Você está na página 1de 15
POESIA E TEMPOS SOMBRIOS: ALGUMA POESIA HOJE' Atravessar a obscuridade aclara. Do rigor da auséncia surge o sentido, O que foi se renova e revém sob luz rara. Viver inclui 0 que poderia ter sido. Dupa Macuapo? ‘TEM ME IMPRESSIONADO A referéncia a Paul Celan na produgao recente de alguns poetas brasileiros dos tiltimos dez anos. Co- nhecia o poema de Sebastiao Uchoa Leite, em A Ficgio-vida,* “Anotacio 2: Uma palavra”, que se refere a ele que escrevia com “sombras escritas por pedras”. E um ensaio de Costa Lima* sobre Sebastido tem por epigrafe um verso de Celan, de Von Schwelle zur Schwelle (De limiar em limiar) que diz “fala a verdade quem fala a sombra”. Uma afinidade fora encontrada. Mas, além dis- s0, descobri o livro de Cléudia Roquette-Pinto, Zona de som- bra,> que tem uma epigrafe de Celan: “Dé também sentido ao seu dito:/d@-lhe a sombra.” Versos do mesmo poema, a sombra aparece aqui como densidade que esses alguns poetas procuram. O que fica As vezes no rascunho, como diz Armando Freitas Filho: O que ficou atrds, no escuro do rascunho, cego € rasurado nfo para de irradiar — segreda (Fio term, 3 V 98) 65 a ee Paul Celan tem uma frase na “Carta a Hans que afirma: “Vivemos sob céus sombrios e, seres humanos. Talvez por isso existam também mas.”¢ Apesar de sua primeira tradugao para o Portugués vir dog anos 70, tornou-se um poeta mais lido por alguns poetas brasi- leiros na tiltima década. Como entender essa leitura mais Tecen- te? O que tanto atrai nesse poeta trégico dos anos 50-70, hojez Talvez pouco lido na época da tradugao de 70, Porque privilegi- vamos ainda uma certa ironia otimista, o Ppoema-piada oy a tigorosa construcio concretista. Penso que ressoa nesses alguns Poetas nao sé sua radicalidade na linguagem, mas sua tentativa de dizer as sombras, arrancar a poesia desse céu desesperancado, que parece se estender globalmente. A dificuldade resiste, como aponta Lu Menezes: “Se em nossa propria terra/menos e menos /sabemos 0 que fazer/da beleza indigerivel” (Znimigo Rumor 10, p. 67). Se ressoa Cabral nessa nova 8eracao, ressoa também Murilo Mendes e um Drummond trégico. Como outro veio do moder- No, o trdgico ficou recalcado, dada a nossa Opgao por uma ale- gtia como prova dos nove, solar, ¢ Por um privilégio do mo- dernismo hegeménico futurista ¢ construtivo. Nos Retratos-re- lampago, livro de Murilo em que explora a Proximidade com pintores e escritores Curopeus, mostra afinidades com um Max Ernst, Giacometti, De Chirico oO linha modernista, que na sua vertent i Por exemplo, na gravura, e, na lite Também 0 otimismo facil d. imaginario capitalista, domesti ito, que impoe me- diocridade e torna 0 tom coloqu; i modernista, formas despastadas se transformam na boa forma, sem surpresa, engracadinha, H4 os que ainda as exploram, fazend. i Sociedade do espetdculo. Comentando o livro de Debord, Giorgi ‘ io Agamben® se pergunta como fica o pensamento, pois é claro QUE 0 espetéculo a fm Bender” ¢ &xIstem poucs t80 poucos Poe. tatura, em Cornélio Pena, fa industria cultural veicula um 66 se tornou a linguagem, a comunicabilidade mi ingiifstico do homem hoje. A forma de Estado ap ou o ser esperacular integrado que faz com quea politica i 0 Estado aver com um Estado, mas com um acontecim ie fee sane ento de lingua- gem, com uma experiencia que concerne & poténcia de pensa- mento. Com eee resisténcia & capacidade de pensar simeona diluindo a poesia € a arte em formas adaptadas, palatdveis. Uma politica da poesia se faria numa outra escuta da linguagem, jus- tamente no adensamento de formas que, inassimildveis pela cab tura do espetdculo, preservassem