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_JaTUMS ‘© Nacional ¢ 0 Popular na Cultura Brasileira * Artes Plésticas e Literatura ~ Carlos Zio, Ligia Chiappini J. Luz Lafeté ‘= Ginema — Jeen-Claude Bernardet e M. Rita Galvéo ‘* Misice — Enio Squeffe José Miguel Wisnik = Seminérios — Marilens Chau = Teatro — José Arrabale Mariéngele Aves de Lima * Televisiio ~ C. A, Messeder Pereira @ Ricardo Miranda * Serto Mar ~ Glauber Rocha ¢ a Estétice da Fome — Ismail Xavier * Vianinha ~ Teatro, Politica @ Televisto — Fernando Peixoto org.) Colegio Primeiros Passos + O que é Cultura ~ José Luiz das Santos © Oqueé Cultura Populer — Antonio Augusto Arantes © Oque é Foiclore — Carlos A. Brandéo +O que é Nacionalidade — Guillermo Rou Rubem Colegio Tudo 6 Historia * A Aventura da Joven Guarda ~ Paulo de Terso C. Medeiros ‘+ AChanchada no Cinema Brasileito — Afrénio M. Catanie José inécio de Wt, Souza + Cultura e Participaro nos anos 60 — Heloisa B. de Hollanda e Marcos A. Gongalves # Teatro Oficina (1853-1982) Trajetéria de Ume Rebeldia Cultural ~ Fernando Peixoto * Tio Sam Chega ao Brasil — A Penetracdo Cultural Americana = Gerson Moura ‘+ Um Paleo Brasileiro ~ 0 Arena de Sto Paulo — Sébato Magaldh Renato Ortiz Cultura brasileira e identidade nacional 1? edigéo 1985 edigao i i ° @ o Copyright © Renato Ortiz Capa:, Etiore Bottini Revisiia: José W. S. Moraes José E. Andrade brasiliense Editora Br R. General Jardim, 160 01223 — Sao Paulo — SP. Fone (011) 231-1422 iense S.A. Indice Introducao . . 7 ‘Meméria coletiva e sincretismo cientifico: as teorias ra- ciais do século XIX ‘ 2B Daraca a cultura: a mesti¢agemeonacional.......... 36 Alienagio¢ cultura: o ISEB . feed Da cultura desalienada a cultura popular: CPC daUNE 68 Estado autoritérioe cultura . 79 Estado, cultura popular e identidade nacional ......... 17 Bibliografia . 5 143 adescoberta: Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Pascoa Topamos aves Ehouvemos vista de terra (Pero Vaz de Caminha, Poesia Pau-Brasil) Introducao__ Otema da cultura brasileira da identidade nacional € ‘um antigo debate que se trava no Brasil, No entanto, ele per- manece atual até hoje, constituindo uma espécie de subsolo estrutural que alimenta toda a discussto em torno da que é nacional, Os diferentes autores que tm abordado a questao concordam que seriamos diferentes de outros povos oa paises, sejam eles europeus ou norte-americanos. Neste sentido, a cri- tica que os intelectuais do século XIX faziam & “‘cépia” das jidéias da metropole é ainda valida para os anos 60, quando se busca diagnosticar a existéncia de uma cultura alienada, im- portada dos paises centrais. Toda identidade se define em re- lacdo a algo que Ihe ¢ exterior, cla é uma diferenga. Poderia- ‘mos nos perguntar sobre o porqué desta insisténcia em bus- ‘carmos uma identidade que se contraponha ao estrangeiro. Creio que a resposta pode ser encontrada no fato de sermos uum pafs do chamado Terceiro Mundo, o que significa dizer que a pergunta é uma imposig4o estrutural que se coloca a partir da propria posicia dominada em que nos encontramos no sistema internacional. Por isso autores de tradigbes dife- rentes, e politicamente antagOnicos, se encontram, ao se for- mular uma resposta para o que seria uma cultura nacional. Porém, a identidade possui ainda uma outra dimenséo, que é interna. Dizer que somos diferentes nfo basta, € necessario 6 RENATO ORTIZ. mostrar em que nos identificamos, Este é 0 ponto polémico, 0 divisor de aguas entre autores como Gilberto Freyre e Alvaro Vieira Pinto. Se existe uma unidade em afirmarmos que 0 Brasil € “distinto” dos outros paises, o consenso est longe de se estabelecer quando nos aproximamos de uma possfvel defi- nicdo do que viria a ser onacional. O objetivo deste livro € retomar as diferentes maneiras como a identidade nacional e a cultura brasileira foram consi- deradas. Minha preocupacio inicial foi a de compreender como a questo cultural se estrutura atualmente no interior de uma sociedade que se organiza de forma radicalmente distinta do passado, pois, na medida em que o capitalismo atinge no- vas formas de desenvolvimento, tem-se que novos tipos de or- ganizagao da cultura sao implantados, em particular a partir de meados dos anos 60. Dentro deste contexto, qual o signi cado da nogao de cultura brasileira? Qual o sentido de uma identidade ou de uma meméria que se querem nacionais? Fo- ram essas perguntas, que estilo subjacentes no texto, que me orientaram, inclusive no estudo relativo aos intelectuais do fi- nal do século XIX, De certa forma, o passado se apresentava para mim como uma maneira de se conhecer ¢ entender me- Ihor o momento presente. Neste sentido é interessante ressal- tar que a problemitica da cultura brasileira tem sido, e per- manece, até hoje, uma questo politica. Como o leitor poder’ perceber, eu procuro mostrar que a identidade nacional esté profundamente ligada a uma reinterpretago do popular pelos grupos sociais e A prépria construc do Estado brasileiro. Mas, ao colocar o debate dentro desta perspectiva, eu tive, de enfrentar um problema que se tornou cldssico na discusstio da cultura brasileira: o de sua autenticidade. Como veremos no tiltimo capitulo, creio que € 0 momento de reconhecermos que toda identidade & uma construgio simbélica (a meu yer necessfria), o que elimina portanto as dividas sobre a veraci- dade ou a falsidade do que é produzido. Dito de outra forma, no existe uma identidade auténtica, mas uma pluralidade de identidades, construidas por diferentes grupos sociais em dife- Tentes momentos hist6ricos. O “pessimismo” de Nina Rodri- gues, 0 “otimismo” de Gilberto Freyre, 0 “projeto” do ISEB Sto as diferentes faces de uma mesma discussfo, a da relagio entre cultura ¢ Estado. Na verdade, falar em cultura brasileira é falar em relagdes de poder. Quando os intelectuais do ISEB CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 9 afirmam, por exemplo, que nao existe um pensamento brasi- Ieiro anterior ao modernismo, o que de fato eles esto fazendo ¢ introduzir um corte arbitrério na hist6ria. Eles selecionam um evento para orientar politicamente uma luta ideolégica contra um outro grupo social, que até entfo possuia o