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HISTORIA
HISTÓRIAS SOLTAS DESTAQUE
ALÉSIA: GLÓRIA DE CÉSAR A NEGRA SAGA
E PESADELO GAULÊS DE JOANA
DE TRASTÂMARA,
A EXCELENTE
TEMA DE CAPA
SENHORA

PESCADORES
VS. INVASORES
A REVOLTA
REVOLTA DE
DE OLHÃO,
OLHÃO EM
EM 1808,
1808 ENQUADRADA
ENQUADRADA
PELOS MOTINS POPULARES CONTRA OS FRANCESES
EM TODA A PENÍNSULA IBÉRICA

ANTÓNIO VENTURA DESMISTIFICANDO A MAÇONARIA Jornal de Notícias


N.º 42 / FEVEREIRO / 2023
002
A ABRIR

Pórtico ÍNDICE

“Vivere parvo” * 10
TEMA DE CAPA

não é ser parvo


A revolta de Olhão, em
1808, no contexto dos
levantamentos populares
na Península

40
DESTAQUE
Pedro Olavo Simões D. Joana de Trastâmara,
Coordenador editorial “Beltraneja” em Castela,
“Excelente Senhora”
em Portugal
Por vezes, os apelos à razoabilidade parecem uma inglória
batalha contra moinhos de vento, conduzindo-nos a fórmulas 56
retóricas menos elegantes, para com elas fazer pulsar, de ENTREVISTA
AntónioVentura
novo, neurónios hoje esmagados por corações. Ou seja, tão
longe do século XVIII, temos de insistir no primado da razão,
luz desejada sobre a obscuridade de emoções imponderadas.
76
HISTÓRIAS SOLTAS
Passemos, pois, à deselegância retórica (sem exageros Alésia,
vernaculares, claro: nestes dias, independentemente do palco da vitória
de Júlio César sobre
posicionamento de cada campo face ao seu antagonista, os gauleses e causa
quando uns veem parvoíce no oponente reagem sendo de polémicas 003

parvos em sentido contrário. sem fim


Por exemplo, se uns insistem na parvoíce da gesta lusitana
a iluminar o mundo, outros retorquem com a parvoíce da
autoflagelação pelo passado colonial (pondo nesciamente
cinco ou seis séculos no saco “colonial”). O problema é que
a parvoíce chega aos locais de produção do conhecimento.
Notícias recentes dão conta de uma editora britânica de topo
que, tendo contrato assinado para publicar um ensaio de um
emérito teólogo e historiador de Oxford, preferiu romper o
acordo depois de o texto, antes acolhido com entusiasmo, ter
sido criticado por apontar aspetos positivos do colonialismo.
Em universidades britânicas, noticia o jornal “The Telegraph”,
graus académicos podem ser negados a quem está na reta final
da sua maratona de estudo, caso haja denúncias de
comportamentos ou ideias “incorretas” (“wrongthink”, pensar Capa:
errado, no original). É ou não uma refinada parvoíce?... “Lo mismo”, gravura de Francisco
Goya inserida na série “Los desastres
* máxima latina significando “viver com pouco” de la guerra” (1810-1815)

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A ABRIR

Acontece
Intervenção de Portugal
desenhado
fundo no Mosteiro nos secs.
da Batalha XVIII e XIX
Foi apresentado o plano de interven- Até 12 de março é
ções no Mosteiro da Batalha. A pri- ainda possível visi-
meira fase, orçada em 1,1 milhões de tar, no Museu
euros, estará concluída em maio pró- Nacional de Arte
ximo e tocou os claustros, a adapta- Antiga, em Lisboa, a
ção de espaços para portaria ou a ins- exposição “Por
talação de uma nova loja. Outra fase, Terras de Portugal -
inscrita no Plano de Recuperação e Desenhos dos sécu-
Resiliência e orçada em cerca de 1,6 los XVIII e XIX.
milhões, tocará as coberturas da Sala Alinhando numa
do Capítulo, o jardim do claustro, o tendência que surgi-
sistema elétrico e equipamentos de ra na Europa do
segurança integrada e as Capelas Im- século XVII, registos
Decisões perfeitas. Uma intervenção de maior deste tipo são uma
sobre escala (fachada e interior da igreja) preciosa viagem no
património será programada posteriormente. tempo e no território.
imóvel
Foram publicados
em Diário da
República os decre-
004 tos de atribuição da
classificação de
Muda classificação “monumento nacio-
nal” ao Terreiro da
do megalitismo Batalha dos
alentejano Atoleiros (concelho
de Fronteira, distrito
O processo de classificação do mega- de Portalegre) e ao
litismo alentejano como conjunto de Mosteiro do Santo
interesse nacional (independente- Sepulcro (ou Águas
mente das classificações isoladas de Santas), em Penalva
monumentos e sítios inscritos no do Castelo, distrito
conjunto) sofreu uma alteração, atra- de Viseu. Foi tam- A prole de Genghis Khan
vés de despacho do diretor-geral do bém anunciado o
Património Cultural publicado em projeto de atribuir Não será das mais prementes questões historiográficas,
Diário da República. O procedimento igual classificação embora desperte facilmente a curiosidade do público. Ha-
original, em setembro de 2021, con- aos Banhos verá na população mundial, hoje, 16 milhões de descen-
templava 2049 monumentos e sítios, Islâmicos de Loulé, dentes masculinos de Genghis Khan (ou Gengiscão, num
mas essa lista foi agora reduzida para correndo até 30 de hoje pouco usado aportuguesamento, mas na realidade
1628 elementos, localizados em 45 março o prazo para chamado Temujin), o grande imperador mongol que vi-
concelhos de cinco distritos. Decorre que os interessados veu nos séculos XIII e XIV da Era Cristã. É uma estimativa
agora o período de consulta, estando possam pronun- feita por cientistas, mas que não pode ser provada, sendo
os vários processos disponíveis nos ciar-se. certo que reduz bastante outro palpite, alvitrado em 2003
sites da DGPC, da Direção Regional pela Sociedade Americana de Genética Humana, pelo
de Cultura do Alentejo e dos diversos qual um em cada 200 homens em todo o mundo descen-
municípios onde há monumentos in- deria do grande Khan. Que se julga ter tido, ao longo da
cluídos na lista. vida, relações sexuais com algumas 2000 mulheres.

NÚMEROS 7 pirogas monóxilas (secs. IV a II a.C.)


encontradas até à data no Rio Lima 3 de abril - fim do prazo de candidatura
ao Prémio Museu do Ano EMYA 2024
Lapsos
na edição
Restauro em Guimarães de dezembro
A igreja de São Miguel do Castelo, que, em conjunto com o castelo de Guima- da JN História
rães e do Paço dos Duques de Bragança, forma um dos mais importantes e
mais visitados conjuntos monumentais do país, está a ser alvo de uma emprei- Um problema informático,
tada de reabilitação, sob a égide da Direção Regional de Cultura do Norte. A relacionado com a trans-
intervenção no edifício, classificado como Monumento Nacional desde 1910, missão de páginas para a
tem um prazo de execução de 120 dias e está orçada em cerca de 77 500 euros, gráfica em que a revista foi
financiados no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Estão previstas impressa, fez com que a ru-
obras como a reabilitação da cobertura, a limpeza de fachadas e vãos, a imple- brica “Histórias cósmicas” 005
mentação do sistema de drenagem periférica do imóvel e, ainda, melhorias vi- da edição N.º 41 da JN Histó-
sando a salvaguarda das pedras tumulares existentes no pavimento. De um ria (páginas 92 e 93), assina-
modo geral, pretende-se melhorar a experiência propiciada aos visitantes. da pelo divulgador de ciên-
cia Miguel Gonçalves, fosse
ilustrada com uma bizarra e
Igreja Capa de honras de Miranda escura imagem, pratica-
de São Tiago mente indiscernível. Em
em Tondela do Douro no inventário respeito pelos leitores, pe-
protegida do património imaterial nitenciamo-nos, reprodu-
zindo aqui a fotografia de
A igreja matriz de O processo de confeção da William Shockley, o contro-
Santiago de capa de honras de Miranda verso cientista em torno de
Basteiros, no conce- do Douro foi inscrito no In- quem o artigo estava cen-
lho de Tondela, tes- ventário Nacional do Patri- trado. Na mesma edição,
temunho da passa- mónio Cultural Imaterial, um lapso de transcrição na
gem por aquela zona pela Direção-Geral do Patri- entrevista com o arqueólo-
da Beira Alta do mónio Cultural, tendo a de- go Luís Raposo fez com que
Caminho de cisão sido já publicada em o atual diretor do Museu
Santiago, foi classifi- Diário da República: “A Nacional de Arqueologia,
cada como imóvel DGPC reconhece a necessi- António Carvalho, fosse er-
de interesse público. dade de salvaguarda urgente radamente referido como
Uma imagem do a este saber-fazer, que atual- “António Tavares”. Fica aqui
apóstolo é, aliás, mente está apenas na posse feita a correção, com o ne-
peça central na de três artesãs em Portugal, cessário pedido de descul-
imponente fachada na vila de Sendim, onde con- pa, tanto ao entrevistado
tardo-barroca. fecionam estas peças.” como ao nomeado.

25 Volume da Revista Portuguesa


de Arqueologia foi editada pela DGPC 1 ano depois, reabriu ao público a restaurada
igreja de São Miguel de Armamar
A ABRIR

Bicentenário do liberalismo

006

Uma montra
Alegoria da Constituição,
pintada por Domingos Sequeira
em pleno triénio vintista

do Alto Minho
faz luz sobre
eleições de 1822
Texto de Pedro Olavo Simões
tivos o destaque que aqui lhe damos. utilização do prefixo “micro” poderá
Trata-se do segundo de três volumes parecer diminuidora, mas a verdade
de uma série intitulada “Para a histó- é que resulta exatamente no inverso:
ria da representação política em Por- ao contrário dos exercícios estrita-
tugal”, abordando as primeiras elei- mente de história local ou biográfi-
ções parlamentares (diríamos hoje cos, que buscam a parte pela parte, a
“legislativas”) realizadas no país, fo- micro-história é o processo de busca
cando o processo no círculo eleitoral do todo a partir da parte. Ou seja,
de Arcos de Valdevez, distrito de Via- questiona-se algo específico e apa-
na do Castelo. rentemente restrito (no caso, um
Não é toda a estima que possamos círculo eleitoral do Alto Minho) para
ter por Arcos de Valdevez ou pelo obter respostas sobre uma realidade
Alto Minho, de um modo geral, que bem mais ampla (no caso, um pro-
justifica tal destaque, tal como não o cesso eleitoral que envolveu todo o
terá sido, por parte dos autores, para país, possessões ultramarinas in-
lhe consagrar as quase 600 páginas cluídas).
deste volume. A importância, desde “Essa documentação permitiu-nos,
logo historiográfica, está em como não somente corroborar e consolidar
um estudo de caso pode ser decisivo conclusões que decorriam da análi-
para se conhecer melhor a ampla se da Constituição [nota JNH: aprova-
realidade de todo um processo elei- da em 23 de setembro de 1822] e da
toral, até agora pouco conhecido de- legislação eleitoral e de fontes bi-
vido à escassez de documentação. bliográficas disponíveis sobre vários
Justamente porque o círculo centra- temas das eleições (assembleias de
do no referido concelho, uma das voto, juntas eleitorais concelhias, ir-
quatro “divisões eleitorais” em que regularidades eleitorais, protagonis-
então se dividiu a província do Mi- mo de párocos, etc.), mas também 007
nho (ao todo, o círculo englobava 14 considerar novos aspetos, como por
concelhos e 200 freguesias, elegendo exemplo, a taxa dos eleitores recen-
quatro deputados), propiciou a exis- seados na população masculina em
tência ainda hoje de um importante geral, assim como fazer estimativas
corpus documental relativo ao pro- sobre a taxa de abstenção nessas
cesso: as eleições foram impugnadas primeiras eleições parlamentares”,
e anuladas, e todas as atas eleitorais escrevem Moreira e Domingues, no-
estão reproduzidas no processo en- tando o que de novo (“há momentos
tão enviado às Cortes, hoje à guarda felizes na pesquisa histórica!”) estas
do Arquivo Histórico Parlamentar. fontes permitem obter.
Nada de exagero há, apenas de justo Como se não bastasse, os autores Contrariamente ao que sucedeu,
e relevante, em insistir nas páginas descobriram, no decurso da investi- por exemplo, com a II República
desta revista na importância que dois gação, o “livro de matrícula” dos elei- Francesa, instaurada em 1848 e
investigadores, Vital Moreira e José tores da freguesia da Areosa (Viana comprometida logo na primeira
Domingues, têm tido na construção do Castelo), ou seja, o caderno de re- eleição legislativa, ganha esmagado-
de conhecimento relativo à instaura- censeamento eleitoral, podendo, ao ramente por conservadores (monár-
ção do liberalismo e ao primeiro cruzar essas com muitas outras fon- quicos) por via do sufrágio alargado,
constitucionalismo português. Um tes, chegar a uma visão mais nítida os portugueses adeptos da Consti-
eminente constitucionalista e um his- do que alguma vez houve sobre o tuição ainda conseguiram vencer
toriador dedicado ao estudo do direi- processo eleitoral em todo o país. estas eleições de 1822, apesar de o
to têm, a quatro mãos, aproveitado Nem de propósito, nesta edição de- “partido” anticonstitucional ser bas-
como mais ninguém a oportunidade cidimos, na página que reservamos tante expressivo. Todavia, as Cortes
proporcionada pelo segundo cente- para notas biográficas de historiado- resultantes deste processo acaba-
nário da Revolução Liberal de 1820, res, dar destaque ao italiano Carlo ram por ser suspensas, logo em ju-
produzindo extensa bibliografia, al- Ginzburg, ainda vivo e um dos pre- nho de 1823, na sequência da Vila-
guma dela baseada em artigos que vi- cursores daquilo a que se chama mi- francada, golpe absolutista liderado
ram a luz nas páginas da JN História, cro-história, corrente em que, sem por D. Miguel em maio do mesmo
mas o mais recente volume que pu- qualquer hesitação, podemos inserir ano. A longa história da luta pelo li-
blicaram, numa edição da Assembleia este trabalho. A quem não estiver fa- beralismo estender-se-ia até 1834,
da República, merece por vários mo- miliarizado com tais designações, a mas não a contamos aqui.
008
ROSTOS DA HISTÓRIA

Carlo Ginzburg
(n. 1939)

C
orria o ano de 1976 quando em Itália foi de caos, em que os elementos (terra, ar, água e fogo) esta-
dado à estampa um livro intitulado “Il for- vam todos misturados, e desse caos formou-se uma massa,
maggio e i vermi”, cuja tradução é “O quei- tal como o queijo se forma a partir do leite, no seio da qual
jo e os vermes” – título aparentemente bi- surgiram vermes, que eram os anjos, entre os quais estava
zarro, mas sem dúvida apelativo, de um li- Deus, ele próprio surgido da mesma massa. Essa visão do
vro que não trata de gastronomia, mas que, aparecimento do cosmos, que não interessa aqui estender
a partir de um pequeno caso, o julgamen- mais, foi extraída do processo do moleiro por Carlo
to de um moleiro italiano pela Inquisição, no século XVI, al- Ginzburg, que, combinando as origens da literacia de Me-
cança um quadro bem mais vasto de história cultural e das nocchio, incomum entre as classes baixas, com as leituras
mentalidades. É um trabalho especialmente relevante pela que o terão formado (livros que tinha na sua posse mas não
inovação que constituiu enquanto estandarte de um novo foram registados, por não constarem do index inquisitorial),
caminho que então se abria para a historiografia, o cami- insere-o numa ainda persistente (ao tempo) cultura popu-
nho da micro-história. O autor chama-se Carlo Ginzburg, lar, formatada por crenças camponesas pré-cristãs, de raiz
nasceu em Turim, em 15 de abril de 1939, doutorou-se na naturalista. Ou seja, através desse pequeno caso foi possí-
Universidade de Pisa, em 1961, e fez carreira em instituições vel atingir um retrato cultural, correspondente àquele tem-
italianas e americanas, como, entre outras, a Uni- po e àquela região, que o estudo sistemático de um
versidade de Bolonha ou a UCLA (University of grande corpus documental (a generalidade dos
California, Los Angeles). É reconhecido como processos da Inquisição daquele tempo) facil-
um dos mais influentes historiadores dos mente deixaria escapar. Sem negar os cami- 009
nossos tempos, em boa parte por essa di- nhos da escola dos “Annales”, de que ele
ferente abordagem de que foi pioneiro, a próprio era efetivamente um fruto,
par de outros autores como o também Ginzburg apontou um novo rumo cuja
italiano Giovanni Levi, nascido no mes- validade ajudou a demonstrar.
mo ano e no mesmo mês. Nenhum de- Ao longo da sua carreira, Ginzburg
les usou a expressão “micro-história” tem recorrido persistentemente à mi-
pela primeira vez (outros o haviam fei- cro-história, através dela tocando temas
to, desde o século XIX, dando-lhe sen- diversificados como a bruxaria, a cultu-
tido pejorativo), mas deram-lhe a di- ra popular, o Renascimento, a ciência. E
mensão que hoje tem. Trata-se de olhar tem sido sempre um cidadão interventi-
as pequenas coisas, mas não de fazer a his- vo. Promovendo o desenvolvimento do sa-
tória das pequenas coisas. É algo que se re- ber histórico, ao conseguir, com o seu pres-
sume, se quisermos tornar as coisas facil- tígio, levar a Santa Sé ao conceder o acesso
mente entendíveis, na ideia de focar objetos de de investigadores credenciados aos arquivos da
estudo restritos – um episódio, uma cidade, uma Inquisição existentes no Vaticano, ou até lutando
pessoa – para deles extrair um retrato bem mais alar- pelo valor supremo da liberdade de expressão, ajudan-
gado de um tempo ou de uma sociedade, fazendo também do a travar um projeto de lei que visava criminalizar, em Itá-
uso de uma interdisciplinaridade que a historiografia do sé- lia, a negação do Holocausto e defendendo que as leis do
culo XX já vinha desenvolvendo. Um ensaísta americano país já eram suficientes. Note-se que Ginzburg, ele próprio,
resumiu bem a ideia, notando que consiste em fazer “gran- é tudo menos negacionista. Filho de Leone Ginzburg, um
des perguntas em locais pequenos”. intelectual antifascista italiano, judeu e nascido em Odessa
“O queijo e os vermes”, subtitulado “O cosmos de um mo- (Ucrânia), e de Natalia Ginzburg (nascida Levi), escritora na-
leiro de quinhentos”, é um perfeito exemplo disso, para mais tural da Sicília e filha de pai judeu, também ela uma ativis-
sendo considerada a mais difundida de todas as obras escri- ta antifascista que chegou a militar no Partido Comunista
tas no âmbito da micro-história. O ponto de partida do his- Italiano, nos anos 30, e veio a presidir ao Parlamento italia-
toriador foi o processo por heresia movido pela Inquisição no, na década de 1980, o historiador está exatamente nos
a Domenico Scandella, mais conhecido pelo diminutivo Me- antípodas do negacionismo. Sendo o judaismo matrilinear
nocchio, um moleiro do Friul (Nordeste de Itália), de cuja e sendo a sua avó materna católica, Carlo Ginzburg não é ju-
peculiar cosmogonia foi extraído o título. Para Menocchio, deu por nascimento, embora isso seja um detalhe. Valori-
a formação do mundo havia sido antecedida por um tempo zar a Liberdade, como ele faz, já não é detalhe nenhum.
O POVO

010
TEMA DE CAPA

É QUEM
MAIS Textos de Pedro Olavo Simões

COMBATE
Como o ataque às
monarquias de Antigo
Regime se traduziu, 011
0

tanto em Portugal como


em Espanha, na revolta
generalizada dos de
baixo, em 1808, e como
esta foi um entrave às
ambições imperiais de
Napoleão Bonaparte
TEMA DE CAPA

Dois momentos
de Napoleão
Bonaparte: o
imperador, por Ingres,
e o cônsul, por Antoine-
-Jean Gros (direita)

012
Se pretendermos ir ao início de tudo, lista, tremeu. E Portugal também. de teatro de guerra europeu, a velha
sendo esse tudo as invasões francesas Foi precisamente dez anos depois aliada Inglaterra. Antes disso, o prín-
em Portugal, ou a Guerra Peninsular, do assalto à prisão parisiense, ou seja, cipe regente e os seus conselheiros
utilizando a nomenclatura mais abran- no dia 14 de julho de 1799, que D. João, andaram no fio da navalha, tentando
gente e decalcada da designação então por incapacidade da sua mãe, D. Ma- escapar entre os pingos da chuva, mas
usada pelos britânicos, há duas opções: ria I, assumiu em definitivo a regên- tendo de enviar forças para a Campa-
recuar a Adão e Eva ou ao Big Bang (ris- cia do reino de Portugal e dos Algar- nha do Rossilhão, comandadas por
que-se o que não interessa) ou retro- ves, embora já a exercesse desde sete um militar inglês e apoiando espa-
ceder apenas até à Revolução France- anos antes. Ou seja, todo o tempo pas- nhóis contra franceses. A execução na
sa e ao processo simbolicamente ini- sado na preparação do exercício da guilhotina de Luís XVI, em 1793, havia
ciado, em 14 de julho de 1789, com a to- soberania, que só viria a chegar de sido um dos fatores decisivos que le-
mada da Bastilha. Não porque preten- facto em 1816, à morte da rainha en- varam à conflitualidade, pondo termo
damos aqui retratar em rigor esses tur- tão tida por louca, o príncipe regente à neutralidade inglesa inicial face à re-
bulentos tempos, chegando até à afir- testemunhou (ou teve notícia de) to- volução. Ora, a guerra em redor dos
mação de Napoleão Bonaparte como das as convulsões que punham em Pirenéus ocorreu na primeira metade
imperador, mas para que fique claro causa um mundo também por ele da década de 1790, mas poucos anos
que, com os acontecimentos de Fran- próprio simbolizado, do Terror, em depois os espanhóis já eram aliados
ça, toda a Europa de Antigo Regime, França, à materialização em guerra da dos franceses, e atacaram Portugal na
monárquica, absolutista e tradiciona- resistência do Ancien Régime à sua chamada Guerra de 1801, também co-
substituição pelos regimes liberais da nhecida por Guerra das Laranjas (essa
contemporaneidade, materialização mesma que significou a perda de Oli-
política do ideário iluminista que se vença).
vinha desenvolvendo desde bem an- Esse contexto das chamadas Guer-
tes. Como a generalidade da realeza ras Revolucionárias Francesas criava,
europeia, D. João sentia sobre a cabe- nos países em risco, um espírito de re-
ça a espada de Dâmocles, com algu- sistência aos ideais revolucionários,
mas agravantes que se resumem fa- associando o novo regime surgido em
cilmente: tinha nas mãos um reino França à ameaça bélica e expansionis-
sem poder militar assinalável, face às ta, ou ainda à imagem demoníaca
grandes potências europeias, e, em si- construída pelo clero conservador 013
multâneo, era senhor de vastas e mui- que, de igual modo, via em risco os
to apetecíveis possessões coloniais, seus próprios privilégios. Esse temor
em especial na América do Sul. e essa desconfiança face aos france-
A esses assuntos, do estabelecimen- ses cresceu ainda mais no contexto de
to da Corte no Rio de Janeiro, a partir afirmação de Napoleão Bonaparte,
de 1808, à independência do Brasil, que viria a ser coroado no final de
passando por todo o processo de ins- 1804 e com quem a ideia de expandir
tauração do liberalismo em Portugal, pela força a boa nova revolucionária
temos dedicado, nos últimos anos, am- se confundiu, decisivamente, com um
plo espaço nas páginas da JN História. projeto de expansão imperialista tout
Não é para repisar isso que aqui esta- court.
mos, mas apenas para notar que aqui- Atalhando caminho, teremos de
lo a que, por facilitismo, costuma cha- perceber que Portugal era apenas,
mar-se as hesitações do futuro D. João para os franceses, um meio para ata-
VI mais não é, na verdade, do que uma car Inglaterra. Quando Bonaparte de-
gestão cautelosa, por parte do regente, cretou o Bloqueio Continental, em
das fragilidades do Portugal de então 1806, o único objetivo era fragilizar os
(poderíamos dizer Portugal, apenas, e britânicos, vedando-lhes – e às suas
faria sentido para uma grande varieda- mercadorias – o acesso a todos os por-
de de cronologias). tos europeus. Ora, a utilização de por-
tos portugueses era crucial para as ro-
Neutralidade impossível tas navais inglesas e, sobretudo, aten-
“Durante o período que se sucede à dendo ao controlo efetivo de Londres
Revolução Francesa, Portugal procu- sobre a economia lusa, assegurando a
rou, tenazmente, a impossível neu- obtenção de matérias-primas colo-
tralidade”, escreveu o historiador An- niais e tendo no Brasil (através do Rei-
tónio Pedro Vicente, resumindo nes- no, isto é, do Portugal europeu) um
sa frase o período que precedeu a co- mercado essencial para escoar os seus
lagem do reino, a partir de 1807, a um produtos manufaturados, pelo que a
dos poderosos contendores no gran- não adesão portuguesa ao bloqueio
TEMA DE CAPA

era um entrave aos objetivos da Fran- dizendo, foi decisivo, mas não pode-
ça napoleónica. Ou seja, a invasão de mos olhá-lo como resultado de espon-
Portugal, no final de 1807, tinha essa taneidade. A reação popular à presen-
razão de ser, mas fazia-se em conjun- ça dos invasores, no caso espanhóis,
to com o aliado espanhol, cujas ra- assumindo contornos de guerra de
zões, no que à hostilidade com Portu- guerrilha, foi desde o primeiro mo-
gal respeita e através dos tempos, to- mento estimulada pelo poder central,
cam sempre o desejo de domínio to- nas mãos do conde de Oeiras, futuro
tal da Península Ibérica. marquês de Pombal.
Essa ideia de Espanha encarar a O centro da narrativa que ocupa as
própria existência de Portugal como páginas seguintes é a revolta de Olhão,
uma pedra no sapato, estimulada ain- a partir do dia 16 de junho de 1808, mas,
da pelo desejo de controlar as posses- evidentemente, será necessário en-
sões coloniais portuguesas, está por quadrá-la num panorama geral de re-
trás do famoso tratado secreto de Fon- voltas em Portugal e, também, dos san-
tainebleu (outubro de 1807), em que grentos e duramente reprimidos le-
os espanhóis autorizaram a passagem vantamentos em Espanha (a partir da
de tropas francesas e ambos determi- revolta de 2 de maio, em Madrid), que
naram como se processaria a partilha de certo modo inspiraram a ira dos
de Portugal. Mas o inesperado, no portugueses. E perceber, claro, que Sebastião Cabreira
meio de tudo isso, foi a fuga da Corte essa ira não se circunscreveu ao Algar- – um dos militares
portuguesa para o Brasil, à qual o ve nem foi aí, em verdade, que teve as da revolta de Olhão
príncipe regente acedeu ao cabo de suas primeiras manifestações. veio a ter destaque,
intensa pressão por parte dos aliados O caso olhanense merece, porém, em 1820, na
ingleses. uma atenção especial, na medida em revolução liberal
Por outras palavras, ao falhar a cap- que povo mais povo não havia. “As
tura da família real portuguesa, Jean- criaturas mais ‘escravas’ de Portu-
-Andoche Junot e o seu exército, que gal”, escreveu Vasco Pulido Valente,
chegaram a Lisboa em 30 de novem- indo buscar a adjetivação ao general
014 bro de 1807, um dia depois da partida algarvio Sebastião Cabreira (1763-
para o Brasil da grande frota, mais não -1833). Uma historiografia marxista

TRIU
fizeram do que deitar mão a este extre- mais militante poderia, como é mais
mo ocidental da Europa, que, por si, costume do que devia, encontrar aí
não tinha interesse especial. Viria a ser uma expressão avant la lettre da luta
palco de sucessivos confrontos, mas de classes, mas não é isso que trans-
enquanto frente de combate do mais parece da documentação. Os mais
amplo conflito anglo-francês. Em ter- desgraçados entre os desgraçados,
mos de comércio atlântico, os britâni- enfiados para um canto da sua provín-
cos nada ficaram a perder. Como se cia onde nada havia antes (dos pesca-
sabe, a primeira medida do futuro D. dores se fez a vila de Olhão), recla-
João VI, mal firmou âncora ao largo da mam fidelidade ao príncipe regente
Bahia, foi abrir os portos brasileiros às (“tão bom senhor que tínhamos”) e
“nações amigas”. O Reino, em termos desprezo pela indesejada presença do
práticos, estava como uma casa de invasor estrangeiro.

