alma, o local da consciência, da inteligência e da emoção. A ligação entre estes dois
sistemas se daria por meio da glândula pineal, que seria o centro irradiador dos comandos do espírito para
o corpo (Reis, 1998).
O dualismo cartesiano engendrou profundas transformações no pensamento, favorecendo a
independência da ciência com relação à religião, na medida em que o corpo era redutível a sistemas
mecânicos e a alma, considerada como uma dádiva de Deus, permanecia sob o domínio da religião, sendo
excluída do âmbito da ciência. A ciência, a partir de então, deveria se ocupar com a máquina corporal, e a
alma, espírito, ou qualquer outro correlato subjetivo, não era mais objeto de seus interesses e
intervenções. Percebe-se na filosofia cartesiana, o germe do modelo biomédico que prevaleceu nos
séculos que se seguiram, e ainda prevalece, na medicina tradicional dos dias atuais.
Outro ponto importante do pensamento cartesiano para o âmbito deste estudo, é o fato de sua
filosofia se constituir em uma “espécie de fonte, em que bebem o racionalismo e o empirismo” (Santos,
2003, p. 144). A máxima de Descartes, Penso, logo existo, marca no pensamento moderno a primazia da
razão: fonte única do conhecimento legítimo e da própria existência. Segundo Frayse-Pereira (1985), na
filosofia cartesiana
O eu que conhece não pode estar louco, assim como o eu que não pensa não existe. Excluída
pelo sujeito que duvida, a loucura é condição de impossibilidade do pensamento. Ou seja, a
partir do racionalismo moderno, sabedoria e loucura se separam. Os perigos que a loucura
poderia oferecer para influenciar a relação entre o sujeito e a verdade são afastados (p.61).

Descartes é considerado por muitos o pai da filosofia moderna e sua obra, juntamente com a obra
dos cientistas que engendraram a revolução científica, abre espaço para o início do Iluminismo, em
meados do século XVII, no qual se dá a consolidação do pensamento racionalista que emerge no
Renascimento. Neste novo momento da cultura ocidental, não havia mais espaço para o desmedido, para

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o irracional, para o ilógico. A razão passou, de fato, a ser o grande e fundamental eixo que guiaria a
construção de uma nova sociedade. Único instrumento que permitiria ao homem ascender ao
conhecimento verdadeiro e ter o domínio do mundo que o cercava e do qual fazia parte.
A loucura se separou definitivamente da razão e da sabedoria, passando a ser o oposto destas. A
dimensão trágica da loucura deslizou para os subterrâneos do pensamento ocidental, raramente subindo à
superfície e, quando isso acontece, é de forma bastante esporádica, quase sem representatividade diante
do crescente cientificismo. A loucura é violentamente deslocada para o domínio da moral, e sobre ela é
construído um discurso, onde é concebida como erro ético, defeito e subversão da vocação “natural” do
homem como ser racional. Segundo Barreto (1997, p. 247), “o desatino acerca-se da noção de pecado
contra a carne e de falta contra a razão”.
Para Foucault (1972), na época clássica, a razão se constituiu dentro do espaço da ética, sendo
esta uma escolha individual. A razão passou a ser o resultado de um trabalho pessoal, no sentido de não
se deixar abandonar de forma preguiçosa aos encantos e às tentações do desatino. A partir de tal
afirmação, pode-se perceber o retorno a alguns elementos da concepção aristotélica, no que diz respeito à
possibilidade (e necessidade) de domínio e educação das paixões, colocando-as a serviço da razão e da
virtude. À loucura foi imposta uma carga de intencionalidade, pressupondo nela uma escolha perversa, na
medida em que o “indivíduo enlouquece por ter desejado ser louco” (Frayse-Pereira, 1985, p. 68).
Assim, no período da Renascença, percebeu-se inicialmente uma libertação do pensamento
demonológico com relação a loucura. A transformação do pensamento teocêntrico para o antropocêntrico
representou uma abertura para diversas significações que foram atribuídas à loucura. Tais significações
foram agrupadas no que Foucault denominou concepção trágica e concepção crítica da loucura que em
um primeiro momento se confundiam devido a uma falta de definição mais clara do fenômeno. Ao final
do Renascimento, entretanto, percebeu-se um triunfo da concepção crítica, como resultado de uma visão
de mundo racionalista, cujo homem ideal deveria ter como principal característica a razão. O triunfo desta
concepção, engendrada no seio do racionalismo, teve como conseqüência a necessidade de
enclausuramento e exclusão deste reverso da razão que é a loucura.

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O aprisionamento da loucura
Todos esses velhos ritos da magia, da profanação,
da blasfêmia, todas essas palavras, doravante ineficazes,
deslizam de um domínio da eficácia onde tinham sentido
para um domínio da ilusão onde se tornam sem sentido
e condenáveis ao mesmo tempo: o da insanidade.
Dia virá em que a profanação e toda sua gestualidade trágica
terá apenas o sentido patológico da obsessão”.
(Foucault)

Iniciou-se, enfim, o aprisionamento da loucura, que não se restringiu mais ao pensamento


filosófico, ou ao exílio ritual nas insanas embarcações. Foram criadas, na Europa do final do século XVII,
inúmeras instituições com o objetivo de dominar e silenciar a presença da loucura. Instituições
conhecidas como Hospitais Gerais ou casas de detenção, que marcaram o começo de uma outra relação
que se estabeleceu com a loucura daquele momento em diante.
Os Hospitais Gerais - instituições de caráter jurídico e policial - logo se espalharam pela França e
países vizinhos. Sua função nada tinha de terapêutica ou médica e, no momento de sua criação não se
destinavam somente aos loucos. Essas instituições eram instâncias reguladoras da miséria que assolava as
cidades européias.
Eram destinadas para os Hospitais Gerais toda sorte de pobres e desviantes, e demais pessoas que
não se adequavam à nova ordem social. A pobreza perde seu lugar santificado no qual foi colocada na
Idade Média. Com o advento do Renascimento e da Reforma Protestante, a pobreza passou a ser
associada à preguiça, considerada como o primeiro e mais grave dos vícios. O ocioso era aquele que
desafiava Deus e o trabalho era, para os homens de bem, moralmente obrigatório. Estas casas de
internamento, existentes nos séculos XVII e XVIII, podem ser concebidas também como casas de
trabalho forçado, comprometidas com interesses burgueses e marcadas pela ambigüidade entre o desejo
de ajudar e a necessidade de punir os ociosos. (Foucault, 1972).
Esta idéia subjacente à implementação dos trabalhos forçados nas casas de detenção atravessou
os séculos seguintes à criação dos Hospitais Gerais, parecendo-nos bastante atual. Quando nos
reportamos à história dos hospitais psiquiátricos ainda existentes nos dias atuais, observamos que os
trabalhos forçados ainda fazem (ou faziam) parte da terapêutica dedicada a seus internos. A laborterapia
foi sugerida por Pinel ao final do século XIX, como uma técnica terapêutica, uma forma de
ressocialização dos internos recuperados e reinserção dos mesmos no mercado de trabalho.
No Brasil, nos primeiros anos do século XX, entretanto, esta técnica foi compreendida e aplicada
de modo diferente do que Pinel pregava, guardando semelhanças com as idéias que embasavam a
imposição do trabalho forçado à época dos Hospitais Gerais europeus. Apenas a título de ilustração,
faremos algumas alusões ao Complexo Psiquiátrico do Juquery, Estado de São Paulo, criado em meados
do século XIX, no que tange à dimensão do trabalho.
No Complexo Psiquiátrico do Juquery o trabalho era um “meio de disciplinar os incuráveis, de
torna-los dóceis e integrados no seu novo mundo de reclusão perpétua e garantir a ordem e a disciplina da

58
própria instituição” (Cunha, 1990, p.52). A laborterapia consistia em um trabalho imposto aos internos
das instituições, algumas vezes com a função de manutenção das mesmas. Na maioria das vezes consistia
em um trabalho repetitivo, sem uma produção efetiva, e sem um sentido terapêutico. Seu objetivo era
apenas disciplinar moralmente o doente. Sua imposição se dava por meio de coerções e violências, e a
remuneração era feita pela troca de alguns pequenos favores e privilégios, tais como obtenção de cigarros
ou aumento da ração diária de alimentos.
O funcionamento do Juquery, considerado por muitas décadas um modelo para toda a psiquiatria
brasileira, em muito se assemelhava aos antigos Hospitais Gerais da França, na medida em que também
estava comprometido com os interesses burgueses e também era marcado pela ambigüidade entre
assistência e punição dos ociosos, indesejados e “inadequados” aos novos modos de produção.
Esta dimensão do trabalho é apenas um dos pontos que nos permitem afirmar que os Hospitais
Gerais podem ser considerados um marco do início de um processo de institucionalização da loucura no
ocidente, com a respectiva institucionalização de práticas e
consolidação de concepções morais acerca da loucura.
O fluxo das pessoas que eram internadas nos Hospitais
Gerais estava intimamente relacionado às necessidades econômicas
de cada momento específico vivido na Europa. Em épocas de
pobreza, as inúmeras pessoas que não eram absorvidas pelo mercado
de trabalho e ficavam ociosas pelas ruas, eram recolhidas às casas de
detenção. Em outras épocas, nas quais havia muitos empregos nas
cidades européias ou em momentos que a mão-de-obra se tornava
cara, libertavam-se as pessoas que serviriam de mão de obra barata,
suprindo a necessidade do mercado. Figura 9: Prisioneiros se exercitando - Van Gogh

Como se pode perceber, estas casas de detenção atendiam a interesses diversos, que não somente
os de ordem moral. Os Hospitais Gerais da Europa, além de serem instituições moralizadoras e
disciplinadoras da sociedade, funcionavam, de certa forma, como uma das instâncias reguladoras da
economia.
Pode-se dizer que os Hospitais Gerais deixaram como herança para os hospitais psiquiátricos
atuais esta função ampliada, ou seja, uma função de controle social, para além da função terapêutica.
Sabe-se que os hospitais psiquiátricos contemporâneos estão mergulhados em uma trama de interesses
que supera os estritamente terapêuticos e morais. Cunha (1990) oferece um claro exemplo ao relatar o
início da implementação dos hospitais psiquiátricos no Brasil. Essa autora afirma que a elite apoiava, para
além de uma ciência que tratasse dos sujeitos acometidos de transtornos psíquicos, um conjunto de
pressupostos capazes de criar instrumentos eficientes para disciplinar o grande contingente de pobreza
que inchava as cidades brasileiras.
Conta a história que no Brasil, a pobreza se tornara um problema com instauração da primeira
república, o que levou a elite republicana a se aliar com a psiquiatria recém importada da Europa, como

59
veremos mais adiante. Segundo as concepções alienistas elaboradas à época, a pobreza era campo fértil
para a loucura e a degeneração. Assim, podiam tornar-se “incontroláveis se as condições institucionais de
enfrentamento não fossem modificadas e constituíssem prioridades para o Estado... degeneração
precisava ser enfrentada como condição de viabilidade do novo regime” (Cunha, 1990, p.36). Percebe-se
assim que o apoio às concepções alienistas e aos hospitais psiquiátricos atendia aos interesses políticos e
econômicos do regime republicano, para além de questões puramente humanitárias ou morais.
A moralidade, entretanto, era um dos fatores predominantes que mantinham os Hospitais Gerais
da Europa quando de sua criação. O internamento gerou em toda a população do início do século XVIII
um temor, pela ameaça constante que representava a inúmeros grupos, nos quais estavam incluídos
“devassos, alquimistas, suicidas, blasfemadores, portadores de doenças venéreas, libertinos de toda
espécie” (Frayse-Pereira, 1985). De uma forma geral, todos os “desatinados”, que colocavam em xeque
as proibições sexuais e religiosas, eram alvo da exclusão, não havendo ainda uma distinção clara entre o
desatino e a loucura. As casas de detenção representavam o triunfo do Bem contra o reino do mal,
realizando o ideal burguês, dentro do qual a virtude era o que fazia prevalecer a ordem social. Os
Hospitais Gerais evidenciavam, assim, uma cumplicidade entre a polícia e a religião. (Foucault, 1972).
À cumplicidade entre as instâncias religiosa e policial, veio se somar a cumplicidade da medicina,
quando esta foi chamada a intervir, em nome da proteção à população externa às casas de detenção. O
temor destas casas se espalhou de tal forma que começou a circular no imaginário social a idéia de que
algum mal, proveniente dos pátios destas instituições poderia contaminar as pessoas que vivessem em
seus arredores. Segundo Foucault (1972), tratava-se de uma espécie de “mal-podridão”, fruto de uma
fermentação ocorrida nos espaços fechados onde ficavam os desatinados, que poderia contaminar, através
do ar, até mesmo os lugares habitados pelos “cidadãos de bem”. Assim, os médicos foram chamados a
intervir para evitar a propagação deste novo mal. Desta forma, a medicina se alia à moral, na medida em
que, na base da concepção deste mal-podridão estavam presentes, obviamente, elementos de ordem
moral.
Nas casas de detenção, não havia médicos fixos, o que fazia com que elas se assemelhassem às
prisões. Não se consideravam os seus internos como doentes a priori, sendo os médicos chamados a
intervir somente nos casos em que outras doenças assolavam a população já internada, cujo
desenvolvimento ameaçava a população ao redor.
Uma das práticas relativas aos loucos que habitavam os Hospitais Gerais no início do século
XVIII, juntamente com outros desatinados, era a exposição dos primeiros nas praças e outros lugares
públicos. Tal exposição se configurava como uma reafirmação e exaltação da razão, alertando as pessoas
para as conseqüências da inadequação moral. Pode parecer estranho o fato das pessoas não se
compadecerem da situação dos loucos, o que se justifica pelo fato deste ser reduzido, devido a sua
insanidade, à condição do “não-ser”, destituído de sua natureza humana, sendo comparável às bestas.
Na segunda metade do século XVIII, entretanto, esta idéia da animalidade começa a ser
substituída por outra concepção praticamente oposta. Com o desenvolvimento das instituições sociais,

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surgiu uma corrente de pensamento que se colocou enquanto crítica aos tempos modernos. A loucura,
antes atribuída à responsabilidade individual, passou a ocupar um lugar de fato social. A loucura
começou a ser concebida como fruto da artificialidade da sociedade, um produto da cultura. Iniciou-se
um movimento de elogio à natureza, dentro do qual a loucura era vista como a perda da dimensão natural
do homem. A loucura começou a ser considerada como fruto de um contexto histórico e social, que
possibilitava sua emergência (Frayse-Pereira, 1985).
Neste momento histórico, tal concepção parece não ter alcançado grande destaque, pois, apesar
do reconhecimento da pertinência de suas proposições, sua emergência não impediu que a loucura
continuasse sua trajetória de institucionalização. Tais idéias serão retomadas com grande ênfase somente
na década de 60 do século XX, duzentos anos depois, no âmbito dos movimentos de contestação da
Psiquiatria, em especial com a Antipsiquiatria, que radicalizou a afirmação da etiologia social e política
da loucura, propondo novas práticas de tratamento, em substituição ao internamento.
A despeito dessas novas idéias que colocam a loucura como fruto do meio social, ao final do
século XVIII, com o redimensionamento da loucura entre as preocupações sociais, a sociedade ocidental
dedicou finalmente um espaço definido para a exclusão da loucura. Como resultado das rápidas
transformações sociais na segunda metade do século XVIII, iniciou-se um novo tipo de protesto: o dos
presos políticos e outros atores sociais que se rebelam contra a violência de serem internados junto com
os loucos. Os protestos não eram no sentido de questionar a relação entre os loucos e a internação, mas
sim a internação de outras pessoas junto a estes (Foucault, 1972).
Além dos protestos, outro fator contribuiu para a retirada dos outros “habitantes” das casas de
detenção. O internamento passou a ser visto como um erro econômico, pois de acordo com a concepção
liberal nascente “quanto menos numerosa for a população, mais pobre será uma nação, pois a riqueza é
produzida pelo trabalho dos homens” (Frayse-Pereira, 1985, p. 77). Os pobres passaram a ser
considerados peças essenciais à economia, pois constituíam a mão de obra necessária ao trabalho
industrial nascente. Nesse momento histórico, marcado pelo início da economia liberal, mais uma vez a
pobreza foi ressignificada dentro da sociedade. Na Idade Média, a pobreza foi santificada enquanto forma
de punição e salvação. No século XVII, início do Iluminismo, esta foi revestida de um caráter moral, e de
agora em diante será considerada uma “coisa econômica”. Os pobres, a partir de então, serão
considerados como essenciais à produção e manutenção da riqueza.
Assim, da mesma forma que houve a necessidade de recolocação dos pobres no sistema de
produção e consumo, houve a necessidade de reformulação do sistema de assistência à população como
um todo. A teoria da assistência no final do século XVIII abandona o hospital como espaço de cura,
reinstaurando este lugar nas famílias dos doentes. Pela primeira vez, pobreza e doença se tornam coisas
privadas, da esfera apenas dos indivíduos e suas famílias. (Frayse-Pereira, 1985). Os pobres e doentes de
uma forma geral passaram a ficar sob a responsabilidade das famílias, incluindo entre estes as pessoas
consideradas loucas.

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Acontece, entretanto, que a loucura, por seu perigo potencial, necessitava de uma medida de
proteção social, cuja responsabilidade permanecia no âmbito do Estado. Aliada a este “perigo potencial”,
um outro fator fez com que permanecesse a busca pelo internamento dos insanos: as famílias,
inteiramente responsabilizadas por seus doentes podiam, caso a tranqüilidade pública fosse perturbada,
“ser processadas a fim de reparar os danos ocasionados pelas pessoas loucas, furiosas ou dementes”
(Castel, 1978, p.25).
Assim, na França, nas últimas décadas do século XVIII, com a liberação dos outros personagens
sociais (pobres em geral) e tendo em vista a permanência da internação dos loucos, os hospitais gerais
passaram a ser destinadas exclusivamente a esta parcela da população. Como conseqüência da
permanência dessas internações, foi se ampliando a necessidade de legislar sobre aqueles que deveriam
permanecer em tais estabelecimentos, como forma de legitimar tal aprisionamento. Neste sentido, a partir
de 1775, criam-se os tribunais de família com o objetivo de oferecer uma “caução judiciária” para o
maior número de casos possíveis que estavam sob clausura. Desta maneira, foi instaurada a interdição,
solicitada pela família e concedida pelo Estado, para internação e manutenção dos loucos nas instituições
destinadas ao seu aprisionamento (Castel,1978).
Com o crescimento da circulação dos bens e dos homens, ocorreu um rearranjo no equilíbrio do
poderes que regulam as leis sociais. A soberania real foi questionada e considerada como arbitrária e, a
partir da instauração do novo regime republicano em alguns países da Europa, foi a sociedade de contrato
que passou a gerenciar o equilíbrio social. A função do Estado dentro desta nova ordem, entretanto, não
foi atenuada, mas passou a ser regida pelo Direito, sendo, pelo menos teoricamente, eliminada qualquer
forma de arbitrariedade. A função desse novo Estado passou a ser a de sancionar as transgressões de
ordem jurídica e econômica, impondo o respeito à sociedade contratual, por meio da conservação social e
repressão política. Segundo Castel (1978), a sociedade contratual é a “matriz jurídica através da qual se
exerce a violência do Estado e se impõe a exploração econômica”.
Uma das inúmeras conseqüências do desenvolvimento desse tipo de sociedade, regulada pelas
leis de mercado e do direito, foi a reorganização dos poderes de legitimação do aprisionamento dos
insanos. A loucura que, aparentemente era um problema social a mais, juntamente com a mendicância, a
vagabundagem, os menores abandonados, os doentes indigentes, dentre outros, acabou por assumir um
lugar de grande importância neste momento de transição por ser, de certa forma, o contraponto do tipo de
inserção esperada dentro da ordem social emergente.
A necessidade de aprisionamento e medicalização da loucura foi o ponto de partida para as
reflexões e invenção do estatuto de tutela, considerado essencial para o funcionamento de uma sociedade
contratual (Castel, 1978, p. 34). Os loucos, por excelência, eram os “súditos” que não se reduziam ao
novo funcionamento social. Assim, foi necessário impor-lhe um “estatuto diferente e complementar
àquele contratual, que rege a totalidade dos cidadãos” (Castel, 1978, p.36). Cabe ressaltar que este
estatuto diferenciado imputado inicialmente para o louco, expandiu-se a outros grupos sociais
considerados indesejados e inadequados ao funcionamento social.

62
Para garantir o gerenciamento da loucura diante do novo quadro contratual, um outro poder foi
convocado, para além do judiciário, do executivo e familiar: o poder médico, baseado em critérios
científicos, portanto, livres de qualquer arbitrariedade, segundo as crenças iluministas. O poder médico
utilizou as influências dos outros três poderes e se estabeleceu, soberanamente, sobre os mesmos,
assumindo a função de construir para o louco, um fundamento terapêutico para o seu isolamento e
repressão. A ciência médica, como aliada do Estado em sua função de manter a ordem social e
econômica, por meio de suas construções teóricas e discursivas, justificou o afastamento da loucura do
contrato social, destituindo-a de seu direito à cidadania.
Privada de sua participação no contrato social, a loucura foi sendo aprisionada sob o rótulo da
irresponsabilidade, periculosidade, imprevisibilidade e improdutividade que impregnou toda a sociedade
(Koda, 2003). Tais rótulos foram elementos fundamentais na construção de uma representação social da
loucura, que atendeu, e ainda atende, às necessidades de proteção e manutenção de uma determinada
dinâmica social e cultural.
O ideal de cidadão, constituído no âmbito da Revolução Francesa em conjunção com o
desenvolvimento do liberalismo, propagou-se e se constituiu no contraponto desta representação da
loucura. A noção de cidadão nasceu marcada por uma concepção racionalista, individualista e
meritocrática. De forma precisa e eficaz, foi desenvolvida a crença de que deste individualismo, baseado
em leis racionais, adviriam todos os resultados positivos em termos de progresso científico, técnico e
econômico (Patto, 1990).
Nesse contexto, o cidadão elevado à condição de razão universal, passou a exercer um “poder de
polícia”, sendo mais uma instância julgadora da loucura. Os cidadãos comuns passaram a exercer,
juntamente com as instituições normatizadoras, um controle social que tinha por objetivo manter a ordem
e o bom funcionamento da coletividade, perseguindo e denunciando todos aqueles que perturbavam a tão
proclamada ordem que guiaria a sociedade rumo ao desenvolvimento e progresso. Os cidadãos, antes
submetido apenas às regras disciplinares advindas das instituições em que estavam inseridos, a partir de
então passam a internalizar as normas sociais, sendo cada cidadão um juiz de si mesmo, em consonância
com o que Foucault (1980⁄2003) denomina de poder disciplinador.
O poder disciplinador, segundo Foucault (1980⁄2003) é uma internalização de regras advindas de
discursos especialistas que modelam e monitoram sistemas em que cada pessoa é hábil para agir, tendo a
si próprio como supervisor. Este poder disciplinador passa a circular em todas as instituições e espaços
sociais. Dentre as pessoas que passaram a ser objeto deste poder disciplinador estavam, especialmente, os
loucos, doravante, alvos de denúncias e perseguições se, porventura, estivessem fora dos lugares a eles
reservados.
Essa atitude diante dos loucos evidencia a necessidade crescente, ao longo da história, de
demarcar de forma cada vez mais precisa, os territórios da razão e da loucura, como forma de resguardar
a identidade do homem de razão, fortalecida no âmbito do Iluminismo. Este processo de construção das
representações da loucura, calcadas em elementos como periculosidade e improdutividade, mostra uma

63
preocupação em dominar e se diferenciar deste objeto polimórfico15. O domínio da loucura torna-se um
fator de agregação em termos de identidade e coesão social. O estabelecimento de uma profunda
diferença entre o grupo dos cidadãos e dos loucos evidencia, dentre outros fatores, a função identitária das
representações sociais.
Segundo Moliner (1996), as representações sociais têm um papel importante na sobrevivência de
um grupo, devido à preservação da identidade daqueles que o compõem. Este autor cita como exemplo
desta função identitária das representações sociais, uma pesquisa desenvolvida por outro pesquisador a
respeito da concepção de doença mental adotada por psicólogos e psiquiatras. Essa pesquisa aponta para o
fato de que a identidade destes grupos depende de uma concepção coerente a respeito da doença mental.
Inúmeros exemplos podem ser citados no sentido de ilustrar a função identitária das
representações sociais, mas é essencial o fato de que as representações demarcam diferenças ou
semelhanças entre o objeto representado e os membros dos grupos que elaboram tais representações,
demarcando as características do próprio grupo em relação ao objeto. No que diz respeito às
representações sociais da loucura, os diversos grupos elaboram representações que, além de outras
funções práticas, marcam diferenças visíveis entre os membros dos grupos que elaboram as
representações e os loucos. As representações sociais da loucura visam resguardar a identidade dos
grupos que a elaboram, marcando de forma clara a distinção entre os grupos de loucos e não loucos.
A necessidade de preservação da identidade do homem de razão levou, como dito anteriormente,
a uma vigilância da circulação dos loucos por parte da própria população. Este controle social exercido
pelos cidadãos em relação aos loucos pode ser comparado ao que Birman (1991) denominou de
“pedagogia da cidadania”. Este autor aponta para o paradoxo da cidadania, sobre o qual foi construído o
(não) lugar social do louco. O conceito de cidadania, formulado no contexto da Revolução Francesa,
tinha como lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, garantida a todas as pessoas. Entretanto, este ideal
deixou de fora a parte da população considerada louca, pois a idéia de cidadão presente em tal contexto
era o do homem iluminista, constituído com base na razão e no ideal de progresso, elementos já
dissociados há muito, da figura do louco. Sendo assim, a “cidadania do louco” foi construída sobre uma
clara negatividade.
A partir das reflexões de Birman (1991), pode-se concluir que o discurso da cidadania e da
proteção do Estado ao cidadão teve conseqüências desastrosas para a loucura. Se por um lado, o Estado
tinha por obrigação cuidar e proteger a sociedade da loucura, ao mesmo tempo em que deveria oferecer a
esta última algum tipo de assistência, por outro lado, este mesmo Estado acabou promovendo sua
exclusão e destituição dos demais direitos sociais. O único direito reservado à loucura passou a ser o de
estar submetido às casas de detenção reservadas exclusivamente ao seu isolamento. A loucura passou a

15
Segundo Moliner (1996), os objetos de representação social têm em comum, o fato de serem polimórficos, ou
seja, podem se apresentar de diversas formas na sociedade, agrupando em si diversos outros objetos e possibilidades
de significação. Este polimorfismo suscita a necessidade de elaboração de representações sociais, como forma de
dominar tais objetos e demarcar identidades dos grupos que se relacionam com o mesmo.

64
ser aprisionada também pelo discurso e pelas práticas da nascente psiquiatria. Uma modalidade da
medicina encarregada deste momento histórico em diante de gerenciar a loucura e sua exclusão do meio
social.

O levantamento da história da loucura teve por objetivo mostrar as diversas significações


atribuídas a este fenômeno desde a Grécia antiga até o final do século XVIII. Significações estas sempre
em consonância com as necessidades dos diferentes momentos históricos vividos pela cultura ocidental.
Até este momento do final do século XVIII, a loucura ainda figurava prioritariamente entre os diversos
fenômenos humanos, não tendo sido ainda completamente tomada como um objeto da ciência, mais
especificamente da Psiquiatria, um ramo da Medicina que nasceu no início do século XIX, especialmente
para dar conta deste fenômeno.
A seguir faremos um breve histórico da Psiquiatria, mostrando como a loucura, de certa forma,
perdeu sua dimensão enquanto um fenômeno humano, amplo, sendo aprisionada pelo discurso
psiquiátrico, constituída a partir do olhar de especialistas e reduzida a uma doença.

65
2. BREVE HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA E SUA INSERÇÃO NA CULTURA BRASILEIRA

“Sozinhos entre retortas e serpentinas, os cientistas do medo


ensaiam mutações inconsistentes; e de seus cérebros doentes
saltam entidades tortas, arcabouços de futuras ruínas.
Esquecem-se de que o homem, criatura alada,
não pode ter como horizonte uma sociedade por quotas, limitada.
E ao anseio de crescimento, à busca de liberdade, respondem
os arquitetos do pesadume com a máquina do medo.
Ameaçam, enclausuram, apertam, cortam, furam, despedaçam,
Massacram o HOMEM, sob pretexto de salvar outros homens.
Mas os que se salvam, nesse contexto, soam como sinos quebrados.
(Eduardo Alves da Costa)

A partir de meados do século XVIII, com o fortalecimento do Iluminismo e com as novas


transformações sociais introduzidas pelo liberalismo, o pensamento social sofreu drásticas
transformações. A “dessacralização do mundo” se concretiza e o antigo ideal da salvação, professado
pela Igreja Católica no âmbito de uma concepção teológica de mundo, se transforma no novo ideal da
cura; a saúde passa a ser instituída como um valor fundamental, indicativo da felicidade humana. Além
de seu valor para os indivíduos, a saúde das populações passa a ser um “bem supremo” para os Estados,
considerada condição fundamental de aquisição e acúmulo de riqueza. (Birman, 1991).
O mundo ocidental, durante milênios, permaneceu, segundo Foucault (1988), sob o signo da
morte, ficando à mercê da fome e das epidemias, e submissão a um deus temeroso e punitivo. E, como
nos mostram Pessotti (1994) e Richards (1993), tal imagem permaneceu viva durante os séculos
medievais. A ameaça de morte que pairava sobre o imaginário do mundo ocidental é quase que
completamente afastada com o desenvolvimento econômico e dos conhecimentos relativos à vida, de um
modo geral; com as melhorias das técnicas agrícolas - com o conseqüente aumento da produtividade no
século XVIII - e com a transformação do pensamento teocêntrico em um pensamento mais humanista e
racionalista. A vida passou a ser valorizada e a tornar-se o centro das preocupações do homem iluminista,
que aos poucos foi engendrando formas de garantir seu poder sobre ela.
O poder sobre a vida, para Foucault (1988), passou a ser desenvolvido concretamente a partir do
final do século XVII, em duas formas principais. Uma delas centrou-se no
adestramento do corpo, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no
crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle
eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as
disciplinas: anátomo-política do corpo humano. (Foucault, 1988, p.131).

A segunda forma de poder sobre a vida se formou a partir de meados do século XVIII e centrou-
se na proliferação da vida, nos nascimentos e na mortalidade, na saúde física e na longevidade,
aprofundando os conhecimentos a respeito das condições que os podem fazer variar. Começaram a ser
empreendidas intervenções e controles reguladores que resultaram em uma “bio-política” da população,
evidenciando a importância da saúde e do conseqüente “bio-poder”, que se constituíram em elementos
indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo. O sucesso deste novo sistema político só seria

66
possível por meio de uma “inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um
ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (Foucault, 1988, p.132).

Como conseqüência destas novas necessidades e do novo pensamento, a Medicina foi convocada
a gerenciar a tal “inserção dos corpos” e consagrada como detentora deste poder sobre a vida e a morte,
aliada aos interesses do Estado e do sistema político e social nascentes. Respaldada em seu status
científico e, portanto, aparentemente neutra e livre de arbitrariedades, a Medicina deste momento em
diante passou a prevalecer enquanto lócus privilegiado de produção de significados sobre o corpo e suas
sensações. Os indivíduos perderam a soberania sobre seus corpos e seus significados para os especialistas,
agora responsáveis pelo estabelecimento das regras sobre a produção e reprodução da saúde. A figura do
“médico de si mesmo”, presente na cultura ocidental desde a Grécia antiga, “desapareceu dos discursos
eruditos da medicina e apenas subsistiu como resíduo no imaginário social das classes populares”
(Birman, 1991, p.78).
A loucura, desde os séculos anteriores ao Iluminismo, havia se configurado como tema de
interesse de estudiosos e algumas práticas já haviam sido instituídas com o intuito de controlá-la.
Entretanto, é somente no século XVII que se iniciou uma abordagem científica do desvario e descontrole
emocional, até mesmo porque, é somente a partir desta época que a Medicina assumiu seu status de
ciência e de instância reguladora do funcionamento social.

Neste século marcado pelo fortalecimento do organicismo, pode ser evidenciada a ênfase de
estudos sobre os processos cerebrais. Neste momento histórico, dois personagens, com influências
galenistas e platônicas, se destacam por oferecer importantes classificações da alienação mental.

Plater, cuja obra foi publicada em 1625, inaugurou o conceito de alienação mental. É considerado
um dos primeiros autores a elaborar uma grande classificação médica da patologia mental, diferenciando
a loucura, a deficiência mental e as demências de vários tipos. Com este autor, o delírio passou a ser a
marca da loucura ou alienação mental. Para ele, a doença mental era uma lesão da inteligência (razão +
imaginação + memória), proveniente de algum déficit (fraqueza mental, abolição da mente) ou
depravação (esgotamento, estafa mental, perda ou extravio da inteligência). As principais causas da
alienação para este pensador eram a embriaguez, a comoção da alma (excesso de paixões) ou delírio.
Entre as causas do delírio, ainda se incluía, de forma secundária, a possessão demoníaca (Pessotti, 1994).
Outro destaque deste período foi a obra de Zacchias, publicada em 1651. Este autor estudou
categorias diagnósticas a partir de um enfoque jurídico, sendo este considerado o primeiro estudo desta
natureza no que se refere à loucura. Para ele, a loucura poderia ainda ser o resultado de causas extra-
naturais, eventualmente a possessão demoníaca, demonstrando a permanência de resquícios do
pensamento medieval em seu estudo. Sua obra também refletiu algumas concepções da doutrina platônica
no que se refere às faculdades da alma. Sua classificação da alienação mental distinguia os casos de
demência e amência (perda total ou parcial da razão). Para este autor, a demência poderia ser devido à:
diminuição (imbecilidade), depravação (delírio) ou perda (loucura) da função mental (Pessotti, 1994).

67
Durante o século XVII, na Medicina como um todo, se desenvolveram os princípios da
observação e da verificação o que culminou na consolidação do modelo biomédico no século XVIII. A
introdução do conceito anatômico de doença passou a influenciar todo pensamento da época. A cirurgia
foi aprimorada, passando a ser considerada uma ciência experimental. A anatomia comparada também foi
desenvolvida e procurou-se estudar a fisiologia humana normal e patológica (Reis, 1998).

Com relação aos estudos sobre a alienação mental, a ênfase no século XVIII se deu sobre a
necessidade de explicação anatomo-fisiológica do delírio, a partir de então considerada como uma
característica da loucura. Como conseqüência da recusa de explicações de cunho demonológico e
passional, características do momento histórico anterior ao Iluminismo, surgiu uma infinidade de linhas
de pensamento, que acabaram por dispersar o conhecimento acerca da alienação. Alguns avanços,
entretanto, podem ser percebidos, no que diz respeito aos critérios para compor e diferenciar os quadros
clínicos da loucura. Apesar da ênfase em aspectos anátomo-fisiológicos, algumas especificidades do
comportamento verbal e intelectual, bem como mudanças na vida afetiva passaram a ser observadas na
distinção de estados de depressão ou exaltação dos sentimentos.
Alguns autores foram importantes neste período do século XVIII, como por exemplo, Arnold,
Weickard e Cullen, que resgataram a natureza essencialmente mental e cognitiva da loucura considerando
os aspectos passionais, instintivos e até sexuais da insanidade (Pessotti, 1994). Outro pesquisador que
merece destaque é Franz Anton Mesmer, que inaugurou os estudos sobre magnetismo, podendo ser
considerado um dos precursores do hipnotismo. Mesmer destacou a importância do estabelecimento do
rapport e em suas experiências com magnetismo, fez algumas referências ao que mais tarde foi
reconhecido como histeria (Silva, 1979).
É importante destacar, ainda no século XVIII, o nome de Franz Joseph Gall (1758-1828) que, a
partir de estudos experimentais, estruturou, no campo da ciência médica, uma área conhecida como
frenologia. A frenologia considerava que as faculdades morais e intelectuais eram manifestações da
organização anátomo-biológica do cérebro, crença condizente com o pensamento organicista que se
fortalecia na época. Gall relacionava a forma do crânio com a constituição encefálica e, a partir disso,
pôde realizar observações externas, criando medidas que o “permitiam” estabelecer relações entre a
personalidade e o cérebro (Silva, 2003).
A frenologia de Gall adquiriu grande importância no cenário médico e jurídico dos séculos
seguintes, exercendo influência na obra de inúmeros médicos, juristas, antropólogos e demais cientistas
sociais. Jean Gaspard Lavater, antropólogo contemporâneo de Gall, foi um dos exemplos de cientistas
sociais influenciados por sua obra. Este antropólogo iniciou os estudos conhecidos mais adiante como
antropometria, cujo objetivo era construir regularidades fisiológicas e anatômicas que permitissem
estabelecer relações entre crime e “aparência”. Seus estudos contribuíram para o início do movimento de
naturalização da moral e do comportamento, que dominou as ciências sociais e médicas até meados do
século XX. A Psiquiatria, durante muito tempo, embasou suas concepções, atualmente consideradas
racistas, nos estudos de frenologia e antropometria (Silva, 2003).

68
A antropometria foi amplamente desenvolvida no século XIX por Paul Broca, antropólogo
francês que criou instrumentos de medição de crânios, ganhando assim, certa confiabilidade no meio
científico. Seus estudos se aperfeiçoaram e Broca passou a estudar também o cérebro e suas
características. Seus estudos apontaram para a relação entre o “problema da evolução racial16” e a
criminalidade (Silva, 2003).
Com relação à Psiquiatria propriamente dita, é somente em 1801, com a publicação do Tratado
Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental ou Traité de Philippe Pinel, que esta passou a ser
reconhecida como uma especialidade médica. A obra de Pinel é considerada o marco de criação da
Psiquiatria, inaugurando a corrente alienista que pretende conhecer a loucura para dominá-la. Seu Traité
introduziu novas concepções a respeito da loucura. Esta passou a ser compreendida como um
comprometimento ou lesão fundamental do intelecto e da vontade, que se manifestava no comportamento
do paciente, nos sintomas, sob as mais variadas formas.
Pinel é considerado o “libertador dos loucos”, por ter retirado das correntes os loucos que viviam
trancados nas celas dos asilos e tê-los deixado livres para caminhar nos pátios dos prédios dos asilos. Ao
chegar em Bicêtre, o primeiro hospital no qual trabalhara em Paris, ficou estarrecido com o estado em que
encontrou os doentes nesta instituição. Todos trancados em celas fortes e acorrentados, muitos há alguns
anos, sem nenhum tratamento específico ou condições mínimas de salubridade. A partir de então, retirou-
os das correntes e, para os mais violentos, mandou fazer camisas com grandes mangas que pudessem ser
amarradas contendo o doente, sendo então o inventor da “camisa-de-força”. Pinel acreditava que soltar os
doentes, liberando-os para caminhadas dentro da instituição e banhos de sol, poderia trazer alguma
melhora para o estado de confusão no qual os doentes se encontravam, além de permitir uma melhor
observação das manifestações de sua doença. Influenciado pelo pensamento iluminista francês, Pinel
acreditava na possibilidade de recuperação dos doentes e no aprendizado de sua condição de cidadãos por
meio de uma “pedagogia da cidadania”.

Foi o grande precursor do tratamento moral destinado aos loucos, afastando-se das rígidas
explicações organicistas que dominavam o cenário médico de seu tempo. Sua pedagogia moral logo se
difundiu por outros países do mundo ocidental, devido ao fato de que suas contribuições para a criação da

16
Houve, a partir do século XVIII, uma grande discussão entre os intelectuais e cientistas acerca das diferenças
raciais. Duas correntes de pensamento se destacaram: a monogenia e a poligenia.
Para os monogenistas, cujo maior defensor foi Rousseau e a maior influência se deu no século XVIII, todas as raças
provinham de um tronco comum, um mesmo centro criador. As diferenças raciais se davam em função das
diferenças climáticas, alimentares, dentre outras, de origem ambiental - oriundas dos diversos lugares para os quais
os homens migraram. Tal concepção estava de acordo com as concepções iluministas igualitárias.
Já os poligenistas acreditavam que a espécie humana provinha de vários centros e de raças realmente distintas em
suas origens. Para os poligenistas, as diferenças raciais tinham sua origem nos diferentes graus de evolução da
humanidade. Haviam raças mais evoluídas, no caso os brancos europeus, e as raças menos evoluídas, que ainda
estavam no caminho do aperfeiçoamento. A raça negra foi considerada a menos evoluída tendo, portanto, menos
capacidade cognitiva, moral e afetiva, além de estar praticamente incapacitada para viver em civilização e aprender
seus códigos. A poligenia instituía a diferença definitiva entre as raças e, a partir do século XIX, passa a ser adotada
de modo bastante influente nos meios científicos e acadêmicos (Silva, 2003).

69
Psiquiatria estavam em consonância com o ideal racionalista e disciplinador da moral e dos costumes que
começava a se estabelecer na sociedade européia do início do século XIX.
A obra de Pinel, apesar de controversa e de sua pouca consistência epistemológica, foi
revolucionária do ponto de vista metodológico. Foi o primeiro a utilizar a observação sistemática como
forma de conhecer a loucura, o que, a partir de então, transformou radicalmente a atitude metodológica
diante da doença mental17. O tratamento para ele deveria ser fruto de uma observação demorada e
objetiva da conduta de um grande número de pacientes, o que permitiria sua classificação, por meio da
comparação de diferentes manifestações. Pinel introduz o registro escrito como parte fundamental deste
processo. Ele próprio dedicou parte de sua vida à observação dos doentes, chegando a morar no hospital
onde trabalhava com o intuito de observá-los de forma mais contínua e precisa. A necessidade de
observações, a longo prazo, e de um grande número de pacientes em local especializado no cuidado desta
população, foi o respaldo científico oferecido por Pinel para a transformação dos asilos em hospitais
especializados em Psiquiatria (os conhecidos hospitais psiquiátricos ou manicômios), existente até a
atualidade.
Para Pinel, entre as causas da loucura estavam a imoralidade (excesso das paixões), a demência
ou idiotia (fruto de lesões orgânicas, disposições hereditárias e confusão dos afetos morais mais
profundos), desregramentos no modo de viver e a educação corrompida. Deste modo, o tratamento moral
pressupunha uma reeducação dos costumes e dos valores de modo a reenquadrar o comportamento
desviante dentro dos padrões éticos. Seu tratamento tinha por objetivo combater o que a espécie humana
tem de “desagradável e vergonhoso”.
Para Pinel, o terapeuta ocupa o lugar de um mestre espiritual, que emprega, dentre outras
técnicas, um regime físico e moral para eliminar a alienação mental (Pessoti, 1996). Esta equivalência do
alienista ao mestre espiritual é satirizada na obra O Alienista18, de Machado de Assis, quando o
protagonista Simão Bacamarte afirma ao Vigário de Itaguaí, que “a Casa Verde19 é agora uma espécie de
mundo em que há o governo temporal e o governo espiritual” (grifo do autor, Assis, 1997, p.10).
Esquirol foi considerado o sucessor mais famoso de Pinel, tendo introduzido algumas diferenças
com relação a seu mestre. Esquirol incluiu, entre os tipos de loucura, a demência e a idiotia, que Pinel
havia considerado como alienações, mas não entre os tipos de loucura. Outra diferença foi a criação da
Monomania, uma categoria situada entre a mania e a melancolia, cuja classificação não é mais a
amplitude do delírio, mas a paixão que a caracteriza, introduzindo as idéias de “paixão depressiva” e
“paixão expansiva”. Outra diferença importante com relação a Pinel é o retorno ao organicismo no que

17
Nesta época, o fenômeno da loucura já tinha sido capturado pelo discurso médico-científico e seu significado se
reduzido à doença mental.
18
Este conto de Machado de Assis, além de seu grande valor literário, pode ser compreendido como uma
interessante versão da inserção da Psiquiatria no Brasil, por retratar com fidelidade as crenças e posturas
consideradas científicas à época do alienismo. Seu personagem principal, o alienista Simão Bacamarte, representa a
postura neutra, racionalista e idealista dos alienistas do final do início do século XIX, além de adotar os métodos de
investigação e interpretação da loucura professados por Pinel, podendo ser interpretado como uma sátira à nascente
Psiquiatria.
19
Nome conferido por Simão Bacamarte ao hospital psiquiátrico por ele fundado na cidade de Itaguaí.

70
diz respeito aos diversos quadros psiquiátricos. A definição de Esquirol a respeito da mania, por exemplo,
introduz um substrato orgânico, na medida em que a considera uma “afecção cerebral”, além de associá-la
à cronicidade, considerada, a partir de então, uma característica intrínseca das diversas formas de loucura.
A contribuição mais importante de Esquirol, no entanto, foi a criação, juntamente com Pritchard,
entre as décadas de 1820 e 1830, da “Teoria da Monomania”. Esta teoria previa, dentre outras, a
possibilidade de uma loucura escondida sob a normalidade. Uma pessoa, mesmo sendo considerada
normal em suas manifestações, poderia ser tomada a qualquer momento por um surto de extrema
violência e periculosidade. Esta teoria da monomania teve grande influência na Psiquiatria como um todo,
e foi importante, especialmente, por ter introduzido um elemento novo na representação da loucura, qual
seja a imprevisibilidade. Além desta Teoria da Monomania, Esquirol elaborou o “princípio do
isolamento”, reforçando as idéias de Pinel, quanto à necessidade de internação dos doentes mentais
(Cunha, 1990).
Nas últimas décadas do século XIX, intensificou-se um período de grande confusão doutrinária
na área da Psicopatologia. As concepções de Pinel e o destaque de sua obra suscitaram inúmeros estudos
na área da Psicopatologia e seu tratamento. A reintrodução do organicismo por Esquirol despertou para a
criação de diversos caminhos na busca de sítios orgânicos relacionados com a loucura.
Houve uma profusão de doutrinas baseadas nos enfoques pneumáticos, iatroquímicos ou
iatromecânicos, dentre outros, que conferiam à teoria da loucura uma grande variedade de definições,
gerando confusões e incertezas. A variedade de definições se deu, dentre outros fatores, em função da
impossibilidade de abrigar, sob um mesmo conceito, todos os tipos de loucos, todos os sintomas e
comportamentos, definindo exatamente o que é a loucura. Segundo Pessotti (1994, p.175), “após o Traité
cada autor aparece como o descobridor do critério final de classificação e, ipso facto, de definição de
loucura em suas várias formas”.
Não nos cabe, entretanto, no âmbito deste trabalho, apresentar as inúmeras classificações criadas
neste período pelos diversos estudiosos da Psicopatologia, nem apontar suas divergências. Sendo assim
nos deteremos, deste momento em diante, em apresentar de forma sucinta, a chegada da Psiquiatria no
contexto brasileiro, discutindo alguns pontos importantes no que tange a inserção desta especialidade
médica na cultura do país.

71
A chegada da Psiquiatria no Brasil
“Meus senhores, a ciência é cousa séria,
e merece ser tratada com seriedade.
Não dou razão dos meus atos de alienista
a ninguém, salvo aos mestres e a Deus...
Poderia convidar alguns de vós, em comissão
dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos;
mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu
sistema, o que não farei a leigos, nem a rebeldes”.
(Simão Bacamarte)

O objetivo da retomada histórica da trajetória da Psiquiatria no Brasil nos parece importante por
oferecer elementos que nos permitem conhecer melhor o processo de criação da loucura e do lugar do
louco na nossa cultura. A Psiquiatria no Brasil - aliada a outras “disciplinas científicas e políticas” –
participou, sem dúvida, de forma ativa na construção de uma identidade nacional, influenciando de forma
contundente todo o imaginário social acerca do que é ser um louco no Brasil, ao mesmo tempo em que se
construía a imagem do que é ser brasileiro.

A Psiquiatria nascia na Europa, no mesmo momento em que no Brasil se iniciava um processo,


intenso e complexo, de construção de uma identidade nacional que culminaria com a mudança do regime
monárquico para o republicano. Assim, a Psiquiatria encontrou um campo fértil para seu
desenvolvimento, como pode ser evidenciado ao longo de sua história de inserção no contexto brasileiro.

A loucura na Colônia
“Os ventos do saber tanto podem levar ao paraíso
quanto podem levar ao inferno.
Os infernos também se fazem com ciência”.
(Rubem Alves)

Do início do período colonial até meados do século XIX, não havia nenhum tipo de
sistematização da assistência à saúde no Brasil, sendo este tipo de assistência oferecido pelas Santas
Casas de Misericórdia. A saúde era delegada ao campo da filantropia, desvinculada de uma política
específica e de procedimentos científicos.

Como na renascença européia, a atenção oferecida aos loucos no Brasil colonial assumia as mais
variadas formas, podendo ser estes recolhidos em aposentos, presos nos fundos das casas, nos porões das
santas casas ou nas cadeias, no caso dos violentos e que porventura incomodassem sobremaneira a então
(des)ordem pública. É interessante notar que neste período os loucos também eram considerados figuras
públicas e populares, que compunham, em grande número, o cenário das cidades. Mesmo trazendo a
marca da loucura, muitos permaneciam incorporados ao cotidiano das cidades e eram aceitos com
tolerância, tornando-se motivos de risos e compadecimentos da população que, muitas vezes, protegia-os
e deles cuidava espontaneamente. Alguns destes personagens eram pessoas queridas pelas comunidades e

72
não necessariamente motivo de medo e inquietação, o que nos leva a concluir que, neste momento
histórico, o louco era objeto de significações distintas das que elaboramos atualmente sobre eles (Cunha,
1990).

A partir de 1808, com a vinda da família real para o Brasil, o país foi alvo de um processo de
modernização e criação de várias instituições sociais. Foram criadas as primeiras escolas de Direito e
Medicina do país, colocando o Brasil no caminho do desenvolvimento, aos olhos dos iluministas da
época. Houve, também, uma expansão do número de Santas Casas de Misericórdia, que eram
responsáveis pelo cuidado com a saúde e também funcionavam como albergues para pobres, órfãos,
inválidos e loucos.
Com o crescimento da Medicina no país é criada, em 1830, a Sociedade de Medicina do Rio de
Janeiro. São criadas também as revistas “Semanário de Saúde Pública”, “Diário da Saúde” e “Revista
Médica Fluminense”, que se tornaram importantes veículos de comunicação da Medicina européia, que
exercia grande influência sobre os médicos brasileiros.

O alienismo se encontrava no auge de sua importância na Europa e a saúde da alma estava sendo
considerada “a ocupação mais digna do médico”20. Diante deste status conferido à Psiquiatria, iniciaram,
neste momento, os questionamentos a respeito da situação dos loucos no país. Questionava-se a existência
de loucos – algumas vezes alvo de chacotas e injúrias por parte da população - vagando pelas cidades.
Esta situação contrariava os ditames científicos, em especial os originários das obras de Pinel e Esquirol,
que pregavam a necessidade de isolamento dos insanos para conhecimento e tratamento de suas
moléstias.
Questionava-se, sobretudo, o tratamento oferecido aos loucos nas Santas Casas de Misericórdia.
Segundo os médicos da época, os loucos nas Santas Casas eram submetidos a inúmeros maus-tratos,
permanecendo presos nos calabouços destas instituições, sem nenhum tipo de tratamento adequado ou
condições mínimas de higiene. Conta-se também que os loucos eram amarrados nos troncos (semelhantes
aos usados para castigar os escravos) durante as noites e eram violentados pelas pessoas que trabalhavam
nestas casas (Teixeira, 1997).
Esta situação era contraditória com o progresso social ressaltado neste período e com o
pensamento científico da época. Assim, neste ano de 1830, foi realizado o primeiro protesto público
contra o modo desumano de tratamento aos doentes mentais. Inúmeros artigos foram escritos nas revistas
recém criadas com o respaldo da Sociedade de Medicina, criticando veementemente o tratamento leigo e
desumano oferecido por instituições religiosas que, a princípio, deveriam ser instituições destinadas à
caridade. No âmbito destes protestos, a sociedade médica reivindicava a construção de um hospital
destinado aos cuidados dessa população. Um hospital que deveria ser construído aos moldes da nova
Psiquiatria francesa e que pudesse, de fato, ser um espaço de tratamento e estudos sobre a loucura.

20
Afirmação proferida por Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis, que reflete a importância que a
nascente Psiquiatria adquirira diante das demais áreas da Medicina nos áureos tempos do alienismo.

73
Não se tratava, entretanto, como se poderia supor, de um ato de caridade por parte dos cientistas
médicos ou uma preocupação com os direitos humanos. Tratava-se, isto sim, de uma preocupação
científica, profundamente baseada em um idealismo racionalista. Machado de Assis em sua obra O
Alienista capta de forma bem sensível a tônica desta preocupação, como pode ser percebido em uma das
conversas de Simão Bacamarte com seu amigo boticário, a respeito de seus sentimentos perante a loucura
e sua escolha profissional:
A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal
das cousas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: ‘se conhecer quanto se
pode saber, e não tiver caridade, não sou nada’. O principal nesta minha obra da Casa Verde é
estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir
enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que
com isto presto um bom serviço à humanidade (Machado de Assis, 1882⁄1997, p.7).

Em 1839, é organizada uma comissão, composta de médicos e membros do governo monárquico,


para visitar os hospitais e prisões. As reivindicações desta comissão, respaldadas por um relatório sobre a
situação dos insanos nestas instituições, encontraram apoio no provedor-geral das Santas Casas de
Misericórdia, importante articulador da monarquia brasileira. Sob a influência deste articulador, José
Clemente Pereira, em 1841, D. Pedro II assina o decreto de fundação do Hospício, que foi denominado
Hospício Pedro II21. Este decreto foi assinado como forma de celebração da maioridade do imperador,
que na época contava com 16 anos.
Foram implementados alguns impostos para arrecadar fundos para a construção do hospital, no
âmbito de uma campanha cujo slogan era “Aos loucos, o Hospício”, que rendeu também inúmeras
doações em prol deste novo empreendimento. Outra medida implementada para arrecadação de fundos foi
a venda de títulos de nobreza, cuja renda seria destinada à construção do hospício. É interessante observar
que essa última medida, denominada por José Clemente como o “imposto da vaidade”, teve um efeito
simbólico importante, por associar a caridade para com os loucos à nobreza (Teixeira, 1997).
Essa associação vai permanecer, de certa forma, no imaginário do país como pode ser percebido
na história de criação de outros hospitais psiquiátricos ao longo das décadas seguintes. O Hospital de
Dementes de Campinas, cuja história será detalhada mais à frente, pode ser considerado como um bom
exemplo desta associação entre caridade e “nobreza”. A construção do hospital psiquiátrico da cidade foi
realizada com as doações de membros da elite campineira que, no dia de sua inauguração, em abril de
1924, foram amplamente homenageados pelos ilustres convidados àquela solenidade. Os convidados -
importantes políticos e membros da Igreja Católica - não pouparam esforços em enaltecer o “espírito de
filantropia do povo campineiro, que condoído da sorte de tantos infelizes insanos que viviam recolhidos
nos porões escuros da delegacia de polícia, em boa hora pensou em minorar-lhes os sofrimentos”,

21
Este hospital, existente até hoje no Rio de Janeiro, apesar de já ter tido vários nomes e hoje ter seu nome
associado à Nise da Silveira, ainda é popularmente conhecido como CPP II (Centro Psiquiátrico Pedro II) ou
Hospital Pedro II.

74
construindo o Hospital de Dementes de Campinas, “fruto explêndido da reserva de generosidade do povo
campineiro”. (Washington Luiz, conforme citado por Passos, 1975, p.23).
O Hospício Pedro II, que levou mais de 10 anos para ser construído, é inaugurado em 185222, na
Praia Vermelha. Sua inauguração foi motivo de grande pompa e propaganda por todo o território
nacional, tendo em vista o grande investimento feito pelo governo na construção desta obra, considerada
uma das mais importantes obras assistenciais do governo imperial. O projeto arquitetônico do prédio se
inspirou nos hospitais franceses e inúmeras estátuas de mármore foram encomendadas para homenagear o
imperador e pessoas importantes de seu governo, além de Pinel e Esquirol, cujos nomes foram dados às
alas masculinas e femininas, respectivamente.
Nos primeiros 30 anos de sua criação, o Hospício Pedro II ficou sob a direção da Santa Casa de
Misericórdia, cujo tratamento seguia, de forma fragmentada, as orientações do tratamento moral de Pinel
e Esquirol. Buscou-se construir uma “consciência culpada” no doente, cuja loucura só poderia ser curada
pela repressão do delírio. O tratamento consistia na divisão dos pacientes em alas, por sexo e
características do adoecimento e utilizou-se camisas-de-força e incentivo ao trabalho manual. Estes
procedimentos, no entanto, não advinham de uma reflexão médica, mas sim de uma cópia irrefletida das
recomendações dos alienistas europeus (Carvalhal, 1997).
Os primeiros anos de funcionamento foram permeados por dois problemas: a superlotação e o
conflito entre as autoridades. Já em 1854, o Hospício se encontrava superlotado: os quartos que
inicialmente eram individuais estavam abrigando até quatro pessoas. As enfermarias, inicialmente para 15
pessoas, abrigavam um número bem superior a este e foram proibidas novas internações sem a
autorização do Ministro do Império. (Teixeira, 1997).
O problema considerado mais sério, entretanto, era o fato de que o comando do hospício estava
nas mãos das freiras vicentinas que ignoravam as reflexões e recomendações médicas. Os poucos médicos
existentes na instituição ficavam subordinados aos desmandos das freiras que, segundo denúncias,
tratavam os internos de forma extremamente negligente e usavam dos enfermeiros para a aplicação de
medidas violentas, coercitivas e desumanas, sem nenhum respaldo científico seriamente adotado
(Teixeira, 1997).
Diante deste quadro, a administração do Hospício foi atacada por dois motivos: primeiro que o
hospício não atendia somente os loucos, que deveriam ser escolhidos e tratados por meio de critérios e
procedimentos científicos. O segundo motivo era que, no Rio de Janeiro, devido à superlotação, havia
ainda inúmeros loucos perambulando pelas ruas. Ou seja, devido à má administração religiosa, o hospício
não estava cumprindo a missão para a qual foi criado, nem atendia às expectativas da classe médica,
ansiosa por aplicar seus novos conhecimentos científicos.

22
Neste mesmo ano são inaugurados o Hospício de São Paulo, em seguida, são criados hospícios em Recife,
Salvador, Belém, Porto Alegre e outras capitais. Estas instituições, entretanto, não tinham um caráter médico. Eram
entidades assistenciais e de caridade. Não haviam médicos especializados, existindo apenas clínicos gerais. (Cunha,
1990).

75
Assim, diante das inúmeras denúncias e reivindicações da classe médica, em 1881, um médico
generalista assume a direção do Hospital, iniciando um processo de laicização da assistência psiquiátrica
no Brasil. Ainda neste ano é criada, no curso de Medicina do Rio de Janeiro, a cadeira de “Doenças
Nervosas e Mentais” coordenada por Teixeira Brandão, um médico com formação em Psiquiatria,
adquirida na Europa.
Teixeira Brandão teve uma forte atuação nas denúncias contra os maus tratos ocorridos no
Hospício Pedro II, durante a gestão das freiras vicentinas, vindo a ser, em 1886, nomeado para a direção
deste hospital.
Como se pode perceber, a Instituição Psiquiátrica no Brasil, percorreu primeiramente os
caminhos da filantropia, da clinica generalista e somente algumas décadas após assume a Psiquiatria
propriamente dita. (Teixeira, 1997).
É interessante notar, contudo, que apesar da distância dos centros produtores de ciência na
Europa e, conseqüentemente, de algum atraso na chegada das novas teorias científicas no Brasil, o país
foi extremamente receptivo ao pensamento cientificista que emanava da Europa, no final do século XIX e
início do século XX.
Alguns dos estudos que merecem destaque na Europa por sua influência, alguns anos depois, no
contexto brasileiro, são os de cunho criminológico realizados por Lombroso. No Congresso Internacional
de Antropologia Criminal, ocorrido em Roma no ano de 1885, Lombroso, grande expoente da Escola
Antropológica Italiana, apresentou sua teoria criminológica, subsidiada nos estudos de frenologia e
craniologia de Gall. A teoria de Lombroso diferenciava o criminoso nato e o criminoso ocasional,
afirmando a biodeterminação do ato criminoso. Para este antropólogo o crime tem suas raízes no
primitivismo ancestral e é fundamentado na constituição biológica das raças inferiores, seguindo as novas
tendências científicas que “confirmavam” a poligenia enquanto doutrina explicativa da origem das raças.
As deduções de Lombroso relacionavam a “evolução das espécies, a hereditariedade, comportamento
moral, anatomia, craniometria, loucura, grau de civilização, fealdade, cor da pele, entre outras” (Silva,
2003, p.30). A partir destes fatores passou a relacionar também a degeneração e traços primitivos não
somente do criminoso, mas também do louco e dos “selvagens”.
A teoria de Lombroso, relativa à área criminal, encontrou grande ressonância na Psiquiatria
Brasileira, especialmente na Escola de Medicina da Bahia. Esta escola também foi amplamente
influenciada por Nina Rodrigues, um dos primeiros antropólogos brasileiros a se destacar no cenário
nacional enquanto um grande pensador da cultura e da etnia brasileira. Segundo psiquiatras
contemporâneos de Nina Rodrigues, suas pesquisas abarcavam uma grande diversidade de temas, dentre
os quais se destacavam a medicina legal, a psicopatologia forense, a antropologia criminal, psicologia
coletiva e étnica.

Nina Rodrigues, um dos pioneiros da Antropologia no Brasil, exerceu grande influência na


formação de muitos psiquiatras de seu tempo, e na composição da intelectualidade brasileira. Sua
influência se deu por meio dos inúmeros artigos publicados em revistas científicas onde fazia importantes

76
correlações entre o negro, o mestiço e as predisposições destes grupos à degeneração23 e,
conseqüentemente, à doença mental. Publicou vários livros que tinham como temática a constituição
étnica brasileira, com destaque para a influência negativa do negro e da mestiçagem no desenvolvimento
cultural e intelectual do país. A partir de suas considerações acerca das diferenças raciais, baseadas no
darwinismo social, “confere um estatuto biopolítico da igualdade e das liberdades individuais que,
segundo ele, não passam de pura metafísica”. (Silva, 2003, p.36).
Os estudos de Nina Rodrigues, por seu caráter científico, acabou por imprimir no imaginário
nacional a idéia de uma predisposição criminal do negro. Suas idéias se baseavam nos estudos de
tipologias raciais, de constituições biológicas, fenótipos criminais e até mesmo em aspectos culturais e
sociais. Para ele,
quaisquer que sejam as condições sociais em que se coloque o negro, está ele condenado pela
sua própria morfologia e fisiologia a jamais poder alcançar o branco. Só uma parada da
civilização européia e anglo-americana daria tempo aos negros para sua lentíssima e não
espontânea evolução, atingir-nos e igualar-nos (Rodrigues, 1982, p. 263).

Nas últimas décadas do século XIX a questão da formação étnica do povo brasileiro começou a
se impor no cenário científico e intelectual do país. A presença cada vez maior de negros (ex-escravos
que “inchavam” as cidades em busca de emprego livre), índios e migrantes começou a despertar a
preocupação de cientistas (especialmente os médicos, cientistas sociais e juristas) com a miscigenação. A
mistura de raças começou a ser alvo de inúmeras reflexões no âmbito da intelectualidade, na medida em
que, sendo “fruto destes mestiçamentos, grande parte da sociedade brasileira apresentava-se com uma
tendência degenerativa, que era uma condição fatal para a criminalidade” (Silva, 2003). O mestiço passou
a representar todo o atraso do país, tudo o que havia de pior para o desenvolvimento de uma nação: a
degeneração, a tendência à violência e à indolência, a incapacidade para o aprendizado e para o
progresso, a tendência à doença mental.

Nacionalismo e República: as transformações no tratamento da loucura


“Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”
(Trecho do Hino da Independência, cantado
incessantemente por uma interna do
Hospital Psiquiátrico de Barbacena –
Documentário de Helvécio Ratton)

Tais reflexões acerca da etnia do povo brasileiro se deram no âmbito de um crescente movimento
nacionalista, representado no campo das ciências e das artes. Este movimento nacionalista, tal como

23
O conceito de degeneração deste momento em diante passou a ser utilizado com bastante freqüência, por
influência da obra de Morel, alienista que, a partir de sua observação sistemática dos pobres e proletários dos
arredores de Paris, formulou uma teoria da loucura como um subproduto da degeneração. Tratava-se de atribuir à
loucura uma etiologia de natureza essencialmente hereditária, onde a degeneração é transmitida em graus crescentes
de uma geração à outra. A loucura, associada à degeneração, ganhava o status de doença incurável. Morel descrevia
os loucos hereditários e os degenerados, estabelecendo também a relação entre loucura e crime. A teoria de Morel
colocava os pobres e membros de raças humanas consideradas inferiores à época como mais predispostos à
degeneração (Cunha, 1990; Silva, 2003).

77
aponta Patto (1990), é abrigo de grandes contradições no que tange às questões étnicas. As referências ao
“povo brasileiro” passam a ser “cada vez mais positivas, no intuito de valorizar o Brasil como
instrumento de luta econômica e política contra o colonizador” (Patto, 1990, p. 65). Entretanto, ao lado de
uma exaltação do índio como o “legítimo povo da terra”, estava em pleno andamento a expropriação e
dizimação das populações indígenas. Na literatura, bem como nas ciências, havia uma clara presença de
um forte preconceito racial, especialmente no que diz respeito ao mestiço, sendo este último tratado como
a escória da nação.
O movimento nacionalista, em ampliação desde a Independência do Brasil em 1822, marcou o
cenário político nas últimas décadas do século XIX. Este movimento ancorou-se nas proposições liberais
em voga na Europa e o cenário artístico brasileiro foi marcado pela literatura romântica. Contudo,
longe de retratar uma riqueza da vida cultural, o ideário político e a escola literária eram, acima
de tudo, resultado de uma imitação do que se passava nos centros culturais europeus, o que
tornava as idéias veiculadas ‘idéias fora do lugar’ (Patto, 1990, p. 65).

O movimento nacionalista logo no seu início teve como uma de suas grandes conseqüências a
Proclamação da República em 1889, o que iria mudar substancialmente o cenário político e social no
Brasil. O empenho rumo à construção de uma sociedade progressista, aliada ao desenvolvimento
científico, fez com que se fortalecessem as instituições destinadas ao controle social e disciplina do povo
e seus costumes. A ciência como um todo, e especialmente a recente Psiquiatria, é reconhecida em sua
vocação científica para detectar e isolar, para fins de tratamento e readequação moral, os causadores da
desordem social. A Psiquiatria passa a ser, desta forma, um importante instrumento para disciplinar a
população, exercendo, segundo Cunha (1990), a importante função de uma “profilaxia do espaço
urbano”.
Cunha (1990) relata que dois dias após a proclamação da República, um ex-combatente da
Guerra do Paraguai, que recebera a patente de alferes por seus feitos em combate foi impedido de entrar
no Palácio do Imperador, recém deposto. Este alferes, conhecido como “Príncipe Oba”, figurava entre os
“personagens vesânicos” que viviam às soltas nas ruas do Rio de Janeiro, e fora autorizado pelo próprio
imperador a freqüentar as solenidades do palácio. Diante da proibição de entrar no palácio, enfureceu-se,
“prorrompendo em vivas ao velho imperador deposto e em descompusturas indignadas contra o novo
regime” (Cunha, 1990, p.7).
Este fato, aparentemente sem importância, pode ser útil por simbolizar o início das grandes
transformações que serão realizadas no âmbito da assistência ao doente mental no país. No ano seguinte à
proclamação da República, 1890, a administração do antigo Hospício D. Pedro II passa para a tutela do
Estado, sendo desvinculado da Santa Casa de Misericórdia, concluindo seu processo de laicização. Passa
a chamar-se Hospital Nacional dos Alienados.
Neste mesmo ano é criada a Assistência Médico-Legal aos Alienados, primeira instituição
pública de saúde estabelecida pela República, e as duas primeiras colônias da América Latina: a Colônia
de São Bento e a Colônia de Conde de Mesquita, localizadas na Ilha do Governador, na cidade do Rio de

78
Janeiro. Este modelo das colônias é considerado por Amarante (1994) como a primeira reforma
psiquiátrica brasileira, pois tem por objetivo “fazer com que a comunidade e os loucos convivam
fraternalmente, em casa ou no trabalho”. O trabalho, altamente valorizado dentro de um regime liberal,
passa a ser utilizado intensamente nas colônias como função terapêutica. Em seguida, são criadas outras
colônias no país, como a do Juquery no estado de São Paulo e a de Vargem Alegre no interior do Estado
do Rio de Janeiro.
Este intuito de convivência fraterna, mencionado por Amarante (1994), pode ser questionado
tendo em vista que o objetivo último da criação das colônias e dos asilos era disciplinar a população,
isolando aqueles indivíduos que não se submetiam ao novo contrato social ou que destoavam dos ideais
progressistas que caracterizavam o novo regime. Na verdade, tudo nos leva a crer que este ideal de
convivência fraterna foi uma estratégia, elaborada pelos pensadores da cultura e da organização social,
para justificar o isolamento dos diferentes e a valorização do trabalho, indispensáveis na reorganização
social e política proposta pela Republica recém proclamada.
Teixeira Brandão, então diretor do Hospital Nacional de Alienados, passa a ser também diretor da
Assistência Médico-Legal aos Alienados e caracteriza sua gestão pela ampliação dos asilos. Em 1902,
Juliano Moreira é nomeado o novo diretor do Hospital Nacional de Alienados e da Assistência Médico-
Legal aos Alienados, continuando com a criação de novos asilos e reorganizando os já existentes. A
atuação de Juliano Moreira se dá também na esfera jurídica, na medida em que busca legitimação
jurídico-política para a reorganização da assistência aos doentes mentais. Sob sua influência, é
promulgada, em 1903, a primeira lei relativa à assistência psiquiátrica no Brasil (Amarante, 1994).
A atuação de Juliano Moreira na Psiquiatria brasileira é considerada como um marco
modernizador, na medida em que introduz uma ruptura no campo teórico e prático. Este alienista traz
para a Psiquiatria brasileira as inovações empreendidas pelo alemão Emil Kraepelin, cuja obra é baseada
na teoria da degenerescência de Morel (Carvalhal, 1997). A loucura passa a ser interpretada como uma
recusa ao contrato social e conseqüência de uma degeneração causada por fatores orgânicos e
psicológicos.
Juliano Moreira empreendeu inúmeros estudos sobre o alcoolismo, a toxicomania, a sífilis e sua
relação com o meio social. Este alienista introduziu a valorização do trabalho manual em sua terapêutica
da doença mental e demais anormalidades, o que influenciou sobremaneira a idealização e o
funcionamento das colônias e dos asilos criados deste momento em diante. Outro feito significativo de
Juliano Moreira foi o decreto da “menoridade social” a todo indivíduo que apresentasse um quadro
desviante. Para os indivíduos considerados como “menores sociais” foi decretada a medicalização e tutela
pelo Estado, sendo estes afastados da gerência de seus bens e da participação na vida social e civil
(Carvalhal, 1997).
Juliano Moreira se aliou aos outros alienistas e intelectuais de seu tempo, concordando com a
necessidade de uma profilaxia dos grandes centros urbanos e ideais partilhados por seus pares. Sua
ênfase, entretanto, recaiu na influência da ação do meio sobre a vida do indivíduo, em detrimento da

79
visão de um determinismo biológico da degeneração. Por ser mulato, negou a influência da mestiçagem
como um ponto importante no desenvolvimento da degeneração, negando também a influência do clima
tropical como hipótese explicativa para as doenças mentais (Centurião & Gauer, 2003).
O posicionamento de Juliano Moreira diante da teoria da degenerescência é um importante
exemplo de como a constituição das representações sociais não é um processo passivo, uma mera
reprodução das representações partilhadas pelos grupos. É uma prova de que as representações se dão no
campo comum entre o coletivo e o individual, sendo assim, o indivíduo imprime a sua marca na
construção das representações. A vivência do sujeito, sua história pessoal e as experiências individuais
contribuem no processo de negociação e ressignificação das representações partilhadas pelo grupo.

A ampliação da Psiquiatria no Brasil: do Tratamento Moral à Higiene Mental


“Sabe-se – não se sabe o suficiente –
que os hospícios, longe de serem asilos,
são pavorosos cárceres onde os detentos
fornecem uma mão-de-obra gratuita e cômoda,
onde os suplícios são a regra, e isso é
tolerado pelos senhores. O hospício
de alienados, sob o manto da ciência e da justiça,
é comparável à caserna, à prisão, à masmorra”.
(Artaud, Carta aos médicos-chefes dos manicômios)

Em 1905 Juliano Moreira juntamente com outros médicos da área criaram a revista “Archivos
Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins”, onde inúmeros artigos foram publicados no
sentido de difundir o pensamento psiquiátrico e as novas terapêuticas que em breve se tornariam moeda
corrente nos asilos brasileiros.
A criação desta revista, bem como a criação de outros veículos de comunicação, foi de grande
importância na construção de uma representação social da loucura associada à degeneração, à
periculosidade, imprevisibilidade e à necessidade de seu isolamento. Esta afirmação encontra ressonância
nas reflexões de Jodelet (2001) a respeito do papel fundamental dos meios de comunicação na fabricação
da ciência e seus fatos. Para esta autora, a comunicação social “aparece como condição de possibilidade e
de determinação das representações e do pensamento sociais” (p.30).
A ampliação e divulgação do pensamento psiquiátrico, aliada aos interesses do Estado, levaram à
criação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina-legal em 1907 e à autonomia da
Psiquiatria enquanto especialidade médica em 1912.
Um dos aspectos que começou a ser fortalecido no âmbito da Psiquiatria foi a necessidade de
prevenção da doença mental, que encontrou respaldo, a partir de 1908, na obra de Clifford Beers, um
paciente psiquiátrico americano que se recuperou e escreveu um livro autobiográfico, lançando os
princípios da higiene mental. Clifford Beers, após sofrer inúmeros maus tratos durante alguns anos em
hospitais psiquiátricos, conclui que a doença mental poderia ser curada e em alguns casos evitada,

80
mediante um trabalho preventivo durante o desenvolvimento humano. O cerne da higiene mental residia
na necessidade de “cultivar a mente humana durante seu desenvolvimento, impedindo que fatores
endógenos e exógenos a degradassem” (Masiero, 2003, p.136).
As idéias de Clifford Beers foram rapidamente aceitas em várias partes do mundo e também no
Brasil, trazidas por Gustavo Riedel que havia participado do Primeiro Congresso Internacional de
Higiene Mental. Em 1923, Gustavo Riedel, juntamente com outros médicos funda a Liga Brasileira de
Higiene Mental no Rio de Janeiro e a revista “Archivos Brasileiros de Hygiene Mental”, como principal
veículo das idéias da Liga.
Jurandir Freire Costa, em sua obra “História da Psiquiatria no Brasil”, publicada em 1989, faz
uma análise crítica minuciosa da atuação da Liga Brasileira de Higiene Mental na construção das
representações sociais da loucura no Brasil, considerando-a como um “exemplo acabado do
condicionamento histórico das concepções psiquiátricas” (p.9). Para este autor, a Liga traz à tona o
fantasma da prevenção que sempre rondou o campo da Psiquiatria, desde o início da sua história.
Respaldada pelos princípios da higiene mental, a Liga teve uma poderosa e rápida influência nas
instituições psiquiátricas brasileiras, contribuindo de forma intensa na formação de preconceitos raciais e
xenofóbicos, colocando a figura do negro, do mestiço, do pobre e do imigrante como propensos para o
desenvolvimento de doenças mentais, devido a seu alto potencial para a degeneração (Costa, 1989).
A Liga de Higiene Mental tinha suas reflexões e atuação fortemente ancoradas no princípio da
eugenia, um conceito elaborado pelo fisiologista inglês Galton, que alcançara grande aceitação no meio
científico e intelectual em vários países no início do século XX. Para Galton a eugenia era “o estudo dos
fatores socialmente controláveis que podem elevar ou rebaixar as qualidades raciais das gerações futuras,
tanto física quanto mentalmente”. (Pequignot, conforme citado por Costa, 1989, p.81).
Inicialmente, a Liga foi criada com o objetivo de melhorar a assistência aos doentes mentais, por
meio da renovação dos quadros profissionais e das instituições psiquiátricas, seguindo os ideais
cientificistas dos alienistas brasileiros. Em seus primeiros anos, o princípio da higiene psíquica individual
foi direcionado especificamente aos doentes mentais, sendo a atuação da Liga restrita às instituições
psiquiátricas.
A partir de 1926, contudo, os líderes da Liga de Higiene Mental começaram a ampliar a
divulgação de suas idéias preventivistas, pretendendo adotar no âmbito da Psiquiatria os ideais e
procedimentos de prevenção utilizados na Medicina orgânica, ou seja, a ação terapêutica deveria ser
empreendida antes do aparecimento dos sinais clínicos. Sendo assim, a atuação da Psiquiatria se
modificou. Não eram mais somente os doentes mentais o foco de atenção, mas sim, e especialmente, o
indivíduo considerado normal.
Em decorrência deste acirramento na busca da prevenção, em 1930 houve uma mudança nos
estatutos da Liga. Tal mudança é considerada como uma decorrência natural dos progressos teóricos no
campo da eugenia, engendrando uma mudança dos programas de higiene mental. Os hospitais
psiquiátricos, a partir do final da década de 20, foram palco da introdução e criação de diversos

81
tratamentos somáticos e psicológicos baseados nos ideais preventivos e eugênicos. Aparentemente,
substituía-se o tratamento moral que prevalecia até este momento.
Com as novas teorias psiquiátricas, baseadas no racismo, na xenofobia e na inferioridade da
população internada, os hospitais psiquiátricos começaram a ser um campo fértil para a criação e
experimentação de inúmeras técnicas, que atualmente são consideradas “absurdos terapêuticos”, tais
como a malarioterapia, traumaterapia, cadeiras giratórias, banhos de imersão, experiências com
medicações, dentre outras. Este momento de intensa experimentação nos hospitais psiquiátricos coincide
com a descoberta do choque insulínico, do choque cardiazólico, da eletroconvulsoterapia, conhecida
como eletrochoque, e invenção das lobotomias, que se constituem em operações que retiram parte do
lobo frontal do cérebro, reduzindo a vida psíquica ao estado vegetativo. Tais descobertas foram
amplamente aplicadas nos hospitais psiquiátricos brasileiros até a década de 8024.
A enfermagem, que já habitava o espaço hospitalar, foi reforçada em sua missão de manter a
disciplina dos doentes, de forma que seguissem à risca as normas institucionais. Inúmeros conflitos se
deram entre médicos e enfermeiros, que culminaram na “centralização do poder técnico e administrativo
nas mãos dos alienistas e na sujeição dos agentes de enfermagem ao poder médico” (Kirschbaum, 1997,
p. 284). Neste período foram criados alguns cursos de formação em enfermagem psiquiátrica, onde o
cerne destes cursos residia no ensino de técnicas de contenção e manutenção da ordem e submissão do
paciente psiquiátrico. A formação teórica, quando existente, ficava renegada ao segundo plano, pois o
conhecimento teórico passou a ser uma prerrogativa dos médicos e não mais da enfermagem
(Kirschbaum, 1997).
As mudanças, entretanto, não se restringiram ao âmbito hospitalar, sendo ampliado para toda a
sociedade. Outros profissionais foram convocados a compor o quadro dos “higienizadores da sociedade”,
em sua nobre missão de interromper a caminhada do país rumo à degeneração. Psicólogos, assistentes
sociais, pedagogos, dentre outros foram levados a integrar o movimento de higienização do povo
brasileiro, passando a ser legítimos representantes da ciência e seu ideal progressista. Tais especialistas
foram convocados, para colocar em prática, teorias ideológicas que visavam o engessamento da
criatividade, a patologização de qualquer manifestação de vida criativa e a medicalização como a
panacéia para todos os males.
Assim, em parceria com outros profissionais, a Psiquiatria penetrou nas diversas instituições
sociais, especialmente as escolas e instituições destinadas à assistência social. Psicólogos passam a atuar
nas escolas, especialmente as públicas, “soltando inúmeros laudos”, permeados por termos técnicos e
científicos, que respaldam suas conclusões sobre deficiências, retardos, esquizofrenias precoces e tantas

24
O eletrochoque e a lobotomia foram alvo de intensas críticas a partir da década de 80. Seu uso foi quase extinto no
território nacional, mas sabe-se da utilização clandestina destas técnicas até os dias atuais em alguns hospitais
psiquiátricos do país. Há, inclusive, um movimento no âmbito das alas mais conservadoras da atual Psiquiatria, de
reabilitação do uso do eletrochoque, cujo argumento é o aprimoramento da técnica da eletroconvulsoterapia, que
reduz os efeitos colaterais deste tipo de intervenção. Tal discussão, entretanto, situa-se somente nos aspectos
técnicos, desconsiderando os questionamentos acerca de sua real eficácia e, principalmente, desconsiderando as
implicações éticas do uso desta técnica.