a possibilidade de um outro futuro e indicassem a nossa vida um outro ritmo que o imposto pela dominagio da técnica e da mercadoria. A cena atual apresenta um ntimero enorme de poetas; no entanto, sé alguns instigam & reflexdo critica. O que eu quero identificar é justamente uma linguagem de cortes, ritmos ¢ sen- tidos, que, dissonantes, resistem & boa forma, a estetizagio ¢ ao congelamento das significag6es, operados pelos meios de co- municacao, seguindo por uma abstratizacao que Costa Lima? jd via nos poetas dos anos noventa € que continua como uma ten- tativa de aproximar poesia e pensamento, no sentido que Valéry desenvolve em seu ensaio."° . Pode-se identificar uma tentativa de refazer a paisagem, a partir da auséncia, do vazio e do siléncio, abandonando uma representagao em que nao se acredita mais. Chama a atengio um poema como 0 de Cldudia Roquette-Pinto, publicado no n' 10 de Inimigo Rumor, “Tudoa perder”, que comega oom os ver sos: “O que se ganha com tanta dureza/que Le on aridez?” e que segue com uma constatacio, “Tudo i - es Para terminar com um desejo. “Eu quero os are ee sis/ cada vez mais fugazes/se espargindo da in! oe constatagao radical: “Mas até as palavras eee te amen a perder.” Essa consciéncia de tempos sombre ie ph real vras se desgastam (que vai continuar no ses ated he bra), torna imposs{vel o coloquialismo pito: s 67 onal. Nao hé mais ingenuidade posstvel: esse cologu; aly 4 apropriado pela industria cultural. A utopia hoje Mio ¢ ‘ ossivel, é mais dificil: nao tem um lugar, uma definigio, Sak um principio, esperanca de um mundo totalmente Out oy talvez sé a poesia possa articular, numa linguagem Que teima em se fazer totalmente outra em rela¢do 4 linguagem da midiae ke comunicagao. Em Duda Machado: Pode-se até mesmo dizer esperanga, mas conseqiiente, j4 que deixa vistvel a decepcao da qual provém e depende. (“De um instante a outro”, Margem de uma onda). A poesia nasce de uma consciéncia infeliz no sentido de Marcuse,"' de uma tecusa. E ao mesmo tempo é 0 lugar onde um outro real pode aparecer — “Uma identificacao de ecos/por onde o ininteligivel/se entende” (Sebastido Uchoa Leite, Cortes/ Toques'), Se hoje se assiste a uma faléncia de sistemas explicativos, a tentincia a eles propde uma condicio: Conhecimento, seja. Mas sempre tio recente que apenas se desprende do nao-conhecimento. (“Condicao”, Margem de uma onda) Em Fio terra', Armando Freitas Filho acaba seu livro com “Terminal”, em que a paisagem jd nao aponta solugées, e 0 poe- ma nao pode mais ser canto: € sem as solugées da paisagem sem 4gua, nem terra, sem céu € sol — sem o sereno da lua © livro se encerra sem pdssaros. . al Haveria uma a peabndidie a ser buscada no exercf- godeuma negatividade radical, caracterfstica de Sebastiao e di gm cert Drummond, que reaparece em Ronald Polito, nn do fala da “medida da quantidade de forca do arranque Gato (threa de trabalho”, em De passagem'), negutividade que — seu livro de 98, Intervalos,'° em que apenas testa como resfduo — “ym par de asas/um. pensamento”. E que estd nos versos do Ppoe- ma de Celan que continuam os usados como epigrafes por Cos- ta Lima e Claudia Roquette-Pinto, Fala também tu: Fala — Mas nfo separa 0 nao do sim, (“Fala também tu”, De limiar a limiar Essa poesia se torna paisagem do pensamento, um pensa- mento outro, desenganado, sem otimismos ficeis, mas que ain- da busca fundar odsis. O topos da ilha é substituido pela cidade deserta ou deserto, em que o odsis tem que ser fundado, nao é mais apenas encontravel. Como em “Arco”, de Fio terra: Véo livre para lugar algum onde nenhum enderego se abre para 0 pouso L-] Tinaginéria