PES
onde se fugiu, deixando a porta aber- Obviamente, não havia entre essas
ta. Todavia, a casa, bem como a dos vi- gentes “afrancesados” que defendes-
zinhos espanhóis, era habitada. E fo- sem os ideais revolucionários. O povo,
ram do povo os primeiros levantamen- acossado, bate-se porque não pode
tos contra o indesejado invasor. mais e encontra no outro, no estranho,
a causa das angústias. Não possuindo
Espontaneidade popular as ferramentas teóricas necessárias,

D
Nestas páginas, o que se evoca é a ca- não busca necessariamente mudanças
pacidade de o povo tomar armas de no poder, para mais se não for empur-
forma espontânea, ou praticamente rado nesse sentido. Procura apenas alí-
espontânea. Um fenómeno distinto, vio. E a presença dos franceses no Al-
por exemplo, da Guerra Fantástica de garve, mesmo que não fosse numero-
1762-1763, a que dedicámos a abertura sa ou substancial, tornou mais pesada
da edição anterior da JN História (N.º ainda a cruz desses descamisados en-
41, dezembro de 2022). Na ocasião, o tre os descamisados. Até ao ponto de
papel do povo, ou dos paisanos, melhor não aguentarem mais.
REVOLTA 015

UNFANTE
DOS
SCADORES
DE OLHÃO
Texto de Pedro Olavo Simões
TEMA DE CAPA

Até ao desembar
do futuro duque
em agosto de 1808,
aos invasores fran
protagonizada pe
016

estimulado pelos
em Espanha. Em
essa situação foi
no Algarve, onde o
dos esquecidos co
com as tropas na
que em Portugal
de Wellington,
a resistência
ceses era
lo povo,
acontecimentos 017

lado nenhum
tão clara como
s mais esquecidos
nseguiram correr
poleónicas
TEMA DE CAPA

018
019
TEMA DE CAPA

Quando, em novembro de 1807, tro-


pas francesas e espanholas, comanda-
das pelo general Jean Andoche Junot,
invadiram o reino de Portugal, o efeito
imediato foi a transferência, ou fuga, da
Corte para o Brasil. Não foi a resistên-
cia à invasão nem a defesa, pelas ar-
020 mas, da integridade territorial portu-
guesa. Sabe-se hoje perfeitamente que
a mudança da capital para o Rio de Ja-
neiro, além de ter contribuído para
acelerar o processo de secessão do
Brasil, foi decisiva para garantir a con-
tinuidade de um Portugal independen-
te. Não tivesse o príncipe regente – D.
João VI a partir de 1816 – cedido à pres-
são britânica e tomado a decisão de
atravessar o Atlântico, o mais certo era
a monarquia ter sido deposta e o país
partilhado, tal como franceses e espa-
nhóis haviam acordado secretamente
em Fontainebleau ou, mais provavel-
mente, ao sabor do que no momento
certo fosse o desejo de Napoleão Bo-
naparte. Porque não haveria, como não
houve, grande resistência “oficial” até
agosto de 1808, quando tropas inglesas
sob as ordens de Arthur Wellesley, fu-
turo duque de Wellington, desembar-
caram na Figueira da Foz para inverter
o rumo do qxue veio a chamar-se
Guerra Peninsular, seguindo a desi-
Junot o primeiro gnação britânica. Até lá, os maiores re-
invasor (dir.); veses sofridos pelos invasores em ter-
na dupla página ritório português foram impostos pelo
anterior, “A carga povo, não pelas elites.
dos mamelucos”, O ano de 1808 e seguintes foram
por Francisco Goya marcados por diversas manifestações
021
TEMA DE CAPA

Retrato do futuro
D. João VI em jovem:
o príncipe cresceu
vendo crescer, no
exterior, a ameaça
revolucionária

Representação
do regresso do rei a
Lisboa, chegado do
Brasil, para onde
transferira a Corte
no final de 1807

populares de revolta, um pouco por Em abril de 1808, supostamente mente ligado ao tal motim madrileno,
todo o território. “Quase invariavel- para pôr termo a uma disputa sucessó- comummente conhecido por Levan-
mente, nos lugares de onde partiu a ria entre o rei de Espanha, Carlos IV, e tamento do 2 de Maio. Francisco de
sublevação nacional contra o ocupan- o seu filho e herdeiro, Fernando VII, Paula, o filho mais novo de Carlos IV,
te foi o ‘povo’ que tomou a iniciativa”, Napoleão chamou ambos a Bayonne, era o único membro da família real
escreveu Vasco Pulido Valente. Não fa- no País Basco francês (não usamos a que permanecia na capital espanhola,
remos aqui o levantamento exaustivo tradução Baiona para evitar confusões e a população começou a juntar-se nas
desses episódios, uns mais violentos com a cidade galega do mesmo nome, imediações do palácio, manhã cedo,
022 do que outros, nem vamos distingui- na província de Pontevedra), onde, nos sabedora de que as tropas napoleóni-
-los das terras que só se atreviam a dias 5 e 6 de maio, ocorreram as famo- cas se preparavam para o levar para
contestar o invasor quando viam que o sas abdicações que tomaram o nome França, com o resto da família.
vizinho do lado tivera sucesso e o pe- da cidade: Carlos IV abdicou em favor Dizem as narrativas que foi José Blas
rigo estava, de algum modo, afastado. de Fernando VII, que depois abdicou de Molina, um mestre serralheiro que
A esses outros locais iremos adiante, em favor de Napoleão Bonaparte, po- já havia participado numa insurreição
mas preferimos, pelo êxito que teve e dendo este entregar o título de rei de em Aranjuez, quem lançou o grito de-
pela sua natureza absolutamente po- Espanha ao seu irmão José Bonaparte. sencadeador da revolta: “Que nos lo
pular, focar a revolta de Olhão, desen- Ou seja, a aliança franco-espanho- llevan!” – pouco importa saber se foi
cadeada em 16 de junho de 1808 e que la que possibilitara às tropas de Junot mesmo ele, quem lá estava o terá vis-
veio a culminar na expulsão dos fran- atravessarem sem problemas a Penín- to e ouvido, mas percebe-se como era
ceses do reino do Algarve (entenda-se sula Ibérica, para invadir Portugal (na essa noção de pertença (uma perten-
este “reino” como um título de nature- companhia de tropas espanholas, in- ça em ambos os sentidos, claro) entre
za meramente simbólica, que ainda sistimos), revelava-se um embuste. o povo de Madrid e a família real que
persistia e persistiu até à República e à Com a coroa entregue ao irmão do im- garantia não apenas a independência,
Constituição de 1911). perador, Espanha seria um reino saté- mas uma noção de identidade nacio-
lite de França, e isso avivou ainda mais nal. E em Espanha, note-se, os aconte-
O rastilho espanhol a chama da revolta popular, que, com cimentos relacionados com as inva-
Ficará incompleta a contextualização estas manobras em curso, explodira sões francesas são conhecidos como
destas revoltas se não formos além da em Madrid logo no dia 2 de maio. So- Guerra da Independência de Espanha,
invasão francesa, em si, da transferên- bre as abdicações propriamente ditas, justamente a partir do levantamento
cia do governo para o Brasil ou do es- não é claro que a pressão de Bonapar- de que estamos a dar conta. O infante,
pírito patriótico das populações, que te sobre o rei espanhol e o seu filho e com 14 anos acabados de fazer, foi à
existia, em certa escala, mas que faz herdeiro tenha sido insustentável ou varanda mostrar-se à multidão, mas
mais sentido em panfletos do que num se, pelo contrário, a realeza espanho- esta, ao invés de serenar, ficou ainda
artigo desta natureza. Não é possível la se limitou a ceder sem grande resis- mais convencida de que os invasores o
entender as revoltas em Portugal sem tência. Esse é um debate que divide levariam à força para além-Pirenéus.
olharmos para o que se via no nosso vi- historiadores e que, na verdade, nada O ataque de um grupo à primeira pa-
zinho do lado. É isso que faremos, por- adianta nem atrasa àquilo de que aqui trulha francesa que avistou foi a chis-
tanto, antes de chegarmos aos nossos tratamos. Interessa, isso sim, mostrar pa que alastrou a toda a cidade. Já não
pescadores olhanenses. como esse momento estava direta- era apenas a defesa do príncipe que os
023
Pouco importa se movia. Era a ânsia de correr com os es-
trangeiros que os alimentava. Nava-
lhas, paus, pedras e algumas armas de
se perfilham os ideiais fogo, que secretamente haviam come-
çado a guardar logo à chegada dos
liberais e se vê na figura franceses, eram aquilo com que os po-
pulares revoltosos contavam, coisa

de D. João VI um rosto pouca se comparada com as espingar-


das e os sabres do exército às ordens
do marechal Joachim Murat, grande
do absolutismo caduco. almirante do Império e cunhado de
Napoleão Bonaparte. O genial pintor

Falar em hesitações Francisco de Goya y Lucientes imor-


talizou esses momentos duros e san-
grentos, na pintura “O 2 de maio de
do príncipe regente, face 1808 em Madrid” (também conhecido
como “A carga dos mamelucos”), e a

à Revolução Francesa repressão que se seguiu no celebérri-


mo “O 3 de maio em Madrid” (também
conhecido como “Os fuzilamentos na
e à invasão iminente, montanha do Príncipe Pio” ou “Os fu-
zilamentos do 3 de maio”). Ambos os
é injusto: governando trabalhos de Goya, que foram pintados
na mesma época e devem ser conside-

um país frágil, assegurou rados em conjunto, estão à guarda do


Museu do Prado, em Madrid.
A contabilidade de mortos, não
assim a manutenção sendo clara, ultrapassou as quatro
centenas, sendo maioritariamente ci-

da independência vis revoltosos, o mesmo sucedendo


com os feridos. Todavia, a revolta não
TEMA DE CAPA

Goya viveu
intensamente este
período, que inspirou
“Los desastres de la
guerra”, uma série
de 82 gravuras

acabou aí. Alastrou a toda a Espanha, puramente popular, mesmo que o mo-
onde a resistência aos franceses, tam- mento zero da revolta tenha sido pro-
bém política, se ia materializando na tagonizado por José Lopes de Sousa,
proclamação de juntas locais ou pro- coronel e governador da praça de Vila
vinciais. Mais relevante ainda, do nos- Real de Santo António, que se encon-
so ponto de vista e para o quadro que trava em Olhão à data dos aconteci-
queremos traçar, este alastramento da mentos, coincidentes com a solenida-
rebelião passou a fronteira, contri- de do Corpo de Deus, nesse ano cele-
024 buindo decisivamente para que tam- brada no dia 16 de junho. Por que esta-
bém as populações portuguesas se re- va lá? Segundo relato do próprio passa-
voltassem, embora nunca as subleva- do a escrito, era por questões de saúde:
ções tenham atingido uma dimensão “Achando-se o dito governador no
tão sangrenta. mencionado Lugar para convalescer
das suas moléstias”. Outro relato redi-
Testemunhos algarvios gido por um militar, Sebastião Duarte
Falando nós em levantamentos popu- Andrade Pinto Negrão, capitão-mor de
lares, teremos de notar que mais po- Albufeira, esclarece pouco: “...achan-
pular do que Olhão, no início do sécu- do-se no dito lugar...”. Já João da Rosa
lo XIX, não havia em Portugal. Era uma é mais claro: “... e chegar José Lopes,
terra, ou um lugar, ocupada apenas governador de Vila Real, a quem eles
por povo marinheiro, gente da pesca, já tinham chamado a si por este se ter
gente miúda, como diriam os privile- ausentado de Vila Real para não estar
giados de então, no caso algarvio con- sujeito ao francês, vindo assistir neste
centrados em Faro, onde haviam rece- lugar sem mando, mais a sua família”.
bido com festas e banquetes o general Impõe-se a pergunta: quem era este
de brigada Antoine Maurin, enviado João da Rosa? Um olhanense, um dos
por Junot para controlar militarmente poucos habitantes alfabetizados da
a província. Estabelecido em Lisboa e terra, o secretário da Confraria do
tendo falhado a tomada do Estado por- Compromisso Marítimo do Lugar de
tuguês, ao comandante das forças in- Olhão, que resolveu passar a escrito o
vasoras mais não restava do que ga- seu relato dos acontecimentos. Vale-
rantir um certo controlo do território mo-nos da publicação anotada desse
com as tropas de que dispunha, nem documento pelo historiador algarvio
sempre muitas. E a fuga da Corte, se António Rosa Mendes, que destacou a
encarada como resistência e não como diferença deste para os relatos (ou re-
desistência, poderia bem constituir lações, como se dizia) feitos por gente
um estímulo para as populações locais que jogava o seu futuro e queria ficar
insatisfeitas. bem no retrato: “(...) nisso se singula-
Recentrando: o motim olhanense é rizando dos que logo foram estampa-
025
TEMA DE CAPA

Réplica do caíque
“Bom Sucesso”,
em Olhão, evoca
a viagem de 17
pescadores ao Brasil
após a revolta

dos pela imprensa, o texto de João da duro jugo da traição dos franceses ini- Duas coisas interessa aqui notar. A
Rosa não se destinava à publicidade; migos do nosso Príncipe Regente, Real mais simples, expressa no final desta
efetivamente, ele escreveu-o no livro Família, Pátria e Religião, se apressa, citação de João da Rosa, é o facto de o
do Compromisso Marítimo, a folhas por entre o povo que o lia, deita mão povo de Olhão se ter logo prontificado
196-200, entre cópias de ordens, alva- ao terrível edital, ele o arranca, rasga a lutar e desafiado o governador da
rás, provisões, sentenças e outros as- e pisa aos pés inspirando ao mesmo praça de Vila Real de Santo António a
sentos vários”. tempo com enérgicas persuasões, a chefiá-los. A outra, mais subtil, tem a
Merece-nos, por isso, alguma sim- verdade e Patriotismo, quando logo, ver com a escolha das palavras pelo co-
026 patia o relato de João da Rosa, embora felizmente, se vê seguido de um povo ronel, bajulando insistentemente os
o combinemos com outros, para afinar fiel, amante do seu Príncipe, da Pátria, poderes temporal e eclesiástico, ao
este ou aquele detalhe. Ou seja, o go- da honra própria, e da Nação que pro- passo que do relato do marinheiro ape-
vernador militar não estava ali por ra- mete vingar os agravos feitos à Reli- nas transparece a ideia de fidelidade à
zões de saúde nem estava ali apenas gião tão escandalosamente profana- coroa, enquanto elemento de unidade
por estar, mas porque tinha escapado da por um bando de homens ou mons- nacional venerado e reconhecido. Daí
aos franceses e encontrava alguma se- tros corrompidos e abomináveis”. que, quando vemos relatos dizendo
gurança naquele que era “um lugar Escreveu João da Rosa: que o povo irado seguia gritando coisas
sem mando”. Longe das autoridades, “(...) e todos juntos [os marítimos como “Viva a Santa Religião!”, será pru-
portanto, francesas ou colaborantes. que iam à missa], estando um edital dente colocarmos um pé atrás, pois
francês que tinha mandado o General isso traduzirá mais uma retórica estu-
“Prontos e mais que prontos” francês de Lisboa, chamado Junot, dada para determinados fins do que a
Ora, nesse dia do Corpo de Deus, uma pregado à porta da igreja e outro no espontaneidade de quem grita o que
quinta-feira, Junot mandara afixar pelo pelourinho [a pequena prisão local] lhe vai na alma num momento de eu-
país editais, instando os portugueses a prometendo muitas promessas e foria coletiva. Sim, o vernáculo infor-
tomar armas e a combater os inimigos ameaças a todos os que não quises- mal existia...
ingleses e, também agora, espanhóis, sem, e pedindo nele auxílios a todos
havendo dois desses papéis afixados nós portugueses, este José Lopes, fa- Armas poucas e vontade muita
em Olhão: um na fachada da igreja, ou- zendo uma fala a este povo e princi- Desde logo, homens e mulheres da
tro na casa que funcionava como ca- palmente a nós mareantes, dizendo terra, também rapazes e raparigas, pe-
deia, referenciada como “pelourinho” que já não havia homens do mar ma- garam no que de parecido com armas
na documentação. Chegando com a fa- rítimos como os antigos, eles todos ali havia: “forcados, fisgas, besteiros e
mília para assistir à missa, o governa- juntos a uma voz lhe responderam que paus, espadas velhas, espadins, paus,
dor arrancou o edital, largou-o e piso- eles eram homens como os seus ante- pedras”. E outros meteram-se em bar-
teou-o, fazendo apelos ao patriotismo cessores e bons fiéis vassalos a Sua cos rumo às fortalezas da Armona e de
do povo. Vale a pena atentar em como Majestade e por ele queriam morrer e S. Lourenço, erguidas originalmente
a descrição do próprio governador di- dar até a última pinga de sangue do para fazer face à pirataria e das quais
fere da de João da Rosa, embora coin- seu corpo, dizendo mais que os man- poucos vestígios hoje restam, a fim de
cidam no essencial. dasse e governasse como seu chefe, obterem armas e munições. Numa en-
Escreveu José Lopes de Sousa: que para tudo estavam prontos e mais contraram um oficial fiel à coroa por-
“(...) não podendo mais sofrer ao que prontos”. tuguesa, aí obtendo duas peças de
027
TEMA DE CAPA

Representação
dos fuzilamentos
reprimindo a revolta
de maio, uma das
mais célebres obras
de Francisco Goya

028
029
TEMA DE CAPA

bronze, uma caixa de pólvora e muni-


ções, na outra havia um tenente que se
recusou a dar ajuda e ainda fez formar
Pense-se numa população
soldados contra os mareantes, obri-
gando estes a retirar-se rapidamente.
pobre, de homens do mar,
Navegaram ainda para mais longe,
buscando uma frota inglesa fundeada
ao largo da atual Isla Cristina, pouco
esmagadoramente
030 mais de uma légua a leste da foz do
Guadiana. Sem sorte. Os ingleses que-
analfabetos e armados
riam ser ajudados, pedindo comida, e
nada ajudaram. Foi em Ayamonte que apenas com artefactos
os de Olhão finalmente obtiveram au-
xílio, por obra de um capitão portu-
guês de Tavira, Sebastião Martins Mes-
rudimentares. Perceber
tre, que ali lhes conseguiu 130 espin-
gardas e com eles embarcou para se que se revoltaram com
juntar à revolta.
Ocorrem-nos David e Golias quan-
do pensamos que foi assim, com 130
êxito contra militares
espingardas, duas peças de artilharia
resgatadas a um forte esquecido na Ria
treinados surpreende. Mas
Formosa, espadas velhas, paus e pe-
dras que começou a expulsão dos fran-
ceses de terras algarvias. De certo
não tanto como imaginar
modo o foi, evidentemente, mesmo
não sendo o contingente francês no Al-
17 deles, a bordo de uma
garve especialmente numeroso. Mas
eram soldados contra populares, afinal casca de noz, indo ao
de contas, embora se tenham revelado
incapazes de lidar com a determinação
do povo, o fator surpresa e o alastra-
Brasil anunciar a vitória.
mento da revolta a partir de Olhão. Va-
mos por partes.
O reforço de armas de Ayamonte
chegou a Olhão na noite do dia 17, e
logo na manhã seguinte começou a
ação. Primeiro com um gesto simbóli-
co, o aprisionamento de um coche
Azulejos mostram
chegada do “Bom
Sucesso” ao Rio
de Janeiro, indo dar
a boa nova ao
príncipe regente

real, que havia sido “desviado” de Lis-


boa e que, no dizer de João da Rosa. “ia
de Faro para Tavira pela estrada de
cima a buscar umas francesas para
Faro”. Logo depois, no mar, ocorreu
uma ação de maior afoiteza. Sabendo
do levantamento em Olhão, o general
Maurin, a partir de Faro, chamou a si
as tropas estacionadas em Tavira, para 031
reforço da guarnição, tendo estas se-
guido por terra, mas também por mar,
para um pequeno grupo fazer a via-
gem mais rapidamente a bordo de três
caíques. Não só foi esta viagem mais
rápida, mas também mais curta, pois
os marinheiros olhanenses interceta-
ram e aprisionaram 77 soldados, três
oficiais e um quartel-mestre. Este úl-
timo teria a seu cargo uma quantidade
de bens, destinados a Faro, obviamen-
te confiscados. Por terra seguiam 185
granadeiros, que o povo, comandado
pelo capitão Sebastião Martins Mestre,
emboscou em Quelfes, junto à estrei- Cópia, em jardim A ponte romana
ta ponte romana que ainda hoje é um de Olhão, de azulejos de Quelfes, perto
ex-libris da freguesia. de Jorge Colaço de Olhão, onde
De Faro saíam não apenas franceses, representando a os revoltosos
mas também forças portuguesas en- revolta de junho emboscaram
viadas por Maurin, às ordens do tenen- de 1808 os franceses
te Belchior Drago Cabreira (irmão de
Sebastião Cabreira, outro militar por-
tuguês relevante nestes eventos), mas
este recusou-se a combater as gentes
de Olhão. Nas palavras de José Lopes
de Sousa, o jovem oficial “indicou o pú-
blico agravo, e fez entender que mar-
chava por uma obediência repugnan-
te, e que se chegasse à ação contra os
seus patrícios, a que o mandavam, ele
TEMA DE CAPA

tomaria aquele acordo que lhe inspi-


rava a sua honra e patriotismo”.
Ora, a atitude deste tenente Cabrei-
ra impressionou os habitantes de Faro,
cidade onde, como atrás notámos, os
franceses haviam sido muito bem re-
cebidos pelas elites. No dia 19 de junho,
o sinal surgiu de surpresa. A pretexto
032 de ir tocar umas badaladas de devoção,
o que por costume se fazia sempre que
uma mulher dava à luz, um marinhei-
ro subiu a uma das torres da igreja do
Carmo e tocou a rebate. O povo, ansio-
so por agir e sabedor do que se passa-
va em Olhão, revoltou-se e aprisionou
de imediato o general Maurin. As tro-
pas francesas que iam a reprimir os
marinheiros de Olhão dispersaram
pelo território, as tropas portuguesas
uniram-se todas contra o invasor, a
mando do dito tenente Cabreira.
Em Olhão, onde muitas movimen-
tações se iam sabendo, ao longo des-
tes dias, através de interrogatórios a
correios franceses capturados, José Lo-
No dia 18 de junho,
pes de Sousa esperava o ataque e en-
viara um emissário a Ayamonte ou, se
preciso fosse, a Sevilha, em busca de
a população do Porto
auxílio. Porém, o levantamento em
Faro mudou tudo. Não apenas anulou a
revoltou-se com êxito,
iminência do ataque a Olhão, onde an-
tes chegara a ameaça de que todos se- sendo nomeada uma
riam passados à espada ao não aceita-
rem os termos de negociação propos-
tos (que lhes dariam benefícios mas
junta governativa a que
eram certamente falsos), como fez com
que, por todo o Algarve, a libertação do
presidia o bispo António
“jugo francês” fosse assumida. É em
“restauração do reino do Algarve”, de São José de Castro.
aliás, que se fala nos documentos pro- passava em terra, e para acautelar olhanenses ao Rio de Janeiro, no dia 22
duzidos à época pelos envolvidos. tudo isto se lhe dava o dito peixe para de setembro. O barco, a que se deu o
não padecer ninguém”. nome de “Bom Sucesso”, foi compra-
O caíque “Bom Sucesso” Resumindo e concluindo, estavam do pela Coroa e, mais do que isso, o
Escorraçados para as serranias algar- fartos de ser tributados, e os franceses príncipe regente ficou de tal modo im-
vias, os franceses não tinham por que esmagavam-nos ainda mais, temendo pressionado que decretou a elevação
voltar atrás e avançaram pelo Alente- que, no mar, pudessem ir ao encontro do lugar de Olhão a Vila de Olhão da
jo, onde também já havia um levanta- da frota inglesa e passar informações. Restauração, sendo esta retirada da de-
mento em Beja, igualmente apoiado E eram patriotas: “...nem com todos es- pendência de Faro. De tal modo estes 033
pela Junta de Sevilha, que forneceu, tes trabalhos, necessidades e misérias acontecimentos são marcantes para os
através de Ayamonte, mais 400 armas. que passavam perderam o amor e a olhanenses, que quando a Primeira Re-
Mas essa já é uma história distinta da lealdade ao nosso amável Príncipe”. pública instituiu os feriados munici-
do povo de Olhão, que se ergueu em Tal amor ao amável príncipe de- pais, a escolha que ali se fez recaiu no
junho de 1808. Por fervor patriótico, sencadeou um episódio colateral que, dia 16 de junho, hoje Dia da Cidade, ou
não há por que negá-lo, mas também não sendo o mais relevante no que à seja, evocando o início da revolta da-
por estar cansado de exploração. O re- resistência ao invasor respeita, é de quele povo que se dispôs a “morrer e
lato de João da Rosa é demasiado pre- extremo simbolismo para as gentes dar até a última pinga de sangue do
cioso para ser desperdiçado: de Olhão. Retomada a região pelos seu corpo”.
“Os marítimos deste Lugar de que dela eram naturais, foi estabele-
Olhão, como bons fiéis vassalos a tão cida uma Junta Suprema do Reino do A Junta do Porto
bom Senhor como tínhamos, o Prínci- Algarve, presidida pelo conde de Cas- Um pouco por todo o lado, como vimos
pe-Regente D. João nosso Senhor, ven- tro Marim, na qual tinha assento um dizendo, houve motins populares,
do-se em tantas misérias e necessida- representante do povo, o olhanense muitos deles antes dos sucessos algar-
des como foram notórias, e principal- Miguel do Ó. Foi este último quem, vios. Comecemos por seguir à boleia
mente este Lugar de Olhão sendo uma havendo entre as gentes de Olhão a de Vasco Pulido, no ensaio “Ir prò Ma-
das terras deste Reino do Algarve que vontade de levar ao príncipe regente neta”, dado à estampa em 2007: “Mui-
lhe foram carregados mais tributos, a notícia do triunfo sobre os france- to antes de qualquer acto de subver-
chegando mais que até o Governador ses, cedeu um pequeno caíque a bor- são declarada, já pelo Norte inteiro os
francês que estava mandando e go- do do qual 17 homens, entre os quais ‘pequenos’, impacientes com o ‘jugo’
vernando este povo obrigava este o piloto Manuel de Oliveira Nobre e o francês, começavam a andar em ‘ma-
Compromisso lhe dar peixe todos os mestre Manuel Martins Garrocho, se gotes’. No Porto, em Penafiel, Maia,
dias por deixar os pescadores ir ao fizeram ao mar no dia 7 de julho de Melgaço, Guimarães, Braga, Miranda,
mar a pescar, e não os deixava ir se- 1808 e atravessaram o Atlântico rumo Bragança – de norte a sul e de leste a
não alto dia com sol e vir com sol, sen- ao Brasil. oeste. Em 4 de Junho de 1808, houve
do que se alguém não viesse a horas A própria viagem, a bordo de uma motins em Chaves e Vila Pouca de
os mandaria prender e remetê-los ao embarcação tão pequena, foi feito as- Aguiar que os magistrados locais con-
seu Bonaparte em França, e que eram sinalável e assim foi entendida pela seguiram reprimir”.
falsos que iam vender peixe aos ingle- Corte e por quantos testemunharam, Permanece clara, perante este pa-
ses e dar todas as notícias do que se finalmente, a chegada dos mareantes norama, ou por estes primeiros sinais
TEMA DE CAPA