82
outras rotulações. A partir da década de 30, inúmeras crianças de famílias pobres foram encaminhadas
para instituições psiquiátricas ou tratamento psiquiátrico ambulatorial, como forma de prevenir possíveis
distúrbios psíquicos ou tratar daqueles que já estavam, biológica e culturalmente, destinados à
degeneração (Patto, 1990).
Psicopedagogos e orientadores educacionais contribuíram propondo técnicas de adestramento,
visando a disciplina perfeita. Técnicas muitas vezes invasivas e que permitiam um sem número de
violências, se não físicas, mas simbólicas, que serviam apenas à manutenção da ordem. O aprendizado
genuíno, o incentivo ao interesse pelo conhecimento e outros elementos fundamentais ao crescimento
pessoal, intelectual e social destas crianças ficaram em segundo, terceiro ou quarto plano. Tudo em nome
de uma “ortopedia moral”, baseada numa ética que, na busca de um “ser humano normal universal”,
desconsiderava as peculiaridades culturais na formação de indivíduos dos diferentes grupos. (Patto, 1990;
Costa, 1989). Cabe lembrar que a Psiquiatria encontrou na escola brasileira um campo fértil para sua
introdução, tendo em vista que a instituição escolar no Brasil tem uma trajetória marcada por ações de
natureza coercitiva, que se iniciou com a vinda dos jesuítas. Não nos cabe, entretanto, detalhar tal história.
Aos interessados nesse assunto, recomendamos inicialmente a leitura de Patto (1990).
A influência da Psiquiatria e seus ideais pode ser percebida, inclusive, no âmbito das artes.
Masiero (2003), ao contar a história do cinema no Brasil, fala da importância que “a sétima arte” assumiu
enquanto manifestação artística, mas também como técnica pedagógica. Em sua retomada histórica sobre
o cinema, destaca o papel da Liga Brasileira de Higiene Mental quando esta conferiu ao cinema uma
responsabilidade na formação intelectual e moral da sociedade. Tal responsabilidade foi conferida na
medida em que estes “pensadores e reguladores da cultura” perceberam a grande popularidade alcançada
pelo cinema no contexto nacional. Assim, cresceu uma preocupação com os temas retratados ao público,
que levou à elaboração de estratégias de censura como, por exemplo, a proposição de leis que regulavam
a atividade cinematográfica e a criação de comissões julgadoras dos filmes produzidos no Brasil ou no
exterior. Essa comissão era composta por membros do governo e por membros da Liga Brasileira de
Higiene Mental, que conferiam um respaldo científico às censuras empreendidas.
A atuação da Liga também se expandiu no terreno religioso. Com uma adesão cada vez maior de
pessoas às crenças e rituais espíritas em suas mais variadas formas, as religiões africanas, o Espiritismo
Kardecista - que havia acabado de chegar ao Brasil – e outras manifestações religiosas passaram a ser
alvo de uma preocupação e controle por parte da Psiquiatria. Assentados em seu pensamento
psicopatologizante, os psiquiatras da época consideravam os rituais espíritas, especialmente os
kardecistas, como “fábricas de loucos”, além de serem considerados responsáveis pela indução ao
suicídio, ao crime e desagregação da família (Almeida, Almeida & Neto, 2003).
Como conseqüência deste pensamento psicopatologizante, alguns “tipos clínicos” foram criados
para explicar as manifestações psíquicas nos contextos religiosos como, por exemplo, a espiritopatia,
mediunopatia, delírio espírita episódico, dentre outros. As investigações psiquiátricas a respeito do
espiritismo foram seguidas de algumas campanhas destinadas ao seu combate. Tais campanhas envolviam

83
“exigências de fechamento de centros espíritas, destruição das publicações espíritas, campanhas de
‘esclarecimentos sobre os perigos do espiritismo’ e clamores pelo cumprimento do código penal que
criminalizava práticas espíritas”. (Almeida e cols, 2003, p.193).
Assim, a sociedade brasileira passou por um intenso processo de psiquiatrização de sua cultura,
onde o ideal eugênico de purificação da raça e “europeização da cultura” permeava os diversos meios
sociais. O embranquecimento da população como medida para barrar o processo de degeneração de toda
uma nação levou os psiquiatras brasileiros a “pedir a esterilização sexual dos indivíduos doentes, a pregar
o desaparecimento da miscigenação racial entre brasileiros, a exigir a proibição de imigração de
indivíduos não-brancos, a solicitar a instalação de tribunais de eugenia e de salário-paternidade eugênico,
etc” (Costa, 1989, p.59).
Essa psiquiatrização da cultura fortalecida pela existência da Liga Brasileira de Higiene Mental,
apesar de ter encontrado resistências ao longo de seu desenvolvimento como se verá adiante, não deve,
entretanto ser tratada como um mero capítulo dentro da história da Psiquiatria no Brasil, pois sua
influência foi bastante significativa para a construção de todo o pensamento brasileiro a respeito da
loucura e do tratamento destinado ao sujeito considerado louco. Apesar da não unanimidade em torno dos
pressupostos da Liga, ela colocou disponível no imaginário inúmeros elementos que, combinados,
contribuíram fortemente para a construção de um lugar marginal para a loucura em nossa cultura. Além
disso, a atuação da Liga deu o respaldo científico para a construção de um grande número de hospitais
psiquiátricos por todo o território nacional, embasando cientificamente suas práticas de exclusão e
estigmatização.
Neste sentido, parece cabível relatar a opinião Costa (1989) a respeito da influência dos
pressupostos adotados pela Liga Brasileira de Higiene Mental no contexto brasileiro. Para este autor, a
fantasia totalitária, de controle da imprevisibilidade do sujeito, está na raiz dos piores momentos
porque passou a história da Psiquiatria. Em função dela, interessantes hipóteses heurísticas de
trabalho transformaram-se em dogmas estagnados, matéria-prima de sectarismos políticos,
econômicos ou de escolas, no interior do pensamento psiquiátrico. Seu preço é a indigência da
postura intelectual crítica, a restrição da liberdade de pensar e, em sua forma paroxística, o
extermínio de vidas humanas, como nos campos de concentração nazistas, nos gulags
estalinistas ou nos porões dos asilos do Ocidente civilizado e democrático. (p.16).

84
A instauração do modelo manicomial e seus contrapontos

“Por que?
Os gritos em favor do manicômio
sempre partem do lado de fora
emitidos por pessoas confortavelmente
instalados em suas poltronas.
Nunca vem lá de dentro...
os que estão lá dentro, à “estes”
ninguém ouve ou dá crédito”
(Samuel B. Magalhães)

Após a apresentação do processo de inserção da Psiquiatria e as principais diretrizes que


orientaram o desenvolvimento dessa ciência no contexto brasileiro, cabe exemplificar de que forma esse
pensamento operou a construção do modelo de tratamento das doenças mentais. Neste sentido, não
podemos nos furtar de fazer algumas referências à história do Hospício do Juquery, considerado o
“hospício-modelo”, que imprimiu a marca do manicômio e da loucura no país a partir do início do século
XX.
O Juquery foi criado no mesmo ano do Hospício Pedro II, juntamente com instituições da mesma
natureza criadas nas outras capitais da província. Inicialmente um hospital pequeno, o Hospício de São
Paulo, como os demais criados nesta época, ficou sob a custódia da Santa Casa de Misericórdia, atuando
mais como uma casa de caridade do que como um hospício científico. A situação desta instituição
gerenciada pela Santa Casa atingira um ponto de extrema degradação, sendo suas quatro primeiras
décadas de existência marcadas por inúmeros episódios de violência, rebeliões dos internos e greves de
empregados, considerados a categoria de trabalhadores urbanos mais mal remunerada (Cunha, 1990).
Outro problema grave era a sucessão de epidemias que apavoravam os moradores da vizinhança,
o que se assemelhava ao pavor perante o “mal-podridão” que exalava dos hospitais gerais na França do
século XVIII. A situação era de total insalubridade, a ponto deste hospital apresentar uma taxa de
mortalidade de 50% de seus internos. Além disso, o hospício tratava somente dos loucos furiosos, que
eram mantidos na instituição no prazo de trinta dias, sendo, após este prazo, devolvidos às ruas e ao
convívio com a sociedade “contaminada pela degeneração”, se juntando aos outros “loucos mansos” que
viviam soltos nas ruas de São Paulo (Cunha, 1990).
A cidade de São Paulo nessa época sofrera um aumento vertiginoso de sua população, devido à
chegada de imigrantes para trabalhar nas recentes indústrias e à chegada dos negros e campesinos após a
abolição da escravatura. Estas parcelas da população, segundo os alienistas da época, vinham compor a
grande massa de degenerados que se aglomerava nas cidades, gerando a necessidade urgente de uma
disciplina desse contingente populacional, como forma de profilaxia do espaço urbano.
Com a proclamação da República, como já foi relatado anteriormente, se iniciam as
transformações na assistência psiquiátrica no país e o processo de cientifização dos hospícios, que
passaram a ser gerenciados por médicos especialistas. Em 1896, Francisco Franco da Rocha, médico
recém formado juntamente com Teixeira Brandão na primeira turma de especialistas da Faculdade

85
Nacional de Medicina, assume a direção do hospício que passa a denominar-se Hospício do Juquery.
Como grande contestador da administração do hospício em suas primeiras décadas, Franco da Rocha
assume como função do hospício a resolução da “questão social” (leia-se a “higienização” do espaço
urbano) e a consolidação da ciência no tratamento da loucura. Mais do que a compaixão e a caridade,
Franco da Rocha prometia a cura e a saúde do corpo social (Cunha, 1990).
A preocupação das elites republicanas com a organização e ordem do espaço urbano pode ser
evidenciada pelo fato de que, em 1904, 50% da verba governamental se destinava ao Serviço Sanitário do
Estado, ao sistema penitenciário e à polícia. Nessa época, o Juquery já havia se tornado o “hospício
modelo” do país e já havia ampliado suas instalações de forma que pudesse abrigar um grande número de
internos. Este hospício, ao longo da história do Brasil, foi uma das instituições que teve o maior número
de internos em suas instalações, chegando a abrigar em uma só época, aproximadamente 20.000
habitantes.
Segundo Cunha (1990), os três objetivos básicos da instituição eram: 1) garantir a hegemonia do
poder dos alienistas, que culminou com a centralização do saber e do poder nestes profissionais, em
detrimento dos demais; 2) implantação do hospício medicalizado, compatibilizando as idéias de Pinel
com os pressupostos da teoria da degenerescência; 3) ampliação da escala do internamento. A partir de
então, não seriam somente os loucos furiosos que seriam internados, mas toda a “massa de degenerados”
que porventura ameaçassem a ordem social. Neste sentido, o aumento do internamento se deu em virtude
da criação de uma demanda pela própria psiquiatria.
A localização do hospício se deu em uma área rural, tendo como justificativa o fato de que ao
ambiente pacífico e bucólico do campo teriam um sentido terapêutico para os doentes. Além deste
“discurso terapêutico”, a prática de construir hospitais destinados a esta população em locais afastados
das cidades está associada ao incômodo da “ausente presença do louco” que tais instituições representam.
É também uma forma de evitar que a população tome conhecimento do intenso processo de exclusão a
que seus membros estão submetidos.
Tal como os primeiros hospícios criados na Europa, o princípio básico de funcionamento da
instituição era a laborterapia que, como foi anteriormente explicitado, no Brasil adquire um sentido
diferenciado daquele professado por Pinel. Neste novo modelo de Franco da Rocha o trabalho significava
“um meio de disciplinar os incuráveis, de torná-los dóceis e integrados no seu novo mundo de exclusão
perpétua e garantir a ordem e a disciplina da própria instituição” (Cunha, 1990, p. 52).
O trabalho era considerado uma promoção dentro de uma carreira asilar, constituída por quatro
etapas. A primeira etapa era denominada “hospício central”, uma espécie de sala de espera, onde era
realizada uma triagem do doente. Nesta etapa eram realizados os diagnósticos, construídos ao longo da
aplicação das “modernas” técnicas de tratamento: balneoterapia25, duchas circulares26, diatermia27,
malarioterapia, choque insulínico e traumaterapia.

25
Outro nome dado à hidroterapia. A balneoterapia consistia em longos banhos de imersão em água muito quente ou
muito fria, que duravam muitas horas e às vezes até mais de um dia.

86
Após vencida esta primeira etapa, que poderia durar até alguns anos, o doente passava à segunda
fase, onde era premiado com alguns pequenos trabalhos, executados nos pavilhões cercados por altos
muros. Tais trabalhos eram premiados com cigarros e aumento da comida, o que evidencia que comia-se
mal e pouco dentro do hospício. A terceira fase segue o regime de trabalhos forçados da segunda, com a
diferença que o trabalho era exercido nas colônias agrícolas, em áreas abertas. A quarta fase, considerada
o top da carreira asilar, era a “assistência domiciliar”, quando os internos eram entregues aos cuidados
dos campesinos vizinhos aos hospícios, para auxiliar, de graça, nos trabalhos agrícolas. (Cunha, 1986).
Essa carreira asilar era instável, pois, além da impossibilidade de transcender a estas etapas, a
qualquer sinal de resistência ou rebeldia, os internos eram rebaixados para a primeira fase: a do hospício
central. A possibilidade de voltar para esta primeira fase assombrava os internos durante toda a sua vida,
o que os levava a uma postura de submissão às regras impostas pela instituição. As camisas de força e as
violentas punições corporais foram substituídas pelo medo e pela repressão (Cunha, 1986).
As camisas de força passaram a ser usadas em situações muito específicas, sendo muito utilizadas
para proibir as mulheres de manifestarem o comportamento imoral de tirar a roupa. A base moral do
tratamento pode ser evidenciada nas rígidas regras impostas aos internos, dos quais destacamos a
separação rígida dos sexos em alas diferenciadas. Homens e mulheres se encontravam somente nas festas
que aconteciam esporadicamente no hospício e sob intensa vigilância. Essa separação dos sexos, além da
questão moral que a subsidiava, também pode ser interpretada como uma medida que favorecia a eugenia,
na medida em que torna praticamente impossível a reprodução. As práticas sexuais alternativas,
características destas instituições repressivas, eram “ferozmente” repreendidas e punidas.
Cabe ressaltar que estas regras morais não se restringiam aos internos doentes do hospício, sendo
ampliadas também para enfermeiros e outros agentes que trabalhavam na instituição. Os alienistas, como
detentores do poder de moralização e disciplina dos degenerados, estenderam seu domínio aos outros
profissionais, também considerados potenciais portadores do “vírus da degeneração”. Ou seja, para além
do domínio no âmbito profissional, como foi apontado por Kirschbaum (1997), os alienistas também
empreenderam um domínio moral sobre os outros profissionais.
Esta experiência de higienização social empreendida pelos idealizadores do Juquery,
especialmente Franco da Rocha, e sua conseqüente dinâmica de funcionamento interno que decreta a
perpétua internação de seus doentes, constituiu um modelo para todo o país. Em todo o território nacional,
foram empreendidas iniciativas semelhantes a esta, sendo criados inúmeros hospitais psiquiátricos no
decorrer das primeiras décadas do século XX. A proliferação deste modelo foi de grande importância para
a consolidação de uma representação social da loucura intimamente ligada à periculosidade e
incapacidade para a convivência social.

26
Espécie de gaiola de canos furados de onde jorravam grandes quantidades de água quente e vapor sobre o interno
imobilizado. Eram freqüentes as mortes por afogamento. Tal técnica foi abandonada algumas décadas depois
(Cunha, 1986).
27
Longos banhos de imersão, que duravam dias, em água com a mais alta temperatura que o corpo humano pudesse
suportar, acompanhados de um capacete de gelo na cabeça do doente (Cunha, 1986).

87
Convém lembrar que esta psiquiatrização
da cultura, baseada pelos ideais da Liga Brasileira
de Higiene Mental e seus princípios eugênicos
não foi unânime como foi afirmado
anteriormente, encontrando resistências em seu
caminho. Resistências existentes dentro do
próprio meio científico, que podem ser
exemplificadas com o trabalho de Nise da
Silveira, no antigo Hospital Pedro II, que em
1946, cria a Seção de Terapêutica Ocupacional.
Figura 10: Pintura de Emydgio de Barros
Foto retirada do site do Museu de Imagens do Inconsciente

A criação desta seção foi o resultado de uma indignação de Nise da Silveira com os tratamentos
dispensados aos doentes mentais nesta época, que se restringiam basicamente ao tratamento
medicamentoso e, com muita freqüência, recorriam-se aos choques insulínicos, eletrochoques e
lobotomias, além de outras técnicas extremamente invasivas e abusivas. Tais tratamentos revelavam, na
compreensão de Nise, uma limitação da compreensão de ser humano, adotada pela então vigente
psiquiatria, bem como uma tentativa feroz de domesticá-lo por meio de seu estreito padrão de
normalização.
As atividades realizadas na Seção de Terapêutica Ocupacional visavam oferecer outros tipos de
linguagem, que pudessem lançar nova luz sobre o processo psicótico e a forma adequada de seu
tratamento. Fazia-se necessária a criação de um espaço de expressão das vivências não verbalizáveis, dos
conteúdos arcaicos do pensamento, das emoções e impulsos que não encontram possibilidade de
elaboração pela palavra. Neste sentido, a Terapêutica Ocupacional foi proposta enquanto um método de
pesquisa e instrumento terapêutico legítimo, extrapolando a forma como vinha sendo correntemente
utilizada: uma prática auxiliar e com o objetivo apenas de distrair e ocupar o tempo do paciente.
Aos poucos, a pintura e modelagem ganharam
destaque dentre as atividades desenvolvidas na Seção
Terapêutica, e as questões que foram surgindo neste
“atelier” de Terapia Ocupacional ultrapassavam a
capacidade da Psiquiatria tradicional em respondê-las.
Nise começou então, a buscar respostas para suas
inquietações no estudo das imagens e dos símbolos,
recorrendo à Psicologia Analítica de Jung e seus
estudos sobre os mitos.
Figura 11: Emydgio de Barros no Ateliê de terapia ocupacional
Foto retidada do site do Museu de Imagens do Inconsciente

88
A partir deste trabalho realizado na Seção de Terapia Ocupacional, foi fundado o Museu de
Imagens do Inconsciente, em 20 de maio de 1952, sendo transferido para novas instalações em 1956,
quando já contava com grande acervo, que surpreendia a todos pela riqueza dos conteúdos expressos. O
Museu tornou-se um local de referência para os
estudos das imagens inconscientes e muitos teóricos
importantes da Psiquiatria e Antipsiquiatria, como
Henry Ey e Ronald Laing, o visitaram. Já em 1956, o
professor Lopes Ibor escreveu que o Museu “reunia
uma coleção artística psicopatológica única no
mundo”, o que revela a magnitude e importância deste
trabalho pioneiro. (Museu de Imagens do Inconsciente,
1987).
Figura 12: Pintura de Fernando Diniz
Foto retirada do site do Museu de Imagens do Inconsciente

Além das resistências existentes no próprio âmbito médico, cabe ressaltar que o discurso
científico não foi captado de forma total, deixando brechas para a co-existência de crenças e influências
de outras concepções de loucura, já mencionadas, que não as estritamente científicas. Em todo o país,
caracterizado pela diversidade cultural, foram engendradas outras representações sociais acerca da
loucura e seu tratamento.
Alguns estudos sobre o significado da doença mental em diversas comunidades nordestinas
apontam para a diversidade de significados que são construídos no engendramento das relações
interpessoais presentes nas redes sociais às quais o doente pertence. Os significados elaborados pelos
diversos grupos sociais a respeito da loucura ultrapassam os construídos no âmbito da ciência, não tendo
em seu conteúdo somente categorias psicopatologizantes. Da mesma forma, as práticas empreendidas
muitas vezes se distanciam dos restritos ditames científicos, sendo estes por vezes desconhecidos ou,
mesmo quando conhecidos, ignorados ou colocados em segundo plano no âmbito de algumas
comunidades (Souza, 1999; Alves & Souza, 1999; Rabelo, Alves & Souza, 1999).
Essa relativa autonomia da cultura em relação à ciência na produção da loucura e das práticas a
ela relativas pode ser iluminada com a discussão empreendida por Herzlich (1991) a respeito da saúde
como um todo. Para esta autora, o saber que o doente traz com relação ao seu processo de adoecimento é
fortemente influenciada pelo saber dos médicos. A influência da Medicina, contudo, não coloca em
questão a existência ou a autonomia de outras representações acerca do mesmo fenômeno, porque não se
pode reduzir as representações sociais acerca de uma doença à pura reprodução de um saber. Segundo
Herzlich, apesar da doença estar hoje nas mãos da medicina, ela continua sendo um fenômeno que a
ultrapassa. O sentido da doença não se reduz ao diagnóstico obtido por meio de informações dadas pelos
médicos. De acordo com esta autora, “a história da medicina nos mostra de que modo as relações entre
saber médico e concepções do senso comum podem estabelecer-se em dois sentidos, sem uma

89
dependência em sentido único, mas com vaivens entre o pensamento erudito e o pensamento de senso
comum.” (Herzlich, 1991, p.30).
A discussão de Herzlich se enquadra no contexto teórico da Teoria das Representações Sociais,
que compreende o processo de apropriação do conhecimento originário da ciência como um processo
ativo. No âmbito desta teoria, a passagem do conhecimento do universo reificado (a ciência) para o
universo consensual (o senso comum) é mediada por um sem número de fatores, dentre os quais estão os
sujeitos e suas histórias de vida, as histórias e formas de funcionamento dos grupos nos quais os sujeitos
estão inseridos e o lugar do qual o sujeito se posiciona diante do objeto a ser representado (Moscovici,
1978).

A Indústria da Loucura
“... a liberdade vira quimera, o doutor não aparece
pra perícia assinar e o cidadão brasileiro,
cada vez mais humilhado,
curado permanece internado!!!”
(Cátia de França, cordel
“Quem renega seus doidos
essa sociedade é falha”)

Apesar das resistências, a psiquiatrização da cultura brasileira conseguiu se estabelecer, tendo


como uma de suas conseqüências a transformação da loucura, em pouco tempo, em um “negócio
altamente rentável”. A Liga Brasileira de Higiene Mental se desfez, mas a psiquiatria continuou seu
legado e os hospitais psiquiátricos já estavam inseridos na cultura brasileira enquanto instituições
“necessárias ao seu bom funcionamento”. O enorme contingente de pessoas submetidas à internação fez
com que se iniciasse a construção do que se conhece atualmente como a “indústria da loucura”.
A década de 30 foi o ponto de partida para uma paulatina privatização da Psiquiatria. O Serviço
de Assistência aos Doentes Mentais do Distrito Federal é incorporado ao Ministério da Saúde e Educação
recém criado no governo Vargas e são criados os Institutos de Aposentadoria e Pensões e Assistência
Médica.
Na década de 60 é feita a unificação dos institutos de aposentadorias e pensões, com a criação
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Com o início da privatização de parte da economia, o
governo também dá andamento à privatização da assistência à saúde mental. Conciliando os interesses do
Estado e da população com os interesses de empresários, passa a comprar serviços psiquiátricos de
entidades privadas. Há uma multiplicação de clínicas e hospitais particulares conveniados, chegando o
governo a gastar 97% da verba para a saúde mental com internações hospitalares, em sua maioria, em
hospitais conveniados. Tais instituições prestavam um péssimo serviço, onerando os cofres públicos sem,
no entanto, nenhum tipo de fiscalização ou punição para o não cumprimento das cláusulas dos convênios.
As propostas mais inovadoras, que tinham uma característica não manicomial, encontraram sérias

90
resistências no que tange ao seu financiamento. Ocorreram apenas em poucas localidades e de forma
desarticulada, sem, no entanto, o apoio de uma política nacional específica (Amarante, 1994).
Tal situação levou a uma crise institucional e financeira da Previdência Social na década de 80,
que culminou com a adoção por parte do Estado de algumas medidas racionalizadoras e disciplinadoras
do setor privado, reorganizando o setor público por meio de alguns programas governamentais. Neste
momento político do país, no que diz respeito à reorganização da assistência à saúde mental, já é
percebida a presença de trabalhadores em saúde mental organizados que, por meio de suas reivindicações
e denúncias, iniciam o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Cabe destacar que este movimento, iniciado na década de 80, pela transformação da assistência
psiquiátrica no país, recebeu importantes influências de experiências de outros países, podendo ser a
Reforma Psiquiátrica Brasileira considerada como uma confluência dos questionamentos em relação à
Psiquiatria em toda a Europa com a situação de miserabilidade vivida pela assistência psiquiátrica no
Brasil.
Neste sentido, para conhecermos o processo de implementação da Reforma Psiquiátrica no
Brasil, faz-se necessária uma breve pausa, para que voltemos um pouco na história, resgatando as origens
da Reforma Psiquiátrica no cenário internacional, como forma de elucidar as influências históricas deste
movimento em nosso país. No capítulo seguinte, trilharemos o mesmo caminho que percorremos neste.
Até este momento, para conhecermos a história da Psiquiatria no contexto brasileiro, suas formas de
inserção na cultura, suas influências na construção da identidade nacional e na constituição das
representações sociais da loucura em nosso contexto, empreendemos um retorno às origens dessa ciência.
Em seguida, faremos o mesmo com relação à Reforma Psiquiátrica, fazendo referências aos movimentos
que antecederam a chegada deste movimento no Brasil. Tal retomada histórica trará elementos
importantes para a compreensão do processo brasileiro e dos princípios e diretrizes que o regem.

91
3. A REFORMA PSIQUIÁTRICA
“Não nos surpreendemos com vosso despreparo
diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos
predestinados. No entanto, nos rebelamos contra o direito
concedido a homens – limitados ou não –
de sacramentar com o encarceramento perpétuo
suas investigações no domínio do espírito”.
(Artaud, Carta aos médicos-chefes dos manicômios)

Reforma Psiquiátrica é uma expressão um tanto imprecisa, tendo em vista os inúmeros


entendimentos a respeito do que venha a ser esta proposta. Não há uma fórmula ou um conceito fechado e
exato para caracterizar a Reforma, mas sim um conjunto de princípios, diretrizes e (por que não ?)
desejos, que engendram uma reflexão mais ou menos coesa em torno do que denominamos Reforma
Psiquiátrica. Tal reflexão nasceu dentro da própria realidade manicomial que, pelo seu caráter violento e
ultrajante, levou ao crescente incômodo e indignação por parte daqueles que atuavam como agentes desta
violência. Essa reflexão nascida no seio dos manicômios ultrapassou seus muros, adquirindo um estatuto
social e cultural, expandindo-se também para ações em políticas públicas.
Apesar da complexidade desta proposta e da dificuldade de formular um conceito preciso sobre a
Reforma Psiquiátrica, adotaremos uma definição no âmbito deste trabalho que é fruto da convivência
com o cotidiano de alguns serviços de saúde mental e pesquisas na recente literatura brasileira sobre o
tema. Compreendemos a Reforma Psiquiátrica como uma busca de uma outra forma de olhar, escutar e
tratar a loucura, decorrente de um processo histórico de questionamentos e reelaborações das concepções
e práticas psiquiátricas clássicas. Essa busca tem como condição primordial a transformação do
paradigma da psiquiatria e do modelo asilar para o tratamento da loucura. Busca-se também a construção
de um novo espaço social para o louco, um espaço onde sua cidadania seja reconhecida com respeito e
sua autonomia, enquanto sujeito, resgatada.
O pensamento e as práticas que estão na base da Reforma Psiquiátrica e que colocam em xeque a
eficácia do manicômio, nasceram, de certa forma, junto com a própria Psiquiatria. As críticas ao
tratamento asilar encontraram resistências desde seu início. Como diria David Cooper, um dos grandes
pensadores da Antipsiquiatria, desde o início da Psiquiatria existem “alguns psiquiatras que trabalham
dentro do sistema e são secretamente anti-psiquiatras” (Cooper, 1974, p.71). Entretanto, como se pôde
observar na história da Psiquiatria contada anteriormente, as forças científicas, sociais e políticas, se
aliaram em torno de um projeto de normatização da cultura e tal aliança conferiu uma legitimidade social
às práticas asilares propostas e empreendidas pelos alienistas.
A “idade de ouro do alienismo”, que compreendemos desde a obra de Pinel até a obra de Morel,
foi um período drástico para a loucura. Esta foi destituída de seu fascínio e os olhares dos homens
considerados normais ficaram cegos para o seu saber. A loucura foi obrigada a migrar para o domínio
médico-científico e, sendo aprisionada pela concepção crítica, passou a representar única e
exclusivamente o erro, o desvio, a doença mental. Ela se tornou um campo fértil para as mais fantásticas e
absurdas experimentações, por meio das quais se buscava a remissão de seus sintomas e a tão prometida

92
cura. Inúmeros hospitais psiquiátricos foram construídos em vários países, como espécies de “templos da
ciência”, erguidos na luta contra a insânia, o desvio, a imoralidade, a degeneração.
Algumas décadas se passaram até que o otimismo dos alienistas na busca da tão proclamada cura
fosse se enfraquecendo. Suas técnicas, criadas com base na crença de um fundamento orgânico para a
loucura, foram sendo desacreditadas. As técnicas de tratamento moral começaram a ser cada vez mais
criticadas, pois se tratavam primordialmente de técnicas de exclusão ancoradas nos correntes preconceitos
da época, cuja justificativa científica aos poucos foi perdendo sua capacidade de sustentá-las. A
Psiquiatria foi, gradativamente, sendo destituída de seu lugar nobre dentro da ciência médica, devido à
sua não resolutividade.
Aliada a este “fator interno” à própria Psiquiatria, o momento histórico que se seguiu à Segunda
Guerra Mundial foi marcado pelo desenvolvimento de movimentos civis e por uma maior tolerância e
sensibilidade para com as diferenças e minorias, em decorrência do crescimento econômico e da
necessidade de reconstrução social de alguns países. Essas transformações que atingiram a comunidade
profissional e cultural tiveram como uma de suas conseqüências a conclusão de que o hospital
psiquiátrico deveria ser transformado ou abolido. Seja por razões econômicas - no que diz respeito ao
desperdício da mão de obra barata dos países do pós-guerra e alto custo das internações - ou por razões
humanitárias, o hospital psiquiátrico começou a ser fortemente criticado quanto à sua eficácia. (Desviat,
1999).
Populações de vários países do pós-guerra vivenciavam a necessidade de construir uma sociedade
mais justa e igualitária. Reiniciou-se uma discussão intensa a respeito dos Direitos Humanos o que pode
ser considerado como um dos grandes avanços do século XX. A pioneira Declaração Universal dos
Direitos do Homem, elaborada à época da Revolução Francesa, foi reeditada e reafirmada no mesmo ano
da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948.
Juntamente com este “clima humanizador”, iniciava-se a época da descoberta dos medicamentos
psicotrópicos e da adoção da Psicanálise e da saúde pública nas instituições psiquiátricas que, aliados,
foram elementos importantes no desencadeamento dos vários movimentos de Reforma Psiquiátrica em
alguns países da Europa e no Brasil.
O contexto sócio-político de cada país, bem como o papel delegado ao manicômio em cada
cultura específica, influenciaram a forma com que se deu cada movimento de Reforma nos diferentes
lugares onde ela aconteceu. O que todas as experiências tinham em comum era a crítica à eficácia do
hospital psiquiátrico, o que levou a duas posições distintas: 1) a transformação do hospital psiquiátrico
em uma instituição realmente terapêutica ou 2) o fechamento do hospital como condição para que a
Reforma ocorresse. (Desviat, 1999).
A Reforma Psiquiátrica, tal como se configura no contexto brasileiro, como dissemos
anteriormente, é o resultado de uma confluência do momento histórico que o país estava vivenciando,
com as experiências de transformação do modelo asilar que estavam ocorrendo em toda a Europa e
Estados Unidos. As contestações às formas violentas e excludentes que marcaram a assistência ao doente

93
mental no país, ao longo da primeira metade do século XX, encontraram eco nas discussões e
experiências que estavam sendo vivenciadas no cenário internacional. Assim, apesar da Reforma
Psiquiátrica brasileira apresentar características bem peculiares, ela é profundamente marcada pela
influência de outros movimentos ocorridos em países da Europa, especialmente o movimento italiano,
conhecido como Psiquiatria Democrática Italiana, ou tradição basagliana. Assim, pensamos ser
interessante retomar brevemente a história de alguns dos movimentos de Reforma Psiquiátrica em âmbito
internacional, para que se compreenda melhor a influência deles no contexto brasileiro.

Os antecedentes históricos da Reforma Psiquiátrica Brasileira


“Com a loucura em seu seio, a sociedade receberia
suficientes ares de afectividade, de irracionalidade,
de espontaneidade imprevisível e de poesia.
Poderia, deste modo, assumir as suas próprias
contradições, para imediatamente as superar,
o que implicaria como é óbvio uma
transformação das suas estruturas.”
(Enrique González Duro)

Podemos dividir a história da Reforma Psiquiátrica no mundo em três grandes períodos,


concordando com a classificação adotada por alguns autores brasileiros (Birman & Costa, 1994;
Amarante, 1995). O primeiro período é marcado pela criação da Psicoterapia Institucional, na França, e
das Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra. O segundo período refere-se à Psicoterapia de Setor, na
França, e à Psiquiatria Preventiva, nos Estados Unidos. O terceiro período, que influenciou sobremaneira
as reflexões sobre a Reforma brasileira e que estamos considerando, no âmbito deste trabalho, como a
“legítima” Reforma Psiquiátrica, refere-se à Psiquiatria Democrática Italiana e à Antipsiquiatria,
difundida em vários países da Europa e Estados Unidos, com diversas formatações.

Primeiro período: as Comunidades Terapêuticas e a Psicoterapia Institucional


Este período foi marcado pela crença no hospital psiquiátrico como “instituição de cura”,
fazendo-se necessárias transformações internas destas instituições. Iniciou-se o movimento de criação das
Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra e em algumas localidades dos Estados Unidos, e da Psicoterapia
Institucional, na França. Estas experiências foram de grande importância por denunciarem as precárias
condições em que viviam os doentes asilados, propondo uma nova organização interna para estas
instituições. As comunidades terapêuticas funcionariam de maneira mais democrática e com as relações
institucionais horizontalizadas, ou seja, todos teriam, igualmente, direito à participação nas tomadas de
decisão dentro das instituições. Tais experiências, datadas do final da segunda guerra mundial,
coincidiram com o esforço coletivo e premente de resgatar o caráter positivo das instituições asilares,
resultado tanto da emergência de reflexões e posturas de cunho humanitário, como da necessidade de
recuperação da mão-de-obra “desperdiçada” em tais instituições para a reconstrução dos países do pós-
guerra.

94
As comunidades terapêuticas na Inglaterra tiveram como marco inicial o trabalho realizado por
Main, Bion e Reichman, em 1946, que fazia parte de um “Plano de Emergência” elaborado pelo governo
inglês. Este plano visava garantir a assistência a soldados ex-combatentes da segunda guerra e à
população civil como um todo. Neste contexto de pós-guerra, as comunidades terapêuticas, assim como a
Psicoterapia Institucional, foram estratégias de reorganização das instituições psiquiátricas fechadas, de
forma que essas se adequassem à nova configuração social e às novas expectativas humanitárias. O
trabalho consistia em grupos de discussão com os pacientes hospitalizados no Monthfield Hospital, em
Birmingham. Tal procedimento, além de consistir em uma estratégia clínica, visava também o
engajamento destes pacientes na organização e direção do centro de tratamento.
As comunidades terapêuticas consistiam em uma tentativa de equalizar os poderes dentro das
instituições. Deste momento em diante, as responsabilidades pela melhora dos doentes e pela
administração da instituição passavam a ser compartilhadas por todos os membros da comunidade, desde
técnicos a pacientes. Apesar de existirem vários modelos de comunidades terapêuticas, alguns princípios
podem ser resumidos no sentido de caracterizar o ideal e o funcionamento destas iniciativas. Segundo
Desviat (1999), estes princípios são:
Liberdade de comunicação em níveis distintos e em todas as direções; análise, em termos da
dinâmica individual e interpessoal, de tudo o que acontece na instituição (reuniões diárias dos
pacientes e do pessoal, psicoterapias de grupo); tendência a destruir as relações de autoridade
tradicionais, em um ambiente de extrema tolerância; atividades coletivas (bailes, festas,
excursões, etc) e presença de toda a comunidade nas decisões administrativas do serviço (p.35).

Em 1953, a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou um relatório recomendando que todos
os hospitais psiquiátricos se transformassem em Comunidades Terapêuticas, tendo em vista o caráter
humanizado deste tipo de funcionamento. O trabalho das comunidades terapêuticas foi consolidado com o
trabalho de Maxwell Jones que, em 1959, dentre outros feitos, resgatou os trabalhos de Hermann Simon
(década de 20) e de Sullivan (1930), considerados precursores da Terapia Ocupacional. As atitudes que
caracterizaram o trabalho de Jones foram: a reabilitação ativa, a democratização, a “permissividade” e o
“comunalismo” (atitude em que todos partilham do que existe na instituição). (Amarante, 1995).
Tais princípios são similares aos adotados no âmbito da Psicoterapia Institucional francesa, com a
diferença de que esta última foi caracterizada por uma grande influência da Psicanálise. A Psicoterapia
Institucional teve sua origem no trabalho desenvolvido por François Tosquelles, médico espanhol exilado,
que trabalhava no Hospital de Saint-Alban, em 1952. O trabalho de Tosqueles neste asilo rural foi
contemporâneo à ocupação alemã na França. Este fato contribuiu na transformação radical do
funcionamento de Saint-Alban, como forma de constituir-se em um espaço de resistência ao nazismo. Era
um local de encontro de intelectuais importantes da época que, juntamente com Tosquelles, sua equipe e
os pacientes residentes em Saint-Alban, elaboravam novas reflexões acerca do exílio, da doença mental e
seu asilamento. Também, foram desenvolvidas reflexões importantes acerca das instituições totais, seu
funcionamento e significado. Assim, Saint-Alban também se constituiu em um espaço de denúncias e
transformações no que concerne ao caráter totalitário das instituições psiquiátricas.

95
A Psicoterapia Institucional, assim como as Comunidades Terapêuticas, visava recuperar a
vocação terapêutica do hospital e tinha como hipótese inicial o fato de que dentro de uma instituição total
todos estão doentes, e é a instituição que deve ser tratada. A Psicoterapia Institucional, por sua forte
influência psicanalítica, foi definida como um “conjunto de ações que permitem a criação de campos
transferenciais multifocais” (Desviat, 1999, p.26). Neste sentido, a horizontalidade das relações e a
democratização das decisões passaram a ser princípios fundamentais da Psicoterapia Institucional. Alguns
nomes se destacaram dentro da Psicoterapia Institucional, sendo alguns destes Félix Guatarri28 e Jean
Oury29, criador de La Borde, uma instituição que funciona até os dias atuais nos moldes da Psicoterapia
Institucional. Para Jean Oury, a Psicanálise clássica era, na verdade, uma forma particular da Psicanálise
institucional.
As experiências das Comunidades Terapêuticas e da Psicoterapia Institucional foram importantes
para a transformação dos hospitais psiquiátricos em lugares mais humanizados e em espaços mais
democráticos, podendo oferecer a seus pacientes uma vida mais digna, não sujeita aos maus tratos
característicos das intervenções da Psiquiatria biológica e de cunho moral. Entretanto, apesar dos avanços
na terapêutica e na própria concepção de loucura, estas experiências não levaram em consideração o
estado de exclusão a que são submetidos seus usuários, não questionando a instituição psiquiátrica
enquanto lócus privilegiado de tratamento.

Segundo período: a Psicoterapia de Setor e a Psiquiatria Preventiva


O segundo momento da Reforma Psiquiátrica caracterizou-se por uma extensão da psiquiatria ao
espaço público, voltando-se para ações preventivas e de promoção da Saúde Mental, considerada neste
contexto como um processo de adaptação social. Marcaram este período as experiências da Psiquiatria de
Setor, na França, e a Psiquiatria Preventiva, nos Estados Unidos, como movimentos de contestação da
antiga prática psiquiátrica. Começaram a ser definidas algumas políticas de Saúde Mental nos Estados
Unidos e na Europa e tornou-se crescente a idéia de que o tratamento deveria ocorrer no contexto no qual
o sujeito estava inserido, sendo este o germe da idéia de territorialidade.
Ampliou-se o campo de atuação da Saúde Mental com o ingresso de novos profissionais na área,
antes restrita à Psiquiatria ou a ela submetidos. Surgiram inúmeros serviços ambulatoriais, substitutivos
ao hospital psiquiátrico e foram criados eficientes “sistemas de captação” de pessoas com potencial para
desenvolver algum tipo de distúrbio psíquico. Este modelo do preventivismo apontava para uma
medicalização da sociedade e adequação de preceitos médicos-psiquiátricos ao conjunto de normas e

28
Elaborou o conceito de transversalidade nas relações sociais e institucionais. Tal conceito refere-se a uma
“dimensão que pretende ultrapassar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples
horizontalidade” (Amarante, 1995, p.33)
29
Elaborou os conceitos de alienação social (campo onde todo o desejo é reprimido atrás de uma couraça de defesa:
estatuto, insígnia, uniforme, estereotipia profissional, etc) e relações oblíquas, sendo este último semelhante ao
conceito de transversalidade proposto por Guatarri.

96
princípios sociais, consolidando a Psiquiatria como importante instrumento de controle social (Amarante,
1995).
A Psicoterapia de Setor, desenvolvida na França, tinha por objetivo levar a Psiquiatria até a
população, evitando ao máximo a segregação e o isolamento dos doentes. Foram criadas instituições
destinadas à prevenção e outras destinadas ao cuidado do doente no pós-alta. Assim, a passagem pelo
hospital psiquiátrico, constituir-se-ia em uma fase transitória do tratamento. Foram implementadas
algumas mudanças no hospital psiquiátrico. A partir deste momento suas divisões internas
corresponderiam a uma área geográfica da cidade, o que permitiria uma continuidade dos cuidados pela
mesma equipe.
A Psiquiatria comunitária nos Estados Unidos teve uma grande influência das idéias sobre higiene
mental de Clifford Beers, que foram rapidamente aceitas pelos pensadores da cultura e do funcionamento
da sociedade americana, tendo em vista o contexto social e político por que passava o país. A guerra do
Vietnã, o crescimento do uso de drogas, o aparecimento de muitos jovens considerados “desviantes” e a
ascensão do movimento beatnik, levaram as autoridades a elaborar técnicas e instrumentos de
identificação de pessoas potencialmente doentes.
Neste momento de ascensão do preventivismo houve uma tentativa de “despsiquiatrização” da
saúde mental, ou seja, tal como na França, outros profissionais da saúde foram convocados a reunir seus
saberes na constituição de um tipo psicossociológico ideal. Foram criados os Centros de Saúde Mental
Comunitária, que deveriam prestar atendimentos de emergência e hospitalização durante 24 horas por dia.
Os princípios que fundamentaram a implantação destes Centros eram: a acessibilidade, informações
adequadas à população a respeito da existência e características dos diversos programas de saúde mental,
gratuidade, disponibilidade, ênfase na prevenção da doença, levantamento das necessidades da população,
abordagem eclética e utilização de qualquer tratamento útil, responsabilização do governo perante o
doente e sua família (Desviat, 1999).
Gerald Caplan elaborou algumas idéias que foram úteis à implantação da Psiquiatria preventiva.
Dentre estas idéias figuravam definições da atenção primária, secundária e terciária30, atualmente
utilizadas no Brasil, no que tange à saúde pública. Caplan também considerava que para se prevenir o
aparecimento de doenças mentais, o indivíduo necessitava ter alguns subsídios, que consistiam em fatores
físicos, psicossociais e socioculturais contínuos, adequados às diferentes etapas do desenvolvimento. A
partir da análise dos subsídios oferecidos diferentemente aos diversos grupos sociais, Caplan definiu
algumas comunidades de risco, que deveriam ser alvo de uma investigação tendo em vista suas tendências
à doença mental. Essa idéia dos grupos de risco com relação à saúde mental, apesar do “tom de

30
Prevenção primária: intervenção nas condições possíveis de formação da doença, condições etiológicas, que
podem ser de origem individual ou do meio. Este tipo de prevenção se dá ao nível do saneamento básico e
esclarecimentos à população, que podem também ser realizados nas unidades básicas de saúde; Prevenção
secundária: intervenção que busca a realização de diagnóstico e tratamento das doenças; Prevenção terciária:
busca de readaptação do paciente à vida social, após sua melhora (Birman & Costa, 1994, p. 54).

97
novidade”, pode ser compreendida como uma reedição sofisticada da teoria da degenerescência de Morel
muito influente nas primeiras décadas do século XX.
Neste contexto do preventivismo americano, Langsley e Kaplan, em 1967, elaboraram a teoria da
crise, propondo um modelo de intervenção em crise que seria rapidamente difundido e aplicado “nos
hospitais gerais, nos centros de saúde mental comunitários, nas estruturas médicas e sociais de tipo
preventivo ou como atuações em pontos da população urbana considerados de risco” (Desviat, 1999,
p.61).
Este segundo momento da Reforma Psiquiátrica apresentou alguns avanços com relação à prática
psiquiátrica exercida ao longo da história, entretanto, é preciso que se tome cuidado no sentido de não
superestimar tais avanços. A preocupação com o aspecto comunitário é, sem dúvida, uma novidade
interessante, entretanto não houve um rompimento com o modelo hospitalocêntrico, como seria de se
esperar. A idéia de que o sujeito deveria ser tratado em sua comunidade de origem, não necessariamente
correspondeu às práticas que foram implementadas, pois estas ainda recorriam ao hospital psiquiátrico
com o objetivo de isolar o sujeito em crise. Os serviços comunitários, imbuídos do ideal preventivista
acabaram por se tornar uma espécie de “olhos e ouvidos do rei”, aperfeiçoando seus métodos de detecção
e captura daqueles sujeitos considerados possíveis candidatos à doença mental. Os serviços comunitários
não chegaram a ser de fato substitutivos, pois, apesar da tentativa de “capilarização” da atenção à saúde
mental, o centro desse sistema assistencial ainda estava localizado dentro do hospital psiquiátrico.

Terceiro período: a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática Italiana


“A liberdade é terapêutica”
(Franco Basaglia)

Enquanto os dois primeiros períodos se restringiram a mudanças de ordem operacional e


institucional, a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática Italiana, característicos do terceiro período da
história da Reforma Psiquiátrica, inseriram uma ruptura radical com o paradigma anterior. Tais
movimentos operaram críticas severas ao saber e à prática psiquiátricas, propondo uma profunda
reconstrução, de ordem epistemológica e fenomenológica, do modelo psiquiátrico clássico vigente até
então.
A Antipsiquiatria surgiu ao final da década de 60, na Inglaterra, no contexto dos movimentos de
contracultura, e teve como seus representantes Ronald Laing, David Cooper, Thomaz Szasz, Aaron
Esterson, Deleuze, Guatarri, Franco Basaglia, dentre outros. A Antipsiquiatria foi assim denominada por
constituir-se enquanto uma “antiespecialidade”, um campo de conhecimentos que buscou romper
definitivamente com o modelo assistencial vigente e destituir o valor absoluto do saber médico no que diz
respeito à explicação e ao tratamento da loucura. Assim, a Antipsiquiatria, constituída por algumas

98
correntes de pensamento desenvolvidas em vários países31, pode ser conceituada, de uma forma geral,
como um “conjunto de reflexões acerca da origem, conceito e abordagem do facto social e individual que
constitui a loucura” (Fábregas & Calafat, 1978).
Um dos principais pressupostos da Antipsiquiatria era que a loucura é um fenômeno que ocorre
entre os homens e não dentro deles. E a loucura, sendo considerada uma produção social, não justificava
ações excludentes no seu tratamento. Ao contrário do que afirmaram seus opositores, no seio deste
movimento não era negada a existência da loucura, mas sim, questionava-se o ponto de vista a partir do
qual esta era significada. Para Cooper (1967, p.31, grifo do autor), as concepções de loucura engendradas
no seio da Psiquiatria, resultaram na elaboração de um tratamento imposto nos manicômios, que nada
mais é do que uma “sutil, tortuosa violência perpetrada pelos outros, pelos ‘sadios’, contra os rotulados
loucos”, e, na medida em que a psiquiatria era representante dos interesses dos sadios, pode ser concluído
que “a violência em psiquiatria é preeminentemente a violência da psiquiatria”.
Pelo fato da Antipsiquiatria ter nascido no seio das contestações da contracultura, foi rejeitada a
tentativa de normatização da sociedade a partir de pressupostos psiquiátricos, que vinha ocorrendo nos
últimos anos com as experiências em Psiquiatria Preventiva. Para os pensadores da Antipsiquiatria, esta
“anti-especialidade” tinha por princípio inverter as regras do jogo psiquiátrico, com objetivo de destruir
esses jogos. Uma das formas de empreender tal inversão, segundo Cooper (1974), era ressignificar a idéia
de diagnóstico. Para ele, o diagnóstico, tal como era feito pela Psiquiatria, tratava-se de uma tentativa de
objetivar a pessoa e seu estado de pensamento e sensação, representando uma forma medíocre de não
testemunhar o que está sendo vivido pelo outro. Outra forma de inverter o jogo psiquiátrico era quebrar a
relação ‘psiquiatra versus paciente’, instaurando uma relação de reciprocidade, onde haja a possibilidade
de inversão de papéis entre os sujeitos dessa relação.
Um dos princípios compartilhados pelos autores da Antipsiquiatria era o da não interferência,
tendo em vista a compreensão de que era importante para o paciente viver abertamente sua experiência,
ao invés de evitá-la. A abertura a tal experiência, entretanto, deveria ser acompanhada por uma pessoa
preparada para compreender e respeitar a possível “estranheza” da experiência a ser vivida, característica,
segundo Cooper (1974), de pessoas que estão conscientes de sua própria interioridade por já tê-la
explorado suficientemente. Vários autores da Antipsiquiatria concordavam com Cooper (1974) que a
“não interferência, combinada com a disponibilidade de pessoas não apavoradas, é a característica central
da anti-psiquiatria” (p. 79).
Este movimento trouxe contribuições importantes para reformulações teórico-práticas na
assistência ao doente mental. Inúmeras reflexões foram feitas a respeito do papel das famílias e do grupo

31
A Antipsiquiatria teve algumas correntes de pensamento com desdobramentos diferenciados, relativos às
necessidades de cada contexto onde foram desenvolvidas e às questões privilegiadas por seus pensadores.
Destacamos dentre estas correntes: a corrente dinâmico-existencial, cujo maior representante é Ronald Laing;
corrente político-social, que tiveram como representantes, David Cooper, Basaglia, Deleuze, Guatarri,dentre outros
e a corrente ético-sociológica de Thomas Szasz.

99
social no adoecimento e, conseqüentemente, no reestabelecimento do doente. A loucura e as crises foram
ressignificadas como experiências com grande potencial para o auto-conhecimento.
Com o objetivo de transformar o modo como eram encarados os fenômenos relativos à “saúde
mental” e à “doença mental”, foi criada a Philadelphia Association, presidida, a partir de 1965, por
Ronald Laing. Uma das atuações importantes dessa associação foi a criação do que denominavam
comunidades terapêuticas, que eram casas criadas com o objetivo de oferecer uma outra perspectiva para
o sujeito em crise. Laing define essas casas como
crisóis para os que nelas vivem, quaisquer que sejam os seus papéis, onde se misturam os
preconceitos para com a experiência directa do desgaste diário, da agonia e da alegria, da
excitação e do aborrecimento, da esperança e do desespero da convivência.(entrevista concedida
a Fábregas & Calafat 1976, p.48).

Cabe lembrar que essas casas, segundo o próprio Laing (Fábregas & Calafat, 1976), poderiam ser
feitas em asilos, santuários ou locais hospitalares, pois o que importava era a transformação do
posicionamento diante das pessoas que nela se encontravam. Tais casas eram uma forma de afastar,
temporariamente, as pessoas que acreditavam que a sociedade as iria destruir, do convívio maléfico com
tal sociedade que as oprimia.
As contribuições teóricas e práticas da Antipsiquiatria foram inúmeras, não cabendo detalhá-las
neste momento. É importante, entretanto, destacar que as reflexões da Antipsiquiatria exerceram grande
influência sobre inúmeros psiquiatras e outros profissionais empenhados em transformar o pensamento e
a prática hegemônica da Psiquiatria. Em conseqüência disso, uma significativa produção teórica se
originou a partir destas reflexões.
Cabe lembrar que as reflexões da Antipsiquiatria foram o resultado de um contexto político e
social marcado pelas consequências da guerra e pela necessidade urgente de democratização de toda a
sociedade e suas instituições. Didaticamente se diz que a Antipsiquiatria foi criada ao final da década de
60, mas desde o início da década, já se podiam testemunhar o início deste movimento de contestação, nas
produções teóricas e em algumas iniciativas práticas relativas ao tratamento dos doentes mentais.
Uma das obras produzidas neste período germinativo da Antipsiquiatria foi o livro de Erving
Goffman, publicado em 1961, cujo título da edição em português é Manicômios, Prisões e Conventos.
Este livro foi escrito no contexto da Psiquiatria preventiva dos Estados Unidos e foi considerada uma obra
clássica, que forneceu importantes subsídios a respeito do funcionamento das instituições totais, com
ênfase especial nos hospitais psiquiátricos. Este livro faz uma análise profunda da dinâmica do hospital
psiquiátrico, suas regras disciplinadoras e despersonalizantes, a partir de um olhar sociológico. A obra de
Goffman pode ser compreendida como uma primeira denúncia deste mundo à parte em que se
constituíram os hospitais psiquiátricos, na medida em que foi um retrato institucional a partir de seus
intramuros e do ponto de vista dos internos. A partir desta obra, a vida dentro dos manicômios saiu do
anonimato em que até então se encontrava.

100
Ao fazer uma descrição do ambiente institucional, Goffman (1961⁄2003) evidenciou a existência e
as características dos dois mundos paralelos que convivem nestas instituições: o mundo dos internados e o
mundo da equipe técnica e dirigente. As fronteiras destes dois mundos são instransponíveis, revelando o
caráter hierarquizado e a perversa posição de menos valia a que os internos eram submetidos. Para
Goffman, em nossa sociedade, os hospitais psiquiátricos representam “estufas para mudar pessoas; cada
uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu.”(p.22). A obra de Goffman ganha
popularidade e desperta o interesse de vários segmentos sociais para a violência vivida dentro dos
manicômios, sendo considerada uma leitura obrigatória aos pensadores da futura Antipsiquiatria.
Franco Basaglia, um dos nomes fundamentais para a Reforma Psiquiátrica, também começou a
ser conhecido no âmbito da Antipsiquiatria. Basaglia, nascido em 1924, foi prisioneiro da segunda guerra
mundial, por participar da resistência italiana. Solto ao final da guerra, ingressa na Faculdade de Medicina
de Padova, onde segue a vida acadêmica por 12 anos, trabalhando em uma clínica-escola durante este
período. Após este período, sai da universidade e vai trabalhar no Hospital de Gorizia, instituição na qual
assume a direção em 1961.
A Itália, bem como os outros países europeus, durante o século XIX, testemunhou a implantação
de inúmeros hospitais psiquiátricos e ao final do século havia concluído seu período de “medicalização”
da loucura, vinculando esta à idéia de custódia, o que era evidente no funcionamento do Hospital de
Gorizia.
A formação humanística e filosófica de Basaglia, mais precisamente no campo da fenomenologia
e existencialismo, aliada à sua experiência de prisão durante a segunda guerra, fez com que ele tivesse um
olhar para a instituição, bem como para a doença mental, diferenciado das concepções psiquiátricas
tradicionais, baseadas no organicismo e na institucionalização. Para ele, a doença mental deveria ser
trabalhada no contexto da relação do indivíduo com seu corpo, na busca da construção de uma
subjetividade, o que revelava uma distância dos demais psiquiatras que atuavam em seu país.
No período de 1956 a 1963 empreendeu estudos psicopatológicos da relação sujeito/corpo,
baseados nos pressupostos da fenomenologia e do existencialismo. Percebeu, entretanto, as limitações de
seus estudos, tendo em vista as condições de vida das pessoas internadas na instituição. A realidade
institucional levou-o a questionar a possibilidade de emergência da humanidade daqueles sujeitos
internados, devido à condição excludente em que viviam, levando uma vida interrompida e humilhada,
vivida em corpos torturados (Barros, 1994).
Assim, a partir de 1961, começou a empreender algumas transformações radicais no
funcionamento do hospital. Aboliu as ações institucionais de contenção como forma de minimizar a
violência empregada no trato com os pacientes. Outra medida implementada foi a criação de espaços de
encontro entre técnicos e pacientes. Esses espaços eram tanto de cunho terapêutico quanto administrativo.
O objetivo destas reuniões diárias era constituir um campo de relações horizontalizadas, onde os pacientes
pudessem resgatar sua voz e sua condição de sujeitos, passando a ser ativos em seu processo de melhora.
Esses espaços também tinham por objetivo engajar os pacientes na gerência da instituição, como uma

101
estratégia de torná-los protagonistas do processo de abertura da mesma. Assim toda a vida da instituição,
que funcionava aos moldes das comunidades terapêuticas, passou a ser organizada a partir destas
reuniões.
Outra medida foi a abertura gradual dos pavilhões onde os pacientes estavam presos há muitos
anos, criando espaços de convivência dentro da própria instituição. Estes espaços de convivência eram
destinados também às pessoas da comunidade, tendo em vista que se tratava de um parque bem
arborizado, considerado um lugar agradável para passeios. Foi criado um bar dentro do hospital, que era
gerenciado pelos próprios pacientes e no “lugar do tão freqüente ‘Entrada rigorosamente proibida’ há um
cartaz convidando todos a visitarem os doentes quando e como queiram”. (Vascon, apud Basaglia,
11968⁄1985, p. 22).
Esta abertura para a comunidade foi um avanço no caminho da transformação da instituição, pois
começava-se a mudar o imaginário acerca da loucura, à medida em que as pessoas comuns começavam a
perder o medo de se aproximar dos doentes. A descrição de Vascon (apud Basaglia, 1968⁄1985) da reação
dos visitantes de Gorizia deixa clara a perplexidade destes ao se depararem com pessoas tranqüilas, onde
a distinção entre médicos e pacientes não era mais tão evidente. A perplexidade das pessoas se devia ao
fato de que no hospital de Gorizia
Não há perigosos. Os que gritam, se agitam, tentam atacar médicos, enfermeiros e visitantes não
existem, porque como nesta comunidade não há grades, portões, camisas-de-força – meios de
coerção geradores de violência –, não se sente o clima de angústia e tumulto característico das
instituições análogas (p. 23).

Pode-se perceber na experiência de Gorizia um redimensionamento dos objetivos institucionais,


onde o ponto de partida era a escuta e o atendimento das necessidades reais dos pacientes. Os pacientes
foram ouvidos em sua necessidade de emancipação e resgate da cidadania, seqüestrada nos anos de
internação. Em conseqüência disso, houve também um redimensionamento da atuação dos técnicos e sua
relação com os pacientes. A partir de então foram estabelecidas relações entre pessoas e não entre papéis.
Iniciou-se uma reflexão no que tange a ligação entre Psiquiatria e Justiça, com vistas à ampliação
desta experiência. Para Basaglia e sua equipe, a humanização do espaço hospitalar sem dúvida era um
ponto importante, mas pairava o incômodo de que este tipo de gestão comunitária, empregada nas
comunidades terapêuticas, não colocava em discussão as relações de tutela e custódia, nem tampouco
colocava em questão o fundamento - científico, jurídico e socialmente aceito - da periculosidade social.
Para a equipe de Gorizia,
a experiência deveria servir para colocar em crise a instituição em sua globalidade e criar
possibilidades concretas que permitissem a projeção da gestão psiquiátrica e das contradições
sociais e políticas que lhe são conexas para fora dos muros das instituições (Barros, 1994).

Para a equipe de Gorizia, os avanços do funcionamento desta comunidade não poderiam ignorar a
realidade da exclusão, passando a incluir em suas reflexões aspectos sociológicos e políticos, criando as
bases para uma saúde mental de caráter interdisciplinar. Para Basaglia (1968⁄1985) uma psiquiatria que

102
realmente prezasse a melhora de seus assistidos não poderia ignorar as reflexões de outros campos de
conhecimento, nem tampouco deixar de incluir em seus questionamentos o estatuto social e político dos
sujeitos até então rotulados como loucos.
O trabalho realizado em Gorizia, bem como as reflexões feitas ao longo desta experiência, ganha
repercussão em vários países da Europa nos finais da década de 60, fortalecidos pelas lutas políticas
empreendidas no âmbito dos movimentos estudantil e operário. A discussão sobre a violência
institucional e sua conseqüente segregação e autoritarismo aproximam os membros da comunidade
terapêutica de Gorizia aos movimentos sociais mais significativos à época (Amarante,1996).
As reflexões a respeito das contradições sociais que rondavam o funcionamento do hospital
psiquiátrico, mesmo em seu novo formato de comunidade terapêutica, levaram ao fechamento do hospital
de Gorizia. A equipe técnica encaminhou para a administração municipal um pedido de encerramento das
atividades dentro do hospital, o que foi negado pelas autoridades. Em conseqüência disso, a equipe deu
alta coletiva para todos os pacientes e todos se demitem de seus cargos, pela impossibilidade de conviver
com a consciência de “estarmos empreendendo uma tarefa absurda ao querermos fazer existirem valores
quando o não-direito, a desigualdade, a morte quotidiana do homem são erigidos como princípios
legislativos” (Basaglia, 1968⁄1985, p. 322).
O hospital retomou suas atividades sob nova direção e os pacientes foram “reinternados”,
evidenciando um imediato retrocesso. Entretanto, como esta experiência liderada por Basaglia teve uma
grande repercussão na Itália e em vários países, houve uma mobilização de profissionais de outras cidades
italianas e em poucos meses a experiência de reconstrução da comunidade terapêutica, bem como seus
questionamentos, foi retomada (Amarante, 1996).
Basaglia, ao sair de Gorizia, vai aos Estados Unidos convidado como professor visitante para
conhecer as experiências dos Centros Comunitários de Saúde Mental em Nova York. Em seguida volta à
Itália e após alguns meses trabalhando no Hospital de Parma, em virtude da dificuldade de empreender
seus projetos de transformação, vai para Trieste, onde assume, em 1971, a direção do Hospital San
Giovanni.
A experiência de transformação da assistência em saúde mental empreendida em Trieste é de
grande importância para a Reforma Psiquiátrica, constituindo-se enquanto um marco fundamental da
desinstitucionalização. Além de seu valor histórico, a experiência de Trieste revelou de fato a
possibilidade de outra forma de atenção à doença mental, que não a exclusão. Esta experiência
demonstrou a viabilidade da construção de um novo lugar social para a loucura, exercendo grande
influência em experiências de Reforma Psiquiátrica em vários outros países. No Brasil, esta experiência
serviu como um guia para a reorientação do modelo assistencial à saúde mental, podendo ser
testemunhada sua influência na implantação de várias experiências de reforma em todo o país, em
especial nas experiências pioneiras das cidades de Santos e Campinas, consideradas experiências-modelo,
que se inspiraram nos caminhos abertos e trilhados por Basaglia.

103
Em 1971 se iniciaram as transformações no Hospital San Giovanni que culminaram, anos mais
tarde, com o fechamento deste hospital e constituição de uma assistência aberta e territorial. O ponto de
partida de todas as ações implementadas deste momento em diante era a eliminação da separação “dentro
/ fora”, construindo um sentido inverso para a assistência: do interno para o externo, do manicômio para a
comunidade.
Uma das primeiras medidas implementadas foi a contratação de inúmeros profissionais de
diversas especialidades, tendo em vista a precariedade do quadro profissional do hospital, insuficiente
para atender de forma adequada e personalizada os 1.101 internos da instituição. Outra medida inicial foi
a transformação das internações compulsórias em voluntárias, pois a grande maioria dos internos do
hospital, 943, estavam em situação de internação compulsória.
Os momentos de prevenção, tratamento e reinserção social foram redimensionados. As atividades
de prevenção eram realizadas pelo Centro de Higiene Mental, localizado na cidade, por outras equipes de
cuidado. A partir da destituição deste Centro, as atividades de prevenção, tratamento e reinserção social
seriam realizadas pela mesma equipe. O hospital foi subdividido em sete setores, de acordo com o local
original de moradia dos pacientes, e tais setores eram cuidados pela mesma equipe, o que permitia uma
continuidade do tratamento, considerada um ponto fundamental dentro do processo.
Como conseqüência desta reorganização da instituição bem como das atividades exercidas pelas
equipes, houve uma transformação nos papéis profissionais de todos os que integravam as equipes. O
enfermeiro psiquiátrico, antes mero agente de disciplina submetido ao poder médico, assim como os
outros profissionais, passaram a ser responsáveis pela gestão do tratamento juntamente com os pacientes.
Progressivamente foi sendo constituída uma “responsabilidade de ‘gestão’ direta com autonomia
operativa, tornando possível uma participação desvinculada da rígida hierarquia institucional”
(Barros,1994, p.76).
Foi feito um reagrupamento dos pacientes. Antes divididos de acordo com o diagnóstico e em
alas masculinas e femininas, a partir de então, foram agrupados de acordo com seu lugar de origem. As
alas passaram a ser mistas, como forma de resgatar as relações sociais e afetivas proibidas dentro dos
manicômios. Em 1972 foi fechado o pavilhão “P”, que simbolizou o início da abertura da instituição. Em
seguida, progressivamente as outras alas do hospital foram sendo desativadas, permitindo aos pacientes
uma livre circulação não somente no âmbito do hospital, mas em toda a cidade.
No local onde existia o pavilhão “P” foi criado o “Laboratório P”, onde atividades artísticas e
culturais começaram a ser realizadas contando com a participação da população da cidade. Artistas e
outros atores sociais contribuíram para a realização das atividades deste laboratório, que tinham por
objetivo transformar a imagem da loucura e revelar o perverso significado do manicômio. Uma das
atividades propostas por um dos internos foi uma homenagem a um velho cavalo, chamado Marco, que
trabalhava no espaço da instituição e que, por estar velho, havia sido abandonado e estava sob o risco de
ser morto pelo ônus que representava para a instituição. Aceita tal proposta, foi construído um cavalo de
papel marchê sobre uma estrutura metálica que acompanhou a saída, pela primeira vez, de um grande

104
número de internos em desfile pelas ruas da cidade. Assim, Marco Cavalo passou a ser o símbolo da
abertura da instituição e do retorno dos pacientes à cidade (Amarante, 1996).
O envolvimento da comunidade talvez seja uma das grandes diferenças do processo ocorrido em
Trieste, em relação à experiência de Gorizia. Em Gorizia, o acesso da comunidade ao hospital não foi
pensado sistematicamente, sendo o hospital visitado apenas pelos curiosos e interessados na saúde mental.
Em Trieste, foram pensadas várias estratégias para atrair a comunidade até o hospital, tornando mais
permeáveis os limites entre o dentro e o fora da instituição. Inúmeras oficinas, atividades culturais, grupos
de estudo e de formação profissional para estudantes e voluntários foram propostos, criando na população
como um todo, o interesse e cumplicidade pelo que acontecia nos intramuros da instituição. Assim, foi
possível o estreitamento de laços entre loucos e “normais”.
Em 1973 foi formalizada a condição de hóspede de grande parte dos pacientes, possibilitada pela
reorientação do financiamento da instituição para a manutenção destas pessoas. Neste mesmo ano, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) elegeu Trieste como área-piloto de pesquisa sobre
desisntitucionalização na área de saúde mental.
Neste ano também foi reestruturado o trabalho dentro da instituição. O trabalho, realizado como
parte da ergoterapia (ou laborterapia) e “premiado” com cigarros e outros pequenos privilégios, foi
ressignificado. Os trabalhos foram, a partir de então, realizados visando à profissionalização, com uma
remuneração justa, de forma a constituir um sentido de resgate da cidadania e possibilidade de reinserção
social para os antigos pacientes. Esta experiência de trabalho evoluiu para a criação de cooperativas de
trabalho, cujo objetivo é “o crescimento da autonomia de seus membros nas trocas sociais, nas relações
institucionais, devendo ser buscada a independência econômica juntamente com a independência
subjetiva” (Barros, 1994, p.102).
Como conseqüência desta nova concepção de trabalho, em 1987, as cooperativas sociais criadas
em Trieste foram reconhecidas pelo Fundo Social da Comunidade Econômica Européia (CEE), como um
referencial para projetos de formação profissional para jovens toxicodependentes e desempregados que
constituíam grupos sociais frágeis. Nascia, assim, na cidade, o projeto de Empresa Social, regulamentado
e subsidiado pela CEE, com vistas à inserção no trabalho de pessoas portadoras de deficiências físicas
e/ou mentais, bem como de outros grupos sociais considerados vulneráveis.
No período de 1971 a 1976 foram realizadas campanhas para obtenção de pensões,
aposentadorias, culminando com a aprovação, em 1977, de subsídios sociais para os ex-pacientes. Tais
subsídios consistiam em uma peça fundamental no processo de desinstitucionalização, sendo
considerados um passo importante na luta contra a tutela, pois possibilitavam aos ex-pacientes a aquisição
de bens e gerenciamento autônomo de suas necessidades.
O período de 1975 a 1978 foi caracterizado pela criação e organização dos serviços territoriais.
Os primeiros anos deste período foram considerados por Basaglia e sua equipe como momento de
construção de um Welfare de emergência. O caráter emergencial era caracterizado pela transitoriedade
entre o manicômio, que não existia mais, e uma estrutura de atendimento territorial que estava em

105
implantação. Neste momento, foi desnudada para a população da cidade toda a miséria na qual se vivia
dentro do manicômio, ao mesmo tempo em que esta miséria interna à instituição se encontrava com a
miséria existente na própria cidade. Neste sentido, era premente a construção de dispositivos capazes de
lidar com este “encontro de misérias”, gerador de conflitos. Tratava-se de uma construção que não
encontrava modelos nos quais se apoiar, tendo em vista a originalidade deste problema. Os serviços
territoriais faziam parte destas construções originais, que buscavam oferecer soluções para a emergência
dos problemas de transição entre o manicômio e a cidade.
O segundo momento da desinstitucionalização foi denominado como Welfare artesanal, que, de
acordo com Basaglia, significava a luta para “devolver ou dar ao paciente uma condição material mínima
que lhe permitisse exercer sua cidadania e estabelecer novas formas de reprodução da subjetividade”
(Barros, 1994, p.80).
Em 1977, foi inaugurado o “apartamento 20”, que representava um primeiro núcleo de vida
autônoma. Esta experiência serviu de modelo para as casas apartamento que foram criadas posteriormente
na comunidade. Nesse ano, os espaços do parque San Giovanni foram reaproveitados para a constituição
de outras casas-família, onde experiências cotidianas como cozinhar, ir às compras e cuidar de um espaço
próprio puderam ser vividas. Essas casas foram as primeiras experiências do que atualmente conhecemos
por Serviços Residenciais Terapêuticos, a serem detalhados mais à frente.
Neste mesmo ano, foi criado o pronto-socorro psiquiátrico no Hospital Geral, destituindo o
manicômio da função de cuidar do momento de crise. A estratégia de criação de prontos-socorros
psiquiátricos em hospitais gerais é uma estratégia para evitar as longas internações e integrar a saúde
mental no âmbito da saúde geral. Tal estratégia vem sendo adotada em vários países, inclusive no Brasil.
Em 1977, ocorre em Trieste, no Parque San Giovanni, o III Encontro da Rede Internacional de
Alternativas à Psiquiatria, contando com a presença de aproximadamente 4000 pessoas, que
movimentaram a vida da instituição, conferindo ainda mais visibilidade às transformações ocorridas até
aquele período.
A Rede Internacional de Alternativas à Psiquiatria foi criada em Bruxelas, no ano de 1975, por
iniciativa de um grupo de técnicos e intelectuais de esquerda de vários países que desejavam promover
um intercâmbio de movimentos, práticas e teorias diversas que estivessem surgindo no âmbito da saúde
mental. Esta rede tinha como objetivos: lutar contra todas as formas de reclusão psiquiátrica; discutir a
política de setor como substituição tecnocrática ao manicômio; repudiar o monopólio dos técnicos sobre o
problema da saúde mental; discutir criticamente as novas teorias psiquiátricas e psicanalíticas; apoiar as
lutas das minorias; e lutar contra normatização da sociedade (Barros, 1994).
Em 1978, como fruto das discussões e lutas políticas empreendidas por Basaglia e sua equipe, é
aprovada a Lei 180, conhecida como Lei Basaglia, que se constituiu em um marco jurídico importante
para a saúde mental em nível internacional. Esta lei teve uma grande influência na legislação de outros
países. No Brasil, a Lei 10.216, conhecida como Lei de Reforma Psiquiátrica, ou Lei Paulo Delgado teve
uma clara influência da Lei 180. A Lei 180 de Basaglia estabeleceu, como pontos principais, que:

106
- Não poderiam mais haver internações psiquiátricas a partir de sua promulgação, sendo
proibida a construção de novos hospitais psiquiátricos;
- Seriam construídos serviços psiquiátricos comunitários, baseados na territorialidade e
trabalhando em contato com a comunidade e a partir de suas necessidades. Nestes serviços era
permitida a existência de, no máximo, 15 leitos em caso de necessidade de internação, voluntária
ou involuntária;
- Abolição do estatuto de periculosidade social do doente mental;
- As internações involuntárias estariam sujeitas a uma revisão judicial e técnica no prazo de dois
a sete dias. (Desviat, 1999).

Em 1979, Basaglia sai de Trieste, indo para a região do Lazio, cuja capital é Roma, para iniciar
outro projeto de implementação da Reforma Psiquiátrica. Franco Rotelli assume a direção da instituição,
dando continuidade à obra iniciada por Basaglia e aprimorando as reflexões sobre desinstitucionalização.
Atualmente, Trieste conta com 7 Centros territoriais, que mantém um caráter assistencial, social e
terapêutico, tendo como função a prevenção, o tratamento e a reinserção social. Tais centros substituíram
o hospital psiquiátrico, trabalhando em rede com uma unidade de emergência no hospital geral e dezenas
de casas espalhadas pela cidade. Em 1993, segundo Desviat (1999), as cooperativas sociais do consórcio
financiado pela Comunidade Européia tinham aproximadamente 200 membros/empregados, dentre estes
uma grande parcela de pacientes da saúde mental, jovens viciados em drogas e ex-presidiários.
Pode-se perceber que a tradição iniciada por Basaglia, ao entrar em confronto com o hospital
psiquiátrico e sua significação social, conseqüentemente, entra também em confronto com o modelo da
comunidade terapêutica inglesa e com a política de setor francesa, “embora conserve destes o princípio de
democratização das relações entre os atores institucionais e a idéia de territorialidade” (Barros, 1994,
p.53). A partir dessa experiência de confronto, muda-se o foco da “instituição negada” - o manicômio-,
para a gestão da “instituição inventada”, representada a partir de então pela “multiplicidade de serviços e
circuitos que buscam superar cotidianamente os vícios dos saberes completos, os vícios das instituições
totalitárias, para produzir trocas sociais, possibilidades e subjetividades sempre novas e plurais”. (Rotelli
& Amarante, 1991, p.54).
Um diferencial da tradição basagliana, que atualmente embasa o movimento da Reforma
Psiquiátrica brasileira, foi trazer à tona a necessidade de uma análise histórico-crítica da forma como a
sociedade lida com o sofrimento e as diferenças. Basaglia atribuiu à vida um significado diverso, qual
seja um significado “político” de vida na qual não existe mais uma separação entre a doença de uma parte
e a saúde de outra. É neste sentido que se deve refletir a emblemática afirmação que respalda todo o
movimento italiano, de que devemos colocar a “doença mental entre parênteses” e cuidar do sujeito. Não
significa negar a existência da doença ou do sofrimento, mas sim, olhar para eles de uma forma não
psicopatologizante, reconsiderando toda a complexidade do sujeito e dos universos simbólico e relacional
que interagem (Rotelli & Amarante, 1991).
A experiência da Psiquiatria Democrática Italiana traz em seu bojo uma ampliação do conceito de
desinstitucionalização, até então concebido, dentro dos outros movimentos de reforma, simplesmente

107
como desospitalização. Rotelli (1990) faz uma descrição do que passa a significar a desinstitucionalização
a partir de então, sendo esta
um trabalho terapêutico, voltado para a reconstituição das pessoas, enquanto pessoas que
sofrem, como sujeitos. Talvez não se ‘resolva’ por hora, não se ‘cure’ agora, mas no entanto
seguramente ‘se cuida’. Depois de ter descartado a ‘solução-cura’ se descobriu que cuidar
significa ocupar-se, aqui e agora, de fazer com que se transformem os modos de viver e sentir o
sofrimento do ‘paciente’ e que, ao mesmo tempo, se transforme sua vida concreta e cotidiana,
que alimenta esse sofrimento. (p.33)

Tal concepção de desinstitucionalização implica, necessariamente, em uma mudança de objeto


das intervenções em Saúde Mental. O objeto deixa de ser prioritariamente a doença (já colocada em
parênteses) e seus signos, e passa a ser a existência-sofrimento do sujeito. Rotelli (1990) fala da
necessidade de abandonar o paradigma racionalista, baseado na díade problema-solução, dentro do qual
nasceu a Psiquiatria científica, que adaptou para si a perspectiva da doença-cura. Afirma a necessidade do
reconhecimento de que o objeto tradicional da Psiquiatria, qual seja a doença mental em suas inúmeras
formas, não se faz conhecer de forma objetiva. Para ele, persistir nesta crença de objetividade e
cientificidade, é perpetuar a produção da cronicidade, do sofrimento e da desumanização, que vêm
caracterizando a atuação da Psiquiatria desde seu nascimento.
Lobosque (1997) faz algumas reflexões acerca deste momento delicado pelo qual atravessa a
Psiquiatria apontando, entretanto, que seu lugar dentro das experiências de Reforma Psiquiátrica, ao
contrário do que se pode pensar, não foi extinto ou desmerecido. A Psiquiatria está também, isto sim,
sofrendo sua própria reforma. Para esta autora, cabe aos psiquiatras construir e sustentar um “lugar
excêntrico” junto à Medicina, na medida em que seus pressupostos necessitam se distanciar de suas
origens. A função do psiquiatra não pode mais ser somente a de um clínico, limitando-se à prescrição de
psicofármacos. Esta função continua sendo preciosa, fundamental e restrita a este profissional, mas requer
uma ampliação dos olhares e das atitudes, tendo em vista a não objetividade de seu objeto. “A
participação em ações não estritamente clínicas ao lado dos usuários /.../ ajudam-nos a constatar fatores
de outra ordem que atuam intensivamente na cura. A atividade social e política de articular familiares,
entidades, associações, enriquece e amplia o horizonte” (Lobosque, 1997, p.65).
Esta reflexão de Lobosque (1997) acerca da Psiquiatria nos remete à ampliação de todas as
atuações profissionais, na medida em que o campo da saúde mental, a partir da experiência italiana, se
constitui na articulação de vários saberes que se interpenetram e na necessidade de reinvenção cotidiana
da prática. Reinvenção que não pode ignorar o aspecto clínico, mas deve incorporar como parte desta
“nova clínica”, os aspectos político, social e cultural, inerentes ao trabalho.
Fica claro, neste sentido que a superação do manicômio não se restringe à simples transformação
de seu espaço físico, devendo incluir neste processo, um “desmantelamento” profundo de toda a trama de
saberes e práticas construídas em torno da doença mental, reconsiderando a complexidade que envolve o
fenômeno existência-sofrimento (Rotelli, 1990).