mono- polio da definigao sobre o Ser nacional — os intelectuais tra- Gicionais. Nao resta divida de que 0 estudo dos escritores do século XIX mostra a existéncia de um pensamento autéctone, brasileiro. O que me assusta é 0 seu carater profundamente conservador. Na verdade, a Iuta pela definigao do que seria uma identidade auténtica é uma forma de se delimitar as fron- teiras de uma politica que procura se impor como legitima. Colocar a problemética dessa forma é, portanto, dizer que existe uma hist6ria da identidade ¢ da cultura brasileira que corresponde aos interesses dos diferentes grupos sociais na sua relago com o Estado. ‘© que o leitor encontrar4 nos capitulos que seguem éuma tentativa de trabalhar a problemética da maneira que expli- citamos anteriormente. O livro, no entanto, nao foi eserito por um historiador. Nao me preocupei, por exemplo, em estabe- lecer uma periodizagao, ou ainda em esgotar as miliplas de- finigdes que existem sobre o nacional. Tenho consciéncia de que este trabatho poder ser realizado com maior sucesso por historiadores profissionais. © que fiz foi procurar compreen- der o assunto dentro de uma tica diferente da qual ele é ha- bitualmente discutido. Se a histéria se encontra presente na discussio, e nao poderia ser de outra forma, eu parti da An- ‘tropologia, e integrei varios conceitos como de “sincretismo”, “meméria coletiva”, “mito”, simbolo”, em minhas andlises Sobre os autores nacionais. De alguma maneira procurei lé-los como Lévi-Strauss “leu” os mitos primitives. Nao que a and- lise proposta seja estruturalista, mas, ao tratar os diversos dis- cursos sobre o Brasil, recuperei toda uma corrente da Antro- ologia que se inicia com Durkheim e Mauss em seus estudos sobre as categorias de classificagto primitive, e que desigua em autores mais recentes como Victor Turner ¢ Clifford Geertz.’ Por outro lado, me yoltei também para Mauss, cujo (1) Ver Durkheim, Les Formes Elementaires de le Vie Reigiouse, Peis, PUF, 0 Textes, 3 vols., Patis, Ed. Minuit; Marcel Mauss, Anthropalogie e So- 10 RENATO ORTIZ coneeito de totalidade me auxiliou em muito para entender a questo do nacional ¢ sua relado com 0 popular. Nao me preocupei, porém, em realizar toda uma discussio te6rica an- tes da utilizaco dos conceitos. Optei por nao sobrecarregar em demasia o texto, pois poderia perder de vista 0 proprio as- sunto que me propunha tratar. Fica nesta introdugio uma ri- pida observacao para o leitor, o que lhe permite situar 0 pen- samento do autor dentro de um quadro mais abrangente. Mas, se me voltei para a Antropologia na busca de novos horizontes, foi-me necessirio sair dela ao tratar da problema tica da cultura brasileira. A Antropologia Classica, ao se ocu- par das sociedades primitivas, deixa de lado, ou minimiza, uma série de quest6es que so cruciais para o entendimento das sociedades industrializadas. Estado, ideologia, hegemo- nia, intelectuais sio temas que crescem a sombra do pensa- mento antropoldgico mas que ocupam uma posigao de desta- que em outros setores das Ciéncias Sociais. Por isso o antro- pélogo de alguma maneira deve “distorcer” os conceitos ¢ combiné-los a um quadro de andlise que Ihe permita passar para o nivel sociol6gico. E isso que possibilita conferir ao pen- samento uma maior abrangéncia ao mesmo tempo quese pode enxergar a realidade social e politica com novos olhos. Nao creio que esteja propondd com isto uma leitura eclética de autores de tradigbes diferentes, simplesmente sou daqueles que pensam, como Marx e Durkheim (deixando de lado sua inclinagdo positivista), que so tenues as fronteiras entre os campos de conhecimento, e preferem buscar o entendimento da sociedade dentro de uma perspectiva global. ‘Uma iiltima palavra, Os estudos aqui reunidos resultam em grande parte das discussdes realizadas pelo Grupo de So- ciologia da Cultura ligado & Associaeao Nacional de Pés-Gra- duagio e Pesquisa em Ciéncias Sociais. Os varios encontros ‘goes que pessoalmente tomo ao longo de minhas andlises, mas li an PL; Onur, 9h Pars Ea Mn; V. Tar, he Forest bls, des, Comal Urivrsy rot, 1877; C. Gears, & Inara das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. oe | ‘ (CULTURA BRASILEIRA F IDENTIDADE NACIONAL, n sinceramente gostaria de agradecer aos colegas que me propi- ciaram a oportunidade de fazer com eles este debate, Prefiro inao citd-los nominalmente nesta introduce, pois so muitos, mas eles se encontram neste livro no corpo do texto, nas notas de referéncia e na bibliografia sobre o assunto que procurei organizar para o leitor. Pampulha, 21 de agosto de 1984 Memoria coletiva e sincretismo cientifico: as teorias raciais do século XIX* ‘Onque surpreende o leitor, ao se retomar as teorias expli- ‘eativas do Brasil, elaboradas em fins do século XIX inicio do século XX, €a sua implausibilidade. Como foi possfvel a exis- t€ncia de tais interpretacdes, e, mais ainda, que elas tenham se algado ao status de Ciéncias. A releitura de Silvio Romero, Eu- clides da Cunha, Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta dimensio da implausibilidade e aprofunda ‘ROSSA Surpresa, por que nao um certo mal-estar, uma vez que desvenda nossas origens. A questo racial tal como foi colo- ‘cada pelos precursores das Ciéncias Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente racista, mas aponta, para além desia constatacio, um elemento que me parece signifi- eativo e constante na historia da cultura brasileira: a proble- mitica da identidade nacional. Gostaria de tecer nest= capi- tulo algumas reflexdes em torno da Telacdo entre questo ra- cial e identidade brasileira. Acredito que privilegiando um momento da vida cultural poderei talvez apreender alguns as- a ‘Mais gerais das diferentes teorias sobre. cultura brasi- leira, Tomemos como objeto de estudo alguns autores, como Silvio Romero, Nina Rodrigues ¢ Euclides da Cunha. Esta es- (*) Publicado nos Cacernos CERU n? 17, set. 82, 4 RENATO ORTIZ, colha nao é arbitréria; ela privilegia justamente os teéricos que so considerados, e com razdo, os precursores das Cién- cias Sociais no Brasil. O estatuto de precursor revela a posi¢ao desses autores que na virada do século se dedicaram ao estudo conereto da sociedade brasileira, seja