034
Arthur Wellesley,
futuro duque de
Wellington, só
desembarcou em
Portugal em agosto
de 1808

de incómodo popular face aos invaso- dadas por Louis Henri Loison (o fami- “personnes de distinction”, em Faro,
res, que o estímulo das sublevações gerado “Maneta”), que pelo caminho receberam Antoine Maurin (incorreta-
espanholas chegara rapidamente a espalhou terror mas foi também fusti- mente referido como Maurasin em al-
Portugal. E no caso da região Norte, o gado por ações de guerrilha da popu- guns escritos) com festas e honrarias.
estímulo foi acrescido pela revolta lação, acabando por não conseguir A revolta dos pescadores de Olhão,
ocorrida no Porto, onde, no dia 6 de ju- chegar àquele que era o seu objetivo e depois de contagiar militares de baixa
nho, o general Domingo Belestá y Pa- depor a junta do Porto. O exemplo por- patente e a população algarvia, foi, de
red, um engenheiro militar que pouco tuense, como dissemos, ajudou a que facto, um momento de viragem (não
mais fez durante as guerras napoleó- outros motins ocorressem por esse decisivo, bem o sabemos: mais duas 035
nicas, mudou de campo ao saber dos país fora. Sempre por iniciativa popu- invasões além da de Junot, e importan-
levantamentos no seu país, aprisio- lar, como em Coimbra, onde o povo tes confrontos militares manteriam o
nando o governador francês colocado chegou a aprisionar os franceses no território português como palco das
na cidade por Junot, o general Fran- Colégio de São Tomás (mais tarde con- guerras napoleónicas até 1811). De vira-
çois-Jean-Baptiste de Quesnel, bem vertido em Palácio da Justiça). gem no sentido em que, com a deban-
como a guarnição francesa, de 30 ou dada desordenada dos franceses para
65 dragões (designação dada a solda- Colaboracionistas e contorcionistas norte, foi o Alentejo também palco de
dos que se deslocavam a cavalo mas Regra geral, estes levantamentos po- violentos confrontos entre os france-
combatiam em pé), variando o núme- pulares não iam muito além de vivas a ses e o povo. Sempre o povo, claro, pois
ro consoante as várias fontes. Feito Portugal e à família real, bem como à as tropas portuguesas que havia não
isso, rumou à Galiza, para se juntar aos destruição dos editais que as forças in- eram desde logo hostis ao invasor, e o
seus compatriotas que em território vasoras iam afixando um pouco por auxílio inglês, simbolizado pelo de-
espanhol combatiam os invasores. toda a parte. Tal como vimos atrás, es- sembarque de Wellington nas imedia-
Deixou, portanto, a cidade entregue ses editais estiveram na origem da re- ções da Figueira da Foz, só chegaria em
aos portuenses, que logo se juntaram volta de Olhão, mas noutros sítios o agosto.
em locais como o Campo de Santo descontentamento popular arriscava- Armados com o que houvesse, das
Ovídio, atual Praça da República, dan- -se a tropeçar no colaboracionismo. foices aos chuços, ou seja, paus com
do vivas ao príncipe regente e has- Atente-se na ironia de Vasco Pulido Va- ferros afiados na ponta, passando por
teando bandeiras que haviam guarda- lente: “Na Beira, nos casos em que uma ou outra arma de fogo, os popula-
do em segredo. Com o apoio de afran- ocorreram revoltas endógenas, o qua- res envolveram-se em confrontos di-
cesados da cidade, os franceses ainda dro manteve-se sem alteração. Por retos com soldados franceses, como
recuperaram o controlo, mas não mui- meados de Junho, o corregedor de sucedeu após o levantamento de Vila
to depois, em 18 de junho, a população Castelo Branco escrevia com enorme Viçosa, mas também foram aprovei-
levantou-se novamente, desta vez zelo ao chefe da polícia Lagarde que tando as oportunidades de atacar o ini-
com total sucesso, sendo nomeada os motins nacionalistas da terra ha- migo quando este se descuidava: em
uma Junta Provisional do Governo Su- viam sido unicamente obra do ‘bas- Beja, franceses que se aventurassem
premo, presidida pelo bispo da cida- -peuple’ e que nenhuma ‘personne de na cidade para obter mantimentos
de, António de São José de Castro. distinction’ neles tinha colaborado”. eram mais do que provavelmente as-
Para tentar pôr cobro a esta insur- No fundo, o mesmo que viria a suce- sassinados.
reição, Junot enviou as tropas coman- der no Algarve, onde, como vimos, as A páginas tantas, incapaz de lidar
TEMA DE CAPA

Após 1808
com a liderança
inglesa, o combate
foi entre exércitos.
Na imagem, a batalha
do Buçaco (1810)

com os levantamentos por todo o ter-


ritório, Junot acabou por concentrar-
-se na defesa de Lisboa. Definitiva-
mente, os primeiros invasores france-
ses haviam sido incapazes de contro-
lar o território, e o desembarque do fu-
turo duque de Wellington, à cabeça das
tropas inglesas, viria dar à guerra a di-
036 mensão militar que até aí praticamen-
te lhe faltara. Até aí, a preparação do
contra-ataque era obra do povo, dos ci-
vis, dos que supostamente não tinham
qualquer poder. Mais uma vez, para
encerrar aqui as hostilidades, cedemos
com todo o gosto à tentação de repro-
duzir a escrita mordaz de Vasco Pulido
Valente:
“Quase invariavelmente, nos luga-
res de onde partiu a sublevação na-
cional contra o ocupante foi o ‘povo’
que tomou a iniciativa. O ‘povo’, isto é:
pescadores, trabalhadores rurais,
camponeses, oficiais mecânicos, e um
ou outro comerciante pobre ou ínfimo
funcionário público. Mas no meio de-
les aparece o ocasional alferes, te-
nente ou capitão de ordenanças ou
milícias, o ocasional religioso (secu-
lar ou regular) e até, em muito poucos
casos, o ocasional magistrado e o raro
senhor local, ornado ou não com o
prestigioso título de bacharel. Nunca
é destas personagens que vem o ges-
to decisivo de revolta. Acontece que,
reconhecendo a ‘ebulição’ do ‘povo’,
se arranjaram no último momento
para se pôr ao seu lado e, se possível,
à sua frente. Há, no entanto, excep-
ções conhecidas.”
037
DESTAQUE

De
Beltraneja
a excelente
senhora
Notas sobre a saga
de D. Joana de Trastâmara,
nascida para reinar
e remetida para uma
vida de infortúnio
Texto de Vítor Pinto
Investigador integrado do Instituto
de Estudos Medievais | FCSH/Nova e UAb
S
an Juan de los Reyes, Toledo, signi- Uma das poucas ter numa vítima: aos 5 anos, foi separada dos
ficou o início de uma nova etapa na representações seus pais; foi várias vezes prometida para casa-
história de Castela. A rainha D. Isa- conhecidas de D. Joana, mento, mas nenhum se consumou; obrigaram-
bel decidiu erigir este mosteiro a desafortunada filha de -na a participar numa guerra, não de forma ati-
como símbolo da vitória sobre Henrique IV de Castela va, quando tinha apenas 13 anos... e perdeu por
Portugal na Guerra da Sucessão variadíssimas razões, mas o que mais se desta-
1474-1479. Tinha vencido os defen- ca é que, na hora da derrota, até o seu tutor, Pe-
sores dos direitos ao trono da sua sobrinha, a dro González de Mendoza, cardeal de Espanha,
princesa Joana, e a vitória foi considerada não só inclinou a balança a favor dos rivais da prince-
um triunfo para Castela, mas para a própria Isa- sa Joana de Trastâmara.
bel, pois esta representava a inteligência, a fir- Castela atravessava momentos cruciais da
meza e a segurança do reino. Para trás ficavam sua história, e uma monarquia forte constituía
as lutas dinásticas e as intrigas nobiliárquicas. a única fórmula para terminar com o sistema
No Mosteiro de San Juan de los Reyes ficou plas- feudal em que a nobreza decidia, mediante os
mado o esplendor do reino castelhano sob a di- seus interesses, os destinos do reino. Henrique
reção e tutela da rainha Católica. IV de Castela, consciente desse facto, mas sem
O protagonismo de Isabel a Católica é deve- forças para se meter em semelhante empresa,
ras conhecido, a posterioridade recorda-a com rodeara-se de um grupo de homens distintos e
predileção. Porém, a história não é formada fiéis, em detrimento da velha nobreza tradicio-
apenas por momentos áureos. Existem muitas nal, que perante este cenário começou a reagir
marcas de vidas desafortunadas que sentiram de forma violenta. Todavia, com o nascimento
a dor da derrota, e Joana de Trastâmara, conhe- de Joana, em 1462, essa nobreza parece ter fei-
cida posteriormente como a Beltraneja, foi uma to a reconciliação com Henrique IV. A paz em
delas. A filha de Henrique IV nasceu marcada Castela parecia assegurada.
pela desgraça, e os seus partidários, assim como Dois anos depois do nascimento de Joana,
os seus inimigos, encarregaram-se de a conver- Henrique IV decide nomear como mestre da
DESTAQUE

Ordem de Santiago um dos mais leais colabora-


dores que gravitavam no seu grupo de confian-
ça: Beltran de La Cueva. Esta nomeação deu ori-
gem a uma grave crise política em Castela, que
se refletiu nos anos seguintes. Um homem am-
bicioso, Juan Pacheco, marquês de Villena (de
ascendência portuguesa), não podia consentir
que um simples pajem da corte régia, oriundo
da baixa nobreza castelhana, como Beltran de
La Cueva, alcançasse maior poder do que ele
próprio. Baseado na calúnia, e como forma de
prejudicar fortemente a figura de Henrique IV,
difundiu a notícia de que D. Joana não era filha
do rei, mas sim de Beltran de La Cueva. Ora, o
rumor espalhou-se rápida e cruelmente. Como
forma de ultrapassar os danos decorrentes da
calúnia, Henrique IV foi aconselhado a alterar
tanto a linha sucessória como o mestrado da Or-
dem de Santiago, ou, em alternativa, a declarar
guerra à velha nobreza tradicional castelhana.
Ora, nas palavras do historiador Luis Suarez, pe-
rante a crise política que se abate neste período
em Castela, a questão sucessória não era mais
do que um item dentro da própria crise. Aliás,
convém lembrar que Henrique IV até podia ser
acusado das condições irregulares que haviam
rodeado o seu divórcio de Branca de Navarra,
até porque aconteceu sem a dispensa pontifí-
cia, o que para a época era extremamente gra-
040 ve. Mas o que estava em jogo, na realidade, era
a legitimidade de uma mulher ter a possibilida-
de, ou não, de exercer o poder real em Castela.

Mudança na sucessão
Retrato de Isabel, Tal como já adiantámos, foi graças ao cardeal
a Católica, que acabou Pedro González de Mendoza, que acabou por
por triunfar no jogo convencer Henrique IV a aceitar (como de
sucessório castelhano uma fórmula transitória se tratasse) a passa-
após a morte do meio gem do mestrado da Ordem de Santiago para
irmão Henrique IV o infante D. Afonso, meio-irmão do monarca,
e por engendrar o casamento deste com a
princesa D. Joana; até porque isso permitiria
a ambos reinar, e, naturalmente, garantia o fu-
turo de D. Joana como rainha consorte de Cas-
tela. Além disso, respeitariam a vontade ex-
pressa no testamento de Juan II, que deixara
expresso o desejo de D. Afonso fosse mestre
da Ordem de Santiago.
Henrique IV, em 1464 e como forma de pre-
servar a paz em Castela, aceitou nomear como
herdeiro ao trono o infante D. Afonso. Porém,
convém lembrar que esta decisão foi tomada de
livre vontade pelo rei, porque estamos em crer
que nenhuma força política contrária, mesmo
tratando-se do marquês de Villena e dos seus
fiéis seguidores (liga anti-henriquina), jamais
poderia obrigar Henrique IV a tomar tal deci-
são, mesmo que, em última análise, houvesse
as mínimas suspeitas da ilegitimidade de Joana,
biológicas ou, mais possivelmente, jurídicas e
canónicas. Ora, se Henrique IV tomou esta op-
ção para alcançar a paz, objetivamente não o
conseguiu. A comprovar o que acabámos de
afirmar, meses depois da nomeação do infante
D. Afonso, no dia 5 de junho de 1465, a liga an-
ti-henriquina, sob o comando do marquês de
Villena, depôs simbolicamente Henrique IV e
nomeou D. Afonso rei de Castela, num ato que
ficou conhecido como a Farsa de Ávila. Mas o
mote estava dado: a liga anti-henriquina dese-
java a deposição do monarca, quer por via di-
plomática, quer por via da força.
No âmbito desta Farsa, o cardeal Pedro Gon-
zález de Mendoza não tinha qualquer dúvida de
que a nomeação do infante D. Afonso como fu-
turo herdeiro, a juntar-se aos interesses do mar-
quês de Villena, levaria este cometer as maiores
atrocidades contra Henrique IV e todos aqueles
que o defendessem. Perante este cenário, teve
início um conflito bélico entre os partidários do
infante D. Afonso, liderados pelo marquês de
Villena, e os apoiantes de Henrique IV.
O cardeal colocou-se ao lado do soberano,
até porque a sua fidelidade perante Henrique
IV era inabalável, apesar de alguns partidários
pró-henriquinos irem perdendo paulatina-
mente a confiança no soberano. Pedro Gonzá-
lez de Mendoza e toda a sua família financia-
ram Henrique IV para a guerra que se avizinha-
va, mas, em troca, D. Joana ficaria sob custódia 041
dessa família. Henrique IV não teve outra solu-
ção se não entregá-la aos Mendoza. Por um
lado, garantia a vida da sua filha, por outro as-
segurava o patrocínio financeiro e militar de
que tanto iria necessitar para uma guerra que
adivinhava complicada.
D. Joana tinha apenas cinco anos quando foi
obrigada a abandonar os seus pais e rumar à fa-
mília Mendoza. Este início de uma nova vida, a
cargo de uma nova família, era só o princípio de
algo que parecia estar escrito no destino da jo-
vem princesa: o infortúnio.

A meia irmã do rei


A repentina morte do infante D. Afonso (não há
consenso quanto às causas, mas tudo aponta
para que tenha morrido de peste), em 5 de ju-
Retrato imaginário de lho de 1468, quando nem sequer tinha feito 15
Henrique IV, por José anos, influenciou decisivamente o destino de
María Rodríguez de Castela e o futuro de D. Joana. Perante este ce-
Losada (sec. XIX) - nário, a nobreza rebelde propôs à Infanta D.
ayuntamiento de León Isabel, irmã do falecido D. Afonso e meia-irmã
do rei de Castela, que aceitasse de imediato ser
rainha de Castela. Numa atitude deveras inte-
ligente (sem desejar emitir qualquer juízo de
Selo do rei castelhano valores), D. Isabel não aceitou a proposta. Ora,
Henrique IV, exposto com essa decisão, não só colocou um ponto fi-
no Museu Arqueológico nal na guerra civil castelhana como, também,
Nacional espanhol, pôde exigir a Henrique IV que a declarasse her-
em Madrid deira do trono de Castela.
DESTAQUE

Mosteiro de San Juan


042 de los Reyes, em Toledo,
assinala triunfo de Isabel
a Católica na disputa
sucessória com Portugal

Em 19 de setembro de 1468, em Guisando, completo o sucedido em Guisando, e uma das Estátua do cardeal
Henrique IV, nomeou D. Isabel sua sucessora, famílias que mais reclamou contra o pacto foi Pedro González
dando-lhe o título de princesa das Astúrias. Esta a dos Mendoza. Isto porque sempre defende- de Mendoza junto
opção explica-se com a tentativa de pacificação ram a linha direta de sucessão ao trono caste- ao Palácio do Infantado,
do reino castelhano por parte do monarca. lhano, pela qual seria D. Joana a legitima titu- em Guadalajara
Quanto a Joana, era mais uma vez sacrificada, lar do direito à coroa. Segundo as crónicas da
desta feita em prol da sua tia Isabel. Uma das época, o próprio Pedro González de Mendoza,
numerosas cláusulas acordadas no chamado cardeal de Espanha, escreveu um documento
Pacto de Toros de Guisando determinava que D. reivindicativo a explicar as razões por que dis-
Isabel não se casaria sem o consentimento de cordava do Pacto de Toros de Guisando, colo-
monarca. Em suma: se, por um lado, D. Isabel cando-o na porta da igreja de Santa Maria
ficou refém do mencionado pacto, por outro ti- Maior, em Colmenar de Oreja (província de Ma-
nha garantiu para si o trono de Castela. Além drid); e mais: escreveu ao Papa a solicitar a sua
disso, os nobres partidários de Isabel tinham intervenção, de forma a anular o tal pacto de
plena consciência da enorme importância que Guisando. Todavia, as críticas dos Mendoza não
teria, para eles, a subida de Isabel ao trono. O surtiram o efeito desejado, nem junto da Santa
Pacto de Toros de Guisando criava uma legali- Sé, nem sequer dos partidários de D. Joana. O
dade intrínseca perante toda a corte e todo o rei- único efeito foi uma serie de reuniões entre os
no castelhano, pois ficava claro, tanto documen- principais nobres castelhanos, para debater o
talmente como na memória coletiva, que D. Isa- assunto, todas presididas pelo cardeal e tendo
bel seria a sucessora de Henrique IV. como principal objetivo o bem-estar da sua
Relativamente à nobreza partidária de D. protegida, D. Joana. Como resultado final des-
Joana, como seria de esperar, reprovou por tas reuniões, ficou acordado que D. Isabel se
043

casaria com D. Afonso V de Portugal, e D. Joa- Analisemos: D. Isabel, com este casamento,
na casaria com o filho do monarca português, acabou por desrespeitar o acordo que tinha
o príncipe D. João (futuro D. João II). com o seu meio-irmão e monarca; rompeu com
Estamos convencidos de que o grande pro- o acordado nos Pactos de Guisando; abriu uma
blema de D. Joana foi ter nascido mulher. As janela de oportunidade para um príncipe ara-
mulheres podiam ser rainhas e governar, mas a gonês se tornar rei de Castela; e, por fim, este
sociedade não acreditava na liberdade das suas matrimónio estava ferido de morte, pois foi
decisões, pois julgavam-nas sujeitas à aprova- consumado de forma ilegítima. Essa ilegitimi-
ção de seus maridos. Em abono das nossas pa- dade assentava em dois pontos fundamentais:
lavras, Castela tinha duas mulheres a disputar o primeiro, eram primos, logo esse grau de pa-
trono. D. Joana estava francamente em desvan- rentesco impossibilitava de todo o casamento
tagem, tinha apenas 6 anos, ao passo que D. Isa- entre ambos, salvo dispensa papal; segundo, os
bel já tinha 17 anos e, além de ser extremamen- nubentes, para contornar esse impedimento,
te inteligente, sempre foi fiel aos seus objetivos, utilizaram uma bula falsa.
e a prova disso ficou patente na forma como se No arquivo de Simancas encontra-se a bula
tornou rainha de Castela. papal verdadeira, datada de 1471, ou seja, três
Como abordamos anteriormente, estava em anos após o casamento. Nela, o papa Sisto IV
cima da mesa o casamento de D. Isabel com perdoa Isabel e Fernando por terem vivido em
Afonso V de Portugal, mas a princesa castelha- pecado e liberta-os da excomunhão. Na nossa
na rejeitou de forma inequívoca e, em 1469, opinião, é bem provável que D. Isabel soubesse
com o maior secretismo, casou-se em Valha- que a bula era falsa, mas, independentemente
dolid com o príncipe Fernando de Aragão. Esta disso, este casamento acabou por lhe propor-
decisão foi, de certa forma, transcendental. cionar os apoios de que necessitava. Corrobo-
DESTAQUE

rando a nossa opinião, Luiz Suarez acrescenta isso, o rei castelhano ganhou nova vitalidade. Representação
que D. Isabel, provavelmente, sabia que a bula Além de se ver livre de D. Isabel, em favor da da batalha de Toro
era falsa (no entanto, se alguém disser o contrá- sua filha, conseguiu, graças ao casamento des- (1476): ninguém
rio, Luiz Suarez não terá remédio senão em ta com o irmão do rei de França, angariar novos venceu, mas marcou
aceitar que tal possibilidade pode correspon- e importantes apoios. o fim das aspirações
der à verdade), porque na realidade existia “um” O enorme infortúnio que sempre acompa- a Castela de
documento e toda a gente o viu (mas ninguém nhou D. Joana, voltou a ensombrá-la. A poucos D. Afonso V
o leu). Ou seja, não era uma invenção. Era ape- meses da boda, em setembro de 1472, Carlos,
nas, isso sim, um documento manipulado. No duque de Guyenne e seu marido por procura-
que diz respeito a D. Fernando, Luis Suarez con- ção, morreu de forma misteriosa. Embora haja
sidera que foi o melhor rei que a Espanha teve, várias teorias que apontam a causa da sua mor-
pois iria proporcionar todos os apoios de que D. te, nomeadamente, a tuberculose, envenena-
Isabel iria necessitar para enfrentar a sua sobri- mento ou mesmo sífilis, não conseguimos apu-
nha D. Joana. Fernando era filho de Juan II de rar as causas com segurança, porque as fontes
Aragão e de uma nobre castelhana, Juana Enri- coevas contradizem-se umas às outras.
quéz, membro de uma das famílias mais impor- Em 1472, o mestrado da Ordem de Santiago
tantes desse tempo. O facto de Fernando ser tão estava por ocupar devido à morte do infante D.
próximo, familiarmente, do rei castelhano, im- Afonso, e, para colocar um ponto final nas lutas
plicava, também, estar muito próximo da linha civis em Castela, Henrique IV nomeou o mar-
de sucessão ao trono de Castela, pelo que, na- quês de Villena mestre dessa ordem. A partir
turalmente, este casamento poderia causar al- daí, o marquês tornou-se na pessoa que mais
gum prurido a Henrique IV. defendeu os direitos sucessórios de D. Joana.
Para mostrar que na verdade o futuro de D. Joa-
Alianças matrimoniais na lhe interessava, propôs o casamento desta
Uma vez mais, D. Joana voltou a sofrer com o com D. Afonso V de Portugal. Ao que parece,
seu triste destino. O tratado matrimonial que Henrique IV ficou muito interessado nessa
havia sido acordado para o casamento dela com perspetiva matrimonial, ao ponto de fazer re-
o príncipe D. João, futuro rei de Portugal, iria ser gressar D. Joana da tutela dos Mendoza. Ironica-
muito diferente ao que inicialmente lhe havia mente, foi o próprio marquês de Villena quem
044 sido proposto. Caso se consumasse o matrimó- a foi buscar a casa dos tutores. Segundo nos in-
nio, o papel de D. Joana na cena política e go- formam as crónicas da época, Pedro González
vernativa iria ser extremamente residual, pois de Mendoza continuou a ver o marquês como
esse papel iria ser totalmente desempenhado um traidor. Mais a mais, o cardeal de Espanha
pelo príncipe D. João. Contudo, o casamento en- sempre acatou as decisões de Henrique IV, ape-
tre D. Isabel e o príncipe D. Fernando acabou sar de muitas vezes não as concordar. Porém, a
por desfazer este cenário, como iremos ver. atitude face ao marquês parece ter sido o mo-
Outra solução para D. Joana veio à tona quan- mento de dizer “basta”. Isto porque o cardeal
do os Mendoza pensaram numa aliança matri- considerava que o Marquês constituía um peri-
monial entre ela e Carlos, duque de Guyenne e go para a estabilidade política do reino. Pedro
irmão do rei de França, Luís XI. Após várias reu- González de Mendoza, a partir desse momento,
niões entre o cardeal de Espanha e Henrique IV, perdeu também toda a confiança em Henrique
chegou-se à conclusão de que essa aliança ma- IV. Além disso, D. Isabel mostrava cada vez
trimonial seria a melhor opção para D. Joana. A maior firmeza nas suas ideias relativamente à
diplomacia entre o rei de Castela e os procura- posse do trono e, ao que tudo indica, o cardeal
dores do duque de Guyenne foi coroada de su- começou a apoiá-la.
cesso, assim ficando decidido o futuro de D. Joa- Isabel conhecia muito bem a valia dos Men-
na, bem como a escolha do local para celebrar doza e pressentiu que estava na hora de lhes so-
o casamento por procuração: a ermida de San- licitar apoio. E assim foi. D. Isabel e Pedro Gon-
tiago, Gargantilla del Lozoya (província de Ma- zález de Mendoza reuniram-se secretamente e,
drid). Para além deste passo importante na vida entre muitos assuntos tratados, a princesa no-
de D. Joana, o seu pai, Henrique IV, em virtude meou-o bispo de Siguença. Ora, esta localida-
de a sua meia-irmã, D. Isabel, não ter cumprido de era uma das sedes episcopais mais relevan-
o pacto firmado em Toros de Guisando, decla- tes para Pedro González de Mendoza, porque a
rou que D. Joana seria a única e legitima herdei- cidade e a sua catedral eram testemunho das
ra ao trono de Castela. Na presença do cardeal qualidades artísticas dos Mendoza. O cardeal
de Espanha, juntamente com outros nobres cas- era filho do 1.º marquês de Santillana, um dos
telhanos, jurou-se fidelidade a D. Joana como nobres mais cultos da sua época. Ora, eventual-
legitima herdeira e futura rainha. Desse modo, mente graças a isso, o cardeal tinha um espíri-
Henrique IV retratava-se publicamente do erro to refinado e sensível às novas tendências cul-
praticado em Guisando a favor de D. Isabel. Com turais que se estendiam por todo o Ocidente.
045
DESTAQUE

É num documento da
chancelaria de D. Afonso
V que surge a expressão
“Excelente Senhora”
aplicada a D. Joana