108
Como conseqüência deste desmantelamento, o movimento italiano traz em seu cerne o
desenvolvimento de um trabalho que visa a transformação das representações sociais da loucura, na
medida em que buscou construir um novo lugar social para o sujeito acometido de transtornos mentais. É
reconhecido que este novo lugar social somente poderá ser conquistado se houver um rearranjo das
políticas públicas para a Saúde Mental, mas tal mudança, somente poderá ocorrer de forma efetiva se
forem ampliadas e transformadas as concepções acerca da loucura e da forma como a sociedade acolhe
suas diferenças.
Na Itália, como forma a superar as inúmeras resistências a este novo projeto de sociedade, foi
utilizada como estratégia o desmascaramento das contradições inerentes ao funcionamento social,
mediante o contato com o sujeito considerado louco, o que fez emergir a necessidade de novas soluções e
rearranjos de práticas e concepções (Barros, 1994).
Tal estratégia vem de encontro com alguns pressupostos da TRS no que tange à transformação
das representações sociais. Flament (2001), a partir de uma abordagem estrutural das representações
sociais, afirma que, quando a realidade se transforma, impossibilitando um retorno às antigas práticas, o
problema da dissonância entre representações e práticas se resolve por meio de uma reestruturação do
campo de representação, que em alguns casos se dá de forma abrupta, em outros de forma gradual. A
partir dessas considerações podemos supor que, no caso específico da retomada do contato cotidiano com
sujeito louco, e diante da impossibilidade de retornar à antiga prática de sua exclusão em hospitais
psiquiátricos, pode-se induzir um processo de transformação gradual da representação acerca deste (novo)
ator social.
Assim, a tradição basagliana suscita elementos novos no cenário da Reforma Psiquiátrica ao
travar, pela primeira vez na história, alguns conflitos com as Representações Sociais da loucura, que ao
longo da história da cultura ocidental, teve sua imagem crescentemente relacionada à periculosidade,
imprevisibilidade e incapacidade para a vida social.
Outro mérito deste movimento foi colocar em discussão a necessidade de resgate da cidadania
seqüestrada destes pacientes nos longos anos de internação. As conquistas políticas, incluindo
transformações na legislação relativa à doença mental, garantindo direitos de cidadão ao louco,
aproximam o objeto de representação – a loucura / sujeito dito louco – daqueles que o representam. E esta
garantia de direitos e de circulação na cidade, vem acompanhada da necessidade da equipe de saúde
mental auxiliar este novo ator social a construir sua autonomia, o que viabilizará sua inserção social e será
um dos princípios organizadores das intervenções.
Esta experiência italiana de Reforma Psiquiátrica e a ressignificação do conceito de
desinstitucionalização tiveram uma grande influência em inúmeros países ocidentais, inclusive o Brasil.
Apresentados alguns movimentos de Reforma em âmbito internacional, a partir de então nos deteremos
na experiência de Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro, na qual podemos perceber a forte
influência e correspondência com os movimentos que a antecederam.

109
4. A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL
“Arrependei-vos: é preciso ter novos olhos.
A questão não é somar. As somas só fazem
engordar. É preciso passar por metamorfoses:
do Conhecimento para a Sabedoria.
Sabedoria é a arte dos sabores e dos prazeres.
Uma nova filosofia: os saberes a serviço
dos sabores, o poder a serviço do amor”
(Rubem Alves, Navegando)

A Reforma Psiquiátrica Brasileira recebeu uma forte influência das experiências européias,
especialmente da reforma italiana e do pensamento que a subsidiou. Aos poucos, entretanto, a Reforma
no Brasil foi assumindo uma complexidade própria, adequando-se às particularidades da realidade do
país.
Em decorrência das diversidades social, cultural e política que caracterizam este “continente
chamado Brasil”, a reforma vem assumindo, ao longo das últimas duas décadas, diferentes modelagens32
nos vários lugares aonde vem se desenvolvendo. Tal diversidade pode, inicialmente, parecer um sinônimo
de dispersão e desarticulação, o que não reflete a realidade da reforma brasileira como um todo.

Apesar das diferentes modelagens que assume em cada lugar do país, as experiências de reforma
compartilham alguns princípios que, de certa forma, unificam o sentido das práticas, oferecendo um
contorno semelhante às mesmas. Segundo Lobosque (1997), os princípios que norteiam a clínica
antimanicomial são: o princípio da singularidade, do limite e da articulação.

O princípio da singularidade, diz respeito à produção de um “coletivo de grande expressividade,


constituído pela articulação de diversas singularidades entre si” (Lobosque, 1997, p.22), o que significa
um convite para que o sujeito sustente sua particularidade e diferença, apropriando-se e respeitando os
limites da cultura. O que nos leva ao princípio do limite que vai além da internalização das normas sociais
pelo sujeito acometido de transtorno psíquico, mas também diz respeito ao alargamento dos limites
sociais, de forma a proporcionar à sociedade a possibilidade de um convívio com certa dose de
“descabimento” e diferença.
O princípio da articulação remete à característica interdisciplinar do campo e à necessidade da
Saúde Mental ampliar seus limites e dialogar com outros campos conceituais e práticos. Este princípio é
fundamental, na medida em que, quando se fala de Reforma Psiquiátrica, trata-se, sobretudo, de uma
transformação cultural, que vai além da área da saúde. Trata-se de um diálogo amplo com toda a
sociedade e seu funcionamento.

Além destes princípios, as diversas experiências de Reforma trazem em seu cerne uma utopia que
as une: a construção de uma sociedade justa e igualitária, onde o direito a uma vida digna seja vivido por

32
Este termo foi utilizado por Campos (2000) para designar os diferentes desenhos que formatam as experiências
em saúde, que têm como pano de fundo um modelo que já foi experimentado. Para esta autora o termo modelagem
significa “fazer saúde num determinado local, com uma determinada história de inserção de serviços de saúde e em
um determinado tempo histórico com seus protagonistas singulares.” (Campos, 2000, p.67).

110
todos e as diferenças que constituem cada ser humano sejam respeitadas e possíveis no convívio social.
Entendemos utopia não em sua conotação impossível, mas sim em seu sentido prático de possibilidade de
transformação da vida dos homens. Ou como diria Nicácio (1990, p.92), “não como uma ilusão do
amanhã e sim como um desenho que prefigura a possibilidade concreta de transformação do real”. Tal
utopia pressupõe uma atitude crítica frente à história e a realidade presente, abrindo espaço para a
exploração das mais diversas possibilidades de existir e estar no mundo.

Neste sentido, Lancetti (1991) traz a idéia de uma “utopia ativa”, que tem em sua prática, o
intento de deslocar a saúde mental de um foco puramente médico, para um pólo ético-estético. Este pólo
ético-estético não implica em um retorno do elogio da loucura, mas permite a composição de outros
olhares com relação a este fenômeno. E é justamente este novo olhar, constituído na articulação da
multiplicidade, que permite a emergência de possibilidades de uma real transformação do lugar da
loucura. Este olhar descobre e abre brechas para que o saber e o sofrimento nela contidos possam se fazer
caber e ser trabalhados no espaço cotidiano.

A Reforma Psiquiátrica brasileira tem como marco fundador a criação, em 1978, do Movimento
Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. A partir da criação deste movimento as reflexões políticas,
teóricas e técnicas relativas ao campo da assistência psiquiátrica começaram a se estruturar. Tais reflexões
tiveram como conseqüência uma proposta de reorientação do modelo assistencial, ainda em processo de
implementação e desenvolvimento.

Atualmente podemos testemunhar o desenvolvimento de experiências de Reforma Psiquiátrica


em todo o território nacional. Cabe ressaltar, entretanto, que o grau de desenvolvimento em que essas
experiências se encontram não é homogêneo. O ritmo que é dado na implementação das experiências de
Reforma em cada um dos Estados, em cada cidade, está intimamente relacionado aos fatores culturais,
políticos, econômicos, dentre outros, relativos a cada localidade e que se diferenciam de região para
região, conferindo ao que chamamos de Reforma Psiquiátrica Brasileira uma grande heterogeneidade.

Pode-se dizer que a Reforma no Brasil vem se desenvolvendo dentro de um campo de tensões e
conflitos entre dois modelos assistenciais que coexistem: de um lado o modelo manicomial que ainda
resiste, marcado pela exclusão e reclusão da loucura em hospitais psiquiátricos e, de outro lado, um
modelo pautado em uma clínica antimanicomial, que preza pela reinserção social e garantia do direito ao
tratamento humanitário e à liberdade das pessoas “acometidas por intenso sofrimento psíquico”. Este
movimento tem como tônica uma crescente responsabilização social no que tange o cuidado à saúde
mental e a luta contra as instituições historicamente destinadas a este cuidado.

Para Delgado (1992), o termo Reforma Psiquiátrica ainda é uma expressão pouco precisa, sendo
utilizada para designar um

conjunto de modificações recentes que vêm sendo produzidas ou tentadas, a partir do final da
década de 70, interessando ao modelo assistencial psiquiátrico público, sua sustentação teórica

111
e técnica, e as relações que se vêm estabelecendo entre a Psiquiatria, demais disciplinas de
saúde e do campo social e as instituições e movimentos sociais.

Cabe lembrar que, apesar da Reforma Psiquiátrica ter se iniciado “formalmente” com a criação do
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, como em outros países, a instauração do modelo
manicomial em meados do século XIX, não se deu sem críticas ou iniciativas contrárias. Algumas
tentativas de contraposição ao modelo asilar já haviam sido experimentadas no Brasil, desde os tempos
áureos da Psiquiatria, dentre as quais destacamos a experiência pioneira de Nise da Silveira na criação da
Casa das Palmeiras na cidade do Rio de Janeiro.
Já no ano de 1955, Nise da Silveira atenta para a insuficiência do hospital psiquiátrico enquanto
dispositivo de cuidado, visto que este promove um ciclo vicioso e a constituição de uma carreira
psiquiátrica, da qual é quase impossível sair. Segundo suas reflexões, o hospital funciona como uma
estrutura que se retroalimenta, pela inexistência de uma rede de apoio para o pós-alta. A partir desta
constatação, juntamente com outros profissionais e apoio do governo do Estado do Rio de Janeiro, foi
criada a Casa das Palmeiras. Esta instituição foi dedicada ao tratamento dos egressos dos hospitais
psiquiátricos, e nela eram realizadas atividades expressivas, semelhantes às realizadas no atelier do
Centro Psiquiátrico Pedro II, anteriormente citadas, agora em regime de externato. Um dos objetivos
principais da Casa das Palmeiras era oferecer um suporte para reintegração social do paciente egresso,
evitando uma provável internação em caso de reincidência.
A idéia de Nise da Silveira era constituir várias instituições desta natureza, visando o apoio ao
paciente no pós alta, o que consistiria em uma quebra com o ciclo vicioso do modelo manicomial. Com
este objetivo escreveu um projeto que encaminhou ao governo do Estado, ao qual não obteve resposta.
Seu projeto foi esquecido, por não ser considerado uma prioridade para a saúde pública e por contrariar
outros interesses que permeavam a manutenção dos hospitais psiquiátricos à época. A Casa das
Palmeiras, apesar do pouco apoio que recebeu nos anos posteriores à sua criação, existe até os dias atuais,
e deve ser sempre lembrada como uma experiência
de grande valor histórico, por ter sido o primeiro
passo no sentido da criação de serviços substitutivos
ao Manicômio. A criação da Casa das Palmeiras,
ainda na década de 50, demonstra uma preocupação
antiga com a necessidade de transformação do
modelo de atenção em saúde mental, que é o ponto
central das reflexões e ações de Reforma
Psiquiátrica empreendidas nas últimas décadas.
Figura 13: Nise da Silveira
Foto retirada do site do Museu de Imagens do Inconsciente

A Reforma Psiquiátrica Brasileira desde seu início formal, ao final da década de 70, foi
caracterizada pela necessidade premente de transformações. Transformações que deveriam se dar não

112
somente em nível estritamente técnico, mas especialmente social e político. Como parte dessas
transformações, surge a novidade da discussão sobre a cidadania do doente mental. A necessidade de
(re)construção da cidadania do doente mental se constituiu no “carro-chefe” da reforma brasileira, sendo
ainda hoje o centro das suas reflexões, o que a faz se deparar com inúmeras resistências de alas mais
conservadoras da sociedade.
A defesa da cidadania de qualquer grupo minoritário pressupõe uma redistribuição do equilíbrio
social, afetando os direitos considerados naturais de determinadas classes e corporações. Já a cidadania
do doente mental, além de instaurar uma contradição dentro do campo do Direito33, esbarra em outros
preconceitos arraigados no imaginário da cultura, evidenciando a construção histórica de uma
representação da loucura atrelada à periculosidade, imprevisibilidade e, portanto, incapacidade para a
vida social. Desta forma, a igualdade de direitos e deveres defendida para o doente mental, não é algo que
se conquiste sem resistências, pois traz indagações a respeito do funcionamento social como um todo e
coloca em xeque os papéis sociais tradicionalmente inscritos no imaginário da nossa cultura (Lobosque,
1997).
A cidadania aparece no contexto da Saúde Mental como um instrumento fundamental para a
construção de um novo lugar social para o louco, o que implica em uma ressignificação do próprio
conceito de cidadania. Segundo Birman (1991), a cidadania foi construída com base em um paradoxo,
como já foi apresentado na primeira parte deste trabalho, na medida em que deixou de fora a parte da
população considerada louca. A idéia de cidadão, presente no contexto de elaboração do conceito de
cidadania, era baseada no ideal de homem iluminista, constituído na razão e no ideal de progresso. Assim,
de acordo com Birman, quando se fala de uma cidadania para a loucura, deve-se estar atento para a
complexidade desta afirmação, na medida em que se faz premente a ampliação deste conceito, de forma a
reconsiderar a concepção de homem tradicionalmente aceita. Ao propor uma cidadania para a loucura,
propõe-se uma nova e ampliada concepção de homem, que abarque certa dose de irracionalidade e
descabimento, ultrapassando os rígidos critérios racionais e morais relativos ao momento histórico vivido.
Independente de sua condição, todos devem estar inscritos nas leis sociais, de forma a ter garantido o
pleno exercício de sua cidadania, que implica, dentre outras coisas, no respeito aos direitos e no
cumprimento dos deveres perante a coletividade.
A discussão acerca da cidadania tem uma clara associação com outro conceito, igualmente
importante no âmbito da Saúde Mental: a autonomia. A autonomia diz respeito à capacidade do sujeito de
gerenciar a própria vida, apropriando-se da forma mais abrangente possível de suas atividades cotidianas,
conquistando, gradativamente, uma independência com relação ao cuidado dos profissionais ou outros
agentes sociais. A autonomia, entretanto, é um conceito que também deve ser refletido cuidadosamente,
tendo em vista a complexidade que traz em si. É preciso que se repense o que se entende por autonomia,

33
A concepção de homem adotada no campo do Direito baseia-se na racionalidade e intencionalidade, sendo o
“homem desprovido de razão” considerado incapaz para a vida civil, devendo ser tutelado ou submetido à condição
de menoridade. A reversão da legislação referente ao doente mental requer uma revisão desta concepção de homem,
tratando-se, portanto, de uma questão mais complexa do que pode inicialmente parecer.

113
para não incorrer no erro de superestimar ou subestimar a capacidade de gestão do cotidiano, criando
expectativas que vão além das possibilidades das pessoas ou, por outro lado, negligenciando as
possibilidades que se apresentam nas relações que estabelecemos. Esse cuidado não se refere,
obviamente, somente aos considerados doentes mentais.
A discussão sobre a autonomia, a cidadania e a necessidade de reformulação da assistência
psiquiátrica, inicialmente imersa no contexto de redemocratização do país e suas instituições, teve como
conseqüência algumas novidades em termos legislativos. As discussões engendradas durante os anos
seguintes à criação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental fomentaram a elaboração e
aprovação de leis estaduais de reforma psiquiátrica. O Espírito Santo e o Rio Grande do Sul foram
Estados pioneiros na aprovação de tais leis no ano de 1992.
Essas leis estaduais de reforma psiquiátrica significaram uma forma de devolver para a sociedade
a gestão da diferença, apontando para a possibilidade de uma reconstrução social. Foram importantes
subsídios para a construção de um novo modelo assistencial, composto por serviços abertos que visam
resguardar o direito a um tratamento digno e eficaz. Esses serviços abertos, preconizados e garantidos
pela legislação, possibilitam a participação social dos sujeitos considerados loucos, na medida em que
retiram a loucura de seu anonimato e a colocam na ordem do dia, no cotidiano das cidades, o que
representa o centro das questões colocadas pela Reforma Psiquiátrica.
As experiências de Reforma no Brasil, como dito anteriormente, são bastante diversas,
constituindo uma espécie de mosaico, onde as diferentes cores e formas constituem uma imagem coerente
e inacabada, ainda à espera de novas peças e composição de novos desenhos. Diante de tal diversidade,
não nos cabe detalhar as peculiaridades de cada uma das experiências que constituem tal mosaico, sendo
a tônica deste trabalho uma visão panorâmica de como este processo vem acontecendo em nosso país.
Serão apresentados a partir de então, alguns marcos históricos e políticos34, bem como discutidos alguns
aspectos teórico-práticos e as atuais diretrizes políticas que vêm dando o tom do que chamamos de
reforma psiquiátrica brasileira.

A história de uma luta


“Estamos aqui para dizer que não queremos mais
a existência de hospitais psiquiátricos e manicômios;
e nós, senhores senadores, podemos dizer isso melhor do que
ninguém, porque dizemos isso com nossos corpos, corações
e almas que viveram nos hospitais psiquiátricos e manicômios.”
(Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, 1996)35

A Reforma Psiquiátrica Brasileira nasce com uma “vocação” política, mediante a necessidade de
transformação do modelo de atenção para a saúde mental, até então marcado pela lógica que excluía parte
da população e baseado na violação de direitos humanos. A rápida privatização da saúde, a partir da

34
Para uma cronologia de alguns eventos que marcaram a história da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ver ANEXO 1
35
Trecho da carta encaminhada pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial ao Congresso Nacional. O texto
integral encontra-se no ANEXO 2.

114
década de 60, transformou a loucura em um negócio altamente rentável, levando a um processo de
“coisificação” da vida de uma grande parte da população, que veio constituir um numeroso “exército” de
pacientes internos aos hospitais psiquiátricos. Enormes contingentes de imigrantes, brasileiros,
trabalhadores e demais membros de classes populares tiveram suas vidas severamente marcadas e
interrompidas por esta lógica do capital, como já foi apresentado anteriormente.
Ao final da década de 70, o país atravessava um momento de profundas transformações políticas,
em contraposição ao regime ditatorial. Neste contexto político, muitos movimentos sociais começam a
despontar por todo o território nacional com reivindicações diversas. Os diversos movimentos sociais
tinham, entretanto, como pontos comuns, a redemocratização do país e suas instituições, e a reivindicação
de direitos no campo da seguridade social.
É neste contexto de luta pelo fim da ditadura que começam a aparecer as primeiras denúncias e
reflexões mais críticas acerca da assistência psiquiátrica. Os trabalhadores em saúde mental começam a
denunciar as péssimas condições de trabalho a que são submetidos e a desmascarar a realidade
manicomial, caracterizada pela precariedade das instalações físicas e dos recursos (humanos, financeiros,
dentre outros), iatrogenia, violência e a marcante violação dos direitos humanos fundamentais. Tais
denúncias ganham o apoio da imprensa, a medida em que foram sendo descobertos inúmeros casos de
presos políticos que, há algum tempo, haviam sido internados nos hospitais psiquiátricos. Um número
considerável de políticos, jornalistas, artistas e outros atores sociais, considerados indesejáveis ao regime
militar, haviam sido presos nos hospitais psiquiátricos, por serem estas instituições, até então,
impermeáveis ao contato com a sociedade.
Assim, às denúncias da violência que reinava nos intramuros das instituições psiquiátricas,
aliaram-se as reivindicações que faziam frente à opressão política vivida no país, dando início às
reflexões que culminaram no movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira. Desta forma, o primeiro
momento da Reforma Psiquiátrica Brasileira pode ser compreendido dentro deste contexto de abertura
democrática do país, no qual se iniciou a organização de vários movimentos sociais e revitalização das
forças sindicais e conselhos profissionais.
Em 1976 foram criados o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES) e Movimento de
Renovação Médica (REME), que se constituíram em importantes fóruns de discussão e reivindicações
para a assistência em saúde, bem como um lócus de proposição de novas políticas para a área. Essas
organizações apoiaram a primeira greve dos profissionais da saúde mental em 1978, que reivindicavam
melhorias nas condições de trabalho e na assistência prestadas aos pacientes dos hospitais psiquiátricos.
Nesse mesmo ano de 1978, foi realizado o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, conhecido
como o “Congresso da Abertura” pelo fato de que, pela primeira vez na história do país, houve a
participação dos trabalhadores da Saúde Mental em um encontro tradicionalmente conhecido como reduto
de setores conservadores da saúde. Este encontro aconteceu em um contexto no qual a Divisão Nacional
de Saúde Mental – DINSAM – passava por uma crise, tendo em vista as inúmeras críticas feitas à sua

115
atuação no campo da assistência, marcada por uma política de privatização e pouca responsabilização
com relação à Saúde Mental (Amarante, 1995).
Neste congresso foi criado do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), cujo
projeto político foi avalizado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). A criação do MTSM
inaugura não somente o início de um novo momento para a Saúde Mental no Brasil, mas constitui-se em
um novo
espaço de luta não institucional, em um lócus de debate e encaminhamento de propostas de
transformação da assistência psiquiátrica, que aglutina informações, organiza encontros, reúne
trabalhadores em saúde, associações de classe, bem como entidades e setores mais amplos da
sociedade (Amarante, 1995).

Ao final deste mesmo ano de 1978, ocorreu o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e
Instituições, contando com a presença de Franco Basaglia, Félix Guattari, Robert Castel e Erving
Goffman que ofereceram grande contribuição ao MTSM recém criado, a partir do compartilhamento das
experiências vivenciadas por estes autores em seus países de origem. Neste encontro começou a ser
definida uma certa formatação política e ideológica para o nascente movimento da Reforma Psiquiátrica
no país.
Neste primeiro momento, o MTSM ainda se constitui como um movimento heterogêneo, que
abarcava de forma indefinida tanto questões de cunho trabalhista e corporativista, quanto propostas de
transformação da assistência psiquiátrica, assumindo o papel de agente de denúncias da psiquiatrização da
sociedade e privatização da Saúde Mental. Reivindicações por melhores salários, por uma formação
específica de recursos humanos para o trabalho na área, crítica ao autoritarismo que marca as relações
institucionais, críticas ao modelo hospitalocêntrico e denúncia da precariedade e ineficácia do
atendimento, dentre outras, constam entre suas principais reivindicações e denúncias.
Em janeiro de 1979 ocorre em São Paulo o I Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde
Mental, com caráter essencialmente político, onde são feitas severas críticas ao modelo asilar dos grandes
hospitais psiquiátricos públicos e moções de repúdio ao uso das instituições psiquiátricas como
instrumento de repressão. Também são levantadas bandeiras de luta pela organização mais democrática
da sociedade, pelo fortalecimento dos sindicatos e associações vinculadas a movimentos sociais e pela
maior participação dos técnicos nas decisões das políticas nacionais e regionais de Saúde Mental
(Amarante, 1995).
Neste mesmo ano, aconteceu o III Congresso Mineiro de Psiquiatria em Belo Horizonte, que
ofereceu seu apoio ao MTSM, contando com a presença de Basaglia, Castel e Antônio Slavich.
No início da década de 80, houve uma aproximação entre o Movimento pela Reforma Psiquiátrica
e o Movimento Sanitário, caracterizando o início de um novo momento da Reforma no Brasil. Neste
período, membros dos dois movimentos passam a ser incorporados pelo aparelho do Estado, compondo
os quadros do governo e iniciando algumas transformações políticas com vistas a transformar o cenário
assistencial. Em 1980, por exemplo, foi elaborado um convênio de Co-gestão do Ministério da Saúde com

116
o Ministério da Assistência Social e, em 1982, foram elaboradas políticas públicas para a Saúde Mental
com caráter preventivo-sanitarista e antiprivatizante.
Ainda no ano de 1980, ocorreu em Salvador, o II Encontro Nacional dos trabalhadores em Saúde
Mental, paralelo ao VI Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Neste ano, iniciou-se um distanciamento entre
o MTSM e a Associação Brasileira de Psiquiatria, que passou a representar os interesses privatizantes da
Psiquiatria (Amarante, 1995).

Este II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental continua com as críticas à
privatização da saúde e à participação do setor privado nas decisões políticas, bem como aprofunda as
críticas ao modelo assistencial e à função de controle social das instituições psiquiátricas. Neste encontro
é proposta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigação da realidade manicomial. É
também proposta a eleição de porta-vozes e comissões de Direitos Humanos nas instituições
psiquiátricas, bem como uma revisão da legislação penal e civil. É, ainda, levantada a necessidade de
vinculação da luta da saúde a outros movimentos sociais, seguindo o caminho traçado pela luta política da
saúde mental no contexto italiano.
A partir deste II Encontro Nacional dos trabalhadores em Saúde Mental começam a acontecer
vários Encontros regionais e estaduais de coordenadores de saúde mental e trabalhadores da área em
geral. Dentre estes encontros destacamos o I Encontro Nacional de Coordenadores de Saúde Mental da
Região Sudeste, ocorrido em Vitória, no mês de setembro de 1985, cujo objetivo principal foi discutir as
políticas públicas para a região. Entre as metas estavam: o aperfeiçoamento das ações integradas de
assistência em um sistema único de saúde, a constituição de Comissões Interinstitucionais de Saúde
Mental e o controle da aplicação dos recursos. Foi também levantada a necessidade de uma melhor
qualificação dos recursos humanos que trabalham no setor. Foram discutidas as vantagens e a viabilidade
da regionalização, hierarquização, integração inter e intra institucional. Estratégias de incentivo à
participação da comunidade nas decisões políticas e na avaliação das instituições foram delineadas, tendo
em vista a ausência de representantes de outros segmentos sociais não técnicos. Questões bem próximas a
estas foram discutidas em outros Congressos e Encontros estaduais.
Outro evento importante para a Saúde Mental foi a 8a Conferência Nacional de Saúde, ocorrida
em 1986, em Brasília, que marca um novo momento político da história do Brasil. Pela primeira vez uma
conferência nacional de saúde deixa de ser um evento meramente técnico e científico para ser um evento
de participação popular. Além dos técnicos em saúde, participaram deste evento burocratas e políticos,
representantes de partidos políticos, de associações de moradores e usuários, pastorais, sindicatos, dentre
outros grupos populares. Nesta conferência foi deliberado que, a partir de então, passariam a existir
conferências nacionais de temas específicos da saúde, dentre os quais a Saúde Mental, sendo este tema
sugerido por um membro do MTSM presente nesta Conferência (Amarante, 1995).
Como conseqüência desta deliberação, foi realizada em Brasília, no mês de novembro de 1987, a
I Conferência Nacional de Saúde Mental. Esta Conferência ocorreu imersa em um contexto de intensos
confrontos políticos entre grupos divergentes.

117
Ao longo dos meses que se seguiram à 8a Conferência Nacional de Saúde, todas a conferências
relativas a outros temas da saúde foram organizadas e realizadas com o apoio o Ministério da Saúde, com
exceção da Conferência de Saúde Mental, à qual o Ministério ofereceu enorme resistência à sua
realização. Esta resistência se justifica pelas divergências substanciais existentes à época entre as
reivindicações dos representantes do MTSM e a Divisão Nacional de Saúde Mental - DINSAM (sub
secretaria do Ministério da Saúde, responsável pela convocação da Conferência de Saúde Mental). Nesta
época, havia uma forte tendência privatizante da saúde no âmbito das políticas públicas, sendo
aproximadamente 96% do orçamento da Saúde Mental destinado a hospitais psiquiátricos privados
conveniados. Apesar do fato de que alguns trabalhadores e militantes da Saúde Mental já haviam ocupado
cargos de gestão política, poucas foram as transformações na realidade da assistência, tendo em vista a
complexa trama de interesses que a sustentava.
Diante deste contexto, membros do MTSM, a despeito da resistência do Ministério da Saúde,
organizaram as conferências estaduais como forma de pressionar o Ministério a convocar a Conferência
Nacional. Finalmente, após sucessivas pressões políticas, a I Conferência foi realizada em junho de 1987
em Brasília e a organização da mesma foi liderada pela DINSAM, juntamente com a Associação
Brasileira de Psiquiatria, representante do setor privado da Saúde Mental. Os organizadores elaboraram
um pré-relatório final que foi apresentado no primeiro dia da conferência, e um regulamento que conferia
à mesma um caráter técnico e congressista, o qual foi rejeitado pela plenária. Diante desta situação os
organizadores ameaçaram abandonar a Conferência e, em conseqüência disso, o MTSM assumiu a
coordenação do evento, deliberando quanto às decisões e elegendo as comissões de trabalho (Amarante,
1995).
Esta conferência foi um marco simbólico importante para a Reforma Psiquiátrica Brasileira, na
medida em que foi uma oportunidade de fortalecimento do MTSM, pela renovação de sua estrutura e
aproximação com as entidades de usuários e familiares. Além disso, esta conferência pode ser
compreendida como um exercício de cidadania, tendo em vista a luta política pela reivindicação e
garantia dos direitos relativos à saúde mental que a caracterizou.
Esta I Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em junho de 1987, contou com a
participação de 176 delegados eleitos nas pré-conferências e estruturou-se a partir de 3 temas básicos: 1)
Economia, Sociedade e Estado – impactos sobre a saúde e doença mental; 2) Reforma Sanitária e
reorganização da assistência à Saúde Mental; 3) Cidadania e doença mental – direitos, deveres e
legislação do doente mental. Dentre as recomendações da I CNSM estão: orientação aos profissionais da
área em realizar esforços conjuntos com a sociedade civil não somente para redimensionar suas práticas,
mas para combater a psiquiatrização do social, democratizando as instituições e unidades de saúde;
necessidade de maior participação da população na elaboração e implementação das políticas públicas;
priorização dos investimentos nos serviços extra-hospitalares (Amarante, 1995).
Em suma, nesta I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987, ficou claramente
nomeado o impasse do modelo centrado no hospital psiquiátrico e no poder médico psiquiátrico,

118
considerado ineficaz e oneroso para o país e sua população. Apesar das indicações desta Conferência
parecerem incompletas e pouco consistentes, elas ainda se constituem em importantes referências para as
atuais questões a serem enfrentadas pela Reforma Psiquiátrica. (MS, 2002, Relatório Final da III
Conferência de Saúde Mental).
A realização desta conferência abre um outro momento da Reforma Psiquiátrica no Brasil,
caracterizado pelo distanciamento do movimento sanitário e início da trajetória da desinstitucionalização
e invenção de um novo projeto de Saúde Mental para o país.
Em dezembro deste mesmo ano de 1987 é realizado o II Congresso Nacional do MTSM na cidade
de Bauru, considerado um marco histórico para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Um dos objetivos do
encontro foi a avaliação crítica e discussão das ações do MTSM, bem como a organização dos
trabalhadores da saúde mental. Participaram deste Congresso lideranças municipais, técnicos, usuários e
familiares como força ativa dentro do movimento, compondo o esforço de construir uma opinião pública
favorável à desconstrução do modelo manicomial de assistência ao sujeito acometido de intenso
sofrimento psíquico. Nesta ocasião decidiu-se o lema que deste momento em diante guiaria todas as ações
voltadas para o desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, qual seja “Por uma sociedade sem
Manicômios”.
Neste Congresso foram propostas mudanças nas premissas teóricas e éticas para a assistência
psiquiátrica no país. Avançou-se nas discussões conceituais e na elaboração de estratégias de ação
política. Foi criado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a ser comemorado todo dia 18 de maio com
programações de cunho teórico, mas, prioritariamente, por intervenções culturais, com o objetivo de
conferir maior visibilidade às questões relativas à Saúde Mental e sensibilizar a sociedade civil. A partir
deste encontro o movimento deixou de ser restrito a um grupo de profissionais, para tomar a proporção de
um movimento social, devido à participação de outros grupos que vieram se agregar ao MTSM, sendo
conhecido a partir de então como Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA).
A partir deste Congresso de Bauru, foram realizados cinco Encontros Nacionais do MNLA, onde
testemunha-se uma grande participação de usuários e familiares que, juntamente aos técnicos e demais
atores sociais participantes, constroem uma nova perspectiva para a saúde mental no país, por meio de
intervenções culturais e propostas de novas políticas públicas. A participação ativa destas pessoas
fomentou o surgimento de muitas associações de usuários e familiares em todo o território nacional,
incentivando ainda a sociedade civil na criação de ONGs relacionadas ao tema.
Ainda em 1987, foi inaugurado oficialmente o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
do país, na Rua Itapeva, cidade de São Paulo. Este foi denominado CAPS Professor Luís da Rocha
Cerqueira, em homenagem ao Dr. Luís Cerqueira que, em 1973, esteve à frente da Coordenadoria de
Saúde Mental da Secretaria de Saúde de São Paulo. Em seu período como gestor, Luís Cerqueira elaborou
uma série de propostas de mudanças na assistência psiquiátrica, sendo algumas delas: a proibição de
novas internações no Juquery, a criação de um pronto-socorro para curta duração e elaboração de
convênios com escolas de Medicina, na tentativa de conter as internações na rede privada de assistência.

119
Seu mandato foi curto e enfrentou inúmeras resistências, não conseguindo efetivar suas propostas,
consideradas ousadas para a época (Yasui, 1990).
A experiência pioneira de criação do CAPS Luís Cerqueira foi um momento bastante
significativo para a Reforma Psiquiátrica no Brasil, por representar a abertura de novas possibilidades de
atendimento à saúde mental. O CAPS foi inaugurado em março de 1987, iniciando o atendimento ao
público em junho do mesmo ano, após um período de preparação da equipe e aprimoramento das
reflexões a respeito do funcionamento do serviço.

O CAPS surgiu como uma proposta de atendimento que se diferenciava substancialmente do que
existia até então à época. Inverteu a lógica de funcionamento das instituições tradicionais, quando
colocou o usuário como o centro da atenção, conferindo credibilidade para suas queixas e necessidades,
respeitando-as sempre e atendendo-as na medida do possível. A idéia que subsidiou a criação deste CAPS
foi que este seria o início de uma rede de serviços intermediários entre “a hospitalização com seus riscos
de cronificação e segregação e o pleno exercício da cidadania” (Yasui, 1990, p.52).
Durante seu primeiro ano de funcionamento, o CAPS caracterizou-se como um espaço de
referência para o usuário, um lugar de convivência e suporte para o tempo que o usuário permanecesse
fora da internação. Ao longo do tempo, as reflexões a respeito da concepção de “espaço de referência” se
ampliaram, de forma a abarcar outras necessidades dos usuários não previstas no projeto inicial do
serviço. Supervisões clínicas e institucionais viabilizaram a sustentação de outras atividades e formas de
atenção, como por exemplo, a criação de espaços para familiares, visitas domiciliares, novas atividades
artísticas, culturais e profissionalizantes.
A experiência pioneira do CAPS Luís Cerqueira demonstrou a possibilidade de uma outra forma
de atenção à saúde mental, incentivando outras iniciativas em vários locais do país. Enfim, a criação deste
CAPS comprovou serem factíveis os projetos da Reforma Psiquiátrica, demonstrando, ainda, que tais
serviços não são acabados, mas sim, são frutos de uma construção conjunta e cotidiana entre técnicos,
usuários e seus familiares.
Em 1988 é promulgada a atual Constituição Brasileira, marcando o início de uma nova fase social
e política do país. Esta Constituição, considerada a Constituição Cidadã, é um marco importante para a
redemocratização do país e suas instituições, pois em sua elaboração, ela conta com a participação de
vários segmentos sociais, reinaugurando pontos importantes da Carta de Direitos Humanos de 1948. A
partir de sua promulgação, a educação, segurança, dentre outras áreas sociais, passaram a ser de
responsabilidade do Estado. Com a nova Constituição pretende-se acabar com a figura do indigente, por
meio da universalização dos direitos no campo da seguridade social, em especial a saúde e a educação.
Um exemplo deste tipo de preocupação é a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que já
vinha sendo elaborado desde a 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986. O SUS abre novos caminhos
para que se vislumbre a inclusão da população até então considerada marginal e indigente, tendo como
base o princípio da universalização da assistência à saúde. Outros princípios que estão na base deste novo
sistema fornecem importantes subsídios para as transformações exigidas pelo movimento de Reforma

120
Psiquiátrica, quais sejam: 1) descentralização da assistência com privilégio para a municipalização; 2)
integralidade da assistência oferecida à população, abrangendo, de forma intersetorial, os diversos níveis
de atenção à doença; 3) o controle social – tripartite – da aplicação financeira e da organização dos
serviços oferecidos (Campos, 2000).
Ainda dentro deste contexto de redemocratização, em 1989, governos de esquerda assumem as
prefeituras de algumas cidades no Brasil, sendo estas São Paulo, Santos, Campinas, Porto Alegre e
Fortaleza. Esses novos governos iniciaram sua atuação priorizando atenção e inclusão das populações
excluídas do campo da seguridade social. Um exemplo disso é a intervenção realizada no Hospital
Anchieta, um Hospital Psiquiátrico da cidade de Santos, ainda neste ano de 1989.
O Anchieta era um hospital particular, conveniado com a Secretaria de Saúde do Estado, no qual
575 pessoas viviam em uma situação de completa miséria e negligência. A partir do diagnóstico desta
instituição realizado pelo novo governo, seguiu-se uma imediata intervenção, visando a desconstrução
deste hospital, sendo empreendida a construção da primeira rede de serviços substitutivos em Saúde
Mental do país. Esta experiência torna-se uma referência no que diz respeito ao processo de
democratização e humanização da atenção à Saúde Mental, inspirando outras experiências semelhantes.
Considerada um marco na história da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a experiência de Santos teve, ao
longo de seu processo, uma clara influência da Psiquiatria Democrática Italiana, em especial da
experiência realizada em Trieste.
Neste mesmo ano é apresentado no Congresso Nacional o Projeto de lei 3657/89, de autoria do
Deputado Paulo Delgado (PT⁄MG), que dispõe sobre a extinção progressiva (e em alguns casos imediata)
dos hospitais psiquiátricos e a construção de redes de serviços substitutivos ao manicômio em todo o
território nacional, redirecionando assim o modelo de atenção em saúde mental. Este projeto ficou em
tramitação no Congresso Nacional por 12 anos, sendo aprovado na forma da lei 10.216 somente em
março de 2001. Neste período, o projeto de lei foi alvo de inúmeras críticas e resistências, que tiveram por
conseqüência a alteração de alguns pontos de seu projeto originário. A lei aprovada, entretanto, manteve
os pontos essenciais acima citados, sendo conhecida atualmente como Lei de Reforma Psiquiátrica ou Lei
Paulo Delgado.
Em 1990, foi realizada em Caracas a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência
Psiquiátrica, uma conferência de caráter internacional, patrocinada pela Organização Pan-Americana de
Saúde (OPAS)36. Desta Conferência resulta a “Declaração de Caracas”, um documento considerado um
marco importante para a transformação da atenção à saúde mental e adotado por vários países das
Américas. Este documento é composto por princípios que embasam as iniciativas de reestruturação da
atenção em saúde mental, incentivando o apoio das esferas governamentais e sociais em geral, ao

36
A OPAS e a OMS são entidades internacionais de estatuto técnico e ético no campo da saúde. Tais entidades
apóiam a Reforma Psiquiátrica nos diversos países, recomendando a extinção dos hospitais psiquiátricos e
manicômios e sua substituição por serviços abertos e comunitários.

121
desenvolvimento de uma assistência à saúde mental comunitária, descentralizada, participativa, integral,
contínua e preventiva.
Neste momento, ocorre no Brasil a fusão das estruturas administrativas do Instituto Nacional de
Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS) e Ministério da Saúde, o que unifica o comando da
saúde na esfera governamental, favorecendo o início da reorientação do modelo assistencial. Esta fusão
favorece uma alteração gradual dos mecanismos de financiamento, bem como uma aproximação política
entre o Ministério da Saúde e os atores sociais envolvidos com a Reforma Psiquiátrica. (MS, Comissão
Organizadora da III CNSM, 2001).
Neste contexto, de maior aproximação entre a esfera governamental e a sociedade civil, realiza-se
em Brasília, em novembro de 1992, a II Conferência Nacional de Saúde Mental. A realização desta
Conferência contou com uma ampla mobilização da sociedade, sendo estimada uma participação de
aproximadamente 20.000 pessoas nas três etapas (municipal ⁄regional, estadual e nacional), além da
repercussão na mídia nacional. Um dos pontos centrais da Conferência foi o aprofundamento das críticas
ao modelo hospitalocêntrico, considerando as experiências concretas dos serviços abertos, constituintes
do novo modelo de atenção, que já começavam a ser implantadas em várias localidades do país.
Os serviços substitutivos foram criados no país, amparados pelos avanços na implantação do SUS
e dos princípios que o caracterizam. O princípio da descentralização e a conseqüente municipalização da
saúde encontravam grande ressonância dentro da Reforma Psiquiátrica e foram amplamente discutidas
nesta II Conferência. A municipalização foi considerada um passo importante na transformação do
modelo de assistência psiquiátrica, tendo em vista que sua implementação, dentre outros fatores, favorece
um maior controle social, também um tema importante na Conferência.
A II Conferência Nacional de Saúde Mental adotou como conceitos orientadores a Atenção
Integral e a Cidadania. A discussão destes marcos conceituais resultou na afirmação dos princípios que
regem a clínica antimanicomial (singularidade, limite e articulação) anteriormente citados, na medida em
que se considerou a necessidade de
- mudança no modo de pensar a pessoa com transtornos mentais em sua existência-sofrimento, e
não apenas a partir de seu diagnóstico;
- diversificação das referências conceituais e operacionais, indo além das fronteiras delimitadas
pelas profissões clássicas em saúde mental;
- uma ética da autonomia e singularização que rompa com o conjunto de mecanismos
institucionais e técnicos em saúde, que têm produzido, nos últimos séculos, subjetividades
proscritas e prescritas (Ministério da Saúde, 1992, p. 5).

No que diz respeito à Atenção Integral reafirmou-se a necessidade de construção de redes de


serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos que pudessem atender os sujeitos nos diferentes
momentos de suas vidas. A proposta de tais serviços, diversificados e qualificados, implicou em novas
proposições acerca da organização das equipes de saúde mental, a partir de então, necessariamente
interdisciplinares. A interdisciplinaridade proposta levou ao questionamento das posturas profissionais

122
cristalizadas em suas funções específicas, bem como a uma crítica à formação dos profissionais de saúde
ainda baseada em uma visão fragmentada de ser humano.
No que tange o tema Cidadania, reforçou-se a necessidade de uma maior articulação do
movimento pela Reforma Psiquiátrica com outros movimentos sociais, bem como a necessidade de
fomentar canais de participação de usuários e familiares neste movimento. Foram propostas mudanças na
legislação civil e penal referente ao doente mental, como forma de conferir um suporte legal para a
reorientação do modelo assistencial.
Ainda dentro deste tema Cidadania, foi proposta a criação de conselhos de saúde nos três níveis
(municipal, estadual e nacional) com a participação de protagonistas da saúde mental, com uma ênfase na
esfera municipal, seguindo o princípio do SUS de descentralização da assistência. A necessidade do
controle social foi, desta forma, reafirmada, apontando para a necessidade de uma reeducação da
população acerca da saúde mental por meio da informação e divulgação das novas reflexões construídas
nos últimos anos.
A realização desta II Conferência Nacional de Saúde Mental abre um novo momento promissor
para a Saúde Mental. Esta começa a ganhar o respaldo do Ministério da Saúde que a incluiu em sua
agenda de prioridades. O MNLA se fortalece enquanto movimento social e, aos poucos, vai ganhando o
apoio da opinião pública. Nos anos que se seguiram à Conferência houve uma multiplicação dos serviços
substitutivos e uma retomada de discussões acaloradas sobre a necessidade da aprovação do projeto de
Lei Paulo Delgado.
No final dos anos 1990, entretanto, a Reforma Psiquiátrica vai perdendo sua vitalidade e sua
força, testemunhando um “arrefecimento na disposição do poder público em continuar avançando na
direção apontada por essa política” (Conselho Federal de Psicologia, 2000, p.11). Há um esvaziamento
das discussões e uma acomodação com a situação da assistência, ainda caótica e prioritariamente
hospitalocêntrica, tendo em vista que 95% do financiamento para a Saúde Mental ainda era destinado aos
hospitais psiquiátricos. Neste sentido, o Conselho Federal de Psicologia - que vem adquirindo um papel
importante na mobilização de profissionais em torno da necessidade de reorientação do modelo de
atenção para a saúde mental - organiza um Fórum Nacional com o objetivo de juntar as “forças
comprometidas com o processo da Reforma Psiquiátrica, de forma a possibilitar avaliações e
entendimentos estratégicos que conduzam o seu avanço” (Conselho Federal de Psicologia, 2000, p. 12).
Este Fórum, denominado “Como anda a Reforma Psiquiátrica Brasileira? Avaliação,
Perspectivas e Prioridades”, realizado em maio de 2000 em Brasília, reuniu 203 participantes de todos os
Estados brasileiros. Dentre estes estavam lideranças políticas, representantes de entidades, de técnicos,
usuários e familiares. As discussões empreendidas foram registradas e publicadas na forma de um
relatório que foi divulgado como forma de reafirmar o compromisso com a continuidade da Reforma
Psiquiátrica no país.
Esta iniciativa do Conselho Federal de Psicologia, apoiada pelos vários segmentos citados teve
como conseqüência a retomada das discussões sobre a Reforma, e do entusiasmo no sentido de propor

123
novas estratégias de mobilização social em torno do tema. Tal entusiasmo contagiou outros segmentos
sociais, com conseqüências importantes como, por exemplo, a realização da I Caravana Nacional de
Direitos Humanos, realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, tendo como
objeto de investigação a realidade manicomial do país.
Composta por 21 membros e 17 suplentes, esta comissão de deputados, em um período de 12
dias, percorreu 22 instituições psiquiátricas em 7 Estados da Federação. Em cada Estado um subgrupo
destes deputados foi acompanhado por membros de núcleos do Movimento da Luta Antimanicomial ou
representantes de conselhos profissionais e⁄ou comissões de Direitos Humanos estaduais. Apesar da
limitação de tempo e do número de instituições inspecionadas, a realidade encontrada não deixou dúvidas
a respeito do abandono e da violação dos direitos humanos presentes nas instituições psiquiátricas. As
internações abusivas, bem como o uso corrente de técnicas invasivas - como camisas-de-força, altas
dosagens de medicação e utilização indiscriminada da eletroconvulsoterapia (eletrochoque) -, são
elementos cotidianos de quase todas as instituições visitadas pela Comissão. Em algumas instituições
foram descobertos casos de psicocirurgia (lobotomia) realizadas de forma não criteriosa, colocando em
risco a vida de muitos pacientes, sem nenhuma atenção aos aspectos éticos que devem ser
obrigatoriamente considerados nestes tipos de intervenção.
Esta Caravana revelou uma realidade assustadora, onde impera a violência, o desrespeito e a falta
de fiscalização por parte do poder público do dinheiro originário do SUS. O relatório divulgado no
segundo semestre do ano de 2000, recomendou o imediato fechamento de algumas destas instituições, e o
início de uma política de revisão dos convênios com instituições desta natureza, sugerindo ao Ministério
da Saúde, uma vistoria em todas as instituições psiquiátricas do país, incluindo as de cunho judiciário.
Algumas recomendações foram feitas no sentido de ampliar o controle social como, por exemplo, exigir a
formação de comissões estaduais de Direitos Humanos que façam vistorias freqüentes nas instituições
psiquiátricas de seu território. Outras observações de cunho metodológico também foram feitas, como por
exemplo, alguns pontos que devem constar em uma regulamentação do uso da eletroconvulsoterapia e da
psicocirurgia, ou – uma recomendação de outra natureza - a elaboração de portarias que proíbam a
utilização de tais técnicas. Uma das recomendações feitas ao Ministério da Saúde foi a convocação
imediata da III Conferência Nacional de Saúde Mental.
A III Conferência Nacional de Saúde Mental foi realizada em Brasília no mês de dezembro de
2001, menos de um ano após a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei 10.216, a Lei de Reforma
Psiquiátrica, também conhecida como Lei Paulo Delgado. A aprovação desta lei federal conferiu novo
ânimo à Reforma brasileira, incentivando sobremaneira a mobilização em torno da realização da III
Conferência Nacional de Saúde Mental. As propostas feitas no âmbito desta conferência foram
sustentadas por uma lei federal em processo de implementação, ou seja, podia-se vislumbrar uma maior
possibilidade de efetivação das mesmas, o que marcou uma diferença considerável desta conferência em
relação às anteriores.

124
O tema principal da III Conferência Nacional de Saúde
Mental estava vinculado ao tema proposto pela OMS para o ano
de 2001, escolhido como o ano internacional da saúde mental:
“Cuidar sim, excluir não”. Cabe ressaltar que a OMS, neste ano
de 2001, incentivou e ofereceu seu apoio à realização de
Conferências Nacionais de Saúde Mental em vários países da
América do Sul. O tema central escolhido para a Conferência
brasileira foi: “Efetivando a Reforma Psiquiátrica, com acesso,
qualidade, humanização e controle social”, que se desdobrou em
quatro subtemas, amplamente debatidos nos 35 grupos de
trabalho que compuseram a Conferência: financiamento,
recursos humanos, controle social e acessibilidade⁄direitos e
cidadania.
Figura 14: Pintura de Pedro Paulo Ferrarezi
CAPS de Marília ⁄SP (Publicidade da III CNSM)

A III Conferência Nacional de Saúde Mental foi o resultado de um processo de intensa


mobilização dos protagonistas da saúde mental no país. Em todo o território nacional foram realizadas
163 Conferências Municipais e 173 Conferências Micro-regionais e regionais contando, nesta primeira
etapa, com uma participação estimada de 30.000 pessoas, entre técnicos, usuários e familiares. Na
segunda etapa, todos os Estados da Federação realizaram Conferências Estaduais, com uma participação
estimada de 20.000 pessoas. Essas Conferências municipais e estaduais constituíram-se em reuniões
preparatórias e importantes fóruns para a elaboração de propostas a serem apresentadas na Conferência
Nacional. Destas duas etapas, foram eleitos 1700 delegados, entre técnicos, usuários e familiares,
subdivididos nos 35 grupos de trabalho que elaboraram 1.100 propostas acerca dos quatro subtemas
propostos. A Conferência contou ainda com a participação de convidados internacionais, lançamento de
livros, feiras com as diversas experiências realizadas atualmente no país, painéis com temas específicos
do campo da saúde mental e premiação de experiências exitosas. Todas as atividades da Conferência
foram divulgadas na mídia nacional, com a realização, inclusive, de alguns debates em programas de
rádio e televisão sobre o tema da Reforma Psiquiátrica.
Um dia antes da abertura da III Conferência Nacional de Saúde Mental, o Conselho Federal de
Psicologia, com o apoio da Câmara dos Deputados e demais entidades comprometidas com a Saúde
Mental no país, organizaram um evento de grande importância simbólica para este momento histórico.
Este evento foi denominado “Tribunal dos Crimes da Paz” e se constituiu na simulação de um júri, onde o
hospital psiquiátrico estava no banco dos réus. Vários usuários foram convidados a dar depoimentos sobre
suas experiências de internação e maus tratos. Familiares de pessoas assassinadas em hospitais

125
psiquiátricos37 também deram depoimentos, reafirmando a necessidade de uma transformação imediata do
modelo assistencial.
Haviam advogados de acusação e de defesa do réu (o hospital
psiquiátrico) e o júri do “Tribunal dos Crimes da Paz” foi composto por um
Radialista da CBN do Rio de Janeiro, pela Psicóloga Ana Bock (ex-
presidente do Conselho Federal de Psicologia), Augusto César (Psiquiatra
do Distrito Federal), Deputado Paulo Delgado, Vera Vital Brasil (membro
do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e atual representante dos
familiares de usuários dos serviços de saúde mental no Conselho Nacional
de Saúde), e o Sr. Luiz Francisco (Procurador da República do Distrito
Federal). Cada um dos advogados, bem como os membros do júri, também
tiveram espaço para dar seus depoimentos.
Figura 15: Cartaz produzido pelo
Conselho Federal de Psicologia

Cabe destacar, dentre as inúmeras falas que fizeram parte de todo o evento, a fala de Eduardo, um
usuário dos serviços de saúde mental da Bahia e militante do Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial. Depois de contar a história de seus longos anos de internação e sujeição a maus tratos e
violência, ele revela estar
...cansado de falar de manicômio, por que isso já era. Eu quero é poder ir à padaria, jogar um
dominó na esquina, andar pela cidade, enfim, ter uma vida comum, em liberdade. Acho que
ainda temos muito o que lutar, mas temos muito o que comemorar também, porque é a primeira
vez na história da humanidade em que os loucos têm a oportunidade de se organizar
politicamente.

A organização política dos loucos, como afirmou Eduardo, pode ser representada pela trajetória
do Movimento da Luta Antimanicomial que, ao longo de sua história agregou aliados e se constituiu em
uma importante força política, apontou uma direção para a construção de um novo modelo de atenção à
saúde mental e um novo olhar para a loucura.

37
Cinco casos de assassinato em hospitais psiquiátricos foram alvo de investigações por parte dos conselhos
profissionais e promotorias de saúde estaduais naquele ano. As investigações sobre esses casos foram relatadas no
livro “A Instituição Sinistra”, publicado pelo Conselho Federal de Psicologia e lançado no dia deste evento.

126
O Movimento Social
Quando entrei nesse movimento, o que me motivava
chamava-se André Luiz, meu filho. Hoje chama-se também
Raimundo, Leo, Marcelo, Emília, Beth, Marcão, Lourival,
Imaculada, Jurandir, Márcio, Maria, Conceição e tantos outros
que nem ao menos conheço, todos eles cidadãos do mundo,
que vivem em minha alma e meu coração e que me
transmitem essa energia de que tanto necessito e que dá
sentido à minha perplexidade e à minha indignação”
(Geraldo Peixoto, familiar, membro do MNLA38).

Movimento Nacional da Luta Antimanicomial merece algumas considerações especiais, pelo fato
de se constituir em um espaço de luta não institucional que, ao longo de sua história, foi agregando
inúmeras forças advindas de diversos segmentos sociais que se solidarizaram com a questão da Saúde
Mental no país. No seio do MNLA também tem início a construção de um corpo teórico próprio e a
formulação de uma prática substancialmente diferenciada da prática asilar, caracterizada por sua
construção e avaliação no cotidiano das novas experiências implantadas de Reforma Psiquiátrica.
O MNLA é considerado o segundo movimento social do país, em termos de número de
participantes, sendo superado somente pelo Movimento dos Sem Terra. É interessante notar, entretanto,
que apesar de sua representatividade, o MNLA não é retratado na literatura brasileira como um
movimento social. Em vários livros que tratam dos movimentos sociais no país, não há referências ao
MNLA, o que revela a marginalidade de sua luta. A falta de referências ao MNLA na literatura sobre
movimentos sociais também pode ser o sinal de um impacto restrito deste movimento na sociedade,
atingindo quase que tão somente as pessoas que tiveram uma implicação mais direta com a causa.
Pode-se considerar como marco fundador do MNLA, o Congresso de Bauru, realizado em 1987, a
partir do qual outros grupos sociais vieram se juntar ao Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental,
conferindo a este a dimensão de um movimento social, como já foi relatado anteriormente. Vários grupos
começaram a se organizar politicamente trazendo questões específicas a partir de suas vivências relativas
ao modelo manicomial. A partir deste congresso, por exemplo, surgiram inúmeras associações de
usuários e familiares que, em dezembro de 1991, organizaram em São Paulo, a I Reunião Nacional de
Entidades de Usuários e Familiares, com vistas a unificar suas forças em torno do lema “Por uma
sociedade sem manicômios”.
Em setembro de 1993, ocorreu em Salvador o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial,
contando com a participação de 480 participantes inscritos. Dentre os participantes, 25% eram usuários e
familiares, que iniciavam um processo de crescimento de seu protagonismo dentro do movimento social.
O tema comum deste encontro foi “O movimento antimanicomial enquanto um movimento
social”, dentro do qual foram discutidos os eixos de luta e identidade do movimento, bem como a sua
forma de organização nacional. Neste primeiro encontro, o MNLA se firmou enquanto um movimento

38
Fala proferida no Fórum Nacional “Como anda a Reforma Psiquiátrica Brasileira? Avaliação, Perspectivas e
Prioridades, 2000, Brasília.

127
social, plural, independente e autônomo. Decidiu-se pela não institucionalização, sendo sua organização
formatada como uma rede, que congrega pessoas, grupos, experiências, movimentos e núcleos locais,
respeitando-se a autonomia de cada Estado em sua forma própria de organização. (I Encontro Nacional da
Luta Antimanicomial, Relatório, 1993).
Foi decidido que o MNLA deveria se reunir de dois em dois anos, e a organização deste encontro
bianual seria de responsabilidade da secretaria nacional. A secretaria teria um caráter itinerante, sendo
decidida uma nova sede a cada encontro nacional. Além deste encontro bianual, haveria encontros
regionais com os núcleos locais, bem como reuniões de segmentos específicos, como a reunião de
entidades de usuários e familiares, que deveriam ser organizadas com o apoio da secretaria nacional.
Os eixos de luta elaborados no âmbito deste encontro visavam, de uma forma geral, a
desmantelamento do modelo hospitalocêntrico de atenção à saúde mental, tocando também questões
referentes à transformação da cultura no que tange às concepções de loucura e doença mental. Buscou-se,
também, problematizar pontos da legislação referentes ao tratamento do doente mental, com vistas a
reverter o estatuto de incapacidade social imputado ao louco. Vários eixos de luta foram discutidos dentro
de temas específicos tratados no encontro, quais sejam: 1) a tragédia nacional e a produção social do
sofrimento; 2) a invenção da assistência: impasses e possibilidades na construção de práticas
antimanicomiais; 3) luta antimanicomial e intervenção cultural: a cultura como alvo e a cultura como
meio; 4) a legislação psiquiátrica: a (re)construção dos direitos pela via legal e 5) a luta antimanicomial e
as instituições estatais: autonomia, contradições, parcerias e ambigüidades (Relatório do I Encontro
Nacional da Luta Antimanicomial, 1993).
Dentro deste primeiro Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, ocorreram outros eventos,
organizados pelos diversos segmentos presentes no mesmo. Ocorreram: a II Reunião Nacional de
Entidades de Usuários e Familiares, a Reunião da Articulação Latino-americana da Luta Antimanicomial,
encontros de núcleos estaduais da Luta Antimanicomial (São Paulo, Bahia, Rio Grande de Sul, Espírito
Santo, Ceará, Minas Gerais) e a Reunião de Parlamentares da Luta Antimanicomial, que analisou o
processo de tramitação de leis de Reforma Psiquiátrica em vários Estados Brasileiros.
Em dezembro do mesmo ano, ocorreu o III Encontro Nacional de Entidades de Usuários e
Familiares da Luta Antimanicomial, no qual foi elaborada a Carta de Direitos dos Usuários e Familiares
de Serviços de Saúde Mental, considerada um marco simbólico da organização política destes segmentos.
Esta carta é o resultado de várias lutas de usuários, familiares e outras organizações comprometidas com a
transformação da atenção à Saúde Mental no país. Os princípios constantes na carta revelam um pouco da
história de sofrimento e dor por que passaram inúmeras pessoas que foram submetidas a internações em
hospitais psiquiátricos. Afirmam também a necessidade de reconhecimento dos direitos de portadores de
transtornos mentais e seus familiares, também vítimas de sofrimento em decorrência do tratamento
desumano oferecido ao doente mental. Reuniões Nacionais de Entidades de Usuários e Familiares do
MNLA ocorreram novamente em 1996, em 1999 e em 2000.

128
O MNLA se reuniu nacionalmente nos anos de 1995, 1997, 1999 e 2001, conforme o previsto no
primeiro Encontro Nacional. Os Encontros que se seguiram aprofundaram as reflexões a respeito dos
eixos de luta propostos no primeiro encontro, tendo como aspecto fundamental a questão da cidadania do
doente mental e a luta pela conquista da autonomia e trânsito dos portadores de sofrimento psíquico nas
várias dimensões da vida social, como trabalho, lazer, educação, dentre outros. Um dos pontos
importantes de agregação do MNLA foi a luta pela aprovação da lei federal de Reforma Psiquiátrica, que
foi se constituindo, ao longo dos anos, na principal bandeira de luta do movimento.
A aprovação da Lei Federal 10.216 de Reforma Psiquiátrica, em abril de 2001, representou um
grande avanço na luta pela reorientação do modelo de atenção à Saúde Mental. Sua aprovação, entretanto,
teve conseqüências importantes para o MNLA, que vencera sua principal bandeira de luta. Em outubro do
mesmo ano, ocorreu em Miguel Pereira (RJ) o V Encontro Nacional do Movimento da Luta
Antimanicomial, com uma característica diferente dos encontros anteriores. Tendo conquistado um dos
objetivos principais de sua luta, o movimento se enfraqueceu enquanto uma unidade, começando a surgir
interesses diversos no seio do movimento e divergências entre as várias lideranças existentes em seu
interior.
Este encontro não cumpriu seus objetivos, dentre os quais, elaborar propostas para a III
Conferência Nacional de Saúde Mental e eleger uma nova secretaria, em virtude da não ocorrência da
Plenária final, que ficou esvaziada devido à retirada de várias delegações antes de sua realização.
Inúmeros conflitos ocorreram entre as lideranças e delegações participantes e iniciou-se um processo de
fragmentação do movimento, cuja secretaria em exercício passou a não mais atender às necessidades do
movimento como um todo, deixando de ser representativa dos interesses do grande grupo.
Assim, no final do ano de 2003, começou a circular, em âmbito nacional, uma proposta de criação
de uma outra entidade, advinda dos grupos que não se sentiam mais representados pelo MNLA. Esta
proposta foi se fortalecendo, culminando com a criação, em 2004, da Rede Internúcleos de Saúde Mental.
Esta rede contou com a adesão de inúmeros grupos e núcleos de alguns Estados do país, que se
desvincularam do MNLA e se juntaram em uma nova entidade. Foi elaborada uma Carta de Princípios, na
qual os núcleos foram definidos como “organizações autônomas e militantes de portadores de sofrimento
mental, seus familiares, trabalhadores de Saúde Mental, etc, que empreendem efetivamente, a nível local
ou estadual, as ações e os enfrentamentos exigidos pela construção de uma sociedade sem manicômios”
(Rede Internúcleos de Saúde Mental, Carta de Princípios, 2004).
Ao final do ano de 2004 foi realizado em Fortaleza o I Encontro da Rede Internúcleos de Saúde
Mental, que contou com três temas principais a serem discutidos nos grupos de trabalho. O primeiro tema
referiu-se à concepção e à prática presentes na denominação da rede, sendo discutida a forma de
organização desta nova entidade. Os núcleos foram reafirmados enquanto lócus privilegiado para
exercício do protagonismo no que tange às intervenções locais. Para os participantes da rede, o exercício
da autonomia dos núcleos foi considerado um passo à frente na organização de um movimento igualitário,
plural e democrático no âmbito nacional.

129
O segundo tema discutido nos grupos de trabalho foi a Reforma Psiquiátrica e as políticas
públicas. Neste momento histórico já se percebe um certo consenso a respeito do modelo de Reforma
Psiquiátrica que se deseja, apoiado pelo êxito das experiências já implantadas, bem como já começa a se
delinear com clareza o sistema de saúde que se busca no âmbito deste movimento. Neste sentido, a tarefa
que coube aos participantes deste encontro foi apontar, de forma mais clara, os aspectos precários das
políticas públicas, assim como elaborar propostas para avançar no sentido de sua efetiva implementação.
Foram elaboradas estratégias que objetivavam exigir do poder público - nos níveis federal, estadual e
municipal - posicionamentos e ações necessárias para o cumprimento das propostas de reforma.
O terceiro tema foi a luta antimanicomial e sua articulação com os Direitos Humanos. Foi exigido
do poder público uma maior rigor e justiça com relação aos casos investigados de violência cometida
contra doentes mentais nas instituições psiquiátricas. Neste sentido foram pensadas estratégias para
conferir maior visibilidade social para o enfrentamento das questões relativas aos direitos humanos
referentes à questão da saúde mental.
Cabe ressaltar que a constituição da Rede Internúcleos de Saúde Mental não é fruto de uma
unanimidade entre os diversos núcleos do país. As opiniões sobre a Rede são diversas e controversas,
havendo alguns Estados que não se posicionaram a respeito da mesma e não se filiaram, apesar de
discordarem das posturas da antiga secretaria do MNLA. Ainda não temos dados a respeito dos efeitos da
constituição da Rede, sendo precipitadas quaisquer conclusões a respeito das consequências desta nova
entidade para a Luta Antimanicomial.

O estado da arte da Reforma Psiquiátrica Brasileira


“Libertar o pensamento dessa racionalidade
carcerária é uma tarefa tão urgente quanto
libertar nossas sociedades dos manicômios.”
(Peter Pal Pelbárt, em Manicômio Mental -
a outra face da clausura)

Traçar um panorama da Reforma brasileira não é tarefa simples, se observarmos a complexidade


deste processo em todo o território nacional. Como citado anteriormente, a Reforma no Brasil abriga uma
grande diversidade de experiências, em decorrência da diversidade cultural, política e social do país e dos
diferentes ritmos em que tais experiências vêm ocorrendo, em cada contexto específico, o que dificulta
sua caracterização de forma objetiva e precisa.
Tal diversidade também diz respeito às diferentes maneiras como a Reforma Psiquiátrica é
percebida e aceita nos diferentes locais do país. Apesar deste movimento já ter conquistado um espaço na
cultura brasileira, ainda existe em vários contextos sociais, uma grande resistência à transformação dos
hospitais psiquiátricos em serviços abertos de atenção à saúde mental.
Um dos fatores que pode explicar tal resistência é a existência de um imaginário social,
construído histórica e culturalmente, que associa a loucura à periculosidade, improdutividade,

130
irresponsabilidade e imprevisibilidade, como vimos no capítulo referente à história da loucura, mais
especificamente quando nos referimos ao período do Iluminismo e séculos seguintes. Este imaginário,
ancorado na história da loucura na cultura ocidental, ainda persiste, a despeito das reflexões mais
modernas sobre a loucura, que tentam inserir uma compreensão mais ampla e complexa da mesma. Neste
sentido, as experiências de Reforma Psiquiátrica, que têm como principal objetivo a reconstrução de um
espaço social para a loucura que não mais o hospital psiquiátrico, implica necessariamente em um
processo de negociação com a cultura onde tais experiências se realizarão.
Este processo de negociação deve considerar – para além dos aspectos políticos, sociais e
econômicos - os valores, crenças, costumes e a história dos grupos que habitam o contexto das
experiências. Estes elementos constituem as representações sociais que circulam em torno da figura do
louco, e que devem ser reconhecidos e trabalhados no âmbito dos movimentos de Reforma Psiquiátrica. A
necessidade de tal negociação se justifica pelo fato de que qualquer projeto de reforma psiquiátrica
precisa do apoio e engajamento da sociedade como um todo, como forma de viabilizar uma efetiva
reinserção de sujeitos até então excluídos da dinâmica social.
Aliada a este imaginário a respeito da loucura, as resistências à Reforma Psiquiátrica também
estão relacionadas à pouca informação a respeito da mesma, muitas vezes veiculadas de forma
equivocada, o que gera limitações e distorções em sua compreensão. A informação tem se apresentado
como um dos pontos fundamentais a serem trabalhados pela Reforma Psiquiátrica, pois se sabe que a
informação é uma das dimensões constituintes das Representações Sociais, juntamente com o campo
representacional, a atitude e a posição que o sujeito ocupa diante do objeto a ser representado (Moscovici,
1961⁄1978).
Há uma crença disseminada em determinados segmentos da população de que a Reforma
Psiquiátrica e o fechamento dos manicômios são um ato de irresponsabilidade por parte dos governos.
Muitos crêem que os manicômios serão fechados e que os loucos ficarão soltos pelas ruas, sem
tratamento, ameaçando a população e a ordem social.
A história da Psiquiatria levou à construção de uma representação da loucura, cujo tratamento
deve se dar em um ambiente de isolamento, longe do convívio social, devido à sua periculosidade e
incapacidade para a vida coletiva. Assim, o tratamento em liberdade confronta a representação que se
construiu ao longo dos últimos séculos a respeito da loucura e da forma como seu tratamento deve se dar.
Além da concepção de tratamento da loucura associada ao isolamento, as informações distorcidas
ou incompletas a respeito da Lei 10.216, reforçam a crença de que, com a implementação da Reforma, os
loucos ficarão desassistidos. Os opositores da Reforma, quando falam desta Lei, geralmente não se
referem à substituição dos hospitais psiquiátricos por outros serviços abertos, restringindo as informações
apenas à extinção dos manicômios, o que leva, propositadamente, a uma idéia fragmentada do que seja a
Reforma.
Neste sentido, os trabalhadores da Reforma Psiquiátrica têm como uma de suas tarefas principais,
além de conhecer e transformar a própria representação social da loucura, ampliar a concepção que se tem

131
acerca das possibilidades de seu tratamento. A informação, neste caso, ocupa um lugar estratégico quando
se fala da implementação de novos serviços. A comunidade, por ser o lócus onde as experiências de
tratamento aberto acontecerão, deve, necessariamente, ser ouvida e bem informada a respeito das novas
tecnologias sociais de tratamento da loucura, que prezam pela liberdade e cidadania do doente mental. A
informação não é, obviamente, o único fator que levará a sociedade como um todo a se posicionar em
favor da Reforma Psiquiátrica, entretanto, ela é um elemento grande importância no sentido de lidar com
as resistências e minimizar as dúvidas e receios a respeito do fechamento dos manicômios.
Atualmente, o Brasil se encontra em um momento de transição de um modelo hospitalocêntrico
de assistência à saúde mental, para um modelo baseado na desinstitucionalização, na reabilitação
psicossocial e nos princípios básicos preconizados pela clínica antimanicomial. Entretanto, apesar da
coexistência destes dois modelos, a Reforma Psiquiátrica brasileira vive um de seus momentos mais ricos
e produtivos, contando, atualmente, com uma política de saúde mental, em nível federal, que preza pela
sua gradual e efetiva implementação, respaldada pela lei 10.216 e pelo incentivo aos inúmeros serviços
substitutivos ao hospital psiquiátrico que vêm sendo criados em todo o país.
O Brasil conta hoje com uma política pública para a saúde mental que, apesar de recente e ainda
limitada, tendo em vista a grande demanda da saúde mental no país, evidencia alguns progressos políticos
e assistenciais conquistados na área. A política de saúde mental desenvolvida pelo Ministério da Saúde
foi incrementada a partir das deliberações da III Conferência Nacional de Saúde Mental e pode ser
considerada como uma política engajada no processo de transformação da assistência à saúde mental no
país.
A política empreendida pela atual coordenação de saúde mental do Ministério da Saúde constitui-
se pelas seguintes diretrizes: 1) Redução do número de leitos hospitalares em hospitais psiquiátricos; 2)
criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais; 3) incorporação da saúde mental nas políticas de
atenção básica à saúde; 4) criação de políticas públicas para tratamento de álcool e outras drogas e
incorporação destas políticas no âmbito da saúde mental; 5) programas de cunho assistencial e
indenizatório, como o atual Programa De Volta Pra Casa; 6) expansão dos Centros de Atenção
Psicossocial – CAPS e 7)expansão do número de Serviços Residenciais Terapêuticos – SRTs.
O programa de redução de leitos em hospitais psiquiátricos é uma das peças chaves para a
transformação do modelo assistencial. A redução do número de leitos vem ocorrendo de forma conjugada
com a criação de serviços residenciais terapêuticos e com a expansão da rede de CAPS no país, como
forma de evitar a desassistência.
A redução de leitos psiquiátricos nos manicômios vem ocorrendo desde 1996, ganhando força a
partir do ano de 2002, com a realização do Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares –
PNASH ⁄ Psiquiatria. Naquele ano foi realizada uma avaliação dos hospitais psiquiátricos, a partir de
critérios definidos pelo próprio Ministério da Saúde e membros do movimento da luta antimanicomial.
Após os resultados de tal avaliação, juntamente com as denúncias da Comissão de Direitos Humanos da
OAB, Conselho Federal de Psicologia e Movimento da Luta Antimanicomial, o Ministério da Saúde

132
iniciou um processo de intervenção nas áreas cobertas por hospitais psiquiátricos cuja pontuação foi
considerada insuficiente diante dos critérios elaborados.
O processo de intervenção se dá de diferentes formas, a depender das condições dos gestores
locais em administrar tal processo. Em alguns lugares houve um imediato descredenciamento do SUS dos
hospitais psiquiátricos, em outras localidades, este processo se deu de forma gradativa, tendo em vista
dificuldades políticas e⁄ou a necessidade de estruturação de uma rede extra-hospitalar para receber os
pacientes de tais hospitais. Segundo o boletim informativo, de setembro de 2004, da Coordenação de
Saúde Mental do Ministério da Saúde, o PNASH⁄ Psiquiatria nos anos de 2002, 2003 e 2004, havia
indicado 13 hospitais psiquiátricos para descredenciamento do SUS, dos quais 4 haviam sido fechados e 9
estavam em processo de intervenção gradativa.
De acordo com o boletim de dezembro de 2004, entre os anos de 1996 e 2004, a redução do
número de leitos em hospitais psiquiátricos foi de 72.514 para 44.234. Esta redução vem sendo feita de
forma relativamente lenta, se pensarmos que ainda existem mais de 40.000 pessoas internadas em
hospitais psiquiátricos no país. Entretanto, deve-se considerar a complexidade desta iniciativa de
desmonte dos hospitais, que deve ocorrer combinada com outros procedimentos e criação de redes de
serviços substitutivos. Testemunha-se um equilíbrio instável entre a desospitalização e a criação da rede
substitutiva. Entretanto, já é possível vislumbrar o início da reversão do modelo hospitalocêntrico, tendo
em vista a implementação, cada vez mais efetiva, de outros equipamentos39 destinados aos cuidados em
saúde mental, em várias localidades do país.
Percebe-se também, mesmo que de forma ainda lenta, uma reversão do financiamento para a
saúde mental. Até meados da década de 90, 98% dos recursos financeiros para a saúde mental eram
destinados aos hospitais psiquiátricos, e atualmente esta cota diminuiu para 78%, sendo os 22% restantes
destinados aos serviços substitutivos Uma outra medida, também importante foi a criação de leitos
psiquiátricos em hospitais gerais, o que significa uma outra opção para a crise, para além da tradicional
internação em hospitais psiquiátricos. A vantagem dos leitos em hospitais gerais é a garantia de uma
internação criteriosa, ou seja, que se restrinja basicamente ao momento da crise, minimizando desta forma
o isolamento e a exclusão social.
Nos últimos anos, a saúde mental também passou a ser incorporada nas políticas de atenção
básica à saúde. A saúde mental hoje está presente em algumas equipes do Programa Saúde da Família
(PSF), que se encarregam da formação de agentes comunitários de saúde. Muitos Centros de Saúde (como
são conhecidas as Unidades Básicas de Saúde) já contam com equipes mínimas de saúde mental e,
juntamente com os CAPS, são responsáveis pela formação dos profissionais que atuam no PSF. Os
Centros de Saúde também se encarregam de oferecer uma retaguarda aos CAPS.

39
Equipamento: palavra habitualmente usada no âmbito das políticas públicas para designar os diversos tipos de
serviço que compõem uma rede de saúde mental como, por exemplo, os CAPS, os hospitais-dia, Centros de
Convivência, ambulatórios, residências terapêuticas.