analisando suas mani- festacdes literdrias, seja considerando as tradicdes africanas ‘ou os movimentos messiinicos, O discurso que construfram, possibilitou 0 desenvolvimento de escolas posteriores, como por exemplo a escola de antropologia brasileira, que, vincula- da aos ensinamentos de Nina Rodrigues, adquire com Arthur ‘Ramos a configuraco definitiva de ciéncia da cultura. Neste sentido, Silvio Romero, Nina Rodrigues ¢ Euclides da Cunha podem ser tomados como produtores de um discurso paradig- mitico do periodo em que escrevem; tém ainda a vantagem de podermos consideré-to como discurso cientifico, o que de uma certa forma esclarece as origens das Ciéncias Sociais brasj- leiras. Ao se referir ao declinio da hegemonia do romantismo de Gongalves Dias ¢ José de Alencar, que podemos situar em torno de 1870, Silvio Romero arrola um lista das teorias que teriam contribuido para a superacdo do pensamento roman- tico.' Dentre elas, trés tiveram um impacto real junto a intel- ligentsia brasileira: ¢ de uma certa forma delinearam os limi- tes no interior dos quais toda a produgio tedrica da época se constitui: 0 positivismo de Comte, o darwinismo social, 0 evo- lucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa em meados do século XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser con- sideradas sob um aspecto tinico: 0 da evolugao histérica dos povos. Na verdade, 0 evolucionismo se propunha a encontrar um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da histéria; aceitando como postulado que o “simples” (povos primitivos) evolui naturaimente para o mais “complexo” (so- ciedades ocidentais), procurava-se estabelecer as leis que pre- sidiriam 0 progresso das civilizagies. Do ponto de vista poli- tico, tem-se que 0 evolucionismo vai possibilitar A elite euro- péia uma tomada de consciéncia de seu poderio que se consu- lida com a expansdio mundial do capitalismo. Sem querer re- {1} Sivio Romero, Histéria de Literature Brasileira, Rio de Janeiro, José Olympio, 1843, (CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 15 dvziclo a uma dimensio exclusiva, pode-se dizer que evolucio- iso em parte legitima ideologicamente a posi¢&o hegem6- fniea do mundo ocidental. A “superioridade”” da civilizagao européia torna-se assim decorrente das leis naturais que orien- fariam a histéria dos povos. A “importacdo" de uma teoria ‘dessa natureza nao deixa de colocar problemas para os inte- ectuais brasileiros. Como pensar a realidade de uma nagao emergente no interior desse quadro? Accitar as teorias evolu- cionistas implicava analisar-se a evolugao brasileira scb as hu- es das interpretacdes de uma histéria natural da humani- dade; 0 estagio civilizatério do pafs se encontrava assim de imediato definido como “inferior” em relacdo a etapa alcan- ‘ada pelos paises europeus. Torna-se necessirio, pot iss0, ex- plicar 0 “‘atraso” brasileiro’ e apontar para um futero pré- ximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir en quanto povo, isto é, como nagiio. O dilema dos intelectuais desta época é compreender a defasagem entre teoria ¢ reali- dade, o quese consubstancia na construgao de uma identidade nacional. A interpretacdo do Brasil passa necessariamente por esse caminho, dai a énfase no estudo do “‘cardter nacional”, 0 ‘que em iiltima instncia se reportava a formaeao de um Es- tado nacional. O evolucionismo fornece a intelligentsia brasi- Ieira 05 conceitos para compreensio desta problemética; po- rém, na medida em que a realidade nacional se diferencia da européia, tem-se que ela adquire no Brasil novos contornos ¢ eculiaridades. A especificidade nacional, isto é, o hiato entre teoria e sociedade, s6 pode ser compreendido quando combi- nado a outros conceitos que permitem considerar © parqué do “atraso” do pais. Se 0 evolucionismo torna possivel a com- ‘preensdo mais geral das sociedades humanas, é necessirio po- rém completé-lo com outros argumentos que possibilitem o entendimento da especificidade social. O pensamento brasi- Ieiro da época vai encontrar tais argumentos em duas nogdes articulares: 0 meio e a raga. Os parametros raga meio fundamentam o solo episte- mol6gico dos intelectuais brasileiros de fins do século XIX e inicio do século XX. A interpretagdo de toda a histéria brasi- sp. 2), € sugostivo que © cap. Il do lito do Silvio Romero se ntitule “A, Flosofis de Buckle e 0 atraso do pove brasileiro” 16 RENATO ORTIZ, Ieira escrita no periodo adquire sentido quando relacionada a esses dois conceitos-chaves. Nao & por acaso que Os Sertdes abre com dois longos e cansativos capitulos sobre a Terra e 0 ‘Homem:' Silvio Romero, jé em seus primeiros estudos sobre 0 folclore, dividia a populagao brasileira em habitantes das ma- tas, das praias e margens de tio, dos sertdes, e das cidades.’ Nina Rodrigues, em suas andlises do direito penal brasileiro, tece intimeras consideragdes a respeito da vinculagdo entre as caracteristicas psiquicas do homem e sua dependéncia do meio ambiente.’ Na realidade, meio raga se constituiam em categorias do conhecimento que definiam 0 quadro interpre- tativo da realidade brasileira. A compreensio da natureza, dos acidentes geogréfices esclarecia assim os préprios fend- ‘menos econémicos e politicos do pais. Chegava-se, desta for- ma, a considerar o meio como o principal fator que teria in- fiuenciado a legislaciio industrial ¢ o sistema de impostos, ov ainda que teria sido elemento determinante na criagio de ‘uma economia escravagista. Combinada aos efeitos da raga, & interpretagio se completa. A neurastenia do mulato do litoral se contrapie, assim, a rigidez do mestico do interior (Euclides da Cunha); a apatia do mameluco amazonense revela os tra- ‘¢0s de um clima tropical que o tornaria incapaz de atos previ- dentes e racionais (Nina Rodrigues). A histéria brasileira €, desta forma, apreendida em termos deterministas, clima & raga explicando a natureza indolente do brasileiro, as mani- festagdes tibias e inseguras da elite intelectual, o lirismo quen- te dos poetas da terra, o nervosismo ¢ a sexualidade desen- freada do mulato. CO evolucionismo secombina, assim, a dois conceitos-cha- vves que na verdade tém ressonfncia limitada para 0s te6ricos europeus. No entanto, sto fatores importantes para os intelec tuais brasileiros, na medida em que exprimem o que ha de especifico em nossa sociedade. Quando se afirma que o Brasil no pode ser mais uma “c6pia” da metr6pole, esté subenten- dido que a particularidede nacional se revela através do meio (@) Euclides da Cunha, Os Sertées, Rio de Janeiro, Ed. Ouro, (@) Sivio Romero, Cantos Populares no Brasil, Rio de Jan Olympia, 1954. 