046

Foram os Mendoza quem melhor assimilou a Retrato de D. Afonso V, bos. E terá sido esta uma das últimas vezes em
corrente humanista nascida em Itália. O Renas- rei de Portugal, que o monarca foi visto em público, porque
cimento entrava em Castela pelas mãos desta enquanto jovem, veio a falecer no dia 12 de dezembro de 1474,
família, e o cardeal, muito graças ao privilégio extraído de miniatura com 49 anos. No dia seguinte, na Igreja de S. Mi-
da sua posição política e das suas condições inscrita num guel, em Segóvia, D. Isabel foi proclamada rai-
económicas, decidiu de imediato, tal como os códice da época nha de Castela, mesmo sem a presença do seu
príncipes renascentistas italianos, proteger e marido, D. Fernando.
disseminar a cultura através do mecenato.
Como exemplos, podemos ver na Catedral de Afirmação da rainha católica
Siguença a sala do coro, onde se podem apreciar D. Isabel utilizou como defesa para a legitimida-
os numerosos escudos heráldicos do Cardeal, de governativa o já referido Pacto de Guisando,
bem como o púlpito do lado da epístola (o lado que toda a sociedade castelhana conhecia, o que
direito de quem entra numa igreja) mandado implicava não haver qualquer usurpação de po-
erigir pelo cardeal. der. Uma das primeiras pessoas que apoiaram
O Cardeal Mendoza tinha decidido o seu fu- e juraram fidelidade a D. Isabel foi o cardeal Pe-
turo. Apesar de respeitar integralmente o mo- dro González de Mendoza, (apesar de repudiar
narca, estava agora do outro lado da barricada. por completo esse pacto de Guisando), o que,
Foi por isso que promoveu um encontro de para além de cimentar ainda mais a legitimida-
Henrique IV com a sua meia-irmã, D. Isabel, o de de D. Isabel, também salvaguardou os seus
qual veio a ocorrer em finais de 1473, em Segó- interesses nobiliárquicos do prelado. Convém
via, cidade onde D. Isabel estava a residir. Des- lembrar que os Mendoza, pelo facto de serem
te encontro saiu, ao que parece, a paz entre am- uma família muitíssimo importante em todos
No dia 11 de janeiro de 1495, Pedro González
de Mendoza, cardeal de Espanha, morreu, com
67 anos. Ao que parece, D. Joana inteirou-se da
morte do seu antigo tutor com indiferença.
Aliás, D. Joana, por essa altura, já tinha uma
enorme experiência no que concerne à dor as-
sociada à morte. Já tinha perdido o pai, a mãe,
uma guerra que a mandou viver ad aeternum
como monja clarissa em Portugal, o marido e tio
Afonso V de Portugal. Em suma, o desgosto fa-
zia parte da sua vida, pelo que acreditamos que
a morte do cardeal, aos olhos de D. Joana, tenha
sido, apenas e só, mais uma morte.
Voltando um pouco mais atrás na cronologia,
e já com D. Isabel a reinar em Castela desde a
morte do seu meio-irmão, D. Afonso V de Por-
tugal, achou-se no direito de reclamar o trono
em favor da sua sobrinha, D. Joana. Para isso, e
como forma de obter proveito dessa reclama-
ção, engendrou o seu casamento com ela. Este
realizou-se em 25 de maio de 1475, em Plasen-
cia. Uma vez concretizado, chegava o momen-
to de fazer valer as pretensões dos recém-casa-
dos. Se por um lado D. Afonso V argumentava
que D. Joana, sendo filha de Henrique IV, era a
legitima herdeira, por outro lado, a união ma-
trimonial entre os dois tornava-o a ele próprio
pretendente ao trono de Castela. Ora, entre 1475
e 1479 disputou-se aquela que ficou conhecida
como a Guerra de Sucessão de Castela, tendo o 047
seu auge na batalha de Toro, no dia 1 de março
de 1476 (com um resultado inconclusivo). Sem
entrar em detalhes a vitória parece não ter sor-
rido a nenhum dos reinos, mas o certo é que
Portugal acabou por ceder, visto não ter contin-
gentes nem apoios suficientes para continuar
uma guerra que pudesse garantir os direitos da
princesa D. Joana. No dia 4 de setembro de 1479,
aspetos sociais e políticos, sempre foram defen- O cardeal Pedro a contenda entre os dois reinos terminou e,
sores de uma monarquia forte e de confiança, e González de Mendoza, como resultado, foi assinado um tratado de paz
se havia personalidades que podiam governar retratado entre entre os dois reinos, no dia 8 de setembro de
sob essas condições, estas eram: Henrique IV e, eclesiásticos por Juan 1479, em Alcáçovas. Em 6 de março de 1480,
em última análise, D. Isabel. Esta decisão do car- Rodríguez de Segovia esse mesmo tratado foi ratificado em Toledo. Fi-
deal Mendoza acabou por lhe garantir ganhos cou conhecido para a posterioridade como Tra-
pessoais, pois D. Isabel tornou-o numa das pes- tado de Alcáçovas-Toledo.
soas mais importantes de Castela. Há um por- Nesse acordo ficou estipulado que D. Joana
menor que convém realçar: o cardeal Mendoza não voltaria a ter qualquer título nobiliárquico,
jurou, perante o moribundo Henrique IV, que pelo que nunca mais poderia ser rainha, nem
defenderia todos os direitos de D. Joana até às princesa, nem infanta. A única exceção a esta
últimas consequências. Porém, com o desenro- regra passava por aceitar casar com o filho va-
lar do tempo, a importância da sua posição so- rão de D. Isabel e D. Fernando (os Reis Católi-
cial e política foi mais forte do que a jura que fez cos). Caso não aceitasse esse matrimónio, de-
ao seu antigo monarca, pelo que o desejo de veria ser monja professa em Portugal, o que a
Henrique IV nunca foi honrado. Como sinal de impediria de voltar a casar-se e de ter filhos.
afeto e respeito, assim que o rei faleceu, o car- Convém referir que esta decisão (entre muitas
deal Mendoza tratou de todas as exéquias e, pos- outras) estava plasmada no Tratado de Alcáço-
teriormente, mandou trasladar o seu corpo de vas-Toledo, pois só assim Castela aceitaria a paz
Madrid para o Mosteiro Real de Santa Maria de com Portugal. O reino português não teve outra
Guadalupe, onde jaz, no altar-mor, junto da sua solução senão assinar. D. Isabel tinha triunfado
mãe, Maria de Aragão. em dois tabuleiros: primeiro, na guerra contra
DESTAQUE

Fernando de Aragão
e Isabel de Castela,
os Reis Católicos,
simbolizam, de certo
modo, a Espanha unida

Portugal; segundo, ao silenciar definitivamen- historiador Tarsicio de Azcona vê D. Joana como


te uma legitima herdeira ao trono de Castela. a legitima herdeira, pois considera que nunca
houve qualquer atropelo legal no casamento
Remetida ao mosteiro entre Henrique IV e Joana de Portugal, até por-
Assim que D. Joana soube das clausulas do tra- que foi um casamento canónico anexado com a
048 tado, rejeitou por completo contrair matrimónio respetiva bula de dispensa papal, que se encon-
com o filho dos reis Católicos, pois o orgulho fa- tra hoje à guarda do Arquivo de Simancas.
lou mais alto; ser rainha por via indireta não es- D. Joana ingressou, assim, na vida monásti-
tava nos seus planos, pois tinha consciência de ca. Depois de passar breves dias no convento
que a sua tia, D. Isabel, usurpara a coroa que lhe de Santa Clara de Santarém, foi enviada para
pertencia legitimamente. E mais: para D. Joana, Coimbra, por haver um surto de peste na cida-
este matrimónio não era mais do que a forma de ribatejana. A comunidade clarissa de Coim-
de legalizar um reinado implantado pela força bra preparou-se para receber uma nova mon-
das armas. Apesar da recusa do casamento, D. ja (era mais uma, não havia qualquer benesse
Joana sabia muito bem qual era o seu próximo por ser quem era), e à cerimónia assistiu uma
destino, mas nunca renunciou ao seu direito ao delegação castelhana, encabeçada por Hernan-
trono de Castela, pois teve sempre a certeza de do de Talavera, confessor da rainha de Castela.
ser filha de Henrique IV, apesar deste a ter des- D. Isabel tinha de ter a certeza absoluta de que
legitimado várias vezes, por estar totalmente D. Joana ingressava na vida religiosa e, acima
pressionado pelas várias conjunturas políticas. de tudo, não voltaria a sair dessa vida. O mo-
Todavia, estamos em crer que existe aqui uma mento mais importante para a delegação cas-
ambiguidade circunstancial: do ponto de vista telhana tinha chegado: D. Joana, com apenas 18
legal, tanto D. Joana como D. Isabel poderiam anos, tinha que afirmar que decidia livremen-
ser rainhas de Castela. Sendo D. Joana, filha le- te, e sem nenhum tipo de coação, ser monja
gitima do monarca, o direito ao trono teria de clarissa. A resposta foi aquela que a rainha de
ser dela; no entanto, os Pactos de Guisando for- Castela mais queria ouvir da delegação caste-
neciam a legitimidade necessária a D. Isabel. lhana, à qual foi entregue documentação a
Luis Suarez defende que a única legitima her- comprovar a nova condição da princesa. A rai-
deira seria D. Isabel, isto porque as deficiências nha Isabel terá respirado de alívio, pois a “mu-
jurídicas que rodearam o casamento de Henri- chacha”, como a Católica a apelidava, não a in-
que IV com Joana de Portugal (irmã de D. Afon- comodaria tão cedo. A filha de Henrique IV as- Cópia espanhola do
so V e filha de D. Duarte), assim como o reco- sumiu o papel de vítima que a vida lhe foi dan- Tratado de Alcáçovas-
nhecimento público dos Pactos de Guisando e do. Esteve sempre sozinha, e até aqueles que -Toledo à guarda
as pazes feitas pelo Natal de 1473 em Segóvia, um dia lhe disseram apoiá-la mantiveram-na do Arquivo Geral
entre Henrique IV e D. Isabel, não deixam dú- presa num convento, sempre sob vigilância. de Simancas
vidas de que seria ela a legitima herdeira. Já o Referimo-nos aos monarcas portugueses. Mes- (Valladolid)
049
DESTAQUE

050

Beltrán de La Cueva,
alegado amante
da rainha, que valeu
a D. Joana a alcunha
pejorativa de
“Beltraneja”
Moeda medieval de
Castela e Leão com a
efígie de Henrique IV,
cuja paternidade de
D. Joana era contestada

mo quando Afonso V decidiu mandar escrever em novembro de 1504, Joana a Louca e Filipe
um documento da sua chancelaria régia, dan- de Habsburgo o Belo, tornaram-se reis de Cas-
do a D. Joana todos os privilégios e direitos, tela. Era o crepúsculo da dinastia de Trastâma-
como se fosse uma rainha ou princesa – aí é re- ra. Pelo visto, D. Fernando não ficou muito fe-
ferida pela primeira vez como Excelente Se- liz com a sorte que teve no testamento da sua 051
nhora –, isso não lhe deu alívio. Pelo contrário, esposa e reclamou. Desejava continuar a gover-
foi ainda mais vigiada. Até as visitas que rece- nar o reino de Castela e, de uma vez por todas,
bia no convento eram devidamente controla- evitar que Filipe de Habsburgo o Belo se tornas-
das e vigiadas. Quando D. Joana deixou o con- se rei. Perante esta situação, a D. Fernando só
vento, por volta de 1497, instalou-se em Lisboa, restava procurar apoios em Portugal ou em
e todos os elementos que compunham a casa França. Os seus partidários pensaram numa
para onde foi viver eram próximos do rei por- pessoa que o poderia ajudar a recuperar a coroa
tuguês, sendo que até o governador da sua casa castelhana: D. Joana, filha de Henrique IV. D.
era membro do conselho real. A vigilância con- Joana, já com 42 anos, ainda tinha tempo de re-
Juan Pacheco, tinuava extremamente apertada. cuperar aquilo que lhe tinham usurpado. Toda-
marquês de Villena, via, ao saber do interesse de D. Fernando para
teve um papel “Yo la reina” um possível matrimónio, optou pelo silêncio.
importante em toda Estamos convencidos de que D. Joana nunca Julga-se que D. Fernando nem sequer se incli-
esta história deixou de ser uma prisioneira em Portugal, até nou para D. Joana, pendendo para o lado de
porque pelo facto de ter professado como cla- França, pois considerava mais vantajosa uma
rissa não foi um inconveniente para que os mo- aliança com esse reino, materializada no casa-
narcas portugueses especulassem sobre um mento em segundas núpcias com Germana de
possível matrimónio de D. Joana, com o objeti- Foix, sobrinha do rei francês, Luis XII.
vo de obterem vantagens políticas. Todos a uti- D. Joana chegou aos 68 anos. Por essa altura,
lizaram, mas, com o passar do tempo, já nin- o reino de Castela era governado por Carlos V, e
guém se recordava dela. Chegando ao fim da Portugal por D. João III. No seu testamento, fica
vida, parecia encontrar tranquilidade e paz. bem claro que deixa todos os seus bens ao mo-
Em Castela, a rainha D. Isabel já tinha morri- narca português, D. João III, mas o que fica para
do, em 1504. No testamento, deixou bem claro posterioridade, num dos itens do seu testamen-
que a herdeira ao trono castelhano seria a sua fi- to, são os 100 mil reais para ajudar as “órfãs de-
lha, também Joana, a quem posteriormente foi sonradas obrigadas a provar os seus direitos”.
atribuído o epíteto de A Louca. Ficou também Assinou o testamento como sempre assinou to-
assente que, em caso de incapacidade por par- dos documentos, apondo-lhes a seguinte frase:
te de Joana a Louca, seria o seu pai, o rei D. Fer- “Yo la reina”. Morreu em 1530 e, com ela, mor-
nando o Católico, o regente de Castela. Porém, reu também a dinastia de Trastâmara.
MONUMENTOS PORTUGUESES

052

JARDIM DO PAÇO
CASTELO
EPISCOPAL
DE CASTELO BRANCO
BRANCO

Implantado ao que antes era a residência dos bispos de Castelo


Branco (a diocese é hoje de Portalegre-Castelo Branco), edifício onde
está instalado o Museu Francisco Tavares Proença Júnior, o jardim
barroco e outros espaços exteriores viram a eles alargada, em 2017,
a classificação de Monumento Nacional já antes atribuída ao edifício.
Tipo Não é para menos. Há muito que o Jardim do Paço Episcopal, com
Jardim numerosa e impressionante estatuária, rica azulejaria, canteiros
Classificação debruados a buxo esculpido e abundantes e aromáticas laranjeiras
Monumento Nacional é um dos locais mais visitados e fotografados da cidade beirã.
Época de construção As escadarias dos reis e dos apóstolos, por exemplo,
Secs. XVIII-XX são inconfundíveis.
Utilização atual
Uso recreativo
Nota
histórica
Antes da instauração da
diocese de Castelo Branco, em
1771, a capital da Beira Baixa já
albergava a residência de verão
dos bispos da Guarda desde a
última década do século XVI,
quando D. Nuno de Noronha ali
adquiriu terrenos para instalar
os recreios episcopais. E foi
ainda sob a égide dos prelados
egitanenses (transportaram
para a Guarda o gentílico que
vinha da primitiva diocese de
Egitânia, Idanha-a-Velha) que,
no primeiro quartel do século
XVIII, o paço foi reedificado e os
jardins concebidos e
construídos, incluindo o
passadiço que hoje se mantém
sobre a Rua Bartolomeu da
Costa, ligando ao Parque da
Cidade. Era bispo D. João de
Mendonça, e o espaço foi
desenhado por Valentim da
Costa Castelo Branco, a partir 053
de 1717 com indicações
PEDRO CORREIA / GLOBAL IMAGENS

concrteas do próprio bispo,


inspirado por uma visita a
Roma. Ao longo desses anos, o
projeto foi sendo completado,
por exemplo com a execução
das estátuas de S. João Batista
e Maria Madalena, em 1725, e
da Cascata de Moisés, no ano
seguinte. Com a criação da
diocese albicastrense, paço e
jardins foram ocupados em
permanência pelos bispos. Com
o convulso século XIX, a cidade
perdeu peso na instituição
eclésiástica. Em 1831, com a
Guerra Civil ao virar da esquina,
morreu D. Joaquim José de
Miranda Coutinho, que foi o
último bispo de Castelo Branco,
embora a extinção da diocese
só tenha ocorrido em 1881.
Ainda no século XIX funcionou
ali o Governo Civil. Chegada a
República, o Estado vendeu os
anexos rústicos ao município,
que em 1912, celebrando com
isso o 5 de Outubro, fez do
jardim barroco um espaço de
fruição pública.
054

A N T Ó N I O V E N T U R A
ENTREVISTA

“OS DECISORES
POLÍTICOS SÃO,
NORMALMENTE,
ANALFABETOS
NO QUE RESPEITA
À HISTÓRIA” 055

Historiador da contemporaneidade portuguesa, António Ventura


ganhou notoriedade, entre tantos outros interesses, como historiador
da Maçonaria. No momento da sua jubilação, fala-nos muito disso.
Em termos históricos, claro, sem os delírios conspirativos
associados por muitos à instituição
Textos de Pedro Olavo Simões Fotografias de Leonardo Negrão / Global Imagens
ENTREVISTA

E
ntramos na Faculdade to permite explicar a coisa. Isso é váli- história à geologia, no sentido em que
de Letras da Universi- do para conceitos, para símbolos, para a geologia. Quando olhamos para um
dade de Lisboa vigia- situações várias. A história nunca se re- território, a geografia permite-nos ver
dos pelos célebres de- pete, contrariamente àquilo que é po- o que está à superfície, e a geologia
senhos de Almada Ne- pular dizer-se. Agora, há situações que permite-nos compreender o que está
greiros, gravados nas merecem ser refletidas em função de no subsolo, o que está por debaixo.
paredes e represen- um histórico. De facto, o presentismo Olhando para um conflito, vemos
tando grandes vultos da nossa literatu- é o mal do nosso tempo. Isto é, olhar- como ele está a decorrer, como é que
ra. Voltaremos lá para algumas fotogra- -se para o hoje como se não houvesse se gerou. Mas há um historial que é
fias com o historiador António Ventu- ontem, quando o ontem ajuda a com- preciso ver e que, por vezes, tem sécu-
ra, catedrático da instituição que aca- preender o hoje. Isso é válido, por los e séculos de existência. E se não
ba de se jubilar. Seguiu-se a agradável exemplo, para os conflitos... compreendermos isso, se não fizermos
conversa que dá corpo a estas páginas. o diagnóstico, não há terapêutica apro-
Podia ter seguido muitos rumos, liga- E olhar o ontem como se fosse hoje. priada. O problema é que muitas vezes
dos à contemporaneidade, mas acabou Claro! É também muito vulgar as pes- só se veem os sintomas e não as doen-
por desaguar sempre na Maçonaria, de soas olharem para o passado com os ças que é necessário tratar. E a história
que é um dos mais eminentes estudio- olhos de hoje. Evidentemente, não há ajuda, de facto.
sos. E sem a menor sombra de precon- outros olhos a não ser os de hoje, isso
ceito ou de segredo. é um facto, mas tentar olhar para os ho- Os decisores políticos querem ação
mens e mulheres do passado em fun- rápida. Significa que não fazem essa
Nada como começar com uma ques- ção dos valores de hoje é complicado, reflexão?
tão aparentemente pateta, pegando porque esses valores não são intempo- Mas os decisores políticos são, normal-
em dois dos seus temas de eleição, a rais, contrariamente ao que a propa- mente, analfabetos no que respeita à
Maçonaria e a Primeira República: um ganda afirma. No século XVI os valo- história. Sabem muito de ciência polí-
maçon pleno tem de ser republicano? res eram uns, mas nos séculos XVII, tica, eventualmente, talvez de relações
De forma nenhuma. Aliás, uma das ca- XVIII, XIX ou XX vamos tendo valores internacionais, mas de história não sa-
racterísticas da Maçonaria foi sempre diferentes, sempre. Temos de olhar bem nada. O grande problema dos po-
a pluralidade... para o passado em função da mentali- líticos, nomeadamente dos grandes
dade da época, do contexto da época. políticos mundiais, é que pensam que
056 A pergunta era uma blague, para pe- a história começou com eles, e não co-
gar nos ideais de liberdade, igualda- E isso se estivermos fechados na nos- meçou. E olham com um certo despre-
de e fraternidade. Onde cabe a igual- sa realidade de grupo. zo para a história. Têm assessores de
dade num sistema de privilégios? De grupo e europeia. ciência política e por aí fora, que teori-
São conceitos que mudaram ao longo zam não sei quê, mas não conhecem a
do tempo. Pode haver igualdade den- Exato. Recordo, muitas vezes uma história. Deviam ser feitos cursos de
tro do mesmo grupo social, não quer ideia de Marc Bloch, na introdução da verão para esses políticos, para eles
dizer que seja na sociedade. Aliás, “Apologie pour l’histoire...”, em que ele aprenderem alguma coisa.
quando a Maçonaria moderna surge, diz que castigar um assassino pressu-
no século XVIII, em Inglaterra, a socie- põe que se considere o assassínio con- Dispunha-se a ensiná-los?
dade inglesa não era igualitária, bem denável, o que não acontece forçosa- Era uma questão a ver, mas penso que
pelo contrário. A Maçonaria nasce mente em todas as civilizações. em relação a alguns era inútil.
dentro de grupos privilegiados: da no- Sim, sim, de forma nenhuma... Mas
breza, do alto clero... Até porque esse ainda continuamos, hoje em dia, a ter Dizia que alguns pensam que a his-
“liberdade, igualdade e fraternidade” essa perspetiva ‘euroatlanticocêntrica’, tória começou com eles e, provavel-
é um lema adaptado pela Maçonaria, como se o mundo todo tivesse a ver mente, também pensarão que acaba
mas que existe antes e adapta-se a com a nossa tradição. E não tem. com eles. Ainda faz sentido andar a
cada momento histórico. Não são, por argumentar com aquelas questões
assim dizer, consignas absolutas, mas Há pouco, quando falávamos em pre- como o “fim da história” do Francis
têm de ser vistas em função do mo- sentismo, falou nos conflitos. Isso ve- Fukuyama? Que, em termos historio-
mento em que são ditas. rifica-se com as interpretações hoje gráficos estritos, é um absurdo, pois
feitas da guerra na Ucrânia? haverá história enquanto houver se-
Isso leva-me à atualidade e a ques- Todos os conflitos. Na Europa, em Áfri- res humanos...
tões ligadas a alguma incapacidade ca, os problemas na América Latina, os Sim, e penso até que haverá história
de ver o passado no seu contexto, ou problemas no Extremo Oriente... Tudo pós-humana. Enfim, são exercícios
a uma certa insistência no presentis- tem a ver com o contexto que remete que são respeitáveis, mas enfim... Eu
mo. Tudo tem a ver com a essa ideia para a história, pois todos esses confli- prefiro fazer outro tipo de história.
de um conceito decorrer também do tos têm uma genealogia, que é preciso
contexto em que é usado? conhecer. Senão, olhamos para o que Voltando à questão inicial: não sendo
Eu digo muitas vezes que é necessário está a acontecer como se não houves- conhecedor, noto que muita da oposi-
olhar para o contexto, pois só o contex- se passado. Eu costumo comparar a ção à Maçonaria, hoje, em Portugal,
sociedade mudou e, mais uma vez, os
contextos mudaram. Mesmo em Por-
tugal. Curiosamente, o que sabemos
da Maçonaria em Portugal deve-se
quase exclusivamente às persegui-
ções que lhe foram movidas, aos pro-
cessos da Inquisição, etc. Há pouquís-
sima documentação original maçóni-
ca dessa época. Ora, através desses
processos, desses inquéritos, há um
conjunto de informações que se reti-
ram, e a conclusão a que chegamos,
em relação ao século XVIII, até ao
tempo do Pombal, é que era uma Ma-
çonaria inicialmente formada por es-
trangeiros que viviam em Lisboa, co-
merciantes, capitães de navios, ecle-
siásticos, alguns militares, alguns aris-
tocratas, mas não da alta aristocracia.
Depois, a partir do Pombal, há uma
certa alteração, com base no que sa-
bemos por essas fontes. Temos co-
merciantes, temos juristas... Depois,
no princípio do século XIX, há uma
tendência, que acompanha depois a
implantação do liberalismo, a partir
de 1820, que é a de uma presença bur-
guesa maior. Também há aristocratas,
obviamente, e uma presença de cléri-
gos, tanto regulares como seculares, 057
bastante grande. É essa a situação que
se vai mantendo, sensivelmente até à
década de 70 do século XIX. Natural-
mente, são monárquicos, na sua es-
magadora maioria.

E republicanos?
Aparece um ou outro. Aliás, é bastante
curioso que, mesmo ao nível dos grão-
-mestres, no século XIX, encontramos
grão-mestres monárquicos e republi-
canos. Republicanos como Elias Gar-
cia, monárquicos como Bernardino
“TENTAR OLHAR envolve setores monárquicos e cató-
licos mais conservadores. No caso
Machado, que era monárquico quando
foi grão-mestre, e só depois adere ao
PARA OS HOMENS dos monárquicos, por exemplo, pode- Partido Republicano Português, em
E MULHERES DO rá ter ainda a ver com as associações
diretas, mal feitas, entre Maçonaria e
1903. Há casos interessantes como o do
visconde de Ouguela, aristocrata mas
PASSADO EM FUNÇÃO Carbonária, resultando na responsa- socialista, um homem muito preocu-
DOS VALORES DE HOJE bilização pelo Regicídio?
Não... Eu penso que é preciso olhar
pado com a questão social. Notamos aí
uma alteração, que é a diminuição
É COMPLICADO” para a história da própria Maçonaria, drástica do número de clérigos. Se
tanto a nível internacional como a ní- olharmos para o século XVIII ou para o
vel de Portugal, porque não podemos início do século XIX, vinte e tal ou 30%
generalizar. A Maçonaria do século dos maçons eram clérigos. Por que é
XVIII não é a mesma que a do princí- que as coisas mudam na década de 70?
pio do século XIX, a da segunda meta- Por causa do contexto internacional.
de do século XIX ou a do século XX.
Ou seja, evoluiu, mantendo um con- Eu ia já perguntar se havia alguma
junto de ideais permanentes, mas a reação a circunstâncias como a extin-
ENTREVISTA

ção das ordens religiosas, mesmo


ocorrendo trinta e tal anos antes.
Pois, mas o liberalismo não é anticató-
lico. É anticlerical em certa medida,
mas encontramos figuras da Igreja. Es-
tou a pensar no D. António Alves Mar-
tins, bispo de Viseu, que era maçon,
mas há outros bispos...

Desde logo o cardeal Saraiva...


Sim, por exemplo. Curiosamente, ape-
sar da proibição pontifícia, que come-
ça no século XVIII, muitos católicos
não viam incompatibilidade entre se-
rem católicos, e até dignitários da Igre-
ja Católica, e serem maçons. Não viam
qualquer impedimento, porque essa
Maçonaria era religiosa, não era ateia
ou indiferente. Evocava o Grande Ar-
quiteto do Universo, que, para eles, era
Deus, independentemente da opinião
de cada um. As coisas mudam, de fac-
to, na década de 70, essencialmente
com duas situações. Uma delas é a uni-
ficação de Itália, com a perda do poder
temporal do Papa. Naturalmente, os
maçons italianos tiveram um papel
fundamental na unificação. Depois, te-
mos a queda de Napoleão III, em Fran-
058 ça, e a proclamação da República. En-
tão, a monarquia italiana e a República
francesa são muito anticlericais e têm
uma grande influência da Maçonaria.
Por isso mesmo, a Igreja Católica sen-
te-se acantonada...