133
Ao longo dos últimos anos também vêm sendo elaboradas algumas políticas para tratamento e
prevenção do uso abusivo de álcool e outras drogas. Neste sentido o Ministério da Saúde vem adotando
uma política de redução de danos, em detrimento de um tratamento baseado na abstinência. Estão sendo
criados ambulatórios especializados, bem como implementados CAPS destinados especialmente ao
tratamento e prevenção do uso abusivo de álcool e outras drogas, denominados CAPSad. Até 2004 foram
criados 59 CAPSad em todas as regiões do país, sendo a maior concentração destes serviços na região
sudeste. As políticas para tratamento de álcool e outras drogas, no ano de 2004 foram incorporadas no
âmbito das políticas para saúde mental, tendo em vista a proximidade entre os temas que são tratados.
Outra estratégia utilizada para o início da desinstitucionalização foi a criação, em 2003, do
Programa De Volta Pra Casa, um programa assistencial de cunho indenizatório, que regulamenta a
concessão de um auxílio reabilitação psicossocial no valor de R$ 240,00. O objetivo deste programa é
contribuir para o processo de inserção social de pessoas acometidas de transtornos psíquicos, que tenham
passado por internações psiquiátricas com duração igual ou superior a dois anos ininterruptos, sem que
seu quadro clínico justificasse tal permanência dentro de um ambiente hospitalar. O beneficiário do
programa deve estar de alta hospitalar e sendo atendido por um CAPS ou outro serviço de saúde mental
do município onde reside ou passará a residir. O beneficiário pode estar morando em um serviço
residencial terapêutico ou com sua família.
Dentre as diretrizes adotadas no âmbito das políticas para a saúde mental, daremos destaque à
expansão da rede de CAPS e a expansão do número de Serviços Residenciais Terapêuticos, tendo em
vista os objetivos do presente trabalho e a importância central destes serviços na implementação da
Reforma Psiquiátrica Brasileira.

- Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): o carro chefe da Reforma


“Sonho no mundo
Mundo dos sonhos
Volta ao mundo
Sonhos de volta.”
(Raquel Nicolini – usuária do
Caps de Porto Alegre)

O CAPS é um serviço de saúde aberto e comunitário, que se constitui como lugar de referência
para pessoas que sofrem com transtornos mentais, cujo quadro clínico ou social justifique o tratamento
em um equipamento de cuidados em saúde mental. Os CAPS são serviços do SUS que funcionam de
acordo com a lógica do território, seguindo o princípio da descentralização preconizado por este sistema.
São serviços de natureza comunitária, que prestam um cuidado intensivo e personalizado, buscando
enfocar a promoção de saúde por meio de ações intersetoriais (Ministério da Saúde, 2004a).
No final da década de 80, momento em que foram criados os primeiros CAPS do país, estes
serviços atuavam como intermediários entre a internação psiquiátrica e a inserção social. Ao longo dos
anos que se seguiram estes passaram a ser vistos como uma possibilidade real de substituição ao

134
manicômio, tendo em vista sua eficácia na diminuição das internações e seu crescente potencial para
sustentar a estrutura de um novo modelo de atenção.
Atualmente, os CAPS assumiram um papel estratégico no que diz respeito à reorientação do
modelo de atenção, consistindo tal reorientação em um progressivo deslocamento dos cuidados em saúde
mental de dentro do hospital psiquiátrico em direção à comunidade. Neste processo de deslocamento, os
CAPS vêm assumindo funções importantes na articulação de toda a rede de atenção às pessoas
acometidas de transtornos mentais, seus familiares, amigos e demais atores sociais de um determinado
território40.
Os CAPS passaram a assumir um lugar central em todo o processo de Reforma Psiquiátrica no
Brasil, sendo considerada a expansão de sua rede um fator que viabilizará a extinção dos hospitais
psiquiátricos. Seu caráter substitutivo deve-se à sua atual função de organizador de toda a rede
comunitária de cuidados em saúde mental, onde desenvolve projetos terapêuticos e comunitários,
“dispensando medicamentos, encaminhando e acompanhando usuários que moram em residências
terapêuticas, assessorando e sendo retaguarda para o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde e
Equipes de Saúde de Família no cuidado domiciliar” (Ministério da Saúde, 2004a, p.12). Neste sentido, as
equipes dos CAPS devem manter uma constante integração com as demais equipes da rede básica de
saúde, acompanhando, apoiando e capacitando tais equipes para o trabalho com as pessoas com
transtornos mentais.
Em suma, os CAPS têm por objetivos: prestar atendimento em regime de atenção diária;
gerenciar os projetos terapêuticos, oferecendo cuidado clínico eficiente e personalizado; promover a
inserção social dos usuários através de ações intersetoriais e organizar a rede de serviços de SM do
território.
No sentido de cumprir com todas essas atribuições, os CAPS desenvolvem atividades de
naturezas diversas, de modo a atender as diferentes demandas de sua clientela. As atividades são variáveis
de um CAPS a outro devendo, entretanto, em todos os CAPS serem realizados atendimentos individuais,
em grupo, atividades com os familiares, assembléias e atividades comunitárias.
São desenvolvidos como atendimentos individuais: prescrições de medicação, psicoterapia (que
podem ser de orientações teóricas diversas), orientação ou outros, dependendo da demanda de cada
usuário e da capacidade da equipe em oferecer tais atendimentos. Dentre as atividades desenvolvidas em
grupo podem constar oficinas terapêuticas, expressivas, profissionalizantes, de geração de renda,
alfabetização, grupos terapêuticos, atividades esportivas, dentre outras que podem ou não contar com a
presença de pessoas externas ao serviço. Com relação à família devem ser realizados atendimentos a
famílias nucleares, grupos de familiares, visitas domiciliares ou outras, de acordo com a necessidade de
cada família ou usuário.

40
A noção de território adotada pelo Ministério da Saúde refere-se não apenas à área geográfica. Engloba também
“as pessoas que nele habitam, com seus conflitos, seus interesses, seus amigos, seus vizinhos, sua família, suas
instituições, seus cenários (igreja, cultos, escola, trabalho, boteco, etc.)” (Ministério da Saúde, 2004a, p.11).

135
As atividades comunitárias são aquelas que devem ser realizadas em conjunto com as associações
de bairro ou outras instituições existentes no território. Tais atividades são de fundamental importância
por viabilizar uma maior circulação do sujeito acometido de sofrimento psíquico em outros ambientes,
favorecendo uma ampliação das trocas sociais e a integração do serviço com outras instituições e grupos.
Cabe ressaltar que estas atividades não somente significam um movimento de dentro para fora do serviço,
mas tratam-se, também de um incentivo à participação de membros da comunidade em suas atividades
internas. As atividades comunitárias revelam uma das principais vocações dos CAPS, qual seja, abrir
caminhos e propiciar oportunidades que venham incrementar o processo de reinserção social do sujeito
acometido de intenso sofrimento psíquico.
As assembléias são reuniões que devem acontecer, de preferência, semanalmente e que têm por
objetivo discutir as questões relativas ao cotidiano e ao funcionamento do CAPS. Devem participar destas
assembléias todos os membros do CAPS, sendo estes: técnicos, usuários, familiares e outros convidados.
O espaço das assembléias acaba sendo importante para o exercício do protagonismo dos usuários, por se
tratar de um momento no qual são feitas sugestões e avaliações do serviço, e onde são mobilizados os
esforços de todos para resolver as questões cotidianas e dar seguimento aos trabalhos realizados nestes
equipamentos.
As atividades existentes nos CAPS, previstas pela Portaria⁄GM n◦ 336, que os regulamenta,
demonstram uma diferença substancial destes serviços em relação aos hospitais psiquiátricos. O
funcionamento dos CAPS revela uma preocupação com a efetivação de um projeto terapêutico
individualizado e com a reinserção social dos usuários, por meio das ações de reabilitação psicossocial,
que são seus principais objetivos.
Neste sentido, a criação dos CAPS tem uma implicação direta na vida de milhares de pessoas que
passaram a ser atendidas por estes serviços. O tratamento nos CAPS permite ao sujeito vivenciar uma
considerável melhora de qualidade de vida, na medida em que seu tratamento se dará de forma
personalizada e em liberdade. Permite, ainda, que as pessoas convivam com seus familiares e vizinhos e
que possam (re)construir suas redes sociais, integrando sua comunidade de forma ativa. O tratamento em
liberdade possibilita que as pessoas voltem a vislumbrar a realização de sonhos e projetos pessoais,
tornando realidade tudo o que antes era passado e da ordem do impossível dentro de um manicômio.
Um outro ponto importante com relação ao funcionamento dos CAPS é a constituição e dinâmica
das equipes de trabalho. De acordo com a legislação, as equipes dos CAPS devem ser necessariamente
multidisciplinares e devem funcionar de acordo com os princípios da interdisciplinaridade. Diferente dos
hospitais psiquiátricos, onde o único técnico de nível superior era o psiquiatra, que detinha o poder sobre
a atuação dos demais técnicos (em geral auxiliares e técnicos de enfermagem), em um CAPS, há uma
diversificação de técnicos de nível superior e médio. É obrigatória a contratação de psicólogos, terapeutas
ocupacionais, enfermeiros, assistentes sociais, pedagogos e outros profissionais necessários à realização
dos projetos terapêuticos. Os CAPS podem contar ainda com a participação de vários técnicos de
formações diversas.

136
As equipes devem funcionar de tal forma que todos os profissionais participem ativamente, junto
com o usuário, da elaboração e execução do projeto terapêutico individual. As relações entre os diversos
profissionais, inclusive os de nível médio, devem ser horizontalizadas, no sentido de propiciar um diálogo
eficiente e construir um ambiente de reais trocas de informações e experiências.
Este funcionamento exigido das equipes dos CAPS implica em uma importante mudança nas
posturas profissionais tradicionais. São introduzidas duas noções que falam diretamente dessas mudanças
de postura: a noção de núcleo de atuação e campo de atuação. O núcleo de atuação diz respeito àquelas
atribuições que são específicas de cada profissão. A noção de campo de atuação, entretanto, traz
novidades aos diversos profissionais, pois diz respeito ao campo comum, referente ao projeto terapêutico
dos usuários e do próprio serviço. Dentro do campo de atuação todos os profissionais devem dialogar
entre si, trocar informações, consultar outros profissionais e mais do que isso, ampliar suas funções, de
acordo com a demanda da clientela atendida e com as atividades propostas pelo serviço.
Um psicólogo que trabalha em um CAPS, por exemplo, não mais restringirá sua atuação ao
atendimento psicoterápico. Ele também deverá participar de assembléias, de atividades comunitárias,
deverá coordenar algumas atividades de grupo, fazer visitas domiciliares, atendimentos de família,
coordenar residências terapêuticas, etc, apenas para citar algumas das novas atribuições que,
tradicionalmente não fazem parte de seu núcleo de atuação. O exemplo da Psicologia se aplica a todas as
demais profissões, inclusive às de nível médio. Um técnico de enfermagem, por exemplo, deverá ser bem
mais do que um simples “guardião da ordem e do cumprimento das prescrições medicamentosas”. Os
técnicos de enfermagem devem participar ativamente de todas as atividades de convivência e das
discussões a respeito da elaboração e execução dos projetos terapêuticos, sendo também responsáveis
pelo gerenciamento dos mesmos.
Tais mudanças de postura por parte dos profissionais, bem como o caráter dinâmico do serviço,
trazem à tona uma outra atividade essencial para todo e qualquer equipamento de saúde mental: a
supervisão. Desde a criação do primeiro CAPS no país, a supervisão vem se apresentando como um
instrumento fundamental para o bom funcionamento de um serviço desta natureza. A supervisão é um
momento privilegiado para que os profissionais compartilhem suas dificuldades, angústias, idéias,
possibilidades e sucessos. É um momento de avaliação conjunta da prática e do início de novas
construções. As supervisões devem ser tanto de caráter clínico, onde se discutem as especificidades do
trabalho com cada um dos usuários, quanto institucional, onde a própria instituição e seu funcionamento
são objetos de discussão. As supervisões é que vão conferir o tão desejado caráter auto-reflexivo do
trabalho nos CAPS.
A transformação dos objetivos e da dinâmica institucional observada nos CAPS evidencia
mudanças importantes no paradigma de tratamento da loucura. O velho paradigma racionalista, baseado
na díade problema-solução - ou doença-cura - é abandonado e substituído pelo paradigma que considera a
existência-sofrimento do sujeito acometido de transtornos mentais. As pessoas são tratadas em toda sua
complexidade, como um sujeito em sofrimento e em busca de vida, como um cidadão de direitos e que

137
vive em uma sociedade constituída de limites, regras e possibilidades. Cidadão este que passa a ser o
centro de todo o funcionamento do serviço que se molda de acordo com as demandas da população que
acolhe. O caráter auto-reflexivo dos CAPS de que falamos a pouco, é relativo ao fato de que um CAPS
não é feito de receitas prontas, mas é um serviço em constante aprimoramento, onde os caminhos da
reabilitação são construídos e avaliados cotidianamente.
As reflexões levantadas a respeito da dinâmica dos CAPS, devem ser alvo de constantes e
cuidadosas revisões. É importante lembrar que um manicômio não se constitui apenas dentro dos muros
dos hospitais psiquiátricos. Um manicômio pode sobreviver à destruição dos muros hospitalares, pois vai
muito além de uma estrutura física. O manicômio diz respeito a uma atitude, a um olhar dirigido à
loucura. Um olhar que segrega e aprisiona, e este olhar pode continuar a existir, mesmo dentro de uma
estrutura aberta como a de um CAPS. É neste sentido que se fala da necessidade de transformação do
paradigma, pois sem tal transformação, corremos o risco de criar “mini manicômios”, sob a fachada de
um serviço aberto.
É com este intuito que Pelbart (1991) reinvindica o direito à desrazão, e à prática de um trânsito
com tudo aquilo que os loucos nos sugerem, sem que isso signifique um domínio da irracionalidade. A
partir desta reivindicação, o autor nos alerta para o fato de que
não basta destruir os manicômios. Também não basta acolher os loucos, nem mesmo relativizar
a noção de loucura compreendendo seus determinantes psicossociais, como se a loucura fosse só
distúrbio e sintoma social, espécie de ruga que o tecido social, uma vez devidamente “esticado”
através de uma revolucionária plástica sócio-política, se encarregaria de abolir (Pelbart, 1991,
p.134).

Para este filósofo, não basta empreender as ações acima citadas se, em nosso íntimo, mantivermos
intacto o “manicômio mental” em que confinamos a desrazão. Suas reflexões podem nos servir de alerta
no sentido de avaliar criticamente os novos serviços de saúde mental, em especial os CAPS, que se
constituem em peças-chave neste processo de implementação da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Concordamos que a Reforma Psiquiátrica vai além de transformações institucionais e assistenciais,
tratando-se também – e sobretudo – de um desmantelamento de saberes e práticas construídos em torno
da doença mental, considerando a complexidade que envolve o fenômeno existência-sofrimento relativos
à loucura, como nos diria Rotelli (1990). Neste sentido, conceber uma instituição como um CAPS, deve
implicar na consideração de tais transformações paradigmáticas e em uma constante avaliação de suas
práticas cotidianas e não apenas em uma mudança de estrutura física e institucional.
Atualmente o Brasil conta com 595 CAPS, espalhados por todos os Estados brasileiros, com
exceção do Amazonas que ainda não conta com nenhum tipo de CAPS em seu território. A maior
concentração dos CAPS está na região Sudeste que conta com 240 serviços desta natureza, ou seja, 40%
dos CAPS se encontram nesta região que congrega 43% da população brasileira. Estes dados revelam que
o número de CAPS no país ainda é insuficiente para atender a demanda, estando muito aquém do
necessário.

138
Os serviços de atenção à saúde mental, incluindo os CAPS foram regulamentados por meio da
Portaria⁄SNAS n◦ 224, de janeiro de 1992. Em 2002, tendo em vista a ampliação da concepção de CAPS,
de serviço intermediário para substitutivo, é criada a Portaria⁄GM n◦ 336 que estabelece os diferentes
tipos de CAPS, sendo estes: CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPSad.

Os CAPS I, II e III são definidos por ordem crescente de complexidade e abrangência


populacional. Desta forma, as atividades desenvolvidas em cada um destes tipos de CAPS, bem como a
montagem da equipe interdisciplinar, deverão atender às necessidades dos diferentes níveis de
complexidade, seguindo as recomendações feitas pela Portaria⁄GM n◦ 336.
Os CAPS I são considerados serviços de atenção psicossocial com capacidade operacional para
atendimento em municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes. Seu funcionamento se dará
em dois turnos, estando aberto 8 horas por dia, durante os cinco dias da semana. Os CAPS II são para os
municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes, funcionando das 8:00h às 18:00h, podendo
comportar um terceiro turno até às 21:00h.
Os CAPS III são serviços destinados às cidades com população acima de 200.000 habitantes,
devendo prestar uma atenção contínua, durante 24 horas por dia, todos os dias da semana, incluindo finais
de semana e feriados. Os CAPS III deverão ter 5 leitos (no máximo) para o caso de haver necessidade do
usuário pernoitar no serviço. A existência destes leitos no CAPS III é uma forma de resguardar o usuário
de uma provável internação em hospital psiquiátrico, caso haja necessidade de um cuidado mais
intensivo. Os CAPS III podem ser considerados os serviços substitutivos por excelência, por terem
estrutura para atender os usuários no momento da crise, que desde o início da Reforma se constituiu em
um ponto frágil deste projeto, pois os serviços existentes ainda não davam conta do cuidado com a crise,
sendo esta destinada ao hospital psiquiátrico.
Os CAPSi são serviços de atenção psicossocial destinados ao cuidado de crianças e adolescentes
e deverão funcionar de acordo com os critérios populacionais estabelecidos para os CAPS II, ou
atendendo a critérios epidemiológicos definidos pelo gestor local. Os CAPSad são CAPS especializados
no atendimento de pacientes com transtornos decorrentes do uso abusivo e dependência de álcool e outras
drogas, devendo ser criados em municípios com população superior a 70.000 habitantes. Os CAPSad
devem funcionar em dois turnos, podendo comportar um terceiro turno até as 21:00h, nos cinco dias úteis
da semana.
Cabe lembrar que ainda existem 70 cidades com mais de 100.000 habitantes e 18 municípios com
mais de 200.000 habitantes que ainda não têm nenhum tipo de CAPS. O número de CAPSad e CAPSi
também está bastante aquém do número necessário para atender a demanda do país, o que revela ainda
uma precariedade da rede extra-hospitalar e substitutiva, apesar dos esforços contínuos da Coordenação
de Saúde Mental do Ministério da Saúde. A política de desinstitucionalização ocorre em um ritmo lento,
devido às resistências impostas por vários segmentos contrários à Reforma Psiquiátrica, bem como
devido à própria complexidade de todo o processo de transformação do modelo assistencial.

139
Cabe lembrar que a rede de serviços extra-hospitalares em saúde mental não se restringe aos
CAPS, sendo considerados como parte desta rede de atenção os hospitais-dia, centros de convivência,
centros comunitários, centros de saúde, hospitais gerais, instituições de defesa dos direitos de usuários,
prontos socorros, equipes do programa saúde da família e os serviços residenciais terapêuticos, os quais
detalharemos a seguir.

- Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT): a importância do morar


“ Tem amor e no jardim tem a flor amor-perfeito.
Tem um banco que foi feito só pra namorar. Tanta coisa
e adivinha porque me sinto feliz. Alguma coisa me diz
que essa casa é a minha. Nossa casa é tão bonita.”
(Moraes Moreira, Essa Casa)

“Morava há mais de 40 anos dentro de um hospital psiquiátrico. Os últimos anos dentro da


instituição foram acompanhados de uma depressão que a forçava viver em cima de uma cama. Comer, só
depois de muita insistência dos técnicos (que às vezes precisavam aplicar soro para alimentação) e a
locomoção já não era algo tão comum, devido à idade e uma fratura no fêmur, causada por um paciente
em crise que a empurrou no chão, da qual nunca se recuperou completamente. Quase não falava. Quando
o fazia era para falar da morte, na tentativa de apressa-la”. Esta é a história de uma senhora, que
representa mais uma das milhares de histórias de “crônicos” e “irrecuperáveis” que povoam os
manicômios. Pessoas que, desacreditadas e destituídas de um lugar na vida social, são obrigadas a
“empurrar a vida” dentro de um hospital psiquiátrico.
Aos 70 anos de idade, entretanto, o destino desta senhora se modificou radicalmente. Indicada
para ir morar em um serviço residencial terapêutico, o “quadro crônico”, apresentado anteriormente, se
transformou de forma visível. “Agora eu posso sentar à mesa pra comer, pois estou na minha casa”. Algo
similar foi dito por esta senhora no primeiro jantar feito em sua nova moradia fora dos muros do hospital.
Há poucos anos vivendo na residência terapêutica, em sua cadeira de rodas anda por toda a casa e
algumas vezes sai à rua para passeios. Dá sugestões de cardápio e cuida bem do espaço onde dorme.
Alegre, está sempre fazendo piadas com os técnicos, visitantes e outros companheiros da moradia de alta
complexidade41 da qual faz parte, localizada em Souzas, distrito do município de Campinas – SP.
Este é um dos vários exemplos que podem ser dados no sentido de demonstrar a importância dos
serviços residenciais terapêuticos, estes novos dispositivos de cuidado em saúde mental que começam a
se proliferar, ainda de forma tímida, em várias cidades do país. Os serviços residenciais terapêuticos, de
acordo com o artigo 1° da Portaria / GM n° 106 de fevereiro de 2000, são “moradias ou casas inseridas,
preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de

41
A moradia de alta complexidade é um tipo de serviço residencial terapêutico, destinada aos usuários com um alto
grau de comprometimento em sua autonomia, devido à problemas clínicos, idade avançada, ou outros motivos. Este
tipo de moradia possui uma atenção 24 horas, contando sempre com um profissional de saúde mental e um auxiliar
para serviços gerais (limpeza, alimentação).

140
internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares e, que
viabilizem sua inserção social”.
Os serviços residenciais terapêuticos - SRTs42, juntamente com os CAPS, são dispositivos
fundamentais neste momento de transição e reorientação do modelo de atenção em saúde mental, por
viabilizarem o processo de desospitalização das pessoas que há muito tempo perderam seus vínculos
familiares e sociais. No âmbito da Reforma Psiquiátrica privilegia-se a retomada dos vínculos familiares e
a reconstrução de laços fragilizados devido ao isolamento do sujeito que permaneceu por algum tempo
internado. Existe, entretanto, um grande contingente de pessoas que habitam o espaço hospitalar há
muitos anos e até décadas, perdendo completamente o contato com seus familiares ou grupo social de
origem. Há outros, ainda, que foram levados ao hospital por falta de uma rede social de apoio.
Esta grande parcela dos pacientes que habita o espaço do hospital por falta de uma “outra opção”,
sempre se constituiu em um problema e, em muitos casos, em uma boa “desculpa” para a manutenção dos
hospitais psiquiátricos. Afinal de contas, com o fim dos manicômios, para onde iria este grande número
de pessoas? As residências terapêuticas foram criadas em resposta a esta pergunta, apontando mais um
caminho viável para a desconstrução do aparato manicomial e sua substituição por outros dispositivos de
cuidado.
No que diz respeito à política pública para a saúde mental, a criação das residências terapêuticas
evidencia um avanço no campo da atenção. Em 2000, foi aprovada a Portaria⁄GM n° 106 – 11/02/2000
que institui estas residências e a Portaria GM n° 1.220 que a regulamenta para fins de cadastro e
financiamento no SUS. Algumas cidades no Brasil foram pioneiras na criação dessas residências, antes
mesmo da aprovação dessas portarias. Santos, Campinas, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro e Porto Alegre
iniciaram experiências de desospitalização por meio de residências terapêuticas ainda no início da década
de 90. Tais experiências, em sua maioria, obtiveram sucesso e serviram de modelo para a criação de
outros serviços desta natureza em outras localidades, fornecendo também subsídios para a elaboração das
portarias acima citadas.
Atualmente o país conta com 262 residências em 45 municípios de 14 Estados da Federação.
Estas residências atendem um número aproximado de 1363 moradores, o que representa um número ainda
bastante reduzido de pessoas atendidas. O número de residências ainda está muito aquém da demanda
para este tipo de dispositivo de cuidado, mas a política pública para a área da saúde mental tem como uma
de suas diretrizes incentivar a criação de outras residências em todo o território nacional, a medida em
que o modelo de atenção baseado nos CAPS comece a se sobressair em relação ao modelo
hospitalocêntrico.
De acordo com a Portaria⁄GM n° 106, as residências terapêuticas devem ser, prioritariamente de
natureza pública, ou não governamental, desde que funcione sem fins lucrativos e que seja baseada em

42
Os SRTs também são conhecidos pelo nome de residências terapêuticas, moradias extra-hospitalares, ou
simplesmente moradias. Adotaremos a partir de agora, nesta parte do trabalho, a denominação residências
terapêuticas.

141
projetos terapêuticos específicos aprovados pelo Ministério da Saúde. A gestão da residência terapêutica
deve ser feita preferencialmente em nível local e seus moradores devem estar, tecnicamente, vinculados
ao serviço de saúde mental mais próximo - um CAPS ou um ambulatório de saúde mental - cabendo ao
gestor local a responsabilidade de oferecer uma assistência integral aos usuários.
O financiamento de uma residência terapêutica é fruto de um remanejamento da verba antes
destinada ao hospital psiquiátrico. De acordo com a nova política, o dinheiro não mais é destinado ao
hospital, mas sim, acompanha o paciente nos novos serviços nos quais este será atendido. Desta forma, a
verba do SUS destinada a pagar as diárias nos hospitais, aos poucos deverá ser revertida para os CAPS,
para as residências e⁄ou outros dispositivos de saúde mental para os quais os pacientes forem
encaminhados. Além desse dinheiro referente às diárias, o Ministério da Saúde tem uma verba destinada à
montagem das residências terapêuticas, cobrindo parte de algumas despesas como: reformas necessárias
nas casas alugadas, compra de móveis, eletrodomésticos e outros utensílios essenciais ao funcionamento
de uma casa.
É importante ressaltar que, apesar de serem denominados “serviços” residenciais terapêuticos,
essas residências não devem ser vistas como um serviço, um ambulatório, enfermaria, ou qualquer outra
coisa que lembre um serviço de saúde. A idéia é que tais residências se configurem como casas comuns,
casas de família, de amigos. Enfim, o ideal é que uma residência terapêutica seja mais uma casa, como as
inúmeras outras que temos em nossas cidades.
Neste sentido, a própria Portaria ⁄GM n◦ 106 estabelece algumas características físico-funcionais
que resguardam, na medida do possível, a concepção de um lar. Tais características são: a estrutura física
das residências deve ser necessariamente fora dos limites de unidades hospitalares; deve abrigar no
máximo oito usuários, acomodados em até três por dormitório; deve haver uma sala de estar com
mobiliário adequado; dormitórios com cama e armário; copa e cozinha com equipamentos necessários e a
garantia de, no mínimo, três refeições diárias.
Nesta mesma portaria, algumas recomendações são feitas no sentido de subsidiar a elaboração
dos projetos terapêuticos das residências e de cada um de seus moradores. No artigo 4° fica estabelecido
que o projeto terapêutico deve ser centrado, prioritariamente, nas necessidades dos usuários, visando a
construção progressiva de sua autonomia e ampliação de sua inserção social. Tais projetos devem
respeitar os direitos do usuário como cidadão e como sujeito, contemplando desta forma os princípios da
reabilitação psicossocial, a serem discutidos mais à frente.
As residências terapêuticas, para além de sua importância no que tange a reorientação do modelo
assistencial, assumem uma importância fundamental na transformação da história de vida das pessoas que
passam a habitá-las. A liberdade proibida pelo hospital psiquiátrico, em uma residência passa a ser
reconstruída na medida em que são resgatados elementos importantes da história de vida de cada um dos
moradores. Milagres (2003, p.138) atenta para o fato de que “no hospital, a liberdade, quando permitida, é
sempre concedida ao paciente, enquanto que na residência a liberdade é construída pelo morador.” (grifo
da autora).

142
Neste sentido, a experiência das residências tem como conseqüência o redimensionamento do
papel destes sujeitos no meio social por meio de uma releitura de suas experiências passadas. A nova vida
em uma residência terapêutica é uma oportunidade de reconstrução e atualização da identidade que foi
seqüestrada no manicômio, possibilitando a cada um dos moradores uma diferenciação dos demais por
meio do exercício de sua individualidade, com suas particularidades e idiossincrasias. É também uma
oportunidade de contato estreito com a cultura e aprendizado de suas leis, normas, limites e
possibilidades.
A experiência de habitar uma casa possibilita ao usuário uma apropriação singular do espaço, no
qual a subjetividade é o principal instrumento de construção deste novo ambiente. A possibilidade de
escolher a disposição dos móveis, espalhar fotografias, pregar quadros na parede, organizar quartos e
armários, fazer compras e pagar contas, organizar seus próprios horários, entrar e sair de casa a qualquer
hora do dia ou da noite, aos poucos vai revelando as singularidades de cada um dos moradores que,
combinadas, constroem um espaço comum que abriga suas intimidades. Espaço comum que é significado
de maneira única por cada um dos moradores.
O (re)aprendizado das atividades cotidianas e o incremento das formas de lidar com questões do
dia a dia, com as relações sociais e afetivas, levam ao reconhecimento da capacidade de gerenciar alguns
aspectos da vida. Abre-se assim a possibilidade de elaborar novos projetos de vida, de resgatar os sonhos
e desejos negados no manicômio.
É bem provável que uma pessoa que nunca esteve isolada ou submetida à prisão e maus tratos em
um ambiente inóspito e impessoal, não reconheça de forma tão clara a importância de uma residência, de
um lar. Mas para aqueles que durante muito tempo foram privados de um espaço próprio, privados da
privacidade e da liberdade, habitar uma casa representa a possibilidade de reconstrução da própria vida,
de resgate da auto-estima e da segurança em si mesmo. Ou como disse Milagres (2003):
ter uma casa, ou lar, onde se sente seguro possibilita ao indivíduo ‘se lançar no mundo’,
encarar desafios, ora obtendo conquistas, ora enfrentando os desacertos, ou mesmo as dúvidas
que a vida lhe impõe. Aconteça o que acontecer, há sempre a possibilidade de ‘voltar para casa’,
para a ‘segurança do lar’ (p.143).

Neste sentido, as residências terapêuticas podem ser consideradas “serviços de ponta” da Reforma
Psiquiátrica, pois, mais do que qualquer outro serviço, têm o potencial para realizar a tão esperada
inserção social. É no contexto das residências que são trabalhadas – em tempo e ambiente real - as
atividades e relações cotidianas, sendo o lócus privilegiado para as ações de reabilitação psicossocial. E
este trabalho a ser realizado em conjunto com os técnicos vinculados aos CAPS ou ambulatórios de saúde
mental, irá caminhar de acordo com as necessidades de cada um dos moradores, o que resulta na
existência de várias formas de atenção às residências. As residências podem ser visitadas por técnicos três
ou quatro vezes ao dia, uma vez por semana, uma vez a cada quinze dias, ou pode contar com uma
assistência 24 horas, como é o caso das residências de alta complexidade.

143
Da mesma forma que o trabalho realizado em um CAPS requer uma mudança de paradigma dos
profissionais com relação aos usuários e seus campos de atuação, nas residências terapêuticas, as mesmas
observações são cabíveis. Os técnicos que oferecem atenção às residências devem ter clara a diferença
entre este serviço e os demais. Deve-se ter uma disposição para reconhecer que não se trata de um serviço
de saúde, mas sim de um lar. Assim, a relação estabelecida com os usuários deve ultrapassar a tradicional
relação técnico-paciente, pois tratam-se de cidadãos, moradores de uma casa.

Diferente de uma enfermaria, ou de um serviço de saúde, onde o espaço é público (e muitas vezes
os corpos das pessoas também se tornam públicos), em uma residência, estamos nos relacionando com os
habitantes e, portanto, “donos” do lugar. Não se trata mais de um lugar público, onde tudo é de todos.
Passamos ao âmbito do privado, onde o respeito à intimidade e subjetividade devem ser aspectos
constantemente observados. As hierarquias e relações assimétricas devem ser revistas. O trabalho de
reabilitação para as atividades cotidianas e manejo das dificuldades individuais e grupais deve ser
conjugado com o respeito ao espaço individual e íntimo, o que deve ser observado com muita atenção e
cuidado, para que não se opere, mais uma vez, uma invasão da privacidade dos moradores. Deve-se
trabalhar pela autonomia, e não mais pela tutela.

Os laços entre profissionais e moradores em uma residência terapêutica se estreitam cada vez
mais, pois os temas a serem tratados vão exigir do profissional uma ressignificação de sua própria vida e
organização domiciliar. A experiência pessoal dos técnicos no lidar com seus problemas domiciliares vai
assumir um lugar importante no manejo das questões cotidianas que irão surgir ao longo da nova
experiência de moradia destes sujeitos. Neste sentido, o trabalho em uma residência, como boa parte dos
trabalhos em saúde mental, não é unidirecional. É um trabalho mútuo, onde cabe ao técnico um trabalho
pessoal e de auto conhecimento, no sentido de melhor atender às demandas dos usuários. Em uma
residência terapêutica fica claro que a transformação se opera em todos os atores envolvidos, sejam
técnicos ou usuários.

Podemos concluir que o funcionamento de uma residência terapêutica não deixa dúvidas a
respeito da necessidade de adoção de um novo paradigma, baseado no respeito à diferença e incentivo à
autonomia e cidadania. É um dispositivo que, mais do que qualquer outro, questiona nossas antigas
representações a respeito da loucura e seu estatuto de incapacidade para a vida social.

144
- Reabilitação Psicossocial: a idéia chave para um novo projeto de humanidade
“Falar em Reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje, é estar
a um só tempo falando de amor, ira e dinheiro. Amor pela
possibilidade de seguirmos sendo sujeitos amorosos, capazes
de exercitar a criatividade, amizade , fraternidade no nosso
‘que fazer’ cotidiano; ira traduzida nessa indignação saudável
contra o cinismo das nossas políticas técnicas e sociais para a
inclusão dos diferentes; e dinheiro para transformar as políticas
do desejo em políticas do agir.” (Ana Pitta)

Nos últimos anos pode-se testemunhar, além das conquistas nas dimensões políticas e de
intervenção citadas anteriormente, uma rica produção teórica a respeito da reorientação do modelo de
atenção à saúde mental, abarcando seus aspectos ideológicos, políticos, institucionais, sociais e clínicos.
Em meio a esta crescente produção teórica, fruto das reflexões sobre a prática exercida nos novos
dispositivos de cuidado, um conceito emerge como central nesse processo de implementação da Reforma
Psiquiátrica no Brasil: o conceito de reabilitação psicossocial.
A reabilitação psicossocial não é um termo novo e, à semelhança de outros conceitos, vem
ganhando significados diferenciados nos diversos contextos dos quais faz parte. Neste sentido, parece útil
uma tentativa de clarificar o significado adotado para este conceito no âmbito da saúde mental.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a reabilitação psicossocial pode ser definida como
um “conjunto de atividades capazes de maximizar oportunidades de recuperação de indivíduos e
minimizar os efeitos desabilitantes da cronificação das doenças através do desenvolvimento de insumos
individuais, familiares e comunitários” (citado por Pitta, 2001 p. 21).
No contexto brasileiro, entretanto, para além de um conjunto de atividades, a reabilitação
psicossocial vem assumindo uma concepção mais ampla dentro da área da Saúde Mental, conforme
podemos apreciar na afirmação de Saraceno (2001, p.13) de que a “reabilitação é, antes de tudo e neste
momento, historicamente, em todo o mundo, uma necessidade ética, é uma exigência ética”. Esta
afirmação nos leva a considerar uma evolução do conceito, que vai além de seu sentido tradicional de
uma mera “retirada” do sujeito de um estado de desabilidade para retorná-lo ao seu estado de habilidade
anterior. Superando seu sentido enquanto uma “tecnologia de saúde”, a reabilitação psicossocial mostra-
se, acima de tudo, como uma espécie de “projeto de humanidade”43, que busca na autonomia e na
cidadania a sua realização.
No âmbito da Saúde Mental a reabilitação psicossocial supera o significado que o próprio termo
psicossocial traz em si. Do termo psicossocial pode-se depreender uma “espécie de recorte, uma visada
das especialidades, pretendendo excluir aspectos políticos, econômicos, e até aspectos relacionados com a
salvaguarda de interesses, da riqueza e dos valores culturais da nação” (Costa-Rosa; Luzio & Yasui,
2003). Na saúde mental, entretanto, o que se espera é justamente a incorporação destes elementos na
intervenção, superando as dimensões psicológica e social.

43
Expressão cunhada por Willians Valentini, Superintendente do Serviço de Saúde Cândido Ferreira, cidade de
Campinas – SP, no ano de 2003.

145
A história do termo psicossocial na saúde se iniciou no momento da criação do conceito de
medicina integral, nas décadas de 40 e 50, em contraposição ao caráter fragmentário das ações médicas
até aquele momento histórico. No âmbito da medicina integral se elaborou o conceito de homem
enquanto uma totalidade bio-psico-social, que levou à criação de equipes multidisciplinares. (Costa-Rosa
e cols, 2003). Esta nova concepção de homem levou à concepção do denominado modelo biopsicossocial
em Medicina na década de 70, que passou a ter como objetivo teórico e metodológico a “interligação das
dimensões biológica, psicológica e social da pessoa. Assim, cada dimensão, por si só, não pode dar conta
da saúde e da doença” (Reis, 1998, p. 145).
Este modelo biopsicossocial exerce certa influência na emergência de novas disciplinas
científicas no âmbito da saúde, como, por exemplo, a Psicologia da Saúde e a Medicina Comportamental,
abrindo um espaço para a multidisciplinariedade no campo. Apesar do avanço que este modelo representa
em relação ao modelo biomédico e suas explicações estritamente fisiológicas, muitas críticas podem ser
dirigidas a ele, na medida em que o paciente ainda continua a ser um elemento passivo dentro do processo
de cuidados, sendo negligenciada sua autonomia conceitual-afetiva sobre a saúde e a doença. O terapeuta
ainda ocupa um lugar de “autoridade epistemológica que controla todo o processo terapêutico de forma
diretiva e inquestionável” (Reis, 1998, p.157). A multidisciplinariedade em que implica este modelo, não
pode ser percebida ingenuamente, pois, segundo Reis as ciências biomédicas ainda se apresentam no topo
da hierarquia dentro do campo da saúde, apresentando maior peso do que outras áreas. A dimensão
psicossocial propriamente dita, é praticamente ignorada, apesar de haver um discurso bastante difundido
de adesão a este modelo.
Partindo destas reflexões trazidas por Reis (1998), a reabilitação psicossocial em saúde mental
guarda poucas semelhanças com o modelo biopsicossocial em saúde, na medida em que se diferencia em
um ponto central, que é justamente o resgate da autonomia do sujeito e valorização do papel e do
conhecimento que o paciente traz de seu processo saúde-doença. Neste sentido, a reabilitação psicossocial
apresenta-se mais próxima do chamado modelo holístico da Medicina, onde a saúde é compreendida de
acordo com parâmetros subjetivos, experienciais e idiossincráticos e a responsabilidade última pelo
estado de saúde é atribuída a cada pessoa. Neste modelo, a ênfase é na promoção da saúde, e a educação
do paciente é parte integrante dos cuidados de saúde (Reis, 1998).
No âmbito da Saúde Mental, outras críticas têm sido feitas à idéia de retorno a um estado de
habilidade presente na palavra reabilitação, sendo considerada por alguns autores, uma idéia referenciada
no paradigma biomédico, baseado no binômio doença-cura, adquirindo, no âmbito deste paradigma um
“sentido ortopédico” (Costa-Rosa; Luzio & Yasui, 2003). O conceito de reabilitação psicossocial na
saúde mental ultrapassa a idéia de aplicação de técnicas de entretenimento e de (re) adaptação ao meio.
Saraceno (2001) deixa clara esta característica da reabilitação psicossocial quando afirma que a
mesma não é uma tecnologia, uma técnica, mas sim uma abordagem, uma estratégia global, que “implica
muito mais do que simplesmente passar um usuário de um estado de ‘desabilidade’ a um estado de

146
‘habilidade’, de um estado de incapacidade a um estado de capacidade” (p.14), reafirmando a dimensão
ética do conceito.
Saraceno (2001) também se refere à forte relação existente entre a reabilitação psicossocial e o
processo de transformação de toda a política dos serviços de saúde mental, pois, como vimos, são as
políticas públicas que viabilizarão a criação e o bom funcionamento dos serviços substitutivos que
trabalham centrados essencialmente na perspectiva da reabilitação.
As ações de reabilitação psicossocial são destinadas aos sujeitos que sofreram os efeitos
cronificadores das doenças mentais e, principalmente, das longas internações em hospitais psiquiátricos,
apresentando graves limitações nos afazeres cotidianos. Limitações essas resultantes do (quase)
aniquilamento da dimensão afetiva, relacional e social, característico do isolamento e dos maus tratos
vivenciados nos manicômios. Tais ações visam a retomada do crescimento pessoal de cada um destes
sujeitos, buscando o resgate de seu lugar social e o aumento da contratualidade afetiva, social e
econômica que viabilize o “melhor nível possível de autonomia do exercício de suas funções na
comunidade” (Pitta, 2001).
Neste mesmo sentido, Saraceno (2001) define a reabilitação psicossocial como um processo de
reconstrução e exercício pleno da cidadania seqüestrada nos hospitais psiquiátricos. Para este autor, a
reabilitação psicossocial baseia-se na busca de uma plena contratualidade nos três cenários definidos por
ele como os grandes cenários onde se desenvolvem as relações e a vida dos sujeitos em questão: a casa, o
trabalho com valor social e a rede social. A contratualidade aparece nos últimos anos como uma idéia
central dentro do processo de reabilitação, e diz respeito à habilidade do indivíduo em efetuar trocas,
tanto em nível material quanto afetivo.
A concepção de contratualidade também foi pensada por Kinoshita (2001) para quem esta se
configura como um elemento fundamental na construção de uma autonomia do sujeito. Para este autor, é
preciso estar atento para não estacionarmos no patamar da “assistência humanizada”, pois este tipo de
tratamento pode ser mais tolerante e até mais belo, mas é igualmente excludente e mantém uma
invalidação próxima à vivenciada em um hospital psiquiátrico. Concordando com Saraceno (2001), para
Kinoshita, o objetivo principal das ações de reabilitação deve ser o aumento do poder de contratualidade,
sem o qual não se pode falar de conquista de autonomia.
Saraceno (2001) define o cenário casa como o espaço onde estão presentes as relações mais
próximas do sujeito, ou seja, suas relações familiares. Em todos os trabalhos de reabilitação psicossocial é
ressaltada a importância do grupo familiar (seja ele biológico ou circunstancial) na recuperação do
sujeito. Assim, faz-se necessário trabalhar com o sujeito a possibilidade de aprimorar sua capacidade de
efetuar trocas, afetivas em especial, tendo em vista sua importância na constituição subjetiva de qualquer
sujeito.
O trabalho também é reconhecido como um cenário privilegiado, na medida em que, na nossa
cultura, ocupa um papel central na determinação de um lugar social para as diversas pessoas. A
profissionalização de usuários de serviços de saúde mental é de fundamental importância se desejamos

147
empreender uma real inserção social. Neste sentido, as ações de reabilitação psicossocial devem
considerar a necessidade de elaborar projetos de profissionalização e geração de renda para estes sujeitos.
A rede social enquanto cenário no âmbito destas reflexões é compreendida não somente enquanto
um grupo estável de relações que o sujeito estabelece, mas também diz respeito às relações cotidianas
necessárias à circulação e sobrevivência no meio social, como por exemplo, as relações ocasionais
ocorridas em um mercado, onde o sujeito deve efetuar trocas em diversas dimensões.
Podemos concluir que a reabilitação psicossocial é um conceito fundamental no âmbito da Saúde
Mental, e que fornece subsídios importantes para as reflexões que devem ser feitas nos novos serviços de
atenção, preconizados pela Reforma Psiquiátrica. Neste sentido, cabe lembrar que a reabilitação
psicossocial – tal como a Reforma Psiquiátrica como um todo - é um processo que deve estar fortemente
relacionado ao contexto social onde se pretende empreender suas ações. A necessidade desta proximidade
se justifica pelo fato de que, para a viabilidade e efetividade das ações de reabilitação, é preciso que este
projeto esteja em íntima sintonia com o sistema de significados que perpassam a cultura e balizam as
relações sociais que dela participam.
Mais uma vez, como se trata de um processo de inserção social de sujeitos portadores de intenso
sofrimento psíquico e transtornos decorrentes, mostra-se, de fundamental importância a compreensão das
representações sociais relativas à loucura que se fazem presentes nos diferentes contextos sociais e que
certamente influenciarão a forma como as ações serão propostas e aceitas, tanto pelos usuários como pela
população em geral.

Neste capítulo traçamos um panorama geral da Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro, sua
história e atualidade. A importância deste panorama reside no fato de que nosso objetivo é buscar
compreender o entrelaçamento entre as representações sociais da loucura e o contexto atual da saúde
mental no país, marcada pelo processo de implementação da Reforma Psiquiátrica.
Como foi ressaltado algumas vezes ao longo deste trabalho, a Reforma no Brasil é caracterizada
por uma grande complexidade e heterogeneidade de experiências, sendo necessário empreender alguns
recortes dentro dessa realidade, como forma de alcançarmos o objetivo deste trabalho, qual seja,
investigar as relações entre as representações sociais da loucura e a Reforma Psiquiátrica. Neste sentido
foi realizada uma pesquisa de campo, como forma de empreender este recorte na realidade brasileira. Esta
pesquisa de campo será apresentada a seguir, partindo primeiramente dos aspectos metodológicos
envolvidos nesta tarefa.

148
Parte II
A APROXIMAÇÃO DA EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS:
METODOLOGIA DA PESQUISA DE CAMPO

“Viajo, menos para descobrir e conhecer as


terras alheias por onde vou passear a minha
inteligência e o meu coração, do que para
conhecer e descobrir os territórios inexplorados
do meu espírito. Viajo, para enriquecer o meu
sentido de vida”.
(Anísio Teixeira)

1. REFLEXÕES METODOLÓGICAS

No primeiro momento deste estudo, foi traçada uma breve trajetória da loucura, a partir da
história de seus significados sociais e das formas como o ser humano vem lidando com este fenômeno ao
longo dos tempos. Como parte desta história, foi incluído o momento a partir do qual a loucura passa a ser
um objeto científico, sendo aprisionada pelo discurso que a psiquiatria construiu a seu respeito. Foi
privilegiado o período mais recente desta história, qual seja a emergência de movimentos de Reforma
Psiquiátrica, nos quais são apontadas a necessidade e viabilidade da construção de um novo lugar social
para a loucura, ao mesmo tempo em que se questiona a supremacia da ciência médica sobre ela.
Destacou-se ainda, dentro deste período, a experiência brasileira, com algumas de suas peculiaridades e
tendências.

Como vimos no capítulo sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil, esta abriga um sem número de
experiências que buscam superar a realidade manicomial ainda existente no país. A riqueza dessas
experiências, no entanto, decorre do fato de serem únicas, imbricadas em sua própria realidade e
referentes a um contexto específico que confere a cada uma delas contornos distintos e um jeito próprio
de crescer e se estabelecer. Assim, a Reforma Psiquiátrica brasileira pode ser caracterizada pela
diversidade e complexidade de suas ações, que compõem um cenário heterogêneo de experiências.
Como o objetivo deste trabalho foi investigar a relação entre as representações sociais da loucura
e o processo de implementação da Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro, foi necessário empreender
um recorte nesta realidade, diante da complexidade que a caracteriza. Tal recorte foi efetivado por meio
de uma pesquisa de campo realizada na cidade de Campinas/SP, que teve por objetivo ilustrar o processo
de implementação da Reforma Psiquiátrica no país.
Cabe ressaltar que relacionar as representações sociais da loucura com a Reforma Psiquiátrica se
justifica pelo fato de que a Reforma não se detém apenas no âmbito das políticas e da reorientação do
modelo de atenção. Subjacente às transformações do sistema de atenção está presente um desejo e,
principalmente, uma necessidade de transformação das representações sociais da loucura, como
conseqüência da constatação de que o êxito dos projetos de transformação na atenção à saúde mental
estão intimamente relacionadas com a aceitação dessa proposta em nível social. Ao longo da história se

149
construiu uma representação negativa da loucura, associando-a à periculosidade, imprevisibilidade e
incapacidade para a vida social, o que precisa ser considerado com cuidado no âmbito das experiências de
Reforma Psiquiátrica. É preciso que se construa uma representação de loucura que seja mais positiva, ou
pelo menos, não tão temível, negativa e ameaçadora para que as transformações na atenção tenham êxito
e continuidade.
O interesse primordial que guiou a pesquisa de campo foi a aproximação e conhecimento do
funcionamento de uma rede de serviços substitutivos em Saúde Mental, que estivesse em consonância
com os princípios e diretrizes nacionais para a Reforma Psiquiátrica no Brasil. A cidade de Campinas foi
escolhida por atender a este critério, tendo em vista contar com uma rede de saúde mental considerada
modelo para o país, demonstrando a viabilidade do projeto de reforma no contexto brasileiro.
A decisão de realizar uma pesquisa de campo deveu-se, também, ao próprio objetivo do presente
estudo. Para que se pudesse compreender as implicações mútuas entre as representações sociais da
loucura e a reforma psiquiátrica, foi necessária a vivência de um contexto no qual a reforma fosse uma
realidade em desenvolvimento. Vivenciar de perto uma experiência como esta, possibilitou o
conhecimento dos elementos cotidianos que favorecem ou obscurecem os caminhos da transformação das
formas de cuidar em saúde mental. O recorte dessa experiência em particular nos serviu de exemplo do
processo de implementação da Reforma como um todo, por indicar alguns elementos importantes
relativos à tensão entre as representações da loucura e da própria Reforma.
O processo de implementação da reforma psiquiátrica em Campinas pode ser testemunhado pela
construção de uma rede de serviços substitutivos ao manicômio. Construção essa que se deu de forma
gradual e ainda encontra-se em fase de desenvolvimento. A implantação desta rede vem colocando em
jogo as diversas representações acerca da loucura advindas dos vários segmentos sociais, que passaram a
negociar tais representações entre si, à medida em que a cidadania e o poder de contratualidade dos
usuários foram sendo resgatados dentro desse processo.
Assim, o foco da pesquisa de campo no município de Campinas recaiu sobre o conhecimento do
processo de construção desta rede de saúde mental, suas características e sua história. Uma rede de saúde
mental pode ser caracterizada pelo conjunto de serviços diversificados que disponibiliza aos sujeitos
acometidos de intenso sofrimento psíquico nos diversos momentos de suas vidas, nos quais necessitam
diferentes tipos de cuidado. Esta rede também abarca o conjunto de relações nas quais estes sujeitos são
envolvidos, os vínculos que são estabelecidos e as ações de reabilitação psicossocial empreendidas no
sentido de resgatar a cidadania e autonomia destes sujeitos.

O conceito de rede também deve ser entendido para além das políticas e serviços de saúde, pois
engloba a própria comunidade onde esta rede é desenvolvida, podendo incorporar parcerias com outras
organizações oficiais e não governamentais. Este conceito ampliado da rede de saúde mental remete à
idéia de uma rede de apoio que visa construir e descobrir os recursos existentes na cidade, abrindo
“possibilidades de participação não institucionalizada das pessoas em comunidade” (Campos, 2003).

150
Desta forma, conhecer a rede de cuidados na qual os sujeitos acometidos de intenso sofrimento
psíquico estão inseridos possibilitou a identificação das relações que estes sujeitos estabeleciam e
percebiam como significativas, permitindo uma melhor compreensão dos diversos olhares e ações a eles
dirigidos. Permitiu conhecer os significados que são atribuídos a estes atores sociais e as práticas
resultantes destas significações. Além disso, o conhecimento do funcionamento de uma rede de saúde
mental específica, bem como de sua história, forneceu dados importantes para a compreensão do próprio
processo de implementação da Reforma Psiquiátrica como um todo e seus princípios norteadores.
A investigação da rede de saúde mental da cidade de Campinas foi realizada a partir de uma
perspectiva antropológica, na medida em que a etnografia foi utilizada como principal recurso. Adotamos
o termo etnografia no sentido que Geertz (1998) lhe conferiu, qual seja, uma pesquisa longa e engajada,
que tem por objetivo conhecer os detalhes do contexto onde a pesquisa ocorre, permitindo, desta forma, o
acesso ao saber local. A etnografia consiste em uma pesquisa flexível e capaz de abarcar desde os
elementos mais “macro” - relativos ao contexto sócio-político e institucional - até os elementos “micro” -
relativos à dimensão subjetiva presente e constantemente atualizada nas relações interpessoais. Uma
pesquisa etnográfica permite conhecer as nuances e as sutilezas dos significados que perpassam as
relações sociais.
Da Mata (1984, p.154) situa a pesquisa de campo como uma oportunidade de retornar ao estado
infantil da “plena potencialidade individual, único modo de voltar à condição de seres dispostos a sofrer
um novo processo de aprendizagem”. Corroborando a afirmação do antropólogo, este momento de
mergulho no campo de pesquisa conduziu ao aprendizado de novas formas de relacionamento com a
loucura, engendrando um processo de constante ressignificação da mesma. Neste sentido, Da Mata
aproxima a pesquisa de campo a um ritual de iniciação, na medida em que ambos permitem um
afastamento do contexto de origem, propiciando o início de um intenso processo de aprendizagem e
conferindo (ao pesquisador e ao iniciado) o direito de voltar ao contexto original de modo mais profundo.
No caso dos ritos de iniciação, a volta do iniciado ao contexto de origem traz consigo um reconhecimento
da dignidade de suas tradições, levando-o a uma atitude de firmeza na perpetuação das mesmas.
No caso da pesquisa de campo empreendida neste estudo, houve um confronto da pesquisadora
com as peculiaridades de uma experiência concreta, por meio da qual novos elementos vieram compor a
visão do antigo objeto (neste caso a loucura) e da antiga experiência (a Reforma Psiquiátrica vivenciada
em Brasília de forma próxima e a reforma nacional, conhecida de forma teórica e abstrata). A experiência
da saúde mental em Campinas, com suas especificidades sociais, políticas e representacionais, abriu
novas possibilidades de entendimento e ressignificação da Reforma Psiquiátrica, permitindo uma melhor
compreensão dos diferentes formatos que esta adquire em outros lugares do país. Permitiu também um
outro olhar sobre a loucura, menos romântico e mais voltado para suas reais necessidades e inúmeras
possibilidades de reinserção social.

151
Situando o campo de pesquisa
“Serviços democráticos e respeitadores dos portadores de
direitos – pacientes, usuários, ou doentes, chamemo-los
como quisermos – cuidam bem não só dos pacientes,
mas de todos os que interagem com o serviço”.
(Willians Valentini)

Campinas é a segunda maior cidade em termos populacionais do Estado de São Paulo, conhecida
também como o pólo tecnológico do Estado. A escolha por esta cidade é justificada pelo fato de
Campinas ser considerada, desde 1993, pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização
Pan Americana de Saúde (OPAS), uma referência para a área da Saúde Mental. A experiência de
Campinas é considerada modelo de implementação da Reforma Psiquiátrica para toda a América Latina,
por demonstrar a viabilidade da transformação das formas de cuidar em Saúde Mental.
Esta experiência teve inicio em maio de 1990, quando foi firmado um convênio de co-gestão
entre a Prefeitura de Campinas e o Sanatório Dr. Cândido Ferreira, visando a transformação deste hospital
psiquiátrico em uma rede de serviços substitutivos, de acordo com os princípios preconizados pela
Reforma Psiquiátrica.
Este convênio foi firmado em um momento histórico e político favorável a projetos desta
natureza, pois o país vivenciava um processo de redemocratização das suas instituições, que teve como
marco importante, a promulgação da Constituição de 1988, considerada a constituição cidadã. Em 1989
alguns partidos de esquerda assumiram, pela primeira vez na história do país, as prefeituras de algumas
cidades, entre elas Santos, Campinas, São Paulo, Porto Alegre. Essa novidade vem acompanhada de um
desejo de se democratizar ao máximo a gestão pública em favor da imensa maioria da população excluída
do campo do cuidado, da educação, da saúde, e outras áreas sociais.
Em maio de 1989, é feita uma intervenção por parte da Secretaria de Saúde de Santos no Hospital
Psiquiátrico Anchieta, dando início imediatamente ao fechamento deste hospital e à criação de uma rede
de serviços abertos para o cuidado em saúde mental. Essa experiência, como apresentamos anteriormente,
é considerada um marco importante na Reforma Psiquiátrica Brasileira e serviu como um modelo para
iniciativas semelhantes no restante do país.

Campinas, em maio de 1990, também inicia um processo de transformação do modelo


assistencial para a saúde mental, contando com o intercâmbio de experiências e colaboração de
profissionais que trabalhavam na cidade de Santos. Nesta data foi feita uma intervenção por parte da
prefeitura de Campinas no Sanatório Dr. Cândido Ferreira, diferente, no entanto, da intervenção realizada
no Hospital Anchieta.
Ao invés do imediato fechamento do hospital psiquiátrico, optou-se por um processo de abertura
gradual do mesmo, por meio de um convênio de co-gestão (a ser detalhado no capítulo seguinte) entre o
Sanatório Dr. Cândido Ferreira e a prefeitura do município. A partir deste momento, o Sanatório passou a
se chamar Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF) e iniciaram-se várias ações em seu interior, com

152
vistas à desinstitucionalização de seus moradores. Tais ações também visavam, juntamente com a
desinstitucionalização, a criação de equipamentos diversificados de saúde mental que fossem
substitutivos ao antigo hospital psiquiátrico. Desde então, Campinas foi ampliando sua rede de atenção à
saúde mental, tornando-se, a partir de 1993, um modelo para o Brasil, tanto pela diversidade de
dispositivos de cuidado criados, quanto pelo pioneirismo das ações implementadas.
Campinas foi uma das primeiras cidades brasileiras a integrar, na rede pública de cuidados em
saúde mental, um número significativo de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), antes mesmo da
regulamentação deste tipo de serviço em nível federal, no ano de 2000.
Em 1990, ainda no início do processo de desinstitucionalização, foi elaborado um projeto de
moradias extra-hospitalares, que seriam destinadas à população moradora do hospital psiquiátrico e que
havia perdido seus vínculos sociais e familiares. A primeira moradia, denominada “Lar Abrigado” foi
inaugurada em dezembro de 1991 e a segunda, chamada “Pensão Protegida”, em janeiro de 1995 (Furtado
& Pacheco, 1997).
Entre os anos de 1996 e 98 foram criadas mais algumas moradias, no sentido de experimentar
esta nova modalidade de atenção. O ano de 1999, no entanto, é marcado pela criação de inúmeras
moradias, tendo em vista a viabilidade verificada nas experiências anteriormente realizadas. A criação
destas moradias propiciou o fechamento da ala Paraíso, que compunha a Unidade de Reabilitação de
Moradores do SSCF e a criação de um Centro de Atenção Psicossocial - CAPS com os recursos humanos
e financeiros desta ala. No início do ano de 2001, já existiam na cidade 21 moradias extra-hospitalares e
ao final do ano de 2003 estas eram em número de 27. Atualmente, segundo dados do Ministério de Saúde
(2004b), Campinas conta com 30 serviços residenciais terapêuticos que abrigam 148 pessoas, sendo a
segunda cidade com o maior número de usuários atendidos por estes equipamentos. Este número é
superado apenas pela cidade de Casa Branca, SP, que possui 48 moradias em funcionamento, atendendo
198 pessoas (MS, 2004b).

No Brasil, a cidade de Campinas também foi uma das primeiras a contar com uma rede integrada
de serviços de Saúde Mental, como parte da rede de saúde do município. A partir de 1992, iniciou-se o
processo de implementação dos CAPS na cidade, que até então contava somente com o Hospital
Tibiriçá44 e o Serviço de Saúde Cândido Ferreira45. Em 1992 foram criados pela Secretaria de Saúde do
Município os CAPS Aeroporto e Integração. Nos anos de 2000, 2001 e 2002 foram criados,
respectivamente, os CAPS Estação, Toninho e Esperança, gerenciados pelo SSCF. Foi criado em 2003,

44
Hospital psiquiátrico localizado em Joaquim Egídio, um distrito da cidade de Campinas, parte da região Leste do
município. Também foi feita uma proposta de co-gestão para o Hospital Tibiriçá, cujo processo de abertura da
instituição teve características diferentes do realizado no SSCF. Esta instituição foi fechada e seus pacientes e
moradores foram encaminhados aos novos serviços da rede de saúde mental.
45
O Serviço de Saúde Cândido Ferreira (antigo Sanatório Dr. Cândido Ferreira) já havia iniciado seu processo de
abertura e já contava com a Unidade de Reabilitação de Moradores, o Hospital Dia, o Núcleo de Oficinas de
Trabalho e o Setor de Internação. Esses núcleos e serviços, entretanto, ainda se restringiam ao espaço físico do
antigo hospital e atendiam a demanda de atenção à saúde mental em toda a cidade.

153
pela Secretaria Municipal de Saúde, o CAPS Davi Capistrano, integrando o conjunto de 6 CAPS que
atualmente compõem a rede de saúde mental do município.
Também podem ser considerados como parte desta rede de atenção à saúde mental, juntamente
com os CAPS e as residências terapêuticas: os três Centros de Convivência46; Núcleo de Atenção aos
Dependentes Químicos (NADEC) e Núcleo de Atenção à Crise (NAC), criados em 2001; o Centro de
Referência e Informação em Alcoolismo e Drogadição - CRIAD; Núcleo Clínico47 do SSCF; um CAPSad
infanto juvenil - CRAISA, criados em 2002; e o Centro de Vivência Infantil - CEVI, criado em 1996.
Todos estes equipamentos que fazem parte da rede de saúde mental iniciada a partir de 1992, vieram
compor o sistema de saúde do município de Campinas, que é estruturado de acordo com os princípios e
diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). (Para uma melhor visualização destes serviços e suas datas
de criação, consultar ANEXO 3).
O sistema de saúde de Campinas - que abrange também a saúde mental - é marcado por uma
grande complexidade, pois atende não somente a população do município, de aproximadamente 1 milhão
de habitantes, mas também supre uma demanda não atendida no entorno, conhecido como “Grande
Campinas”, que abarca algumas das cidades vizinhas de menor porte. Atualmente, este sistema é
composto por diferentes tipos de unidades de saúde, de acordo com os dados de 2003 da Secretaria
Municipal de Saúde48, sendo estas:

► 46 Centros de Saúde (CS) ou Unidades Básicas de Saúde: serviços responsáveis pela


atenção básica, inseridos em um território e atendendo a uma população bem definida. Cada CS foi
dimensionado para atender 20.000 habitantes, contando com equipes multiprofissionais, envolvendo
médicos nas especialidades básicas (clínicos, pediatras, gineco-obstetras), enfermeiros (com
responsabilidades voltadas para as áreas da mulher, criança e adultos), dentistas, auxiliares de
enfermagem, auxiliares de consultório dentário e outros profissionais de apoio. Cerca de 1/3 dos CS têm
equipes mínimas de saúde mental, compostas por médicos, psiquiatras, psicólogos e terapeutas
ocupacionais. Os CS também estão vinculados a um conselho local de saúde com representantes da
população usuária, dos trabalhadores e da Secretaria Municipal de Saúde;

► 3 Policlínicas: unidades de saúde secundárias que concentram os ambulatórios de 28


especialidades médicas;

46
Centro de Convivência e Arte do SSCF, criado em 1997; Centro de Convivência e cooperativa “Toninha”,
localizado na região Noroeste e um Centro de Convivência na região Sudoeste, criado em 1998, por esforço de um
funcionário do Centro de Saúde. Este Centro de Convivência encontrou resistências e falta de apoio no momento de
sua criação. Os gestores do governo de 2001 a 2004 propuseram um projeto de revitalização deste serviço.
47
O Núcleo Clínico é situado dentro do espaço físico do SSCF e é um núcleo de pacientes ainda moradores do
hospital, que estão em idade avançada e possuem quadro clínico e psiquiátrico comprometidos, devido aos longos
anos de internação.
48
Dados recuperados em agosto de 2004 do site oficial: www.campinas.sp.gov.br/saude/o_sus_cps.htm. Cabe
lembrar que os dados aqui apresentados são oficiais e que não foi objetivo desta pesquisa verificar o funcionamento
de todos os serviços citados nesta parte do trabalho, podendo haver algumas diferenças entre os dados oficiais e o
funcionamento cotidiano dos serviços.

154
► 14 Centros de Referência: unidades de Saúde com equipes multiprofissionais que têm por
objetivo a atenção à saúde focada a grupos de risco específicos, além da qualificação dos profissionais
das outras Unidades de Saúde do SUS Campinas. Os CAPS que compõem a rede de saúde mental estão
incluídos como centros de referência no sistema de saúde do município;

► Sistema de Urgência e Emergência, que conta com 3 pronto-atendimentos e o serviço de


Atendimento Médico de Urgência (SAMU);

► Programa Paidéia de Saúde na Família: 148 equipes locais de referência que fazem um
atendimento em saúde de forma capilarizada, facilitando o acesso à saúde para um número maior de
pessoas, acolhendo a demanda e viabilizando o encaminhamento a uma unidade básica de saúde e,
quando necessário, a um serviço de referência (atenção secundária). Para 04 ou 05 Equipes de Saúde da
Família há um apoio matricial da Equipe Local de Saúde Mental, do núcleo de Saúde Coletiva, e demais
profissionais da Reabilitação. O Programa Paidéia segue os moldes das diretrizes nacionais propostas
pelo Ministério da Saúde, referentes ao Programa Saúde da Família (PSF).

► Outras Unidades: Laboratório de Patologia Clínica, Serviço de atendimento domiciliar e


ambulatório do CEASA.

A crescente complexificação do sistema de saúde em Campinas levou à sua distritalização em


1998, como forma de viabilizar um melhor atendimento à população, por meio da descentralização da
administração e atuação das unidades de saúde. A distritalização é uma das possibilidades de gestão da
saúde abertas pelo princípio da descentralização, preconizado pelo SUS. Diz respeito a um processo de
responsabilização crescente, em que cada Distrito de Saúde passa a exercer papel de gestão do sistema no
seu território, que deve abranger cerca de 200.000 habitantes. As vantagens da descentralização na forma
da distritalização reside no fato de que a administração se torna mais próxima da população,
possibilitando parcerias que possam oferecer resoluções mais adequadas e contextualizadas aos
problemas cotidianos das unidades de saúde.

Em Campinas, o sistema de saúde foi subdividido em cinco distritos, que passaram a ser
responsáveis pelo planejamento e gestão da saúde em cada uma das 5 regiões da cidade, conforme figura
1 abaixo. Cada um dos distritos foi criado tendo como algumas de suas metas oferecer supervisão às
unidades de saúde nas áreas de gerência, enfermagem, saúde mental, médica, farmácia, vigilância
epidemiológica e sanitária e odontologia. Aos distritos também foi atribuída a oferta de suporte para
transporte e recursos humanos, além de vigilância sanitária para estabelecimentos industriais, comerciais,
produtos, saúde ambiental, saúde do trabalhador e prestadores de serviços.

Em cada distrito trabalha um conjunto de pessoas denominadas “apoiadores”, que são


responsáveis por atender às demandas das unidades de saúde, mantendo um contato permanente com tais
unidades e suas gerências. De certa forma, cada apoiador vai se “especializando” na atenção a alguma

155
área específica. A saúde mental, por exemplo, conta com um apoiador específico em cada distrito, que é
responsável por esta área.

■ Região Noroeste ■ Região Norte ■ Região Sudoeste ■ Região Sul ■ Região Leste

● CAPS * Serviços Residenciais Terapêuticos ☼ Centros de Convivência ▲ SSCF

Figura 16: Mapa da cidade de Campinas, dividido nas regiões correspondentes aos distritos de saúde.

A região Leste é a maior região em termos geográficos, contando com uma população total de
218.354 habitantes no ano de 2004 (dados do censo demográfico, IBGE49). Esta região é marcada pela
heterogeneidade dos bairros que a compõem. Em seu território estão localizados os bairros considerados
mais “nobres” da cidade, ocupados por uma população de alto poder aquisitivo, e bairros de periferia,
com uma população de classe média, e algumas favelas. A região também abrange bairros do centro da
cidade e uma grande área rural. Esta é a região de Campinas onde há, proporcionalmente, uma menor
dependência do SUS, devido ao fato de uma parcela importante de sua população ser oriunda de classes
economicamente favorecidas.

A região Leste, devido à heterogeneidade de sua população abarca diferentes subculturas,


necessidades e formas de organização das comunidades. Algumas comunidades que compõem tal região
possuem uma forte organização social na forma de conselhos locais de saúde, educação e segurança.

49
Os dados demográficos e as informações sobre as unidades de saúde relativos à todas as regiões foram extraídos
do site oficial de Campinas (www.campinas.sp.gov.br), atualizado no início do ano de 2004.

156
Outras comunidades, entretanto, pertencentes à mesma região, não têm nenhum tipo de organização com
finalidade de controle social, em especial os bairros considerados de alto poder aquisitivo.

O Distrito Leste é responsável por 8 centros de saúde, um ambulatório de doenças sexualmente


transmissíveis e AIDS, um atendimento domiciliar terapêutico, o Centro de orientação e apoio sorológico,
um centro de reabilitação física, o CRIAD, o CEVI e o CAPS Esperança. Este distrito também conta com
22 equipes do Programa Saúde da Família.

A região Norte também abarca uma diversidade de bairros, no que tange à condição sócio-
econômica, cobrindo uma população de 183.802 habitantes, oriundos de diferentes classes sociais. O
Distrito Norte é responsável por 8 centros de saúde, o ambulatório do CEASA, um pronto atendimento,
21 equipes do Programa Saúde da Família e 4 unidades de referência, dentre as quais está o CAPS
Estação.

O CAPS Estação faz parte dos serviços que compõem o distrito norte, entretanto, está situado no
Bairro Guanabara, que é um bairro geograficamente pertencente à região Leste. Este foi o primeiro CAPS
criado e gerenciado pelo SSCF e, no momento de sua criação, a região Leste já contava com a cobertura
oferecida pelo Hospital Dia, localizado no SSCF (região Leste), mas ainda não havia um CAPS de
referência para a região sul. Desta forma, foi escolhido para sua instalação um bairro localizado no centro
da cidade, que seria um local de fácil acesso para os usuários tanto da região norte como sul.

Devido à sua localização, o CAPS Estação acaba tendo um aumento na sua demanda, pois muitos
usuários moradores de bairros do centro (pertencentes à região Leste e, portanto, referenciados nas
unidades de saúde do distrito Leste) acabam procurando este serviço, devido à maior proximidade do
mesmo. Assim, este serviço acaba atendendo uma demanda que, a princípio, seria de responsabilidade do
distrito Leste, demonstrando uma certa flexibilidade em relação a este processo de distritalização. Os
critérios de encaminhamento dos usuários aos serviços que compõem a rede de saúde mental levam em
consideração outros fatores para além do local de moradia estritamente. Fatores como a proximidade dos
serviços e os vínculos estabelecidos entre usuários e equipes profissionais também são considerados
relevantes.

A Região Sul50 é uma região de classe média e baixa, que abarca também vários bairros de classe
econômica menos favorecida, se aproximando da periferia da cidade. O distrito sul de saúde é responsável
por 12 centros de saúde, 2 policlínicas, um pronto atendimento, um serviço de atendimento domiciliar,
35 equipes do Programa Saúde da Família, um centro de referência de saúde do trabalhador e o CAPS
Sul, denominado CAPS Antônio da Costa Santos, também conhecido por CAPS Toninho.

As regiões Noroeste e Sudoeste são subdivisões da antiga região Oeste, que foi dividida em
virtude do número elevado de habitantes. Ambas as regiões abarcam uma população de baixo nível sócio-

50
No site oficial da cidade de Campinas, não há dados sobre a população da região sul, pois esta parte da página está
em processo de construção.

157
econômico, constituindo-se em uma área de alta dependência do SUS. Segundo informações das gerentes
dos CAPS Integração e Novo Tempo, a dependência do SUS é de aproximadamente 90%.

A região Noroeste51 abriga uma população de 158.959 habitantes, que conta com 26 equipes do
Programa Saúde da Família, 8 centros de saúde e o CAPS Integração, como única unidade de referência,
sendo esta uma região carente de unidades de saúde. Vale ressaltar que o CAPS Integração, até o final do
mês de fevereiro de 2004, data que se encerrou esta pesquisa de campo, ainda funcionava na modalidade
CAPS II, ou seja, não tinha um funcionamento 24 horas, apesar de haver uma grande demanda para este
tipo de atendimento.
Na região Sudoeste habita uma população de 197.711 pessoas. Esta região conta com 10 centros
de saúde, um ambulatório de especialidades, um pronto atendimento, um laboratório de análises clínicas e
o CAPS Novo Tempo como unidade de referência. O CAPS Novo Tempo se chamava CAPS Aeroporto e
funcionava na modalidade CAPS II até o ano de 2001, quando foi transformado em um CAPS 24 horas,
com oito leitos de retaguarda, mudando também seu nome.
Nesta etapa da pesquisa de campo, foi feito um mapeamento de alguns serviços que compõem a
rede de saúde mental, tais como: os CAPS, os serviços residenciais terapêuticos e os outros equipamentos
diretamente ligados ao atual SSCF. Não fizeram parte de nossa amostra os serviços: CRIAD, o CRAISA
e o CEVI.
A pesquisa de campo consistiu na investigação da história dos serviços, da relação destes serviços
com a comunidade e estratégias de aproximação com a mesma, o que permitiu examinar as
Representações Sociais da Loucura e seu processo de transformação neste contexto específico de
implementação da Reforma Psiquiátrica.
Também foi alvo de investigação o trabalho realizado com as equipes e usuários para a
implementação do novo modelo de atenção - representado pela rede de serviços substitutivos - e as
conseqüências para estes segmentos sociais da transformação do antigo modelo hospitalocêntrico. O
contexto político no qual esta rede foi sendo construída, incluindo o momento em que a pesquisa foi
realizada, também foi objeto de investigação.

51
Os dados sobre as unidades de saúde da região Noroeste foram atualizados no site oficial em novembro de 2003

158
Ajustando teoria e objeto: por que uma abordagem culturalista e monográfica como opção
metodológica?
“A pesquisa começou a explicar a Eternidade.
É, antes de qualquer coisa, o gesto do velho camponês que se vai,
revolvendo as pedras dos campos, descobrindo lesmas e gafanhotos.
Ou milhares de formigas atarefadas. A pesquisa é a
caminhada pelos bosques e pântanos para tentar explicar,
vendo folhas e flores, porque a vida apresenta tantos rostos...
Também é um olhar para o passado. Para encontrar
nos antigos alguns grãos de sabedoria,
capazes de germinar no coração dos homens de amanhã”.
(Gerard Martin, Um certo olhar sobre a pesquisa)

A metodologia de uma pesquisa está intimamente ligada às características do objeto a ser


investigado, bem como ao aporte teórico utilizado. No presente estudo, temos fundamentado nossas
reflexões em pressupostos da Teoria das Representações Sociais (TRS), conhecida como a “grande
teoria” na forma como foi elaborada por Moscovici (1961⁄1978).
A TRS abarca um vasto campo de conhecimento, tendo na interdisciplinaridade uma de suas
características mais marcantes. As inúmeras possibilidades de relações que podem ser estabelecidas com
outras disciplinas confere à TRS uma transversalidade, que “interpela e articula diversos campos de
pesquisa, reclamando não uma justaposição, mas uma real coordenação de seus pontos de vista” (Jodelet,
2000, p.25).
A TRS, bem como os fenômenos sociais por ela investigados, situam-se na interface da
Psicologia Social com as demais ciências sociais, especialmente a Sociologia, a Antropologia e História.
Uma leitura interdisciplinar dos fenômenos de representações sociais é possível, visto que se tratam de
fenômenos produzidos e significados no espaço de interface entre o indivíduo e o coletivo, ou seja, em
um espaço onde as ciências sociais podem dialogar. Trata-se também de fenômenos com uma
historicidade, pois possuem uma trajetória marcada pela transformação dos significados que lhes foram
atribuídos, ou herdados de outros antigos fenômenos, o que explica a interface da TRS com a História.
Tradicionalmente, as ciências sociais e humanas se apropriam de uma ou outra destas dimensões
(social, coletiva, histórica), e o advento da TRS trouxe uma nova perspectiva para as ciências sociais, na
medida em que reorienta esses campos tradicionais.
A “grande” Teoria das Representações Sociais com seus pressupostos gerais, fornece conceitos
de base que estruturam a análise dos processos de construção e funcionamento das representações sociais.
Permite, entretanto, uma flexibilidade na abordagem de seus objetos de investigação, na medida em que
abarca os olhares de diversas ciências sociais. Assim, a “grande teoria” não exclui a possibilidade de
detalhamentos e outras possíveis elaborações teóricas que lhe sejam compatíveis. (Almeida, 2001).
Atualmente, a grande teoria apresenta alguns desdobramentos, dos quais se destacam a
abordagem culturalista, desenvolvida por Denise Jodelet, a abordagem societal de Willem Doise e a

159
estruturalista de Jean-Claude Abric. Tais abordagens são compatíveis entre si e com os pressupostos da
grande teoria, diferenciando-se a partir das diversas necessidades investigativas (Almeida, 2001).
A variedade de enfoques, por meio dos quais as representações sociais podem ser investigadas,
também nos remetem ao caráter plurimetodológico da TRS, ou seja, a possibilidade de se recorrer à
combinação de diferentes métodos e técnicas de pesquisa. A escolha metodológica também se relaciona,
de alguma forma, com a vertente teórica escolhida dentro da grande teoria.
Dentre os três enfoques teóricos supracitados, no presente estudo foi enfatizada a abordagem
culturalista desenvolvida por Denise Jodelet. Nossa escolha se justifica por ser esta uma abordagem que
considera as representações sociais um importante instrumento de conhecimento da dinâmica cultural e
reflexo dos processos históricos, referentes a cada contexto específico.
Segundo Jodelet (2000. p.11), no processo de produção das representações sociais, bem como de
outras construções mentais coletivas, estão imbricadas as especificidades “históricas, regionais,
institucionais e organizacionais” do contexto investigado. Tais especificidades, no entanto, não estariam,
como ela afirma, a serviço de um “particularismo daninho”, mas permitem uma melhor compreensão dos
processos de produção das representações sociais como um todo, em sua relação com cada um destes
elementos específicos presentes em todas as culturas. Pode-se assim, a partir do conhecimento destas
relações, fazer algumas analogias com outros contextos que considerem as mesmas dimensões. Desta
forma, os estudos de contextos específicos podem ser ilustrativos para compreender outros contextos mais
gerais, idéia que se mostra adequada aos propósitos do presente estudo.
No âmbito deste estudo, optou-se por uma abordagem monográfica, que se caracteriza pela
investigação de um mesmo fenômeno a partir do uso de variadas técnicas, durante um certo espaço de
tempo, neste caso, seis meses (de agosto de 2003 a fevereiro de 2004). Esta abordagem foi utilizada por
Denise Jodelet (1989) em sua investigação das representações sociais da loucura entre os habitantes da
Colônia Familiar d’Ainay-le-Chateau, descrita anteriormente no capítulo de contextualização da loucura.
No primeiro momento de sua pesquisa, Jodelet apóia-se em um enfoque qualitativo (observação
participante e história da instituição). Em seguida, usa técnicas quantitativas (interrogatório com uma
amostra de enfermeiras e recenseamento), voltando, na última fase, a utilizar uma técnica qualitativa
(entrevista em profundidade) (Almeida, 2001). Em sua pesquisa, Jodelet combina a abordagem
monográfica com uma abordagem etnográfica, o que inspirou a elaboração da metodologia do presente
estudo, no qual também foram combinadas as abordagens monográfica e etnográfica.
A pesquisa realizada por Jodelet (conforme citado por Almeida, 2001) é um exemplo das
inúmeras possibilidades metodológicas que a TRS abre ao pesquisador. Ao mesmo tempo, a TRS permite
o delineamento de uma pesquisa “auto-reflexiva”, ou seja, que vai sendo metodologicamente reorientada
e redimensionada ao longo do processo de aproximação do objeto pelo pesquisador.
Na presente pesquisa de campo também foram empregadas várias técnicas de investigação, quais
sejam: a observação participante, a utilização de registros históricos - documentos e materiais áudios-
visuais produzidos pela equipe e usuários do SSCF – e entrevistas com agentes de saúde.