1G) Nina Rodrigues, As Racas Humenas e » Responsabildade Penal no Bras Rio de Janeiro, Ed. Guarabara,s.4.p. , José ‘CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL v eda raga, Ser brasileiro significa viver em um pats geogr ‘camente diferente da Europa, povoado por uma raca distinta Ga européia, Silvio Romero compreende claramente esta si- fuagtio quando considera o meio e a raga como “fatores in- terns” que definiriam a realidade brasileira.* Ele vai con- trapd-los as “forcas estranhas”, seja, as influéncias estran- geiras que possibilitam uma “imitacao” da cultura européia.” Meio € raca traduzem, portanto, dois elementos imprescin- diveis para a construcio de uma identidade brasileira: 0 na- ‘ional eo popular. A noco de povo se identificando a proble~ mitica étnica, isto 6, a0 problema da constituigdo de um povo no interior de fronteiras delimitadas pela geogralia nacional. Consideremos brevemente a problematica do meio. Uma interpretagdo do atraso brasileiro, corrente entre os intelec- tuais da época, é a do historiador inglés Buckle. Ac procurar analiser @ realidade brasileira em contraposicZo & civilizagio européia, Buckle retoma as perspectivas de outros autores que buseavam entender a evoluc2o histérica do homem. Basica- ‘mente, o que se propunha era yincular o desenvolvimento das civilizagdes a alguns fatores como calor, umidade, fertilidade da terra, sistema fluvial. Em prinefpio, terfamos que todas as Civilizagdes teriam evoluido a partir desses elementos de base. Surge porém a pergunta: se o Brasil contém esses elementos fundamentais, qual a razao da inexisténcia de uma civilizagio nesta parte do mundo? A resposta, pueril, mas convincente para o momento, era simples: por causa dos ventos alisios. Segue-se toda uma argumentagio climatolégica que procura justificar o atraso brasileiro através deste elemento conjuntu- ral, 0s ventos alisios. Resulta dessa interpretagao um quadro (6) Silvio Romero, Historia... op. ct, p. 258. 17} interessante observar que para os autores considerados a ideia de “imitagdo" tem um dupio significado, Um primero nogativa se refere & nego ‘do “copia © procura kanizar o elemento estrangoio superticaimente assim: lado pelos brasiiiros. Por exemplo, Eucides da Cunha acredita que a forea do ‘mestico do interior resuta, em parte, da distancia do serio em relaco 20 tora Em prinsipin, 0 midata ro aval astara mais exbosto ag infuéncias ne {astas © 20s mocismos da metrépole portuguesa. O segundo significado & cla- Famento positivo o se aesocta as teories de Gabriel Tarde, Imitar significa, neste Semtido, se sociaizar, A educacio se dé através do processo de imilacdo, 0 que Bessa a ancinsio da hranea cultural ataves das geracbes. Tarde ¢ um ‘autor citado indmeras vezos pelos intelectuals do periodo, o que mostra que se ddescanhscia a erticas de Durkheim em rela¢8o 8 essa teora da socilizagdo. 16 RENATO ORTIZ acentuadamente pessimista do Brasil, onde a natureza su- planta o homem, a cultura européia tem dificuldades em se enraizar, 0 que determinaria o estdgio ainda bérbaro em que permanece o conjunto da populacdo brasileira, Silvio Romero aceita a interpretacao de Buckle mas a considera incompleta, se prope por isso a aprimora-la com um estudo mais deta- Ihado do meioe particularmente relacionando-o & questo ra- cial. A posigao é idéntica em Euclides da Cunha ¢ Nina Ro- drigues. As criticas que os intelectuais fazem as teorias de Bu- ckle se referem simplesmente aos exageros, ao pouco conhe mento que o autor inglés tinha do Brasil. Blas nao tocam, no entanto, a substdncia de seu pensamento; aceita-se, sem ne- nhum conhecimento critico, 0 argumento do meio como fur damento do discurso cientifico. Um exemplo claro de cont nuidade dessa tradigao é o livro de Euelides da Cunha sobre Canudos. O nordestino s6 & forte na medida em que se insere num meio inéspito ao florescimento da civilizagéo européia, Suas deficineias provém certamente desse descompasso em relaglo ao mundo ocidental, sua forca reside na aventura de domesticagdo da caatinga. Procura-se dessa forma descobrit ‘05 defeitos e as vicissitudes do homem brasileiro (ou da sub- raga nordestina) vinculando-os necessariamente as dificul- dades ou facilidades que teria encontrado junto ao meio am- biente que o circunda. A problemética racial é mais abrangente; Silvio Romero chega a considerd-la como mais importante que a do meio. Na realidade, ela é vista como “a base fundamental de toda a his ‘6ria, de toda politica, de toda estrutura social, de toda a vida estética e moral das nacies”.* A politica de imigrac3o dese yolvida no final do século vem ainda reforgar a importancia deste assunto. Retoma-se assim uma questo que desde mea- dos do século tinha sido considerada tanto pelos viajantes es- trangeiros que permaneceram um curto perfodo no Brasil (Gobineau, Agassiz) quanto pelos autores brasileiros, Couto de Magalhiies havia abordado o problema da mesticagem i digena durante os anos 70; os escritores roménticos descobri- (8! Silvio Romero, Histéria... op. it, p. 185. (8) Couto de Magalies, © Se/vagem, So Paulo, Cla. Ed. Nacional, 1935, oe CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL. 9 ram 0 elemento nativo para promové-lo a simbolo nacional, IAs reflexes em rela¢do ao cruzamento inter-racial sao, no entanto, superficiais e pouco esclarecedoras. O trabalho de Couto de Magalhies é na realidade uma coleta heterogénea de informagées sobre os indios, que um general letrado procura colher a0 longo de sua carreira ‘militar. O romantismo de Gongalves Dias e José de Alencar se preocupa mais em fabri- car um modelo de indio civilizado, despido de suas caracte- risticas reais, do que apreendé-lo em sua concretude."” Por outro lado, nada se tem a respeito das populagies african: ( periodo