Literalmente acantonada no Vaticano...


Por isso mesmo, a Igreja Católica res-
ponde. Desde logo com o Concílio Va-
ticano I, com um conjunto de medidas
destinadas a combater o modernismo,
o socialismo, o positivismo, a Maçona-
ria... Portanto, temos aí uma tensão que
se vai agudizar e, no caso de Portugal,
são escassos os clérigos que encontra- “CONTUBÉRNIO Estado Novo e com o papel da Igreja
na passagem de uma imagem pouco
mos nos finais do século XIX e no prin- JUDAICO-COMUNISTA- recomendável?
cípio do século XX. Contam-se pelos
dedos. A posição da Igreja Católica a ní-
-MAÇÓNICO A evolução histórica de que falávamos
leva-nos ao século XX, e na década de
vel internacional refletiu-se em Portu- É UMA COISA 20 do século XX a situação começa a
gal, e, se lermos a imprensa católica
desses tempos, é violentíssima contra
VERDADEIRAMENTE mudar, a nível internacional também,
o que se reflete em toda a Europa.
a Maçonaria, da mesma forma que a EXTRAORDINÁRIA!” Fundamentalmente, o ascenso das ex-
imprensa republicana é violentíssima periências totalitárias: estou a pensar
contra a Igreja Católica. no caso de Itália, onde a Maçonaria é
proibida, estou a pensar depois no
Mas, voltando à perceção negativa da caso da Alemanha, onde a Maçonaria
Maçonaria por determinados setores, é proibida, estou a pensar no caso da
no Portugal de agora. Não haverá cau- Rússia soviética, onde a Maçonaria é
sas mais recentes, relacionadas, por proibida. Ou seja, temos situações di-
exemplo, com a proibição durante o ferentes, situações novas, que têm
059

também de ser analisadas de forma do que a Maçonaria é uma chaga no proibiu a Maçonaria, eventualmente
objetiva e em termos históricos. Nós corpo do movimento operário francês por causa do José Martí, herói nacional
vamos encontrar uma literatura, logo e é preciso queimá-la com um ferro cubano, que era maçon. No nosso caso
no início da Revolução Soviética, que em brasa... concreto, temos um lastro histórico,
pretende colar essa revolução à Maço- que tem a ver com a Inquisição, mas
naria e ao judaismo. Um contubérnio Mas a tal colagem errada persistiu? que, penso eu, não se refletiu muito.
judaico-comunista-maçónico é uma De tal modo que em Espanha, depois Depois, temos a proibição da Maçona-
coisa verdadeiramente extraordinária! da Guerra Civil, é criado um tribunal ria, em 1935. Durante o Estado Novo,
E publicam-se, ainda hoje, livros que para julgar os crimes relacionados com existe toda uma literatura contra a Ma-
defendem essas ideias, quando, em o comunismo e a Maçonaria. O mesmo çonaria por parte dos historiadores
1922, o quarto congresso da Interna- tribunal, em que se misturam as duas afetos ao Estado Novo, como o João
cional Comunista proclama, na 22.ª coisas, que não têm nada a ver uma Ameal, em que a Maçonaria era, de fac-
condição de adesão à Internacional, a com a outra. Voltando atrás, existe a to, o demónio, uma coisa horrível. É
incompatibilidade entre a pertença a proibição da Maçonaria nesses regi- feita a colagem da Maçonaria à Primei-
um partido comunista e a pertença à mes totalitários, tanto de cariz fascista ra República, à desordem, às greves,
Maçonaria. A Maçonaria é fulminada: como comunista. Aliás, dos vários paí- aos atentados e a essas coisas todas, à
há um texto célebre do Trotsky, dizen- ses comunistas, só Cuba é que não falta de respeito pela Igreja... Porque,
ENTREVISTA

060

de facto, no princípio do século XX, em são dos jesuítas, a mensuração deles pessoas já dos anos 30 e 40, que se
Portugal, a Maçonaria vai-se tornando como se fossem criminosos... lembravam dos pais: “Ah, Maçonaria,
cada vez mais anticlerical e anticatóli- isso é uma coisa horrível”, “ui, o pai
ca. Isso é um facto. Depois, a proclama- O tempo da frenologia, coisas assim... daquele era maçon!”. Como se fosse
ção da República vai consolidar essa Sim, depois temos a lei do divórcio e uma coisa horrorosa. Isso é algo que
tendência, que não existia antes. Te- a lei da separação do Estado e das penetra na opinião pública, digamos
mos uma propaganda anticatólica fei- igrejas. Quando olhamos hoje para es- assim, associando a Maçonaria a uma
ta pela própria Maçonaria, que dá uma sas leis, pensamos que são razoáveis: coisa negativa...
radicalização, na Primeira República, e separar a igreja do Estado e uma lei
que acompanha, aliás, a própria histó- que permita o divórcio. Mas na época É muito fácil criar essa imagem?
ria da Primeira República e do republi- (cá estão as questões das mentalida- Muito fácil, mesmo. É muito mais fácil
canismo, digamos assim, mais avança- des e dos contextos) são leis contra a criar uma imagem negativa do que
do nesse tempo. Igreja Católica, que não permitia o di- uma imagem positiva.
vórcio e tinha uma posição privilegia-
Que se reflete, por exemplo, em ações da, na própria sociedade, em relação E limpá-la, depois, é sempre mais
humilhantes contra os eclesiásticos... às outras igrejas existentes. No Estado difícil.
Sem dúvida. Começa logo com a pri- Novo, há essa demonização. Falei com Claro, pior ainda.
Isso nasce de quê, da história do secre- narquia constitucional, até 1910, nós
tismo? Já sei que não gosta da palavra... encontramos maçons nos vários par-
Não, não... Isso também depende mui- tidos monárquicos, incluindo chefes
to do significado da própria palavra. A de governo. Estou a pensar no José Lu-
palavra “secreto” não tem nada de ne- ciano, no Dias Ferreira e outros, tanto
gativo. Secreto é oculto, não revelado, do Partido Regenerador como do Par-
não exibido, não público. Secreto é o tido Progressista, do Partido Reformis-
contrário de público. Portanto, à parti- ta... Há pouco falei do Alves Martins,
da não tem nada de negativo. Mas, no bispo de Viseu, que era líder de um
entanto, na opinião pública, se é secre- partido monárquico. Encontramos
to é porque esconde alguma coisa pou- maçons em partidos que se digladia-
co edificante. Senão, por que é que eles vam eleitoralmente e que procuravam
não mostram? É muito fácil fazer este conquistar o poder. A mesma coisa
tipo de argumentação, Claro que se acontece durante a República, que foi
pode argumentar, estou a pensar na- um período de convulsões tremendas,
quele texto do Fernando Pessoa, em de lutas políticas tremendas e fratrici-
que ele dizia “bem, vou dar o exemplo das entre os republicanos, que haviam
de uma associação secreta que é o estado unidos...
Conselho de Ministros, que não é pú-
blico”. Enfim, não é muito difícil cons- Implantada a República, acabou-se
truir essa ideia tenebrosa, de conspi- a união...
ração, de favoritismo... Isso também é lógico. Foi exatamente
o que aconteceu com o liberalismo, em
Certamente que acaba por haver fa- 1834.
vorecimentos...
Claro que sim, como em qualquer Deixa de haver uma causa comum e
agremiação humana. Aliás, nós temos surgem as divisões?
exemplos, até próximos, em Portugal, Claro! A forma mais fácil de unir é con-
que têm a ver com determinados cír- tra um inimigo comum. Isto é válido
culos. Podem ser círculos políticos, au- para todos os campos. Até hoje. Até no 061
tárquicos, futebolísticos, etc. Quando que respeita a alianças entre países. O
os homens e as mulheres se reúnem problema é se o inimigo comum é ven-
numa agremiação, qualquer que ela cido. Depois de 1834, tivemos a luta en-
seja, seja de cariz religioso, político, tre cartistas, vintistas... para além das
económico, etc., há sempre a tendên- questões pessoais, que não são despi-
cia para favorecer os que pertencem a ciendas. Quando olhamos para o inte-
esse círculo. rior dos partidos, e isso hoje também é
válido, e para confrontos internos, fre-
Desde logo, o núcleo familiar. quentemente têm a ver com questões
Sim, sim... O da própria localidade, os pessoais e não com questões de carác-
patrícios, os conterrâneos... Foi sem- ter ideológico ou programático.
pre assim.
E é fácil chegar a essas questões pes-
“SECRETO E conspirar? Sem ser naquele sentido
efabulado que vemos nalguma litera-
soais, pela documentação?
Não é, não. Porque são aquele tipo de
É O CONTRÁRIO tura, com iluminati e coisas dessa na- coisas inconfessáveis. Como hoje, se
DE PÚBLICO. tureza, a verdade é que vemos gente
da Maçonaria em momentos de gran-
vemos alguém a sair de determinado
partido, essa pessoa não diz que o faz
PORTANTO, À PARTIDA de viragem da contemporaneidade porque não suporta o líder. Diz que
NÃO TEM NADA portuguesa: no liberalismo, na Repú-
blica, até com o 25 de Abril o primei-
tem divergências insanáveis com o lí-
der, porque não é de bom tom dizer
DE NEGATIVO” ro primeiro-ministro era maçon. Ou que não o suporta pessoalmente, que
isso explica-se pela pluralidade no embirra com ele, que o detesta. Ora,
seio da instituição maçónica? voltando à questão da Primeira Repú-
De facto, essa é uma característica que blica, a partir do momento em que o
uma análise objetiva conclui com toda Partido Republicano se vai dividindo
a facilidade. Por exemplo, vamos à e vai dando origem a partidos vários,
pluralidade política. Pluralidade de nós encontramos maçons em todos os
opções, que inviabiliza, depois, a tal partidos. Todos! No partido dito De-
teoria da conspiração. Durante a mo- mocrático, no Partido Republicano
ENTREVISTA

Português, no Partido Evolucionista, parte do mundo. Por exemplo, um ca- va lá... A loja durou um ano. Como é
na União Republicana, no Partido tólico que vai à missa aqui em Lisboa que eles podiam sentar-se ao lado uns
Centrista, no Partido Nacionalista, no ou que vai à missa em Paris, ou em dos outros? O fator humano é sempre
Partido Presidencialista, no Partido Nova Iorque, ou em Tóquio, indepen- fundamental.
Comunista, no Partido Socialista... Há dentemente da língua em que a missa
maçons em todos os partidos. Ora, a está a ser dita, ele sabe o que está a fa- Isso tem a ver, também, com a frag-
tal teoria da conspiração, a concreti- zer e em que momento é que está. Sen- mentação das próprias obediências
zar-se, levaria a que todos eles se con- te-se parte daquele todo, e o ritual é maçónicas?
gregassem com um objetivo comum, esse elemento integrador. Tal como É uma questão complicada... Quando
e isso não aconteceu. numa cerimónia académica, numa ce- falamos da Maçonaria, falamos dela
rimónia militar... Não há que menori- como entidade única, como um con-
Teria de haver um partido que era a zar o ritual, porque é importante em junto de princípios, mas, depois, temos
Maçonaria... todas essas instituições. a sua divisão em obediências. Mais uma
… que estava por detrás de todos os ou- vez, a célebre palavra “obediência”, que
tros, que concertava, que tocava, e os Voltando à República, para não per- muita gente confunde com o dever de
outros dançavam. Não foi assim. Nós dermos o fio à meada. Eles podiam ser obedecer. Não: obediência é uma fede-
encontramos no Parlamento, no Sena- irmãos maçons numa obediência, ou ração de lojas, ponto final. E é uma fe-
do, nos jornais, por todo o lado, nas até numa loja concreta, e ser adver- deração de lojas que pode ter as carac-
sessões, maçons a digladiarem-se, jus- sários políticos encarniçados cá fora? terísticas de Grande Loja ou de Grande
tamente porque as questões partidá- Claro que sim, e isso, que seria positi- Oriente, ou outras, que estas coisas
rias estavam em primeiro lugar. Pri- vo, à partida, acabou por ser negativo. também evoluíram ao longo do tempo.
meiro estavam as questões políticas e O facto de pessoas com opiniões polí-
só depois a pertença maçónica. ticas diferentes conviverem no mes- Isso tem a ver com o rito adotado?
mo organismo é salutar, porque não Tem, essencialmente, a ver com a or-
Isso vai contra preconceitos, por devia haver, nunca desde o século ganização. Hoje, a questão já é comple-
exemplo, em relação ao juramento XVIII, no seio da Maçonaria, o propó- tamente diferente, mas, inicialmente,
maçónico? sito de alguém convencer alguém às uma Grande Loja era uma obediência
Não, porque o juramento maçónico suas ideias e às suas posições. Dialo- que tinha apenas um rito, e um Gran-
não tem nada a ver com a obediência gar e debater de uma forma perfeita- de Oriente era uma obediência em que
062 ao que quer que seja. É um juramento mente civilizada, como diríamos hoje, havia vários ritos. Isso alterou-se e,
que existe em muitas outras associa- é positivo, mas o problema é que esta- hoje em dia, essa nomenclatura já não
ções, talvez não com a forma de jura- mos a falar de seres humanos. Ora, é muito apropriada. Portanto, temos
mento. Quando uma pessoa entra pessoas que pertenciam à mesma loja dezenas de ritos, de vez em quando in-
numa agremiação, tem o dever de e se insultavam no Parlamento e nos ventam outros. Estão sempre a surgir
cumprir os regulamentos, os estatutos, jornais, como é que podiam conviver e não vem daí mal ao mundo: se as pes-
as regras dessa agremiação. O funda- depois? Na Primeira República, houve soas se sentem felizes, que o façam.
mental é isso. casos de lojas que explodiram por cau- Depois, temos organização de obe-
sa disso, como a loja Pro Patria, de diências, consoante os ritos, e cisões.
A ritualização também cria uma aura Faro, em que o líder algarvio do Parti- Muitas vezes, essas cisões tinham a ver
de mistério... do Republicano Português estava lá, o com as tais questões pessoais. A Maço-
Que é outra coisa... Eu digo muitas ve- líder do Partido Evolucionista estava naria é uma organização humana
zes que o homem é um ser eminente- lá, o líder da União Republicana esta- como qualquer outra, não tem nada de
mente ritualista. Todos temos os nos- extraordinário. E essas cisões levavam
sos rituais desde que nos levantamos.
Também a sociedade é uma sociedade “ENCONTRAMOS à formação de outras obediências. Hoje
em dia, há uma pluralidade enorme de
ritualizada, e não estou a falar apenas GENTE ORIUNDA obediências.
da religião. Estou a falar do futebol, es-
tou a falar da política, estou a falar do
DE VÁRIOS Faz sentido falar em Maçonaria no
mundo académico. O homem é um ser PARTIDOS singular?
ritualista por essência, e o ritual é im-
portante, digamos assim, não só na Ma-
NAS OBEDIÊNCIAS Faz, como se pode falar em catolicismo
no singular. O catolicismo tem um che-
çonaria, mas na religião e em todo o TODAS” fe, que é o Papa, mas depois há ritos di-
lado, porque é um elemento integrador. ferentes.

Mas também é hierarquizante. E se falarmos em cristianismo, em


Pode ser e pode não ser, depende. O ri- sentido lato, a diversidade torna-se
tual religioso, por exemplo, permite muito maior.
que as pessoas se sintam parte de um Aí então... Mas eu estava a falar no ca-
todo. Mais ainda: o conhecimento do tolicismo porque, por exemplo, há ca-
ritual permite participar em qualquer tólicos do rito oriental, que obedecem
ao Papa, mas cujos padres se casam. Na
Ucrânia encontramos católicos de rito
oriental, bizantino. E no cristiamismo
em geral, de facto, nunca mais acaba,
são centenas e centenas de igrejas di-
ferentes, todas elas reivindicando-se
da herança cristã. Em relação à Maço-
naria, há uma pluralidade enorme. Em
1974 havia uma obediência em Portu-
gal, hoje em dia há vinte e tal, e estão
sempre a aparecer obediências novas.

Isso leva ao seguinte. Muitas vezes,


os “profanos”, para usar terminolo-
gia maçónica, ligam as obediências
aos partidos. O Grande Oriente Lusi-
tano ao PS e a Grande Loja Legal de
Portugal ao PSD. Isso não faz nenhum
sentido?
Nenhum. Fez algum sentido a seguir ao
25 de Abril, altura em que no Grande
Oriente Lusitano havia, de facto, um
núcleo de velhos elementos do Parti-
do Socialista, de velhos maçons. Estou
a pensar no Teófilo Carvalho dos San-
tos, no José Magalhães Godinho, no
Vasco da Gama Fernandes, etc., ho-
mens que vinham, até, de antes da
proibição da Maçonaria. Depois, as coi-
sas alteraram-se completamente. Hoje 063
em dia, não há qualquer identificação
a esse nível e encontramos gente
oriunda de vários partidos nas obe-
diências todas.

Para fazer a história da Maçonaria é


conveniente ser maçon? Não uso o
adjetivo com segundos sentidos, mas
apenas para perceber se alguém de
dentro tem vantagens no acesso às
fontes, designadamente a arquivos
privados. E porque, se virmos o que
está historiograficamente feito, ve-
mos maçons. Estou a pensar no seu em dia não tanto, porque os arquivos Naturalmente... Recordo-me até de um
caso, estou obviamente a pensar em estão mais ou menos acessíveis para trabalho académico em que a autora, a
A. H. de Oliveira Marques... trabalhos académicos e esse tipo de dado passo e referindo-se à Maçona-
Não necessariamente. Pode ajudar, em coisas. Agora, aquela questão da com- ria, a propósito de uma loja, escrevia “o
termos de compreensão do universo preensão do universo é importante. culto decorre”... Culto! Chamar culto a
que se está a estudar, mas só por aí. Um Não é só a compreensão da nomencla- uma sessão maçónica é extraordinário!
historiador, para estudar a história do tura, do vocabulário ou dos conceitos. E isso acontece por não haver a tal
cristianismo, não tem de ser cristão. A compreensão do próprio universo compreensão.
Alguém que estude a história do teatro ajuda, mas ser maçon não é, de forma
não precisa de ser um profissional do nenhuma, condição sine qua non para Culto implica adoração?
teatro. É necessário, claro, ter um co- estudar a Maçonaria. Tem a ver com uma religião, qualquer
nhecimento desse mundo. que ela seja. Na Maçonaria não há ne-
Depois, haverá a necessidade de tor- nhum culto de coisa nenhuma. No
Isso parece-me óbvio. Por isso mes- nar esse universo inteligível ao leigo meio de tudo isto, é importante notar
mo estava a tentar centrar na questão que mergulha num mundo estranho, que um historiador que queira estu-
do acesso a fontes privadas. pelo qual poderá até ter alguma des- dar a Maçonaria, mesmo sendo ma-
Sim, claro... No passado, sim, mas hoje confiança. Isso é um trabalho difícil? çon, tem de o fazer sem proselitismos
ENTREVISTA

e sem preconceitos.

Basicamente, tem de se lembrar que


é historiador.
Antes de mais. Eu sei que é difícil,
muitas vezes, mas há que fazer um es-
forço de objetividade. A história ba-
seia-se em fontes, e o historiador tem
de as interrogar, estudá-las e tentar in-
terpretá-las, embora as fontes muitas
vezes enganem. Muitas vezes, dada a
escassez de fontes, há apenas um ele-
mento ou outro, um indício ou outro,
e é complicado, para o historiador, ti-
rar conclusões. Mas há que fazer um
esforço de isenção. Um livro para pro-
mover a Maçonaria e um livro de his-
tória da Maçonaria são coisas comple-
tamente diferentes. Há pouco, faláva-
mos na participação da Maçonaria em
determinados eventos históricos, mas
eu costumo dizer “a participação de
maçons”. A seguir ao 5 de Outubro, o
Machado Santos, no relatório que fez,
disse que a proclamação da República
à Maçonaria se devia, exclusivamente.
E o Magalhães Lima, em 1911, disse que
a República foi feita por maçons. São
coisas diferentes. Uma coisa é a Maço-
064 naria, enquanto instituição, outra coi-
sa são os maçons.

A diferença de haver ou não um pro-


grama exterior aos acontecimentos
propriamente ditos?
Uma coisa é a organização protagoni-
zar algo, outra coisa é ter como prota-
gonistas elementos dessa organização,
mesmo que tenham tido o agrément...
Até porque em 1910 havia ainda mui-
tos monárquicos na Maçonaria. De-
pois irão desaparecer naturalmente,
porque a Maçonaria vai adotar como
seus os ideais republicanos e assumir um espectador? parece claro tratar-se de espaços de
a defesa dos mesmos. Portanto, a par- É um espectador não participante, reflexão que visam o aperfeiçoamen-
tir daí praticamente não encontramos porque os há participantes. Tem a ver to pessoal e social. A sociedade de
monárquicos. com a própria evolução do mundo e hoje, que tantas vezes aparenta estar
das sociedades. Mesmo em Portugal, anestesiada, animando-se apenas
E esse pluralismo existe hoje em to- o facto de ter havido na Maçonaria po- com os impulsos da participação em
das as obediências? Tem essa noção? líticos com relevo não quer dizer que redes sociais...
Confesso que não sei dizer. Mas co- a Maçonaria tivesse uma influência no Eu não diria anestesiada: é uma socie-
nheço maçons desde o CDS até ao Par- rumo do país. Aquela ideia de que a dade que vai atrás da aparência e da fa-
tido Comunista. Maçonaria é influente, porque são só cilidade.
pessoas influentes, também não cor-
Já o ouvi dizer que a Maçonaria hoje responde à realidade. Hoje em dia, en- E das tendências de cada momento:
não tem poder nenhum, que o po- tão, basta olharmos a realidade para abdica-se da individualidade para se
der é o dos grandes interesses eco- ver que assim não é. ser aceite num grupo?
nómicos e, por coincidência, está Acima de tudo, não há espírito crítico,
agora a decorrer em Davos o Fórum Sem querer entrar no que são ou dei- o que me parece dramático numa so-
Económico Mundial. A Maçonaria é xam de ser os trabalhos maçónicos, ciedade.
Ou seja, isto são temas que, imagino Preocupam-no estas questões mui-
eu, preocupam uma organização to próprias dos dias de hoje, sinteti-
como a Maçonaria, focada no livre zadas na ideia de politicamente cor-
pensamento. reto, envolvendo algum revisionismo,
Sim... Aliás, até cá fora têm surgido ini- novos conceitos como o de apropria-
ciativas das obediências maçónicas, ção cultural, cancelamento de pes-
abertas ao mundo profano, digamos soas e por aí fora?
assim, sobre esses temas e essas preo- Naturalmente que sim. Mas o que mais
cupações. Agora, no mundo em que me preocupa é a falta da tal capacida-
vivemos, com as redes sociais, não há de crítica, que não é inata, é algo que
qualquer pejo em pôr o que quer que se aprende e se cultiva. Muitas vezes,
seja a circular, nem que seja a atoarda as pessoas consomem aquilo que já
mais fantástica, que é assumida como está preparado e formatado, sem te-
verdade, divulgada e redivulgada. rem a atitude crítica que deviam ter. É
esse o principal problema que eu vejo.
Às vezes, um esforço de verificação
dura cinco segundos, mas mesmo as- Há tempos, um músico português
sim as pessoas não o fazem. veio propor que se modificasse o Hino
É inútil. A partir do momento em que Nacional, retirando-lhe armas e ca-
uma determinada coisa é lançada e as- nhões. Repara nessas coisas?
sumida como verdade, não adianta É uma coisa absurda. Nem sequer o
desmenti-la. A atoarda tem sempre salazarismo alterou o hino, tal como
mais peso do que a tentativa de repor não alterou a bandeira da República.
a verdade. No dia seguinte, possivel- Nessa perspetiva, muito mais escan-
mente, estará tudo esquecido, porque dalosa seria a letra d’A Marselhesa.
haverá outras atoardas e outras notí- Cada país tem a sua história, e a his-
cias fantásticas... É muito complicado. tória não se pode alterar. Se se pudes-
se alterar era bom. Recuávamos no
Vê reflexos destas realidades no uni- tempo, corrigíamos os erros e seria
verso dos seus alunos? uma maravilha, mas não pode ser. A 065
Nota-se, sim. Eu comecei a dar aulas história de um país é feita dos bons e
aqui em 1986, e nota-se agora o recur- dos maus momentos, das grandes e
so às coisas que circulam na Net, das pequenas coisas, dos crimes e das
quando muitas vezes não são fidedig- heroicidades. E não pode ser altera-
nas. Não estou agora a falar das atoar- da. O que temos a fazer é estudá-la.
das, mas de textos que aparecem a cir- Mais nada.
cular, muitos deles pretensamente
científicos, não o sendo de facto e con- Por exemplo, em relação ao passado
tendo coisas verdadeiramente inacre- colonial há muito ativismo, e esta não
ditáveis, Claro que é muito mais fácil é uma questão só portuguesa, que se
abrir o computador, ver o que lá está traduz em atitudes como a ideia de
sobre um determinado tema e fazer devolver artefactos ou a reclamação
uma síntese disso, mesmo que a sín- de reparações por causa da escrava-
tese seja feita a partir de coisas erra-
das. Mas o mundo de hoje é assim: “A ATOARDA tura. Que lhe parece isso?
É a mesma ideia. Se o passado não
pouco recurso ao livro, tanto físico TEM SEMPRE pode ser alterado, há que assumi-lo e
como digitalizado, e muito recurso
àqueles motores de busca de temas
MAIS PESO DO QUE estudá-lo. Não podemos elogiar, mes-
mo determinadas coisas que quando
que dão uma síntese do que se preten- A TENTATIVA foram feitas não eram consideradas
de, muitas vezes errada. Até factual-
mente errada.
DE REPOR como um crime ou como uma violên-
cia. Eram violentas e eram crime, mas
A VERDADE” na altura não eram. Nós devemos as-
Na Internet, há uma importância sumir o passado, de uma forma críti-
maior do saber procurar para separar ca. O problema é que muitas vezes há
o trigo do joio? pessoas a pensar que tudo pode ser al-
Não é muito fácil para quem não este- terado retroativamente, não sei como,
ja familiarizado com o tema em causa. talvez eliminando os vestígios mate-
Se for alguém que procura pela pri- riais desse passado. Penso que isso
meira vez uma determinada matéria, ainda é pior, porque resulta em bran-
é mais complicado. quear as coisas negativas do passado.
ENTREVISTA

O Padrão dos Descobrimentos, por


exemplo, surge com uma intenção de
exaltação instrumental do passado...
E que é muito útil...

...mas também é um vestígio rele-


vante do período em que foi feito.
Claro! E é muito útil para, quando se
fizer uma visita de estudo, dizer aos
alunos: “Estão a ver? Isto é o reflexo
do momento da nossa história colo-
nial; o preconceito em relação a ou-
tras civilizações e culturas está aqui”.
Tudo isso deve ser usado de forma di-
dática. Apagá-lo é contraproducente.
Se fosse possível, apagando os monu-
mentos ou os retratos dos grandes di-
tadores, eliminar esses ditadores...
Mas não. Eles existiram e fizeram as
barbaridades que fizeram. Agora,
conservar esses monumentos é, de
uma forma didática, ensinar às novas
gerações que existiram aqueles
monstros e é preciso que não voltem
a existir pessoas como eles.