160
“A razão científica para o uso destes múltiplos métodos na investigação de um único fenômeno é
que eles incorporam fontes diferentes de erro”, nos informa Farr (1993). Este autor subdividiu os dados
de pesquisa em reativos e não reativos, em decorrência do contato direto ou não com outras pessoas. No
caso do presente estudo, utilizamos tanto dados reativos (observação participante e entrevistas), como
dados não reativos (toda a memória documentada utilizada como fonte de pesquisa).

A construção do desenho da pesquisa


Primeiro não basta só a receita. É preciso amor, essa
matéria fofa e lisa, informe. E de todas as formas pode
ser cortada, de ‘cumpridim’ ou às rodelas e servido.
(Shêro)

A necessidade de entrar no campo de pesquisa e, principalmente, de criar uma certa familiaridade


com este campo, levou à utilização da técnica da observação participante, bastante comum nos estudos
em meio real e aprimorada no campo da etnografia, o que aponta para um diálogo deste estudo com o
campo da Antropologia. A observação participante é importante para este tipo de estudo, pelo fato de
apontar para “um certo número de dificuldades que se relacionam com a necessidade de se fazer aceitar
pelo grupo observado, de se integrar a ele e de achar ali o seu lugar, assim como ao desenvolvimento e à
consignação das observações”. (Jodelet, 2003).
A observação participante permite que o pesquisador se familiarize com o campo de estudos, seus
códigos de valores e crenças, e as formas com que os membros deste campo interagem entre si. É um
importante instrumento para conhecer os comportamentos e atitudes que os sujeitos que habitam o
universo pesquisado assumem diante das situações cotidianas e os significados desses atos e atitudes
perante o grupo social. Além disso, a observação participante fornece dados que não estão escritos ou
registrados em nenhum lugar, por que esta acontece mediante uma “abertura ao outro”, favorecendo que o
pesquisador também participe como co-autor da realidade a ser estudada.
Jodelet (2003) fala da “impregnação” como um aspecto importante da observação participante, na
medida em que é justamente esta “porosidade”, essa espécie de “fusão” do pesquisador com a vida
coletiva estudada, que
... dá acesso a um série de impressões, de modos de participação, entrando na familiarização
com o meio, e mesmo se eles não estiverem sempre conscientes nem consignáveis, vão formar
uma trama de sensibilização às maneiras de fazer, de dizer e de pensar características da
população estudada, e favorecer sua compreensão” (p.27).

Um ponto importante que favoreceu a inserção no campo de pesquisa foi o fato de estar em um
campo de trabalho que era familiar, pois já havia trabalhado no âmbito da Saúde Mental, e já há alguns
anos vinha refletindo sobre este objeto, no contexto da prática profissional. Entretanto, em relação à
experiência específica de Campinas pouco ou quase nada sabia a seu respeito, salvo o fato de que era uma
experiência modelo. Tive um primeiro acesso a esta experiência por meio de uma palestra do
superintendente do SSCF, ministrada em uma das reuniões ordinárias do Conselho Nacional de Saúde.

161
Este proposital desconhecimento foi bastante instigante, pois permitiu vivenciar o campo de
pesquisa da perspectiva de uma observadora ingênua. O desconhecimento do campo, bem como o
despojamento de um percurso metodológico rigidamente estabelecido e elaborado a priori, possibilitou o
“exercício da intuição” e uma abertura às surpresas que o contato com os personagens deste cenário
foram proporcionando. Esta forma de entrar no campo de pesquisa foi parte de uma escolha metodológica
que permitiu trilhar caminhos indicados pelo próprio objeto pesquisado, a fim captá-lo de forma mais
sensível e livre de pré-conceitos. Os acontecimentos que foram se sucedendo ao longo da convivência
com os atores desta rede de cuidados em saúde mental foram guiando os passos metodológicos e,
certamente, ampliando os interesses e objetivos que haviam sido colocados antes da chegada a campo.
Esta imersão no campo a ser pesquisado é um procedimento adequado aos pressupostos da Teoria
das Representações Sociais, na medida em que o que se busca é justamente o conhecimento produzido a
partir da interação entre os diversos atores sociais que negociam sentidos acerca de um objeto específico.
Desta forma, é preciso que o pesquisador primeiramente se familiarize com a complexa trama de
significados que são engendrados no cotidiano a ser investigado. Assim, imerso no contexto, o
pesquisador vai ajustando sua investigação à natureza do objeto pesquisado, de forma a abarcar outros
olhares possíveis, que talvez, sem essa imersão, não poderia perceber e acolher.
Essa forma de proceder à construção da metodologia não se restringe à Teoria das
Representações Sociais, sendo também adotada por outras abordagens, como por exemplo, a perspectiva
co-construtivista que considera a intuição um elemento central no desenvolvimento dos procedimentos de
pesquisa. Branco e Valsiner (1997) chegam a considerar o trabalho de pesquisa como uma forma de arte,
na qual a intuição é tomada como uma ferramenta imprescindível, presente em todos os momentos da
pesquisa, desde a elaboração da pergunta até a análise dos dados.
A partir das observações participantes realizadas, foi possível perceber a existência de uma
memória (registrada ou não) partilhada entre os diversos atores que compõem a rede de saúde mental de
Campinas. Memória fortemente arraigada na história de transformação do antigo Sanatório Dr. Cândido
Ferreira em Serviço de Saúde Cândido Ferreira, a partir do convênio de co-gestão em 1989. Memória que
cimenta o discurso e a prática social dos diversos atores que agem e interagem com o atual modo de
funcionamento da rede de saúde mental de Campinas, configurando-se como uma memória social, de
acordo com o conceito elaborado por Charles Bartlett (1932, conforme citado por Bosi, 1987).
A elaboração do conceito de memória social guarda algumas semelhanças com a elaboração do
conceito de Representações Sociais no âmbito da TRS, na medida em que ambas se constituem a partir da
necessidade de introduzir o aspecto social, histórico e contextual sobre as compreensões puramente
individualistas dos fenômenos humanos e sociais. O conceito de representações sociais, elaborado por
Moscovici (1978) pode ser considerado um aprimoramento e uma adequação para o contexto atual do
antigo conceito de representações coletivas elaborado por Durkheim (1973). Da mesma forma o conceito
de memória social, pensado por Bartlett (1932, conforme citado por Bosi, 1987) é um conceito mais
amplo e complexo que o de memória coletiva de Halbachs (1950⁄1990).

162
Halbwachs (1950⁄1990), considerado o principal estudioso das relações entre memória e história
pública, com a elaboração do conceito de memória coletiva retira a memória do campo puramente
perceptual e individual, na qual se encontrava no início da Psicologia. Este autor confere à mesma um
estatuto social, amarrando a memória da pessoa à memória do grupo, e “esta última à esfera maior da
tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade” (Bosi, 1987, p.18).
Alguns paralelos podem ser estabelecidos entre o conceito de memória coletiva e representações
coletivas, na medida em que ambos estão calcados na consideração do coletivo como uma instância
dotada de um alto grau de coercitividade, impondo aos indivíduos modos específicos que pensar e agir.
Halbwachs (1950⁄1990) era adepto de uma orientação sociológica claramente durkheimiana, onde a
ênfase recaía sobre a coletividade e o poder das tradições, sendo a memória altamente influenciada por
esta instância externa e superior, com uma participação pouco ativa do sujeito e poucas implicações de
seu contexto imediato.
Charles Bartlett (1932, conforme citado por Bosi, 1987) introduziu, no âmbito da Psicologia
Social uma discussão pioneira sobre o problema da memória, elaborando o conceito de memória social,
que guardava algumas proximidades com as elaborações feitas por Halbwachs (1950⁄1990), cuja obra foi
lida e apreciada por este autor. Tanto Halbwachs quanto Bartlett buscaram fixar a pertinência dos
“quadros sociais”, das instituições e convenções sociais na produção da memória. Entretanto, este último
introduz as especificidades culturais, historicamente situadas como parte fundamental na produção da
memória, diferenciando-se de Halbwachs, na mesma medida em que o conceito de representações sociais
se afasta do conceito de representações coletivas.
Em seu conceito de memória social, Bartlett (1932, conforme citado por Bosi, 1987) introduz o
conceito de convencionalização, que toma emprestado da Etnologia. A convencionalização diz respeito
ao processo pelo qual “imagens e idéias, recebidas de fora por um certo grupo, acabam assumindo uma
forma de expressão ajustada às técnicas e convenções verbais já estabelecidas há longo tempo nesse
grupo.” (Bosi, 1987, p. 25). Com este conceito, Bartlett traz a idéia de que os elementos sociais e
culturais, essenciais à memória não são recebidos passivamente, como entidades externas com alto poder
de coerção. Ao contrário, são tratados pelos indivíduos a partir do ponto de vista de sua cultura, seus
modos de vida, suas necessidades pragmáticas e concorrem para a produção de algo que seja comum ao
seu grupo particular (Bosi, 1987).
A memória social se dá no campo comum entre as memórias individuais e as imagens e idéias
produzidas pelo grupo ao qual o indivíduo pertence. Os processos engendrados neste campo comum
concorrem para a produção de uma memória que carregue em si a imagem e os valores do próprio grupo
que o produziu. Uma memória que dê sustentação para as relações estabelecidas por este grupo com o
mundo que o circunda, preservando a imagem e os valores do mesmo, justificando suas práticas e
construindo uma história coerente com as aspirações individuais e grupais. História esta que tende a se
perpetuar, conservando seu sentido original.

163
A existência de uma memória social a respeito da experiência de transformação do modelo de
atenção à saúde mental em Campinas, constatada nos momentos das observações participantes, deu
origem a duas outras vertentes de ação metodológica, sendo estas: consulta de documentos que
registraram a história da implantação da rede de saúde mental em Campinas e seu funcionamento atual, e
entrevistas com pessoas chaves nesse processo. O acesso a esta memória foi um dos caminhos
privilegiados no sentido de cumprir o objetivo da pesquisa de campo, qual seja fazer um mapeamento de
alguns serviços que compõem a rede de saúde mental de Campinas, conhecer sua história e dinâmica de
funcionamento, com o objetivo último de investigar os processos de mudança nas representações sociais
que ocorreram concomitantes às transformações na atenção à saúde mental.
A história da experiência de transformação do modelo de atenção à saúde mental em Campinas,
foi amplamente registrada em livros, teses, dissertações, artigos, vídeos e jornais, que se constituíram em
uma verdadeira memória documentada. No âmbito do presente estudo, foi empreendida uma constante
consulta a alguns desses documentos, como uma das formas de acessar essa memória social.
A entrevista foi escolhida como um dos métodos de investigação dessa memória, por permitir um
contato mais direto com os atores envolvidos no processo de transformação da atenção à saúde mental,
abrindo espaço para uma reconstrução do mesmo a partir das diversas perspectivas pessoais. Os diversos
olhares para a mesma história forneceram novos elementos que enriqueceram sua composição. Além
disso, a entrevista possibilita, segundo Gaskell (2002), uma “compreensão detalhada das crenças, atitudes,
valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos”
(p.65), sendo considerada como uma das técnicas privilegiadas dos estudos qualitativos.
Foram feitas entrevistas denominadas episódicas que, segundo Flick (2002), devem combinar
convites para narrar acontecimentos concretos com perguntas mais gerais a respeito de conceitos,
argumentações e definições. Deve também se referir a situações concretas, na medida em que se está
diante de entrevistados que têm certa experiência com relação ao tema investigado.
Outra característica importante deste tipo de entrevista é sua abertura para que o entrevistado
selecione os episódios e situações que queira contar, sendo estas escolhas feitas com base na relevância
subjetiva dos acontecimentos para o entrevistado. Neste sentido, este tipo de entrevista permite a
elaboração de narrativas por parte dos entrevistados, que nos fornecerão elementos importantes para
reconstruir a memória social relativa à rede de saúde mental do município, disponibilizando elementos
individuais que auxiliam na construção da história coletiva. Isso se justifica na medida em que se
considera o conceito de memória social, enquanto fruto de um processo que ocorre em um campo comum
entre o individual e o coletivo. As elaborações coletivas perpassam as individuais, na mesma medida em
que as experiências individuais vêm compor o universo da coletividade.
Essa possibilidade de escolhas subjetivas que foram realizadas pelos entrevistados nos remete a
uma outra característica das entrevistas no contexto de uma pesquisa qualitativa, qual seja o seu caráter de
construção conjunta. Segundo Gaskell (2002), toda pesquisa com entrevista caracteriza um processo
social, marcado pela interação e cooperação, sendo as palavras o principal meio de troca. A comunicação

164
engendrada em uma entrevista não pode ser vista como um processo de mão única, onde um fala e o outro
recebe, mas sim deve ser compreendida como uma “troca de idéias e de significados, em que várias
realidades e percepções são exploradas e desenvolvidas” (p.73). Assim, a entrevista pode ser considerada
uma tarefa comum, uma negociação de realidades, uma vez que tanto o entrevistador como o entrevistado
constroem conjuntamente os caminhos que a entrevista vai percorrer.
A este respeito, Branco e Valsiner (1997) se referem à entrevista como um processo de co-
construção, na medida em que, algumas vezes, o sujeito pode ainda não ter pensado sobre o assunto em
questão, sendo desencadeado um processo de construção e reconstrução do objeto ao longo do processo.
No caso desta pesquisa, os entrevistados tinham domínio do assunto sobre o qual estavam sendo
inquiridos; entretanto, ficou claro que para alguns participantes, a entrevista serviu como uma
oportunidade de recontar a história da atenção à saúde mental em Campinas, fazendo uma releitura da
mesma. Em alguns casos, a entrevista permitiu a verbalização de aspectos velados desta mesma história, a
partir dos quais puderam ser melhor compreendidas as relações pessoais e institucionais estabelecidas
entre as diversas instâncias que compõem esta rede de serviços.
Em suma, a pesquisa de campo se estruturou em torno de 3 eixos complementares: 1) observação
participante, 2) pesquisa documental e 3) entrevistas, que serão detalhados a seguir.

2. O DESENHO METODOLÓGICO

A observação participante
Ao chegar na cidade de Campinas, já nos primeiros dias, foi feito um primeiro contato com a
coordenadora de saúde mental do município, que me encaminhou aos cuidados da apoiadora do Distrito
Leste, região em que se localiza o maior número de serviços residenciais terapêuticos, tendo em vista meu
interesse inicial por estes serviços. Foi realizada uma reunião com esta apoiadora, na qual me foi
explicitada a estrutura da rede de saúde mental do município52.
Esta apoiadora tinha uma relação de proximidade com a coordenação de Saúde Mental, sendo o
“braço direito” desta coordenação. Com formação em Serviço Social, esta apoiadora tinha uma longa
história na rede de saúde mental em Campinas, tendo participado ativamente da transformação do
Sanatório Dr. Cândido Ferreira em Serviço de Saúde. Gerenciou ainda o processo de fechamento do
Hospital Tibiriçá, em 2001.
O momento inicial da pesquisa de campo, situado nos primeiros dois meses após a chegada na
cidade, foi caracterizado pelo conhecimento da composição e dinâmica de funcionamento da rede de
Saúde Mental. Foi um momento também de familiarização com o campo, onde foram percebidas algumas
pistas acerca das relações existentes entre os diversos serviços. Neste momento foram feitos os primeiros

52
A partir deste contato foi possível iniciar um desenho da rede de saúde mental, como apresentado no item
“Situando o campo de pesquisa”, que foi sendo aprimorado ao longo da minha permanência na cidade.

165
contatos com os agentes de saúde e as primeiras visitas aos serviços que compõem a rede de saúde mental
da cidade.
A observação participante não se restringiu aos espaços formais dentro das instituições ou às
atividades por elas promovidas. Concordando com Jodelet (2003), quando diz que a observação
participante é uma “abertura ao outro”, esta técnica, antes de tudo, possibilitou uma disposição a tudo
aquilo que o contexto ao meu redor pudesse oferecer enquanto elemento a mais na compreensão do objeto
de estudo.
Neste sentido, foram realizadas observações participantes em vários locais e em situações
diversas, sendo as mesmas subdivididas em quatro categorias: a) visitas aos serviços da rede; b)
reuniões de trabalho e supervisões; c) eventos sociais e festas, e d) eventos políticos e/ou científicos.
Como um auxílio à memória, estava sempre acompanhada de um caderno, onde fazia anotações
de todos os tipos, desde impressões, relatos detalhados de alguma situação específica, frases e
comportamentos que chamavam minha atenção, até telefonemas, datas de eventos, endereços, dicas de
leitura, mapas de algumas partes da cidade e tudo o mais que pudesse ser utilizado posteriormente na
compreensão e recordação do universo pesquisado. Foi também utilizado um gravador, por meio do qual
foram feitos os relatos de cunho pessoal que, de alguma forma, mantinham uma relação direta com o
trabalho de pesquisa realizado.

a) Visitas aos locais da rede


A partir do primeiro contato estabelecido com a apoiadora do Distrito Leste, no qual me foi
explicitada a estrutura da rede de saúde mental, fui convidada a participar de uma visita, juntamente com
auxiliares de enfermagem do Núcleo Clínico do SSCF, aos CAPS Integração, Novo Tempo e David
Capistrano53. Esta visita foi organizada pela gerente do CAPS Integração e teve por objetivo, além de
conhecer as instalações dos referidos CAPS, conhecer algumas casas que serviriam como residências
terapêuticas para os moradores do Núcleo Clínico. Este núcleo se localiza na área física do SSCF, e nele
ainda moram os usuários com idade avançada e longa história de institucionalização, portadores de
problemas clínicos e com o quadro psiquiátrico agravado pelos longos anos de internação.
Esta visita foi importante por ter sido o primeiro contato com os profissionais que trabalham na
rede. Também foi importante por permitir conhecer mais de perto o que é o projeto das residências
terapêuticas e a implicação dos profissionais na idealização e efetivação deste projeto. Ao longo da visita
às casas que seriam destinadas a estas residências, foi possível perceber a emoção dos técnicos, que se
referiam todo o tempo aos usuários que provavelmente iriam ser os moradores, imaginando os possíveis
planos e ações que seriam por eles adotados no convívio cotidiano na residência.

53
O CAPS David Capistrano, referência do Distrito Sudoeste, não entrou como parte dos serviços pesquisados no
âmbito deste trabalho pelo fato de que, no período em que a pesquisa foi realizada, este serviço ainda estava em
processo de implementação, contanto apenas com uma equipe mínima e funcionando em horário especial.

166
Após alguns dias na cidade, foi feita uma primeira visita ao SSCF, onde um psicólogo,
“aprimorando” em Saúde Mental 54, que neste momento trabalhava no Centro de Convivência e Arte,
apresentou toda a instituição e os diversos núcleos que a compõem.
A partir de então foram feitas visitas periódicas ao SSCF, com participação nas reuniões de
colegiado aberto e freqüência aos vários espaços e atividades do Centro de Convivência e Arte. Neste
centro participei, em especial, das rodas de convivência, que são grupos abertos com o objetivo de
conversar livremente sobre as atividades cotidianas do Centro e outros assuntos pertinentes ao momento
que são trazidos pelos usuários do serviço.
Foram feitas, pelo menos, duas visitas em cada CAPS da cidade. Os CAPS Toninho e Esperança
foram visitados com maior freqüência, tendo em vista meu interesse especial nestes dois serviços devido
às suas experiências opostas de relação e inserção na comunidade.
Foram também visitadas 14 das 27 residências terapêuticas estruturadas na cidade de Campinas
no momento da pesquisa de campo. Em duas residências foram feitas mais de uma visita,
acompanhamento nas compras e visitas ao ambiente de trabalho dos moradores, seguindo as reflexões de
Saraceno (2001). Como foi apresentado anteriormente no capítulo sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil,
este autor alerta para o fato de que, para que se faça um trabalho de reabilitação psicossocial realmente
efetivo, é preciso estar atento aos três cenários privilegiados aonde deve ocorrer um aprimoramento do
poder de contratualidade dos sujeitos, quais sejam: a casa, o mercado e o trabalho.

b) Reuniões de trabalhos / supervisões


Logo após a primeira visita aos CAPS Integração, Novo Tempo e David Capistrano, participei
pela primeira vez da reunião denominada de “Reunião da (área de) Reabilitação Psicossocial”. Esta
reunião, proposta e organizada pela Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde55, acontece
mensalmente e tem como um de seus objetivos propiciar uma maior comunicação e intercâmbio de
experiências entre os diferentes serviços que trabalham com Reabilitação Psicossocial56. Nestas reuniões
são tratados temas de cunho administrativo, político, assistencial, bem como são feitas algumas reflexões
teóricas acerca dos modelos de atenção em Saúde Mental.

Na primeira reunião da Reabilitação Psicossocial em que estive presente, foram feitos contatos
com o diretor clínico do SSCF e com as gerentes dos CAPS Estação, Toninho e Esperança, que se
colocaram à disposição para me receber em seus respectivos locais de trabalho.

54
Dá-se o nome de aprimorando ao profissional que está participando do Programa de Aprimoramento em Saúde
Mental, promovido pela UNICAMP, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde e Serviço de Saúde Cândido
Ferreira. Este é um programa de especialização para o trabalho em Saúde Mental e cada aprimorando escolhe um
serviço desta rede para trabalhar durante um determinado período, compondo a equipe que trabalha no serviço.
55
Em todos os estados e no Distrito Federal, as Secretarias de Saúde são compostas por coordenações responsáveis
por áreas específicas, sendo a Saúde Mental uma destas áreas.
56
Entre estes serviços estão os CAPS, os núcleos existentes no SSCF (com exceção do Núcleo de Atenção à
dependência Química – NADEC – que participa de uma outra reunião específica para álcool e outras drogas), os
serviços de saúde mental destinados à crianças e adolescentes e outras unidades de referência que fazem trabalhos
afins.

167
Participei também de três reuniões de colegiado aberto promovidas pelo SSCF. Estes colegiados
são realizados com o objetivo de discutir as principais questões vivenciadas no cotidiano dos serviços
gerenciados pelo SSCF, quais sejam, os CAPS Estação, Toninho e Esperança, o Núcleo Clínico (NC),
Núcleo de Atenção à Crise (NAC), Núcleo de Atenção à Dependência Química (NADEC), Núcleo de
Oficinas de Trabalho (NOT) e Centro de Convivência e Arte. Este colegiado aberto conta com a presença
de todos os profissionais, usuários, familiares e outros atores sociais, que se interessem em discutir as
questões que perpassam o funcionamento dos serviços. O colegiado conta ainda com a presença de um
supervisor, um sanitarista que não faz parte atualmente do quadro profissional do SSCF, mas que
participou de seu processo de transformação e conhece bem a história e a realidade desta instituição. A
importância de ter participado destes colegiados reside no fato de ser este um fórum privilegiado de
discussão sobre a estrutura e o funcionamento dos serviços em questão, permitindo assim um maior
conhecimento da complexidade da rede de serviços em saúde mental e das dificuldades vivenciadas por
tais serviços.

Foram também observadas as reuniões de equipe do CAPS Esperança. Participam desta reunião
todos os funcionários do CAPS - desde os profissionais de nível universitário, até os profissionais das
áreas de apoio: alimentação, limpeza e administrativos. Estas reuniões são semanais, e são alternadas
supervisões de casos clínicos e supervisões institucionais, cada uma contando com um supervisor
específico.
Participei também de duas assembléias realizadas no CAPS Toninho. As assembléias são espaços
de discussão entre usuários e técnicos, onde são levantadas as principais questões emergentes no
cotidiano do serviço. Essas assembléias visam uma apropriação pelos usuários do funcionamento do
serviço, na medida em que são discutidos temas relacionados com sua organização e avaliação.

c) Eventos sociais e festas


Participei também de alguns eventos promovidos pelos usuários do SSCF, como o jantar árabe
produzido pela equipe de jornalistas do Cândido57, gravação do programa “Maluco Beleza58” de fevereiro
de 2004 e lançamento do livro “Alô, Atenção”, de Rita Heinz59, na PUC-Campinas. Este lançamento foi
um momento importante para os jornalistas do Cândido, que tiveram a oportunidade de ir à Universidade
participar de uma solenidade de defesa de monografia de final de curso, na qual foram homenageados.

57
Os usuários que participam das oficinas de comunicação (Jornal Candura, Rádio Maluco Beleza e Oficina de Tv e
Vídeo) são denominados jornalistas do Cândido, em reconhecimento do trabalho de jornalismo aprendido e
executado nestes espaços.
58
Programa de rádio comunitário, elaborado pelos usuários e pelo jornalista responsável, que tem um horário
mensalmente na Rádio Educativa FM.
59
Rita Heinz, à época da pesquisa, era estagiária da comunicação e coordenava, juntamente com o jornalista Régis
Moreira as oficinas de comunicação do SSCF. O livro “Alô, Atenção” é o resultado de sua monografia de final de
curso, no qual expõe sua experiência neste trabalho.

168
Outro evento que merece destaque é a noite de distribuição do Prêmio Cândido de Jornalistas,
realizado anualmente, que tem como momento principal a premiação de jornalistas da cidade que tiveram
algum trabalho em consonância com as propostas da Saúde Mental.
Tive oportunidade também de participar do lançamento de duas exposições de obras de arte de
usuários em espaços da cidade, promovidas pelo Espaço 8 Ateliê que compõe o Centro de Convivência e
Arte.
Outro evento do qual participei foi a solenidade de formatura dos alunos da Casa-Escola, uma
parceria do SSCF com a Fundação Municipal de Educação Comunitária (FUMEC). Neste evento estavam
se formando na quarta série do primeiro grau, alguns usuários da rede de saúde mental, sendo a
solenidade organizada pelos usuários e funcionários da Casa-Escola e Centro de Convivência e Arte.
Da mesma forma, não poderia desconsiderar as festas realizadas por serviços e pessoas ligadas ao
projeto de saúde mental, como por exemplo: o aniversário do CAPS Toninho, festa de natal do CAPS
Esperança e o desfile de pré-carnaval do bloco “Unidos do Candinho”. Estes momentos de descontração e
espontaneidade, que fazem parte do cotidiano dos serviços, auxiliaram a construir uma outra imagem do
trabalho em saúde mental, onde a alegria também passa a ser considerada como um dos elementos
indicadores da efetividade do trabalho realizado60.

d) Eventos científicos e/ou políticos


Foi realizado pelo CAPS Novo Tempo um seminário em que as gerentes de todos os CAPS
expuseram os trabalhos realizados em seus serviços, juntamente com palestras proferidas por pessoas
importantes na saúde mental em Campinas e em nível nacional, sendo estes Roberto Tykanori61 e
Emerson Merhy62.
Outro evento importante, objeto de observação participante, foi o I Encontro Nacional de CAPS
III que contou com a participação de representantes de grande parte destes serviços existentes no país.
Foram discutidas as principais dificuldades relativas ao funcionamento destes serviços e foi avaliada a
viabilidade de suas inúmeras atribuições. Houve uma troca de experiências entre os diversos serviços
representados, que possibilitaram uma compreensão sobre a complexidade deste tipo de serviço e sua
implementação em outras cidades brasileiras.

60
Emerson Merhy, sanitarista e supervisor da equipe de profissionais do SSCF, em sua fala no seminário organizado
pelo CAPS Novo Tempo, ao fazer uma análise da atual situação dos CAPS, sugere que a alegria seja considerada
como um indicador fundamental para a avaliação dos serviços. Refere-se à alegria compartilhada por todos os atores
presentes no serviço: técnicos, usuários, estagiários, visitantes, dentre outros que porventura mantenham algum tipo
de relação com o cotidiano dos serviços.
61
Roberto Tykanori é psiquiatra e consultor para a área da saúde mental em Campinas e outras cidades brasileiras. É
autor de vários artigos em livros especializados em Saúde Mental, trazendo contribuições teóricas e práticas para a
Reforma Psiquiátrica em nível nacional.
62
Sanitarista e supervisor do SSCF. Participou do processo de transformação do antigo sanatório Dr. Cândido
Ferreira em Serviço de Saúde e do processo de distritalização do município de Campinas. É um importante militante
da luta antimanicomial em Campinas.

169
Além destas observações, subdivididas nas quatro categorias citadas acima, também foram
bastante enriquecedoras as inúmeras conversas informais com usuários, técnicos e familiares, em
contextos diversificados. As conversas com outros atores sociais, não necessariamente ligados aos
serviços estudados, foram também muito importantes, pois por meio de suas considerações “leigas” a
respeito do projeto de saúde mental da cidade, forneceram informações e opiniões importantes para o
objetivo deste trabalho, que foi investigar as representações sociais acerca da loucura e a relação destas
representações com as novas formas de atenção à saúde mental preconizadas pela Reforma Psiquiátrica.

A memória documentada: consulta aos livros, vídeos, jornais, documentos, registros históricos,
processos jurídicos...

“Na verdade, o processo de comunicação é fundamental


para os pacientes revelarem essa outra coisa que eles têm
e que está escondida. Na comunicação, é a palavra.
É impressionante as coisas que rolam. Porque rolam as
representações, os sonhos, os desejos, os medos, as fantasias.
Saem. E um vai ajudando o outro a atravessar o obstáculo”.
(Willians Valentini, sobre a comunicação no SSCF)

No sentido de amparar as observações participantes e auxiliar na compreensão e organização das


mesmas, foi consultada uma bibliografia específica, relativa à história da saúde mental em Campinas.
Esta bibliografia é composta de três livros, sendo estes:
 “Retrospecto da vida do Sanatório Dr. Cândido Ferreira (ex-hospitais de dementes de
Campinas)”. Este retrospecto é uma coletânea das atas de reuniões do antigo hospital, coligidas e
comentadas por Benedito da Cruz Passos. Os dados que constam nesse retrospecto são relativas
aos anos entre 1917 e 1973. Este retrospecto dos primeiros anos do (ainda) hospital psiquiátrico
são de grande importância por revelar, a despeito da objetividade que caracteriza as atas de
reuniões, uma concepção de doença mental em consonância com os pressupostos da psiquiatria
tradicional do início do século XX.
 “Reforma Psiquiátrica no Cotidiano”, escrito no ano de 2001, organizado por Willians
Valentini e Angelina Harrari e publicado pela Editora HUCITEC. Este livro reúne os relatos de
vários profissionais do Serviço de Saúde Cândido Ferreira sobre as experiências de transformação
da instituição. São relatadas as experiências específicas de criação de novas unidades, núcleos e
serviços de atenção à saúde mental a partir do convênio de co-gestão entre a prefeitura do
município e esta instituição. São incluídos nestes relatos os principais desafios, dificuldades,
avanços e demais questões relativas ao processo de transformação vivido pelas equipes de
profissionais e usuários.
 “Os excluídos da história: 75 anos do Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira”. Publicação
realizada pelo SSCF, Secretaria Municipal de Saúde e Museu da Cidade, por ocasião da

170
exposição em comemoração ao aniversário de 75 anos do SSCF. Esta publicação conta a história
da instituição desde sua criação, com fotos das antigas instalações.

Além desta bibliografia, também foram consultados alguns materiais escritos e áudio-visuais
produzidos pelos usuários e equipe do SSCF, sendo estes:

 Exemplares do Jornal Candura, edições de setembro e dezembro de 2002, março e novembro de


2003, janeiro e abril de 2004;
 Seis vídeos produzidos pela equipe do SSCF e pela oficina de vídeo, com a participação dos
jornalistas do Cândido;
 Programas da Rádio Maluco Beleza, dos meses de agosto, setembro e novembro de 2002 e
março, maio, julho, outubro e dezembro de 2003.
 Texto ainda não publicado do jornalista Régis Moreira, então assistente de comunicação do
SSCF, entitulado “A reinserção psicossocial através das ondas do rádio”.
 Relatório produzido pela equipe do CAPS Esperança e encaminhado ao Colegiado do SSCF em
11 de dezembro de 2003. Este documento foi o resultado de uma construção conjunta da equipe
acerca das dificuldades vivenciadas no cotidiano do CAPS.
 Peças do processo jurídico vivenciado pelo CAPS Esperança no momento de sua implantação,
quais sejam: a ação cautelar encaminhada pelos vizinhos de Nova Campinas pedindo a retirada
do serviço daquela localidade e a resposta da instituição encaminhada à 7a. Vara Cível de
Campinas - SP.

Cabe lembrar que os materiais acima citados não foram alvo de uma análise sistemática, mas sim
de uma leitura flutuante, realizada inúmeras vezes ao longo de todo o trabalho. Tais documentos serviram
como fonte constante de consulta e apoio às análises dos dados de entrevista, além de auxiliarem na
ancoragem sócio-histórica da experiência de implantação da Reforma Psiquiátrica na cidade de
Campinas, objeto de nosso estudo.

171
As entrevistas: os participantes, a elaboração dos roteiros e o contexto em que foram realizadas.

De onde vem esta memória, revelando mundos


Revirando tudo, como se fosse um Tufão?
A varrer, cuspindo entulhos, num erguer e demolir de muros
Nas esquecidas e despovoadas ruas de meu coração?
De onde vem esta memória, às vezes festa, às vezes fúria
Num abrir e fechar de portas
Louca procura de respostas, mistura de murmúrios
Fonte de delícias e torturas? Onde anda, agora, essa memória?
(Paulinho da Viola, Memória)

As entrevistas tiveram por objetivo realizar um resgate da memória social da construção da rede
de serviços em saúde mental, recorrendo à memória dos agentes de saúde que participaram de forma ativa
do seu processo de construção. A familiarização com o campo de pesquisa foi decisiva na escolha desses
agentes, na medida em que foi possível perceber a relevância das diferentes posições que estes agentes de
saúde assumem na constituição e funcionamento da rede de saúde mental.

Participaram da pesquisa de campo os agentes de saúde que gerenciam os CAPS que constituem a
atual rede de saúde mental de Campinas. Tais agentes de saúde trouxeram colaborações na construção da
história da rede a partir dos relatos de suas vivências de trabalho, cabendo ressaltar que todos os que
participaram das entrevistas, fizeram parte do processo de transformação da rede, considerando-se como
parte desta história.
Foram entrevistadas as 5 gerentes dos CAPS63, todas do sexo feminino, que compunham a rede
de saúde mental do município no momento da coleta de dados. Cabe lembrar que participaram como
colaboradoras as gerentes dos CAPS gerenciados pela Secretaria de Saúde e pelo SSCF, sendo as
seguintes:
 Gerente do CAPS Integração (CAPS gerenciado pela Secretaria de Saúde): Terapeuta
ocupacional, trabalhou no SSCF antes de 1997. Foi uma das primeiras funcionárias a trabalhar no
Núcleo de Oficinas de Trabalho do SSCF. É gerente deste CAPS desde 1997.
 Gerente do CAPS Novo Tempo (Antigo CAPS Aeroporto, gerenciado pela Secretaria de Saúde).
Terapeuta ocupacional, trabalhou no SSCF desde 1986. Foi uma das idealizadoras do Núcleo de
Oficinas de Trabalho e da Ala Primavera (sic). É funcionária do CAPS Novo Tempo desde 1993.
 Gerente do CAPS Estação (CAPS gerenciado pelo SSCF): Psicóloga, tem especialização em
gestão pública, é gerente do CAPS Estação desde 2002. Trabalhou como estagiária no antigo
Hospital-Dia do SSCF, tendo participado, portanto do processo de transformação da rede desde
seu início.
 Gerente do CAPS Antônio da Costa Santos (CAPS gerenciado pelo SSCF): Psicóloga, é gerente
deste CAPS desde sua criação em 2000. Trabalhou no SSCF no período de 1989 a 2000.

63
O gerente do CAPS David Capistrano não foi entrevistado devido ao fato deste serviço não ter sido pesquisado
neste trabalho.

172
 Gerente do CAPS Esperança (CAPS gerenciado pelo SSCF): Terapeuta ocupacional, com
formação em gestão pública. Trabalhou no SSCF desde 1989 e foi gerente do antigo hospital-dia
do SSCF.
Também foram realizadas entrevistas com outros agentes de saúde que fizeram parte da história
de criação da rede de saúde mental da cidade, sendo estes os seguintes:
 Superintendente do SSCF. Psiquiatra, foi o primeiro superintendente do SSCF, ocupando este
cargo pela terceira vez. Também é Conselheiro Municipal de Saúde na Secretaria Municipal de
Saúde de Campinas para a área de saúde mental e membro da World Association for Psychosocial
Rehabilitation. Esta entrevista teve por objetivo buscar uma compreensão mais global das
transformações vivenciadas pela instituição. Buscou-se uma compreensão da filosofia do projeto
de saúde mental empreendido pelo SSCF, sendo esta entrevista caracterizada por um discurso
ideológico e representacional.
 Gerente do Núcleo Clínico do SSCF. Trata-se de um enfermeiro que trabalha na instituição desde
o período em que se iniciaram as primeiras transformações internas, após o convênio de co-gestão
com a prefeitura. O Núcleo Clínico é um serviço ainda constituído por moradores e tornou-se um
serviço especializado no cuidado de usuários idosos e com longa história de hospitalização. Este
núcleo, apesar de seu caráter humanizado, pode ser uma ilustração de uma prática instituída e
construída ao longo do último século.

Para a realização das entrevistas foi elaborado um roteiro, que serviu como um guia no sentido de
orientar o entrevistado para os campos temáticos específicos que faziam parte de nosso interesse. Este
roteiro foi elaborado a partir das observações participantes e da memória documentada referente à história
e funcionamento da rede de saúde mental. Estes momentos anteriores da pesquisa apontaram marcos
importantes da história da construção desta rede, bem como algumas dimensões do processo de
transformação que foram cruciais para sua criação e atual funcionamento.
O roteiro elaborado não continha perguntas fechadas, mas contava com quatro eixos temáticos,
dentro dos quais, o entrevistado tinha a possibilidade de narrar aquilo que fosse de seu interesse e
conhecimento. Ao longo da entrevista, também foram feitas perguntas a respeito de alguns pontos
específicos, referenciados tanto na fala dos entrevistados como nos dados da literatura e das observações.
Os eixos elaborados foram os seguintes:
1. Histórico do serviço. Este foi o primeiro eixo explorado em todas as entrevistas, sendo solicitado
ao entrevistado que contasse, da forma mais livre possível, a história do serviço que gerenciava.
Foi solicitado que relatassem todos os detalhes lembrados, mesmo que estes parecessem sem
importância. A partir da história contada, os outros eixos eram trabalhados, na ordem que
aparentasse ser a mais apropriada às peculiaridades da fala de cada participante.
2. História das equipes e as mudanças no processo de trabalho decorrentes da construção de
um novo modelo de atenção. Este eixo tratava da construção das equipes para o trabalho dentro

173
desta nova perspectiva. Também foram tratadas as dificuldades e vantagens advindas da
transformação das formas de cuidar e da alteração dos processos de trabalho. Foram investigadas
as conseqüências profissionais e pessoais de tais transformações na perspectiva dos técnicos.
3. As mudanças no modelo de atenção e suas conseqüências para o cotidiano de usuários e
familiares. Foram investigadas as transformações no cotidiano dos usuários e familiares em
decorrência da implantação do novo modelo assistencial em saúde mental. Foram solicitadas às
gerentes algumas situações que pudessem exemplificar tais transformações e uma avaliação a
respeito de suas vantagens e desvantagens.
4. A relação do serviço com o usuário e com a comunidade. Foram investigadas as relações
estabelecidas no cotidiano dos serviços entre técnicos e usuários, o que remete ao funcionamento
do serviço. A relação estabelecida entre os serviços e a vizinhança também foi investigada, bem
como as estratégias de aproximação entre os serviços e a comunidade, sendo este considerado um
aspecto de grande importância para a implementação do processo de Reforma Psiquiátrica.
Dentro deste eixo também foram investigadas a atenção oferecida às residências terapêuticas e a
percepção dos técnicos a respeito da relação que os usuários estabelecem com as comunidades
onde moram e convivem.

As entrevistas foram realizadas nos respectivos locais de trabalho dos agentes de saúde, mediante
marcação antecipada do horário. Por serem realizadas nos locais de trabalho, algumas entrevistas foram
interrompidas por técnicos e usuários que se encontravam próximos ao local onde estava sendo realizada
a entrevista. As entrevistas foram gravadas e tiveram uma duração média de aproximadamente uma hora
e quinze minutos.

Procedimento de análise dos dados


As observações participantes foram alvo de uma leitura flutuante, realizada inúmeras vezes, no
sentido de causar uma impregnação das informações constantes nas mesmas. As observações foram
subdivididas nas categorias acima citadas, com o objetivo de facilitar suas análises e utilização nos
momentos de elaboração deste trabalho.
O mesmo procedimento foi realizado com os outros materiais citados referentes à memória
documentada, que foram consultados constantemente, tanto durante todo o processo de imersão no campo
de pesquisa, como no momento posterior à pesquisa de campo.
Tanto as observações, como os outros materiais de pesquisa utilizados, serviram de apoio para a
interpretação das entrevistas das gerentes dos 5 CAPS. Da mesma forma, as entrevistas com o
superintendente do SSCF e com o gerente do Núcleo Clínico, também se constituíram enquanto uma base
para a compreensão das informações trazidas pelas gerentes dos CAPS a respeito de seus serviços e sua
inserção na rede de saúde mental. A entrevista com o superintendente do SSCF trata da filosofia do
projeto de saúde mental da cidade a partir do olhar desta instituição, caracterizando-se enquanto um

174
discurso representacional. A entrevista com o gerente do Núcleo Clínico aborda basicamente as
possibilidades de transformação das formas de cuidar em saúde mental, a partir de uma prática
cristalizada no modelo asilar.
As cinco entrevistas com as gerentes dos CAPS foram analisadas com o auxílio do ALCESTE
(Analyse Lexicale por Contexte d’um Ensemble de Segments de Texte), um software para análise de dados
textuais. O ALCESTE, por meio de análises estatísticas, destaca as principais informações e temas
contidos em um texto, neste caso, o conjunto das entrevistas reunidas no mesmo arquivo. (Ribeiro, 2000).
O ALCESTE subdivide o texto, denominado corpus, em unidades de contexto elementar (UCEs)
que são pequenos fragmentos que contêm um enunciado completo. Posteriormente reorganiza tais
unidades, de forma que as unidades referentes a uma mesma idéia ou que apresentem uma mesma
estrutura, componham as mesmas categorias ou classes. Esta reorganização das UCEs em classes
evidencia os principais temas que compõem o texto como um todo. O ALCESTE também mostra a
relação existente entre as diferentes classes, e a importância de cada uma delas dentro do corpus. Fornece
ainda a relação entre as palavras de uma mesma classe, o que nos permite conhecer os principais pontos
em torno dos quais os temas se organizam.
Após esta primeira análise, de caráter quantitativo, é empreendida uma análise qualitativa, de
forma a reconstruir o discurso dos sujeitos em cada classe, a partir das palavras e UCEs fornecidas pelas
análises estatísticas. Cabe ressaltar que esta análise qualitativa, além de considerar os dados estatísticos,
requer do pesquisador um conhecimento de seus dados, para que possa reconstruir o discurso
representacional de seus sujeitos, de forma coerente com a realidade investigada. Assim, o pesquisador
deve lançar mão de todos os seus registros, fruto de um “mergulho” em seu campo de pesquisa para dar
sentido aos resultados quantitativos apontados pelo software.

Desta forma, para a reconstrução do discurso dos sujeitos foram utilizados os registros das
observações participantes, os elementos disponíveis na bibliografia específica que remonta a história da
construção da rede de saúde mental em Campinas, os materiais relativos à memória documentada e as
entrevistas com o superintendente do SSCF e com o gerente do Núcleo Clínico. Todos estes materiais de
pesquisa serviram de apoio à interpretação dos dados obtidos por meio da análise quantitativa
empreendida pelo ALCESTE.

175
Parte III
O QUE A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS NOS REVELA

Artigo final:
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
(Thiago de Mello – Os Estatutos do Homem)

Até este momento do presente trabalho, apresentamos um panorama geral da história da loucura,
da Psiquiatria, da Reforma Psiquiátrica, bem como algumas das características, princípios e diretrizes da
Reforma no Brasil. A partir de então, estaremos apresentando a experiência de Reforma Psiquiátrica em
um contexto específico, qual seja, a cidade de Campinas. Esta experiência específica nos serviu como um
estudo de caso dentro do amplo cenário da Reforma brasileira. Esperamos que este estudo de caso, lance
alguma luz sobre os meandros que compõem uma experiência de Reforma Psiquiátrica, desde as
transformações operadas no âmbito das políticas públicas de saúde mental e a conseqüente reorientação
do modelo de atenção, até as transformações percebidas nas representações a respeito da loucura.

1. ALGUNS COMENTÁRIOS PARA INÍCIO DE CONVERSA...

Chegando a Campinas, o primeiro lugar visitado foi o Armazém das Oficinas, uma loja no centro
da cidade que vende os artigos produzidos nas oficinas de trabalho do Serviço de Saúde Cândido Ferreira
(SSCF). O charme da loja, suas cores e a beleza dos artigos à venda eram encantadores. O atendimento
também foi uma boa surpresa, pela atenção e gentileza. No interior da loja há um café, onde fiquei
conversando com um funcionário que freqüentava uma das oficinas. Ele contou como funcionavam as
oficinas, quem eram as pessoas que trabalhavam, falou do CAPS que freqüentava e foi bastante atencioso
ao mostrar alguns objetos em exposição. A primeira impressão foi muito boa, mas ainda não foi suficiente
para perceber a dimensão do que via e ouvia. Afinal era a primeira vez que me deparava com algo que
tivesse algum tipo de relação com a rede de atenção à saúde mental da cidade. Muitas coisas eu estava
ouvindo pela primeira vez.

Com o decorrer dos dias, fui me convidando a conhecer as pessoas e serviços que faziam parte da
rede de atenção à saúde mental e começando a entender melhor como se organizavam as relações dentro
daquele contexto. A hospitalidade e boa vontade para apresentar tudo o que dissesse respeito ao trabalho
foi algo surpreendente desde o início da trajetória da pesquisa. O modo acolhedor com que as pessoas

176
ligadas à rede (profissionais, usuários, familiares, estagiários, aprimorandos e outros) recebem os
visitantes e me recebiam, fez com que o trabalho de pesquisa fosse aos poucos se transformando em algo
maior, ainda que mais leve e mais prazeroso. As relações profissionais aos poucos foram se tornando
laços de amizade, cuidado, alegria e cumplicidade, que auxiliaram na construção de um caminho a ser
percorrido nesta etapa da pesquisa de campo.

A hospitalidade e o acolhimento são uma marca do trabalho realizado nos serviços de saúde
mental da cidade, pois todos os pesquisadores e visitantes com quem convivi no período de seis meses da
pesquisa de campo, sentiam-se à vontade para traçar seus próprios caminhos e buscar seus interesses
específicos dentro da rede, sempre contando com o precioso apoio dos técnicos e usuários. No período em
que foi realizada a pesquisa de campo (de agosto de 2003 a fevereiro de 2004), havia pesquisadores
visitantes de outras cidades do Brasil e da América latina, o que, nos últimos anos, tornou-se uma
constante no cotidiano dos serviços da rede de saúde mental da cidade. A disponibilidade e a atenção
cuidadosa a cada um dos visitantes, possibilitou a construção de diferentes trajetórias pelos serviços e
experiências pessoais diversificadas.

Ficou evidente o grande interesse, por parte dos usuários, profissionais e gestores, que as pessoas
conhecessem a experiência de Reforma Psiquiátrica vivida na cidade. Obviamente, cada um desses
grupos guardava interesses diferentes, mas todos compartilhavam da idéia de que era preciso acolher bem
e mostrar, ao maior número de pessoas possíveis, as transformações que haviam sido operadas na atenção
à saúde mental. Não como uma “vitrine a ser apreciada”, mas como um convite a testemunhar e vivenciar
uma real possibilidade de transformação das formas de cuidar. Um convite a ressignificar o que se
entende por loucura e seu cuidado.

Ao meu ver, este convite feito aos visitantes implicava, em última instância, na sensibilização
para uma nova cultura de solidariedade, calcada no respeito e incorporação do diferente, no
reconhecimento da proximidade com este outro que, a princípio, parece tão distante. Sensibilização para a
construção de uma cultura que privilegie a “humanização do próprio homem” e onde as responsabilidades
pelo cuidado e bem estar sejam socialmente compartilhadas.

Neste sentido, o convívio com os visitantes, suas perguntas, perplexidades e devoluções,


confirmavam para os atores dessa rede a viabilidade e efetividade da experiência por eles construída, haja
vista a transformação das concepções operada em muitos que tiveram a oportunidade de vivenciar esta
nova forma de cuidar sem excluir. A prática antimanicomial exercida no contexto desta experiência em
desenvolvimento - mesmo com seus percalços, limitações e dificuldades - evidenciou uma possibilidade
real de tudo aquilo que eu conhecia até então de forma teórica.

Ao longo do tempo fui percebendo que a hospitalidade e disponibilidade não eram reservadas
somente aos visitantes. Elas faziam parte do cotidiano do trabalho. Um trabalho que se distancia muito da
velha Psiquiatria do início do século XIX e da tenebrosa imagem do manicômio.

177
No lugar do abandono e da invalidação, o calor humano, o respeito à diversidade, a escuta atenta
e o reconhecimento da cidadania dos usuários dos serviços. O cotidiano vivido nos CAPS, nas residências
terapêuticas, nas oficinas de trabalho, no Centro de Convivência e nos demais espaços sociais onde
intervenções inovadoras vêm se desenvolvendo, evidencia essa mudança radical na qualidade da atenção.

A concepção de doença mental, atrelada à cronificação, cedeu lugar ao cuidado com o sujeito e
acolhimento de seu sofrimento, como pude perceber na atuação dos profissionais nos diversos serviços
que frequentei. No lugar das “trocas zero” como nos diria Rotelli (1990) a respeito do hospital
psiquiátrico, foi possível testemunhar uma teia bem trançada de relações sociais e afetivas consistentes,
construída cotidianamente por técnicos, usuários, familiares e comunidade. Ao longo da apresentação
dessa experiência esperamos poder transmitir, pelo menos em parte, a emoção vivida no compartilhar
desse cotidiano.

Após algumas semanas na cidade, e já com um mínimo de intimidade e entendimento sobre o


funcionamento da rede de saúde mental, resolvi entrevistar o então Superintendente do Serviço de Saúde
64
Cândido Ferreira (SSCF) . Ao me ver ele pergunta: “E então, você está entendendo o que rola por
aqui?". Essa pergunta, aparentemente simples, marcou todo o período da pesquisa de campo, em que
convivi cotidianamente com este cenário e seus atores.

Essa pergunta soava vez por outra nos meus ouvidos, e eu sabia que ela não se referia somente ao
óbvio e visível. O tom da pergunta buscava uma resposta que fosse além das transformações
institucionais, políticas e de cunho profissional. Ela provocava o desejo de ir além, de perceber o
intangível, de me deixar tocar pelo invisível. Aos poucos fui reconhecendo o valor que o afeto ocupava
em todo aquele processo de transformação. O afeto não era simplesmente mais uma “ferramenta e⁄ou
objeto de trabalho” mas sim o “cimento” de toda aquela construção conjunta.

As trocas afetivas eram privilegiadas em todas as intervenções de que fui testemunha. O cuidado
pouco ou nada tinha a ver com o protecionismo e o medo, como é comum em muitas experiências de
tratamento com pessoas acometidas de intenso sofrimento psíquico. Ao contrário, o cuidado era exercido
tendo como principais valores a troca de afeto, de confiança e estabelecimento de parcerias com vistas ao
crescimento pessoal, a autonomia e resgate da cidadania daqueles sujeitos, que ficou seqüestrada durante
muitos anos nos manicômios.

Em certo sentido, inverteu-se a lógica do cuidado. Não era mais somente o profissional que
cuidava do passivo-paciente. O cuidado era uma construção conjunta entre técnicos e usuários, onde eram

64
O Superintendente é o gestor que atua como referência para todos os serviços ligados ao SSCF, a saber: os CAPS
Estação, Toninho e Esperança, Núcleo Clínico, Núcleo de Atenção à Crise (NAC), Núcleo de Atenção à
Dependência Química (NADEC), Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT) e Centro de Convivência e Arte. Cabe
ressaltar que, mais do que um administrador, o Superintendente tem como função manter viva a filosofia que
embasa essa experiência de Reforma, fazendo parte de suas atribuições propiciar espaços de escuta e construir,
constantemente, e em conjunto com as equipes, novos caminhos para a desinstitucionalização. Neste período quem
estava ocupando o lugar da Superintendência era o psiquiatra Willians Valentini.

178
consideradas as especificidades de cada caso, de cada situação e do vínculo estabelecido entre esses
atores, condição fundamental para que o trabalho acontecesse. Essa nova lógica de cuidado se reflete na
frase proferida pelo Superintendente do SSCF quando diz que “todos aqui estão em tratamento”.
Tratamento não mais restrito a uma concepção médica, onde um sabe cuidar e o outro somente recebe as
ordens, mas referente às relações humanas e subjetividades que estão permanentemente em jogo no
contexto dos serviços. Assim, o cuidado tornou-se uma via de mão dupla, onde o cuidador também tinha
espaço para ser ouvido e cuidado, pois estava engendrado nesta complexa teia de relações humanas.

Essa nova concepção de cuidado ficava visível quando da aproximação com os técnicos que
trabalhavam na rede. A disponibilidade para a escuta e o empenho na atenção à demanda dos usuários se
destacaram, a despeito de um certo espontaneísmo algumas vezes percebido e da falta de “receitas
prontas” para os problemas do cotidiano. As dificuldades próprias do trabalho, as limitações e entraves
característicos de um novo modelo de atenção, ainda em fase de consolidação, eram muitas vezes motivos
de discussões e angústias que, no entanto, fomentavam novas reflexões e soluções criativas para os
problemas apresentados.

A criatividade no cuidado e nas ações de reabilitação psicossocial pode ser considerada um dos
pontos fortes desse processo de transformação da atenção, pois foi ela que possibilitou a continuidade dos
projetos de desinstitucionalização nos momentos adversos atravessados pelos serviços da rede de saúde
mental de Campinas. A capacidade de inventar novas formas de lidar com o humano e suas necessidades,
e de cativar as comunidades em favor deste projeto, reedita a “instituição inventada” a cada dia. Apesar
de já ter havido experiências semelhantes em outros contextos, as especificidades desta experiência
levaram à necessidade de reinventar um novo modo de atenção - particular em muitos aspectos - que
atendesse às necessidades e expectativas daquele contexto específico.

Cabe ressaltar que, ao mesmo tempo em que esta experiência teve um desenvolvimento particular
e características intrinsecamente relacionadas àquele contexto específico, ela nos revela algo sobre o
sentido da desinstitucionalização assumido pela Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro. A
experiência de Campinas, assim como outras que vêm sendo realizadas no país, são exemplos da
viabilidade das propostas e diretrizes colocadas para a saúde mental em âmbito nacional. Cada
experiência em particular vem compor este complexo mosaico da Reforma Psiquiátrica no Brasil,
oferecendo novas nuances, tons e cores a este novo cenário que começa a se formar para a saúde mental
no país.

179
2. A ORGANIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA VIVIDA

Durante os seis meses da pesquisa de campo fiquei imersa em uma complexa trama de relações e
novidades, testemunhando o cotidiano de uma experiência de Reforma Psiquiátrica que já tinha uma
história, uma trajetória percorrida. A rede de saúde mental de Campinas já havia conquistado um
reconhecimento enquanto experiência modelo, apesar de ainda estar em processo de desenvolvimento.

Uma das razões para ser considerada um modelo para a implementação da Reforma Psiquiátrica
no Brasil e América Latina, além do pioneirismo e do número de residências terapêuticas existentes, era o
fato da cidade contar com uma diversificação de serviços de saúde mental oferecidos pela rede pública. E,
além da diversificação, estes serviços mantinham uma comunicação entre si que, embora houvesse falhas,
permitia o intercâmbio de informações e experiências entre profissionais e o trânsito de usuários de um
serviço a outro, de acordo com seu momento e suas necessidades. Trânsito este que pode ser considerado
um critério importante para caracterizar o conjunto de serviços enquanto uma rede.

As relações (políticas, profissionais, afetivas, dentre outras) intra e interinstitucionais dos


diversos serviços existentes na rede evidenciam uma complexidade do funcionamento da mesma, o que
exigiu a utilização de alguns procedimentos e métodos no sentido de sistematizar e tornar compreensíveis
tais relações. A utilização da metodologia apresentada no capítulo anterior foi de fundamental
importância na organização de boa parte das informações recebidas, trocadas, construídas e das
experiências profissionais e pessoais vivenciadas.

Deste modo, além das observações participantes e da constante consulta aos documentos relativos
à memória documentada da experiência, lançamos mão do auxílio do software ALCESTE, no sentido de
organizar as informações obtidas nas entrevistas com as gerentes dos CAPS. Cabe lembrar que as
entrevistas com o superintendente do SSCF e do gerente do Núcleo Clínico, que não foram analisadas
pelo ALCESTE, também foram utilizadas como importantes fontes de informação a respeito do tema
investigado.

No capítulo anterior fornecemos algumas informações a respeito do funcionamento deste


software. Neste momento apresentaremos a forma com que o ALCESTE organizou os dados das
entrevistas com as gerentes dos CAPS, que nos serviu de guia para compor a apresentação da experiência
da saúde mental em Campinas, que foi o objeto da presente pesquisa de campo.

A análise empreendida pelo software ALCESTE reconheceu quatro classes de palavras, que
configuram temas distintos, subdivididas em dois eixos temáticos. O primeiro eixo foi relativo à história
da rede de saúde mental em Campinas, contendo apenas uma classe de palavras. O outro eixo temático
foi sobre o funcionamento da rede, tendo como ponto de partida o funcionamento dos CAPS. Este eixo
apresentou três classes, que tratavam de dimensões distintas do funcionamento destes serviços.
As denominações dos referidos eixos e classes, bem como a relação estabelecida entre esses,
podem ser observadas na figura 2 abaixo. Na figura 2 também estão destacadas as 15 palavras principais

180
de cada classe e seus respectivos valores em qui-quadrado, que indicam o poder de agregação de cada
uma destas palavras.

R = 0,0
Eixo 1 Eixo 2
História da Saúde Os CAPS e o
Mental em Campinas funcionamento da rede

R=0,5
R=0,8

Classe 2 Classe 1 Classe 3 Classe 4


A História de uma Amarrando a vida O cotidiano dos CAPS O CAPS e a
mudança cotidiana com a saúde comunidade
mental
Começou 61.16 Tem 89.20 Caso 54.46 Vizinhos 142.22
Hospital-dia 50.82 Grupo 51.09 Unicamp 53.96 Frente 96.72
Integração 46.33 São 32.29 Gabriela 48.88 Falou 95.40
Região 36.75 Cuidado 32.04 Estava 34.83 Vizinha 76.10
Tinha 32.29 Vem 30.08 Ele 34.61 Advogado 56.91
Época 32.01 Vizinhança 24.39 Difícil 32.92 Ouvir 56.91
Era 30.77 Fácil 23.31 Dia 31.44 Familiares 51.24
Aeroporto 28.02 Moradias 22.82 Medicação 31.41 Senhor 47.35
Cândido 26.44 Outra 20.93 Precisar 30.42 Filha 37.83
Distrito 26.18 Autonomia 20.69 Pai 29.67 Conversar 37.15
Governo 25.74 Usuário 20.44 Remédio 29.67 Conversa 31.10
Ainda 22.11 Nas 20.41 Tarde 25.92 Convite 31.10
Então 21.67 Bastante 20.09 Podia 25.90 Escola 28.72
Proposta 21.58 Vezes 19.14 Manhã 24.55 Recebeu 28.33
Saúde mental 18.09 Podem 18.07 Debate 24.30 Nunca 27.56
Deram 24.30
Vidro 24.30
48,06% 28,12% 14,20% 9,61%

Figura 17: Resultado da análise fornecida pelo ALCESTE, evidenciando 2 eixos subdivididos em 4 classes, as
porcentagens de cada classe dentro do corpus e a relação que estabelecem entre si.

O ALCESTE fornece ainda fragmentos de texto que compuseram cada classe específica, o que
nos permite - com o auxílio das observações participantes, da consulta à memória documentada e,
principalmente, do conhecimento e “impregnação” dos dados – reconstruir o discurso dos sujeitos, na
forma de um discurso representacional.
Desta forma, apresentaremos a seguir cada um dos eixos e as classes de que são compostos.
Indicaremos os principais pontos de discussão relativos ao tema tratado em cada uma das classes e uma
possível reconstrução do discurso representacional. As palavras sublinhadas no discurso representacional
fazem parte das 15 palavras mais significativas da classe.

- A história da saúde mental em Campinas


Este eixo é composto pela classe 2, denominada História de uma mudança, que diz respeito ao
processo de transformação do modelo de atenção à saúde mental, antes restrito ao hospital psiquiátrico e
hoje contando com uma rede de serviços substitutivos.
O tema tratado nessa classe corresponde a 48,06% de todo o corpus. Essa alta porcentagem pode
ser conseqüência de nosso pedido, no início da entrevista, para que as gerentes, recontassem a história dos

181
serviços que gerenciavam. Entretanto, esta porcentagem também indica uma grande relevância da história
desta experiência na memória social compartilhada pelas gerentes dos CAPS. A história de transformação
do Sanatório Dr. Cândido Ferreira em Serviço de Saúde é bastante valorizada pelos profissionais e
usuários que fizeram parte do momento de abertura da instituição, sendo muitas vezes fortemente
relacionada com as histórias profissionais e⁄ou pessoais desses protagonistas. Percebe-se que essa história
tem um papel importante no fortalecimento e na continuidade do trabalho realizado.
Uma possível reconstrução do discurso representacional relativo à Classe 2 é a apresentada a
seguir:
Em 89, quando começou essa estruturação da Saúde Mental em Campinas não tinha nada. Na
época era só o Cândido que ainda era um hospital de internação. A partir daí, o Cândido e a
Secretaria Municipal de Saúde se juntaram para iniciar as transformações. Foi criada a
Unidade de Reabilitação de Moradores com 4 alas mistas, que seriam abertas aos poucos. Em
91 foi criado o Hospital-Dia e o Centro de Convivência e Arte. Iniciou-se então a criação das
moradias extra-hospitalares que tiveram um aumento significativo em 99. Ainda em 92, em um
contexto político adverso, foram criados pela Secretaria Municipal de Saúde os CAPS
Integração e Aeroporto. Em 2000, com a entrada de um novo governo, favorável ao processo de
Reforma, foi retomada a proposta da Saúde Mental e efetivada a co-gestão. O CAPS Aeroporto
virou 24h e passou a se chamar Novo Tempo. Foram criados os CAPS Estação, Toninho e
Esperança, cada um pertencendo a um distrito e sendo referência para uma região.

Alguns pontos importantes podem ser incorporados na discussão mais detalhada desta classe (a
ser realizada mais adiante), como por exemplo, o estabelecimento de paralelos entre a história da
Psiquiatria em Campinas e no Brasil e, principalmente uma discussão sobre a modelagem de Reforma
Psiquiátrica adotada neste contexto específico.

- Os CAPS e o funcionamento da rede


Os dois eixos identificados pelo Alceste não guardam relações entre si (R=0), talvez pelo fato de
que hoje os temas tratados em ambos remetam a realidades distintas. Este segundo eixo - Os CAPS e o
funcionamento da rede - trata basicamente da dinâmica dos CAPS e seu papel estratégico no
funcionamento da atual rede de saúde mental de Campinas. Cabe ressaltar que as diretrizes nacionais para
a reorientação do modelo de atenção à saúde mental no país têm nos CAPS, os serviços estratégicos para
a implementação de uma nova cultura da Reabilitação Psicossocial. De alguma forma, este eixo revela
uma correspondência entre as diretrizes políticas de Reforma Psiquiátrica no país como um todo e a
prática implementada em experiências locais.
O eixo 2 é composto por três classes, que tratam de aspectos específicos do funcionamento destes
serviços, considerados sob diferentes pontos de vista. As classes apontam para temas que falam de uma
realidade particular - o da rede de saúde mental local - cujas reflexões podem ser transpostas para outras
experiências que ocorrem no país. Este eixo temático representa 51,93% do corpus das entrevistas.
A Classe 1, denominada Amarrando a vida cotidiana com a saúde mental, ocupa 28,12% do
corpus, e mantém um índice de relação de 0,5 com as outras duas classes contidas neste eixo. Esta classe
trata do papel dos CAPS, enquanto serviços estratégicos na reorientação do modelo de atenção à saúde

182
mental no município. Trata das funções que foram atribuídas a estes serviços na implementação da rede
de Saúde Mental local. Nesta classe, são feitas referências a algumas vantagens e limitações no exercício
das funções dos CAPS, como pode ser observado na reconstrução do discurso representacional abaixo:
O CAPS está situado no meio da comunidade, em contato direto com a vizinhança. Uma das coisas
que a gente pretende é fazer uma movimentação no lugar. Por ser de fácil acesso, os usuários
podem ir à padaria, ao restaurante, ao supermercado, pegar um ônibus, ir ao parque ou montar
um grupo para jogar futebol. Enfim, circular pela vizinhança e aos poucos reconstruir sua
autonomia, anteriormente negada. Os usuários se tratam no CAPS em regime intensivo, semi-
intensivo e não-intensivo, que são aqueles que vêm ao CAPS poucas vezes por mês, dependendo da
demanda e do projeto terapêutico individual. Outra tarefa dos CAPS é o cuidado das moradias
que, muitas vezes é bastante difícil, por causa da quantidade e da responsabilidade do trabalho e
da pouca estrutura. Uma preocupação que a equipe tem são os cuidados clínicos dos usuários dos
CAPS e especialmente nas moradias. Trabalhamos com profissionais de referências e temos feito o
máximo que podemos, mas sinto que poderia ser feito mais.

A classe 1 aponta para uma discussão do modelo de implementação da Reforma Psiquiátrica


brasileira. O discurso representacional característico desta classe aponta as conquistas, vantagens e
benefícios dos CAPS, assim como as limitações e dificuldades advindas de sua estrutura e de seu papel
estratégico na reorientação do modelo de atenção.
A classe 1 está medianamente relacionada (R=0,5) com as classes 3 e 4, que guardam entre si
uma relação estreita (R=0,8). Estas duas classes tratam de dois pontos de vista a respeito do cotidiano dos
CAPS. A classe 3 representa 14,20% do corpus e a classe 4 representa 9,61%.
A classe 3, denominada O cotidiano dos CAPS, trata do trabalho que é realizado dentro dos
serviços com os usuários e seus familiares. Esta classe mostra as possibilidades e limitações do trabalho,
como pode ser evidenciado no discurso representacional apresentado a seguir:
A gente aqui no CAPS tem um paciente que é um caso muito difícil. Teve um dia que ele estava
em crise e chegou aqui quebrando tudo o que era vidro. E foi difícil a gente conter, pois
estávamos em poucos e ainda sem o guarda que nos ajuda muito. Esse usuário tem problema em
tomar a medicação e o pai e a mãe querem que a gente faça um milagre. Fazemos de tudo para
não internar ninguém, mas esse dia foi difícil, tivemos que mandar pra UNICAMP, porque a
gente fez o que podia, mas não teve jeito. Hoje ele está bem melhor. Está tomando o remédio,
vindo de manhã e de tarde e a mãe está aprendendo a lidar melhor com tudo isso, graças ao
trabalho que estamos fazendo. Estamos dispostos a fazer tudo o que precisar para ele melhorar,
mas é um caso difícil que às vezes a gente não sabe o que fazer.”

Este discurso enfoca uma situação específica relatada pela gerente de um dos CAPS, apontada
como o sujeito mais representativo da classe 3. A partir do relato dessa situação, podemos lançar mão de
alguns temas para serem discutidos de forma mais geral, como por exemplo a dinâmica de funcionamento
das atividades internas de um CAPS. É de grande importância a discussão a respeito da diversidade de
atividades que devem fazer parte do cotidiano de qualquer serviço desta natureza. Contudo, é preciso que
sejam discutas a viabilidade de realização dessas atividades, seu potencial terapêutico, a formação dos
profissionais e a sobrecarga de trabalho vivenciada pelas equipes de alguns dos serviços visitados.
Esse discurso também traz reflexões importantes, que vêm sendo debatidas em âmbito nacional,
em torno da relação entre a crise e a reabilitação psicossocial. Essas reflexões abrangem questões

183
relativas à formação de recursos humanos para o trabalho em saúde mental e à estrutura necessária aos
serviços para cumprir todas as suas atribuições.
A classe 4, denominada O CAPS e a comunidade, traz elementos importantes sobre o processo
de inserção dos CAPS nas comunidades e tem como principais sujeitos as gerentes dos CAPS Toninho e
Esperança. Ao relatar a história de inserção e a relação de seus respectivos serviços com as comunidades
onde estão inseridos, fica evidente a diferença das experiências vividas por estes dois serviços. Neste
sentido, foi possível reconstruir dois discursos representacionais para esta classe, que relatam diferentes
vivências de inserção na comunidade. Estes dois discursos, de certa forma, confirmam a diversidade de
entendimentos e pontos de vista a respeito da Reforma Psiquiátrica e da própria loucura.
A gerente do CAPS Toninho, em seu relato a respeito do convívio que o serviço, seus
profissionais e usuários estabeleceram com a comunidade vizinha, demonstra uma relação de
proximidade e aceitação, como pode ser percebido na reconstrução de seu discurso, a seguir:
A gente aqui tem uma relação muito boa com os vizinhos, que sempre se mostram muito
disponíveis para conversar e participam do cotidiano do CAPS. Eles recebem muito bem o
trabalho que a gente faz. Já fizemos muitas festas juntos, sempre num clima de alegria e
cooperação. A vizinha da frente até mandou um convite para as bodas de ouro dela.Uma vez teve
uma intercorrência com a filha de uma das vizinhas e eu fui até lá conversar com a mãe. Ela fez
questão de me ouvir e nos ajudou a resolver o problema. Outro dia, numa assembléia, os
familiares elogiaram muito nosso trabalho dizendo como era a vida deles antes e depois do
CAPS. Não quero pegar isso para dizer que é tudo perfeito e funciona bem, porque não funciona.
Mas a relação com a comunidade e com os familiares sustenta o nosso trabalho.

Em contrapartida, a gerente do CAPS Esperança relata uma experiência oposta, marcada pela
hostilidade e não aceitação do serviço aberto por parte da comunidade na qual o serviço foi inicialmente
instalado. A rejeição da comunidade, expressa na forma de um processo jurídico, culminou com a retirada
do serviço do local, após menos de três meses de sua inauguração. O relato dessa experiência pode ser
reconstruído da seguinte forma:
A nossa primeira experiência em Nova Campinas foi traumática para todos. Os vizinhos foram
muito hostis com os usuários e toda a equipe. O advogado dos vizinhos fazia ameaças constantes
e tivemos que sair de lá sem possibilidade de conversa. Agora aqui no Taquaral, fizemos todo um
trabalho com a vizinhança antes de virmos para cá. Percorremos todas as casas, a escola e o
comércio em geral. Colhemos assinaturas de concordância, e alguns vizinhos chegaram até a
demonstrar sua indignação com a reação da comunidade de Nova Campinas. Mas mesmo assim,
ainda fomos processados por dois vizinhos.

Essas experiências opostas de inserção dos CAPS Toninho e Esperança em suas respectivas
comunidades nos remetem à complexidade do processo de implementação da Reforma Psiquiátrica no
Brasil, apontando para a necessidade de estabelecer diferentes estratégias de aproximação com as
comunidades onde os novos serviços abertos serão implantados. Tais estratégias implicam, em uma
primeira instância na necessidade de um “diagnóstico” da comunidade, suas necessidades e nível de
aceitação da proposta da Reforma. As estratégias e o modo como são utilizadas poderão nos dizer algo a

184
respeito da qualidade da relação a ser construída entre os serviços e a comunidade, juntamente com outros
inúmeros fatores como nível sócio-econômico, dependência do SUS, cultura local, dentre outros.
Cabe ressaltar que a forte relação entre as classes 3 e 4 pode nos dar uma dica importante a
respeito da estreita relação do bom funcionamento e desenvolvimento de experiências de Reforma
Psiquiátrica com a aceitação e parceria com a sociedade.

As análises empreendidas pelo ALCESTE lançaram luz sobre a complexidade dessa experiência,
fornecendo elementos importantes que levaram à construção de um caminho a ser trilhado na
apresentação da vivência de campo. Na apresentação da experiência de Campinas, a ser realizada deste
momento em diante, privilegiamos o eixo 1 referente à história de constituição da atual rede de saúde
mental. Um dos motivos dessa escolha foi a relevância com que essa história apareceu no discurso dos
sujeitos entrevistados, tendo a classe relativa à história da experiência ocupado 48,06% de todo o corpus
das entrevistas. Este dado estatístico corrobora a observação feita ao longo da pesquisa de campo da
importância dessa história na manutenção dos ideais que permeiam a experiência e no incentivo ao
desenvolvimento da mesma. Essa história também é importante no sentido de conferir uma identidade
para o grupo de técnicos, usuários e outros tantos que participaram do processo de transformação das
formas de cuidar da saúde mental na cidade.
Um outro motivo para a escolha da história como orientadora de nossa apresentação é dar
continuidade ao que já foi relatado até este momento do trabalho. Acreditamos, como já foi dito
anteriormente, que a história seja um caminho privilegiado para observarmos as transformações
empreendidas (ou não) no âmbito das representações sociais da loucura.
Além disso, os outros temas que foram apontados no eixo 2 e suas respectivas classes que tratam
do funcionamento e estrutura dos CAPS, também podem ser apresentados como parte integrante da
história de implementação da Reforma Psiquiátrica em Campinas. Afinal, se acreditamos que a história
não pára e continua sendo editada a cada dia, consideramos a atualidade como parte da história. Assim,
podemos considerar que todos os temas que apareceram nas classes referentes ao eixo 2, que tratam do
momento atual da rede de saúde mental, também estão ancorados na história de construção desta rede.
Desta forma, os temas relativos ao funcionamento atual da rede serão elucidados na medida em que a
história da saúde mental em Campinas for sendo contada.
A história será contada de maneira cronológica, entretanto, em vários momentos faremos
comparações, pequenos saltos e pontes entre passado e presente, para que o sentido de nossa história se
torne mais claro.

185
3. A SAÚDE MENTAL EM CAMPINAS: UMA HISTÓRIA DE TRANSFORMAÇÃO DO
CUIDADO

A partir dos métodos utilizados na pesquisa de campo e das análises subseqüentes, foi possível
identificar três momentos distintos na construção desta rede. A forma como a história da rede de saúde
mental de Campinas foi didaticamente dividida permite uma melhor compreensão dos processos de
construção que foram sendo engendrados e de alguns pontos de ancoragem na sua constituição (para uma
melhor visualização da cronologia da Saúde Mental na cidade de Campinas, ver Anexo 3). Cabe ressaltar,
no entanto, que diferentes divisões e ordenamentos históricos podem ser utilizados em outros estudos,
sendo a presente divisão uma escolha metodológica que melhor se adequa ao objetivo deste trabalho, qual
seja, investigar as relações entre as representações sociais da loucura e o processo de implementação da
Reforma Psiquiátrica no país. Esses três momentos foram assim denominados e organizados:
1) Da demência aos sanatórios. Compreende o período entre os anos de 1918 a 1989 e antecede
a instituição de uma rede de saúde mental em Campinas. Coincide com o momento da história da
Psiquiatria no Brasil em que a assistência à população portadora de transtornos psíquicos era realizada
exclusivamente dentro dos hospitais psiquiátricos: instituições construídas tendo como marca principal a
exclusão social, como vimos anteriormente. Em Campinas, no ano de 1918, foi criado o Hospital de
Dementes de Campinas, mais tarde denominado Sanatório Dr. Cândido Ferreira. Essa instituição se
caracterizava pela psiquiatria essencialmente biológica, associada à filantropia, sendo correspondente ao
cenário nacional. A compreensão deste primeiro momento da história da atenção à saúde mental em
Campinas nos servirá como um importante ponto de ancoragem para as representações sociais da loucura,
que, a partir de 1989, começaram a ser questionadas e alvo de intervenções que visavam sua
transformação.
2) A Co-Gestão na Saúde Mental. Compreende o período de 1989 até 1992, quando o Sanatório
Dr. Cândido Ferreira, a partir do convênio de co-gestão com a Secretaria de Saúde do Município de
Campinas, passa a ser denominado Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF). Este período abarca as
primeiras iniciativas de transformação da atenção no âmbito desta instituição, com a criação de novos
dispositivos de cuidado que, dentre outros objetivos, propunham os primeiros rompimentos com a antiga
cultura asilar. Não se pode, neste momento, afirmar a existência de uma rede de saúde mental, na medida
em que os dispositivos de cuidado deste período se restringiam ao espaço hospitalar e o Serviço de Saúde
Cândido Ferreira era a única instituição atuante na construção de um novo modelo de atenção. Este pode
ser considerado um momento preparatório para o período de desinstitucionalização.
3) A construção da Rede de Saúde Mental. Inicia em 1992, com a criação dos CAPS Aeroporto
e Integração pela Secretaria Municipal de Saúde, e se estende até os dias atuais. A criação desses dois
CAPS se deu em meio a um contexto político adverso ao projeto de transformação do modelo de atenção
à Saúde Mental, cujas dificuldades começam a ser superadas apenas em 2000, com uma nova gestão que
incentiva um maior intercâmbio entre o Serviço de Saúde Cândido Ferreira e a Secretaria Municipal de
Saúde.