cealizagio do at e do arrepio, sustentada em ri 6) A poesia € sempre subversiva ou : salt mundo outro, mesmo quanto el Polito em “Janela na noite sem luz’ i ‘Ges No compartimento de informas® compactado alguém ensaia ontrar a chave perdida da porta (e virtual e ébvia ainda inexistente. pica porque pensa um arecem perdidas. Diz Je sabe) 69 ” Assim, vai do conhecido para 0 desconhecidg + ie “Fragmentos para Novalis”, de Duda Machado, in ‘OM pelos livros do poeta alemio, tenta pensar com at Passang, um substrato matemitico para a imaginacio: o desconhecido, cdlculo potencial do conhecido. Em “Urubu-abaixo” também do mesmo livro, Margem de uma onda, a paisagem que se desenha é a do tertor, nada de pitoresco, mas uma funda consciéncia do desastre: overdose de dezenas de diizias desovam desossam desencarnam subterraneos jardins de infincia de quem mais carnica que crianga O progressismo acabou: hé consciéncia de uma fabricagéo massiva da miséria humana, como diz Agamben, que vé o cam- po de concentrac4o como o lugar inaugural da modernidade, em que vida biolégica e vida publica se tornaram indistintas. Em Moyens sans fin, traga um quadro terrivel em que o estado de excegdo se transformou na regta, 0 campo como a estrutura na qual se realiza duravelmente o estado de excegao. A paisagem solar e pitoresca modernista deu lugar 4 paisa- gem desolada: 05 campos agora fumegam um firmamento de cinzas 0 deserto depois comeca uma sirena longinqua (Ronald Polito, “Muminagio artificial”) : A re! Mas falar 2 somibts € também a notagao do siléncio, do jnexprimivel da vertigem. Diz Carlito Azevedo, em “Ao rad "9,18 chao * a idéia é alcancar a outra esfera, Nio aquela onde tudo flui tao lento. nem a outra, comum no movimento, mas a Ultima, a roda da vertigem (esteja ela no fim ou na origem), a idéia é por as duas méos no centro nervoso do delirio (aquele vento Notagéo de um pensamento que é teatralizac4o, danga, coreografia € remete 0 poema aos poemas originais da humani- dade, 0 que queria Mallarmé e que Ranciére! diz que nao sao mitos do inconsciente coletivo, mas formas de mundo a ressus- citar no ordenamento das palavras. Como em “Leitura do cris- tal’, de Duda Machado: Todo cristal propde essa meméria obscura (paisagem perdida entre informe e ruina) ou a fenda de seus prismas. Haveria algo a buscar entre 0 informe e a rufna que passa pela meméria € a experiéncia: um espessamento. Diz Age de Carvalho, em Ror” a obra jogo de sombras- mais sombra sobre sombra mais umbria. ca " eee ; Celan afitma em Meridiano GUE Seria Drecigg ic Mallarmé &s ultimas conseqiiéncias. oe Podetia sep tang, consciéncia do desastre, apontado cm Crise de vers, como a ressuscitar de interrogagoes, que Mia teconhece na Ua Dog, tas quando diz que esta voltou a svat ° Pensamento a altur do céu estrelado, isto ¢, nessa poesia voltaram as intetrogecie, primordiais do homem numa arquitetura invistvel, que se te com os brancos da pagina, com a materialidade mesma do oe. ma. Essa materialidade é buscada por todos eles; no Poema, linguagem adquire corporalidade. Nos versos de Marco Antonio Saraiva (Entre nervuras'), 0 corpo do poeta passa para a Pagina: Emendava as linhas da mao as linhas do papel, escavando abismos na fina superficie de uma folha, até que te passaste todo para o branco. Para Rancitre, nao h4 nenhum vestigio de uma filosofia na poesia, mas ela é necesséri, inclusa e larente na maneira espect- fica como 0 pensamento tem lugar, como a Idéia se inscreve em forma de poema, aquém das formas ordindrias do pensamento discursivo. Karl Heinz Bohrer,” num artigo sobre o ético no estético, comenta que com “barulho” e “encenacao” nada se ga- nha se falta a idéia, se falta o cardter intelectual, Faltaria na arte contemporiinea, um pensamento maior, que estaria na ilumina- So profana que Benjamin vé nos surrealistas, ou no que Musil chama de terceto estado, um estado aberto de imaginagao € ue aparece no que chama de instantes urépicos como parece dizer“ noite na estrada’, de Duda Machado, “confluéncts en. tre passagem e morada’, Poética do desastre, nessa alguma poesia estd presente a ten- tao do silencio: Sebastio, em A epee, fala do "Vatio/corpo aH ~-e re absorto/em quedali ‘na sombra siléncio,” A in ° prio passa a Ser linguagem no sentido do eerie do som- do desconhecido. A sombra, como em ees fico e também finge/olha-me da sombra’, é trlgica porque ao ‘A magrales- feével, numa poesia que passa a ser mais ae ném 0 indeci- sio do que afirmagao. O coloquial, 0 tom de ci gacio ¢ suspen- ar auma poesia de pensamento, um pensamei ‘onversa, dao lu- lugar dificil de uma imaginacio radical. Diz ase ira no . lo: a.uma onda extrema quer te levar 0 poema Monde é tao dificil estar — onde é sem nome. ; Ha um erotismo nesse pensar. Como nos versos de Dora | Ribeiro:”* reconheso as andangas da pele | movimento compassado das linhas da mao em diregio ao trago do ténue respirar das idéias samento que Merleau-Ponty* identifi- deixa traspassar pelo mundo, que se perde na linguage! se rompa a forma envoltério para deixar a linha sonhar em arabesco. Em “La miel de Tépies”, diz Dora: “o poeta toca a Itngua/atinge © ritmo das idéias/aperta 0 sentido/extrai 0 que é ferozle depois celebra 0 mel”, Apostando no paradoxo, no sonho, a lucidez aparece como espanto: “acordar € raro/breve/um cochilo, piscar de olhos/por onde irrompe/o entrevisto espanto/do que somos/ acordar € um | sonho” (Duda Machado, “Meridiane er em Francisco Alyim um Oswald d. problematizando 0 pitoresco, aqut de quase todos, € Drummond (¢ do 0 ‘construtivismo do primeiro- Toma corpo © pen: ca no pintor, um sujeito que se me faz com que tevisto a luz de Drummon seria Cabral 0 veio originario talvez Murilo) problematizam B -, Castafion” fala de Age de Carvalho” que em sua poe . Julio ia resente como heranga cabralina, mas com no Se pedra est f da a sombra ¢ a indagagio. Como nesse poet a meant didlogo com Celan, inclusive na Fetomada dos sree versos, no final, transformados: CINZAS, tua boca de sombras, interditada Pedra sob a lingua, errante, onde sempre tens 0 deserto, esta pagina, gueto da letra perdida, judeu: K (Tua palavra, tua mais dura palavra -muda, irma) Cinzas, tu- a boca de sombras Nestes poemas nao hd piada nem tom solene, arte nao é fazer bonito nem engracadinho, mas um trabalho em algo que resiste. E tem sua recompensa. Para Adorno, 0 momento de prazer na arte protesta contra o cardter universal e mediatizado de mercadoria; é, a sua maneira, mediatizdvel: quem desaparece na obra de arte € por isso dispensado da miséria de uma vida que € sempre demasiado escassa. Os primeiros romAnticos alemies falavam de uma potencializacao da vida e de uma poetizacao do mundo, elaborando a idéia de uma poesia-pensamento como obra capaz de uma reflexdo infinita sobre si mesma. Criticos da razio da Aufklirung, esses romAnticos propunham o que faltara 4 Revolucao Francesa, uma revolugio espiritual. A poténcia de Pensamento do poema era para cles ao mesmo tempo a potén- cia do espfrito que nega toda determinagio acabada ¢ todo sen- tido fixo, ¢ a poténcia de vida que nfo cessa de clevar-se pela reflexdo sobre si a formas novas. 