Lembro-me de uma estátua de Oli-


veira Salazar em Santa Comba Dão,
que, no período revolucionário, co-
066 meçou por ser decapitada e acabou
rebentada à bomba. Mas isso enqua-
dra-se no ímpeto do momento, não é
uma ação ponderada muitos anos
depois.
São coisas próprias dos momentos de
convulsão. Havia aqui ao lado, no
Campo Grande, uma estátua do Car-
mona, que foi retirada. Nesses mo-
mentos, isso é compreensível, mas
acaba por ser contraproducente. De-
pois, há coisas absurdas. Agora, na
Ucrânia, há aquilo de estarem a reti-

“A MEMÓRIA
rar as estátuas do Pushkin ou do Dos-
toiévski, como se eles fossem perigo-
sos membros do FSB. Não tem pés
nem cabeça...

Em Itália, logo após a invasão da

PREGA-NOS
Ucrânia, uma universidade de Milão
quis anular um curso sobre Dostoié-
vski, e também ponderaram retirar
uma estátua dele em Florença...

PARTIDAS”
Depois há coisas curiosas. Por exem-
plo, na Geórgia ainda há estátuas do
Estaline, que não foram retiradas, e
um museu que lhe é dedicado, em
Gori. Na Geórgia, que não é propria-
mente pró-Putin. Aliás, como se o Pu-
tin fosse um comunista. Enfim, isso
faz parte da ignorância do mundo.
adotada por uma loja masculina, su-
pervisionava e dirigia a loja feminina,
que tinha um ritual diferente dos das
lojas masculinas. Essa Maçonaria femi-
nina, em França, acabou, no princípio
do século XIX, mas começou a surgir
noutros países. Depois, já nos finais do
século, temos O Direito Humano, em
França, uma obediência mista, entre
outras. A partir daí e até hoje, há uma
maçonaria masculina, exclusivamen-
te, alguma maçonaria feminina e uma
maçonaria mista.

No caso português, houve uma proi-


bição de maçonaria feminina em
1922, correto?
O caso português é sempre uma ques-
tão específica. A primeira loja femini-
na aparece na década de 60 do século
XIX. Já em 1903, aparecem as lojas Hu-
manidade, em Lisboa, e 8 de Dezem-
bro, na Figueira da Foz, ambas de rito
de adoção. Em 1907, a loja Humanida-
de passa para o rito francês, o que é um
caso extraordinário, porque deixa o
rito de adoção. Portanto, no Grande
Oriente Lusitano Unido coexiste essa
maçonaria feminina. Depois, há vicis-
situdes várias, durante a República, e 067
em 1922 o Grande Oriente Lusitano
Unido aprova uma alteração constitu-
cional em que deixa de permitir a exis-
tência de mulheres. Isso deveu-se à
adesão à Associação Maçónica Inter-
nacional, que interditava as mulheres.
Assim, a loja Humanidade deixou o
Grande Oriente Lusitano Unido e aca-
baram as mulheres na Maçonaria em
Portugal. [nota: em 1980 houve Maço-
naria mista, seguindo-se um processo
que culminou na fundação da Grande
Loja Feminina de Portugal, em 1997]
A Maçonaria era como o clube do Bo- na. Juntavam-se a jantar e não havia
linha, em cuja entrada se lia: “Menina qualquer ritual. Com o andar do tem- Isso reflete uma sociedade patriarcal.
não entra”? po, o ritual vai-se complicando e sur- A forma como a República lidou com o
Temos de olhar o surgimento da Maço- gem ritos mais intrincados. voto feminino é algo similar?
naria moderna, em 1717 e em Londres. Sim, se bem que sejam questões dife-
Como em qualquer sociedade euro- É em França que as coisas mudam? rentes. Curiosamente, algumas das
peia desse tempo, as mulheres não ti- O esquema era o mesmo. Os membros mulheres que se bateram pelo voto fe-
nham qualquer protagonismo. Os clu- de uma loja reuniam-se e, depois, fa- minino pertenciam à Maçonaria: a Ca-
bes ingleses, desde o século XVII e até ziam uma refeição aberta às mulheres. rolina Beatriz Ângelo, a Adelaide Cabe-
hoje, eram fechados, e a Maçonaria Nessa época, em França, a Maçonaria te... A questão do voto feminino tem a
inspirava-se um pouco, entre outras era aristocrática e burguesa, e algumas ver com um contexto nacional, porque
coisas, nessa tradição. Logo nos pri- mulheres manifestavam o desejo de a nível internacional poucos países ti-
meiros textos normativos fica claro que participar. Então, surge uma Maçona- nham voto feminino. Depois, havia,
as mulheres não são admitidas. A Ma- ria feminina, digamos assim, com rito por parte dos republicanos, algum re-
çonaria de então era muito informal. A próprio, o rito de adoção. Era uma es- ceio, porque esse voto feminino não
primeira Grande Loja, em Londres, pécie de maçonaria de segunda, uma era o voto daquela meia dúzia de mu-
Westminster, foi fundada numa taber- maçonaria light. Uma loja feminina era lheres republicanas, esclarecidas e ins-
ENTREVISTA

truídas, que participaram na revolução. foi para a Câmara dos Deputados, a ou-
Eram as outras todas! Isso foi uma tra para o Senado, sem eleições, por-
questão muito complicada, que se vê que tiveram receio. Portugal era um
nos trabalhos para a Constituição e país rural, de analfabetos. Em que é
logo na primeira lei eleitoral para a As- que os republicanos pensavam? Fran-
sembleia Constituinte. Tem a ver com ça, 1848. A proclamação da República,
a incompatibilidade que há, muitas ve- festa, uma coisa fantástica, eleições
zes, entre o ideal e a realpolitik . Se para uma Assembleia Constituinte...
olharmos o programa do Partido Repu- Dar a voz ao povo, ou seja, cumprir o
blicano, vemos sufrágio universal, des- ideal. E o ideal chocou com a realida-
centralização, federalismo. Depois, na de, ou seja, a França monárquica e ru-
Constituição, vemos centralismo. ral. Passou-se de 200 mil eleitores para
oito milhões, e isso fez os católicos e
Isso do centralismo será um vírus que monárquicos ganharem as eleições es-
paira nesta cidade onde estamos? magadoramente. Uma coisa são os
Mas tem uma explicação na época. A ideais, outra é haver condições para a
revolução republicana ocorre em Lis- sua concretização.
boa e envolve umas centenas de ho-
mens, civis e militares. Em 1910, a Esse volte-face monárquico não teria
maior parte do país não tinha organi- muito ver com as convicções ideoló-
zação do Partido Republicano. Embo- gicas da população.
ra em agosto de 1910 tivesse consegui- Não tinha. Era por hábito, por rotina,
do mais deputados do que até aí, mes- por tradição...
mo assim era um número irrisório, 14,
se comparado com o total de deputa- Terá a ver com a necessidade de figu-
dos no Parlamento. Se o Partido Re- ras tutelares, no caso português?
publicano Português estivesse à espe- Sim, mas nessa altura não tanto. Na Re-
ra de mudar o regime por eleições, pública, o Sidónio é o único caso. Nem
ainda hoje vivíamos em monarquia. sequer o Afonso Costa, um político há-
068 Ora, os republicanos tinham noção da bil, mas sem o carisma de um Sidónio.
sua fragilidade. Havia alguma implan- Eu não diria que o Sidónio era um po-
tação, mas, tirando Lisboa, Porto e lítico, no sentido que damos à palavra,
mais uma localidade ou outra, a in- mas um líder carismático, que soube
fluência republicana era escassíssima. cultivar essa imagem.
Tiveram um problema gravíssimo, de-
pois da revolução, quando começa- Fê-lo de forma quase instantânea.
ram a substituir as câmaras munici- Perfeitamente. Cultivou-a na Rotunda.
pais por comissões administrativas: Quando ele veste o capote militar, já
ver onde havia republicanos. Faz lem- não o sendo, e criando aquela figura
brar depois do 25 de Abril: onde é que elegante de militar, de homem decidi-
há democratas? do. Essa imagem caiu muito bem jun-
to da população. É sintomática a visita
Levantava-se uma pedra e saíam de- que fez a Braga, quando uma velhota
mocratas de geração espontânea...
Foi exatamente isso que aconteceu em
se chegou ao pé dele e disse: “Senhor
presidente, faça-se rei, faça-se rei!” Ou “UMA COISA
1910, com o fenómeno da adesivagem. o poema do Fernando Pessoa. Mas, SÃO OS IDEAIS,
Encontramos por todo o lado sujeitos a
dizer “eu sempre fui republicano, mes-
também, nós somos de grandes pai-
xões que, depois, esmorecem rapida-
OUTRA
mo sendo responsável monárquico”. mente. Com a morte do Sidónio, caiu É HAVER CONDIÇÕES
Ora, os republicanos tinham de ter
muito cuidado, para não perderem, le-
tudo, mesmo o partido que o apoiava.
PARA A SUA
galmente, o que tinham adquirido Não tinha grande substância... CONCRETIZAÇÃO”
através da revolução. Por exemplo, Pois, mas nós temos isso: o funeral do
quando uma assembleia constituinte Sidónio é uma histeria, e, depois, a he-
termina o seu labor, dissolve-se, por- rança dele desapareceu como água na
que a Constituição o exige, e há elei- areia. Podemos falar no salazarismo,
ções. Mas não foi isso que aconteceu. mas é diferente, porque o Salazar não
A Assembleia Constituinte decidiu era um líder carismático. Quando o Si-
metamorfosear-se no futuro poder le- dónio passeava na Avenida da Liberda-
gislativo. Uma parte dos constituintes de, a cavalo, juntavam-se multidões
069

para o ver, especialmente mulheres. cia e a pluralidade de obediências, era se bem que tenha de haver sempre cui-
Uma coisa louca! E ele cultivou isso. necessário ter acesso à documentação, dado. Orais ou escritos, são subjetivos
e essa disponibilidade não existe. De- por natureza e carecem de ser aferidos
E voltamos à Maçonaria, alvo da ira pois, muitas pessoas estão vivas e te- e comparados com outro tipo de de-
popular logo desde a primeira tenta- riam coisas a dizer, houve conflitos e poimentos. É complicado, porque a
tiva de assassinato de Sidónio Pais. cisões. É um emaranhado de situações memória prega-nos partidas. Eu, que
Sim, foi uma situação dramática, e é complicadas. Não estou a dizer que os vivi aquele período a seguir ao 25 de
também esse o problema do estudo da depoimentos pessoais não são impor- Abril e conheci bem a situação, muitas
Maçonaria. A maior parte do arquivo tantes. Claro que são, especialmente vezes tenho dúvidas sobre o que teste-
foi destruída nessa altura. quando não há outro tipo de fontes. munhei, na realidade, nessa época.
Um grande problema foi, a seguir ao 25
Já disse, a propósito de “Uma Histó- de Abril, não se terem gravado depoi- Onde é que estava no 25 de Abril?
ria da Maçonaria em Portugal”, que mentos de maçons do período da clan- Estava na Força Aérea.
vai até 1986, que não pretende alar- destinidade. Hoje haverá dois ou três
gá-la. Porquê? vivos, iniciados antes de 1974, mas em Cá, no que então era a Metrópole?
A razão fundamental é esta: a partir de 74-75 havia dezenas e dezenas. Os de- Sim, estava na Base Aérea da Ota e
1986, quando surge uma nova obediên- poimentos pessoais são importantes, acompanhei aquele período todo den-
ENTREVISTA

tro da Força Aérea. Foi tudo tão inten- zer... Só em 1980 é que voltei a estudar, também colaborei. Enfim, é uma
so e complexo, as coisas sucediam-se e dessa vez já em História, como estu- questão polémica, que tem sempre
tão vertiginosamente, que eu muitas dante-trabalhador. várias facetas. Mas, em relação à Guer-
vezes olho para trás e tenho dúvidas ra das Laranjas, interessou-me muito
sobre determinados assuntos. Como A viragem para a licenciatura em His- a busca de fontes novas, que publiquei
dizia um historiador francês, muitas tória foi uma decisão amadurecida? na altura: os diários de operações de
vezes confundimos o que aconteceu Sim, já antes do 25 de Abril me tinha divisões espanholas, que nunca ti-
com o que pensamos ter acontecido e interessado pela história do movimen- nham sido vistos em Portugal. Depois,
com o que gostaríamos que tivesse to operário português e tudo isso. De- estudei a Guerra Peninsular, a Primei-
acontecido. Ainda por cima, como há pois, publiquei três livros na Seara ra República ou a oposição ao Estado
muitos depoimentos, testemunhos e Nova, em 76 e 77, um dos quais sobre Novo, de que é exemplo o meu mais
estudos sobre a época, que lemos, é um tema que me era praticamente recente livro sobre Nuno Rodrigues
ainda mais complicado. Isso acontece, desconhecido, e que foi pioneiro, o sin- dos Santos.
por exemplo, na Guerra Peninsular, dicalismo rural na Primeira República.
com os testemunhos de militares fran- Saiu em 1977 e chama-se “Subsídios Outro maçon...
ceses e ingleses: participaram numa para a história do movimento sindical Sim, desde 1944. Foi presidente da Co-
batalha e, ao descrevê-la, já têm em rural no Alentejo”. missão Política do PSD e uma figura da
consideração outros livros publicados oposição notabilíssima, até ao nível do
sobre a mesma batalha. Depois, não sa- Como olha hoje para esses trabalhos? pensamento. O livro tem uma antolo-
bemos exatamente o que um autor tes- São coisas incipientes, próprias do seu gia de textos dele desde os anos 30, em
temunhou diretamente ou bebeu nou- tempo. Cada tempo tem o seu tempo. que começou a afirmar-se social-de-
tras fontes. Isso é também válido, no Aliás, há um livro, que irá sair este ano, mocrata. Esses textos são fundamen-
caso português, para as organizações que eu publiquei com um grande ami- tais para perceber o percurso de uma
políticas clandestinas, antes de 1974. go meu, o Alberto Pedroso, um dos ho- oposição moderada ao Estado Novo,
mens da Seara Nova, em 1981. Fizemo- que persistiu durante décadas.
O que é que o levou para a história? -lo em parceria e é sobre o Alexandre
Ui!... Posso dizer que foi um livro que o Vieira, um sindicalista notável. Este Com o centenário da República publi-
meu pai tinha em casa. O meu pai es- ano, em que se comemoram os 50 anos cou recolhas iconográficas, concreta-
tudou no seminário, porque era filho da morte dele, será feita uma nova edi- mente de postais políticos. É um apai-
070 de gente muito pobre ali do Porto da ção, revista, embora esse meu amigo xonado por esses materiais?
Espada, Marvão, e a hipótese de al- não possa participar, porque já faleceu. É verdade que também sou coleciona-
guém estudar um bocadinho mais era Vou dar-lhe uma volta grande. Tam- dor, mas dei sempre muito valor às
ir para o seminário, mesmo que não ti- bém me dediquei muito à história da fontes iconográficas. Aliás, a minha
vesse vocação nenhuma. E ele não ti- minha região... dissertação de mestrado teve a ver
nha: estudou no liceu e depois empre- com a iconografia da Seara Nova. Na
gou-se nos correios. Era um livro de A Guerra das Laranjas, sobre a qual já República, o bilhete postal ilustrado é
história universal muito engraçado, escreveu, tem a ver com a sua região. uma fonte muito interessante, muito
que eu ainda tenho, de mil oitocentos Sim, sim, a Guerra de 1801... divulgadora e muito popular. Por isso
e oitenta e tal, com a história sagrada e organizei aqueles dois volumes, “Os
a história profana. Começava com a Olivença é nossa? Postais da Primeira República” e “Mais
criação do mundo, Adão e Eva, e de- Ah.... Talvez... Saiu agora um livro, na Postais da Primeira República”. Fiz
pois, mais tarde, apareciam os persas, Assembleia da República, em que ainda outro sobre o bilhete postal da
os romanos e por aí fora. Eu andava na Grande Guerra. Além da parte estéti-
escola primária e devorava aquele li-
vro. Depois, na mesma sala, estava eu, “É NA GRANDE GUERRA ca e artística, há essa vertente do bi-
lhete postal político como fonte de
na segunda classe, e os alunos da quar- QUE COMEÇA A propaganda, que rem um período áu-
ta classe, que tinham História de Por-
tugal. Eu bebia aquilo tudo. Por vezes,
PROPAGANDA POLÍTICA reo do início do século XX ao final da
Grande Guerra.
o professor, para os envergonhar, per- MODERNA, COM
guntava-me coisas, e eu lá respondia...
O RÁDIO, O CINEMA, Depois, vão surgindo outras formas
de fazer chegar às massas as mensa-
Trilhou sempre esse caminho? AS AGÊNCIAS...” gens pretendidas, até chegar às redes
Na verdade, tive um percurso um bo- sociais ou aos grupos do WhatsApp...
cadinho acidentado, porque vim estu- Sim, e é na Grande Guerra que come-
dar Germânicas, em 1970, e em 1971, fui ça a propaganda política moderna,
para a Força Aérea, onde fiquei até 77. com o rádio, com o cinema, com as
Eu pensava que enquanto estivesse na agências noticiosas. Nos Estados Uni-
Força Aérea (nunca fui ao Ultramar) dos, criaram um departamento só para
poderia continuar a estudar. Qual quê! isso, com dezenas e dezenas de jorna-
Havia coisas mais interessantes a fa- listas, com a feitura de textos diários
enviados para todos os jornais. É im-
pressionante.

O século XX é o século da profissiona-


lização da propaganda.
Perfeitamente. Depois, na Segunda
Guerra Mundial, continua, ainda mais
potenciado, claro. Até o Disney fez fil-
mes de animação de propaganda anti-
nazi. Estou a pensar no “Der Fuehrer’s
Face”, com o Pato Donald a atirar um
tomate à cara do Hitler...

“A Grande guerra por quem a viveu” é


exemplo de outro tipo de abordagem
que já fez mais do que uma vez.
O memorialismo é algo que me inte-
ressa, a literatura autobiográfica. Já ti-
nha feito em 2001 um outro livro, com
101 autores que escreveram livros de
memórias sobre a resistência ao Esta-
do Novo, mas que ia desde comunistas
a monárquicos. Uma antologia, com
pequenas notas biográficas, publicada
aqui em Lisboa pelo Museu República
e Resistência, que está fechado agora.
Depois, o livro que reuniu depoimen-
tos sobre o 5 de Outubro, publicados
em folhetos, em livro ou em jornal por
protagonistas, militares e civis. Reuni 071
isso porque uma boa parte desses tex-
tos são difíceis de encontrar, ou são fo-
lhetos raros...

Enquanto historiador, o que sente que


tem ainda por fazer?
Bem, eu vou jubilar-me, mas continuo
ligado ao Centro de História, em termos
de investigação, e tenho outros projetos.
Estou a terminar um livro, que penso
que vai ter algum interesse, sobre a re-
lação entre comunistas e maçons em
Portugal, entre 1919 e 1936. Há muita
coisa desconhecida e perfeitamente ig-
norada. Está para sair, mais cedo ainda,
um livro que não tem nada a ver com
estes temas, sobre o morgado de Mateus
e as ideias dele sobre a reorganização
do Exército, em 1801, com os relatórios
dele para o ministro da Guerra... É mui-
to interessante, uma parte está no arqui-
vo da Casa de Mateus, em Vila Real. A
história militar é também uma temáti-
ca que me interessa muito. Depois, há
mais dois livros para sair, durante este
ano, também sobre esta temática da
Guerra Peninsular, e há um outro proje-
to, com a Assembleia da República: um
dicionário biográfico parlamentar da
Primeira República, para 2024.
ENTREVISTA

Uma vida a cumprir


o sonho de menino
Perfil

N
ão há outra forma de iniciar este perfil
sem a história que o próprio nos conta,
na entrevista, a de um menino alenteja-
no que descobriu o mundo inteiro num
velho livro de história que o pai, funcio-
nário dos correios, tinha lá em casa. An-
tónio Adriano de Ascensão Pires Ventu-
ra (n. 1953) era esse menino nascido na aldeia do Porto da
Espada, inserida no que hoje é o Parque Natural da Serra
de São Mamede, um diferente Alentejo farto em água e,
pelo visto, em sonhos: tornou-se um historiador de ine-
gável notoriedade e um professor que marcou gerações
de alunos; o investigador continua ativo, designadamen-
te no Centro de História da Universidade de Lisboa, o pro-
fessor catedrático acaba de se jubilar na sua Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, neste ano em que cum-
pre 70 anos de vida.
Não é segredo que é maçon, facto que aqui apenas se tor-
na relevante na medida em que se tornou um dos mais re-
conhecidos historiadores da Maçonaria em Portugal, com
072 vasta bibliografia publicada sobre o tema, do possante vo-
lume “Uma história da maçonaria em Portugal (1727-1986)”,
originalmente dado à estampa em 2013, aos variadíssimos
estudos de caso que se encontram à disposição dos leito-
res. Académico de Número (com a cadeira n.º 5) da Acade-
mia Portuguesa da História, que recentemente lhe atribuiu
o Prémio Fundação Calouste Gulbenkian de História Mo-
derna e Contemporânea de Portugal, pelo livro “Nuno Ro-
drigues dos Santos: Coerência e Convicção” (editado pela
Assembleia da República), tem combinado o intenso labor
de investigação (mais de 300 trabalhos publicados) com ex-
tensa atividade internacional, como conferencista ou par-
ticipando em cursos em numerosas universidades, na Eu-
ropa e na América do Norte.
Como ele próprio nos conta, o estudo da história, embo-
ra sendo uma paixão nascida na mais tenra infância, não
foi um processo linear na sua vida. Começou por estudar
Germânicas, largando esse curso para ser incorporado na
Força Aérea Portuguesa, ainda antes do 25 de Abril. Aí es-
tava quando se deu o derrube da ditadura, aí permaneceu
ainda até 1977. Mas só em 1980 regressou à faculdade, tra-
balhando para pagar os estudos e optando, finalmente, pela
área científica de que vem ocupando desde então. Além
dos temas maçónicos, que se impuseram (sem exclusivi-
dade) em anos mais recentes, foram outros assuntos aque-
les que mais o ocuparam ao longo da carreira, designada-
mente a Primeira República, a Guerra Peninsular ou as
Guerras Liberais. É também “seareiro”. Foi, aliás, através
da revista fundada em 1921 sob a égide de Raul Proença que
publicou os seus primeiros ensaios historiográficos, ainda
antes de se decidir a estudar história.
073
HISTÓRIAS SOLTAS

ALE
074

52 a.C.
Com o triunfo final sobre as tribos gaulesas, Júlio César consolidou a narrativa guerreira que o
s
Olavo Simõe

ESIA
Texto de Pedro

075

tornou um mito vivo e o ajudou a ter o poder absoluto em Roma. Mas onde foi esse feito militar?
HISTÓRIAS SOLTAS

076

E
Dois de nove painéis screver uma nota como
dedicados ao triunfo esta, sobre as campa-
de Júlio César por nhas da Gália, podia
Andrea Mantegna pressupor um arranque
(1431-1506): o mais sério, desde já alu-
general e os cativos dindo, com o toque de
erudição que a língua
latina confere, aos Commentarii de
Bello Gallico de Caio Júlio César. Lá
iremos, mas não é esse o começo. Para
o que nos interessa, uma velha e bizar-
ra polémica francesa – bizarra porque
se disputa a localização de uma derro-
ta militar humilhante, mesmo que
ocorrida no ano 52 a.C. –, será mais
conveniente (e divertido, por que
não?) arrancar com a evocação das
aventuras de Astérix, o gaulês, e com
077

uma citação de um irado Abracourcix, que se movia. A citação do parágrafo em visões fantasiosas sobre a natura-
chefe da irredutível aldeia idealizada anterior é retirada (tradução livre) do lidade de Cristóvão Colombo ou, na
por René Goscinny e Albert Uderzo: álbum “Le Bouclier Arverne” (“O Escu- mesma linha mas com maior lugar a
“Alésia? Não conheço Alésia! Eu não do de Arverne”), originalmente publi- dúvidas, a reclamação por diferentes
sei onde fica Alésia! Ninguém sabe cado em 1968, e a ideia de ninguém sa- cidades de terem sido berço de D.
onde fica Alésia!” ber onde fica Alésia aludia a uma polé- Afonso Henriques), mas pode ser apro-
Quem pensar que a famosa série de mica historiográfica que se mantinha veitada para enquadrar a conquista da
banda desenhada é mero entreteni- desde o século XIX e ainda persiste: Gália enquanto momento decisivo
mento infantojuvenil está, evidente- onde ficava, afinal, a povoação fortifi- para a posterior afirmação de César
mente, a ver mal a coisa, ou não a está cada onde as legiões romanas coman- como ditador, abrindo portas à solidi-
a ver de todo. A genialidade de Goscin- dadas por Júlio César derrotaram, de- ficação do Império Romano que ocor-
ny, o argumentista, não se esgotava no finitivamente, as tribos gaulesas uni- reria com Augusto. Não saberemos ao
requintado sentido de humor e na fér- das sob a figura de Vercingetórix (da certo onde fica Alésia, já o dizia o fic-
til imaginação, mas numa perspetiva tribo arverne, lá está). cional Abraracourcix, um veterano da
histórica bem estruturada (com algu- É, provavelmente, uma polémica gloriosa (para os gauleses) batalha de
mas concessões na cronologia, para historiográfica tão útil como outras que Gergóvia, esta sem dúvida nas imedia-
tornar as narrativas possíveis) e na tes- não o são verdadeiramente, até no caso ções de Clermont-Ferrand. Mas é para
situra do passado com o presente em português (por exemplo, a insistência lá que vamos.
HISTÓRIAS SOLTAS