186
3.1. De Hospital de Dementes de Campinas a Sanatório Dr. Cândido Ferreira (1924 a 1989):
antecedentes históricos da rede de saúde mental de Campinas.

A criação do Hospital de Dementes de Campinas foi marcada pela atuação dos jornalistas
Leopoldo Amaral e José Vilagelin Júnior que, em maio de 1917, publicaram no jornal “O Estado de São
Paulo” uma matéria denunciando as condições sub humanas em que viviam os doentes mentais na cadeia
pública de Campinas. Havia em várias cidades do Estado de São Paulo cadeias onde ficavam confinados
os doentes mentais à espera de uma vaga no Juquery, único hospital para doentes mentais do Estado nesta
época. Na referida reportagem, os jornalistas questionavam a não existência de uma instituição para
tratamento de doentes mentais em Campinas, tendo em vista que o Juquery não tinha condições de
atender às demandas daquela população.
Além disso, a reportagem denunciava de forma enfática a violência e a situação calamitosa em
que viviam as 21 pessoas presas numa espécie de calabouço da cadeia municipal de Campinas, sem
tratamento e sem qualquer tipo de higiene “pelo fato supersticioso de que o contato com eles poderia
transmitir a doença” (Passos, 1975, p.7). Esta “superstição” a respeito do contágio da doença mental pelo
contato remete-nos às idéias veiculadas à época dos Hospitais Gerais da França. Naquele tempo, como
apresentamos anteriormente, circulavam boatos a respeito do mal-podridão originário destas instituições
que causavam pavor à população vizinha, fazendo com que as pessoas evitassem ao máximo a
aproximação com seus doentes e prisioneiros.
A reportagem dos jornalistas Leopoldo Amaral e José Vilagelin Júnior resultou na doação de dois
contos de réis, realizada pela Sra. Sylvia Ferreira de Barros, juntamente com uma carta para a redação do
jornal. Nesta carta a doadora, que morava em uma chácara vizinha à cadeia municipal, mostrou-se
sensibilizada pela condição em que estavam vivendo tais doentes, e sugeriu que a sucursal do jornal
organizasse as doações para a criação de uma instituição filantrópica de cuidado aos doentes mentais. A
idéia foi acatada pelo jornal e foi aberta uma conta no Banco do Comércio e Indústria para este fim.
A Sra. Sylvia Ferreira de Barros iniciou uma campanha entre as amigas para arrecadação de
dinheiro, vendendo livros de receitas feitos por ela e incentivando outros membros da sociedade
campineira a colaborar com esta idéia, segundo Carlos Ferreira de Barros, filho da mesma, em entrevista
ao Jornal Candura, edição de novembro de 2003. No ano de 1918 foi criada a associação filantrópica para
construção de um hospício, com os recursos doados por membros mobilizados da sociedade campineira.
A diretoria provisoriamente eleita no dia da fundação da associação encarregou-se de comprar um
terreno e construir o prédio do futuro hospício. Em 14 de abril de 1924, o “Hospital de Dementes em
Campinas” foi inaugurado com grande solenidade, onde se fizeram presentes importantes políticos,
membros da Igreja Católica e pessoas da alta sociedade campineira. Vários discursos foram proferidos
exaltando a benevolência da sociedade campineira em seu ato de grande valor caritativo. Em seguida à
solenidade de inauguração, os 24 doentes que se encontravam na cadeia pública da cidade foram
transferidos para o hospital (Passos, 1975).

187
Em 1936, por sugestão de um dos sócios da associação filantrópica, o Hospital de Dementes
passou a se chamar Sanatório Cândido Ferreira, em homenagem ao Dr. Cândido Ferreira, advogado e pai
da Sra. Sylvia Ferreira de Barros, que foram os iniciadores da associação filantrópica e contribuíram
efetivamente na sua manutenção por vários anos, deixando inclusive, seu patrimônio para a instituição
depois de falecidos, segundo depoimento de familiares (Barros, Amaral, Amaral & Barros, 2003).
A sobrevivência do hospital nas suas primeiras décadas se deu por meio da arrecadação das
mensalidades dos sócios efetivos, pagamentos de diárias de pensionistas e doações advindas de diversas
fontes.

O hospital se localizava em uma área rural, o que reafirmava a necessidade de manter essa
população afastada do convívio social, evidenciando alguns elementos da representação social da loucura
predominantes naquele momento histórico, tais como a periculosidade, incapacidade para o trabalho nas
cidades e inadequação social. A Psiquiatria da época, convocada - política e socialmente - a manter a
ordem e estabelecer um padrão de normalidade adequado aos interesses da ordem social vigente, prezava
pelo afastamento e isolamento do anormal, do “louco”. “É como se o mal-estar gerado pela imperfeição
deste estado de ‘sermos humanos’ pudesse ser aliviado e resolvido com a exclusão e abandono dos
desviantes” (Venetikides, Maceno, D’Angelis & Valentini, 2001, p.53).
A instituição tinha pomar e criação de gado, nos quais os pacientes contribuíam, em regime de
laborterapia, na produção de gêneros alimentícios para ajudar na manutenção da instituição e a Secretaria
de Segurança do Estado assegurava a alimentação que não era produzida pelo hospital. Muitos pacientes
também trabalhavam em outros serviços necessários ao hospital, como lavanderia, jardinagem, cozinha e
manutenção do prédio (Mascarenhas, 1999).
É importante destacar que os trabalhos, realizados nos espaços de laborterapia não eram
remunerados, havendo apenas algumas trocas por doces, cigarros e alguns poucos privilégios, algo longe
de poder ser caracterizado como uma reabilitação pelo trabalho. Essa prática da laborterapia era corrente
em vários hospitais psiquiátricos brasileiros, seguindo o modelo implantado por Franco da Rocha na
Colônia do Juquery, como vimos anteriormente. No Sanatório Cândido Ferreira não eram estabelecidas,
como no Juquery, fases nesta “carreira laboral”, mas era visível a crença na necessidade de ocupação
dessa população “ociosa” e a utilização gratuita de sua mão de obra na manutenção da instituição.
O Sanatório Cândido Ferreira, desde sua criação, manteve sua imagem vinculada a uma obra de
caridade, o que enaltecia seus sócios e colaboradores, como pode ser evidenciado no discurso de Dr.
Washington Luiz no dia da inauguração do sanatório: “...o Hospital de Dementes é fruto esplendido da
reserva de generosidade do povo campineiro” (Passos, 1975, p.23). A presença e apoio da Igreja Católica
à obra beneficente conferia à instituição um caráter quase religioso. No entanto, sabemos que quando se
trata de obras de caridade, há uma tendência ao estabelecimento de relações entre desiguais: doadores e
destinatários. E nestes casos sempre prevalece o discurso do doador, autor da ação caritativa, em
detrimento daquele que recebe.

188
Segundo Valentini Jr e Vicente (2001) “a caridade contém um desejo de assistir, mas convive,
muitas vezes, pacificamente com a negação de direitos”. As obras de caridade, como o Sanatório Cândido
Ferreira, aparecem como forma de suprir a carência pela não-oferta ou oferta insuficiente no campo da
assistência, como podemos perceber a partir de sua história. Assim, essas obras são construídas baseadas
em discursos humanitários, o que torna quase inviável e aparentemente injusta qualquer crítica. (Valentini
Jr & Vicente, 2001).
É preciso lembrar que, a despeito das boas intenções da sociedade campineira no momento da
criação do Sanatório, a assistência prestada obedecia aos ditames da psiquiatria que vigorava na época.
Ou seja, era uma instituição que tinha como base de sua assistência a exclusão da diferença por meio do
enclausuramento da loucura.
O Sanatório configurava-se, até o final da década de 80 como uma instituição total, onde os
sujeitos permaneciam até o fim de suas vidas completamente restritos às normas institucionais. As duras
restrições à vida afetiva e à possibilidade de reconstruir sentidos de vida era representada pela ausência de
espaços de troca subjetiva qualificada para os pacientes, além de “geograficamente” marcada pela divisão
das alas masculinas e femininas, e alas de crônicos e agudos.
Além disso, os internos eram vítimas de inúmeras técnicas invasivas e violentas, próprias dos
manicômios, justificadas como terapêuticas pela antiga psiquiatria. O uso de celas fortes e medicação
abusiva eram comuns na instituição. Cabe lembrar que, apesar de estarmos falando do passado do SSCF,
ainda hoje existem no país, inúmeras instituições cuja utilização de tais técnicas e procedimentos faz parte
do cotidiano, como pudemos verificar no Relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos,
realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (2000).

O uso de eletrochoques foi feito indiscriminadamente e quase que experimentalmente, até o final
da década de 1980. Em livro que conta a história da
associação filantrópica, é relatada a doação de um “moderno
aparelho de eletrochoque” ao hospital em 1961, pelo Dr.
Edmundo Maia, na época Diretor do Serviço Nacional de
Doenças Mentais. O Dr. Edmundo Maia nesta época era
proprietário de um hospital privado, uma empresa lucrativa,
que continha uma enorme quantidade de leitos
psiquiátricos65.
Figura 18: Aparelho de Eletrochoque.
Foto de Jossonhir Brito, 2003.

Até 1975, no que diz respeito à administração dos recursos financeiros da instituição, os dados
mostram que a instituição sobrevivia bem com as doações dos filantropos. Após este período, a instituição
começa a entrar em declínio financeiro, fruto da má administração e dos escassos recursos. Neste período,
a instituição firma um convênio com a Secretaria de Saúde do Estado, dependendo exclusivamente desta.
65
Esse mesmo hospital foi alvo de intervenção pelo Estado e por Comissões de Direitos Humanos em 1989.

189
A partir de então, os recursos começam a se tornar cada vez mais escassos, e a instituição entra em um
processo de insolvência financeira, iniciando inclusive a construção de uma ala para atender pacientes
particulares, com a finalidade de complementar a renda. Cabe lembrar que a clientela do Sanatório
Cândido Ferreira era composta principalmente por indigentes e pessoas que não tinham nenhum convênio
de saúde privado.
Com a nova Constituição pretende-se acabar com a figura do indigente, por meio da
universalização dos direitos no campo da seguridade social. A promulgação da Constituição de 1988
marca o início de uma nova fase social e política do país. Esta Constituição, considerada Constituição
Cidadã, é o marco da redemocratização do país, pois em sua elaboração, começam a ser vislumbrados
novos caminhos para inclusão de segmentos excluídos da sociedade.
Em 1989, governos de esquerda assumem as prefeituras de algumas grandes cidades no Brasil,
sendo estas São Paulo, Santos, Campinas e Porto Alegre. Esses novos governos iniciaram sua atuação
priorizando atenção e inclusão das populações excluídas do campo da seguridade social. Um exemplo
disso é a intervenção feita no Hospital Anchieta, Hospital Psiquiátrico de Santos no ano de 1989, relatada
no capítulo sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil.
Nesse mesmo ano, em Campinas, a Secretaria Municipal de Saúde, com o intuito de humanizar e
democratizar a assistência, inicia um processo de aproximação com o Sanatório Cândido Ferreira, no
sentido de transformar a assistência prestada por esta instituição.

3.2. A Co-Gestão na Saúde Mental. De Sanatório a Serviço de Saúde Cândido Ferreira (1989-1992)

Em 1989, a situação do Sanatório Dr. Cândido Ferreira era de grande miséria e a situação dos
doentes mentais era de abandono e negligência, devido aos graves problemas financeiros e
administrativos da instituição. Assim que o governo do Partido dos Trabalhadores assumiu a prefeitura do
Município, em 1989, iniciaram-se negociações para resolver a situação da instituição. Em 1990 foi
firmado o convênio de co-gestão da Secretaria de Saúde do município com o Sanatório Dr. Cândido
Ferreira que, a partir, de então passou a ser denominado Serviço de Saúde Cândido Ferreira (SSCF).
O convênio de co-gestão consistiu na inclusão da instituição no SUS e em uma nova forma de
gestão. A gestão da instituição filantrópica, deste momento em diante, passou a ser compartilhada com
representantes da esfera governamental e outros atores representantes da sociedade civil. Desta forma, a
co-gestão pode ser caracterizada enquanto uma relação de co-responsabilidades entre poder público,
poder privado filantrópico e sociedade civil organizada em prol da atenção à população SUS dependente.
A relação entre as instituições, a partir do convênio de co-gestão, ultrapassou a dimensão
puramente administrativa, podendo ser compreendida como uma relação política, na medida em que
trouxe como princípio a construção de novos paradigmas de atenção à saúde mental para todos os
envolvidos neste processo, desde pacientes até a sociedade civil. Este convênio viabilizou um projeto
pode ser considerado um projeto de humanização, na medida em que tocava os interesses de toda a

190
população e propunha uma nova forma de gestão de recursos para a saúde e, em última instância, algumas
mudanças na organização social (Valentini, 2003, setembro; comunicação pessoal).
Em 1959, foi criado no ainda Sanatório Cândido Ferreira o Conselho Deliberativo da Sociedade,
que contava com a presença de cidadãos da sociedade campineira e tinha por função abrir espaço para
participação de um maior número de pessoas na gestão da associação. Em 1990, após o convênio de co-
gestão, esse conselho deliberativo passou a ser chamado de conselho diretor e foi ampliado, passando a
contar com cinco representações, quais sejam: representantes da associação filantrópica, da prefeitura, da
universidade, dos trabalhadores da instituição e representantes do governo do Estado.
Atualmente, este conselho conta com outras representações que se juntaram às anteriores, sendo
estas: membros representantes do conselho municipal de saúde, representantes dos pacientes e dos
familiares. O objetivo central deste conselho é colocar em condição de negociação os diversos olhares
que compõem a vida da instituição, qualificando os diversos interesses que estão envolvidos neste novo
modelo de atenção que está permanentemente sendo construído no cotidiano (Valentini, 2003, setembro;
comunicação pessoal).
Uma característica importante do processo de abertura e que permitiu que o projeto de
transformação da instituição permanecesse em desenvolvimento há mais de uma década, é o fato deste ser
um projeto supra partidário. Apesar do convênio ter sido firmado em um governo de esquerda, desde o
início não havia intenção de filiar o projeto a nenhum partido político específico. O compromisso
primordial, segundo os protagonistas desse processo, sempre foi com a proposta de transformação da
atenção à saúde mental, o que permitiu ao projeto sobreviver mesmo em momentos de grande
adversidade política.
Desde 1989 Campinas já passou por alguns governos de orientações políticas e prioridades
diversas, tendo como conseqüência diferentes investimentos no processo de transformação da atenção em
saúde mental. Houve momentos em que se tentou romper com o convênio, considerando-o um gasto
desnecessário, o que acarretou cortes orçamentários drásticos para a instituição. Entretanto, em outros
momentos, como o da gestão de 2001 a 2004, relações de parcerias e confluência de ideais se efetivaram.
O projeto sobreviveu às diferentes correlações de força políticas e mostrou sinais de solidez pela
confiabilidade nele depositada por parte da população do município.
A credibilidade que o SSCF, com o apoio da Secretaria Municipal de Saúde, foi construindo ao
longo dos últimos anos, devido ao êxito das experiências iniciadas a partir de 1989, fez com que se
criasse uma rede de apoio composta por membros da sociedade civil, especialmente composta por
jornalistas que acompanham tudo o que se passa dentro da instituição. O apoio da mídia, presente desde a
criação da instituição, tem sido um dos pontos fortes do projeto, pelo poder de esclarecimento acerca dos
novos modos de cuidar em saúde mental e também pelo forte poder de mobilização característico deste
meio.

191
- A criação da Unidade de Reabilitação de Moradores: o ponto de partida para outras iniciativas

O processo de transformação interna da instituição começou a se efetivar no ano de 1991, com a


criação da Unidade de Reabilitação de Moradores, em substituição à antiga ala de crônicos. Um outro
olhar foi empreendido para esta população, que até então tinha como único prognóstico a desesperança e
a falta de perspectivas, impostas pela eterna permanência no hospital. Um novo olhar que conseguia
enxergar naquelas pessoas consideradas “crônicas” um futuro para além da instituição.
Iniciou-se, a partir de então, um resgate da história destas pessoas. Foram retomados alguns laços
familiares perdidos há muitos anos, algumas pessoas tiveram alta e outras transferidas para instituições
mais adequadas às suas necessidades.
O resgate da identidade das pessoas foi simbolizado pelo trabalho de parceria com a promotoria
da cidadania existente em Campinas, que fez uma campanha para descobrir os registros dos pacientes que
não tinham nenhuma documentação. Após alguns meses, aos poucos foram chegando pelo correio
inúmeras certidões de nascimento e carteiras de identidade, que foram entregues aos seus donos em uma
solenidade realizada especialmente para este fim. Esta solenidade foi filmada e constitui parte da história
da transformação da instituição. Foi um acontecimento marcado pela emoção, onde as pessoas puderam
confirmar as histórias contadas durante anos e muitas vezes não ouvidas ou desacreditadas por aqueles
que as tratavam. Foi uma oportunidade para resgatar o lugar de cidadãos de direito e a história de suas
próprias vidas, a partir de então, confirmadas legalmente.
Uma avaliação cuidadosa foi feita com cada paciente no sentido de construir um projeto
terapêutico individual (PTI), o que marcou uma diferença substancial com o modelo anterior, onde havia
um tratamento padrão em que era considerado exclusivamente o diagnóstico psiquiátrico. Com a nova
Unidade de Reabilitação de Moradores foi feita uma reestruturação das alas, que a partir de então
passavam a ser mistas. Os pacientes foram separados de acordo com o grau de autonomia, tendo cada ala
um trabalho adequado às necessidades de seus internos.
Vale a pena lembrar que este processo de mudanças tão radicais na estrutura e concepção de
instituição não se deu de forma tranqüila, pois inúmeras resistências dos modos antigos de tratar ainda se
faziam presentes, tanto da parte dos técnicos, quanto dos próprios pacientes.
Por parte de muitos técnicos, especialmente aqueles que já trabalhavam no SSCF antes da co-
gestão, ainda havia fortes resquícios manicomiais, pois estavam acostumados com uma rígida hierarquia
de trabalho, não lhes cabendo a participação e protagonismo de ações. A divisão dos grupos de técnicos
entre os “novos” e os “antigos” foi inevitável e, diante dessa situação, um processo de reorganização da
estrutura de trabalho se fez necessário.
Optou-se por investir em novas relações institucionais e criação de espaços para o exercício da
participação. A partir da co-gestão, todas as decisões referentes ao processo de trabalho e à nova
concepção de instituição que estava nascendo, foram negociadas e discutidas com trabalhadores e
usuários em rodas abertas, inspiradas na metodologia de Paulo Freire. A prática de fazer assembléias com

192
todos os técnicos e usuários também foi inspirada no trabalho realizado por Basaglia que, tanto em
Gorizia como em Trieste, instaurou o hábito das decisões serem tomadas em encontros onde todos os
membros participavam ativamente.

Foram convidados a participar da construção desta nova prática, estudantes universitários que,
com suas perguntas inquietantes, traziam novas e importantes reflexões ao processo de transformação.
Perguntas como “por que aqui os bailes acontecem sexta-feira às duas da tarde?”, “por que aquele
paciente pode sair, e aquele outro não?”, dentre outras, apontavam a necessidade de um exame mais
cuidadoso das práticas até então comuns e não refletidas. E este exame, conseqüentemente, fez emergir a
necessidade de ressignificação das práticas e concepções acerca do doente mental e da própria instituição.
Um exemplo de ressignificação das concepções e práticas que permeiam o ambiente de um hospital
psiquiátrico, foi a relação reestabelecida com os elementos da vida social, que passaram a figurar no
cotidiano da instituição.
Logo nos primeiros meses do convênio de co-gestão, Valentini (2003, setembro; comunicação
pessoal) nos conta do falecimento de um paciente, que gerou questões em toda a equipe.
Tradicionalmente em um hospital psiquiátrico, quando morre um paciente não há nenhuma espécie de
ritual fúnebre. O corpo é simplesmente retirado de cena, sem qualquer explicação ou possibilidade de
elaboração desta perda. Diante das dúvidas da equipe sobre o que fazer, o Superintendente respondeu:
“Em geral como é que vocês fazem? Como é que vocês fazem lá no bairro quando morre alguém?” Ao
que a equipe respondeu: “Ah, lá a gente tem que fazer velório e tal.” A partir desta colocação, questiona-
se se o paciente, sua família e amigos têm direito a velório ou não, ao que se conclui que sim. Deste
momento em diante, os velórios passaram a ser vividos como um dos rituais próprios do cotidiano,
evidenciando sinais de abertura da instituição para o mundo social e seus códigos.
Segundo Valentini (2003, setembro; comunicação pessoal) “ restaurar os valores e rituais
presentes na cultura negados pela lógica manicomial também é defender os direitos humanos.” Desta
forma, prega uma não banalização da morte e dos demais valores culturais, como uma mudança de
postura necessária à instauração de uma novo modelo de cuidados em Saúde Mental.
No que diz respeito ao gerenciamento da instituição em seu processo de transformações,
inicialmente foi criado um Conselho Técnico Administrativo composto por técnicos para discutir
semanalmente com a Superintendência os rumos da instituição e criar soluções para os novos desafios
decorrentes deste momento.
A partir de 1991 foi criado o colegiado de gestão, onde foram eleitos gerentes para cada equipe de
trabalho, compartilhando desta forma a gerência da instituição. Os gerentes que coordenavam as equipes
tinham formações diversas, havendo inclusive técnicos sem formação universitária que gerenciavam as
áreas meio, como transporte, limpeza e segurança. A constituição deste colegiado foi de fundamental
importância para propiciar às equipes uma maior autonomia em suas decisões e possibilidades de troca de
experiências entre as mesmas.

193
O colegiado de gestão existe até hoje e tem reunião semanal que conta com a participação dos
gerentes de todos os serviços ligados ao SSCF, quais sejam: o Núcleo Clínico, Núcleo de Atenção à
Crise, Núcleo de Atenção à Dependência Química, Centro de Convivência e Arte e os CAPS Estação,
Toninho e Esperança. Além deste colegiado de gestão, há também o colegiado aberto, que é um espaço
para que todos os profissionais, usuários, familiares, visitantes e outros interessados participem das
discussões acerca do funcionamento do SSCF.
Quanto aos pacientes, a grande maioria já havia adquirido os “vícios” das instituições totais, onde
são confiscadas toda autonomia e possibilidade de escolhas destes sujeitos. Desde o início da co-gestão,
no entanto, a desinstitucionalização tornou-se uma meta a ser alcançada e a reabilitação psicossocial
passou a ser o centro de todos os projetos terapêuticos individuais. Isso significa que a reconstrução da
autonomia e resgate de uma cidadania possível ocuparam um lugar central neste processo de
transformação.
Ainda em 1991, a Unidade de Reabilitação de Moradores foi dividida em quatro alas: Arco-Íris,
Casa Branca, Paraíso e Primavera.
A ala Arco-Iris foi a primeira ala a ser desativada. Ocupando uma área um pouco afastada do
conjunto de prédios do Cândido Ferreira, o espaço onde existia esta ala ficou alguns anos desativado. Em
1997 foi criado neste prédio o atual Centro de Convivência e Arte, que será apresentado mais à frente. Os
pacientes moradores da ala Arco-Iris foram os primeiros a ser desospitalizados e em dezembro de 1992
foram morar no primeiro lar abrigado da cidade.
Esse lar abrigado situava-se à 3 Km do hospital e foi planejado para receber seis moradores “com
autonomia suficiente para dispensar a monitorização constante por parte da equipe do Hospital, que limita
seu aporte a uma visita semanal” (Furtado & Pacheco, 1997, p.86). Atualmente esta moradia está sob os
cuidados do Núcleo Clínico do SSCF. Essa foi a experiência pioneira das moradias em Campinas, que
atualmente conta com mais de 30 residências com tipos de assistência variáveis de acordo com o grau de
autonomia dos usuários. Atualmente essas residências estão sob a coordenação dos CAPS, conforme será
apresentado adiante.

A ala Casa Branca, atual Núcleo Clínico, foi destinada aos pacientes mais idosos e com maiores
comprometimentos clínicos e psiquiátricos, decorrentes dos longos anos de internação. Atualmente o
Núcleo Clínico abriga em torno de 35 pessoas, entre homens e mulheres e há alguns anos montou a
primeira moradia de alta complexidade: uma moradia com assistência 24 horas e com dois auxiliares por
período. A experiência desta moradia foi o resultado de um longo processo de aprendizagem da equipe no
cuidado com essa clientela. Os técnicos acreditavam inicialmente, que esta população da ala Casa Branca
morreria dentro do hospital, devido às suas características já relatadas anteriormente. Após o convívio e o
lento trabalho de reabilitação, foi tentada a experiência de montagem desta moradia de alta complexidade,
resultando em uma inestimável melhoria da qualidade de vida de pessoas que já não se acreditava
pudessem sobreviver fora do hospital.

194
Apesar das limitações vividas por estes usuários, mesmo em uma moradia extra-hospitalar, esta
experiência foi de grande importância, pois se constatou naquele momento que, se aquela população da
ala Casa Branca podia sair do hospital, com melhorias na qualidade de vida, todos os outros poderiam
também ser desospitalizados (M., 2003, setembro; comunicação pessoal).
A ala Paraíso foi ocupada inicialmente pelos pacientes com nível intermediário de autonomia que,
aos poucos, foram sendo desospitalizados, indo morar em uma das várias moradias extra-hospitalares. A
equipe da ala Paraíso, no momento de sua criação, ficou responsável pela ala Primavera, que era uma casa
dentro dos limites do hospital e abrigava pacientes com autonomia para viver em uma casa.
A equipe da ala Paraíso foi aprimorando sua forma de cuidar dos pacientes, a ponto de, em março
de 2000, ter sido desativada, devido ao rápido processo de desospitalização de seus pacientes. Muitos
pacientes que moravam nesta ala foram transferidos para residências terapêuticas, até este momento
denominadas de moradias extra-hospitalares, conforme registrado no vídeo Ide por todo o mundo,
produzido pela equipe de assessoria de comunicação do SSCF. Em abril de 2000 a equipe da ala Paraíso
deu origem ao CAPS Estação e a ala Primavera naquele ano passa aos cuidados do atual Núcleo Clínico.
A ala Primavera foi a primeira experiência de pensão protegida, e foi montada de forma a
reproduzir um espaço doméstico. Segundo relatos de pessoas que trabalhavam na época nesta unidade de
reabilitação, os próprios moradores escolheram o nome da casa, o lugar de suas acomodações e suas
roupas de cama. Os outros utensílios já haviam sido comprados para a ala particular que estava sendo
montada ainda antes da co-gestão como forma de arrecadação do hospital e foram aproveitados para esta
casa. Foi montado um posto de enfermagem e inicialmente, nos primeiros meses de adaptação, um
auxiliar dormia na casa. Neste espaço, os pacientes faziam comidas simples como bolo, lanche e café,
mas as refeições continuavam a ser feitas no refeitório do hospital, como acontece até hoje. Inicialmente
eram realizados grupos operativos todas as semanas para organização do cotidiano e discussão do
relacionamento entre os moradores. Em muitos casos a permanência nesta “ala-casa” Primavera foi uma
experiência intermediária para uma moradia na cidade. Atualmente a ala Primavera abriga em torno de 15
moradores, que estão sob os cuidados do Núcleo Clínico do SSCF.

- A criação e trajetória do Hospital Dia


Ainda em 1991 é criado, dentro do espaço físico do SSCF, o Hospital Dia (HD) com a proposta
de ser um equipamento intermediário de atenção, pois o que havia até então era a internação, as moradias
e os centros de saúde. Alguns centros de saúde da cidade já possuíam equipes mínimas de saúde mental,
mas não conseguiam atender às necessidades da população, na medida em que o trabalho realizado em
um centro de saúde é basicamente ambulatorial. Era urgente a necessidade de criar um equipamento que
fizesse um trabalho intermediário, construindo um caminho entre a internação e o tratamento
ambulatorial, e que trabalhasse no sentido de mudar a cultura de que o tratamento em saúde mental se dá
somente quando o usuário está internado.

195
A expectativa inicial da equipe do HD era de que a clientela predominante que iria chegar a este
serviço fosse de pessoas mais jovens, de primeiro surto, para os quais este equipamento intermediário se
apresentava como ideal. Esta clientela, no entanto, em pouco tempo começou a modificar o seu perfil e
começaram a chegar também ao HD pessoas com longa história de tratamento psiquiátrico e já com
alguns comprometimentos devido aos anos de internação. Tratavam-se de pessoas que ficavam em casa,
com consultas ambulatoriais uma vez por mês, e que não tinham nenhuma atividade ou rede social
constituída. Assim, o HD passou a ser uma referência também para este grupo de pessoas que viam neste
equipamento, além de um serviço intermediário, uma outra possibilidade de reabilitação, de convivência e
constituição de uma rede social.
Como no momento de sua criação o HD era o único equipamento da cidade com estas
características, ele começou a absorver a demanda de toda a cidade e em dois anos de funcionamento
atendia a mais de 100 pacientes, enquanto que no restante do país, a regra era de trinta a cinquenta
pacientes freqüentando os Hospitais-Dia. Inicialmente, o HD atendia também dependentes químicos
devido à falta de equipamentos especializados para essa demanda. Somente alguns anos depois, com a
criação de serviços especializados em drogadição na cidade, é que esta demanda foi encaminhada.
Pouco tempo depois, no ano de 1992, outros equipamentos de saúde mental foram criados na
rede, como os CAPS Integração e Aeroporto e, em 1998, a cidade foi regionalizada, ficando o HD como
uma referência somente para a Região Leste. Os pacientes que moravam em outras regiões eram
encaminhados aos serviços pertencentes ao seu distrito de referência. Cabe ressaltar que em um primeiro
momento, mesmo com a regionalização, o HD continuou sendo referência, inclusive para os CAPS
Integração e Aeroporto, pois permanecia a idéia do HD como um equipamento intermediário. Assim,
mesmo depois de sair da internação, o paciente ainda ficava freqüentando o HD por alguns dias dentro do
espaço físico do SSCF, para aos poucos voltar ao seu território de origem.
Outro ponto a ressaltar é que a regionalização da cidade não se deu para essa clientela de forma
rígida, pois ao longo dos anos anteriores, vínculos foram criados entre pacientes e equipe e, mesmo
depois da regionalização, alguns pacientes que não eram da região Leste - região de referência do HD -
continuaram a freqüentar este serviço.
Em 1999, com a transformação da ala Paraíso em CAPS Estação e a mudança deste novo serviço
para o centro da cidade, tornava-se difícil para a antiga equipe da ala Paraíso continuar gerenciando a ala
Primavera e as moradias existentes em Sousas66. Assim, como foi dito anteriormente, o Primavera passa
aos cuidados do Núcleo Clínico e as 14 moradias gerenciadas pela equipe da ala Paraíso passam a ser de
responsabilidade do HD.
Este momento foi marcado por várias negociações dentro da equipe, pois nem todos os técnicos
concordavam com a incorporação destas moradias ao trabalho realizado pela equipe do HD. As
divergências eram devido às diferenças da clínica que se pretendia fazer inicialmente no HD e a clínica

66
Quando nos referimos a Sousas e Joaquim Egídio, estamos falando de dois distritos do município de Campinas,
ambos ligados à região Leste.

196
para atendimento desta população das moradias, que apresentava maiores comprometimentos, decorrentes
dos longos anos de internação. Mas apesar das divergências do primeiro momento, o HD assumiu os
cuidados da maior parte das moradias e seus moradores.
Em 1999, a equipe do HD começa a vivenciar alguns limites da atuação deste equipamento.
Como era um serviço que funcionava em horário comercial, alguns pacientes “se perdiam” se por acaso
necessitassem de um cuidado aos finais de semana e nas noites. Assim, uma estratégia utilizada pela
equipe, antes do HD ser transformado em um CAPS III, foi instituir o leito-noite, que era uma vaga que o
paciente poderia utilizar no Setor de Internações67 caso necessitasse, voltando a ser acompanhado no dia
seguinte pela equipe do HD.

- A criação do Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT)


Antes do convênio de co-gestão, os pacientes do hospital trabalhavam em várias atividades de
manutenção como lavanderia, jardinagem, limpeza, entre outras. Tais atividades eram feitas pelos
pacientes em regime de laborterapia, como forma de suprir a falta de pessoal para trabalhar na instituição
devido à precária situação financeira em que esta se encontrava. As atividades não eram remuneradas,
sendo o trabalho trocado algumas vezes por doces, cigarros ou outro tipo de privilégio como por exemplo,
ter direito a algumas saídas do hospital.
Havia um setor de Terapia Ocupacional, onde eram realizadas algumas atividades como
marcenaria, pintura e montagem de prendedores de roupa para uma fábrica. Aos poucos as terapeutas
ocupacionais que trabalhavam na instituição na época, começaram a introduzir algumas mudanças nas
atividades existentes, propondo alterações que propiciassem maiores possibilidades de contato entre os
usuários. Os pacientes começaram a trabalhar sentados de frente uns para os outros e foi estabelecida a
“hora do cafezinho”, dentre outras pequenas mudanças aparentemente sem maior importância, mas que
começavam a conferir algum sentido ao trabalho.
Uma outra iniciativa foi a de começar algum um tipo de remuneração sistematizada. Como as
regras institucionais da época não permitiam que se entregasse dinheiro para os pacientes, então as
terapeutas ocupacionais criaram um sistema de fichas, onde cada paciente era remunerado de acordo com
a sua produção. Essa mudança a princípio pequena, parece ter tido um sentido na época, pois
anteriormente a isso, alguns pacientes trabalhavam, mas todos recebiam os “prêmios” (cigarros, doces...)
de forma igual. Com o sistema de fichas, o pagamento passou a ser progressivamente individualizado e os
pacientes poderiam usar suas fichas para escolher algum artigo no bazar da instituição.
Logo no início da co-gestão, em 1991, foi criado o Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT) com
duas frentes de trabalho - oficina agrícola e culinária - para atender alguns poucos usuários. Aos poucos,
foram sendo vislumbradas outras parcerias de trabalho, inclusive com a comunidade ao redor.

67
O Setor de Internação consistia no antigo Núcleo de Agudos e atendia, em regime de internação, psicóticos,
neuróticos graves e drogaditos. Desde 2001 este setor foi dividido em Núcleo de Atenção à Crise (NAC) e Núcleo
de Atenção à Dependência Química (NADEC), que existem até hoje e atuam como retaguarda para o trabalho dos
CAPS.

197
Em 1993, alguns técnicos envolvidos com este espaço criaram a Associação Cornélia Vlieg,
como forma de desburocratizar as relações financeiras das oficinas, conferindo maior autonomia às
mesmas. Essa associação atualmente é reconhecida como órgão de utilidade pública e viabiliza parcerias
com outras entidades.
O nome da associação é uma homenagem à terapeuta ocupacional Cornélia Vlieg, que trabalhou
no Sanatório Dr. Cândido Ferreira de 1970 a 1987. Cornélia Vlieg é uma freira holandesa que veio ao
Brasil a pedido de irmãs missionárias, segundo informações fornecidas pela mesma, em entrevista ao
jornal Candura, edição de abril de 2004. Nos anos em que trabalhou na instituição, dedicou-se à terapia
ocupacional, sempre conseguindo donativos e fazendo um trabalho de
natureza caritativa junto aos pacientes. Cornélia Vlieg era uma referência
importante para os pacientes, segundo informações de funcionários que
trabalhavam na instituição neste período.
O NOT, que inicialmente contava com duas “oficinas” (denominadas
à época de frentes de trabalho), atualmente é composto por 12 oficinas de
trabalho, sendo 9 delas realizadas no espaço físico do SSCF e as outras 3 no
Armazém das Oficinas, uma loja no centro de Campinas que comercializa os
produtos deste núcleo.
Figura 19: Capa do catálogo do
Armazém das Oficinas.
Foto de Jossonhir Brito, 2005.
Figura 20: Oficina de Mosaico
Em cada oficina trabalha um monitor que domina a técnica
a ser utilizada na confecção dos produtos e alguns
estagiários. Há também um terapeuta responsável pelas
oficinas. O número de participantes depende da
capacidade de absorção de cada espaço onde ocorre a
oficina. Nas doze oficinas, no momento da pesquisa de
campo estavam cadastrados um total de aproximadamente
250 pessoas, que freqüentavam as oficinas em horários
regulares e predeterminados, atendendo as demandas individuais e da produção. Cada pessoa que
freqüenta as oficinas possui um prontuário, onde são anotadas suas evoluções, que servem de registro e
apoio para as intervenções terapêuticas necessárias.
As oficinas funcionam como mini cooperativas, onde os lucros são usados para compra de novos
materiais e o restante é dividido pelas pessoas que trabalham, de acordo com a produção de cada um e a
qualidade dessa produção.
As oficinas são oportunidades profissionais que se abrem aos usuários, mas são principalmente,
espaços que auxiliam na reconstrução do sentido de existir, a partir de uma atividade de reconhecido valor
social. O trabalho remunerado muitas vezes auxilia o sujeito a restaurar sua capacidade de negociação e
de realização de pequenos sonhos, pequenos desejos cotidianos. Além do poder de compra que os

198
freqüentadores adquirem ao trabalhar nas oficinas, há também a construção de um saber, o aprendizado
de uma profissão, e uma valorização da bagagem que o sujeito já traz consigo.
A conquista de um lugar social torna-se uma realidade com o reconhecimento da produção de
cada uma das oficinas que trabalham de forma integrada. Este reconhecimento pode ser representado pela
existência do “Armazém das Oficinas”, que é uma loja de fácil acesso e que permite uma visibilidade
social às obras produzidas.
Vale a pena ressaltar uma característica valiosa no que diz respeito à qualidade da produção. Em
muitas instituições de atenção à saúde mental, a
produção é o resultado de oficinas que cumprem
uma função apenas de “ocupação” dos
freqüentadores e apela para a “caridade” do
comprador, pelo fato de seus produtos não terem
uma qualidade que confira certa competitividade
no mercado consumidor. As produções do NOT
ultrapassam esse apelo caritativo, pois possuem
uma visível qualidade estética e funcional, que
lhes confere competitividade de mercado.
Figura 21: Oficina de Papel Reciclado

Devido à qualidade dos produtos, as obras dos usuários vêm ocupando cada vez mais espaços no
cotidiano da cidade e tornando reconhecidos os talentos de cada um, que se exprimem em forma de
beleza e compromisso com o aprimoramento da produção.
Atualmente o Ministério da Saúde vêm incentivando a criação das oficinas de trabalho protegido,
com o objetivo de fomentar iniciativas de geração de renda para as pessoas com histórico de
institucionalização. Os projetos de geração de renda para essa clientela ainda são poucos, sendo a
experiência de Campinas um dos primeiros trabalhos neste sentido e constituindo-se em modelo para este
tipo de iniciativa.

3.3. A construção da Rede de Saúde Mental de Campinas: A criação dos CAPS (de 1992 aos dias
atuais)
“Esse é o papel fundamental dos CAPS: recuperar vidas,
recuperar biografias – verdadeiras colchas de retalho! – e o
mais importante, não permitir que usemos, no futuro,
o termo “reinserção” social das pessoas, pois trabalharemos
para que elas não sejam excluídas e que continuem
inseridas na vida apesar de estarem adoecidas”
(Florianita Campos – Coord. de Saúde Mental de Campinas
Fonte: Jornal Candura, edição de setembro de 2002)

Este terceiro momento na trajetória da Saúde Mental no município de Campinas foi delimitado a
partir da constituição dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, conforme explicitado

199
anteriormente. A justificativa para escolha deste marco histórico é o fato de que os CAPS são
considerados, dentro da atual política de saúde mental do Ministério da Saúde, “dispositivos estratégicos
para a organização da rede de atenção em saúde mental” (Ministério da Saúde, 2004, p.78), merecendo,
portanto, um destaque no que diz respeito à constituição desta rede de atenção.

O primeiro CAPS do Brasil, como apresentado anteriormente, foi criado em 1986 na cidade de
São Paulo, iniciando o processo de criação de outros CAPS em vários estados do país. Em poucos anos,
estes novos serviços de atenção à Saúde Mental foram se consolidando enquanto dispositivos eficazes na
diminuição das internações e na reformulação do modelo assistencial. Regulamentados em 1992 como
serviços intermediários entre a internação e o tratamento ambulatorial, em 2002, os CAPS assumem a
tarefa de substituírem o hospital psiquiátrico, constituindo-se a partir de então em serviços estratégicos na
reorientação do modelo de atenção à saúde mental no país.
Na região da “Grande Campinas”, entre os anos de 1989 a 1992 foram fechados 3 hospitais
psiquiátricos, demandando um aumento da oferta de serviços substitutivos. Em conseqüência disso, ainda
no final do primeiro governo em que foi firmado o convênio de co-gestão, foi realizado em Campinas um
Seminário de Saúde Mental do Município. Este seminário, ocorrido no ano de 1992, colocou como
prioridades até o final do mandato, neste mesmo ano, a criação de dois CAPS em áreas até então
descobertas da cidade, quais sejam as regiões Sudoeste e Noroeste, aproveitando a recém regulamentação
destes serviços.
A criação dos dois CAPS, fora dos limites físicos do SSCF, inicia um novo momento na saúde
mental de Campinas. A partir deste ano de 1992, pode-se dizer que teve início a construção de uma rede
de serviços descentralizados, contando com a participação de novos atores na sua gestão.

- A criação dos CAPS Integração e Aeroporto: um momento de adversidades


Ao final de 1992 foram criados os CAPS Integração e Aeroporto pela Secretaria de Saúde e as
equipes começaram a ser montadas para implantação destes novos serviços. Ao final daquele ano, no
entanto, houve a mudança de governo, que modificou as prioridades do município e não foram feitas as
contratações que ainda faltavam para a completa efetivação dos CAPS recém criados.
As equipes dos CAPS Integração e Aeroporto ficaram à espera de novas contratações o que não
ocorreu. Locais pouco adequados foram alugados para montagem dos CAPS e após alguns meses as
equipes destes serviços fizeram suas inaugurações à revelia da Secretaria de Saúde, que não ofereceu o
apoio necessário.
A montagem destes dois CAPS se deu de forma precária e com o importante auxílio das
comunidades nas quais foram implementados. A precariedade e a falta de apoio por parte da Secretaria de
Saúde da época para a implantação destes dois CAPS teve um efeito inesperado: as equipes se
empenharam sobremaneira na mobilização das comunidades nas quais os serviços estavam inseridos e
estas passaram a apoiar de forma surpreendente o trabalho dos mesmos. O CAPS Integração, por

200
exemplo, foi mobiliado com doações da comunidade e o CAPS Aeroporto contou com o auxílio da
comunidade para organizar uma festa de inauguração, a despeito da falta de apoio da prefeitura.
Esta forte parceria entre os serviços e as comunidades pode ter inúmeras razões. Uma delas
parece ser o fato de que tais comunidades são de baixa renda, sendo 90% da população SUS dependente.
Isso significa que a própria comunidade seria a primeira beneficiada com a instalação de tais serviços.
Este parece ser um fator importante na regulação das relações entre serviços de saúde e comunidades.
Outro fator relevante para o estabelecimento destas relações de proximidade entre os serviços e as
comunidades foi o próprio trabalho de mobilização da vizinhança realizado pelas equipes dos CAPS.
Esta situação é um exemplo claro da relação direta entre a orientação governamental e os
investimentos nas políticas saúde mental. A implementação destes dois CAPS demonstra as dificuldades
que permearam o processo de construção da rede de atenção à saúde mental em Campinas. Neste governo
do período de 1992 a 1996, inúmeras dificuldades foram colocadas na continuidade da execução do
projeto de co-gestão. As verbas para os CAPS gerenciados pela Secretaria de Saúde (Integração e
Aeroporto) foram reduzidas a valores mínimos e a verba destinada ao SSCF foi reduzida a um terço, o
que levou a instituição a contrair uma enorme dívida com outras instituições da cidade. Este foi um
momento peculiar na história da saúde mental de Campinas, pois novos modos de enfrentamento das
adversidades foram construídos o que, de certa forma, favoreceu uma maior coesão das equipes e um
estreitamento de laços com a comunidade.
O SSCF, por exemplo, mesmo com sua verba reduzida a um terço, aceitou receber uma grande
quantidade de pacientes vindos de outros hospitais em fechamento, como forma de aumentar a
arrecadação. Esse ato, que implicou em uma maior dedicação de todas as equipes da instituição sem o
acréscimo salarial correspondente mostrou, de forma corajosa, a credibilidade que os técnicos conferiam
ao projeto e à viabilidade do mesmo. Essa aposta feita pelos profissionais é um ponto fundamental para a
efetivação das experiências de Reforma, pois os profissionais são, talvez, os grandes responsáveis pelo
êxito das iniciativas em saúde mental. São eles que ocupam o lugar privilegiado de agentes de
transformação, tanto da qualidade da atenção, como das relações políticas e sociais que se estabelecem
entre a comunidade e os serviços e seus usuários.
Atualmente os CAPS Integração e Aeroporto mantêm uma relação de grande proximidade com as
comunidades em que estão inseridos, fruto deste primeiro momento de adversidades, no qual os recursos
da população local foram mobilizados. O CAPS Integração, por exemplo, ao longo dos últimos anos foi
construindo uma relação de parceria com outros serviços do Distrito Noroeste em que está inserido,
fortalecendo sua rede de apoio.
Logo no início de sua criação, o CAPS Integração, mesmo fazendo parte do Distrito, não recebia
o destaque necessário à sua inserção na rede de atenção junto a outros serviços, o que foi sendo
construído por meio de uma “pacífica insistência” de sua gerente, em levantar questões e colocar em
pauta a importância do CAPS para aquela região. Em suas discussões, esta gerente apontava as

201
possibilidades de parceria que o serviço poderia fazer com outras instituições, o que traria muitos
benefícios para toda a população da região.
Atualmente, o CAPS Integração está presente em todo o Distrito Noroeste, fazendo parte do
Conselho Distrital, do Conselho local, fornecendo apoio matricial às equipes dos Centros de Saúde e
participando dos programas sociais desenvolvidos na região. Há aproximadamente cinco anos, o CAPS
Integração, juntamente com outros serviços saúde da região montaram o Centro de Convivência e
Cooperativa Toninha68, onde inúmeras atividades são realizadas contando com a participação dos
usuários e demais pessoas da comunidade. São também desenvolvidas atividades em comum com a Casa
de Cultura Tainá, um centro cultural atuante na região. Enfim, o CAPS Integração se estabeleceu
enquanto um serviço de referência para a região, fazendo parte da rede de atenção à Saúde da comunidade
do Distrito Noroeste, conforme pode ser verificado na fala da gerente desse serviço:
Então hoje a gente está em tudo. A gente está na reunião intersetorial, a gente está no
Centro_de_Convivência, a gente está na cooperativa, a gente está no centro_de_saúde. O CAPS
está muito envolvido nesse distrito, a gente tem uma parceria imensa. E a comunidade, hoje você
sai e pergunta onde está o CAPS, todo mundo sabe aonde tem um CAPS, e o que faz.

Nos meses em que estava sendo concluída a pesquisa de campo, o CAPS Integração estava em
processo de mudança para uma casa maior e estava em vias de se transformar em CAPS III, pois o
atendimento prestado à comunidade já havia adquirido uma complexidade característica do atendimento
prestado por serviços 24 horas. O CAPS Aeroporto, no ano de 2001 foi transformado em CAPS III e
passou a se chamar CAPS Novo Tempo.

- A criação do CAPS Estação


No ano de 1999, com a aceleração do processo de desinstitucionalização, a ala Paraíso foi
desativada, conforme relatado acima, o que foi considerado um marco no processo de transformação do
SSCF. Com o fechamento desta ala, a equipe, a princípio, passou por momentos de indefinição e angústia,
segundo relatos de antigos membros da equipe.
Passados os momentos iniciais depois do fechamento da ala Paraíso, a equipe decidiu em uma
reunião do colegiado montar um CAPS, na medida em que já haviam se especializado em um tipo de
cuidado com a clientela da saúde mental, e a permanência nos limites físicos da instituição não fazia mais
sentido, tendo em vista tal especialização.
Assim foi criado o CAPS Estação que, na época de sua criação em 2000, serviria de referência
para as regiões norte e sul. Por servir de referência para as duas áreas, o CAPS foi instalado no centro da
cidade, onde permanece até hoje, pois nesta localidade ficaria mais acessível às duas regiões.
Atualmente, com a regionalização da cidade e com a criação dos outros CAPS, o CAPS Estação
passou a ser referência apenas para a região norte, mas como está localizada no centro da cidade – que faz
parte da região Leste - acaba atendendo uma demanda extra. Da mesma forma, alguns usuários que fazem

68
Em homenagem a uma militante política do bairro.

202
parte deste CAPS, realizam algumas atividades em outros CAPS da rede, por serem mais próximos de
suas moradias.
Esta flexibilidade é uma característica importante para qualquer rede de saúde mental, pois um
mesmo usuário pode freqüentar vários serviços e o critério para o encaminhamento não é somente a
região de domicílio e o serviço de referência desta região. Em Campinas, o vínculo com o serviço e com a
equipe também é considerado um critério para o encaminhamento.
A criação do CAPS Estação foi a primeira iniciativa da equipe do SSCF em ultrapassar o espaço
físico do hospital. Neste sentido, com o objetivo de sensibilizar a comunidade para a importância deste
projeto, foi feito um trabalho de mobilização com a comunidade local, por meio de grupos focais sobre os
temas loucura e desinstitucionalização, alguns meses antes da instalação deste serviço.
Este trabalho de preparação e sensibilização da comunidade para a instalação de um serviço de
Saúde Mental tem se mostrado importante, na medida em que, onde este trabalho é feito, as resistências
são amenizadas e se abre uma possibilidade de parcerias com a comunidade. A importância deste trabalho
também pode ser analisada do ponto de vista da própria comunidade, como uma atitude de respeito para
com a mesma, pois é sabido que ainda há preconceitos e medo com relação à clientela atendida por este
tipo de serviço. Preconceitos e medo, frutos do desconhecimento a respeito do que é a loucura e de quem
é o doente mental. Desconhecimento que foi engendrado ao longo da história, na medida em que os
loucos foram afastados do convívio social e foi construída uma representação social acerca da loucura que
a associou ao perigo, ao imprevisível e à incapacidade para a vida coletiva.
Assim, este trabalho de reconhecimento das resistências e esclarecimentos da população faz-se
necessário para o êxito deste processo de implementação de serviços substitutivos ao hospital
psiquiátrico. Na medida em que se esclarece a população, oferecendo garantias de cuidado, percebe-se a
possibilidade da criação de relações de confiança entre o serviço e a comunidade.
O CAPS Estação de fato se configurou como um novo serviço, pois no momento de sua abertura
não havia usuários, que foram chegando aos poucos. Estes usuários que iam chegando no CAPS não eram
usuários ou moradores do SSCF, mas faziam parte de uma demanda até então desconhecida. Inicialmente
o serviço funcionava com agendamento e ao longo do tempo foi ampliando sua forma de atendimento
para melhor atender a crescente demanda pelo serviço.
O CAPS Estação foi criado na modalidade CAPS I, ou seja, não tinha leitos de pernoite, que
foram criados somente no ano de 2001, em um momento mais favorável à saúde mental no município.
Neste ano de 2001 foi alugada uma casa na mesma rua, em frente à primeira, que funciona com os leitos e
atividades terapêuticas específicas, caracterizando este CAPS na modalidade CAPS III, desde esta data.
O CAPS Estação está localizado em uma rua tranqüila no centro da cidade, onde existem outras
clínicas de saúde e a vizinhança é predominantemente comercial. A rua onde se localiza o CAPS está
entre duas das principais avenidas da cidade (Av. Barão de Itapura e Av. Orozimbo Maia). É uma rua de
fácil acesso e que se configura como um lugar de passagem.

203
Antes da criação do CAPS Estação, a ala Paraíso era responsável pelo cuidado de 14 residências
terapêuticas. Com a transformação desta ala em CAPS, as 14 moradias passaram aos cuidados do
Hospital-Dia, como explicitado anteriormente, pelo fato deste estar localizado mais próximo das
moradias. Outro motivo para o repasse do cuidado das moradias ao HD foi a própria clínica. Acreditava-
se que a clínica realizada nas moradias era bastante diferente da que seria realizada no CAPS, sendo esta
última uma clínica a qual a equipe ainda não estava habituada e precisava investir todos os esforços na
sua construção.
Ao entrevistar a gerente deste CAPS, chamou a atenção o fato de restarem apenas dois ou três
auxiliares de enfermagem da equipe inicial deste serviço. Uma das hipóteses levantadas pela gerente é a
diferença na clínica que se fazia na Unidade de Reabilitação de Moradores para a clínica de um CAPS.
Muitos profissionais foram trabalhar no Núcleo de Oficinas de Trabalho, ou se integraram a outras
equipes em outros CAPS. Cabe lembrar que este serviço está localizado em um lugar de passagem, o que
talvez possa exercer alguma influência sobre o funcionamento da equipe.
Atualmente este CAPS gerencia cinco moradias localizadas na região sul e é o único CAPS que
possui um núcleo de residências, onde um grupo de funcionários fixos faz a assistência às mesmas. Este
núcleo era coordenado por uma profissional que na primeira experiência de lar abrigado, morou com os
usuários na casa, exercendo a função de uma espécie de “governanta”.
Nos outros CAPS a organização para o cuidado com as moradias é feita com base nas equipes de
referência, ou seja, os técnicos das mini-equipes de referência69 de cada usuário é que se organizam para
manter o atendimento às casas. Cabe ressaltar que cada moradia tem um técnico de nível superior e um
auxiliar de enfermagem como referência para o cuidado.

- A criação do CAPS Antônio da Costa Santos (CAPS Toninho)


O CAPS Toninho foi criado em outubro 2001, transformando-se, seis meses depois, em um
CAPS III, sendo inaugurados os leitos em uma outra
casa na mesma rua. Naquele ano de 2001 iniciou-se
um momento favorável para a Saúde Mental em
Campinas, com o início do novo governo eleito, que
recolocou a Saúde Mental na agenda governamental.
Este novo grupo trouxe como algumas de suas metas
a ampliação da rede de atenção à saúde mental e a
redução dos leitos psiquiátricos a zero.
Figura 22: Fachada do CAPS Toninho

Assim, a criação do CAPS Toninho foi uma das conseqüências da proposta de ampliação da rede
de atenção em Saúde Mental na cidade, sendo viabilizada a sua criação a partir do fechamento do

69
As mini-equipes de referências são subgrupos de técnicos de cada CAPS, que cuidam de forma mais próxima de
um subgrupo de usuários. Cada mini-equipe possui pelo menos um psiquiatra, um psicólogo, um terapeuta
ocupacional, um enfermeiro e um grupo de auxiliares de enfermagem.

204
Hospital Tibiriçá. Este era um antigo hospital psiquiátrico, situado em Joaquim Egídio, distrito de
Campinas, próximo a Souzas. A este hospital foi proposto um convênio de co-gestão semelhante ao
proposto para o antigo Sanatório Cândido Ferreira, o qual, no entanto, não conseguiu acompanhar o ritmo
das transformações necessárias, o que determinou seu fechamento e remanejamento dos recursos
destinados ao seu funcionamento.
Com o remanejamento dos recursos, foi criado o CAPS Toninho e foram implementados outros
projetos do SSCF como, por exemplo, a transformação do HD em um CAPS III - o CAPS Esperança - no
Distrito Leste, que será apresentado adiante.
Para a montagem da equipe do CAPS Toninho foram absorvidos os funcionários do Hospital
Tibiriçá, que compuseram a equipe inicial juntamente com antigos funcionários do SSCF. Também foram
feitas novas contratações de funcionários. Atualmente a equipe do CAPS Toninho é constituída de 50
profissionais, dentre estes 12 com nível universitário, 24 técnicos e auxiliares de enfermagem, e outros 16
funcionários entre agentes administrativos, de segurança e limpeza.
O momento de criação do CAPS Toninho e constituição de sua equipe é relatado pela gerente
deste serviço como um momento de aprendizagens, devido à necessidade de constantes e intensas
negociações entre os diversos profissionais que vieram de instituições com orientações marcadamente
diferentes. Aprendizagem para os antigos funcionários do SSCF que, apesar de já estarem habituados a
um novo modelo de atenção, sentiram a necessidade de aprimorar suas reflexões e ações para o trabalho
em um CAPS. Aprendizagem também para os funcionários recém contratados e os vindos do Hospital
Tibiriçá, que tiveram que se apropriar de uma nova forma de cuidado em saúde mental, e romper com a
cultura manicomial já arraigada em sua prática.
Quanto aos pacientes que vieram compor a clientela do CAPS, estavam: os moradores do Distrito
Sul, até então atendidos pelo CAPS Estação e que foram encaminhados para este novo serviço, os
pacientes encaminhados pelos Centros de Saúde e 18 pacientes moradores do Hospital Tibiriçá. Estes
últimos vieram com indicação para 3 moradias, com seis pacientes em cada uma delas.
A indicação dos 18 pacientes para a moradia, no entanto, não permaneceu por muito tempo,
devido aos problemas que se seguiram com a vizinhança e com a não adaptação dos mesmos à nova
moradia. Alguns daqueles pacientes já estavam bastante cronificados em decorrência dos longos anos de
institucionalização, o que precisaria de um trabalho de reabilitação mais específico.
Uma hipótese levantada pela gerente deste serviço para o não funcionamento dessas moradias foi
com relação ao período de preparação destas pessoas, anterior à ida propriamente dita para a moradia.
Período este que, em experiências anteriores de montagem de outras residências terapêuticas, teve um
papel fundamental para o êxito das mesmas, como relatado a seguir:
...o nosso referencial do Cândido era bastante diferente, porque os projetos de moradia, eles
eram montados muito em cima dos projetos terapêuticos, da afinidade entre os usuários, da
escolha que eles faziam com quem morar, da preparação pra ir pra uma casa. Então era um
longo processo (gerente do CAPS Toninho).

205
Em virtude dos problemas ocorridos nas três residências que vieram indicadas a priori, alguns
remanejamentos foram realizados no sentido de oferecer melhores condições de vida e convivência
àqueles usuários, em sua maioria bastante institucionalizados e com baixa autonomia. A reavaliação dos
usuários, de seus projetos terapêuticos e o remanejamento dos mesmos foi importante também para
amenizar as resistências da vizinhança destas moradias, que se sentiram ouvidas e respeitadas, passando a
estabelecer uma relação de confiança e parceria com a equipe técnica.
Além do remanejamento, outra estratégia para lidar com as dificuldades dos moradores que
finalmente compuseram os grupos das casas foi o fortalecimento do cuidado com a presença constante
dos técnicos, que garantia uma segurança não somente para os moradores, mas também para os vizinhos:
Não só estar trazendo para o CAPS, mas podendo ter outras atividades fora, pra que ficassem
menos tempo em casa e a gente, nesse movimento, pudesse estar mostrando ali pra vizinhança
que tinha um trabalho de idas e vindas. E isso vingou. Vários dos usuários adquiriram
autonomia. Isso foi muito interessante (gerente do CAPS Toninho).

Atualmente o CAPS Toninho é responsável pelo cuidado de três moradias, contando duas delas
com atenção 24 horas e a outra com uma visita semanal dos técnicos, sendo o grupo de moradores desta
última, pessoas com histórico de institucionalização, contudo, com maior grau de autonomia. Deste
último grupo, três estão inseridos nas oficinas de trabalho no SSCF e um deles freqüenta aulas de
alfabetização.
O CAPS Toninho tem como uma de suas atividades, aulas de alfabetização que acontecem na
casa onde estão localizados os leitos. O SSCF firmou, em 1997, um convênio com a Fundação Municipal
de Educação Comunitária (FUMEC) e oferece aulas de alfabetização de 1ª a 4ª séries para os usuários dos
serviços ligados ao SSCF. Inicialmente as turmas eram localizadas somente na casa-escola70, mas há um
projeto de abertura de novas turmas nos CAPS, sendo a turma do CAPS Toninho a primeira experiência.
A turma da FUMEC aberta neste CAPS além das atividades corriqueiras de uma sala de aula,
também funciona como um espaço para a reabilitação psicossocial, na medida em que a didática utilizada
leva em consideração outras dimensões que devem ser aprimoradas na vida destes alunos. Um exemplo
disso é a aula de matemática que, uma vez por semana, acontece na feira próxima ao CAPS. Além de
exercitar o raciocínio matemático ensinado em sala de aula, abre-se mais uma oportunidade de trabalhar a
socialização e a circulação destes usuários no cotidiano da comunidade.
Este trabalho de visita à feira, realizado pela professora da FUMEC em conjunto com membros
da equipe do CAPS, mostra-se de grande importância dentro de um processo de reabilitação psicossocial,
se considerarmos este espaço enquanto um cenário privilegiado para se trabalhar o poder de
contratualidade dos usuários. Relembramos Saraceno (2001), quando este autor reflete sobre a

70
A Casa-Escola, também conhecida como Centro Cultural Cândido – FUMEC, está localizada em Souzas,
próximo às instalações do SSCF. A Casa-Escola é uma parceria firmada entre a FUMEC e o SSCF, sendo
gerenciada pelo Centro de Convivência e Arte do SSCF. Maiores detalhes sobre a casa-escola serão apresentados
adiante.

206
contratualidade como o poder de troca e negociação que o sujeito tem diante das diversas situações a que
é exposto, e o cenário é o espaço onde estas trocas e negociações acontecem.
Esta “aula na feira” é uma das atividades que os usuários e equipe realizam fora do espaço físico
do CAPS, e que mantém uma relação com a comunidade ao redor. Há um grupo de passeio, que também
organiza viagens esporádicas e o grupo de esporte, que acontece semanalmente em um clube comunitário
próximo ao CAPS. Cabe lembrar o trabalho que é feito com grupos de familiares, com visitas
domiciliares e atendimentos a famílias específicas quando necessário. Além disso, alguns familiares
participam mensalmente das assembléias semanais que ocorrem no CAPS.
Outras atividades acontecem em conjunto com a vizinhança como, por exemplo, as festas em
datas comemorativas, que parecem dar o tom das relações consolidadas entre o serviço e a comunidade.
Assim que o CAPS Toninho foi criado, houve uma mobilização da equipe no sentido de uma
aproximação com a vizinhança, que começou com o convite à comunidade para a festa de inauguração do
serviço. Alguns moradores compareceram à festa, o que propiciou a abertura de uma aproximação com o
serviço e a apresentação do mesmo aos vizinhos. E nos dois aniversários do CAPS que se seguiram, foi
crescente a participação dos vizinhos na realização destas festas.
A festa de aniversário de dois anos de criação da CAPS Toninho aconteceu em outubro de 2003,
período em que a pesquisa de campo estava sendo realizada, sendo uma das atividades observadas. Foi
notável a presença da vizinhança, que se organizou para auxiliar nas atividades que seriam realizadas na
festa. Um coral comunitário do Centro de Saúde de Santa Odila - bairro vizinho - se apresentou e logo em
seguida um sanfoneiro que mora na rua do CAPS tocou, garantindo a animação da festa. Os vizinhos
também auxiliaram na infra-estrutura para sua realização.
Segundo a gerente, a festa mais bonita e que para ela é a mais representativa da relação de
parceria que se estabeleceu entre o serviço e a comunidade é a festa junina. A primeira festa junina
realizada aconteceu na rua e contou com a participação da comunidade que veio se juntar ao movimento
das pessoas do CAPS. Já no segundo ano, a organização da festa foi conjunta, desde a elaboração do
cardápio, brincadeiras, bingo, quadrilha e a limpeza:
Esse ano, a festa acabou às 8:00h e às 8:30 não tinha uma bituca de cigarro no chão da rua. Os
pacientes, os familiares, os vizinhos, todo mundo se organizou, e isso assim, desmontando uma
festa grande. Desmontando barraca, os eletricistas do Cândido fazendo desmontagem da
iluminação, os vizinhos recolhendo o lixo, os pacientes varrendo, a vizinha se encarregando de
congelar os alimentos que sobraram. Em meia_hora a rua ficou limpíssima, como nunca a gente
viu antes. (gerente do CAPS Toninho).

Além das festas acima citadas, outros eventos também evidenciam as relações de troca e
confiança entre o serviço e a comunidade. Um exemplo disso é o convite enviado pela vizinha que mora
em frente ao CAPS para a comemoração de suas bodas de prata, o que mobilizou todos os usuários e
equipe para a compra de um presente e homenagens ao casal.
A vizinhança também auxilia nos serviços cotidianos. Há algumas pessoas da comunidade que
prestam serviços voluntários no CAPS e os vizinhos mais próximos demonstram uma disponibilidade

207
para colaborar com o que for necessário. Um dos vizinhos, por exemplo, periodicamente limpa
voluntariamente o jardim do CAPS.
Segundo a gerente, problemas existem e algumas intercorrências envolvendo usuários do CAPS
já aconteceram. Tais intercorrências, no entanto, foram discutidas de forma aberta com a comunidade,
que demonstrou compreensão e disponibilidade para auxiliar no que fosse necessário.
A relação estabelecida por este serviço e a vizinhança demonstra a viabilidade de criação de laços
sociais e afetivos entre as comunidades e as pessoas que fazem parte de serviços de saúde mental. Apesar
do CAPS Toninho não ser conhecido em toda a região e, apesar das limitações no trabalho cotidiano (que
serão comentadas mais à frente), o estreitamento da convivência com os vizinhos mais próximos, é
considerado um ponto forte do trabalho. O CAPS Toninho, seus usuários e técnicos, fazem parte do
cotidiano da vida social, daquela e de outras ruas do bairro.
A experiência de inserção deste CAPS na comunidade demonstra a viabilidade de um dos ideais
da Reforma Psiquiátrica, qual seja, a construção de um novo lugar social para a loucura, que lhe permita
ser parte do cotidiano de uma cultura de solidariedade.
Um dos fatores que pareceu influenciar a relação de proximidade é o nível sócio-econômico da
comunidade local. É uma região que abrange uma população de classe média à classe media baixa, onde
as pessoas têm a experiência de serem pouco assistidas. Assim, o CAPS passou a ser um serviço de
referência, que também pôde ser útil de alguma forma para os moradores locais. Um casal de idosos
vizinhos ao CAPS Toninho, por exemplo, apesar de não serem usuários cadastrados do serviço, já utilizou
os atendimentos do CAPS, nos primeiros socorros a uma crise de epilepsia e posterior encaminhamento.
No último mês da pesquisa, o CAPS Toninho estava de mudança para uma casa maior, tendo em
vista que a demanda superou as expectativas iniciais da equipe, tornando-se o espaço da primeira casa
pequeno para atender a todas as necessidades. Com relação à mudança de localização, a gerente chamou a
atenção para a necessidade de manter os contatos com os atuais vizinhos, bem como elaborar estratégias
para aproximar e conquistar a confiança dos novos.

- A criação do Núcleo de Atenção à Crise (NAC) e Núcleo de Atenção à Dependência Química


(NADEC)
Em 1990, no início do convênio de co-gestão, já existia no SSCF um núcleo responsável pelas
crises que, naquele momento era chamado de Núcleo de Agudos e posteriormente Setor de Internação.
Este núcleo tinha 50 leitos e atendia psicóticos, neuróticos graves e dependentes químicos.
Em 2001, este núcleo foi dividido e seu trabalho reformulado. Foram criados dois núcleos: o
Núcleo de Atenção à Crise (NAC), que passou a atender neuróticos graves e psicóticos em crise, e o
Núcleo de Atenção à Dependência Química (NADEC), que ficou responsável pelo atendimento da
clientela composta por dependentes químicos e pessoas com transtornos mentais decorrentes do uso
abusivo de álcool e outras drogas. A criação do NADEC se deu diante da necessidade de uma clínica

208
especializada neste tipo de clientela, que apresenta uma problemática específica e distinta das doenças
mentais em geral, apesar de alguns pontos de convergência.
Neste momento, o NADEC tem o seu atendimento baseado nos pressupostos adotados atualmente
pelo Ministério da Saúde, quais sejam o da redução de danos, não tendo como única meta viável, a
abstinência total do uso do álcool e outras drogas. É realizado, desta forma, um trabalho preventivo em
que o usuário tem a possibilidade de se conscientizar de suas potencialidades, fortalecendo-se diante das
situações de risco. O objetivo deste trabalho é ampliar a qualidade de vida dos usuários, por meio da
educação e reinserção psicossocial.
O serviço conta com uma equipe interdisciplinar que atende cada usuário de forma
individualizada, por meio de um projeto terapêutico individual (PTI), conforme os outros serviços que
compõem a rede de Saúde Mental da cidade.
O NADEC oferece atendimento ambulatorial - que pode se dar por procura espontânea ou
encaminhamentos - 25 vagas para internação, quando necessária, e leito-noite. Oferece ainda atendimento
à família e à rede social do usuário, caracterizando um cuidado integral ao mesmo.
O Núcleo de Atenção à Crise (NAC) possui 40 leitos e é subdividido em dois núcleos: o NAC 1 e
o NAC 2. O NAC 1 tem uma estrutura fechada, constituindo-se em um espaço mais protegido. Abriga os
pacientes que estão em um momento grave de crise, necessitando ser contidos e requerendo uma atenção
mais individualizada e próxima. O NAC 2 tem uma estrutura mais aberta, sendo uma continuidade da
atenção oferecida no NAC 1, trabalhando questões relativas à autonomia dos pacientes.
Atualmente, o NAC conta com uma equipe chamada de equipe matricial, com profissionais de
várias áreas, subdividida em 3 mini-equipes de referência, que cuidam de aproximadamente 15 pacientes
cada uma.
É importante destacar que, apesar de ser um serviço que se caracteriza pela internação, esta é
realizada de forma criteriosa e de duração restrita ao momento da crise. São atendidos somente os casos
em que a crise acarrete perigos à segurança do usuário ou outras pessoas, e casos nos quais a família não
consegue dar o suporte necessário ao sujeito.
No momento que o paciente chega ao serviço é realizada uma triagem para escuta do paciente e
seus familiares, e verificação da necessidade da internação. Após esta triagem, e verificada a necessidade,
o paciente é engajado em uma das mini-equipes de referência. Estas mini-equipes elaboram, juntamente
com o paciente e sua família, um projeto terapêutico individualizado (PTI), que é avaliado semanalmente,
nas reuniões realizadas por esta equipe com todos os familiares e pacientes.
A mini-equipe realiza também visitas domiciliares e reuniões internas para avaliação dos casos
clínicos. Após alta hospitalar, esta mini-equipe avalia as condições do paciente e o encaminha para outro
serviço da rede mais adequado às suas necessidades naquele momento, e que pode dar continuidade ao
tratamento.
A equipe matricial do NAC se reúne semanalmente para discutir e avaliar o trabalho e os casos
clínicos. Quinzenalmente é realizada uma supervisão clínica com a presença de um psicanalista externo à

209
instituição, contratado apenas para oferecer supervisão. No momento da pesquisa de campo estava
previsto o início de uma supervisão institucional a ser realizada quinzenalmente. Cabe lembrar que todos
os serviços da rede de saúde mental contam com supervisões clínicas e institucionais para suas equipes,
tendo em vista a importância fundamental deste espaço para a efetivação de um projeto de Reforma
Psiquiátrica.
O NAC também é utilizado como uma espécie de retaguarda para os CAPS no momento em que
estes não estejam conseguindo atender a demanda para o leito-noite. A existência do NAC e o seu uso
como retaguarda aos CAPS gera algumas discussões entre os profissionais e os vários serviços da rede,
evidenciando diferentes compreensões a respeito do modelo de atenção à saúde mental implementado na
cidade.
Para alguns profissionais - especialmente aqueles que trabalham nos CAPS gerenciados pelo
SSCF - a utilização do NAC denuncia a insuficiência da rede de saúde mental para atender toda a
demanda da cidade e, muitas vezes, as limitações da própria estrutura dos serviços. Revela ainda a
necessidade de aprofundamento das reflexões sobre o papel dos CAPS dentro da rede e as inúmeras
atribuições que estes serviços vêm acumulando.
Neste sentido, o grupo de técnicos do SSCF optou por manter os leitos de internação do NAC até
a total consolidação do modelo de atenção centrada nos CAPS. A idéia é que os CAPS irão, aos poucos,
absorvendo essa demanda da internação à medida em que seu cuidado e resolutividade forem sendo
aprimorados. A opção pela manutenção do NAC, segundo os profissionais, foi uma medida de cuidado,
tendo em vista o caráter ainda transitório do modelo CAPS.
Para este grupo o NAC, apesar de trabalhar em regime de internação, não fere os princípios da
Reforma Psiquiátrica pelo fato da internação ter um caráter terapêutico nos casos indicados e ser feita de
forma criteriosa e humana, como explicitado anteriormente. Cabe lembrar que os profissionais que
trabalham nos CAPS gerenciados pelo SSCF têm uma maior proximidade com a equipe do NAC e com o
trabalho realizado por este serviço, o que permite uma melhor compreensão de sua proposta e uma
comunicação mais eficiente entre os profissionais. A recorrência a uma internação não é algo desejado ou
que ocorre com freqüência, mas é compreendida como um recurso a mais na rede de cuidados, como
explicitado a seguir:
...mas mesmo assim, apesar da gente evitar a internação, a gente ainda faz isso de mandar pro
Núcleo de Atenção à Crise do Cândido, como uma retaguarda pro CAPS. Por exemplo, não é
uma retaguarda que a gente faz uso constante, não é isso. Mas a gente teve dois episódios, três
bastante importantes que a gente precisou. Um deles era um usuário que estava fugindo do
tráfico e estava ameaçado de morte e os vizinhos traficantes sabiam que ele estava aqui. E aqui,
a nossa casinha do leito, é uma casinha pequenininha, ela não tem os recursos e a proteção que
o hospital tem. E ele não podia ficar. Era muito risco, era um final de semana e a gente recorreu
ao NAC pra que ele passasse de uma sexta até uma segunda-feira que era um feriado. Para
proteção dele e também para poupar as pessoas que estavam aqui internadas e trabalhando, de
ameaças no final de semana... O outro foi um caso muito grave, que já está lá há um tempão...
Ele não tinha um diagnóstico fechado e a gente identificou que, além de problemas mentais, um
problema mental grave, ele tem um retardo. E o CAPS não estava dando conta de garantir um
acompanhamento responsabilizado no sentido de garantir que ele não ia sair daqui... e a gente

210
recorreu ao recurso físico do Cândido porque lá tem muito mais funcionários do que aqui
(gerente do CAPS Toninho).

Para o grupo de profissionais que trabalha nos CAPS gerenciados pela Secretaria Municipal de
Saúde – os CAPS Integração e Novo Tempo - a manutenção do NAC é interpretada como uma resistência
em aderir à proposta de substituição total ao hospital psiquiátrico, colocando em xeque o caráter
substitutivo dos CAPS. Para este grupo, a utilização do NAC é entendida como uma incoerência, tendo
em vista a proposta de Reforma Psiquiátrica implementada em Campinas, que tem como meta a total
substituição dos leitos psiquiátricos, como pode ser exemplificado na fala a seguir:
Eu não defendo o NAC, eu não acho que tem que existir NAC. Eu defendo o CAPS 24
horas. Que esse usuário tem que ser atendido no CAPS, no território e numa forma de
fazer diferente. Tem gente que defende que tem que ter núcleo pra crise, que tem paciente
que não dá pra ficar no CAPS. Eu não defendo isso. Não defendo (gerente CAPS
Integração).

Este grupo defendia que a crise e a reabilitação deviam ser tratados no mesmo espaço físico, o
que também era compartilhado pelo grupo anterior. Entretanto, é no que diz respeito à viabilidade deste
tratamento em conjunto, naquele momento em que se encontrava o processo de implantação do modelo
CAPS, que os grupos divergiam entre si.
Para os técnicos dos serviços gerenciados pelo SSCF os CAPS, mesmo os 24horas, ainda não
tinham uma estrutura que fosse capaz de atender, com a qualidade, responsabilidade e efetividade
desejadas, toda a demanda de seus territórios. Para estes profissionais, este modelo de atenção ainda
necessitava de ampliações e discussões mais aprofundadas a respeito de seu funcionamento e das
atribuições de cada serviço. Para este grupo, fechar o NAC é abrir brechas para a possibilidade de
desatenção e falhas no cuidado.
Para os membros das equipes dos CAPS gerenciados pela Secretaria de Saúde, o NAC era um
serviço que, de certa forma, depunha contra a efetividade da rede de saúde mental. Estes atores
consideravam os CAPS capazes de suportar a demanda e a insistência em manter o NAC denunciava uma
resistência à implantação do novo modelo. Resistência que revelava ainda, mesmo que de forma
simulada, alguns resquícios de uma cultura hospitalocêntrica, e portanto, manicomial.
Essa discussão suscitada pela existência do NAC, que envolve a relação entre o tratamento da
crise e a reabilitação, é bastante atual em vários contextos de implementação da Reforma Psiquiátrica no
Brasil, como pôde ser observado no I Encontro de CAPS III71, realizado em Campinas, em novembro de
2003. No encontro foram discutidos vários aspectos relevantes para o funcionamento dos CAPS III, sendo
um destes aspectos, a necessidade dos serviços incorporarem em suas ações o tratamento da crise
juntamente com a reabilitação. Este encontro girou em torno da apresentação do trabalho realizado pelos

71
Este encontro contou com a presença de representantes de boa parte dos CAPS III existentes no país, que
atualmente são em número de 24, sendo 20 destes na região sudeste, com uma concentração no Estado de São Paulo.

211
CAPS e discussão de alguns aspectos que tocam a viabilidade do atendimento da crise por tais serviços.
Um dos aspectos discutidos foi a necessidade de ampliação dos recursos humanos dos CAPS III.
As diferentes posturas e formas de compreensão, geradores de conflitos acerca do modelo de
Saúde Mental em Campinas, têm como pano de fundo os diferentes lugares ocupados pelos CAPS dentro
da rede, e os diferentes objetivos e filosofias das instituições gestoras da saúde mental do município, no
caso o SSCF e Secretaria Municipal de Saúde. Além disso, os conflitos também podem ser reflexos de um
trabalho ainda em fase de desenvolvimento.