escravocrata € um longo siléncio sobre as etnias ne- gras que povoam o Brasil. Em sua bricolage de uma identi- dade nacional, o romantismo pode ignorar completamente a presenca do negro. A situacto se transforma radicalmente com o advento da Abolicao. Como fato politico a Aboligao marca 0 inicio de uma nova ordem onde o negro deixa de ser mao-de-obra escrava para se transformar em trabalhador li- wre, Bvidentemente, ele sera considerado pela sociedadle como um cidadao de segunda categoria; no entanto, em relaglo a0 passado tem-se que a problemética racial torna-se mais com- plexa na medida em que um novo elemento deve obrigatoria- mente ser levado em conta. O negro aparece assim como fator dindmico da vida social e econdmica brasileira, o que faz com que, ideologicamente, sua posigao seja reavaliada pelosintelec- tuais e produtores de cultura, Para Silvio Romero e Nina Ro- drigues ele adquire uma importancia maior que a do indio (que se acredita estar fadado ao desaparecimento), ou, como dirdo alguns: “o negro é aliado do branco que prosperou””. Abordar a problemética da mestigagem é na realidade tetomar a metéfora do cadinho, isto é, do Brasil enquanto espaco da miscigenagio. Somente que, aquilo que posterior- ‘mente serd analisado em termos culturais por Gilberto Freyre, se caracteriza como racial para os intelectuais do periodo con- Siderado. Neste momento torna-se corrente a afirmagiio de ue 0 Brasil se constituiu através da fusio de trés ragas fun- damentais: o branen, a negro e 0 india. O quadra de inter- Pretagdo social atribufa porém & raga branca uma posicao de 10) Sobre o romantismo @ sua relago com o nacionalismo ver AntOnio Candido, Formacio da Literatura Brasiler, Sho Paulo, Ed. USP, 19°, — » RENATO ORTIZ. superioridade na construcao da ciyilizacao brasileira. As con- sideragies de Silvio Romero sobre 0 portugués, de Euclides da Cunha sobre a origem bandeirante do nordestino, os escritos de Nina Rodrigues, refletem todos a ideologia da supremacia racial do mundo branco. “Estamos condenados a civilizagao”, diré Euclides da Cunha, o que pode ser traduzido pela andlise de Nina Rodrigues: 1) as racas superiores se diferenciam das inferiores; 2) no contato inter-racial e na concorréncia social vence a raca superior; 3) a hist6ria se caracteriza por um aper- feigoamento lento e gradual da atividade psiquica, moral € intelectual.” Associa-se, desta forma, a questao racial ao quadro mais abrangente do progresso da humanidade. Dentro desta perspectiva, 0 negro e o indio se apresentam como en- traves ao processo civilizatério. E interessante notar que os estudos de Nina Rodrigues sobre as culturas negras decorrem imediatamente de suas premissas racistas; se 6 verdade que procura compreender o sineretismo religioso, é porque o con- sidera como forma religiosa inferior." A absoredo incompleta de elementos catélicos pelos cultos afro-brasileiros demons- tra, para 0 autor, uma incapacidade de assimilacao da popu- lagao negra dos elementos vitais da civilizagfio européia. O sincretismo atestaria os diferentes graus de evolugdo moral € intelectual de duas ragas desiguais colocadas em contacto. Surge assim um problema tedrico fundamental para os “‘cien- tistas” do periodo: como tratar a identidade nacional diante da disparidade racial. Do equacionamento deste problema decorte a necessidade de se sublinhar o elemento mestigo. Na medida em que a civiliza;o européia nao pode ser transplan- tada integralmente para o solo brasileiro (vimos que 0 meio ambiente é diferente do europeu), na medida em que no Brasil duas outras racas consideradas inferiores contribuem para a evolugao da histéria brasileira, torna-se necessério encontrar uum ponto de equilibrio. Os intelectuais procuram justamente compreender e revelar este nexo que definiria nossa diferen ciagdo nacional, O mestigo é para os pensadores do século XIX mais do que uma realidade conereta, ele representa uma (11) Vec Nina Rodrigues, op. ct (12) Ver Nina Rodrigues, L'Animisme Fétichiste de Négres de Bahis, Paris, 1890. CULTURA BRASILEIRA B IDENTIDADE NACIONAL a categoria através da qual se exprime uma necessidade social = a elaboragao de uma identidade nacional. A mesticagem, moral ¢ étnica, possibilita a “aclimatagao” da civilizagao eu- ‘opéia nos trépicos. Esta idéia de aclimatagio, que Couto de Magalhies desenvolve em relagao aos indigenas, e que é reto- jada por nossos intelectuais, parece-me essencial. Afirmar que a raga branca se aclimata nos trépicos significa considerar aexisténcia de um fator diferenciador que deve ser levado em ‘conta, £ do resultado dessa experiéncia aclimatadcra que se pode caracterizar uma cultura brasileira distinta da européia. A temética da mestigagem é neste sentido real e simbélica; coneretamente se refere as condigdes sociais ¢ hist6ricas da amilgama étnica que transcorre no Brasil, simbolicamente conoia as aspiragdes nacionalistas que se ligam a construgio de uma nagio brasileira, Colocada da maneira como a analisamos, tem-se que a problemética da miscigenagdo se apresenta aos intelectuais do perfodo como um dilema. Se por um lado é urgente a elabora- ¢g20 de uma cultura brasileira, por outro se observa que esta se fevela como inconsciente. Vimos que a crenca no determi- nismo provocado pelo meio ambiente desemboca numa pers- ‘pectiva pessimista em relacao as possibilidades braslleiras; as consideragdes a partir das teorias raciais vigentes vao agravar ‘este quadro ainda mais. O mestigo, enquanto produto do cru- Zamento entre racas desiguais, encerra, para os autores da poca, os defeitos e taras transmitidos pela heranca biol6gica, A apatia, a imprevidéncia, o desequilibrio moral e intelectual, @ inconsisténcia seriam dessa forma qualidades naturais do €lemento brasileiro. A mesticagem simbélica tradnz, assim, a Tealidade inferiorizada do elemento mestico concreto. Dentro esta perspectiva a miscigenacdo moral, intelectual eracial do Povo brasileiro s6 pode existir enquanto possibilidade, O ideal nacional é na yerdade uma utopia a ser realizada no futuro, ©u seja, no proceso de branqueamento da sociedade brasi- Ieira. E na cadeia da evoluedo social que poderao ser elimi- Radios os estigmas das “'ragas inferiores", © que polilicamente Goloca a construgao de um Estado nacional como meta e nao ‘como realidade presente. 