O início da polémica
Vários locais surgem envolvidos nesta
disputa, mas há dois que se destacam
desde 1855, quando o arquiteto Al-
phonse Delacroix, entre outros, levan-
tou a ideia de que a localidade de Alai-
se, a sul de Besançon, seria o verdadei-
ro local onde teria estado o oppidum
(povoação fortificada) de Alésia, rejei-
tando a localização em Alise-Sainte-
-Raine, a noroeste de Dijon, onde des-
de tempos medievais se entendia ter
ocorrido a derrota final dos gauleses.
Uma dezena de anos depois, sendo Na-
poleão III Imperador dos Franceses, a
localização de Alise-Sainte-Reine foi
oficializada, designadamente com a
construção de uma monumental está-
tua representando Vercingetórix, mas
jamais a polémica foi encerrada.
Antes de voltarmos a esse assunto,
convém esclarecer um pouco o que foi
o cerco de Alésia. E como, sendo Roma
governada pelo primeiro triunvirato, a
campanha da Gália foi determinante
para levar Júlio César à conquista do
poder absoluto como princeps civita-
tis, facto relevante, também, para no-
tarmos que o que hoje se sabe sobre as
078 campanhas transalpinas é o que César
quis que se soubesse. Transalpinas do
ponto de vista dos romanos, bem en-
tendido, que dividiam a Gália em cisal-
pina e transalpina, na mesma medida
em que, aos olhos dos trasmontanos,
quem está por trás dos montes são os
habitantes do litoral. Ora cá estamos
outra vez nos Commentarii de Bello
Gallico, oito livros, sete dos quais redi-
gidos pelo próprio Júlio César, um es-
critor dotado, sem pretensões artísti-
cas, mas com um forte desejo de con-
trolar pessoalmente a imagem que
dele viria a ter a posteridade. De tal for-
ma esta foi, desde logo, a mais difun-
dida obra de César (dentro do que era,
ao tempo, a difusão dos textos escri-
tos...), que assim persistiu, tornando-
-se a principal fonte para sabermos das
campanhas gaulesas.
Todavia, devemos ter em conta,
Colossal estátua pelo que atrás se notou, que é uma
de Vercingetórix fonte especialmente necessitada de
mandada erguer em leitura crítica, algo de que, aliás, se ti-
Alise-Sainte-Raine nha consciência mesmo naquele tem-
por Napoleão III para po. Caio Asínio Polião, de quem se
encerrar a polémica sabe ter escrito uma História de Roma,
já quando reinava Augusto, perdida na
voragem do tempo, apontava a César
dois vícios, supressio veri e suggestio
rios, montes ou vales pode aplicar-se
a diferentes locais. Isso é relevante
quando vários sítios reclamam ser o
local da derrota de Vercingetórix, pois
nenhum pode dizer “o meu rio é mais 079
rio do que o teu”, “a minha colina é
mais colina do que a tua” e por aí fora.
Contudo, quando a arqueologia entra
em campo, a descrição do cerco já
pode ser associada a vestígios que ve-
nham a ser encontrados.
Evidentemente, as campanhas de
Júlio César serviram propósitos expan-
sionistas, por um lado, e de ambição
pessoal, por outro. A presença romana
na Gália Transalpina vinha de trás, mas
não era bem aceite pelas tribos gaule-
sas, havendo múltiplos focos de insta-
bilidade e de resistência. Ou seja, o
triúnviro (aludamos aqui, para contex-
falsi. Não é difícil ao leitor da língua Inauguração Planalto de tualização, a Pompeu e Crasso, com
portuguesa captar o sentido das ex- do Museu de Alésia Gergóvia, onde quem César partilhou a governação tri-
pressões em latim: temos a supressão (em cima) as tribos gaulesas partida da República) marchou com os
da verdade e a sugestão da falsidade. reacendeu levaram de vencida seus exércitos sobre a Gália para pro-
Omitir e mentir, tudo genericamente a polémica quanto as legiões mover a estabilidade (se atendermos
conjugado na ideia contemporânea de à localização de Júlio César ao que ficou escrito). Nada que espan-
dourar a pílula. Isso não obsta a que o do oppidum gaulês te: até aos nossos dias, é frequente os
testemunho, de um modo geral, seja invasores encontrarem narrativas de
precioso. Evidentemente, sendo o au- justificação para os seus atos que nada
tor um grande general, a descrição das têm a ver com a realidade, assente nos
campanhas militares é suficientemen- impulsos imperialista e expansionista.
te rigorosa e pormenorizada (por ve- Não basta, claro, dizer que os roma-
zes evidentemente exagerada), mas a nos queriam ser donos disto tudo e que
caracterização dos territórios acaba a conflitualidade era de sentido único
por ser genérica, e as referências a ou, ainda, que os invadidos se limita-
080

vam a resistir. Antes do grande poder Em cima, Famoso quadro como keltai ou galatai, e latinas, como
das legiões, já os guerreiros gauleses, representação do de Lionel Royer celtæ, galli ou galatæ, ajudam a per-
bárbaros aos olhos do mundo clássico cerco de Alésia (1852-1926) ceber que tenhamos, do Atlântico ao
mediterrânico, haviam feito incursões e mapa do local representa Levante, a Galiza, no Noroeste da Pe-
bélicas para sul, chegando a saquear publicados no a rendição nínsula Ibérica, a Gália, no que veio a
Roma em 390 a.C. e indo tão longe século XIX de Vercingetórix ser França, e a Galácia, na Turquia.
como a Anatólia, conquistada em 277 a Júlio César Tudo isto para notar que havia raízes
a.C., sendo que a presença na atual históricas do antagonismo entre roma-
Turquia justifica aqui uma nota margi- nos e gauleses.
nal: quando se fala em celtas, está a in-
dicar-se um nome genérico decorren- Carisma de Vercingetórix
te de palavras greco-latinas para desi- Voltando aos Commentarii e insistin-
gnar os ditos povos bárbaros, não uni- do no que Júlio César queria e não
dos politicamente, mas partilhando queria passar a escrito, não se encon-
elementos culturais; palavras gregas, tram aí razões para as revoltas dos
081

gauleses, ou seja, não se aprende pro- tador e vencedor de todos os seus ini- gauleses e não apenas sobre a tribo a
priamente o ponto de vista destes. Mas migos, pôde fazer o seu triunfo na ca- que pertencia. Chegou, efetivamente,
é essa a principal fonte não apenas pital. Atrás dele, os inimigos acorren- a ser votado chefe supremo pelas di-
para conhecermos as campanhas de tados, entre os quais o chefe gaulês, a versas tribos, convencidas também
César a partir de 58 a.C. (e não as ex- partir daí desnecessário e finalmente (ou sobretudo) pelas provas dadas no
planaremos aqui), mas também sobre executado na prisão. campo de batalha, onde mostrou ser
o que sabemos acerca de Vercingetó- Ora, Vercingetórix, além de chefe um estratego capaz de fazer frente ao
rix, o chefe dos arvernos que uniu to- militar, seria também, se assim se general romano, em particular na já
dos os grupos gauleses na resistência pode dizer, um político carismático e referida batalha de Gergóvia. Tal união
ao invasor e que, em última instância, mobilizador, capaz de fazer uso das era um revés para César, que ao longo
foi derrotado, entregou as suas armas suas habilidades discursivas para unir dos anos anteriores, combatendo e
ao general romano e, feito prisioneiro, os diversos bandos de gauleses, não derrotando os gauleses tribo a tribo, ia
foi enviado para Roma, onde perma- apenas com o intuito de resistir ao ini- evitando esse indesejado ganho de po-
neceu seis anos enfiado num cárcere, migo estrangeiro, mas também de dar der e, até, conseguindo algumas alian-
daí saindo apenas quando César, já di- força à sua ambição de reinar sobre os ças. Não deixava, todavia, de ser uma
HISTÓRIAS SOLTAS

união precária, mesmo apesar do estí- Não obstante, houve importantes re- Essa deslocação das tropas, através das
mulo que sempre é a partilha de um veses para César a partir do inverno de montanhas cobertas de neve daquilo a
inimigo comum. Depois de uma pri- 53 a.C., quando, estando ele a passar o que hoje se chama Maciço Central, al-
meira fase em que dava preferência a inverno na Gália Cisalpina (insistamos: terou os planos de Vercingetórix, que
combates em campo aberto, Vercinge- é “para cá dos Alpes”, mas sob o ponto passavam por promover sucessivos le-
tórix virou-se para táticas de guerrilha de vista dos romanos), a tribo dos car- vantamentos como o de Cenabum du-
(como diríamos hoje) e foi assim que nutes atacou com êxito Cenabum (Or- rante a ausência de César, obrigando-o
causou maior mossa às legiões roma- leães), matando todos os romanos aí es- a ir em defesa da sua própria tribo.
nas. Todavia, uma estratégia desse gé- tabelecidos. Seria esse o primeiro de Um primeiro cerco foi montado pe-
nero, em que os grandes triunfos, a muitos levantamentos idealizados por los romanos em redor de Avaricum,
existirem, são o somatório de peque- Vercingetórix e pelos restantes chefes, um oppidum gaulês próximo do que
nas vitórias, obrigam a disciplina e pa- mas César reagiu rapidamente, voltan- hoje é a cidade de Bourges, e o resulta-
ciência, coisa que faltava às tribos gau- do à Gália Transalpina, juntando-se às do, ao cabo de mais de três semanas de
lesas, formatadas por lógicas fechadas suas legiões e pondo-as em marcha construção do cerco (e das máquinas
e familiares de poder senhorial. para atacar o território dos arvernes. de guerra usadas pelos romanos), en-

082
No sítio “oficial” de Estátua de Caio trecortada por múltiplas escaramuças pando um planalto no cimo de uma
Alésia, além da Júlio César, general, e ações de sabotagem levadas a cabo elevação, não permitiam aos romanos
estátua do chefe cônsul, triúnviro pelos gauleses, foi a tomada da povoa- um ataque imediato ou a construção
gaulês, reproduzem- e ditador romano, ção e o massacre de quantos lá esta- de um cerco nos moldes em que havia
-se estruturas do erguida na capital vam. A páginas tantas, Vercingetórix sido feito em Avaricum. A estratégia
cerco romano italiana havia desistido de defender Avaricum romana começou, dadas as condições,
até às últimas consequências, optando por cortar o acesso ao principal abas-
por partir em defesa de Gergóvia, que tecimento de água, um afluente do Rio
seria o alvo seguinte dos romanos e Allier chamado L’Auzon, e de outras
onde não estava disposto a permitir provisões. As posições defensivas
idêntico desfecho. montadas por Vercingetórix nessa
zona eram algo precárias, e César le-
Revés em Gergóvia vou a cabo um ataque-surpresa, de
As características do oppidum de noite, tomando facilmente essa posi-
Gergóvia, capital dos arvernes, ocu- ção, depois de distrair os gauleses com

083
HISTÓRIAS SOLTAS

uma manobra de diversão. Inovou, de- O cerco final de César to, mas a construção prosseguiu em
pois, ao não se limitar a manter uma Depois de Gergóvia, os gauleses terão elevada cadência. No oppidum, discu-
guarnição romana no local, fazendo aí dado um passo maior do que a própria tia-se o que fazer, e uma nova surtida
erguer um campo de menores dimen- perna quando Vercingetórix decidiu não era opção enquanto não chegas-
sões, ligado ao principal campo roma- atacar, a cavalo, Noviodunum (Ne- sem reforços. Aos doentes e aos mais
no por dois fossos paralelos, entre os vers), o oppidum dos éduos, que era velhos, que não pudessem ser úteis
quais as tropas circulavam de um também a base de César. Correu mal: em combate, foi ordenado que saís-
campo para outro a salvo de ataques reforçados com cavalaria regressada sem da cidade, mas para eles não hou-
dos gauleses, desejosos de partir para de combates com os germânicos jun- ve, por parte do invasor, qualquer tipo
a luta corpo a corpo. to ao Reno, os romanos conseguiram de piedade. Como almas penadas,
Pelo meio, sabendo de uma dissen- resistir ao ataque e afastar os guerrei- deambularam entre as linhas fortifica-
são entre os éduos, tribo gaulesa sua ros gauleses, tendo estes depois con- das, aí morrendo, tanto da fome e da
aliada e importante para o cerco de vergido para o oppidum de Alésia, doença como às mãos dos legionários
Gergóvia (dez mil homens que ataca- onde tentariam reorganizar-se e recu- romanos. Quando os reforços chega-
riam por outro lado), César abando- perar dos danos sofridos. Estavam, afi- ram, não significaram a salvação dos
nou o campo, com duas legiões, para nal, onde César os queria. sitiados. A fonte disponível diz que
pôr cobro a essa rebelião, o que con- Onde era Alésia? Já lá vamos. As eram mais que muitos, 240 mil guer-
seguiu. Todavia, Vercingetórix apro- descrições contidas nos Commentarii reiros apeados e oito mil a cavalo, mas
veitou o momento para atacar o prin- de Caio Júlio César colocam o oppi- não nos podemos esquecer de que a
cipal campo romano, que, apesar de dum no topo plano de um monte, es- fonte é o próprio Júlio César, que terá
desguarnecido, tendo homens a me- tando o campo de Vercingetórix mon- exagerado substancialmente os nú-
nos para a sua enorme dimensão, tado no extremo oriental, especificam meros para tornar maior ainda o seu
conseguiu resistir com o auxílio de a natureza do relevo na região, notam feito militar. Vercingetórix chefiou
máquinas de guerra, rechaçando os a existência de alguns cursos de água, duas novas surtidas e, se a primeira (a
gauleses. Regressando à pressa com descrevem um fosso e uma muralha segunda, bem entendido) foi rapida-
as tropas, César avaliou a situação e, com cerca de dois metros de altura mente rechaçada, a terceira redundou
deslocando-se ao pequeno campo, mandada erguer por Vercingetórix na em horas de combate, até ao momen-
apercebeu-se de que uma área antes encosta, mais uns detalhes vagos. Cé- to em que tudo ficou perdido: no exte-
apinhada de guerreiros gauleses esta- sar só queria, obviamente, colocar o rior do cerco, romanos e os seus alia-
084 va agora desguarnecida. Apoiando-se foco da narrativa na sua própria genia- dos germânicos conseguiram pôr os
também em interrogatórios feitos a lidade militar. Ali, diga-se, o caso não reforços gauleses em fuga.
desertores do inimigo, concluiu ser o era para menos: Alésia não foi propria- Duas opções restavam a Vercinge-
momento de tomar esse campo gau- mente uma batalha, mas uma ode à tórix. Podia ter combatido até à mor-
lês e, sabendo que os guerreiros às or- arte do cerco composta pelo próprio te, ou ser aprisionado em combate,
dens de Vercingetórix estavam na Júlio César. mas preferiu sair de Alésia sozinho, a
vertente oposta, pensou lançar o ata- Evitando os erros de Gergóvia e be- cavalo, e depor as suas armas aos pés
que ao oppidum. Três legiões segui- neficiando de um terreno bem mais do grande general romano. Ao desti-
ram em frente, tendo de transpor uma propício, a ação bélica de Alésia foi, no dele já aludimos, e o destino das
muralha de pedra que os gauleses ha- para os romanos, sobretudo uma cam- campanhas da Gália ficava ali selado,
viam erguido na encosta, e tomaram panha de construção. Por dias a fio embora nos dois anos seguintes os ro-
facilmente três acampamentos gaule- (presume-se que o cerco terá durado manos tenham ainda tido de lidar com
ses que ali havia. Nesse momento, Cé- dois meses), construíram duas linhas alguns focos de resistência.
sar terá ordenado a retirada, para fortificadas concêntricas, num perí-
reorganizar o cerco, mas alguma falha metro superior a 30 quilómetros. Al- De novo a polémica
de comunicação, ou excessivo entu- tas paliçadas e centenas de torres de Onde era Alésia? Voltemos, então, à
siasmo, fez com que as legiões mais vigia eram antecedidas, no terreno, vaca fria. A partir de 1855, quando vá-
avançadas prosseguissem até à mura- por complexos sistemas de fossos, rios intelectuais, mais ou menos liga-
lha de Gergóvia. Não tardou, porém, a barreiras e armadilhas. O grosso das dos a Besançon, afirmaram que Alaise
que a principal força de Vercingetórix forças gaulesas e os seus principais correspondia ao derradeiro refúgio
regressasse àquelas posições, sendo o chefes seriam vencidos pela fome, dos guerreiros gauleses, atacando a
combate inevitável. pelo cansaço, pelo desânimo. preexistente ideia de que o local cor-
Cansados e confusos, ao verem do Vercingetórix não se limitou a ser reto era Alise-Sainte-Reine, instala-
seu lado os ditos éduos que tinham ar- espectador, lá do alto, das imponentes ram-se duas fações antagónicas, que
mas idênticas às dos inimigos, os le- obras levadas a cabo por Júlio César. A se digladiaram intensamente não ape-
gionários tombaram ou bateram em primeira surtida a cavalo foi sacudida nas nos fóruns científicos, mas tam-
retirada. César, perdendo perto de 800 pelas legiões romanas, após o que o lí- bém na imprensa. De ambos os lados
homens, entre os quais quase meia der gaulês mandou cavaleiros país havia figuras eminentes e, bem enten-
centena de centuriões, percebeu que o afora em busca de reforços. Natural- dido, ninguém disposto a ceder.
cerco de Gergóvia não seria a chave mente, as estruturas de cerco não es- Enquanto a polémica se ia desen-
para a vitória final. tavam ainda fechadas nesse momen- volvendo, Napoleão III determinou,
Álbum “Le Bouclier em julho de 1758, a criação da Comis- encerrada a polémica e mandou erguer 085
Arverne” (1968), de sion de Topographie des Gaulles (Co- naquele local uma monumental está-
Uderzo e Goscinny, missão de Topografia das Gálias), que, tua de Vercingetórix, com a sua longa
coloca toda esta também por esta polémica, mas não cabeleira e os seus farfalhudos bigodes
história no universo só, tinha a seu cargo redigir dicioná- (aí terá Uderzo, também, bebido inspi-
de Astérix rios e mapas arqueológicos do que ração para os seus desenhos).
eram as províncias gaulesas antes e Como fica claro, mesmo sem nos
durante a ocupação romana, incluin- detalharmos, a própria ciência deu a
do a Bélgica (os belgæ eram, aos olhos questão por encerrada, mas de vez em
de Júlio César, os mais temíveis dos quando surgem razões para reacen-
gauleses) e a Suíça. Ora, a dita comis- der a polémica, como sucedeu em
são rejeitou a possibilidade de Alaise e, 2012, com a abertura do Museu de
com o aval do imperador, ordenou a Alésia em Alise-Sainte-Reine. Quan-
realização de grandes escavações ar- do aqui escrevemos que ninguém
queológicas em Alise-Sainte-Reine. sabe onde fica Alésia, fazemo-lo por
Liderada por Félicien de Saulcy, Ale- graça, também, mas sobretudo para
xandre Bertrande e Casimir Creuly, a notar que, quando alguém decide ter
primeira campanha, que se estendeu razão, pode bem ser incapaz de dar o
de abril de 1861 a setembro de 1862, braço a torcer. Não falta neste mundo,
colocou a descoberto os fossos esca- para dar um exemplo extremo, quem
vados pelos romanos ao longo das pense que a Terra é plana. Tal como
suas linhas de cerco, em redor do lo- continua a haver gente plenamente
cal onde se entendia ter estado o oppi- convencida de que Alésia era onde
dum de Alésia. está Alaise, a sul de Besançon. Se as
Todo o trabalho desta equipa de ar- escavações de Alise-Sainte-Reine fo-
queólogos, que beneficiou de genero- ram esclarecedoras ou não pouco im-
sas dotações públicas, foi desde logo porta. Basta dizer que em Alaise não
plasmado no “Álbum das escavações de se fizeram escavações e que o gover-
Alise-Sainte-Reine”, eventualmente no se recusa a fazê-las. E a piada de
concebido para entregar ao próprio Na- Goscinny e Uderzo, válida há mais de
poleão III, que, como notámos, deu por 50 anos, continua a sê-lo hoje.
TEMPLOS DO SABER

Biblioteca Bodleiana de Oxford

086

Recuar no tempo
para avançar
vida adentro
Texto de Pedro Olavo Simões
uma das mais importantes bibliotecas universi-
tárias do mundo e a segunda maior biblioteca do
Reino Unido, atrás da British Library. O nome
deriva do de Sir Thomas Bodley (1545-1613), di-
plomata da Inglaterra isabelina que, na reforma
(depois de casar com uma viúva rica), voltou a
Oxford, onde em tempos ensinara Grego Antigo
e Hebraico, e dedicar-se a dotar a Universidade
de uma biblioteca adequada àqueles tempos, em
substituição da velha e degradada até aí existen-
te, a Biblioteca do Duque Humfrey. Ainda hoje a
mais antiga sala de leitura da Bodleiana (“The
Bod”, no tratamento familiar dado pela comuni-
dade académica) é a Duke Humfrey's Library,
em homenagem a Humphrey de Lencastre, pri-
meiro duque de Gloucester e irmão do rei Hen-
rique V, que à sua morte, em 1447, legou a sua
coleção de 281 livros à Universidade de Oxford,
cuja primeira biblioteca de raiz havia sido fun-
dada por volta de 1320.
A biblioteca é, portanto, produto do resgate
levado a cabo por Bodley, na transição do sécu-
lo XVI para o XVII, preservando e aumentando
um património que se encontrava em risco, tan-
to mais que as universidades não nadavam em
dinheiro: em 1602, num edifício construído de
raiz para albergar cerca de 2500 volumes, mui-
tos deles doados pelo próprio, nascia o mito. 087
Mas não só. Nascia também um novo conceito
de biblioteca, pois Bodley fez um acordo com a
Stationers' Company (companhia londrina com
o privilégio – ou o monopólio – da publicação de
livros em Inglaterra) segundo o qual a bibliote-
Anexada pela ca de Oxford receberia exemplares de todos os
Bodleiana, a livros dados à estampa. Tal procedimento está
Câmara Radcliffe, na base do estatuto das bibliotecas de depósito
construida de raiz legal, que a Bodleiana mantém, recebendo
como biblioteca, exemplares de tudo o que é publicado no Reino
é o edifício mais Unido. Bibliotecas assim são guardiãs do conhe-
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icónico da cidade cimento, mas também vivem a angústia de uma


de Oxford permanente necessidade de espaço, pois os
fundos crescem continuamente.
O mito assenta numa ideia inspirada pela realida- Isso levou, ao longo dos tempos, à constru-
de. Daí nascem grandes distâncias entre o que é ção de novos espaços e a sucessivas remodela-
e o que se imagina, por vezes sem especial ga- ções, a última levada a cabo no novo (inaugura-
nho, na medida em que a realidade, ela mesma, do em 1940) edifício da Bodleiana, encerrado
é de tal forma fascinante que dispensa o condi- durante alguns anos e reaberto em 2015. Mas o
mento da imaginação. A cidade inglesa de Oxford mais emblemático acrescento da biblioteca
não se ergue propriamente sobre um labirinto de central de Oxford data do segundo quartel do
livros, mas existem, de facto, túneis pelos quais, século XVIII e resulta do testamento do médi-
ao longo de décadas, o saber impresso circulou co, académico e parlamentar John Radcliffe.
em tapetes rolantes entre edifícios e sob a indi- Com objetivos e projetos bem definidos, deixou,
ferença do tráfego rodoviário e pedonal. Mas não além de uma fortuna, instruções para os seus
é só isso que faz da Biblioteca Bodleiana uma das testamentários supervisionarem a construção
mais afamadas em todo o mundo, tendo à sua de vários equipamentos universitários. Entre
guarda mais de 13 milhões de itens impressos. eles está o mais icónico edifício de Oxford, a Câ-
Hoje usa-se o plural – Bodleian Libraries – mara Radcliffe, bibilioteca neoclássica de plan-
para referir a instituição que absorveu outras, ta circular encimada por imponente cúpula. Até
TEMPLOS DO SABER

088

Gravura datada de 1860, era uma biblioteca independente da do edifício original, ficou a este ligado por um
1890, mostrando Bodleiana, mas, depois de ser incorporada na túnel em que se instalaram equipamentos es-
um dos espaços instituiçãoprincipal, acabou por estar no centro senciais ao funcionamento da biblioteca: um
interiores da grande da história dos subterrâneos. sistema de transporte (diríamos tapete rolante,
biblioteca O crescimento exponencial dos fundos era para facilitar), em que os livros, colocados em
universitária um problema. Ainda antes de se atingir, em carrinhos, circulavam entre os dois edifícios, e
1914, a meta simbólica do milhão de livros, foi sistema de transporte pneumático, através do
tomada a decisão de construir um grande espa- qual se processava a comunicação, incluindo os
ço subterrâneo para aumentar a área de arma- pedidos de livros que seguiam em cápsulas de
zenagem. Tal foi feito, entre 1909 e 1912, sob a um para outro lado. Evidentemente, este siste-
Praça Radcliffe (onde está o edifício circular), ma de tubos pneumáticos é hoje obsoleto, mas
sendo ao tempo o maior espaço do género em o transporte de livros sob a Broad Street (o con-
todo o mundo. Cedo se tornou insuficiente: em veyor, também suspenso há anos, por proble-
1931 foi tomada a decisão de construir um novo mas estruturais, alguns deles relacionados com
edifício, com capacidade para armazenar cinco a rede de saneamento da cidade) pode vir a ser
milhões de livros, salas de leitura e escritórios retomado. Entre os dois edifícios principais en-
para vários departamentos. Situado no lado contra-se ainda o setecentista Clarendon Buil-
oposto da Broad Street, a menos de 100 metros ding, originalmente erguido para albergar a im-
O edifício primitivo
– e principal – da Bodleiana 089
é, de certo modo, o coração
da Universidade de Oxford

O juramento que todos


os leitores são obrigados
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a fazer em voz alta é,


também, um produto de
“merchandising”

prensa universitária de Oxford, mas integrado Por outro lado, a Bodleiana não se resume às
na Bodleiana desde 1975. Hoje, a biblioteca do- existências. É um estado de espírito que nos faz
mina o núcleo histórico da Universidade. recuar no tempo e se traduz nos procedimentos.
Não é (ou não apenas) pelas peculiaridades Desde logo, livro que ali entra nunca mais sai.
do edificado que se avalia a grandeza de uma Não há empréstimos. E qualquer pessoa que
biblioteca. Nem pela quantidade de volumes queira ser leitora, in situ, tem de passar por um
que se lhe acrescenta todos os dias. Entre os te- apertado crivo de autorizações e fazer um jura-
souros de Bodleiana (que guarda também obje- mento em voz alta. O texto existe em várias lín-
tos de relevância histórica, manuscritos, mapas, guas, mas é nossa a tradução do inglês com que
coleções digitais...), um milhão de artigos estão encerramos este apontamento: “Aqui me com-
incluídos nas chamadas “coleções especiais”, prometo solenemente a não remover da Biblio-
incluindo preciosidades como aquele que é teca, ou marcar, ou apagar, ou danificar de ne-
considerado o primeiro livro manuscrito em lín- nhum modo qualquer volume, documento ou
gua inglesa (uma tradução, do século IX, da outro objeto que lhe pertença ou esteja à sua
“Cura pastoralis” do Papa Gregório I, original guarda; e a não trazer para a biblioteca ou nela
de finais do século VI), manuscritos de Shakes- acender qualquer fogo ou chama, e a não fu-
peare ou uma das poucas bíblias de Gutenberg mar na Biblioteca; e prometo obedecer a todas
completas que ainda existem no mundo. as regras da Biblioteca”.
HISTÓRIAS CÓSMICAS