- Caps Esperança: uma história de resistências e aprendizagens


“A grande contradição é que estamos abrindo os portões
dos manicômios na mesma época em que as pessoas
se trancam em suas casas, cheias de medo.
Em nossa vida, atualmente, as árvores servem apenas
para serem admiradas da janela ou do carro...
não mais para sentar a sua sombra, conversar
e sentir as flores caindo na cara.”
(Florianita Campos – Coord. de Saúde Mental de Campinas
Fonte: Jornal Candura, edição de setembro de 2002)

Em 1998, quando foi implantado o projeto de regionalização da saúde de Campinas, a cidade já


contava com serviços de saúde mental que cobriam o atendimento em todas as regiões72, sendo o HD
responsável pela cobertura da região leste. Como os demais serviços que já funcionavam como CAPS e
estavam inseridos nos seus respectivos territórios, a equipe do HD também sentiu a necessidade de
superar os limites físicos do SSCF, inserindo-se em uma localidade de seu território onde o acesso fosse
mais central para toda a região.
A partir do início de 2001, iniciou-se um movimento efetivo de preparação dos usuários e da
equipe para a saída do HD dos limites do SSCF e sua transformação em um CAPS. Transformação que
não era apenas referente à mudança de tipo de serviço, mas uma mudança efetiva no lugar que estas
pessoas ocupariam no espaço da cidade. A partir de então elas estariam circulando no meio da cidade e
não mais restritas ao ambiente do antigo hospital. Uma mudança de localidade, que teria um importante
efeito simbólico.
Inúmeras assembléias foram realizadas, contando com a presença de técnicos e usuários, no
sentido de compartilhar as angústias, projetos e expectativas para este novo momento de saída do HD da
instituição que há quase dez anos os acolhia. Momento de preparação para o enfrentamento de uma outra
realidade, que era a de estar em um espaço no meio da cidade, um espaço público que esta população de
usuários tradicionalmente não estava habituada a freqüentar. Momento de lidar com o medo, com o
constrangimento, e também com os sonhos e novas possibilidades de ser e estar no mundo, que poderiam
ser geradas a partir da presença destes novos atores no espaço social.

72
O CAPS Aeroporto (mais tarde CAPS Novo Tempo) cobria a região Sudoeste, o CAPS Integração a Noroeste, o
CAPS Estação a Norte, o CAPS Toninho a Sul e o HD cobria a região leste.

212
Nas assembléias, aos poucos foi sendo construída, pelo grupo de usuários e técnicos, uma “casa
ideal”, onde deveria funcionar o CAPS. Após inúmeras discussões, iniciou-se a procura na região de uma
casa que atendesse aos critérios construídos por este grupo.
Esta deveria ser uma casa grande que, diferentemente dos CAPS Estação e Toninho, tivesse
condições de trabalhar tanto a reabilitação (contando com as diversas atividades que podem ser pensadas
dentro do processo de reabilitação), quanto abrigar os leitos-noite, reservados para as crises. Cabe lembrar
que, tanto o CAPS Estação como o CAPS Toninho, funcionam em duas casas na mesma rua, sendo em
uma delas localizados os leitos-noite, devido às limitações físicas de tais casas.
Foi solicitado pelos usuários que a casa tivesse uma área verde e fosse localizada em lugar
tranqüilo, tendo em vista as características físicas do SSCF, local onde os usuários já estavam habituados
ao contato com a natureza e à tranqüilidade. Deveria também ser um lugar de fácil acesso para todos os
bairros constituintes da região leste.
A região leste é uma região que tem uma característica importante a ser destacada, qual seja, a
heterogeneidade dos bairros que a compõem, como já foi dito anteriormente, quando apresentamos o
campo de pesquisa. Nesta região estão localizados os bairros considerados mais nobres da cidade, que
contam com uma população de alto poder aquisitivo, e também abrange bairros de periferia, com uma
população de classe média, e favelas. A região também abrange, além do centro da cidade, uma grande
área rural. Enfim, é uma região que abarca diferentes subculturas, necessidades e formas de organização
das comunidades.
Essa heterogeneidade, de certa forma, determina a organização dos bairros em espécies de
“subregiões”, como por exemplo a “subregião” do Taquaral, que abrange o bairro Taquaral e os bairros
vizinhos. Nesta “subregião”, há uma organização da comunidade em diversos Conselhos Locais (de
Saúde, segurança, educação, por exemplo) bastante atuantes e com forte poder de mobilização social, o
que não ocorre em todos os bairros da região.

O CAPS Esperança em Nova Campinas


A busca por um imóvel para a instalação do CAPS culminou com o aluguel, por parte da
prefeitura, de uma casa que atendia aos critérios apontados pelos usuários: uma casa grande, com área
verde, em localização tranqüila e de fácil acesso. No dia 14 de maio de 2002, o CAPS Esperança foi
inaugurado na rua Arthur de Freitas Leitão, uma rua tranqüila no bairro Nova Campinas.
Dias antes da inauguração do serviço, iniciou-se uma mobilização por parte dos moradores da rua
contra a instalação do CAPS Esperança, que se intensificou com a ida dos usuários e técnicos para o
bairro. Ao chegar, no dia da inauguração, a comunidade do CAPS se deparou com faixas na rua dizendo,
dentre outras coisas, que a instalação de uma clínica psiquiátrica 24 horas iria comprometer a segurança
dos moradores.
A principal alegação da vizinhança contra o CAPS Esperança, era o fato deste ter sido instalado
em área estritamente residencial segundo a lei de zoneamento da cidade, não sendo permitida a instalação

213
de estabelecimentos comerciais. Um dos motivos que podem ter gerado a intensa resistência da
vizinhança, talvez tenha sido a possibilidade de desvalorização de seus imóveis. Considerada uma área
nobre da cidade, a instalação de um CAPS, que atendia a população SUS dependente, poderia baixar o
valor comercial das imensas casas existentes na rua.
Cabe ressaltar que a desvalorização dos imóveis não foi nenhuma vez citada pelos moradores de
Nova Campinas como o motivo de sua resistência, mas nos parece uma das hipóteses explicativas
possíveis, se pensarmos nas condições de emergência dos elementos arcaicos das representações sociais.
Como apresentamos anteriormente, as representações sociais são compostas tanto por elementos
flexíveis, disponíveis e sujeitos às influências do contexto imediato, como elementos arcaicos, resistentes
ao tempo e às mudanças. Os elementos arcaicos (que no caso da loucura estão associados à
periculosidade, improdutividade, imprevisibilidade e, especialmente, incapacidade para a vida social),
apesar de rejeitados dentro de um discurso socialmente aceito, permanecem latentes, devido a sua
construção histórica e enraizamento no sistema representacional, como já foi discutido na primeira parte
deste trabalho. Esses elementos arcaicos latentes emergem em situações em que há um conflito de
interesses ou de identidade. No caso dos moradores de Nova Campinas, a implementação de um serviço
público de saúde mental coloca em cheque os interesses econômicos, propiciando desta forma, a
emergência dos elementos arcaicos das representações sociais acerca da loucura referidos acima.
Dois dias seguidos da inauguração do CAPS, foi noticiado pela imprensa escrita73 que, segundo a
Assessoria de Imprensa do Secretário de Saúde, este já admitira que a área é residencial e assumiram o
compromisso de transferir o serviço para outro local em 90 dias. Essa declaração gerou maior indignação
dos vizinhos, que a consideraram como “uma desfaçatez muito própria das autoridades truculentas74”
pois, apesar do reconhecimento da infração da lei, declaram que “continuarão a infração por TEMPO
POR ELES DETERMINADO75”.
No dia 20 de maio de 2002, nove vizinhos, representados por um casal de advogados que
moravam em frente à casa destinada ao CAPS, entraram com uma ação judicial na Vara Cível da
Comarca de Campinas, exigindo o imediato fechamento do serviço.
Segundo afirmações da gerente do CAPS Esperança, de fato houve um equívoco na escolha desta
localidade, que considerou apenas os critérios sugeridos pelos usuários. A mesma afirma, contudo, que
não foi devidamente esclarecida por funcionários da prefeitura quanto às limitações deste bairro, segundo
a lei de zoneamento.
Cabe ressaltar que Nova Campinas é considerado um dos bairros nobres da região leste, por
abrigar uma população de alto poder aquisitivo. É um bairro tradicional que, ao longo dos últimos anos,
no entanto, vem mudando sua história, devido à tendência de alguns grupos em sair de suas casas pra ir

73
Oliveira, M de O. (2004, 16 de maio). Nova Campinas é contra centro psicossocial. Correio Popular, p.9.
Editorial/Coluna Cidades.
74
Trecho da ação cautelar de 20 de maio de 2002, redigida pelos advogados dos moradores de Nova Campinas
(Anexo 4).
75
Idem, grifo do autor.

214
morar em apartamentos e condomínios fechados. Há uma divergência de grupos dentro do bairro: um
grupo quer transformá-lo em um bairro que permita a existência de comércios e um outro grupo, que é
contra a instalação de estabelecimentos comerciais no local, na intenção de manter suas características
originais. Só existem no bairro, segundo a lei de zoneamento, duas ruas76 em que é permitido ter
comércio, embora informalmente, haja outros estabelecimentos comerciais, como escritórios de
advocacia, clínicas de estética e outros.
A alegação inicial dos vizinhos, baseada na lei de zoneamento, ao longo dos dias que se seguiram
à inauguração do CAPS, foi se tornando pano de fundo para uma crescente relação de hostilidade,
conforme relatado pelos atores envolvidos no processo:
...se é uma questão legal, de justiça, a gente não tem como chiar. Só que não foi isso. Foi um
grupo muito hostil... Fotografavam a entrada e saída da gente. Da gente funcionários, pacientes,
familiares. Ficavam com máquina fotográfica o dia inteiro fotografando com muita hostilidade,
de uma forma muito invasiva, chamavam a polícia toda hora pra fazer boletim de ocorrência,
porque a gente estava criando desordem, porque ‘o pessoal gritava’, porque ‘era uma gritaria’,
‘todos soltos o dia inteiro’ (gerente do CAPS Esperança).

Além das fotografias foram gravadas várias fitas com os “sons do CAPS”, que foram utilizadas
como provas junto ao processo. São relatados pelos membros da equipe do CAPS, inúmeros episódios de
ameaças verbais aos usuários, seus familiares e técnicos. Os relatos de ameaças e ações invasivas por
parte dos vizinhos77 são confirmados pelos jornalistas que fizeram a cobertura do caso e que também
foram vítimas de agressões e ameaças, segundo relatos dos mesmos.
Toda esta situação aconteceu na semana em que se comemorava antecipadamente o Dia 18 de
maio – Dia Nacional da Luta Antimanicomial. A semana de eventos, denominada “Quem criou o mundo,
não criou os muros”, foi organizada pelos serviços de Saúde Mental da cidade e Movimento da Luta
Antimanicomial, tendo por objetivo protestar contra a violência ainda cometida contra doentes mentais no
país. Teve por objetivo ainda, mostrar ao público as novas formas de cuidar em Saúde Mental
desenvolvidas na cidade. Compondo a programação do evento, estava a inauguração oficial do CAPS
Esperança no dia 14 de maio.
No dia 17 de maio de 2002, foi exibido no centro da cidade de Campinas o filme “Bicho de Sete
Cabeças”, contando o evento também com “música, dança, artesanato e muita liberdade de expressão”78,
além de uma passeata por ruas e avenidas do centro. Mais de 200 pessoas se juntaram na praça para
participar do evento, que teve como um de seus temas privilegiados a situação vivida pelo CAPS
Esperança.

76
Rua Carlos Stevensson e Avenida Jesuíno Marcondes Machado, segundo a Lei Municipal de Uso e Ocupação do
Solo n° 6.031/88 ou Lei Municipal 6.396 de 1991.
77
Cabe lembrar que os vizinhos aqui incluídos são apenas os que endossaram o pedido de retirada do CAPS. Foi
também relatado pela equipe que outros vizinhos se posicionaram à favor da permanência do serviço, sendo o
processo jurídico uma iniciativa de um pequeno grupo, não podendo ser considerada uma atitude da comunidade do
bairro como um todo.
78
Conforme “Gallacci, F. (2002, 18 de maio). Ato reúne 200 contra preconceito a portadores de deficiência mental.
Correio Popular, pág. 9. Editorial/Coluna Cidades”.

215
A ação cautelar, de 20 de maio, escrita pelos advogados representantes dos vizinhos de Nova
Campinas, nos leva a crer que o pedido de fechamento imediato do CAPS teve outros motivos, além de
protestar contra uma irregularidade no cumprimento da lei de zoneamento.
Uma das alegações feitas repetidas vezes na ação cautelar, foi o medo que os moradores passaram
a vivenciar com a simples presença do CAPS na rua, mesmo antes da inauguração do mesmo. Cabe
lembrar que, segundo membros da equipe do CAPS, estes vizinhos nunca se dispuseram a conhecer o
serviço e sua forma de funcionamento, a despeito dos convites de toda a equipe, condenando desta forma,
sem conhecimento do projeto, a forma aberta com que os usuários eram tratados:

Se os loucos e doentes mentais, que recebem tratamento nesse Centro Psiquiátrico (grifo do
autor), estivessem internados, confinados e submetidos à severa vigilância, a segurança dos
moradores estaria, mesmo assim, comprometida. Porém, os loucos e doentes mentais que ali são
tratados, NÃO ESTÃO INTERNADOS, NÃO ESTÃO CONFINADOS, NÃO ESTÃO
SUBMETIDOS A SEVERA VIGILÂNCIA (grifo do autor). Estão, isso sim, soltos pelas ruas,
indo e vindo à vontade. Apertando a campainha das casas79. Molestando os moradores.
Colocando em perigo a vida e a integridade física dos moradores. Espalhando o medo e o pavor.
(advogados representantes dos vizinhos de Nova Campinas, 2002)80.

Esta presença do medo, no relato dos advogados, mesmo antes do CAPS ter sido inaugurado, nos
leva a refletir sobre as representações sociais acerca da loucura e seu tratamento, que vem sendo
construída ao longo dos últimos séculos na nossa cultura. Uma imagem de periculosidade,
imprevisibilidade e inadequação à vida social. Imagem à qual se associa um tratamento baseado na
necessidade de “confinamento” e exclusão social. Essa representação foi corroborada pelo advogado dos
vizinhos, no momento de uma conversa informal81 da pesquisadora com este.
Em nossa conversa, o advogado fala da previsibilidade enquanto elemento indispensável para a
boa convivência. Diz que com o louco é impossível a convivência, pois não se sabe do que eles são
capazes, o que pensam e que a qualquer momento podem ser perigosos. Afirma que um dos pilares da boa
convivência é a previsibilidade, pois é por meio dela que as pessoas podem confiar umas nas outras e
trabalhar para um bem comum, para o bom funcionamento social. Chega a citar como exemplo a
previsibilidade dos cães, dizendo que “se os cães podem ser previsíveis, o homem também o deve ser”.
Continuando sua argumentação contra a atual proposta de inserção social do louco, ressaltando a
conduta do louco como irracional a princípio e, baseando-se na literatura psiquiátrica, diz que “a
esquizofrenia e a as alucinações não são um problema cultural, mas sim bioquímico”, crença
compartilhada no âmbito da Psiquiatria biológica e que vem sendo combatida dentro dos movimentos de
Reforma Psiquiátrica. Com esta afirmação, desresponsabiliza a sociedade do cuidado com relação aos
doentes mentais e seu papel na construção da loucura. Critica, ainda, a atual “atitude politicamente
79
Trata-se de um episódio isolado em que um usuário do CAPS tocou a campainha de um dos vizinhos para pedir
uma xícara de café às 3:00hs da manhã.
80
Trecho da ação cautelar, de 20 de maio de 2002 (Anexo 4).
81
Este contato com o advogado dos vizinhos de Nova Campinas está sendo tratado como uma conversa informal,
devido à não autorização do mesmo em gravar a entrevista, tendo autorizado apenas, anotações de sua fala, que
estão sendo relatadas da forma mais fiel possível.

216
correta” das pessoas, referindo-se a esta atitude como uma hipocrisia, na medida em que não se pode
responsabilizar a sociedade civil pelo cuidado aos excluídos sociais.
Duras críticas são feitas a respeito da Reforma Psiquiátrica, que é definida por este advogado
como uma grande “safadeza internacional”, uma forma dos governos se desresponsabilizarem pela saúde
e cuidado dos doentes mentais. Critica a postura atual de co-responsabilização da família no tratamento
do doente, defendendo a atuação única e exclusiva de especialistas que, neste caso, são os únicos aptos a
“separar o joio do trigo”, ou seja, “dizer quem é perigoso e quem não é”. Algumas vezes em nossa
conversa chega a dizer: “não aceitaria uma pessoa louca em minha casa, nem que fosse minha mãe”, pois
não se julga capaz de cuidar de uma pessoa nessas condições.
Essa redução da loucura ao campo dos especialistas é uma característica importante a ser
destacada, na medida em que pressupõe uma concepção de loucura estritamente como doença e não como
um fenômeno humano e relacional mais amplo no qual outros fatores para além do “bioquímico” também
se fazem presentes. A permanência da idéia da loucura como objeto exclusivo da ciência, é a confirmação
da efetividade do discurso que foi sendo construído ao longo da história da Psiquiatria, que desqualifica o
saber do homem comum acerca desse fenômeno.
Em seu discurso, o advogado defende que “os que são perigosos, por exemplo, devem ser
trancados em celas fortes, para que não agridam os outros e nem os perturbe com seus gritos”. Chega a
comparar o louco ao bandido, afirmando, no entanto, que o louco é mais prejudicial à sociedade do que o
bandido, pelo fato de ser inimputável, podendo fazer o que quiser e não podendo ser punido por isso.
Ressalta que não crê na possibilidade de reabilitação de bandidos que, segundo ele, já nascem prontos, o
mesmo ocorrendo aos loucos.
É importante lembrar que, apesar da postura radical deste sujeito em particular, ele foi o
representante de um grupo maior de pessoas, tendo sua fala o valor de um discurso representacional, ou
seja, um discurso que reflete a imagem da loucura compartilhada por um grupo específico.
É interessante observar que a atitude apresentada pelos moradores de Nova Campinas se
diferenciou radicalmente da atitude das demais comunidades onde outros CAPS foram instalados. Não se
pode afirmar com certeza quais foram os reais motivos que levaram a vizinhança de Nova Campinas a
adotar as atitudes de hostilidade relatadas. Entretanto, algumas hipóteses podem ser levantadas com o
objetivo de conferir algum sentido a essa situação.
Uma primeira hipótese é relativa à posição social dos membros das diferentes comunidades. A
aceitação dos serviços substitutivos por parte das comunidades mais carentes pode ser explicada pelo fato
de que tais comunidades guardam uma certa aproximação com os usuários dos CAPS, pelo fato de
ocuparem lugares sociais parecidos: o lugar da exclusão. Por outro lado, os moradores de Nova Campinas
não têm, pelo menos a princípio, uma vivência de exclusão social ou de carência financeira e material em
geral. Os excluídos, a priori, são um grupo distante da realidade dessa comunidade, configurando-se
como um outro, sobre o qual não se tem proximidade ou qualquer responsabilidade.

217
Nos bairros mais populares, a própria comunidade também é beneficiada com a presença desses
serviços, enquanto que para os moradores de Nova Campinas, os serviços aparentemente não apresentam
nenhuma utilidade, pois se alguém daquela comunidade adoecer, muito provavelmente não será tratada
em um serviço público. Talvez não se trate de uma hostilidade apenas com relação à loucura
propriamente dita, mas também com relação à pobreza, já que os usuários dos serviços de saúde mental
são, em sua grande maioria, provenientes de uma classe social desfavorecida.
Neste sentido, nos apoiamos nas considerações de Willem Doise a respeito da influência da
inserção social dos sujeitos na organização de suas representações sociais. Segundo Almeida (2001), para
Doise as representações sociais são “princípios geradores de tomadas de posição, ligados às inserções
sociais específicas, organizando os processos simbólicos que interferem nas relações sociais” (p.138). A
elaboração das representações sociais está intimamente relacionada com os valores partilhados pelo grupo
do qual o sujeito faz parte, conferindo uma identidade aos membros do grupo. Assim, pode-se dizer que
as diferentes posições sociais engendram representações e posicionamentos ideológicos distintos diante
dos diversos eventos e fenômenos sociais.
Cabe ressaltar que Nova Campinas é um bairro tradicional da cidade, cujos moradores estão
imersos no conjunto de valores da elite conservadora, lembrando ainda que a história da elite brasileira é
marcada pela construção de um pensamento segregacionista, conforme apresentamos no capítulo
referente à consolidação da Psiquiatria no Brasil. A elite no Brasil ao longo de sua história foi construindo
um pensamento e um conjunto de valores que visavam proteger seus próprios interesses, em detrimento
do desenvolvimento social referente a toda coletividade.
Assim, a instalação do CAPS neste bairro considerado de elite feriu não somente os interesses
econômicos, pela desvalorização de seus imóveis82. Ela também colocou em conflito a própria identidade
daquele grupo, fazendo emergir as representações arcaicas acerca da loucura, a despeito de todo um
trabalho de conscientização para com as novas formas de cuidar em saúde mental que já vinha sendo
desenvolvido na cidade há alguns anos.
Além disso, pode-se também supor que, pelo fato deste movimento dos vizinhos não ter sido
unânime, algumas pessoas devem ter sido pessoalmente ameaçadas com a proximidade da loucura,
representada pelos usuários dos CAPS. Pode-se especular que talvez algumas das pessoas que foram
favoráveis à retirada do serviço do local tivessem casos de loucura ou outro tipo de desestruturação em
sua própria família o que, de certa forma feria os ideais de uma família burguesa tradicional. Neste
sentido, a proximidade com a loucura mobilizou atitudes de rejeição para com a loucura, tendo como
pano de fundo a emergência dos elementos arcaicos de sua representação.
O conhecimento deste tipo de representação acerca da loucura é uma peça de fundamental
importância para subsidiar as novas ações a serem implementadas no âmbito da Saúde Mental. A

82
Cabe lembrar que a manutenção dos hospitais psiquiátricos também passa por uma questão econômica, pois o
interesse econômico dos proprietários vem colocando obstáculos ao processo de implementação da Reforma
Psiquiátrica no contexto brasileiro como um todo.

218
Reforma Psiquiátrica é um projeto inovador, que inclui em suas ações uma transformação nas políticas
públicas para a Saúde Mental, o que torna necessário um estudo mais aprofundado das opiniões e crenças
da população acerca da loucura, tendo em vista que é na aceitação deste projeto por parte da comunidade
local que será definido o seu êxito.
Esta imagem de periculosidade, imprevisibilidade e inadequação social, faz parte da
representação social construída ao longo dos últimos séculos na cultura ocidental, como pudemos
observar ao longo da história da loucura apresentada na primeira parte deste trabalho, em especial após o
surgimento da psiquiatria enquanto disciplina médica. Tal afirmação pode ser corroborada por inúmeros
autores, dentre eles Koda (2003), quando afirma que a psiquiatria engendrou transformações no universo
discursivo sobre a loucura e esta, “sem poder participar do contrato social que ora se estabelece, ganha
estatuto de doença mental, passando a ser compreendida como menoridade, irresponsabilidade,
periculosidade, ausência de obra; vista como alienação, sua condição torna-se a de ser tutelada” (Koda,
2003,p.67).
Este advogado, em contraposição aos relatos da equipe do CAPS, conta que os vizinhos foram
vítimas de inúmeras ameaças e de violência por parte dos usuários e seus familiares. Durante todo o
processo, coloca este grupo de vizinhos os quais representa, como vítimas da truculência e desrespeito por
parte da prefeitura, elaborando, inclusive, um outro processo pedindo a imediata cassação da prefeita da
cidade, o que revela uma divergência política, para além da questão específica do CAPS, corroborando a
idéia de que qualquer luta política pressupõe posicionamentos ideológicos distintos. Este processo
dirigido à prefeita da cidade continuou em tramitação mesmo depois do fechamento do CAPS Esperança
pela justiça.
Durante o período de permanência do CAPS no bairro Nova Campinas, foram realizadas algumas
reuniões nas casas dos vizinhos protestantes, contando com a presença dos representantes do SSCF e do
secretário municipal de assuntos jurídicos e cidadania, atual advogado do SSCF. Tais reuniões ocorreram
sob fortes tensões e agressões, conforme relato dos envolvidos de ambas as partes.
A permanência do CAPS Esperança em Nova Campinas foi de apenas dois meses, marcados por
um intenso trâmite judicial, que ocorreu com uma rapidez incomum aos processos habituais. Neste
período, o processo foi levado às três instâncias possíveis: municipal, estadual e federal, com intensa
atuação dos advogados representantes das duas partes.
No âmbito interno do CAPS, foi intensa a mobilização e participação dos usuários durante todo o
processo. Diariamente eram realizadas assembléias, com o objetivo de comunicar aos usuários o
andamento do processo, e cuidar dos efeitos subjetivos que tal situação causava aos usuários e equipe em
geral. Era constante a presença de familiares, e outros grupos de pessoas apoiadoras da permanência do
serviço. Os jornalistas também se tornaram presença constante no cotidiano do CAPS, entrevistando
usuários, técnicos e familiares a respeito da situação vivida pela instituição.
Todo este processo, marcado por muitas tensões e extrema hostilidade, culminou com a decisão
judicial de imediata lacração da instituição, no dia 26 de julho, por volta das 13 horas. Este dia é descrito

219
pela equipe e usuários, como um dia traumático, vivido com muito sofrimento. Dois oficiais de justiça
chegaram ao CAPS com o mandato de lacração e deram um prazo de meia hora para que os técnicos
explicassem o que estava acontecendo aos quase 160 usuários que se encontravam no serviço. Neste curto
espaço de tempo, deveria retirar todos os pertences da casa, pois não teriam o direito de voltar:
Então o que era urgente de pegar (medicação, pertences pessoais, alguns documentos) a gente
foi tirando rapidinho, com o oficial de justiça esperando e assim: ‘tirou tudo da sala?’ Fechava
a porta e punha o lacre. Desse jeito! Me dá vontade até de chorar quando eu lembro dessa
história. Foi tudo muito mal mesmo! (gerente do CAPS Esperança).

No prazo de meia hora, a casa estava lacrada e todos os usuários que freqüentavam o serviço
neste dia, estavam na rua, à espera de alguma solução. Neste dia, alguns usuários voltaram para o SSCF e
outros foram mandados para casa. A partir de então, as atividades do CAPS foram novamente retomadas
dentro do espaço físico do SSCF.
O processo judicial continuou em tramitação e alguns dias após a lacração, foi conseguida uma
liminar permitindo o funcionamento do serviço por mais 15 dias. Foi acordado pela equipe e usuários, no
entanto, a decisão de não levar o processo adiante. Continuar lutando pela permanência do CAPS naquele
espaço não seria interessante politicamente, segundo avaliação da equipe. Além disso, a equipe, em
acordo com os próprios usuários, demonstrou a vontade de não retornar mais àquele bairro:
Não eram eles (os vizinhos) mais que não queriam. Era a gente que não queria gente daquele
naipe como vizinhos. Não tinha porque a gente comprar essa briga e se submeter a
constrangimentos diários. (gerente CAPS Esperança).

Essa decisão da justiça em lacrar o CAPS Esperança proibindo seu funcionamento, teve uma
grande repercussão na cidade, gerando uma discussão entre diversos atores sociais em torno do tema,
conforme apresentado pela mídia impressa local, nas colunas dedicadas à participação dos leitores. Os
jornais já vinham noticiando este processo desde a inauguração do CAPS Esperança em Nova Campinas,
e desde o início, muitos leitores escreviam ao jornal, ou se solidarizando com o CAPS, ou se mostrando a
favor dos vizinhos de Nova Campinas, que pretendiam seu fechamento.
As cartas de leitores favoráveis à retirada do CAPS Esperança do bairro Nova Campinas
questionavam o processo de fechamentos de leitos psiquiátricos no país, que segundo estes leitores,
estavam ocorrendo de forma aleatória e inconseqüente. Para justificar sua opinião, lançavam mão de
casos de crimes cometidos por supostos doentes mentais, enfatizando a necessidade de manter leitos
psiquiátricos a fim de proteger a segurança da sociedade e garantir um tratamento, considerado como
adequado por estas pessoas, aos doentes mentais, “protegendo-os” dos efeitos maléficos da convivência
com outros grupos sociais:
De tal forma as coisas se passam que os doentes mentais, pelas ruas, acabam misturados a
alcoólatras, moradores de rua e delinqüentes de toda ordem o que agrava sua doença. Acabam
também alcoólatras, drogaditos e delinqüentes, como se sua primeira condição não fosse
suficientemente grave e como se o país se pudesse dar este luxo (leitora da tribuna de Indaiá,
16/07⁄02, Coluna Opinião, pág.2).

220
Nessa carta enviada à Tribuna de Indaiá, percebe-se uma forte presença das crenças que
subsidiaram a criação da Teoria da Degenerescência de Morel. Segundo essa teoria, como explicitado
anteriormente, a convivência entre diversas pessoas, geralmente pobres, que compõem uma “massa de
degenerados”, leva a um aumento significativo da ocorrência de doenças mentais na população, devendo
o Estado tomar providências para conter este enorme contingente de possíveis alienados, como por
exemplo criar “casas de detenção” para essa população.
Cabe ressaltar que o número encontrado de cartas de leitores contra a permanência do CAPS
Esperança em Nova Campinas foi bem menor do que o número de cartas favoráveis ao mesmo. Segundo
o advogado representante dos vizinhos de Nova Campinas, a imprensa não agiu de forma isenta no caso,
privilegiando as cartas de leitores favoráveis ao CAPS, inclusive manipulando a opinião dos leitores,
sendo esta uma das hipóteses para a diferença no número de cartas contra e a favor da permanência do
serviço.
Outra hipótese que também pode ser considerada é o início de uma mudança de postura com
relação aos doentes mentais e à forma como o tratamento destes deve se dar. Cabe lembrar que a
imprensa local teve um papel importante na visibilidade dos projetos de Saúde Mental implementados
pelo SSCF e Secretaria Municipal de Saúde, já tendo a cidade testemunhado algumas campanhas
publicitárias esclarecendo as pessoas a respeito das novas formas de cuidar preconizadas pela Reforma
Psiquiátrica.
Entretanto, cabe ainda lembrar que o “politicamente correto” neste momento histórico é apoiar a
reforma. Assim, pode ser que as pessoas que não pensam em conformidade com os pressupostos
antimanicomiais não tenham se sentido à vontade para expressar suas posições. Portanto, o numero de
carta pode não ser expressivo de uma maior adesão à reforma.
Nas cartas de leitores a favor da permanência do CAPS, percebe-se uma indignação por parte dos
mesmos com relação à atitude dos moradores de Nova Campinas. Em alguns artigos são feitas reflexões
acerca da relação preconceito versus cidadania. Em muitas cartas, a atitude dos vizinhos processantes é
criticada e compreendida como uma resistência e medo destes, diante da possibilidade de entrarem em
contato com a própria loucura, como a seguir:
Será que o medo é dos loucos do CAPS, que recebem cuidados, atenção, medicações, participam
de grupos, são reintegrados às famílias e às suas referências sociais, ou nosso medo leigo é o
mesmo sustentado pela ditadura militar na época de Nelson?83 O medo da nossa loucura, gritos
inconformados, terremotos, que podem vir à tona, se a loucura manifesta (e tratada de maneira
humana) nos cumprimentar na rua. Será que se esse louco me tocar, eu posso voltar a ter aquele
sonho? Ou sentir algo estranho no peito, sentindo o perfume do sabonete da empregada? (leitor
do Correio Popular, 12/08/02, coluna: Incomodado de nascença).

A atitude dos moradores processantes de Nova Campinas com relação ao CAPS Esperança é
criticada com veemência, inclusive por outros grupos de moradores próximos ao CAPS:

83
Referência do leitor à atitude do governo militar com relação à obra de Nelson Rodrigues, tornando-a
pornográfica, com o objetivo de desviar a atenção das questões políticas levantadas por este escritor.

221
Considero lamentável que algumas pessoas tenham se utilizado do Poder Judiciário apenas para
demonstrar sua intolerância para com outros semelhantes menos favorecidos pela vida,
provocando a desativação de um serviço essencial, que atendia indivíduos com problemas
psicossociais. Sou morador da Nova Campinas, bem na esquina abaixo de onde se localizava o
referido centro e, em nenhum momento, fui incomodado pelos pacientes que ali se tratavam
(leitor de O Correio Popular, 10/08/02, coluna Correio do Leitor).

Muitas cartas também são enviadas por leitores criticando o pedido de cassação da prefeita em
virtude de sua luta pela permanência do CAPS no bairro:
Pretender puni-la com a perda do mandato por haver instalado uma clínica na Nova Campinas,
ou permitir a instalação de antenas em caixas d’água da Sanasa, ou ainda por conceder alvará
para abertura de bingo é um absurdo inominável. Se se pusesse em prática tanto rigor, alguns
ex-prefeitos deveriam ter merecido – e outros ainda mereceriam – no mínimo, prisão perpétua
pelos crimes cometidos contra o erário (leitor do Correio Popular, 14/08/02, Coluna Opinião,
pág. 2).

Muitas cartas de adesão foram enviadas também à assessoria de imprensa do SSCF, que resultou
na elaboração da edição de setembro do Jornal Candura, dedicado
especialmente ao processo vivido pelo CAPS Esperança em Nova
Campinas. Esta edição, produzida pela equipe de jornalistas do
SSCF, traz uma coluna com cartas de apoio ao CAPS e repúdio à
decisão judicial, demonstrando a solidariedade de várias pessoas da
cidade e organizações da sociedade civil de vários estados do país.
Dentre estas cartas, estava uma moção de repúdio à decisão da
justiça, elaborada pela equipe do Hospital Municipal Dr. Mário
Gatti, um dos principais hospitais gerais da cidade, durante a reunião
preparatória para a VI Conferência Municipal de Saúde, dia 31 de
julho de 2002.
Figura 23: Edição especial do Jornal Candura
Foto de Jossonhir Brito, 2005.

No dia 08 de agosto de 2002 estava marcado um evento de solidariedade ao CAPS na sua antiga
sede, em Nova Campinas, o qual foi proibido pela justiça a pedido dos vizinhos. O evento foi então
transferido para o SSCF, e contou com a presença de mais de 100 pessoas, entre técnicos, usuários,
familiares e simpatizantes da causa do CAPS Esperança. Neste dia foram realizadas várias atividades,
dentre elas: apresentação de teatro, música, e protestos por parte de usuários, conforme reportagens do
Jornal Candura, edição de setembro de 2002.
Segundo Morant e Rose (1998), a implementação de serviços comunitários de saúde mental
constitui uma mudança radical de paradigma, tendo em vista a história de alguns séculos de
institucionalização e marginalização dos considerados doentes mentais. Para os autores, essa ruptura
radical com a história e com as práticas usualmente aplicadas a esta população, coloca em relevo a noção

222
de alteridade, que enfatiza as tensões entre as compreensões do senso comum sobre doença mental e as
políticas implementadas para o fechamento dos hospitais psiquiátricos.
Pelo fato destas políticas ainda estarem em processo de implementação, pode-se inferir que as
representações sociais estejam também em processo de transição, denotando, algumas vezes,
ambigüidades, incertezas e tensões na relação e caracterização do que seja loucura. Em outros casos, as
transformações na forma de cuidar em saúde mental, suscita um acirramento das representações arcaicas
denotando, dentre outras coisas, uma tentativa de resguardar as identidades já consolidadas
historicamente.

O CAPS Esperança no SSCF e no Taquaral


Após a retirada do CAPS Esperança da sede em Nova Campinas, as atividades deste serviço
foram retomadas dentro do espaço físico do SSCF, em meio a algumas dificuldades, tendo em vista que o
espaço físico destinado às atividades do antigo HD, já havia sido ocupado por outras unidades do SSCF.
Assim, durante os nove meses em que o CAPS voltou a funcionar dentro do SSCF, as atividades
ocorreram contando com parcerias do Centro de Convivência e Arte e do Núcleo de Atenção à Crise, que
cederam algumas de suas salas para a realização das atividades do CAPS. Algumas atividades eram
realizadas ao ar livre e nas imediações do SSCF.
Durante este tempo, os técnicos do CAPS,
juntamente com funcionários da Secretaria Municipal
de Saúde, continuaram a procurar outro imóvel na
região leste, que atendesse às demandas dos usuários
do serviço. Desta vez, o imóvel encontrado se
localizava no Taquaral, na rua Padre Domingos
Giovanini, considerada uma das partes mais
valorizadas do bairro.
Figura 24: Fachada do CAPS Esperança no Taquaral

O Taquaral é um bairro da região leste que, juntamente com outros bairros circunvizinhos, forma
uma espécie de “subregião”. Esta “subregião”, tal como toda a região leste, é caracterizada pela
heterogeneidade dos bairros que a compõem, contando com bairros de classe média, como o Taquaral, e
outros bairros onde a população tem um menor poder aquisitivo. Conta ainda com uma área rural, que
também é considerada como pertencente a esta “subregião”.
Nesta parte da região leste há uma grande mobilização da comunidade evidenciada pela atuação
dos conselhos locais de saúde, educação, segurança e associações de bairro, que conquistaram, devido à
mobilização comunitária, inúmeras melhorias para a região. Trata-se de uma parte antiga da cidade, que
tem uma forte tradição religiosa, segundo depoimento do presidente da associação de bairro, antigo
membro do conselho local de saúde.

223
Antes do aluguel do imóvel, os funcionários do SSCF e da prefeitura certificaram-se de que
aquela era uma região onde estabelecimentos comerciais e de saúde eram permitidos. Foi solicitado,
inclusive, um parecer ao Secretário de Planejamento, confirmando que naquela área era permitida a
instalação deste tipo de serviço. Entretanto, apesar de ser uma área permitida por lei, a gerente do CAPS
Esperança, juntamente com a apoiadora da região Leste, percorreram toda a vizinhança, esclarecendo
sobre o trabalho do CAPS e coletando assinaturas para um abaixo-assinado de concordância da
implementação do serviço no local.
Este período de coleta de assinaturas é descrito pela gerente como um período bastante rico, pelo
contato que foi estabelecido com a vizinhança. Foram realizadas reuniões com o presidente da Associação
de Bairro, que se tornou um importante parceiro, auxiliando na mobilização da comunidade na aceitação
do serviço. Algumas pessoas da vizinhança se ofereceram para prestar serviços voluntários no CAPS,
dentre estas uma assistente social, que trabalha no CAPS desde sua reinauguração e uma técnica de
enfermagem que mora na rua de baixo.
Foram feitos contatos com vários estabelecimentos comerciais localizados na rua, entre estes uma
escola de primeiro grau e uma escolinha de futebol. A diretora da escola, localizada em frente ao imóvel
destinado ao CAPS, levantou algumas questões, consideradas pertinentes pela equipe, com relação à
segurança das crianças sem, no entanto, causar nenhum constrangimento à equipe e usuários,
concordando com a instalação do mesmo. A direção da escolinha de futebol, que atende crianças e
adolescentes, também não se opôs à instalação do CAPS, desenvolvendo inclusive, uma forma de
abordagem aos usuários que, por engano, entravam na escola. Ao final deste trabalho foram coletadas
mais de mil assinaturas de moradores do bairro que concordaram com a instalação do CAPS na referida
rua.
Com relação aos dois vizinhos diretos do CAPS, foi relatado o contato feito com um deles que, a
princípio se mostrou favorável à instalação do serviço, demonstrando inclusive, interesse em comparecer
à festa de inauguração. O outro vizinho não foi encontrado em horário comercial durante todo o mês que
antecedeu a instalação do serviço.
No dia 4 de abril de 2003, uma sexta-feira, foi realizada a festa de inauguração do serviço, em
meio a um clima de comemorações e satisfação por parte da equipe, usuários e familiares pela reabertura
do serviço fora dos limites físicos do SSCF. Na segunda-feira seguinte os membros da equipe receberam
a notícia que os dois vizinhos localizados ao lado do imóvel tinham entrado na justiça, pela retirada do
CAPS do local.
Este segundo processo sofrido pelo CAPS Esperança, no entanto, foi vivenciado de maneira
diferente do primeiro processo em Nova Campinas. Além de não haver o clima de hostilidade e agressões
entre a comunidade do CAPS e a vizinhança, tão característico do primeiro processo, desta vez, a equipe
optou por não trazer esta discussão para dentro da instituição. Na intenção de preservar a imagem da
equipe e dos usuários, não foi permitida a presença de jornalistas e outras pessoas externas ao
funcionamento do serviço. Foram realizadas assembléias periódicas para anunciar aos usuários que

224
estavam sendo vítimas de mais um processo e para manter a comunidade do CAPS informada do
andamento do mesmo. Essa discussão, no entanto, não fez parte do cotidiano do serviço como da primeira
vez. As atividades cotidianas do CAPS aconteceram normalmente, enquanto se esperava a decisão
judicial.
A principal alegação dos vizinhos, como em Nova Campinas, foi a irregularidade da instalação do
serviço em área residencial, argumento não válido desta vez, pois tratava-se de uma área onde era
permitida a instalação de estabelecimentos comerciais, haja vista a existência de duas escolas, lojas e
escritórios na mesma rua. A prefeitura, em defesa à permanência do CAPS, argumentou que a suspensão
das atividades seria prejudicial à saúde pública, na medida em que deixaria sem atendimento os usuários
do serviço. Esta afirmação foi contestada pela advogada dos vizinhos, que a considerou uma inverdade,
na medida em que há outros CAPS na cidade. Outro argumento utilizado pela advogada é de que o
atendimento oferecido pelo CAPS “não se trata de um atendimento emergencial e, sim, de uma atividade
complementar, mais voltada para o lazer dos pacientes”84.
Os argumentos utilizados pela advogada, além de revelar um desconhecimento da estratégia de
regionalização da atenção à saúde no município, revela uma idéia bastante comum em relação ao trabalho
realizado pelos CAPS. Tendo em vista a história de tratamentos oferecidos aos doentes mentais, marcados
pela violência, contenção e exclusão social dos mesmos, parece compreensível que o trabalho realizado
pelos CAPS tragam alguma estranheza às pessoas externas a este serviço, não sendo considerado o
trabalho enquanto um tratamento.
O trabalho terapêutico realizado nos CAPS tem como marca a inclusão social, por meio de
inúmeras atividades, as mais diversas possíveis, que permitam a expressão subjetiva destes novos atores
sociais, a profissionalização dos mesmos e a problematização de sua condição. São atividades que trazem
a marca da cultura onde este serviço está inserido e que, por renegar o uso de meios coercitivos e restrição
à liberdade individual, podem dar a impressão de que são atividades puramente lúdicas e não terapêuticas.
Este segundo processo ficou em andamento durante seis meses e, no dia 05 de novembro de 2003,
teve como desfecho a permissão judicial para funcionamento definitivo do serviço naquela localidade.
Este desfecho foi amplamente comemorado pela equipe técnica e por usuários e familiares, sendo
considerado como “um passo na ampliação da noção que a cidade tem de cidadania”, conforme
declaração de W. Valentini, então Superintendente do SSCF (em entrevista a Johnny Inselsperger85).

- O CAPS no “olho do furacão”: algumas reflexões sobre o funcionamento da rede de saúde mental
Após apresentar a história dos serviços que compõem a rede de saúde mental do município, faz-se
necessária uma reflexão a respeito do funcionamento desta rede. A rede de saúde mental de Campinas,

84
Reportagem de Carlos Lemes Pereira, do Correio Popular, 09 de maio de 2003, coluna Cidades.
85
Inselsperger, J (2003, 6 de novembro). Decisão da Justiça autoriza CAPS a funcionar no Taquaral. Correio
Popular, p. 6, Caderno Cidades.

225
por se tratar de uma experiência modelo para a implementação da Reforma Psiquiátrica no Brasil, traz em
si questões que podem ser transpostas a outros contextos de desinstitucionalização no país.
Atualmente, como explicitado no capítulo referente a Reforma Psiquiátrica no Brasil, as políticas
nacionais para a saúde mental têm nos CAPS o centro deste novo modelo de atenção. Os CAPS
constituem-se em serviços estratégicos, que têm por objetivo organizar toda a rede de serviços destinados
ao cuidado das pessoas acometidas de intenso sofrimento psíquico, compondo o sistema de saúde,
juntamente com outros serviços.
Este modelo adotado nas políticas nacionais para a saúde mental se parece, em alguns pontos,
com a política adotada na experiência italiana, que preconizava os centros de saúde mental regionalizados
como peças chaves na reestruturação do modelo de atenção. No Brasil, este modelo de atenção centrado
nos CAPS tem tido bons resultados no que diz respeito a prevenção e a diminuição do número de
internações e o processo de desinstitucionalização da população como um todo. Os CAPS de fato vêm se
consolidando em sua função de substituir aos manicômios brasileiros.
Entretanto, apesar da efetividade do modelo de atenção à saúde mental centrado nos CAPS,
algumas críticas devem ser feitas no sentido do aprimoramento deste modelo. Ao longo da pesquisa de
campo, algumas insuficiências ficaram evidentes no atendimento prestado pelos CAPS. As vantagens e
benefícios que estes serviços trouxeram à vida dos usuários são inquestionáveis, mas para que este
modelo seja realmente consolidado e aceito de forma mais ampla por toda a sociedade, algumas reflexões
e críticas devem ser apontadas, no sentido de contribuir para a continuidade e desenvolvimento desta
nova forma de cuidar.
Ao longo da pesquisa de campo ficou evidente, em todos os CAPS visitados, uma sobrecarga de
trabalho das equipes, que se tornaram pequenas para o atendimento da demanda. A sobrecarga de trabalho
pode ser evidenciada pela quantidade de usuários que passam boa parte de seu tempo de permanência no
CAPS, sem uma atenção específica e sem participar de atividades. Alguns técnicos chegaram a chamar a
atenção da semelhança, em alguns momentos, das áreas compartilhadas dos CAPS com os pátios dos
manicômios, repletos de ociosos.
Em algumas reuniões do colegiado aberto realizadas no SSCF, foi relatada por vários membros
das equipes dos CAPS a dificuldade de realização das atividades programadas, tendo em vista a
quantidade de trabalho considerado “burocrático” (como por exemplo atualização de prontuários) e o
número excessivo de atribuições que cada membro da equipe era responsável. A esse excesso de
atribuições vêm se somar um grande número de usuários atendidos nestes serviços, pois cada CAPS de
Campinas atende uma região que abrange uma população com mais de 100.000 habitantes. Este contexto
revela a necessidade de um maior número de serviços e profissionais trabalhando na área, ou talvez uma
reorganização dos serviços no que tange sua estrutura e atribuições.
O excesso de funções dos técnicos está diretamente relacionado com o número de atribuições que
foram delegadas aos CAPS com a reorientação do modelo de atenção, quais sejam: dispensar
medicamentos, encaminhar e acompanhar usuários que moram em residências terapêuticas, assessorar e

226
oferecer retaguarda para o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde e Equipes de Saúde de Família
no cuidado domiciliar. Além disso, os CAPS têm por objetivos: prestar atendimento em regime de
atenção diária; gerenciar os projetos terapêuticos individuais de cada um dos usuários, oferecer cuidado
clínico eficiente e personalizado; promover a inserção social dos usuários através de ações intersetoriais e
organizar a rede de serviços de SM do território (Ministério da Saúde, 2004a).
Assim, além das atividades internas e diretamente realizadas com os usuários do serviço, os
profissionais dos CAPS ainda têm uma série de atribuições externas relacionadas a outros serviços e
profissionais da rede. Foi relatado pelas equipes que, com freqüência, ocorria dos usuários que estavam
mais agitados ou em crise receberem mais atenção. Os outros mais estabilizados, geralmente, ficavam em
segundo plano, pois não sobrava tempo para uma atenção mais dedicada aos processos de reabilitação no
cotidiano, o que gerava nas equipes, muitas vezes, uma angústia e sentimento de impotência e frustração.
Foi também relatado pelos técnicos que, em alguns CAPS, em alguns momentos, há uma incidência
maior de crises e comportamentos que buscam uma atenção mais individualizada o que, de certa forma,
inverte o sentido do trabalho que se busca realizar.
Além disso, também foram observadas queixas com relação à atenção prestada às residências
terapêuticas, que, segundo avaliação das próprias equipes era insuficiente para viabilizar um trabalho de
reabilitação psicossocial realmente efetivo. A sobrecarga de trabalho dos técnicos dificultava o cuidado
nas residências que, por sua vez requeriam uma atenção redobrada, pela responsabilidade que implicava
este tipo de serviço. Essa situação gerava ansiedade nas equipes e levava a esforços redobrados para
atender os moradores a qualquer custo. Este atendimento, entretanto, não contava com o auxílio para
transporte dos técnicos que, em muitos casos, faziam até três visitas diárias em cada uma das residências
referenciadas nos CAPS onde trabalhavam. Das residências referenciadas no CAPS Esperança, por
exemplo, seis ou sete deviam ser visitadas pelos técnicos de enfermagem pelo menos três vezes ao dia, o
que levou a criação de escalas de plantões para estes técnicos, que saiam do centro e iam até Souzas para
fazer as visitas, de ônibus ou em seus próprios carros.
As queixas de sobrecarga de trabalho e a consequente insuficiência da atenção prestada aos
usuários e moradias, apontam para a necessidade de revisões constantes do cotidiano dos CAPS e seu
modo de funcionamento. Além disso, apontam para a necessidade de uma maior reflexão acerca do
modelo que tem nos CAPS o centro organizador da rede de atenção em saúde mental. O papel estratégico
dos CAPS a princípio é uma idéia interessante, mas requer uma melhor estruturação destes serviços e uma
ampliação dos quadros profissionais, de forma a possibilitar um melhor atendimento da demanda e
cumprimento de todas as atividades que foram atribuídas a estes serviços.
Emerson Merhy - sanitarista que fez parte da história da co-gestão e no momento da pesquisa de
campo era o supervisor do trabalho no SSCF - em uma palestra proferida no encontro realizado pela
Secretaria Municipal de Saúde no CAPS Novo Tempo faz um retrato preocupante da situação vivenciada
pelos profissionais dos CAPS, alertando para a necessidade de uma reflexão mais cuidadosa dos rumos
para onde este modelo de atenção estava caminhando. Para ele os CAPS, devido às suas inúmeras

227
atribuições, estava situado bem no “olho do furacão” da Reforma Psiquiátrica em Campinas, o que pode
ser ampliado para a realidade nacional. O supervisor falou da necessidade de rever os critérios de
avaliação do funcionamento de um serviço, incluindo a “alegria do fazer” como um critério fundamental
para avaliar o trabalho das equipes. Para ele, da forma como os serviços vinham funcionando, a alegria
estava cedendo lugar à agonia de um cotidiano atropelado pelas inúmeras tarefas que, em última
instância, não estavam cumprindo a função a que se propunham, qual seja, a efetivação da reabilitação
psicossocial dos usuários.
Uma questão que pode ser levantada a respeito desse modelo de atenção centrado nos CAPS, é o
fato de que este serviço é novo e as atribuições que foram a ele delegadas, em alguns momentos, parecem
concorrer com as funções já exercidas por outros serviços da rede saúde (como os centros de saúde e
hospitais gerais), que já têm uma cultura consolidada e uma história anterior de atendimento à população.
Atribuir aos CAPS uma centralidade no atendimento da clientela da saúde mental, em certo sentido
parece ser contraditório com a proposta de inserir a saúde mental na rede de saúde como um todo. Em
alguns momentos e em algumas localidades parece haver dois sistemas em choque, e não uma real
inserção da saúde mental no sistema de saúde.
Isso pode ser exemplificado com algumas situações corriqueiras que ocorreram em alguns
serviços da rede de saúde mental de Campinas no momento da pesquisa de campo. O CAPS, por ter sido
colocado no centro do modelo de atenção, acaba por receber uma clientela que, a princípio não deveria
ser atendida neste tipo de serviço, o que aumentava a demanda de trabalho, muitas vezes
desnecessariamente. Outra situação testemunhada foi a rejeição de alguns pacientes em hospitais gerais
ou centros de saúde, por serem identificados como usuários dos CAPS. Alguns técnicos relataram que
profissionais de outros serviços de saúde afirmaram que os pacientes dos CAPS deveriam ser atendidos
neles e não em outros serviços, e isso ocorreu mesmo em situações onde a demanda de atendimento não
era para um CAPS.

Neste sentido, algumas reflexões devem ser feitas com relação ao papel estratégico que os CAPS
adquiriram dentro deste novo modelo, pesando os pontos positivos e negativos desta nova função de
reorganizadores da rede de atenção à saúde mental, e buscando medidas criativas para tornar esta função
viável. É preciso que se reavalie a relação dos CAPS com os centros de saúde e com os programas de
saúde da família, de forma a evitar possíveis ingerências e⁄ou sobrecarga de atribuições nos dois serviços.
Neste mesmo sentido, deve ser pensada a relação dos CAPS com os hospitais gerais, que a partir da
promulgação da Lei 10.216, deverão compor a rede de serviços que atendem a saúde mental, recebendo
usuários em crise para internações breves, como forma de evitar a internação em hospitais psiquiátricos.

Cabe lembrar que os CAPS têm uma filosofia de trabalho e uma dinâmica de funcionamento
bastante diferentes de um centro de saúde e, principalmente, de um hospital geral, o que requer um
aprimoramento da comunicação entre os profissionais destes serviços, de modo a possibilitar negociações
viáveis para ambos, no caso de atendimento de usuários em comum. Além das diferentes culturas

228
institucionais é preciso considerar as próprias limitações e insuficiências do sistema de saúde como todo,
que vive, constantemente, uma situação caótica, não só na cidade de Campinas, mas em todo o território
nacional.

As questões levantadas até este momento não se restringem à rede de atenção à saúde mental em
Campinas, podendo ser vivenciadas em outros contextos onde existam experiências de Reforma
Psiquiátrica em desenvolvimento.

Em Campinas, especificamente, há uma questão que merece ser observada. Na história de


constituição da rede de saúde mental do município, percebe-se a atuação de duas instâncias gestoras deste
processo, quais sejam, a Secretaria Municipal de Saúde e o Serviço de Saúde Cândido Ferreira, cujas
relações são marcadas pelas incertezas políticas e variam de acordo com os interesses e prioridades
governamentais.

No momento em que foi realizada a pesquisa de campo, percebeu-se uma relação de forte
parceria entre o SSCF e a Secretaria Municipal de Saúde, cuja coordenação de saúde mental era composta
por antigos trabalhadores dos serviços de saúde mental da cidade. A saúde mental na gestão de 2001 a
2004 foi uma das prioridades na agenda governamental, tendo sido ampliada e aprimorada a comunicação
entre os serviços gerenciados pelo Cândido Ferreira e os gerenciados pela Secretaria de Saúde,
fortalecendo desta forma a relação de co-gestão entre estas instâncias.

Entretanto, apesar dessa estreita parceria e dos objetivos comuns às duas instituições gestoras,
ficaram evidentes algumas discordâncias com relação ao ritmo imprimido à implantação da Reforma na
cidade. A apresentação das diferenças entre as instâncias gestoras parece interessante por ilustrar algumas
dificuldades que permeiam as experiências de Reforma e trazer novas questões a serem refletidas em um
outro momento, posterior a este trabalho.

A Secretaria Municipal de Saúde tinha como missão política, reduzir a zero o número de
internações na cidade, o que levou à aceleração do processo de ampliação dos CAPS existentes e
implantação de novos serviços. Este ritmo não era acordado pelos profissionais que trabalhavam
gerenciados pelo SSCF, que se sentiram atropelados em seu processo de trabalho. A discussão já
apresentada, referente ao conflito com relação à existência do Núcleo de Atenção à Crise (NAC)
demonstra, de forma exemplar, tais divergências entre as instituições gestoras da saúde mental na cidade,
e os diferentes compromissos assumidos por cada uma das partes.

Estas divergências evidenciam algumas diferenças teóricas e de compreensão do que seria um


modelo ideal de atenção à saúde mental, revelando também os diferentes lugares ocupados por estes
serviços nas políticas de saúde no município. Lugares que propiciam olhares diferentes para o processo de
implementação do novo modelo e posicionamentos diversos.

Uma das maneiras de verificarmos estes diferentes lugares é observarmos algumas diferenças no
gerenciamento dos CAPS. O repasse do financiamento dos CAPS da Secretaria Municipal de Saúde e do

229
SSCF, por exemplo, é feito de diferentes formas pelas instituições gestoras. O repasse do financiamento
para o SSCF pela Secretaria de Saúde tem uma rubrica própria, com um valor proveniente do SUS,
previamente estabelecido, que é repassado integralmente para o SSCF gerenciá-lo com autonomia. Já os
CAPS da Secretaria de Saúde têm sua verba, também proveniente do SUS, atrelada a outras despesas da
Secretaria. Isso faz com que o funcionamento destes CAPS sejam mais afetados pela burocracia do
serviço público e estejam mais à mercê das mudanças políticas. Também são diferentes os contratos e
salários dos funcionários da Secretaria Municipal de Saúde e do SSCF. Essas diferenças tem como
consequência uma realidade bastante distinta nos serviços gerenciados pelo SSCF e pela Secretaria
Municipal de Saúde.

Cabe lembrar que as responsabilidades de cada uma das instâncias gestoras são diferenciadas,
levando a diferentes compromissos assumidos por cada uma. A Secretaria Municipal de Saúde, por
exemplo, tem o compromisso de atender a todos os distritos, articulando as políticas de saúde mental,
com todas as outras referentes ao atendimento da população como um todo. O SSCF tem um
compromisso com a continuidade de um projeto de desinstitucionalização gradual, mas em proporções
menores, se comparado às atribuições da Secretaria de Saúde, e sem as amarras e burocracias
características do serviço público, como foi apresentado a pouco, o que torna as duas instâncias
incomparáveis em seu processo de trabalho.

230
4. TECENDO A REDE
“Tecer é mais ou menos como a vida. Exige um tanto de dedicação,
(des)empenho e paciência. O trabalho constantemente atencioso de sobrepor as
linhas de forma harmônica, com a força e o alinhamento na medida certa, nem
presas, nem soltas demais.
Aos poucos, algo novo vai assumindo forma e se tornando peça de grande preciosidade
e inigualável beleza, pelo simples fato de ter sido feito pelas próprias mãos.
Em cada trançado, uma cena do enredo. Em cada cor, uma nova
possibilidade que se apresenta. A atenção, o cuidado, a alegria e a
disposição para o inesperado como ingredientes essenciais para realizar a
delicada arte de tecer, e com isso aprender a simplicidade da arte de
viver.”
(Juliana.).

Anteriormente foi apresentada a história de constituição de alguns dos serviços de atenção à


saúde mental na cidade de Campinas. Consideramos o conjunto destes serviços como uma rede, na
medida em que disponibilizam diferentes tipos de cuidado para seus usuários, adequados às necessidades
específicas de cada momento de suas vidas. Outra característica que permite considerar tais serviços
como uma rede é o fato de suas estruturas permitirem uma comunicação entre os profissionais, e um
trânsito de usuários de um serviço a outro, tendo como prioridade o atendimento das necessidades de cada
um.
No centro da rede estão os CAPS, que podem ser considerados seus pontos fixos tendo em vista
que todos os outros serviços estão neles referenciados. Os CAPS, apesar da diversidade de atividades e de
suas características peculiares, possuem funções e uma estrutura institucional - composta por equipes de
saúde multiprofissionais, prontuários, atendimento ambulatorial – que permitem identificá-los enquanto
serviços de saúde propriamente ditos.

Há, entretanto, outros serviços que compõem esta rede de saúde mental que possuem uma
estrutura e um modo de funcionamentos bastante diferenciados dos acima apresentados e que guardam
poucas semelhanças com o que tradicionalmente conhecemos por um serviço de saúde. São serviços que
permitem um trânsito dos usuários não somente de um serviço a outro, mas ampliam a possibilidade de
estabelecer novas pontes entre a vida institucional e a vida social. Conferem uma visibilidade para as
formas inovadoras de cuidar em liberdade, na medida em que viabilizam uma maior circulação social dos
usuários, colocando-os em contato com a vida da cidade e o cotidiano vivido por seus diversos atores.
São serviços que se entrelaçam na complexa trama do tecido social, possibilitando realizar o
sonho de uma possível inserção na vida fora do manicômio. Serviços que reinventam, de maneira
inovadora, o cuidado, oferecendo novos sentidos à reinserção social. Podemos compara-los às diversas
linhas que vão tecendo uma rede, ligando pontos distintos, conferindo novas cores, novas tramas e
caminhos, a partir de pontos fixos.
Dentre estes serviços que “tecem a rede”, estamos considerando o Núcleo de Oficinas de
Trabalho, já apresentado anteriormente, que ressignifica os modos de produção para essa população
excluída do mercado. Este Núcleo vem oferecendo uma oportunidade de reconstruir o sentido de vida de

231
seus usuários, auxiliando-os na construção de novos caminhos para uma reinserção social, a partir do
trabalho, uma dimensão amplamente valorizada em nossa cultura.
Outros serviços que estaremos nos detalhando um pouco mais a partir de então são as residências
terapêuticas e o Centro de Convivência e Arte do SSCF. Estaremos enfocando estes serviços não mais do
ponto de vista institucional, mas dos benefícios que vêm trazendo aos usuários no sentido de uma
melhoria em sua qualidade de vida. Um dos motivos de nosso enfoque é mostrar a importância destes
serviços no processo de desinstitucionalização no âmbito da saúde mental. As observações feitas a
respeito desses serviços específicos lançam luz sobre outros serviços da mesma natureza que existem em
outros lugares do país. Como foi apresentado anteriormente, apesar do número reduzido destes serviços
no país, há uma política de incentivo à ampliação das residências e centros de convivência em saúde
mental, o que justifica em parte a apresentação destes serviços específicos.
Além destes serviços, daremos especial destaque às oficinas de comunicação realizadas no SSCF,
por seu grande poder de mobilização e participação ativa na construção de uma nova imagem do que seja
a loucura e o tratamento em saúde mental.
Os serviços acima citados e o trabalho de comunicação realizado pelo SSCF são peças
importantes na constituição de novas representações sociais acerca da loucura, na medida em que
colocam em confronto os sujeitos que representam e o objeto representado. Os artigos produzidos nas
oficinas de trabalho, a circulação dos usuários pelos espaços sociais, a vizinhança com moradores das
residências terapêuticas e a veiculação dos jornais, programas de rádio e vídeos produzidos pelos os
usuários na mídia, contribuem para uma aproximação dessa população com a sociedade, desmistificando
a representação de loucura associada a periculosidade, improdutividade, imprevisibilidade e incapacidade
para a vida social.
Esses serviços e atividades fornecem novos elementos que vêm se contrapor às representações de
loucura cristalizadas ao longo da história, introduzindo alguns questionamentos e apontando algumas
dissonâncias entre o que se concebe e o que se testemunha. Além disso, estes serviços e atividades já têm
alguns anos de história, tendo consolidado uma prática de cuidado em liberdade, que é testemunhada por
toda a comunidade. Cabe também lembrar que estes tipos de serviço (centros de convivência, residências
terapêuticas, rádios comunitárias, CAPS, dentre outros) vêm sendo incentivados em todo o território
nacional, amparados por uma política federal de saúde mental em conformidade com os princípios da
Reforma Psiquiátrica, o que aponta para uma certa irreversibilidade do processo de
desinstitucionalização.
Flament (2001) ao falar do processo de transformação das representações sociais, enfatiza o papel
das práticas no desencadeamento de transformações profundas nas representações. Para este autor, uma
das situações em que pode haver uma transformação é quando algumas práticas, até certo ponto
contraditórias, que são admitidas pela representação, deixam de ocorrer de maneira esporádica e passam a
ficar muito freqüentes. É o caso da saúde mental. Na época em que as pessoas ficavam trancadas nos
manicômios, podia-se até admitir, de maneira hipotética, uma pessoa considerada “louca” morar em uma

232
casa na comunidade, ou participar de um programa de rádio, situações, no entanto, bastante improváveis.
Com a implantação da Reforma Psiquiátrica e com a criação dos novos dispositivos de cuidado de que
estamos tratando nesta parte do trabalho, as situações de contato e, muitas vezes de convivência com o
“louco”, tornaram-se muito mais freqüentes, fazendo parte do cotidiano.
Flament (1989), com relação a estas situações, antes raras e a partir de certo momento muito
freqüentes, afirma que há uma grande possibilidade de modificação do nível de ativação de elementos do
sistema periférico. Afirma que, ao longo do tempo, modificações efetivas nas representações sociais – que
ocorrem com a mudança de elementos do núcleo central – podem eventualmente ocorrer nessas situações
de proximidade com o objeto representado, de maneira progressiva, sem uma ruptura a priori com o
passado.
Apesar de se tratar de uma transformação de representações sociais ainda gradual e sem um
rompimento abrupto com as representações construídas ao longo da história, acreditamos que o
estreitamento do contato entre usuários dos serviços de saúde mental e a comunidade sejam de
fundamental importância como ponto de partida para o longo processo de reconstituição das
representações sociais da loucura. As novas práticas impostas pela presença de usuários no cotidiano das
cidades incita algo de novo, à medida que confronta com a imagem historicamente construída do sujeito
perigoso, desequilibrado, imprevisível e incapaz para o trabalho e vida social em geral.

- As residências terapêuticas em Campinas: o valor da convivência


Artigo XII:
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
Inclusive brincar com os rinocenontes e
caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
(Thiago de Mello – Os Estatutos do Homem).

Na época da pesquisa de campo, havia em Campinas 27 residências terapêuticas, sendo 5 delas


referenciadas no Núcleo Clínico, 5 no CAPS Estação, 3 no CAPS Toninho e 14 no CAPS Esperança.
Atualmente segundo dados do Ministério da Saúde (2004b), há 30 residências na cidade. Cada uma
dessas casas, além de estar referenciada em um serviço de saúde mental, também contava com um técnico
de nível superior e um auxiliar de enfermagem que eram as referências para o cuidado.
Como já foi dita anteriormente, cada CAPS, ou serviço responsável pelo cuidado com as
moradias, se organizava de uma forma particular para prestar o atendimento às mesmas. O CAPS
Estação, por exemplo, contava com um núcleo de moradias, em que havia alguns profissionais fixos, para
o atendimento das 5 moradias. Já os CAPS Esperança realizava as visitas às 14 moradias com auxiliares
que se organizavam em plantões. Cada auxiliar em seu plantão visitava todas (ou quase todas) as casas
que fossem próximas umas das outras e o técnico de nível superior visitava a casa na qual era o
profissional de referência uma vez por semana, ou a depender da necessidade dos moradores.

233
Cabe lembrar que a forma com que os serviços se organizavam para prestar o atendimento às
moradias era amplamente influenciada pela situação vivida pelos serviços, de sobrecarga de trabalho,
como discutido anteriormente, e pouco apoio institucional no cuidado com as moradias. Um dos
problemas apontados pelas gerentes entrevistadas era a atenção à demanda clínica dos moradores, pois
todos deveriam, necessariamente estar vinculados a um centro de saúde, mas estes centros, de forma
geral, não davam conta de atender às necessidades de todos os moradores, em virtude dos inúmeros
problemas e grande demanda atendida por estes serviços. Muitos moradores já estavam em idade
avançada e necessitando de cuidados mais específicos e constantes, o que muitas vezes ficava prejudicado
devido à sobrecarga de trabalho vivenciada pelos técnicos.
Entretanto, apesar das dificuldades, as moradias não ficavam sem os devidos cuidados mínimos,
que garantiam um certo nível de qualidade de vida aos moradores, que viviam em liberdade e com
dignidade. Em cada uma das casas, ou pelo menos na maior parte delas, havia, além dos técnicos de
referência, um auxiliar para serviços gerais, que cuidava da limpeza e alimentação.
Um fato interessante é que algumas pessoas que trabalhavam nas moradias como auxiliar de
serviços gerais eram funcionários do antigo Sanatório Cândido Ferreira. Muitos já tinham tido a
experiência de trabalho em um manicômio e seu trabalho nessas instituições era exercido de forma
mecânica e sem uma reflexão sobre a situação de vida das pessoas internas à instituição. O trabalho
consistia em fazer comida nos panelões para servir a todos da mesma forma, ou limpar o chão e banheiros
sem ter que, nem ao menos, olhar para as pessoas ali internadas, pois isso não fazia parte das funções
desses empregados.
Com a ida desses funcionários para as residências terapêuticas, percebeu-se a necessidade de uma
mudança de postura dos mesmos, pois dali em diante, esses auxiliares de serviços gerais, seriam pessoas
estratégicas no trabalho de reabilitação psicossocial. Não se tratava mais somente de cozinhar ou arrumar
a casa. As conversas, as negociações cotidianas e o incentivo ao aprendizado dos trabalhos domésticos
também passaram a fazer parte do trabalho. Neste sentido foi necessária uma transformação no olhar
dirigido a estes sujeitos, antes loucos de hospício, agora moradores de uma casa. Moradores que, a partir
de então poderiam - e deveriam - ter uma autonomia para se apropriar e cuidar do espaço em que viviam.
Assim, a função da antiga cozinheira não era mais somente cozinhar, mas sim trabalhar de uma forma
mais global com estes moradores86, constituindo-se em uma importante agente de saúde em prol da
reabilitação psicossocial.
Durante a pesquisa de campo, tive a oportunidade de conhecer 14 das 27 moradias, e pude
testemunhar um pouco das relações estabelecidas entre os diversos agentes de saúde (auxiliares de
serviços gerais, auxiliares de enfermagem e técnicos de nível superior) e os moradores. Um dos detalhes
que chamou a atenção foi o pedido de licença que todos os profissionais faziam antes de entrar nas casas,
quaisquer que fossem. Isso denota uma atitude de respeito para com os moradores, demarcando bem a

86
Esses auxiliares de serviços gerais geralmente ensinavam os moradores a cozinhar, arrumar o quarto, fazer lista de
compras, ir ao supermercado, além de terem um contato próximo com os técnicos de referência da casa.

234
diferença entre as residências e os serviços hospitalares, onde as instalações são impessoais e os corpos
públicos.
Outra observação que merece ser feita é com relação à confiança dos técnicos nos moradores e a
aposta que é feita em cada um deles, evidenciando uma crença genuína na possibilidade de resgate da
cidadania e autonomia desses sujeitos. A reabilitação psicossocial realizada nas residências, assim como a
realizada nos CAPS, se distancia de uma atitude protecionista por parte dos técnicos. Há um olhar atento
para as peculiaridades, dificuldades e limitações de cada um dos usuários. Este olhar, no entanto, não é
um olhar que cronifica o sujeito em sua condição de doente. Ao contrário, é um olhar cuidador que
incentiva o crescimento, o desenvolvimento pessoal e cidadão, bem como a superação gradativa dos
limites.
Percebi que cada casa é uma realidade em particular. A combinação dos moradores das casas dá
um tom peculiar a cada uma delas. Pude conhecer casas onde os moradores tinham uma estreita relação
de amizade e companheirismo entre si, ajudando-se mutuamente. Em outras casas já ficou mais evidente
uma falta de intimidade entre os moradores e uma certa dificuldade em conquistar uma autonomia maior
com relação às atividades cotidianas. Assim, a atenção dirigida a cada moradia se dava de forma bem
individualizada, na medida do possível, pois eram configurações únicas que se apresentavam e que
precisavam ser trabalhadas.
Outro fato notável foi a priorização dos projetos terapêuticos em detrimento das questões
administrativas. Isso ficou evidente pela existência de residências individuais (habitadas por pessoas que
tinham autonomia para morar em uma residência, mas tinham dificuldades de relacionamento com outros
moradores) e residências cujas instalações permitiriam outros moradores, mas optou-se por permanecer
com o grupo que já existia, pois outros novos moradores poderiam interferir nas relações já consolidadas.
A atenção aos projetos individuais também pode ser comprovada no processo de montagem dos grupos
que vão morar nas residências, ou na inserção de novos integrantes da moradia, como pode ser
evidenciado na fala de uma das gerentes:
Então tem todo um cuidado de fazer uma aproximação com o grupo, de se conhecerem. Tem que
ver com o grupo também se aceita essa pessoa ou não, e isso é muito importante, né. Não dá pra
gente trabalhar com a lógica das vagas. A gente trabalha com a lógica do sujeito, do grupo, das
afinidades, da escolha..

Um dos aspectos que chamou a atenção no trabalho realizado com os moradores foi o resgate da
dimensão subjetiva do morar. A escolha e disposição dos móveis, as fotos e quadros na parede, a
arrumação dos quartos e armários, demonstram uma preocupação com a apropriação do espaço físico e
subjetivo da casa. Tudo o que acontecia dentro da casa era negociado com os moradores e, na medida do
possível, realizado com a participação dos mesmos. Percebeu-se que cada um dos moradores estabelecia
uma relação diferenciada com a residência, construindo sua “casa própria” dentro da casa compartilhada
pelo grupo. A existência dessas “várias casas” dentro de uma mesma residência era algo trabalhado pelos

235
técnicos de referência, que propunham para os grupos uma constante negociação das peculiaridades de
cada um dos moradores.
O trabalho de apropriação da residência terapêutica enquanto um lar é de fundamental
importância, na medida em que a maior parte dos moradores, durante muitos anos foram destituídos do
direito de habitar espaços que lhes fossem próprios. Muitos ocuparam um leito no hospital psiquiátrico
durante boa parte de sua vida, sendo privados do direito de morar. Neste sentido, habitar, tornar-se um
agente de transformação do ambiente é algo a ser aprendido. O espaço físico das residências é algo a ser
conquistado, para enfim ser habitado subjetivamente.
A apropriação do espaço das residências foi algo visível em várias visitas realizadas. Em todas as
moradias fui bem recebida e, na maioria delas, sempre havia algum morador que me apresentava toda a
casa, mostrava “os cantinhos” de cada um, falava das tarefas de casa e quem fazia o quê. Alguns
chegaram até mesmo a mostrar a organização dos armários dos quartos e banheiros, mostraram listas de
compras e as roupas estendidas no varal. Alguns falaram de sua vida no hospital e de como se sentiam
muito melhores agora em casa. A alegria de poder mostrar sua casa ficou estampada nos rostos de vários
moradores quando da minha visita. Um café coado na hora era um sinal de hospitalidade, tal como o
convite para uma conversa, para ir ao supermercado ou dar uma volta na feira.
A transformação na vida das pessoas que foram morar nas residências ficou evidente, quando do
contato mais aproximado com alguns destes usuários. Em minha primeira visita à casa onde morava João
Jordão87, essa transformação foi por mim testemunhada com muita emoção. Depois que fomos
apresentados, ao saber que eu era de Brasília, Seu João - com seu linguajar enrolado e muitas vezes de
difícil compreensão - me fez uma série de perguntas sobre a cidade, sobre o presidente e sobre a minha
vida. Depois de conversarmos, convidou a mim e a auxiliar de enfermagem que eu acompanhava, para
passearmos na feira. Aceitamos o convite e ele entrou no quarto para se arrumar. Veio até a sala vestido
com seu melhor blazer, um sapato social, um chapéu e um guarda-chuva.
Figura 25: “Arranha-céu”, pintura de João Jordão
Premiada no concurso Arte de Viver
Saímos e no caminho fiquei observando
aquela figura peculiar, com seu caminhar firme e
seu sorriso digno, que agraciava a todos que
passavam por ele. Era bastante conhecido no
local, pois todos o cumprimentavam pelo nome.
Ao chegarmos à feira, a senhora que vende
pamonha já o estava esperando e saudou-o com
alegria. Ele pagou uma pamonha para mim e
para a auxiliar de enfermagem, ressaltando que

87
João Jordão é um usuário de mais de 70 anos, que passou boa parte de sua vida internado. Ao sair da internação,
começou a freqüentar o Espaço 8 Ateliê, no Centro de Convivência e Arte. Revelou-se um grande artista, tendo um
de seus quadros ganhado o primeiro lugar em um concurso de arte realizado por um laboratório no ano 2000.

236
para ele era um prazer poder dar um presente para um amigo.
Esta visita foi vivenciada com muita emoção e alegria, pois foi uma oportunidade – dentre várias
outras - de testemunhar o valor de viver em liberdade e com autonomia. O valor de se viver em uma casa,
onde se pode organizar (ou desorganizar) seus objetos pessoais da forma como for desejado, onde se pode
fazer uma comida, lavar as roupas, receber amigos. Caminhando com João Jordão, pude compreender o
valor de poder dar um presente a um amigo, o valor de um sorriso e de caminhar livremente pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela, ou um chapéu e guarda-chuva, se assim o quiser.

- Centro de Convivência e Arte: aprendendo a delicada arte de conviver


“Tudo o que é belo edifica e liberta.
Não apenas seduz. Abre portas ao mundo”.
Ascendino Leite

O Centro de Convivência e Arte foi criado em 1997, no prédio da antiga ala Arco-Íris, a primeira
ala da Unidade de Reabilitação de Moradores a ser desativada. Sua criação foi motivada pela necessidade
de criar um espaço diferenciado de um serviço de saúde, tradicionalmente conhecido. Havia uma
demanda por um lugar que oferecesse um outro tipo de intervenção, mais ligada ao “estar” e “fazer” do
que ao “tratar”. Um lugar onde as relações pudessem se dar de forma mais natural, sem uma nítida
separação entre sãos e doentes, entre técnicos e usuários. Um lugar que prezasse pelo aprimoramento das
relações humanas, pelo exercício da convivência solidária.
Figura 26: Fachada do Centro de Convivência e Arte

O Centro de Convivência e Arte foi pensado


com o intuito de recriar o sentido da convivência para
os usuários da rede de saúde mental e comunidade em
geral. Buscava-se resgatar o sentido terapêutico das
relações cotidianas, ampliando o conceito de
terapêutico para além do contato com o profissional ou
grupo de terapia. A convivência por si só era
compreendida como terapêutica. Buscava-se construir
um ambiente descontraído, onde a arte, explorada em
suas várias linguagens, pudesse ser o carro-chefe deste lugar de encontros.
Assim concebido, o Centro de Convivência e Arte foi montado. Desde seu início, este
equipamento já mostrava seu potencial para transformar a convivência por meio da arte. Criado nas
antigas instalações da ala Arco-Íris, o primeiro passo foi transformar a estrutura física do prédio que ainda
guardava características do antigo manicômio. Portas grossas, paredes largas, quartos grandes com
pequenas janelas e grades para todos os lados.
A comunidade, juntamente com usuários, foi convidada a participar na transformação daquele
prédio. As crianças de uma escola pública da região, juntamente com usuários, familiares e técnicos

237
pintaram o prédio compondo um mosaico colorido e cheio de frases de cunho libertário, escritas por
usuários. As grades foram arrancadas e as camisas de força pintadas e expostas, juntamente com o
aparelho de eletrochoque, na entrada do Centro de Convivência, como peças de um antigo museu da
Psiquiatria.
No Centro de Convivência e Arte não há
prontuários e sua atenção não se caracteriza por uma
atenção clínica. Usuários e técnicos – bem como
outros interessados – participam igualmente das
atividades e todos são responsáveis pelo
funcionamento do Centro. Todos os freqüentadores
podem propor atividades, e participar gratuitamente
dos espaços e atividades oferecidas. Figura 27: Saguão de entrada do Centro de Convivência e Arte

Cabe ressaltar que durante todo o período da pesquisa de campo, o Centro de Convivência e Arte
se constituiu em um “porto-seguro”, pois a qualquer hora que eu chegasse, algo de interessante e
acolhedor estaria acontecendo. O Centro de Convivência e Arte realmente cumpre o que se propõe: ser
um lugar de aprimoramento da convivência e de
reconhecimento da capacidade de nos relacionar
com outras pessoas. Um lugar de aconchego, onde
se faz amizades e se tem momentos muito
agradáveis. Lugar de música, poesia, estórias e boas
conversas, sempre regadas a um delicioso chá de
capim santo, feito diariamente (quase que
religiosamente...) por um dos usuários que
freqüentam o Centro de Convivência.
Figura 28: Roda para Convivência do Centro de Convivência e Arte

Em todos os espaços de encontro - Espaço 8 Ateliê, Costurando a Imaginação, SorriD`ante, Clube


dos Saberes e Casa-escola – há usuários como monitores, com a função de orientar as novas pessoas que
chegam na atividade, auxiliar na organização do local e no cuidado com os materiais utilizados.
Em minha primeira visita ao Centro de Convivência e Arte, fui acompanhada por um psicólogo,
aprimorando que estava fazendo seu estágio no Centro. Ele me levou a todas as salas onde aconteciam as
atividades e logo fui convidada por P., um usuário do CAPS Esperança que é monitor do Espaço 8
Ateliê, a “fazer uma arte”.
O Espaço 8 Ateliê é coordenado por um artista plástico autodidata que ensina técnicas de artes
plásticas aos freqüentadores do ateliê. Este espaço é considerado o “mais rebelde” de todo o Centro de
Convivência, por ter sido desde sua criação, resistente à idéia da arte como terapia. Seus contatos
privilegiados sempre foram com arquitetos, artistas plásticos, designers e não com psicólogos, psiquiatras,

238
ou outros personagens do “mundo psi”. Neste espaço não se fala em doença ou em terapia. Não se faz
interpretação de desenhos e pinturas. Fala-se em arte e os freqüentadores do ateliê são tratados como
artistas e não como usuários.