2 RENATO ORTIZ. Uma interpretagao dissidente Ao estudar as idéins racistas que influenciaram a elite intelectual brasileira, Skidmore propde uma periodizacio in- teressante do predominio dessas idéias: 1888-1914." O pe- iodo demarcado corresponderia & hegemonia de um determi- nado tipo de pensamento que definiria uma intelligentsia bra- sileira; ele constituiria 0 que Sartre denominou 0 Espftito da Epoca, 1888 & a data da Abolicéo da escravatura, mas repre- senta também, particularmente para nés neste ensaio, 0 mo- mento de publicagio da obra mestra de Silvio Romero, Histé- ria da Literatura Brasileira. 1914 simboliza o inicio da Pri- meira Guerra Mundial, isto 6, a emergéncia de um espirito nacionalista que procura se desvencilhar das teorias raciais ¢ ambientais caracteristicas do inicio da Repiiblica Velha. E importante sublinhar a unicidade de um determinado tipo de pensamento que prevalece junto aos intelectuais brasileiros. Nina Rodrigues escreve em fins dos anos 90 e inicio do século, Euelides da Cunha publica Os Sertoes em 1903. Entretanto, neste mesmo ano, Manuel Bonfim esereve em Paris América Latina: Males de Origem.* O livro retoma as mesmas preocu- pagoes dos autores estudados, a questo nacional, mas o re- trato do Brasil obtido contrasta vivamente com 0 anterior. Consideremos as idéias mestras que orientam o estudo de Ma- nuel Bonfim, elas nos permitirdo colocar algumas questées singulares a respeito da histéria da cultura brasileira. ‘Manuel Bonfim se insere no interior dos grandes marcos que delimitam as fronteiras do pensamento da época — Com- te, Darwin, Spencer. No entanto, sua interpretacdo desses au- tores é sui generis e se opde as combinacdes brasileiras que absorvem o evolucionismo aos parametros da raga e do meio. Na verdade, Manuel Bonfim se aproxima algumas vezes do positivismo durkheimiano, cuja inspiraao se encontra na teo- ria bioldgica do social desenvolvida por Augusto Comte. Veja- ‘mos como 0 autor procura diagnosticar os “males” da Amé- fica Latina. {13 7, Stare, foto ms Branco, Rio do Janko, Pas eT, 1976 enue Borie, Amaca ata: Maes de Orgor, Rio de Janet, Ed. A Noite. eee CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 2 ‘Um primeiro ponto chama de imediato a atencdo: a pro- ‘piemitica brasileira somente existe enquanto parte de um sis- tema mais abrangente, o da América Latina, Manuel Bonfim sui uma visio internacionalista que nao encontra corres- pondéncia nos outros autores brasileiros da época. Neste sen- fido a questo nacional se reveste de uma especificidade poli- tica mais geral, pois perguntar-se sobre o Brasil equivale a se jndagar a respeito das relades entre América Latina e Eu- ropa. A compreensdo do atraso latino-americano se liga assim ao esclarecimento das relagdes entre nacdes hegem@nicas e na- ‘ges dependentes. Para explicar esta posicao peculiar a Amé- fica Latina, Manuel Bonfim recorre as teorias de Comte, mas fetém em particular sua comparacao entre a sociedade © os ‘organismos biolégicos. Seu instrumental tebrico pode ser re- sumido através dos seguintes pontos: 1) as sociedades existem ‘como organismos similares aos biol6gicos; 2) existem leis or- giinicas que determinam a evolugao; 3) a anélise da naciona- fidade depende do meio em agdo combinada com seu pas- sado." E necessério observar que o evolucionismo de Manuel Bonfim se refere menos as etapas das sociedades do que uma filiagio a Comte, que enfatiza o estudo do social enquanto organismo biolégico. AAs leis da evolugtio cedem, assim, lugar Asleis biol6gicas, isto é, desloca-se o enfoque evolucionista no sentido da proposta de Comte que desenvolve a analogia entre @ sociedade e os organismos vivos. Este aspecto de Comte é ignorado pelos outros autores brasileiros. Manuel Bonfim se ‘aproxima de alguns autores como Durkheim, para quem 0 biolbgico € modelo de compreensio dos fatos sociais.* Da analogia entre biologia e sociedade chega-se 4 nogo de doen- £4, conceito-chave para o entendimento do atraso latino-ame- ticano, Retomando os argumentos biolégicos, Manuel Bon- fim define a doenga como uma inadaptagao do organismo a Certas condigSes especiais. Desde que as condigSes presentes Se revelem como favordveis, a cura se daria através do conhe- (15) Manuel Bontim, op. cit, p-34. (16) Os argumentos utiizados pele autor lembram mutas vems alguns lestudos de Durkheim, em particular sua "Diviszo do Trabalho Social”. NO an- tanto Manuel Bonfim nfo eta Durkheim em nenhum momento, o que toma aif identicar seu pensamento @ ume possvel eavalargo dukhemians de com, 2 RENATO ORTIZ, cimento da historia da doenca. O paralelo com as sociedades subdesenvolvidas pode entao ser realizado: “aparentemente no hé nada que justifique o atraso em que se véem, as difi- culdades que tém encontrado no seu desenvolvimento. © meio € propicio, e por isso mesmo, diante dest anomalia, 0 socié- logo nao pode deixar de voltar-se para 0 passado a fim de buscar as causas dos males presentes"."” Temos por um lado anecessidade de se conhecer o pasado das nagées latino-ame- ricanas, pois somente através do conhecimento da inadapta- 20 do organismo-sociedade poderemos diagnosticar os pr blemas atuais. Por outro, tem-se que a problematica do meio encontra-se descartada, uma vez que se postula a existéncia de um meio ambiente propfcio & evolucao social. A analogia entre bioldgico e social leva Manuel Bonfimn a ‘construir uma cutiosa teoria do imperialismo baseada em ter- mos de parasitismo social. Podemos resumi-la na seguinte forma: 1) 0 animal parasita possui uma fase depredadora, ‘momento em que ataca sua vitima; 2) durante o periodo para- sitério, o parasita vive da seiva nutritiva elaborada pelo ani- ‘mal parasitado; 3) partindo-se do princfpio de que a “fungi {az 0 6rgio”, tem-se, em certo periodo longo de parasitismo, um atrofiamento dos érgios do animal parasita. A coriclustio natural desta comparacdo é que uma sociedade que vive para- sitariamente das outras tende a degenerar, a involuir. Trans- ferindo-se os resultados das experiéncias biolégicas sobre o parasitismo para o mundo social, pode-se entfo afirmar: “so- bre os grupos sociais humanos, os efeitos do parasitismo so ‘os mesmos. Sempre que hd uma classe ou uma agremiagio parasitando sobre o trabalho de outra, aquela — o parasita — se enfraquece, decai, degenera-se, extingue-se”." Interpreta- se desta forma a exploracao social e econdmica como capitulo de um parasitismo social; as leis biolégicas se referem, por- tanto, mais a uma involugiio da sociedade parasita do que Propriamente as etapas de progresso social da humanidade. Dentro desta inusitada teotia biolégico-social tem-se que as relagées entre colonizador e colonizado sao apreendidas en- ‘quanto relagdes entre parasita e parasitado. Dois momentos (17) M. Bonfim, op. eft, p-35. 