74 re A poesia como um pensar que desobjetiva, vai contra a objetividade da aioe Contra uma racionalidade que subsume qudo 8 economia, desorienta a Histéria. Para Carpeaux, Baude- jaire era um artista no mais alto patamar, porque até a vida para ele se apresentava como problema formal. Agamben afirma que a intelectualidade € poténcia antagonista na sociedade de ee tdculo, e que © pensamento é forma de vida, vida indissocidvel de sua forma. Nessa poesia, em que uma subjetividade radical possibilita aescavacao da linguagem na direco do obscuro, do inapresen- tavel, no entanto, 0 eu apaga seus rastros como diz “Espécime”, de Duda Machado: “este animal/-que artista-/s6 dé 0 salto/de- pois de desfazer/seu prdprio rastro”. Além de Celan, referéncias sao Novalis, Kafka, Trakl ¢ Baudelaire, de “Spleen e ideal”, radi- cais questionadores de uma modernidade solar. Lado a lado com 0 campo convive 0 cassino planetdrio, em que se transformou a economia mundial. Agamben conta uma historia de Kavdfis, em que o poeta diz. que os ingleses nao podi- am entender os gregos porque estes estavam na bancarrota ha muito tempo. Mas hoje, no entanto, haveria uma consciéncia da bancarrota geral. Pede-se agora mais que a ironia ea parddia, procedimentos modernistas. Se em Sebastido Uchoa Leite a iro- nia ainda domina, j4 Duda Machado em “Vida nova’, talvez referéncia ao livro de Dante, insinua uma ultrapassagem: Sim. “A ironia domina a vida” Ea forma nfo pode desmenti-la. Mas ndo faz falta uma perspectiva Que domine também a ironia? Nio sé puros procedimentos estéticos, a arte ¢ a poesia articulam uma ética como um regulativo utépico. Procura-se tefazer a paisagem, contra © fechamento € 2 determinagio de formas e sentidos fixos ¢ acabados. ‘Mas o perigo ronda, € preci- so afrontar as ameagas de sua imposi¢ao, como em “Devoragao da paisagem” de Duda Machado. Bs De algum lugar, distante das retinas, a fera irrompe ede pronto a paisagem se contrai. Jd é presa, repasto de signifi icados com que a fera realimenta sua fome. A paisagem nova se daria na brevidade de um instante como em “Duracao da paisagem”, 0 poema como tens4o que, susten- tada, abre um espago-tempo outro. ‘A partir daf — o mundo intacto — vai-se abrindo um espaco, paisagem ndo preenchida, habitada somente por uma duracio e, na qual, &s vezes, podemos existir. Pode-se lembrar Drummond de “Paisagem como se faz”, no livro As impurezas do branco, em que esta se faz de meméria, que é imaginagao e experiéncia, e afirma o homem como maté- ria da paisagem. Em “Horizonte”, de Jiilio Castafion Guimaraes, da tensdo entre o que a janela consegue recortar ¢ um interior de sombra que nao se enquadra,” resta apenas o essencial: sim o que insistente degrada o quadro é tudo tudo menos este crespo cansago e talver a mifsica de sua imaginacao, 16 Dealgum lugar, distante das retinas, a fera irrompe e de pronto . a paisagem se contrai. Jd € presa, repasto de significados com que a fera realimenta sua fome. A paisagem nova se daria na brevidade de um instante como em “Duracio da paisagem”, 0 poema como tensio que, susten. tada, abre um espaco-tempo outro. A partir dai — o mundo intacto — vai-se abrindo um espago, paisagem nao preenchida, habitada somente por uma duracao e, na qual, &s vezes, podemos existir. Pode-se lembrar Drummond de “Paisagem como se faz’, no livro As impurezas do branco, em que esta se faz de meméria, que é imaginagao e experiéncia, e afirma o homem como mat¢- tia da paisagem, Em “Horizonte”, de Juilio Castafion Guimaraes, da tensio entte o que a janela consegue recortar e um interior de sombra que nao se enquadra,” resta apenas o essencial: sim o que insistente degrada 0 quadro é tudo tudo menos este crespo cansago ¢ talvez a musica de sua imaginagio. 