O Espaço 8 Ateliê funciona todos os dias de segunda a sexta, em dois períodos e é um espaço
para quem gosta de arte. É um lugar, como todos os do Centro de Convivência, aberto ao público. Este
espaço conta com um grupo de freqüentadores que vêm produzindo, ao longo dos últimos anos, um
grande acervo de obras de estilos variados. Muitos freqüentadores já tiveram oportunidades de participar
de exposições de arte, conjuntas ou individuais, em restaurantes, galerias e outros espaços públicos em
Campinas. Já foram realizadas algumas exposições
em outras cidades, incluindo São Paulo, e também
são realizadas viagens com o grupo de artistas do
Ateliê para conhecer museus e ver exposições de
outros artistas. No período em que foi realizada a
pesquisa de campo, os integrantes do ateliê foram
a São Paulo ver a exposição de obras do Bispo do
Rosário, que estava sendo realizada no Centro
Cultural do Banco do Brasil.

Figura 29: Convite para exposição de Sarita Romano


Freqüentadora e monitora do Espaço 8 Ateliê

Todos os espaços do Centro de Convivência e Arte mantêm um intercâmbio entre si. Um dos
exemplos deste funcionamento cooperativo é a relação entre o Espaço 8Ateliê e o espaço Costurando a
Imaginação.
O espaço Costurando a Imaginação funciona na biblioteca do Centro de Convivência e é uma
oficina de costura, onde os freqüentadores aprendem técnicas de costura e fuxico. Esse espaço tem uma
produção reconhecida na cidade e algumas empresas já fizeram encomendas de seus produtos. Neste
espaço são produzidas bolsas - com fuxico, bordados e com aplicações de pinturas produzidas no Espaço
8 Ateliê - camisetas, almofadas e outros artigos que utilizam técnicas de costura.
Figura 30: Espaço Costurando a Imaginação

O Costurando a Imaginação e o Espaço 8


Ateliê também produzem, conjuntamente,
lembrancinhas (chaveiros, caixinhas de fósforo
pintadas e costuradas dentre outras), convites para
eventos realizados no âmbito do SSCF e CAPS
gerenciados por este serviço de saúde, e outros artigos
que porventura sejam sugeridos por seus
frequentadores.

239
O SorriD`ante é um grupo de teatro do qual fazem parte técnicos e usuários. Este grupo
periodicamente faz apresentações de textos, tanto de autores consagrados, como de produções próprias.
Este grupo de teatro já se apresentou em vários locais da cidade, bem como nas cidades vizinhas, tendo
também uma atuação bastante participativa nos eventos produzidos pelo SSCF.
Outro espaço de encontro que existe no Centro
de Convivência e Arte é o Clube dos Saberes, que foi
criado com o intuito de se constituir em
...um espaço que possa ser freqüentado
livremente, sem distinção, assim como uma
espécie de clube, cuja jóia de associado
fosse composta tão somente dos saberes,
aonde se pudesse ir, estar com os outros e
simplesmente fazer conhecidos, fazer
conhecimentos (Moura, 2002, p.157).
Figura 31: Painel do Clube dos Saberes
Foto de Jossonhir Brito, 2003.

O Clube dos Saberes tem como fundamento a idéia, também proferida por Adalberto Barreto88,
de que todos somos doutores de nossa própria vivência. É um espaço com a vocação para acolher os
conhecimentos, histórias e experiências de quem queira compartilhá-los com outras pessoas. Este clube
busca descaracterizar a assimetria de saberes tradicionalmente presente nos serviços de saúde,
especialmente os serviços de saúde mental. Busca-se valorizar os saberes de todos os participantes,
decorrentes das diversas experiências de vida cada um.
Segundo Moura (2002), um dos aspectos que fundamentaram a criação do Clube dos Saberes foi
a sustentação de uma reciprocidade, “onde cada um é ao
mesmo tempo ofertante e demandante de saberes” (p. 159)
. Ou seja, ao mesmo tempo em que se ensina algo, também
se aprende outras coisas, advindas das relações que se
estabelecem com as pessoas participantes do clube. Assim,
o Clube dos Saberes abriga diversas propostas de pessoas
que estejam dispostas a compartilhar seus saberes e
habilidades com outras pessoas.
Figura 32: Clube dos Saberes.
Foto de Jossonhir Brito, 2003.

No período da pesquisa de campo, o Clube dos Saberes estava sendo coordenado por um senhor
que ensinava técnicas de cestaria com jornal para a construção de objetos decorativos e utilitários. O
ambiente do Clube dos Saberes era bastante agradável, com boas conversas, música e, às vezes, até
violão. Havia algumas pessoas que freqüentavam este espaço todos os dias e a produção deste espaço era

88
Psiquiatra cearense, criador da metodologia da Terapia Comunitária. Em suas sessões de Terapia Comunitária,
Adalberto sempre diz esta frase “todos somos doutores de nossa própria vivência”, com o objetivo de valorizar a
experiência pessoal dos participantes e incentivar a auto-confiança.

240
vendida no local. Eram produzidos caixas, chapéus, vasos para plantas e outros objetos utilitários e de
decoração. Também foram produzidos os personagens que desfilaram em 2003 no bloco de carnaval do
SSCF – o Unidos do Candinho. Estes bonecos foram reaproveitados para compor o presépio que o SSCF
montou em Souzas, distrito de Campinas onde se localiza.
Figura 33: Bonecos produzidos no Clube dos Saberes.
Foto de Jossonhir Brito, 2003.
O Centro de Convivência e Arte também
conta com um outro espaço, localizado no distrito de
Souzas perto do SSCF, que é a Casa-Escola,
também conhecida como Centro Cultural Cândido-
FUMEC. A Casa-Escola é um centro comunitário
onde acontecem diversas atividades que contam com
a participação de pessoas da comunidade. Na Casa-
Escola acontecem aulas de ginástica harmônica,
capoeira, reuniões de entidades comunitárias e aulas
de 1a. a 4a série do 1o grau.
Há alguns anos, o SSCF firmou uma parceria com a Fundação Municipal de Educação
Comunitária (FUMEC), que coordenava a Casa-Escola. A partir deste convênio foram formadas turmas
mistas e específicas para os usuários do SSCF, de alfabetização à 4a série.
As turmas mistas são espaços importantes de troca com a comunidade, como pude perceber ao
assistir algumas das aulas em uma dessas turmas. Uma das turmas mistas era composta por
aproximadamente 10 alunos e o conteúdo das aulas era referente às quatro primeiras séries do primeiro
grau. A professora atendia a todos os alunos que se encontravam em diferentes níveis de formação.
Apesar do “caos aparente”, todos os alunos conseguiam aprender e dois destes alunos se formaram na
quarta série, no final do ano de 2003.
Todo ano é realizada uma cerimônia de
formatura com os alunos de todas as turmas de
quarta série. Para cada um dos alunos formandos é
entregue um diploma, reconhecido pelo Ministério
da Educação. Esta cerimônia conta com a presença
de representantes do Distrito de Souzas,
representantes da FUMEC, das professoras e
representantes do SSCF, que prestigiam os alunos
com discursos e lembranças produzidas pelo
Centro de Convivência e Arte.

Figura 34: Fachada do Centro Cultural Cândido-FUMEC (Casa-Escola)

A cerimônia no final do ano de 2003 foi um dos vários momentos da pesquisa de campo
marcados pela emoção. Mais da metade dos formandos daquele ano eram usuários do SSCF, muitos já

241
idosos e com longa história de internação. Havia pessoas, dentre usuários e pessoas da comunidade, com
mais de 65 anos que estavam se formando junto com seus filhos e netos. Ficou evidente no semblante das
pessoas presentes a importância daquele momento na vida dos formandos. Esta cerimônia também
confirmava a crença na capacidade de aprender daquelas pessoas tradicionalmente desacreditadas. Além
disso, a alfabetização e formatura na escola pode ser considerada como um “passaporte” para uma nova
vida, com mais oportunidades e possibilidades de inserção social, não só para os usuários da rede de
saúde mental, mas para todas as pessoas daquela comunidade.
A importância da oportunidade de alfabetização para os usuários da saúde mental pode ser
exemplificada com a história de uma usuária, que há alguns anos havia sido transferida de um hospital
psiquiátrico da cidade de Americana para o SSCF. Nada se sabia a respeito dessa usuária, pois ela veio
encaminhada do hospital psiquiátrico sem nenhuma referência de família, documentos ou lugar de
origem. Essa usuária freqüentava o Espaço 8 Ateliê e aulas de alfabetização na Casa-Escola. Observou-
se que no ateliê, suas pinturas sempre traziam temas relacionados ao mar, o que levou a uma suspeita de
que talvez ela pudesse ter vindo de alguma cidade no litoral.
Após um ano que estava na Casa-Escola sendo alfabetizada, certo dia a professora, como de
costume, pediu que escrevessem o cabeçalho com o nome da cidade, da escola e seu nome. Essa usuária,
em um momento de insight, escreveu o nome de sua cidade de origem, o nome de seus pais e seu nome
verdadeiro, até então desconhecido. Por meio da escrita, relembrou suas origens e após uma pesquisa
realizada pela equipe do SSCF, sua família foi encontrada e ela retornou à sua casa, mais de 20 anos
depois de ter desaparecido e tida como falecida. Conta-se que esta usuária teve um surto pós-parto,
fugindo do hospital onde acabara de ter um filho e foi encontrada vagando em uma cidade vizinha, sendo
então internada e perdendo o contato com sua família.
A história desta usuária foi documentada na mídia local e é uma história importante para
exemplificar o valor da oportunidade que foi a ela oferecida de freqüentar o ateliê e de ser alfabetizada.
Não se sabe se ela lembraria de suas origens se não tivesse tido a oportunidade de expressar as imagens
de sua cidade de origem e se não tivesse aprendido a ler e escrever.
Este espaço da Casa-Escola, além da importância das aulas oferecidas, pode ser considerado um
espaço privilegiado de contato com a comunidade, pois ela é uma referência para vários grupos da
comunidade e não somente para os usuários da saúde mental. Neste espaço são realizadas festas, palestras
e vários outros eventos de interesse da comunidade. A organização conjunta, de usuários e pessoas da
comunidade, para a produção destes eventos são momentos importantes de trocas de experiências e
aproximação, na medida em que são propiciados encontros entre estes grupos com uma finalidade
comum.
Um dos eventos que tive oportunidade de participar foi o jantar árabe produzido pelos “jornalistas
do Cândido”, com o intuito de angariar fundos para pagar as despesas feitas por este grupo na viagem a
Belo Horizonte para participar do Fórum Social Brasileiro. A produção deste jantar foi feita pelos
jornalistas do Cândido, com a colaboração de pessoas da comunidade que prestam serviços voluntários na

242
Casa-Escola. Dois dias antes do jantar, várias
pessoas da comunidade se mobilizaram para auxiliar
na cozinha e decoração, incluindo os alunos da
Casa-Escola. Este evento, como os outros
produzidos pela Casa-Escola e o Centro de
Convivência e Arte, foi marcado pela descontração,
alegria e pela presença de muitas pessoas da
comunidade, externas ao SSCF.
Figura 35: Convite do jantar árabe produzido pelo Espaço 8 Ateliê

Além destes espaços de encontro, há também no Centro de Convivência e Arte um salão de


beleza, onde no momento da pesquisa uma usuária trabalhava duas vezes por semana, atividades de
culinária, rodas de conversa, caminhadas, grupos de leitura de livros, poesia, histórias, produção de
bijuterias, grupo de música e sessões de cinema. Também acontecem no Centro de Convivência e Arte a
produção do jornal Candura, atividades da Rádio “Maluco Beleza”, oficina de tv e fotografia, que
serão detalhados mais à frente.
Alguns acontecimentos marcam as atividades do Centro de Convivência e Arte durante o ano,
como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, o Dia do Abraço, o Dia Nacional da Alimentação, Festa
Junina, Festa de Santana, Rituais de Natal, visitas e passeios diversos.
Um outro acontecimento de grande destaque que é organizado pelo Centro de Convivência e Arte
é o pré-carnaval que conta com o desfile do bloco de carnaval “Unidos do Candinho”. O “Unidos do
Candinho” é um bloco de carnaval que, desde 1993, todo ano, uma semana antes do carnaval oficial, sai
do SSCF e desfila por Souzas, cantando um samba enredo criado por usuários e técnicos e tocado em
parceria com alguma escola de samba da cidade.

O desfile do Unidos do Candinho é marcado


pela irreverência, alegria e pela participação em
massa da comunidade de Souzas que vêm se juntar
ao bloco no desfile. O bloco conta com a
participação de vários serviços de saúde mental da
cidade, algumas escolas públicas e outras entidades
parceiras da saúde mental.

Figura 36: Unidos do Candinho

Este desfile, a princípio, pareceu simbolizar a entrada dos usuários da saúde mental na cidade,
conferindo visibilidade para o tema da saúde mental. Em certo sentido fez relembrar o desfile realizado
pela equipe de Trieste na Itália quando, pela primeira vez na história do hospital psiquiátrico San Giovani
os pacientes saem da instituição e andam pela cidade, levando Marco Cavalo como o símbolo da opressão
vivenciada dentro do hospital. A diferença é que o “Unidos do Candinho” não traz mais consigo a marca

243
da opressão, como principal bandeira.Traz isso sim, a tentativa de criar uma outra cara para a loucura,
qual seja um rosto marcado pela descontração e alegria, e não mais a cara sisuda do perigo e da violência.

Figura 37: “Abre-alas” do Unidos do Candinho

- A contribuição da comunicação para a Reforma Psiquiátrica


“Todo dia 10, às 10h da manhã, você não vai ser louco de perder
Maluco Beleza – um programa pra quem tem a cabeça no lugar,
e pra quem não tem também! Ta com dúvida se você ta batendo bem?
Escreva pra nós: Dia 10, às 10 da manhã, a gente esclarece.
Sempre com reprise às 22h. Na Rádio Educativa de Campinas – 101,9 FM.
E-email: malucobeleza@candido.org.br”
( Manchete da edição de dezembro de 2002, Jornal Candura)

Sabe-se atualmente que um dos pontos cruciais para o desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica
no país é a comunicação, como já foi explicitado em momentos anteriores. O papel da mídia é
fundamental no sentido de esclarecer a população a respeito do que se pretende com a Reforma e o que
realmente ela é, desfazendo os equívocos em seu entendimento. Para uma parcela significativa da
população, a Reforma ainda significa desassistência e desresponsabilização dos governos com relação aos
doentes mentais, como testemunhamos no caso da rejeição da comunidade do bairro de Nova Campinas
com a instalação do CAPS Esperança. Desta forma, é necessário que se apresente à sociedade os novos
equipamentos em saúde mental e seu modo de funcionamento, demonstrando a viabilidade do cuidado em
liberdade, mesmo em um país como o nosso, onde a atenção à saúde, de uma forma geral, vive um caos
constante.
Percebe-se atualmente que não é suficiente que as instituições estejam fazendo um trabalho
inovador no que diz respeito ao resgate da identidade e cidadania dos usuários. É preciso que outros

244
atores sociais tomem conhecimento do trabalho, até para que ele se legitime enquanto um projeto de real
inserção social destes sujeitos. Além disso, para que qualquer projeto dessa natureza seja de fato bem
aceito e apoiado pela sociedade, faz-se necessário todo um processo de reeducação desta mesma
sociedade no sentido da construção de um pensamento que preze pela solidariedade e respeito às
diferenças, o que, neste caso, tem como ponto de partida o conhecimento e a transformação das
representações sociais acerca da loucura e da própria Reforma Psiquiátrica.
Neste sentido, a comunicação também é útil não somente pelos esclarecimentos que presta, mas
pela capacidade de amenizar os medos e receios da população, frutos de representações sociais que
associaram, ao longo da história, a loucura com a violência, o perigo e a imprevisibilidade. A
comunicação, de um modo geral, assume uma importância fundamental na transformação e⁄ou
manutenção das representações sociais acerca de qualquer fenômeno representacional, pelo fato de ser um
canal de transmissão de linguagem e ser, em si mesma, portadora de representações. Segundo Jodelet
(2001, p.32), a comunicação também
... incide sobre os aspectos estruturais e formais do pensamento social, à medida que engaja
processos de interação social, influência, consenso ou dissenso e polêmica. Finalmente, ela
contribui para forjar representações que, apoiadas numa energética social, são pertinentes
para a vida prática e afetiva dos grupos. Energética e pertinência social que explicam,
juntamente com o poder performático das palavras e dos discursos, a força com a qual as
representações instauram versões da realidade, comuns e partilhadas.

Segundo os pressupostos da TRS, a comunicação apresenta três níveis de influência nos


processos representativos. O primeiro nível é relacionado à emergência das representações sociais, que
está intimamente relacionada com as condições nas quais as informações sobre determinado fenômeno
serão veiculadas. As informações são desigualmente acessíveis aos diferentes grupos sociais e o foco das
informações será variável de acordo com os interesses de cada grupo e da implicação dos sujeitos com o
fenômeno de representação. O segundo nível de influência da comunicação é relativo aos processos de
formação das representações sociais, objetivação e ancoragem, que demonstram a estreita dependência
entre a atividade cognitiva e as condições sociais de exercício das cognições. O terceiro nível relaciona-se
com a edificação das condutas relativas ao fenômeno de representações. Neste sentido, a comunicação
intervém diretamente na formação de opiniões, atitudes e estereótipos relacionados ao fenômeno (Jodele,
2001).
Assim sendo, a comunicação é um elemento de grande importância, quando se quer atingir um
universo consensual, com vistas à transformação de representações sociais a respeito de qualquer objeto.
No caso da Reforma Psiquiátrica, onde a reversão das representações sociais da loucura é um dos pilares
desse projeto, a comunicação social desempenha um papel fundamental, na medida em que “aparece
como condição de possibilidade e de determinação das representações e pensamento sociais” (Jodelet,
2003, p.30).

245
De acordo com Jodelet (2003), a comunicação social pode se dar na forma de diversas
modalidades, variando em seus aspectos interindividuais, institucionais e midiáticos, de acordo com a
necessidade dos atores envolvidos nesta comunicação.
No caso do SSCF, nos primeiros anos do convênio de co-gestão havia sido privilegiada a
comunicação em seus aspectos interindividuais e institucionais. A partir de 1993, o projeto de
transformação da atenção à saúde mental deixa de ser uma prioridade governamental, sofrendo cortes
drásticos em seu orçamento, fragilizando não somente o trabalho interno à instituição, mas também as
relações com a comunidade, em virtude das inúmeras dívidas que o SSCF começou a fazer com outras
instituições.
Em meio a este contexto de adversidades, no qual o projeto encontrava-se ameaçado, optou-se
por investir em uma comunicação que fizesse eco em um número maior de pessoas, fomentando a
emergência de representações sociais mais favoráveis ao projeto da Reforma Psiquiátrica que se
desenvolvia ainda no interior da instituição. Acreditava-se que o esclarecimento a respeito das mudanças
que estavam acontecendo e a apresentação dos benefícios destas transformações institucionais para a vida
das pessoas moradoras do antigo hospital psiquiátrico, fortaleceriam um controle social por parte da
população no sentido da continuidade do projeto.
Em 1995, o SSCF contratou o jornalista Regis Moreira89 para fazer uma campanha publicitária
sobre o trabalho desenvolvido na instituição e que carecia de maior visibilidade. A campanha se deu em
vários meios de comunicação e o jornalista Régis Moreira foi contratado como funcionário da instituição
em reconhecimento à importância de seu trabalho na visibilidade que conferiu ao processo de
transformação do Cândido Ferreira. A publicidade também contribuiu na viabilização de outras parcerias,
revelando a necessidade de um trabalho permanente de divulgação. Além disso, no decorrer da
elaboração da campanha, o jornalista foi aos poucos revelando a importância da comunicação na
reabilitação psicossocial dos usuários.

Figura 38: Campanha publicitária da


Organização mundial de Saúde.
Foto de Régis Moreira

Assim, a comunicação, que sempre teve uma importância visível


na história desta instituição, a partir de então assume o objetivo de
contribuir para a construção de novas representações acerca do sujeito dito
louco e excluído do convívio social. Ao longo dos últimos anos, a
comunicação tornou-se um instrumento de inclusão social e um dos pontos
fortes do processo de transformação da Saúde Mental em Campinas, pela
visibilidade que vem conferindo ao mesmo.

89
Jornalista e fotógrafo, coordenador das oficinas de comunicação em saúde mental do SSCF. Mestrando em
Gerontologia pela UNICAMP e professor de jornalismo na PUC-Campinas.

246
O primeiro trabalho realizado após a contratação do jornalista foi um ensaio fotográfico com
alguns pacientes idosos, que tinham uma longa história de internação no Cândido Ferreira. Nesse ensaio
os pacientes tiveram a oportunidade de ressignificar sua auto-imagem por meio das fotografias,
produzidas com beleza e profissionalismo. O material produzido foi utilizado em campanha publicitária
realizada pela Organização Mundial de Saúde em prol da saúde mental, como forma de reconhecimento
da importância deste trabalho.

O primeiro veículo de comunicação criado com o objetivo de ser um espaço de livre expressão
para os usuários foi o jornal Candura: Espaço Aberto para um novo Pensamento. Este jornal foi
criado em 1996 e até hoje é produzido com notícias feitas pelos próprios usuários e técnicos. A
elaboração deste jornal é feita pelo grupo de usuários conhecidos como “jornalistas do Cândido”. Em
encontros semanais são discutidos temas relevantes
para a saúde mental e de interesse dos jornalistas. A
partir dessas discussões são montadas as pautas dos
jornais e distribuídas as tarefas para os jornalistas que
ficam responsáveis pelas entrevistas a serem realizadas
e textos a serem escritos. A coordenação deste trabalho
é de responsabilidade dos jornalistas Régis Moreira e
Rita Heinz, estagiária de comunicação à época da
pesquisa de campo.

Figura 39: Algumas edições do Jornal Candura.


Foto de Jossonhir Brito, 2005.

O Jornal Candura configura-se como um espaço de divulgação das experiências institucionais e


discussões a respeito de temas relativos à Saúde Mental. Suas edições são realizadas trimestralmente e é
distribuído gratuitamente aos usuários, familiares, técnicos, e alguns serviços de saúde no Brasil. Na
época da pesquisa de campo, havia um projeto de ampliação da tiragem do jornal, com vistas a colocá-lo
a venda nas bancas de jornal da cidade.

Este jornal assim como os outros veículos de comunicação têm como um de seus objetivos
desenvolver nos usuários suas habilidades enquanto jornalistas, na medida em que vão expressando
livremente sua forma peculiar de pensamento e filosofia de vida (Moreira, 2003).

Uma outra experiência bastante importante da comunicação realizada no SSCF é a produção da


Rádio Maluco Beleza, uma rádio bem humorada e de alta qualidade, inteiramente produzida pelos

247
jornalistas do Cândido. Essa rádio é fruto de uma parceria, firmada em maio de 2002, com a Rádio
Educativa de Campinas FM90, e vai ao ar todo dia 10 de cada mês, às 10:00h da manhã.

O programa tem uma hora de duração e é conduzido pelos jornalistas do Cândido, sob a
coordenação dos jornalistas Régis Moreira e Rita Heinz. Os programas da Rádio Maluco Beleza tratam
de temas de relevância social, ligados aos interesses dos produtores da rádio e do público alvo. Este
programa tem como objetivo desmistificar a imagem construída da loucura na sociedade e, por ser um
meio de comunicação de grande penetração em todos os meios sociais, é um importante divulgador da
nova proposta de cuidados e atenção a essa população.

A Rádio Maluco Beleza, além de ser um veículo de transformação das representações sociais da
loucura, é também um importante instrumento de reabilitação psicossocial, pelo fato de conceder a voz
aos usuários da saúde mental. Voz que, durante muitos anos, ficou calada dentro dos manicômios, e que
agora tem a oportunidade de falar, de denunciar, de lutar por direitos e resgatar a memória e a cidadania
dos usuários da saúde mental, desenvolvendo assim a auto-estima e novas possibilidades de construção de
um lugar social.

Alguns dos temas que já foram tratados em programas da Rádio Maluco Beleza são: Luta
antimanicomial, Drogas, AIDS, violência e saúde, guerra do Iraque, preconceito, stress, meio ambiente e
Fórum Social Mundial. Os programas intercalam entrevistas em estúdio, textos produzidos pelos
jornalistas, notícias e músicas relacionadas aos temas tratados e espaços para a apresentação de novos
artistas. Os temas tratados pelos “loucutores” (como se denominam) trazem sempre alguma relação com a
saúde mental. A Rádio Maluco Beleza em seus três anos de existência já tem um público cativo, sendo
conhecida por diferentes grupos sociais.

Atualmente a comunicação vem conquistando um espaço cada vez maior dentro do SSCF e fora
dele, estabelecendo importantes parcerias com outros “atores” sociais. Um exemplo destas frutíferas
parcerias é a Oficina de tv e vídeo que, à época da pesquisa de campo, era coordenada pela jornalista
âncora do telejornal da cidade, Hebe Rios. Nesta oficina foram produzidos dois vídeos que contam a
experiência do SSCF e a vivência destas experiências pelas pessoas envolvidas: usuários, familiares,
técnicos e outras pessoas afins ao projeto. Estes vídeos são usados como veículo informativo e também
educativo, sendo uma forma de apresentação da instituição e esclarecimento de sua proposta. Estes vídeos
já foram mostrados pela TV PUC de Campinas.

A importância deste trabalho de comunicação ultrapassa a possibilidade de construírem espaços


de fala que tenham uma abrangência para fora da instituição, mas também fortalecem afinidades com este
tipo de profissão, resgatando o potencial de criação e incentivando profissionalismo de cada um dos
participantes.

90
A Rádio Educativa de Campinas FM é uma concessão da Prefeitura da cidade e está sob a responsabilidade da
Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo. Esta rádio tem uma programação plural e democrática, contando com a
participação de vários grupos sociais.

248
A comunicação do SSCF e o trabalho destes jornalistas já adquiriram visibilidade e
reconhecimento dentro do meio profissional, o que pode ser evidenciado pela participação deste grupo em
vários eventos de grande importância social, política e educativa. Os jornalistas do Cândido já tiveram
oportunidade de se apresentar em palestras no curso de jornalismo na PUC de Campinas, de participar de
um congresso sobre Rádios Comunitárias e de ministrar um workshop de comunicação no Fórum Social
Brasileiro ocorrido no ano de 2003 em Belo Horizonte. Estas experiências foram de fundamental
importância para a visibilidade do “projeto de humanidade” empreendido pelo SSCF e para a conquista
de novos parceiros para o crescimento deste projeto.
Todos os anos os jornalistas organizam um evento chamado “Prêmio Jornalistas do Cândido”,
homenageando os parceiros que contribuem para a continuidade destas experiências em comunicação,
evento este que demonstra o reconhecimento dos jornalistas à importância das parcerias estabelecidas e
conquistadas ao longo dos últimos anos. Este evento é realizado no Armazém das Oficinas (loja que
vende os produtos do Núcleo de Oficinas de trabalho, localizada no centro da cidade) e é caracterizado
por uma grande festa, quando são entregues presentes aos parceiros homenageados.
Um dos eventos que demonstraram a respeitabilidade do trabalho realizado pela comunicação do
SSCF foi a apresentação do trabalho de conclusão do curso de jornalismo da estagiária Rita Heinz na
PUC-Campinas. Rita Heinz escreveu o livro “Alo, Atenção: o uso da comunicação em Saúde Mental
como canal de reintegração”, onde contou a história da experiência de comunicação do SSCF,
mostrando a importância e o efeito da comunicação, principalmente das práticas jornalísticas, na saúde
mental dos usuários.
Como forma de prestigiar a defesa deste trabalho de conclusão de curso, os usuários se
organizaram para comparecer à cerimônia realizada em um dos auditórios da PUC-Campinas, no dia 25
de novembro de 2003. Às seis da tarde, saiu do Cândido Ferreira uma van com os jornalistas do Cândido
em direção à PUC, em meio a um clima de descontração e satisfação pelo fato da experiência realizada na
instituição por todos eles estar sendo apresentada em uma Universidade, para profissionais da área.
Ficou evidente durante toda a apresentação do livro para a banca examinadora, o carinho com que
a jornalista se refere a este trabalho. Também ficou evidente o vínculo que estabeleceu com os
participantes das oficinas. Vários técnicos do SSCF também foram prestigiar a apresentação do livro e
ficou visível a emoção dos vários atores presentes ao se darem conta da importância do trabalho realizado
e do fato deste estar sendo registrado em forma de livro. Ao final da apresentação do livro e dos capítulos
que o compõem, Rita apresentou uma seleção de 10 minutos dos melhores momentos dos programas da
Rádio Maluco Beleza, que emocionaram a todos os expectadores, em especial aqueles que ouviram suas
vozes sendo reproduzidas naquela pequena seleção.
Um dos jornalistas que parodia a voz de Chacrinha, e que motivou o nome do livro, sorria,
assobiava e batia palmas de felicidade cada vez que aparecia sua voz peculiar dizendo: “Alô Atenção, o
Maluco Beleza está no ar...” S., uma mulher de aproximadamente 40 anos e que é uma das loucutoras da
Rádio (como ela mesma se denomina), ficou emocionada ao ouvir sua doce voz na abertura e fechamento

249
dos programas. M., que neste dia usava seu “traje de gala”, gravata vermelha, paletó marrom
quadriculado e flores rosas na lapela, cumprimentava todos os presentes e apresentava-se como uma das
vozes da rádio. Ao final da apresentação, antes mesmo da banca examinadora iniciar os comentários
acerca do trabalho, todos os jornalistas subiram no palco, cada um com uma rosa na mão para parabenizar
a jornalista. Muitos beijos, abraços e sorrisos. Um evento acadêmico com cara de festa.

Atualmente, a comunicação no âmbito do SSCF é entendida como parte de um processo amplo de


reabilitação psicossocial, na medida em que amplia as possibilidades pessoais e coletivas, através da
liberdade de expressão e da promoção da qualificação profissional dos usuários. Segundo Moreira (2003,
p.2) a comunicação empreendida no SSCF tornou-se “fonte de poder, de direitos, de cidadania, liberdade,
instrumento de mobilização social, de construção e reconstrução de identidade”.
Além disso, a comunicação também pode ser considerada uma “fonte de preservação de
Memória, com o compromisso de trazer a memória marginal dos usuários para a memória coletiva da
história, através da mídia e dos veículos produzidos pelos usuários” (Moreira, 2003, p.3). Acredita-se que
a comunicação produzida pelos usuários fomenta a educação e a formação da opinião pública,
promovendo canais de possíveis transformações das representações sociais da loucura, apontando os
benefícios de uma sociedade sem manicômios.

5. A SAÚDE MENTAL EM CAMPINAS: UMA TENTATIVA DE SÍNTESE


Sintetizar a experiência de Reforma Psiquiátrica em Campinas é uma tarefa necessária, porém
árdua, devido à complexidade de sua história e do funcionamento atual de sua rede de saúde mental.
Além dessa complexidade e das inúmeras informações colhidas e construídas ao longo do período da
pesquisa de campo, sintetizar e analisar criticamente essa experiência requer um certo distanciamento,
não só físico, mas principalmente afetivo. Esse distanciamento certamente é possível, mas tendo claro que
jamais será realizado de forma total, considerando os momentos intensos vivenciados ao longo da
pesquisa de campo.
Foram muitos os momentos marcados pela emoção, que engendraram transformações na
dimensão profissional, mas especialmente na esfera pessoal. Momentos que tiveram implicações
profundas no olhar dirigido às pessoas acometidas de intenso sofrimento psíquico. Ao longo do tempo de
convivência com essa experiência, tive a oportunidade de construir um olhar menos romântico e mais
honesto para a problemática da saúde mental. A “névoa” da genialidade ou da cronicidade antes associada
à loucura se dissipou, deixando em seu lugar o ser humano real. Foi possível aprender a olhar as pessoas
como realmente são, com suas limitações, dificuldades, necessidades, belezas, possibilidades, afetos,
capacidades, prazeres, sofrimentos, particularidades... e tudo o mais que caracteriza o ser humano. A
vivência dessa experiência oportunizou o reconhecimento dos preconceitos e rótulos que, mesmo sem ter
a intenção, acabava por atribuir aos “portadores de transtornos psíquicos”.
Esse olhar mais realista reforçou o apoio à Reforma Psiquiátrica, possibilitando inclusive, uma
ressignificação da compreensão do que ela é de fato, avançando para além de ideais utópicos e ingênuos

250
de uma sociedade igualitária sem critérios ou exigências normativas. A Reforma passou a ser um sonho
real, uma atitude que se descortina no dia a dia, no trabalho possível de reabilitação psicossocial que
respeita, acima de tudo, as particularidades e diferenças dos sujeitos em sua relação com meio que o
circunda, oferecendo limites, novos contornos e possibilidades.
Assim, a partir da vivência pessoal da experiência de Campinas, é possível arriscar dizer que o
processo de implementação e desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica vivido na cidade aponta para uma
possível transformação das representações sociais da loucura no âmbito daquela cultura.
Entretanto, além da vivência pessoal, é possível destacar alguns pontos de reflexão importantes
do processo de implementação da Reforma Psiquiátrica em Campinas, que elucidaram, de certa forma, a
relação entre a Reforma e as representações sociais da loucura, objeto do presente trabalho. Cabe ressaltar
que essa síntese não pretende oferecer respostas conclusivas para nossa pergunta inicial, até mesmo
porque, quando se trata de transformação de representações sociais, estamos nos referindo a um processo
lento, gradual e de longo prazo.
Um dos pontos importantes para compreendermos o processo de implementação da Reforma
Psiquiátrica relaciona-se com a sua “dimensão macro”. Como discutido anteriormente a Reforma
apresenta várias dimensões, que vão desde as políticas de saúde – dimensão “macro” - até a
transformação do olhar dirigido ao sujeito dito louco – dimensão “micro”. Neste momento, destacamos a
dimensão das políticas públicas, na qual um fator parece de crucial importância: a vontade política e o
engajamento dos governos no desenvolvimento dos projetos de Reforma. Ao longo da apresentação da
experiência de Campinas, pudemos verificar como a reforma avançou e retrocedeu em função da
importância que os governos atribuíam à necessidade de transformação da atenção à saúde mental.
Outro ponto importante, que marcou profundamente toda a história de constituição dessa rede foi
o compromisso das equipes com a continuidade do projeto de transformação das formas de cuidar, que
fez com que em momentos de recuo político a Reforma se sustentasse, mesmo que com dificuldades. O
engajamento das equipes é um ponto crucial para qualquer experiência de Reforma Psiquiátrica, pois os
profissionais são os agentes privilegiados na transformação do cuidado e na multiplicação de um novo
olhar e uma nova atitude diante da loucura, na medida em que são eles, no cotidiano dos serviços de
saúde mental, que propõem novas estratégias de reabilitação psicossocial e de inserção na vida da
comunidade.
Ainda com relação aos profissionais, outro ponto merece destaque, qual seja a formação técnica
para o trabalho em saúde mental. Observou-se que a formação e a construção do conhecimento se dá
especialmente através da prática cotidiana. Esta “formação em serviço” é interessante, pois revela uma
prática ainda em construção, na qual não há respostas prontas nem receitas a serem adotadas. Revela
ainda uma flexibilidade e receptividade para as novidades que se apresentam no dia a dia dessa prática
inovadora, abrindo espaço para o desenvolvimento da criatividade e implementação de ações
personalizadas. Por outro lado, é preciso que se considere essa questão da formação com muito cuidado,
tendo em vista a importância central dos profissionais nesse processo de reorientação do modelo de

251
atenção. Cabe apontar que a formação profissional deve ser repensada, pois não somente na experiência
de Campinas, mas em vários lugares do país, os profissionais não são formados com uma preparação
suficientemente consistente para o trabalho em saúde mental.
Outro ponto a ser destacado, que é de suma importância para a efetivação dos projetos de
Reforma, é a relação que os serviços estabelecem com as comunidades onde se localizam. Em Campinas
temos dois exemplos contrastantes de relacionamento com a comunidade, onde fica clara a importância
da participação social no processo de reabilitação psicossocial dos usuários dos serviços. A relação com a
comunidade também se constitui em um importante indicador das representações sociais, como pôde ser
verificado na experiência do CAPS Esperança, sendo também um “terreno fértil” para a transformação
das representações arcaicas acerca da loucura, conforme demonstrou a experiência do CAPS Toninho.
Assim, pensar estratégias de aproximação com as comunidades em que os serviços se localizam parece
ser de fundamental importância para o êxito do trabalho a ser realizado nos mesmos.
No que diz respeito ao potencial transformador das representações sociais da loucura merece
destaque o papel das residências terapêuticas, por recolocarem o sujeito considerado louco no seio da
comunidade, comprovando sua possibilidade de convivência no meio social. As oficinas de trabalho e as
atividades desenvolvidas no Centro de Convivência e Arte também reforçam essa possibilidade de
(re)construção de um novo lugar social para esses sujeitos. Neste sentido, não podemos deixar de lado, o
importante papel da mídia, através das oficinas de comunicação desenvolvidas no SSCF, na construção de
novas representações acerca da loucura.
Todos esses pontos listados que foram discutidos ao longo da apresentação da experiência de
Campinas vêm contribuir para a construção de reflexões mais aprofundadas acerca da relação entre o
processo de implementação da Reforma Psiquiátrica e as representações sociais da loucura, lançando luz
sobre outros contextos nos quais experiências semelhantes vêm se desenvolvendo.

252
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Enfim, trata-se de retirar a loucura desse
singular clínico ao qual ela foi reduzida,
para poder pensa-la no plural”
(Peter Pál Pelbart)

Nestas considerações não pretendemos dar conta de todas as questões que foram tratadas nesse
estudo. Pretendemos, isto sim, retomar alguns pontos que parecem cruciais para o entendimento de
nosso objeto de investigação, qual seja, as representações sociais da loucura e suas relações com a
implantação da Reforma Psiquiátrica.

A loucura como um fenômeno de Representações sociais

Iniciamos nosso trabalho reconstituindo a história da loucura à luz da Teoria das Representações
Sociais, o que possibilitou uma maior compreensão da afirmação de que a loucura é um fenômeno de
representações. Na construção da primeira parte desse trabalho constatamos que a loucura, a forma como
é concebida e o lugar social que ocupa – de onde advêm as formas de tratá-la - é reflexo de um sistema
maior de relações construídas no seio da cultura. Relações que são profundamente influenciadas pelas
dimensões econômicas, políticas e sociais, que delegam aos inúmeros grupos humanos, lugares distintos
na composição da “arquitetura” social. Vale ressaltar que tais dimensões são marcadas por um dinamismo
constante, que as fazem tecer complexas tramas e diferentes cenários ao longo do desenrolar da história.
É importante não esquecer que o dinamismo que caracteriza os processos sócio-históricos e
culturais têm como ator principal o Ser Humano. É ele que confere movimento à história, posto que está
em constante desenvolvimento, em constante aprendizagem, acumulando conhecimentos e experiências.
Apesar dos aparentes retrocessos e estagnações, o ser humano caminha para frente, sempre colocando
novas questões à cultura, criando novas necessidades e soluções inovadoras aos problemas que vai
criando.

Desta forma, quando falamos das concepções de loucura de um ponto de vista da cultura, não
devemos nos furtar a olhar este fenômeno também do ponto de vista do próprio ser humano, que é o
grande arquiteto da cultura. Intensamente influenciado pelos processos culturais, o ser humano, em sua
particularidade, constrói a cultura a cada dia, à medida em que traz em si uma dimensão própria, única,
“irrepetível”, que vem contribuir com uma interpretação e um agir próprios dentro da cultura pré-
existente. Assim, quando falamos de representações sociais da loucura, estamos partindo deste ponto de
encontro do homem com sua cultura, deste lugar situado entre o individual e o coletivo.

É por isso que, ao reconstruir a história da loucura, devemos estar atentos para perceber este
fenômeno tanto sob o ponto de vista macro (a cultura, a economia, a política) quanto do ponto de vista
micro (o indivíduo particular, o grupo ao qual pertence, sua história de vida e lugar de onde se posiciona
com relação à loucura). Em nossa reconstrução falamos dos processos macro, relacionados com cada

253
contexto histórico pelo qual passou a cultura ocidental. Falamos de concepções hegemônicas, mas
também nos atentamos para que o olhar singular, de indivíduos e/ou grupos específicos pudesse ser
vislumbrado.

Afinal, quando falamos de representações sociais, devemos, como insiste Moscovici (1961),
direcionar nosso olhar para a intersecção que une o indivíduo e seu grupo ao caldo das produções
simbólicas e culturais, capturando e reconstituindo os sentidos possíveis da existência desse indivíduo
social, em um espaço particular e em um determinado momento da história social. Assim a loucura, ao
longo da história, vem sendo construída e modificada cotidianamente neste interjogo entre o individual e
o coletivo. Ao longo dos séculos, ela foi se recriando, permanente e insistentemente, no imaginário social
e alimentando as diversas formas de ser representada pelos mais diversos grupos sociais.

A ciência e a tentativa de redução da loucura à doença mental

A ciência, ao longo de sua história, encastelou a loucura em seus templos e, ao tentar abstrair-lhe
de todos os sentidos positivados, insistiu em colocá-la no lugar da doença, do erro e do desvio. Entretanto,
essa captura não se deu de forma perfeita se considerarmos que as construções de significados não se dão
somente na dimensão macro e nos discursos produzidos por “especialistas”. O indivíduo comum também
tem um papel ativo na construção de significações, o que confere certa flexibilidade na compreensão e no
posicionamento diante dos fenômenos sociais, nos quais se inclui a loucura. Apesar da força do discurso
científico, a loucura não foi totalmente silenciada sob o rótulo da doença e a concepção trágica da loucura
não desapareceu completamente do imaginário do homem ocidental.

A concepção trágica permanece nos subterrâneos de nossa cultura e de nosso pensamento,


emergindo na figura de loucos célebres como Antonin Artaud, Bispo do Rosário e tantos outros que,
apesar de terem sido rotulados como doentes, de terem tido suas vidas marcadas pela exclusão em
hospitais psiquiátricos, despertam um misto de admiração por sua genialidade, e de fascínio e receio, pelo
estranho mundo que portam e revelam em suas obras. É o imaginário social da loucura que insiste em
protegê-la. Imaginário que se perpetua, modificando e reinventado continuamente a loucura, através de
mitos, lendas, ficções, fantasias e sonhos.

Esse imaginário social também vem sendo alimentado nas últimas décadas pelas diversas formas
de denúncia da realidade interna aos manicômios, que disponibilizam novos elementos à permanente
construção das representações sociais acerca da loucura. Um exemplo disso é o recente sucesso do filme
“Bicho de sete cabeças”, que trouxe à tona esse tema marginal da loucura e seu tratamento, cuja realidade
na qual estava inserida era, até então, pouco conhecida. Este filme despertou um misto de horror,
indignação e compadecimento pela situação dos internos dos manicômios, conferindo visibilidade social
ao tema da saúde mental e da Reforma Psiquiátrica.

254
Em um mundo que se alinha às mais sofisticadas construções científicas, a loucura está presente
ainda hoje nas conversas cotidianas, adquirindo significações diversas, muitas vezes bastante distantes
daquelas preconizadas pela ciência. Alguns elementos ligados à religiosidade, uma certa dose de
misticismo e⁄ou julgamento moral podem ser testemunhados em muitas situações em que é preciso
conferir um sentido ao que parece ser loucura. As atuais representações sociais da loucura, apesar de
sofrer uma grande influência da ciência e de seus “mitos e ritos”, ainda permanece ligada a um imaginário
social que contribui com sua constituição, ligando-se às necessidades cotidianas dos grupos que a
representam.

Mesmo a concepção crítica, que trata a loucura como doença, desvio, erro e que imprime a
necessidade de um tratamento, construiu para si uma armadilha. Esta concepção que, com seu
aprimoramento subsidiou a construção dos manicômios em todo o mundo, foi questionada por vários
grupos sociais, na medida em que trouxe consigo a violência, a prisão que revelavam, dentre outras
coisas, uma tentativa de desumanização do próprio homem.

Durante alguns séculos a loucura permaneceu calada, aprisionada dentro dos templos da ciência,
que faziam do homem dito louco, objeto das mais variadas e absurdas experimentações. Essa mesma
ciência, que foi criada com o nobre propósito de desvendar os mistérios do ser humano e do universo que
o circunda, promovendo melhorias na qualidade de vida do homem e do planeta, também foi cúmplice de
outras atrocidades contra o homem, em várias dimensões de sua existência.

O manicômio, na verdade foi mais um dos diversos símbolos de opressão do homem sobre o
homem. Esta instituição correspondia a um ideal de sociedade higienizada e sustentava uma visão de
homem cindido entre o “homem de razão” e o “homem da loucura”, desconsiderando que ambos são
faces de uma mesma moeda. Assim, o manicômio trazia a marca da exclusão, construída a partir de
critérios questionáveis como vimos no decorrer deste trabalho, ligados a interesses outros que não a
melhoria da qualidade de vida do ser humano. A existência de instituições como o manicômio, na verdade
legitimam uma violência do homem sobre o próprio homem.

A Reforma Psiquiátrica como reação à internação não justificável do ponto de vista científico,
social e ético.
Diante deste cenário humano, onde a violência do homem sobre o homem em suas diversas
manifestações já havia se tornado cotidiana, algo novo surge, em nome da retomada dos rumos da nobre
ciência e da regulação das relações entre os homens. No início do século XX, surge uma reflexão mundial
em torno dos Direitos Humanos que, em nossa compreensão, pode ser considerada uma das maiores
“descobertas” desse século.

As reflexões em torno dos Direitos Humanos penetraram em várias dimensões da vida social,
ventilando novas idéias e, assim, possibilitando a transformação de concepções a respeito de vários

255
fenômenos culturais. Dentre os vários fenômenos que passaram a ser discutidos sob a égide dos Direitos
Humanos, incluímos a loucura e a forma excludente de tratá-la. A preocupação com o respeito aos
direitos fundamentais, dentre outras conseqüências, iluminou os hospitais psiquiátricos existentes em
vários países do mundo, tirando essas instituições do “escuro anonimato” em que se encontravam,
revelando a violação dos direitos humanos e a exclusão social que caracterizavam essas instituições.

A revelação do que acontecia nos intramuros dessas instituições, levou à emergência de vários
movimentos de Reforma da Psiquiatria, que assumiram diferentes características nos lugares onde
ocorreram. As reflexões que foram sendo engendradas no seio destes movimentos de Reforma
Psiquiátrica foram se aprofundando, no sentido de reconhecer a ineficácia e iatrogenia do hospital
psiquiátrico, propondo seu fim. Não se tratava mais de reformar o hospício, tornando-o mais humanizado
e democrático. Tratava-se de substituir o abandono e a exclusão social que provocavam por algum tipo
diferente de cuidado. E essa passou a ser uma das principais metas que guiaram todo o processo de
Reforma em todo o mundo ocidental.

A Reforma Psiquiátrica e sua crítica à cultura manicomial

O termo Reforma Psiquiátrica, ao longo do desenvolvimento dos questionamentos acerca da


Psiquiatria e seus saberes, tornou-se insuficiente para designar o que ela se tornou. Utilizamos ainda este
termo, talvez por uma consideração histórica, ou pela falta, ainda, de um termo que abarque toda a
complexidade que este “movimento” adquiriu.

Atualmente a Reforma Psiquiátrica significa muito mais do que um simples avanço na terapêutica
no campo da Psiquiatria. Significa um rompimento com a hegemonia do saber médico no que diz respeito
à explicação e tratamento da loucura, rompendo também com a história de exclusão da loucura do
convívio social. A Reforma significa a construção de um novo lugar social para a loucura, o que implica
em uma transformação na cultura, no sentido do alargamento de seus limites e reconstrução das
representações sociais acerca deste fenômeno.

A Reforma Psiquiátrica traz em si um propósito de desassociar a loucura de sua imagem -


construída ao longo da história da humanidade - de periculosidade, imprevisibilidade, improdutividade e
incapacidade para a vida social. As reflexões no seio da Reforma buscam ampliar o conceito de loucura
para além de seu sentido de doença, mostrando que a loucura ultrapassa essa delimitação.

Busca-se, em parte, resgatar alguns elementos da concepção trágica da loucura, no que diz
respeito ao saber que a loucura traz em si a respeito do ser humano, seu funcionamento e suas infinitas
possibilidades de ser e estar no mundo, não podendo mais ser considerada somente um amontoado de
palavras desconexas e atos bizarros.

Entender a loucura vai além de conhecer os sintomas e diagnósticos psiquiátricos, friamente


classificados nos manuais de Psiquiatria. É preciso também conhecer o ser humano e se deixar tocar pelo
fascínio que a aventura humana representa, procurando o que mais há, para além da estranheza. Neste

256
sentido, a Reforma Psiquiátrica contribui trazendo em seu cerne uma mudança de objeto. Não se prioriza
mais a doença e sim a existência-sofrimento do sujeito. Não se trata de negar a existência da loucura, mas
colocá-la em seu devido lugar: como parte constituinte e constitutiva da vida do ser humano.

Para isso, é preciso que o indivíduo comum tenha um mínimo de contato com este objeto de
representação, para que se torne possível uma desmistificação de sua imagem. Um contato que coloque a
loucura na ordem do dia e suas representações arcaicas em discussão. É preciso que haja uma
aproximação, um mínimo de convivência, para que possa ser viável a esta “loucura” mostrar outras faces,
permitindo que novos elementos sejam introduzidos em sua significação.

Nesse sentido é importante reafirmar que, no âmbito das transformações culturais propostas pela
Reforma Psiquiátrica, a discussão do tema em contextos científicos, bem como o advento dos Direitos
Humanos não são suficientes para abolir por completo a cultura manicomial. Uma nova prática se faz
necessária, para que novas respostas possam ser inventadas. Parece-nos praticamente impossível
transformar as representações sociais da loucura se os sujeitos considerados loucos, continuam sendo
trancafiados em manicômios, onde ninguém os vê, ninguém os ouve, nada há o que fazer ou produzir, e
toda forma de conhecimento e experiência por eles vivida é invalidada.

É preciso que estes sujeitos estejam em nosso meio, nos confrontando com sua presença e
exigindo novas respostas que possibilitem a convivência.

A Reforma Psiquiátrica no contexto brasileiro

No âmbito da Reforma Psiquiátrica no Brasil, esta mudança de prática vem sendo introduzida na
medida em que vêm sendo implantadas transformações no modelo de atenção à doença mental. Cabe
lembrar que as transformações nas formas de tratar a saúde mental não se dão de forma pacífica e com
unanimidade por parte da sociedade. A implementação da Reforma Psiquiátrica ainda encontra-se em um
momento de transição entre os modelos manicomial e antimanicomial, nem sempre sendo muito claros os
limites entre um e outro.

Entretanto, apesar dessa coexistência de modelos, muitos hospitais psiquiátricos em todo país
vêm sendo fechados e substituídos por outros serviços comunitários, que buscam trabalhar pela reinserção
social dos sujeitos ditos loucos, através das inúmeras formas de reabilitação psicossocial. Acreditamos
que essa reorientação no modelo de atenção possa ser um passo inicial para um processo de
transformação das representações sociais da loucura.

Tal transformação certamente é um processo a médio ou longo prazo, em virtude do estigma


construído com relação à loucura, e também pelo fato de que uma mudança efetiva nas representações
sociais requerem uma transformação de seu núcleo central, onde estão fortemente arraigados elementos
históricos, resistentes às transformações do contexto imediato.

257
Entretanto, apesar da complexidade envolvida no processo de mudança das representações sociais
da loucura, algumas experiências no Brasil vêm confirmando a viabilidade da implementação da Reforma
Psiquiátrica e desenvolvimento de suas propostas, mostrando ser possível a construção de um novo lugar
social para a loucura e uma ressignificação de suas representações. Muitas experiências evidenciam ser
possível a construção de uma convivência saudável entre a sociedade e os usuários dos serviços de saúde
mental, historicamente considerados loucos e, portanto, inaptos ao convívio.

Apesar das resistências encontradas em algumas localidades e⁄ou advindas de segmentos que têm
algum interesse econômico ou político ameaçado com a Reforma Psiquiátrica, de uma forma geral, a
implementação de serviços abertos e comunitários em saúde mental têm sido bem aceitas pela população.

Ao lado de uma crescente “patologização da vida” e “medicalização das emoções” atualmente


testemunhadas pela sociedade de consumo e incentivadas pelas indústrias farmacêuticas, percebe-se
também um reconhecimento cada vez maior por parte das pessoas e das sociedades em geral, da
vulnerabilidade a que todos estão sujeitos em algum momento da vida. O próprio desenvolvimento dos
Direitos Humanos é uma demonstração disso. O reconhecimento da vulnerabilidade do homem comum
incita uma ressignificação do cuidado e uma possibilidade de aproximação daqueles grupos considerados
vulneráveis por excelência, como é o caso dos loucos.

A implementação dos novos serviços comunitários em saúde mental representa uma mudança nas
práticas dirigidas ao louco, que vem possibilitando uma aproximação e indicando uma possível
ressignificação das representações da loucura. Essa afirmação pode ser exemplificada com o relato da
experiência de implementação da Reforma Psiquiátrica no município de Campinas.

O que a experiência de Campinas nos ensina sobre a Reforma Psiquiátrica

A história de constituição da rede de serviços abertos e comunitários em saúde mental na cidade


de Campinas, utilizada como estudo de caso no presente trabalho, demonstra a viabilidade de
transformação das concepções, valores, crenças e atitudes (aspectos constituintes das representações
sociais) diante do fenômeno da loucura. Ainda não se pode afirmar com certeza que as representações
sociais da loucura foram completamente transformadas, pois sua transformação é um processo lento e
gradual, como já foi explicitado anteriormente. Entretanto, algo pode ser vislumbrado no cenário social,
na medida em que já se percebe uma maior aceitação da população para com o grupo de usuários que
freqüentam a rede de saúde mental.

A aceitação destes serviços e seus usuários pode ser evidenciada na relação que a maior parte dos
CAPS da cidade estabeleceu com as comunidades em que foram inseridas. Em quase todos os CAPS, as
comunidades a qual pertencem se tornaram parceiras no trabalho de reabilitação social. Não só os
usuários passaram a circular na comunidade, participando de seu cotidiano, como a comunidade passou a
respaldar o funcionamento do CAPS, utilizando seus serviços e prestando trabalhos voluntários.

258
Percebe-se, também, um reconhecimento pelo trabalho realizado nas oficinas que produzem
artigos utilitários e de decoração. Os produtos das oficinas são conhecidos da população da cidade e
inúmeras empresas e pessoas físicas encomendam os produtos e serviços dessas oficinas, em
reconhecimento ao seu profissionalismo e qualidade de sua produção. A arte produzida pelos usuários
também é conhecida e bem aceita em vários espaços sociais, nos quais já aconteceram algumas mostras e
exposições de suas obras.

Neste sentido, é visível uma mudança nas práticas sociais para com essa população de usuários,
pois “as pedras” que antes se atiravam nos loucos foram substituídas pelo dinheiro que as pessoas pagam
pelos seus trabalhos e pela admiração diante de suas produções artísticas. O dar as costas está sendo,
gradativamente, substituído pelo dar as mãos, mesmo que este dar as mãos ainda pressuponha uma certa
incapacidade do “louco”. Essa mudança de práticas pode ter como um de seus alicerces a confiabilidade
que o projeto da Reforma Psiquiátrica adquiriu ao longo de sua implementação neste contexto.

Com relação à confiabilidade social, não podemos deixar de destacar o importante papel da
comunicação, no que diz respeito ao esclarecimento prestado à população do que é esse projeto e à
desmistificação da imagem da loucura. A comunicação dentro do processo de transformação do cuidado
em saúde mental na cidade de Campinas foi um instrumento imprescindível, por conferir visibilidade às
ações que ocorriam no âmbito intra-institucional.

Apesar do início das transformações ter sido ocasionada por uma intervenção do Estado na
instituição, podemos afirmar que as novas formas de cuidar foram sendo construídas dentro da instituição.
A nova postura dos técnicos e as inovações no âmbito da reabilitação psicossocial deram início a um
processo que, após pouco tempo, precisou romper os muros institucionais para que continuasse a crescer.
Nesse sentido a comunicação teve um papel crucial, pois tornou públicas as novas formas de cuidado que
antes eram privativas da instituição, convidando a sociedade a participar na construção de uma nova
saúde mental na cidade.

Em resumo, podemos destacar algumas das estratégias importantes para a implementação da


Reforma psiquiátrica na cidade, tais como: a reinserção dos usuários por meio do trabalho com a criação
das oficinas e a venda de seus produtos em uma loja no centro da cidade; a criação de novos espaços de
convivência entre os usuários e a população; os projetos de comunicação que conferem visibilidade ao
processo de transformação, se constituindo também em importantes espaços de reabilitação psicossocial e
o trabalho realizado com as comunidades em torno das residências terapêuticas e dos CAPS.

É importante também não esquecer a experiência contrastante vivida pelo CAPS Esperança,
marcada pela rejeição e hostilidade para com seus usuários, familiares e equipe. Certa vez, comentando
com o Superintendente do SSCF a respeito do sentimento de tristeza que me foi suscitado diante desta
experiência, ele afirma que o que ocorreu não deve ser motivo para tristeza ou desânimo. Deve, isto sim,
ser visto como uma oportunidade de aprendizagem e reflexão sobre os equívocos cometidos. Cabe

259
destacar que a situação vivenciada pelo CAPS Esperança contou com o apoio dos meios de comunicação,
que naquele contexto específico, se constituíram em uma importante estratégia de divulgação do trabalho
dos serviços substitutivos e da nova postura que se pretendia construir com relação aos usuários dos
serviços de saúde mental.

A situação vivenciada pelo CAPS Esperança demonstra que a Reforma ainda está muito aquém
de onde se pretende chegar. Ainda se tem muito o que caminhar e aprimorar no que diz respeito ao
esclarecimento da população do que vêm a ser este novo modelo de atenção à saúde mental. Novas
estratégias para aproximar e cativar a população em torno dos propósitos da Reforma Psiquiátrica devem
ser elaboradas. Neste sentido, há que se pensar em formas de fazer uma espécie de “diagnóstico” da
comunidade onde se pretende instalar serviços dessa natureza. Há que se conhecer a história da
comunidade, suas características, necessidades, vulnerabilidades e possibilidades de parcerias que podem
ser estabelecidas com as instituições já existentes. É preciso que os serviços tenham o que oferecer a esta
comunidade, para que a presença de usuários não seja sentida como um peso, um desconforto e um
“retorno à nau dos loucos”, como afirmou um dos vizinhos de Nova Campinas. É preciso criar estratégias
criativas – e em consonância com os interesses da comunidade - para demonstrar as vantagens da
solidariedade, os possíveis ganhos advindos da convivência com a diversidade e os benefícios de uma
sociedade sem manicômios.

Neste sentido, é possível fazer uma outra leitura da situação vivenciada pelo CAPS Esperança. A
vivência desse serviço apontou falhas no processo e fez atentar para algumas representações sociais da
loucura que, embora arcaicas, não devem ser negligenciadas. Assim, as críticas ao projeto de Reforma
Psiquiátrica devem ser ouvidas de uma forma mais positiva, pois a crítica dos opositores também
propiciam o crescimento, a elaboração de novas estratégias e, principalmente, a construção de novas
realidades, onde haja uma real negociação de concepções e não a imposição.

Outro aspecto também importante para a consolidação da Reforma Psiquiátrica e,


conseqüentemente para a transformação das representações sociais da loucura, é a constância de uma
atitude crítica dos próprios profissionais com relação às novas formas de cuidado que estão sendo
construídas. É preciso que os novos atores envolvidos no cuidado com os usuários em saúde mental
estejam atentos para a resolutividade de suas intervenções. Resolutividade não em seu sentido objetivante,
mas no que diz respeito ao aumento da qualidade de vida dos usuários. É preciso que se pergunte todo o
tempo se o trabalho de reabilitação psicossocial está realmente cumprindo o que se propõe, encarando
com honestidade e criatividade os limites de suas ações.

É também preciso que se pergunte o que entendemos por desinstitucionalização, relendo este
conceito sempre. Fazer com este conceito o mesmo que fazemos com livros prazerosos. Reler sempre,
para nos deparar com novos sentimentos, rever as mesmas cenas sob diferentes perspectivas, descobrir e
construir novos sentidos. Este eterno retorno ao conceito de desinstitucionalização permitirá avaliar com
bom senso a atuação dos novos serviços abertos. É preciso rever este conceito sempre, no sentido de não

260
repetir os antigos erros cometidos dentro dos hospitais psiquiátricos, frutos de uma visão de ser humano e
loucura que ainda habita de alguma forma nosso imaginário. O manicômio precisa ser desconstruído não
somente em sua estrutura física, mas também, e principalmente, em nossos pensamentos e atitudes.

À guisa de conclusão

Para finalizar, é importante dizer que mesmo quando o movimento da reforma não mais existir,
ele deverá encontrar formas de se manter “vivo”, no sentido de atualizar a memória sobre os tratamentos
já existentes dirigidos à loucura e os males que tais tratamentos já produziram. É importante buscar o
conhecimento e manter uma postura de crítica com relação às concepções de loucura que estão
subjacentes às nossas ações.

Essa atitude de reflexão e avaliação cotidianas é parte constituinte disso que chamamos
“instituição inventada”. Com a Reforma Psiquiátrica perdeu-se a onipotência das promessas de cura, e a
ilusão de um mundo “higienizado”. As receitas prontas cederam lugar ao inesperado, à necessidade de
criar, à solidariedade, à atenção ao sofrimento, ao crescimento pessoal e às trocas subjetivas. Todas essas
mudanças de perspectiva vividas no trabalho requerem do profissional um trabalho diferenciado. Um
trabalho que permita uma flexibilidade de papéis, uma ampliação de suas funções e um engajamento nos
processos de reabilitação. Mas, mais do que isso, requer um reconhecimento de suas próprias
representações, advindo de um processo constante de auto-conhecimento. Assim como é preciso
aprimorar as técnicas de intervenção, é preciso aperfeiçoar o instrumento de trabalho, no caso do
trabalhador em saúde mental, sua própria subjetividade.

É preciso aprimorar o olhar, prestando mais atenção às brechas abertas no árduo caminho da
desinstitucionalização, que podem sugerir novas estratégias de resgate da autonomia dos usuários. É
preciso reconhecer nestes usuários cidadãos igualmente merecedores dos direitos e deveres que lhes
cabem, a despeito das diferenças que trazem consigo. Reconhecer o valor da ternura, da amizade, do
acolhimento da diferença e da alegria, que também passaram a ser incorporados ao trabalho, como
poderosos instrumentos de transformação de representações e de trajetórias de vida.

Sugestões de novos estudos e desafios futuros

A partir do que foi discutido no âmbito deste trabalho, algumas sugestões para trabalhos
posteriores podem ser feitas. Uma sugestão de trabalho a ser realizado é uma análise sistemática dos
relatórios dos Encontros Nacionais da Luta antimanicomial e das Conferências Nacionais de Saúde
Mental, com o objetivo de investigar as representações da loucura presentes em cada um dos momentos
históricos correspondentes a esses eventos. Uma análise sistemática desses documentos também permitirá
investigar se houve transformações nas representações desde o início da Reforma no contexto brasileiro, e

261
em que medida tais transformações se deram. Neste estudo pode ser incorporado o relatório do encontros
realizado pela Rede Internúcleos de Saúde Mental, cabendo um detalhamento da história de criação da
Rede e as implicações políticas envolvidas na sua criação.

Outra proposta é a elaboração de estudos que visem a criação de estratégias e critérios para
“diagnosticar” as comunidades nas quais se pretende instalar serviços substitutivos em saúde mental.
Diagnóstico que seja capaz de avaliar as necessidades e vulnerabilidades daquela população específica,
apontando para as possibilidades (ou não) de parcerias com a referida comunidade.

Outro estudo que também se mostra importante para este processo de implantação da Reforma no
Brasil, é o desenvolvimento de instrumentos de avaliação da qualidade de vida dos usuários - e por que
não seus familiares - que freqüentam os serviços abertos em saúde mental. Esses instrumentos devem ser
elaborados a partir de indicadores apontados por essa população, considerando o nível sócio econômico
das pessoas atendidas nos serviços do SUS e as particularidades de cada subcultura relativa às localidades
onde estão localizados tais serviços. É preciso que se faça um inventário sobre o que esses usuários
consideram como indicadores de qualidade de vida, pois algumas surpresas podem ser encontradas.
Muitas vezes, alguns detalhes aparentemente sem importância para os pesquisadores, podem se constituir
em fatores de grande relevância na vida de cada pessoa em particular.

Além de pesquisas, é preciso que se (re)inventem novas propostas de intervenção que


possibilitem uma ampliação do processo de reabilitação psicossocial, como por exemplo, projetos de
geração de renda, que podem assumir diferentes características a depender das necessidades dos usuários
de cada população específica.

Ao longo desse trabalho, algumas questões foram suscitadas, merecendo ser refletidas com mais
profundidade e cuidado pelos profissionais e militantes pela Reforma Psiquiátrica, não nos cabendo
detalha-las nesse momento. Uma das questões, entretanto, merece ser deixada, a título de conclusão,
como um desafio a ser explorado continuamente por todos aqueles que se aproximam de alguma forma da
Reforma Psiquiátrica: como conferir à loucura uma visibilidade que seja capaz de construir um novo
lugar social para esse fenômeno sem, no entanto, repetir velhas concepções e reafirmar preconceitos?

262
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Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas
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Rede Internúcleos de Saúde Mental (2004). Carta de Princípios.

Relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos, realizada pela Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados (2000).

CATÁLOGOS DE EXPOSIÇÕES

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Museu no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre).
Rio de Janeiro: o autor.

LEGISLAÇÕES

Portaria / GM n◦ 336, de 19 de fevereiro de 2002.

Lei 10.216, de 6 de abril de 2001 (DOU 09⁄04⁄2001).

Portaria / SNAS n◦ 224, de 29 de janeiro de 1992.

Portaria / GM n° 106, de 11 fevereiro de 2000.

Portaria GM n° 1.220, de 7 de novembro de 2000.

ENTREVISTAS, DEPOIMENTOS

Barros, C. F. de, Amaral, L. R. F. do, Amaral, A. F. & Barros, I. F. de (2003, novembro). Memórias do
Serviço de Saúde “Dr. Cândido Ferreira”. (Depoimento a Regis Moreira). Jornal Candura.

TEXTO NÃO PUBLICADO

Moreira, R. (2003). A Reinserção Psicossocial através das ondas do Rádio. Manuscrito não publicado.

269
Anexos

270
ANEXO 1

CRONOLOGIA DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA

1976
- Criação do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES) e Movimento de Renovação Médica
(REME)

1978
- V Congresso Brasileiro de Psiquiatria (Congresso da Abertura): criação do Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM)
- I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições

1979
- I Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental (São Paulo)
- III Congresso Mineiro de Psiquiatria (Belo Horizonte)

1980
- Convênio de Co-gestão do Ministério da Saúde com o Ministério da Assistência Social
-II Encontro Nacional dos trabalhadores em Saúde Mental
-VI Congresso Brasileiro de Psiquiatria

1985
- I Encontro Nacional de Coordenadores de Saúde Mental da Região Sudeste (Vitória)

1986
-8a Conferência Nacional de Saúde (Brasília)

1987
- criação do CAPS Professor Luís da Rocha Cerqueira (São Paulo)
- I Conferência Nacional de Saúde Mental (Brasília)
- II Congresso Nacional do MTSM (Bauru): criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial
(MNLA) – “Por uma sociedade sem manicômios”

1988
- Promulgação da atual Constituição Brasileira

1989
- Intervenção no Hospital Anchieta (Santos) e início da implementação da primeira rede de serviços
substitutivos do país
- Apresentação do Projeto de lei 3657/89, de autoria do Deputado Paulo Delgado (PT⁄MG).

1990
-Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica (Caracas)
-Fusão das estruturas administrativas do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social
(INAMPS) e Ministério da Saúde

1991
- São Paulo – I Reunião Nacional de Entidades de Usuários e Familiares

1992
- Aprovação das primeiras leis de Reforma Psiquiátrica Estaduais (ES e RS)
- II Conferência Nacional de Saúde Mental (Brasília)

1993

271
– I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial (Salvador)
Dentro deste Encontro:
- II Reunião Nacional de Entidades de Usuários e Familiares
- Reunião da Articulação Latino-americana da Luta Antimanicomial
- Reunião de Parlamentares da Luta Antimanicomial
- Encontros de núcleos estaduais da Luta Antimanicomial (SP, BA, RS, ES, CE,
– III Reunião Nacional de Entidades de Usuários e Familiares – Elaboração da Carta de Direitos dos
Usuários e Familiares de Serviços de Saúde Mental

1995
– II Encontro Nacional da Luta Antimanicomial (Belo Horizonte)

1996
– IV Reunião Nacional de Entidades de Usuários e Familiares (Franco da Rocha ⁄ SP)

1997
- III Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial (Rio Grande do Sul)

1999
– IV Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial (Paripuera⁄AL)
- V Reunião Nacional de Entidades de Usuários e Familiares (Betim)

2000
- Fórum Nacional: “Como anda a Reforma Psiquiátrica Brasileira? Avaliação, Perspectivas e Prioridades”
(Brasília)
- I Caravana Nacional de Direitos Humanos: uma amostra da realidade manicomial brasileira.
– VI Reunião Nacional de Entidades de usuários e familiares Salvador – Bahia

2001
- Aprovação da Lei 10.216
– V Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial (Miguel Pereira–RJ)
– III Conferência Nacional de Saúde Mental (Brasília)

2003
- Constituição da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial

2004
- I Encontro da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Fortaleza⁄CE)

272
ANEXO 2
AO CONGRESSO NACIONAL
“SENADO: MANICÔMIO NÃO. (A) GENTE CIDADÃO!”

Srs. Senadores:

Hoje é um dia muito especial. Especial porque estamos aqui para falar de liberdade e de cidadania.
Estamos aqui para falar de uma “Sociedade Sem Manicômios”.

Nós, aqueles que um dia fomos chamados de “loucos de todo gênero” estamos aqui para dizer que
somos cidadãos e exigimos nossos direitos. Estamos aqui para dizer que não queremos mais a existência
de hospitais psiquiátricos e manicômios; e nós, senhores senadores, podemos dizer isso melhor do que
ninguém, porque dizemos isso com nossos corpos, corações e almas que viveram nos hospitais
psiquiátricos e manicômios.

Nós, familiares de pessoas com sofrimento psíquico, estamos aqui para dizer que não queremos mais
ver nossos familiares isolados, cronificados e mal tratados em tristes hospitais psiquiátricos e
manicômios. Queremos e exigimos a continuidade e a criação dos serviços substitutivos aos hospitais
psiquiátricos e manicômios com tratamento humano, digno e dentro do convívio social.

Nós, trabalhadores de saúde mental estamos aqui para dizer que não queremos ser agentes da exclusão
e da violência; não admitimos usar nosso papel técnico para legitimar as instituições psiquiátricas que
excluem, abandonam e confinam as pessoas com sofrimento psíquico. Queremos e exigimos realizar
ciência com consciência e ética.

Nós, integrantes de movimentos sociais da sociedade civil estamos aqui para dizer que nos opomos a
todas as formas de opressão, estigma, discriminação e desigualdade de direitos. E temos certeza: a
exclusão de alguns significa a exclusão de todos.

Srs. Senadores: Estamos aqui para exigir a transformação da assistência psiquiátrica no Brasil. Uma
sociedade realmente democrática não pode ser conivente com a realidade de hospitais psiquiátricos e
manicômios. E esta realidade não permite dúvidas: isolamento, abandono, exclusão, cronificação, total
desrespeito aos direitos humanos, morte.

Srs. Senadores: O hospital psiquiátrico e o manicômio foram e continuam sendo condenados do ponto de
vista ético, político e científico em âmbito mundial. Entidades do estatuto ético e científico como a
Organização Mundial de Saúde e a Organização Pan-Americana de Saúde recomendam a sua substituição
por outros recursos assistenciais.

Srs. Senadores: Todos nós cidadãos, temos o direito e principalmente o dever de nos perguntarmos: por
que a loucura, no limiar do século vinte e um, deve ainda ser confinada? A ciência atual e o avanço no
campo das políticas sociais possibilitam um atendimento em Saúde Mental que supera o modelo asilar e
que contempla terapêutica e cidadania. Várias cidades brasileiras têm demonstrado que isto é um fato;
vários Estados brasileiros como Rio Grande do Sul, Pernambuco, Minas Gerais, Ceará, Alagoas, Paraná e
Distrito Federal aprovaram leis estaduais de Reforma Psiquiátrica. As várias experiências em Saúde
Mental em desenvolvimento no país demonstraram que não é verdadeiro que a Reforma Psiquiátrica,
como a que realizamos, produziu abandono, colapso do atendimento e aumento de taxas de criminalidade.
Aliás, isto tem sido a marca do arcaico modelo manicomial.

Srs. Senadores: O Senado Federal tem a oportunidade histórica de transformar a realidade da assistência
psiquiátrica em nosso país através da aprovação do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado com as
emendas do Senador Lúcio Alcântara, relator da Comissão de Assuntos Sociais; e da rejeição do
substitutivo apresentado pelo Senador Lúcido Portela.

273
Srs. Senadores: O projeto de lei do Deputado Paulo Delgado com as emendas do Senador Lúcio
Alcântara, tem amplo apoio na sociedade cabendo destacar: Conselho Federal de Medicina, Associação
Brasileira de Psiquiatria, Conselhos Federais de Psicologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Serviço
Social, Enfermagem, Fonoaudiologia e as diversas Associações de Usuários e Familiares dos Serviços de
Saúde Mental.

Srs. Senadores: Não admitimos que interesses mercantilistas que colocam o sofrimento psíquico como
objeto de lucro, se sobreponham aos interesses éticos e científicos na área da Saúde.

Srs. Senadores: A realidade não permite dúvidas. Basta conhecer um hospital psiquiátrico e um
manicômio e um serviço substitutivo. E por isso estamos aqui para exigir a aprovação do Projeto de lei
no. 08⁄91 com as emendas do Senador Lúcio Alcântara.

A loucura não pode ser excluída porque diz respeito a todos nós.

Movimento Nacional da Luta Antimanicomial

Brasília, 13 de março de 1996.

274
ANEXO 3
HISTÓRICO DA REDE DE SAÚDE MENTAL DA CIDADE DE CAMPINAS

 Antecedentes históricos da rede de saúde mental de Campinas (1918 a 1989)


1918
- Organização de uma associação de filantropos para a construção de um hospício para dementes de
Campinas
1924
- Inauguração do “Hospital de Dementes em Campinas”
1936
- Mudança de nome de “Hospital de Dementes em Campinas” para “Sanatório Dr. Cândido Ferreira”
1988
- Promulgação da Constituição Federal do Brasil, considerada a Constituição Cidadã
- Criação do SUS – Sistema Único de Saúde

 A Co-Gestão na Saúde Mental. De Sanatório a Serviço de Saúde Cândido Ferreira (1989-


1992)
1989
- Governos de esquerda assumem as prefeituras de Santos, Campinas, São Paulo e Porto Alegre
- Intervenção do município no Hospital Psiquiátrico Anchieta em Santos
- Convênio de co-gestão da prefeitura de Campinas com o Hospital Cândido Ferreira
1991
- Criação da primeira pensão protegida da cidade de Campinas
- Criação da Unidade de Reabilitação de Moradores no Cândido Ferreira, dividida nas alas Paraíso, Casa
Branca, Primavera e Arco-íris
- Criação do Centro de Convivência e Arte, a partir da ala Arco_íris, no Cândido Ferreira
- Criação do Hospital-Dia no Cândido Ferreira
- Criação do Núcleo de Oficinas de Trabalho (NOT) no Cândido Ferreira
1991/1992
- Seminário de Saúde Mental do Município
1989 a 1992
- Fechamento de 3 hospitais psiquiátricos na cidade de Campinas

 A construção da Rede de Saúde Mental de Campinas (de 1992 aos dias atuais)
1993
- Mudança de governo do PT para um governo do PSDB
- Criação da Associação Cornélia Vlieg
- Inauguração dos Caps Aeroporto e Integração
1995
- Contratação de jornalista para campanha publicitária do Cândido Ferreira
1996
- Caps Aeroporto ganha nova sede na Região Sudoeste
- Criação do CEVI - Centro de Vivência Infantil
1998
- Regionalização da cidade de Campinas, por distritos
- Criação do Centro de Convivência na região Sudoeste
- Criação do Centro de Convivência na região Noroeste
1999
- Aceleração do processo de criação das moradias (residências terapêuticas)
2000
- Inauguração do Caps Estação
2001

275
- O governo do PT, assume a prefeitura de Campinas com “Toninho”
- Caps Estação passa a ser 24 horas
- Caps Aeroporto passa a ser 24 horas e passa a se denominar Caps Novo Tempo
- Fechamento do Hospital Tibiriçá
- Criação do Caps Toninho
2002
- Transformação do Hospital-Dia em Caps Esperança
- Expulsão do Caps Esperança do bairro de Nova Campinas
- Criação do CRIAD - Centro de Referência e Informação em Alcoolismo e Drogadição
- Criação do CRAISA, um CAPSad infanto juvenil
2003
- Caps Esperança muda-se para nova sede no Bairro Taquaral
- Criação do CAPS David Capistrano

276
ANEXO 4

277

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