118) M. Bonfim op. eft, p60. | CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 2s eruciais determinam esta relagao; o primeiro é relativo a um periodo de expansio agressiva, o segundo a.uma fase de fixa- do sedentéria, O tempo de expansio caracteriza a fase depre- dadora do colonialismo, é 0 momento em que a metrépole pitha as colOnias, seja através da exploraco do ouro, pedras preciosas, destruigio das civilizagdes autéctones, ett. Neste sentido, o escrito de Manuel Bonfim é um libelo contra a opressio das nacdes colonizadoras, Portugal e Espanha. A metropole “suga” as coldnias e vive parasitariamente do tra- balho alheio; a introduco do trabalho escravo vai consolidar ainda mais este estado de parasitismo social. O periodo de fi- ago sedentéria corresponde & implantagao de um regime de dominagao no qual a nagio colonizadora se define como pélo de poder. Esta etapa se define sobretudo pela consolidagio de um Estado forte e conservador que procura através da forga e da tradicZo manter 0 status quo. O resultado dessa situa- ‘gio colonial é duplo: por um lado tem-se que a metrépole tende a se degenerar, a inyoluir,” por outro essa dimensao de degenerescéncia se transmite aos proprios colonizados. O etrato das nagdes latino-americanas pintado por Manuel Bonfim é céustico: “Iutas continuas, trabalho escravo, Es- ado tirdnico e espoliador — qual seré o efeito de tudo isto sobre o cardter das novas nacionalidades? Perverstio do sen- so moral, horror ao trabalho livre e A vida pacifica, édio ao governo, desconfianga das autoridades, desenvolvimento dos instintos agressivos”.” Analisar o Brasil dentro de uma visio do parasitismo so- cial significa consideré-lo na sua inter-relacdo com 4 metré- pole portuguesa. No entanto, na medida em que 0 colonizado € educado pelo colonizador, tem-se que aquele procura imi- ‘té-lo, As mazelas do “animal” parasita se transmitem, assim, hereditariamente para o parasitado. Das qualidades transmi- tidas que definiriam o caréter brasileiro, duas delas Manuel Bonfim considera como as mais funestas: 0 conservantismo ¢ ‘falta de espfrito de observaciio. O conservantismo decorre da (19) M, Bonfim interpreta desta forma o atraso de Portugal « Espanta, ‘as se esquece de que o progresso das demals nacBes européias se dove so: bretudo & expansto colonialista que sua andlise biologioa nfo consague Inte: rar. (20) M. Bontfim, op. ct, p. 178 % RENATO ORTIZ posigaio do colonizador, que procura, euste 0 que custar, man- ter a tradigdo que the assegura 0 poder. Explica-se dessa for- ma o horror com que os brasileiros encaram todo projeto de mudanga social; 0 apego as tradigdes conservadoras traduz na verdade uma dificuldade em se colocar diante do progresso social. A critica de Manuel Bonfim se dirige principalmente 05 politicos e intelectuais, que ele considera como essencial- mente conservadores. A falta de espirito de observag4o corres- ponderia a uma incapacidade de se analisar e compreendet a propria realidade brasileira. O abuso dos “‘chavoes ¢ aforis- ‘mos consagrados” (o bacharel), a imitagdo do estrangeiro se- m fatores que contribuiriam para o florescimento dessa miopia nacional. Paralelamente a essas qualidades negatives transmitidas pelo colonizador, mas reelaboradas pelo colonizado, outras, de origem indigena e negra, se integram ao espirito brasileiro. Porém, contrariamente a Nina Rodrigues, Silvio Romero ou Euclides da Cunha, o autor considera a mistura racial como “renovadora”’, no sentido de que tenderia a reequilibrar os elementos negativos herdados do colonizador. Nao nos faga- mos porém grandes ilustes. Dentro do pensamento positivista da época, Manuel Bonfim toma partido pelo progresso, isto é, pela civilizagao européia. O carater “renoyador" das culturas negra € india nao possui, como o da cultura portuguesa, as qualidades que possibilitam orientar o progresso no sentido da evolugdo da sociedade; entretanto tal afirmagao se da sem que se faga apelo as teorias racistas vigentes. Pelo contrario, todo ‘© capitulo relativo ao cruzamento racial procura refutar tais teorias que predominavam junto 4 elite intelectual brasileira, Recusa-se dessa forma as qualidades de indoléncia, apatia, imprevidéncia atribuidas seja ao mestigo, seja aos negros ou ‘indios. Manuel Bonfim vai ainda mais longe ao denunciar essas teorias como ideologias que procuram legitimar uma si- tuagio de exploragao em detrimento das nacdes subdesenvol- vidas. “levada a pratica a teoria (racista) deu o seguinte resultado: vao os povos ‘superiores’ aos paises onde cxistem: esses poyos ‘inferiores’, organizam-lhes a vida conforme as suas tradigGes — deles ‘superiores’ —, instituem-se em classes dirigentes e obrigam os inferiores a trabalhar para sustenti- los; e, se estes no o quiserem, entZo que os matem e eliminem de qualquer forma, a fim de ficar a terra para os superiores: CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL 2 os ingleses governem o Cabo, e os cafres cavem as minas; se- jam 08 anglo-saxdes senhores e gozadores exclusivos da Aus- tralia, e destruam-se os australianos como se fossem uma es- pécie daninha...Tal 6 em sintese a teoria das ragas inferio- ros”. A passagem é clara, através dela pode-se perceber que 9s autores como Gobineau e Agassiz sio substituides por ou- ros, como, por exemplo, Topinard, o que possibilita a M. Bonfim fundamentar seu discurso contra uma pretensa desi gualdade das ragas humanas, A “copia” das idéias estrangeiras As anilises de Manuel Bonfim, quando comperadas ao