16 ese, coma admissio da catdstrofe, uma paisagem a er einada. Ao falar a sombra, afirmam-se a insatisfacio set ecm existe € @ persisténcia naquilo que fica ainda por com Configura-se uma poética trégica. E sé 0 trdgico, como inet de que algo sempre petmanece inacess{vel & ecimento possibilita uma nova inteligéncia do real. Se a poe- pelinei eoonhi consciencia, . 5 ja ¢ dang, enquanto movimento da linguagem no avesso da racionalidade pragmatica, fica a possibilidade de uma outra rea- Iidade a ser feita, como em A alma ea danga de Valéry, em que a dancarina tece a terta, a existéncia, com seus passos. Camus diz. no Mito de Sisifo que nao ha sol sem sombras € é preciso atravessar a noite. Finalidade sem fim para Kant, a arte ea poesia, por isso mesmo (num mundo em que nada mais é gratuito), articulam a possibilidade de travessia. No meio da encenacéo ¢ do barulho contemporaneos hé alguma poesia ten- tando tornar isso possfvel. Um olhar trégico adensa 0 pensa- mento e apura a poesia num momento em que pensar se coloca como um obstaculo ao cassino planetirio. Notas da ABRALIC de 2002 € publicado 1 . Este texto foi apresentado no congresso De pu ‘co moderno. Org: Finazzi-Agré no volume Formas e mediagbes do trdgi Vecchi. So Paulo: Unimarco, 2004. * Duda Machado. Margem de uma onda. 3 Uchoa Leite, Sebastido. A fiegfo vida. Sao “Costa Lima, L. “A poesia atona de Sebastiao trdpicos. Rio: Rocco, 1991. > Roquette-Pinto, Cléudia. Zona de sombra. &Paul Celan. Arte poética: O meridiano ¢ outro! textos. de Joao Barrento. Lisboa: Cotovias 1996 / Debord, Guy. A sociedade do experdeul Rio de Janeiro: Contraponto, ns fin. Pari ® Agamben, Giorgio. Moyens #4 40 Paulo: Editora 34, 1997, p-27- Paulo: Editora 34, 1993- Uchoa Leite.” Pensando nos Rio de Janeiro: 7Letras, 1997. Tradugio ¢ organizagio 1997. Rivage, 1995. a 4 ° Costa Lima, Luiz. “abstragio e visualidade”. Intervengss Sto Py j aulo: Ba | ae 2002. | 10 Valéry, Paul. “Poesia e pensamento abstrato”. Varied, det. Sag p | Iluminuras, 1999. Aulo; 1 Marcuse, H. “A conquista da consciéncia infeliz”. deologa day Ociedad industrial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967. 1 Frias Filho, Armando, Fo tera. Rio de Janeito: Nova Fronts, yy, 13 Uchoa Leite, Sebastiio. Obra em dobras. Séo Paulo: Duas Cidades, 999 4 Polito, Ronald. De passagem. Sao Paulo: Nankin Editorial, 2001, 5 .. Intervalos, Rio de Janeiro: 7Letras, 1998. 6 Celan, Paul. Cristal’ Tradugio e selegao de Cléudia Cavalcanti. Séo Paulo: Iuminuras, 1999. Ver o livto Solo. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1996. 8 Ver, Sublunar. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2001. Ranciére, J. La politique de la sirene. Paris: Hachette, 1996. 2 Carvalho, Age de. Ror (1980-1990). Sa0 Paulo: Duas Cidades: Secretaria do Estado de Cultura, 1990, p. 94. 2! Saraiva, Marco Antonio. Entre nervuras. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1995. 2 Bohrer, K. H. “O ético no estético”. Etica e estética Revista de filosofia politica, série III, n® 2 Rio de Janeiro: Zahar, 2001. %Poema de Comecar é0 fim, livro de 1990, incluido em Bicho do mato. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000. % Merleau-Ponty, M. O olho e o expirito. Rio de Janeiro: Grifo, 1969. % Schwarz, Roberto. “O pais do elefante”, Folha de S. Paulo, MAIS!, 10/3/ 2002. % Ver orelha do livro de Age de Carvalho, Ror. Colegio Claro Enigma. Sé0 Paulo: Duas Cidades, 1990. ® Age de Carvalho. Ror (1980-1990). Sao Paulo: Duas Cidades/Secretaria do Estado de Cultura, 1990, p. 71. % Castafion Guimaraes, Juilio. Matéria e paisagem. Rio de Janeiro: Editora TLetras, 1998, 2 Mim MDs

Você também pode gostar