pensamento dominante da infelligentsia brasileira, colocam um problema recorrente na hist6ria da cultura nacional: o da absorgao das idéias estrangeiras. Se levarmos em conta o tes- temunho de diferentes criticos do pensamento brasileiro, nos deparamos de imediato com a questio da “imitagao”. Parece ter-se transformado em senso comum a tese do Brasil en- quanto espaco imitativo. Os protagonistas da Semana de Arte Moderna denunciaram ao infinito esse trago do “cariter bra- sileiro’’, que Manuel Bonfim chamava de “alta de espfrito de observacio”, ou que Silvio Romero combatia em seus estudos literarios. Particularmente durante o periodo estudado tem-se a impressio, através dos proprios criticos, de que o Brasil se- ia um entreposto de produtos culturais provindos do exterior, A ltima moda, em particular a parisiense, aportava no Rio de Janeiro para ser em principio consumida sem maiores pro- blemas. Se aceitisscmos esse quadro explicativo para com- Preender a penetragto das idéias estrangeiras junto aos inte- Iectuais brasileiros, como interpretar a diferenga profunda entre autores como Manuel Bonfim e Nina Rodrigues? Ro- Berto Schwarz, em seu debate sobre as ‘‘idéias fora do lugar”, afirmava que as idéias “viajam”;” como entender nc entanto ofato de algumas idéias chegarem ao porto de destino outras (21) . Bonfim, op. et. p. 90, (22) Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batetas, Sio Paulo, Pee 2 ‘Ao Vencedor as Botatas, So Paulo, Duas Ci 28 RENATO ORTIZ no? Gostaria de retomar esta problematica constante da his- t6ria brasileira e recolocé-la para nosso caso particular das Ciéncias Sociais. Focalizaremos especificamente o quadro das teorias raciais elaboradas na Europa, e que predominam junto Aclite brasileira entre 1888-1914. ‘Ao se consultar as origens das teorias raciol6gicas, ob- serva-se que elas floresceram sobretudo em meados do século XIX.” Retzius, anatomista e antropélogo sueco, desenyolve uma técnica para medidas cranianas em 1842. Pierre Borca funda a primeira sociedade de Antropologia em Paris em 1859, ¢ se especializa em craniologia, Quatrefages € professor de anatomia e etnotogia no Museu de Histéria Natural de Pa- ris em 1855 — seu livro L’Espéce Humaine € de 1877. O mo- mento cientifico é de fundagio de uma antropologia profissio- nal que se volta para os estudos anat6micos e craniolégicos, procurando responder assim as indagagdes a respeito das dife- rengas entre os homens. A questo no eta nova, pelo contré- rio, j4 se encontrava em Spencer, Darwin ¢ outros autores; no entanto, 0 que caracteriza as andlises raciologicas de entio uma multiplicagao de experiéncias empfricas que aparente- mente legitimam o estatuto cientifico das teorias construidas. Este proceso de legitimagdo é fundamental, pois 0 espirito positivista que predomina requer a confirmagao empitica dos argumentos enunciados teoricamente. Meados do século também o momento da vulgarizagao das idéias a respeito da evolugao social ¢ seu vinculo imediato com as premissas ra- ciais. Gobineau publica Essais sur les Inégalités des Races Humaines em 1853-1855, Agassiz publica seu Journey in Bra- zil em1868. Esses dois autores terao uma influéncia direta junto aos intelectuais brasileiros na medida em que assimilam ‘as teorias da época ao problema da mesti¢agem brasileira,” Como viajantes ilustres — Gobineau era amigo intimo do im- perador D. Pedro If — sto considerados como ponto de refe- réncia de toda e qualquer discussio a respeito da situagao ét- nica. Existe porém uma defasagem entre o tempo de matu- Tago das teorias raciais (e suas vulgarizagdes) ¢ © momento (231 Ver Walter Scheid, "The Concept of Race in Anthropology”. (24) Sobre influéncia de Gobineau e Agassiz ver Skidmore, op. cit: ‘CULTURA BRASILEIRA E IDENTIDADE NACIONAL » ‘em que os intelectuais brasileiros escrevem. Entre meados e fins do século a teoria raciol6gica sofre uma reviravolta com as criticas que vem recebendo da parte de diferentes antrop6lo- .g0s. Um artigo de Boas, escrito em 1899, retrata claramente 0 impasse cm que se encontram os estudos anattmicos ¢ etno- 1égicos das racas.* Na Franga, Paul Topinard, discipulo de Broca, estabelece a distingao entre raga e “tipo”, e argumenta ‘no sentido da dificuldade de se falar em ragas biologicas. Es- ereyendo em 1892, coloca claramente a inconseiéncia de se assimilar a raga as nacionalidades: “The ethnographers would no longer have do busy themselves with anything but what is the direct object of their studies, as the etymology of their name would have its peoples: the manner of their historical formation; the languages they spoke; the socio-physiological characters they manifest; their manners and customs; their beliefs... One of the happiest results of this definition of terri- tory would be once an for all the elimination from anthropo- logy of this question of nationality which is none of its busi- ness". Os estudos de Denicker — Les Races de l'Europe — vyvém reforcar a critica As antigas teorias raciais, uma vez que se considera o proprio conceito de raga como aplicavel ao reino da zoologia mas nao as sociedades humanas. E interessante observar que durante os anos 90 jé se desenvolvem os traba- Ihos de Boas (que terao influéncia posterior em Gilberto Frey- re), onde a nocao de raca cede Ingar A nogao de cultura. Por outro lado, neste mesmo periodo se da a emergéncia da escola sociologica durkheimiana que ter4 influéncia decisiva no pen- samento antropol6gico da época. L’Année Sociologique é fun- dada em 1896 e os principais trabathos de Durkheim datam dessa época. A concepcio durkheimiana de sociedade como fato sui generis orienta o estudo do social para uma perspec- tiva radicalmente diferente da problemdtica das racas ou do meio (pot exemplo, Le Play). Uma primeira conclusdo se impde. No momento em que 8 teorias raciolégicas entram em declinio na Europa, elas se apresentam como hegemOnicas no Brasil. Torna-se, assim, di- 25) F. Boas, "Some Recent Criticiam of Physical Anthropology”, fn Race, Langage and Culture, Nova lorque, McMilan, 1848. (26) Paul Topinard, “On Reco". x RENATO ORTIZ ficil sustentar a tese da “imitagao”, da “‘cépia” da

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