090

A gravidade
de Leonardo
N
a sua obra “Science: Abridged
Beyond the Point of Usefulness”,
o humorista, cartoonista e escri-
tor americano Zach Weiners-
mith propõe apresentar a sua vi-
são muito resumida e bem dis-
posta da história e da evolução
da ciência. E podemos apreciar isso logo nas pri-
meiras linhas, dedicadas à física: “Aristóteles disse
um monte de coisas que estavam erradas. Galileu e
Newton resolveram e esclareceram tudo isso. De-
pois, Einstein estilhaçou tudo novamente. Agora,
basicamente, percebemos tudo… exceto coisas pe-
quenas, coisas grandes, coisas quentes, coisas frias,
coisas rápidas, coisas pesadas, coisas escuras, tur-
bulência e o conceito de tempo”. É, digamos, um
humor pedagógico e não propriamente muito dis-
tante da verdade. No fundo, o que Weinersmith
tenta dizer-nos com um sorriso nos lábios é que,
apesar da nossa notável tecnologia e desenvolvi-
mento científico (ou com a ajuda de ambos), vive-
mos num tempo em que colocamos à prova e em
debate até mesmo os conceitos que consideramos
há muito como elementares. E o mesmo acontece
na elucidação da narrativa histórica dessa nossa
aprendizagem científica. E as mais recentes cam-
panhas de trazer luz ao nosso pensamento sobre
algo tão corriqueiro (mas de tão difícil compreen-
são) como a natureza da gravidade conheceu um
novo capítulo e um velho amigo. 091
É uma das quatro forças fundamentais da natureza,
talvez aquela com que convivemos de forma mais
pacífica. Aparentemente, “porta-se bem” face à
nossa visão de senso comum do funcionamento do
Universo. Uma maçã cai? Gravidade. Os planetas
giram à volta do Sol? Gravidade. Não consigo dar
um salto poderoso que me faça escapar da Terra?
Gravidade. As galáxias colidem? Gravidade. Da es-
cala humana às maiores estruturas do cosmos, a
gravidade é uma espécie de tirana: ao contrário do
que acontece com os campos magnéticos e eléctri-
cos – que podem ser bloqueados –, ainda não co-
nhecemos uma tática eficaz para eliminar a in-
fluência da gravidade. E, porém, do ponto de vista
matemático, e enquanto força, é a mais fraca das
forças fundamentais.
Um pequeno Percorremos as várias enciclopédias da história da
erro matemático ciência e encontramos alguns nomes conhecidos,
escondeu que que dedicaram muito do seu tempo a tentar com-
também a preender o que é e como se rege a gravidade. Seria
gravidade de esperar que fosse, até, um debate filosófico pro-
estimulou o génio fundo e intemporal. A verdade é que os primeiros
de Da Vinci pensamentos consistentes (mas errados) sobre a
gravidade aparecem com Aristóteles. A obsessão
grega com os quatro elementos fundamentais – ar,
água, fogo e terra – apenas lhes permite afirmar
que os objetos mais pesados caem mais rapida-
mente do que os elementos mais leves, devido ao
Miguel Gonçalves material fundamental de que são feitos e de uma li-
Divulgador de ciência gação quase esotérica de fraternidade: se um corpo
HISTÓRIAS CÓSMICAS

é principalmente feito de terra, então terá de re- como sendo uma assinatura da natureza, mas Ke-
gressar ao maior representante de tal elemento, pler não a integrou nas suas Leis dos Movimentos
obviamente a Terra! O pensamento não é elabora- Planetários. Halley provoca Newton com a mate-
do, mas vigorou durante séculos. Em boa verdade, mática para tentar perceber se este último conse-
foram mesmo dois milénios, até que um cavalheiro gue extrapolar a física da matemática de Kepler
de seu nome Galileu Galilei ousou desafiar o argu- que abre a porta para o conhecimento da gravida-
mento da autoridade aristotélica e afirmou que, de. Surpreendentemente, Newton não pareceu
desde que a resistência do ar não seja um facto de- muito provocado, pois respondeu que já tinha pen-
terminante, um objeto maciço e outro bem menos sado em tal ângulo de abordagem, já tinha chegado
denso irão cair com a mesma velocidade e encon- a algumas fórmulas matemáticas sobre o que seria
trarão o chão no mesmo instante. No ensino secun- essa misteriosa força e, até, já as tinha escrito... al-
dário foi-nos ensinado tal momento de génio com gures! Os primeiros fragmentos das Leis da Gravi-
a história de um Galileu eufórico e triunfante no dade de Newton estavam escritos num papel per-
topo da torre de Pisa a atirar bolas de canhão de di- dido na sua residência. Halley convenceu Newton a
ferentes densidades e a comprovar a sua revolucio- encontrar tais preciosidades, e o resto da história é
nária hipótese – e não é que chegam todas ao mes- conhecido: a 5 dejJulho de 1687, a humanidade co-
mo tempo? A história é bonita, mas é também um nheceu a primeira edição de Philosophiæ Natura-
claro exemplo do romantismo mitológico a que até lis Principia Mathematica. Com toda a pompa, cir-
mesmo a ciência não consegue escapar: essa expe- cunstância e notável criatividade, Newton explicita
riência nunca aconteceu e foi mesmo obra do pen- o seu entendimento matemático e físico da gravi-
samento delirante – mas cientificamente correto – dade: a força da gravidade que atua entre a Terra e
de um brilhante aluno de Galileu, de sua graça Vin- qualquer outro objecto é directamente proporcio-
cenzo Viviani. Note-se que para Galileu o termo nal à massa da Terra, directamente proporcional à
“gravidade” era ainda desconhecido, mas houve, massa do objecto e inversamente proporcional ao
contudo, o reconhecimento de que algo não esoté- quadrado da distância que separa os centros da
rico (ao contrário do assumido pelos gregos anti- Terra e do objecto. Em tal equação está também
gos) rege o comportamento dinâmico dos corpos. presente a chamada Constante de Gravitação Uni-
É com um contemporâneo de Galilei que as ideias versal – o termo “G”. É denominada “constante
do génio italiano passam a ter o início de um reves- universal” porque é a mesma em todos os lugares e
092 timento matemático consistente. As suas Leis dos em todos os momentos e, assim, caracteriza uni-
Movimentos Planetários (publicadas entre 1609 e versalmente a força intrínseca da força gravitacio-
1619) - que os planetas orbitam o Sol em órbitas nal. O valor numérico de G é muito pequeno e isso
elípticas; que a linha imaginária que liga o Sol ao mostra a razão pela qual a força da gravidade é a
planeta varre áreas iguais em tempos iguais; e que força mais fraca da natureza.
o quadrado do período orbital do planeta é igual ao Newton apresenta assim o valor matemático, físico
cubo da sua distância média ao Sol e que tais leis e filosófico da gravidade. Mas, tal como Zach Wei-
aplicam-se a qualquer planeta que orbite uma es- nersmith nos relembra com uma gargalhada, no
trela – constituem um tremendo avanço filosófico início do século XX Einstein estilhaçou tudo nova-
e técnico sobre a natureza da gravidade. Porém… mente. Na realidade, o entendimento da gravidade,
Kepler não conseguiu atingir o nirvana desta ques- para Einstein, não representa um Apocalipse para
tão. Faltou “um bocadinho”. Galileu dá o suporte as ideias de Newton. Einstein complementa
experimental/laboratorial, Kepler o entendimento Newton onde as leis deste último são insuficientes
matemático, mas faltava a dimensão seguinte: a fí- para explicar a dinâmica dos corpos em conceitos
sica da gravidade. E, já agora, provar que a física ce- mais específicos. Para viajarmos da Terra até à Lua
lestial não é “mais pura” do que a física da Terra. basta-nos utilizar a formulação de Newton. Porém,
Que o que se passa “lá em cima” pode ser com- para percebermos com muito mais precisão o efeito
preendido com as mesmas leis aplicadas ao que se das grandes massas e a cinemática das velocidades
passa “cá em baixo”. Ou quase. E é nesta nova cena próximas da velocidade da luz, então prestamos o
do “Teatro da Gravidade” que entra um novo ator: nosso respeito a Newton, mas pedimos a Einstein
Isaac Newton. Reza a história que em agosto de que nos guie – é o motorista que melhor conhece o
1684 o já conhecido e reconhecido físico inglês re- estado do asfalto e os atalhos em tais rotas!
cebeu a visita surpresa de um outro cavalheiro e Mas vamos deixar Einstein sossegado no século
astrónomo genial: Edmond Halley. O tema de tal XX e reflectir sobre o tsunami gravitacional que
encontro e conversa terá sido, precisamente, os nos ofereceu em futuras crónicas. E isto porque, à
pensamentos e escritos de Kepler. Halley questio- luz das mais recentes descobertas, para além de
nou Newton se, porventura, não estaria Kepler a Aristóteles, Kepler, Galileu, Copérnico e Newton
sugerir uma qualquer força de atração ao Sol sendo temos de referir um outro gigante que, aparente-
inversamente proporcional ao quadrado da distân- mente, teve também pensamentos revolucioná-
cia entre o mesmo e cada planeta. Esta relação pu- rios sobre a gravidade, bem antes do tempo de Ke-
ramente matemática já era conhecida, na altura, pler. Eis um velho amigo e frequentador deste
093
burgo literário: Leonardo da Vinci! Isaac Newton ção seria apenas devida à gravidade. Como a linha
Apesar de não ser inteiramente exato, engenheiros e Albert Einstein, feita pelo material em queda é vertical, quando o
do California Institute of Technology (Caltech) des- cujos trabalhos, jarro se move a uma velocidade constante, não se
cobriram que a conceção da gravidade de Leonardo entendidos como forma um triângulo. A linha formada pela acumu-
da Vinci estava séculos à frente do seu tempo. Os complementares, lação de material em queda cria uma linha recta
autores do estudo utilizam um exame recente de são ainda o nosso mas inclinada, que depois forma um triângulo se o
um dos cadernos de notas de Leonardo da Vinci mapa para o jarro acelerar a uma velocidade constante. E, como
para estabelecer que o famoso polímata tinha con- entendimento Da Vinci demonstrou num diagrama crucial, se o
cebido experiências para ilustrar que a gravidade é da gravidade movimento do jarro for acelerado à mesma veloci-
um tipo de aceleração e que o próprio também pre- dade que a gravidade acelera o material em queda,
viu e modelou a Constante de Gravitação Universal produz um triângulo equilátero, algo que a equipa
com uma precisão de 97%! Para quem viveu entre de investigadores do Caltech observou, inicialmen-
1452 e 1519, estas deduções são absolutamente ex- te, que Da Vinci tinha destacado com a nota “Equa-
traordinárias – lembre-se que o seu principal desa- tione di Moti”, ou “equalização (equivalência) de
fio eram as limitações dos instrumentos à sua dis- movimentos”! Da Vinci tentou quantificar matema-
posição. Por exemplo: não tinha uma forma de me- ticamente essa aceleração. Os autores do estudo
dir o tempo com precisão quando os corpos caem! afirmam que foi nesse momento que começou a
O “Codex Arundel”, uma colecção de obras de Da frustração do génio renascentista. O grupo replicou
Vinci sobre ciência, arte e assuntos pessoais, con- a experiência do vaso de água de Da Vinci, utilizan-
tém estes conhecimentos. Nos seus escritos, Leo- do a modelação por computador, para investigar o
nardo da Vinci narra uma experiência na qual um seu processo de pensamento. E perceberam o erro
cântaro de água seria empurrado ao longo de uma de Da Vinci – uma singela, mas mortal, confusão
linha reta paralela ao solo, enquanto descarregava entre expoentes e fatores na sua equação.
água ou uma substância granular (provavelmente A intuição física estava absolutamente correta, e
areia) ao longo do caminho. As suas notas demons- o ligeiro descalabro matemático arredou Leonar-
tram que estava ciente de que a água ou a areia não do da Vinci de mais um marco intelectual e cien-
desceria a uma velocidade constante, mas que, em tífico no seu currículo, muitas décadas antes de
vez disso, aceleraria. Também compreendeu que o Kepler e Newton! Mas hoje sabemos que temos
material deixaria de acelerar horizontalmente as- de incluir mais um gigante na galeria dos curio-
sim que o jarro fosse removido e que a sua acelera- sos da gravidade!
CINEMA E HISTÓRIA

Visões
animadas
do passado
A recente nomeação de uma curta-metragem portuguesa
de animação para os óscares coloca este género cinematográfico
na ordem do dia. Tratando-se de um género mais associado
a públicos infantojuvenis, não deixa de ser verdade
que também têm passado pela animação obras em que
094 a grande história surge com toda a nitidez em pano de fundo

É
já no dia 12 de março (já madru- vir como ponto de transmissão de dados e fac-
gada de 13, por estas bandas) tos históricos, sem ter necessariamente de ofe-
que ficaremos a saber se Portu- recer uma “mensagem”, mas alertando-nos,
gal terá pela primeira vez um ós- dando-nos a ver, resgatando da memória ou
car só seu. Mas mesmo que “Ice mesmo da história personagens e eventos que
Merchants”, a lindíssima curta convém não esquecer. Não é preciso ir muito
de animação do portuense João longe. O cinema português tem já vários exem-
Gonzalez não ganhe a estatueta, o cinema por- plos e apresta-se a fazer chegar ao ecrã uma das
tuguês e o seu setor de animação já estão a ga- suas primeiras longas-metragens: “Nayola”, de
nhar. Apesar de soberba do ponto de vista ar- José Miguel Ribeiro. Baseado numa peça de tea-
tístico e pelo seu carácter universalista, a curta tro escrita por Mia Couto e José Eduardo Agua-
não é propriamente um filme para crianças, fa- lusa, o filme acompanha três gerações de mu-
lando-nos de solidão, de luto, da força do traba- lheres angolanas confrontadas com a realidade
lho, através da história de pai e filho que todas e a memória da guerra civil que o país viveu
as noites descem da casa onde vivem, lá no após a independência.
alto, para vender, na aldeia cá em baixo, o gelo Antes, outros filmes de animação portuguesa já João Antunes
que produziram. se tinham cruzado com a história. Abi Feijó rea- Crítico de cinema
A questão que se coloca a um artigo sobre ani- lizou em 1993 “Os Salteadores”, baseado num
mação numa revista como esta é saber onde conto de Jorge de Sena. Passado na década de
está a relação entre este género cinematográfica 1950, dentro de um carro em viagem noturna
e a história, enquanto ramo do saber. Há muitas pela costa portuguesa, discutindo-se a identida-
produções de grandes estúdios que se ambien- de de um grupo de homens, capturados e mor-
tam em períodos históricos mais ou menos es- tos no decurso da Guerra Civil Espanhola. Em
pecíficos, como todos os “Astérix e Obélix”, “O 2001, Vítor Lopes assinou “Timor Loro-Sae”, em
Príncipe do Egito” ou “Aladdin”. Mas, nesses e que se conta a história do povo timorense que,
em tantos outros, o rigor histórico é hipotecado depois de proclamar a independência de Portu-
pela dimensão lúdica e pelo sentido do espetá- gal, resistiu a 26 anos de ocupação indonésia.
culo. Há, todavia, vários títulos que podem ser- Uma década mais tarde, Rui Cardoso assinou “O
095

Refugiado”, sobre a odisseia de um jovem afri- Khadra, em torno das dificuldades do quotidia- Fotograma de
cano fugindo às atrocidades da guerra que asso- no de um jovem casal livre de espírito, num “Os Salteadores”
la a sua terra. Mais recentemente, “O Casaco país dominado pelo regime talibã. (1993), filme
Rosa”, de Mónica Santos, pode definir-se como Também recentemente o israelita Ari Folman de Abi Feijó
uma animação musical e política, evocando um deu um olhar diferente à história clássica, com baseado
inefável agente da PIDE , através de um casaco “À Procura de Anne Frank”, cruzando onde a num conto
que tortura e costura os opositores do regime. história passada numa Europa ameaçada pelos de Jorge de Sena
No panorama internacional, não faltam filmes nazis com a problemática atual dos refugiados.
de animação ligados à história. Apesar de todas O uso da animação em contextos históricos
as suas derivas românticas, o “Pocahontas” da não é novo na obra de Folman, que em 2008
Disney recorda a ligação de um pioneiro norte- assinara o perturbador “A Valsa com Bashir”,
-americano, John Smith, com a princesa índia, catarse autobiográfica sobre as memórias do
enquanto numa mesma linha de grande espetá- realizador e de outros veteranos da guerra is-
culo para todas as idades, “Anastásia” recorda o raelita no Líbano, em 1982.
mito da sobrevivente da execução da família Ro- Não faltam temas. “Persepolis”, de Vincent Pa-
manov, após a Revolução Russa de 1917. ronnaud e Marjane Satrapi, baseado na novela
Em 2021, “Flee - A Fuga”, documentário de ani- gráfica desta última, aborda o crescimento pre-
mação baseado numa história verídica, come- coce e livre de uma jovem iraniana durante o pe-
teu a proeza de ser nomeado para três Óscars ríodo da Revolução islâmica; “As Asas do Vento”,
de Hollywood: Melhor Documentário, Melhor do mestre japonês Hayao Miyazaki e dos seus
Longa de Animação e Melhor Filme Internacio- Estúdios Ghibli, confirma a sua enorme paixão
nal, representando a Dinamarca. Trata-se do pela aviação, ao contar “A vida de Jiro Horikoshi”,
retrato de Amim, um homem que, nas vésperas o homem que desenhou os bombardeiros japo-
do seu casamento homossexual, recorda a in- neses da Segunda Guerra Mundial; “Neste Canto
fância como refugiado do Afeganistão. Um títu- do Mundo”, de Sunao Katabuchi, baseia-se na
lo que nos leva diretamente a “As Andorinhas manga de Fumiyo Kono e mostra a vida em Hi-
de Cabul”, de Zabou Breitman e Eléa Gobbé- roshima antes da bomba, oferecendo um olhar
-Mévelac, baseado no romance de Yasmina sobre a guerra vista do “outro lado”.
LIVROS

Novidades e outras leituras

ESPINOZA LEONOR AS ENVIADAS


E LEIBNIZ DE AQUITÂNIA ESPECIAIS

ANTÓNIO BORGES COELHO ALISON WEIR JUDITH MACKRELL


Caminho | 400 páginas | 23,90 € Desassossego | 464 páginas | 21,10 € Casa das Letras | 528 páginas | 22,90 €
096 Aos 95 anos de idade, António Borges Alison Weir, autora britânica especiali- Judith Mackrell não é historiadora, e o
Coelho não para. E decerto que ele zada em mulheres da realeza do seu facto de ser crítica de dança na im-
desculpará a inconfidência de quem país (só as seis mulheres de Henrique prensa britânica, designadamente no
aqui escreve, mas, em dedicatória pes- VIII já lhe deram pano para mangas), jornal “The Guardian”, dificilmente a
soal deste volume, o historiador, que debruça-se agora sobre a complexa – e traria a estas páginas. Todavia, a expe-
se aventura em terrenos filosóficos (de mais dificilmente atingível, por ter vi- riência que já vem desenvolvendo em
história das ideias, entende-se), faz a vido no século XII – figura de Leonor trabalhos de não ficção, não necessa-
seguinte revelação: “Acompanhou-me de Aquitânia, que foi rainha de França riamente ligados ao interesse central
muitos dias. E aprendi muito”. Só essa e rainha de Inglaterra e, por vários da sua atividade principal, desagua
lição aqui partilhada, a de que a vida é motivos, entrou na mitologia do Oci- neste trabalho de fôlego que sem dúvi-
uma contínua aprendizagem, dure o dente. Por exemplo, por ter sido mãe da merece aqui ser referido sem reti-
que tiver de durar, seria suficiente, de Ricardo Coração de Leão e de João cências. É um livro que fala da Segun-
mas a ideia é, justamente, recomendar Sem Terra (o Príncipe João que todos da Guerra Mundial, de jornalismo e,
o livro, em que o autor de “Portugal na conhecem das aventuras de Robin através de mulheres jornalistas, da
Espanha Árabe” ou da “História de Hood), ambos reis de Inglaterra. Mas é condição feminina em meados do sé-
Portugal” solitariamente escrita, que também amiúde referenciada por os culo XX e nas condições extremas dita-
deu por concluída no século XVIII, seus casamentos/alianças, primeiro das pela função de repórter de guerra.
aventura-se em novos caminhos. Mas – com Luís VII de França, depois com Clare Hollingworth, Martha Gellhorn,
e ainda bem – o historiador fala alto: Henrique Plantageneta, segundo do Lee Miller, Sigrid Schultz, Virginia
“Desculpem-me se abro demasiada- nome em Inglaterra, estarem entre as Cowles e Helen Kirkpatrick são as mu-
mente a porta do concreto, se não con- causas basilares da chamada “Guerra lheres retratadas neste trabalho, cujas
sigo, preso pelos singulares da Histó- dos Cem Anos”, período de persistente peripécias nos levam da Guerra Civil
ria, passar o umbral da visão subspe- guerra entre franceses e ingleses co- de Espanha à queda do III Reich, numa
cie aeternitatis de que falava Espinosa mummente balizado pelos anos de história condimentada com aspetos
(de seus nomes, Baruch, Beneditus, 1337 e 1453. Num registo coloquial mundanos, paixões, desilusões, tudo.
Bento de Espinosa, Bento de Spinosa, mas rigoroso, a autora traça o retrato São seis existências que de algum
B. de S.), para quem ‘a liberdade da Fi- desta figura fascinante, mulher de dois modo se vão entrecruzando, numa
losofia […] não pode ser abolida sem se reis e mãe de três, e com ela traça a narrativa diacrónica que, para benefí-
abolir ao mesmo tempo a paz do Esta- necessária panorâmica sobre o Ociden- cio de quem lê, não é uma mera suces-
do e a própria Piedade’”. te medieval. são de notas biográficas.
O MESTRE O REI OS REIS
DA FUGA TRAIDOR MERCADORES

JONATHAN FREEDLAND ANDREW LOWNIE STEPHEN R. BOWN


Bertrand | 376 páginas | 19,90 € Casa das Letras | 520 páginas | 23,90 € Temas e Debates | 360 páginas | 19,90 €
Só o facto de o autor ter resistido a co- Aos muitos apaixonados pelas intrigas É natural que as pessoas que se inte- 097
locar Auschwitz em título merece lou- da realeza britânica, não satisfeitos ressam por história já tenham tropeça-
vor – embora o trágico topónimo, em com o que mostram séries televisivas do no contexto de “companhias majes-
subtítulo, e a conhecida imagem da en- ou documentários disponíveis aos ma- táticas”, ou ainda que qualquer pessoa
trada para o campo de extermínio de gotes nas plataformas de streaming, li- já tenha ouvido falar em “Companhia
Auschwitz-Birkenau na capa, confir- vros como este não escapam. Todavia, das Índias”, mesmo que apenas para
mem uma tendência de que os editores o trabalho de Andrew Lownie, centra- referenciar uma peça ou um serviço de
não prescindem, pensando em vendas do mais no exílio dos duques de Wind- porcelana. A “Era do comércio heroi-
e vulgarizando o que não pode ser vi- sor do que no processo que levou à ab- co”, que também dava bom título para
garizado. Posto isto, “O mestre da dicação do rei Eduardo VIII (em de- este livro, era esse tempo, entre o iní-
fuga” (“The escape artist”, no original, zembro de 1936), procura novas fon- cio do século XVII e o final do século
fazendo trocadilho com os escapistas tes para esclarecer detalhes obscuros XIX, em que as potências europeias
como Harry Houdini) centra-se na des- (mesmo que não inéditos), designada- (mas não só), recorriam a capitais e in-
conhecida história de Rudolf Vrba mente aqueles associados às ligações teresses privados para levar a cabo os
(aliás Walter Rosenberg), então com 19 do duque ao regime nazi, apresenta- seus projetos de colonização, conce-
anos, que em 1944, na companhia de dos aqui, também, com ligações a Por- dendo privilégios a empresas (as ditas
outro judeu, Fred Wetzler, conseguiu tugal, em especial na pessoa do ban- companhias) que se tornavam verda-
fugir de Auschwitz e contar no exterior queiro Ricardo Espírito Santo Silva, deiros potentados regionais e globais,
os horrores ali testemunhados, daí re- que alojou o casal em Cascais – “O Dr. podendo influenciar ou mesmo deter-
sultando um relatório entregue a líde- Espírito Santo era um agente alemão e minar as políticas dos governos metro-
res como Winston Churchill ou Franklin um amigo chegado do ministro alemão politanos. Este trabalho aborda a his-
D. Roosevelt. Pela pena de Jonathan em Lisboa”. É em torno dessa ideia de tória de seis dessas companhias (Com-
Freedland, jornalista britânico e divul- traição, expressa literalmente em títu- panhia Neerlandesa das Índias Orien-
gador de história contemporânea, com lo, que se desenrola em boa parte este tais, Companhia Neerlandesa das Ín-
um programa regular na BBC Radio 4 e novo ensaio biográfico, incluindo o dias Ocidentais, Companhia Inglesa das
dois podcasts, esta história desenrola- modo como Churchill tentou silenciar Índias Orientais, Companhia Russo-
-se de forma fluente e cativante. Por- as ligações perigosas deste monarca -Americana, Companhia da Baía de
que nunca deixa de surpreender e ja- de breve reinado, tentando a todo o Hudson e Companhia Britânica da Áfri-
mais será compreendido, o Holocausto custo preservar a instituição real. Tudo ca do Sul) e, com elas, o desenvolvi-
é um tema que não se esgota. escrito com ritmo e elegância. mento de um colonialismo voraz.
PONTES NO TEMPO

Que universalidade
têm os Direitos Humanos
José Pedro
Teixeira Fernandes
No final deste ano, a Declaração ta chinês cosmopolita, e Charles Malik, político
e diplomata libanês e cristão ortodoxo, tinham
Universal dos Direitos Humanos perfil similar.
faz 75 anos. Não é propriamente

3
um documento consensual, pois Nas críticas à declaração ecoam as críti-
nasceu do mundo saído cas à própria ONU, desde logo pela com-
posição do Conselho de Segurança, com
da Segunda Guerra Mundial, cinco membros permanentes com direi-
quando só 58 países eram to de veto: EUA, Federação Russa (União Sovié-
membros das Nações Unidas tica), China, Reino Unido e França. Espelha o
mundo à saída da II Guerra Mundial, não o de

1
hoje. A contestação ao carácter universal dos Di-
Este ano, a Declaração Universal dos Di- reitos Humanos é acentuada no Islão, que englo-
reitos do Homem faz 75 anos. É um dos do- ba dezenas de estados, a grande maioria dos
cumentos mais marcantes do século XX, quais não eram soberanos em 1948. A par do
que teve duas guerras extraordinariamen- Ocidente e da sua visão do mundo universalis-
te violentas e destrutivas. Em especial, a expe- ta, herdada do cristianismo e gradualmente se-
riência traumática da Segunda Guerra Mundial cularizada a partir do século XVIII, o Islão é a ou-
e da barbárie do nazismo deixou profundas tra grande cultura/civilização de vocação uni-
marcas. O pós-guerra foi, por isso, um momen- versalista. Ora, a Organização da Conferência Is-
098 to de viragem. No centro da reconstrução do lâmica aprovou, em 1990, uma (diferente) Decla-
mundo com outras formas de funcionar, pací- ração dos Direitos Humanos no Islão. Outra con-
ficas, cooperativas e baseadas no Direito Inter- testação radica no relativismo cultural. Já em
nacional, está a Organização das Nações Uni- 1947, num texto publicado pela Associação An-
das, criada em 1945, em cujo âmbito, com a Re- tropológica Americana, podia ler-se: “O proble-
solução 217 A, foi aprovada em Paris a Declara- ma da elaboração de uma Declaração dos Direi-
ção Universal dos Direitos do Homem, a 10 de tos Humanos foi relativamente simples no sécu-
dezembro de 1948. Portugal não fez parte des- lo XVIII, porque não se tratava de direitos huma-
sa votação, pois só foi admitido em 1955. nos, mas dos direitos dos homens no âmbito das

2
sanções impostas por uma única sociedade.
Hoje, a Declaração gera admiração, pro- Mesmo assim, um documento tão nobre como a
fundo respeito e uma vontade genuína Declaração de Independência Americana, ou a
de a aplicar. Mas é, também, desrespei- Declaração de Direitos Americana, podia ser es-
tada e violada, e há forte contestação à crito por homens que eram eles próprios pro-
sua validade universal. Para os críticos, é oci- prietários de escravos, num país onde a escra-
dental e não universal. Foi aprovada (apenas) vatura fazia parte da ordem social reconhecida.
por 48 estados que não representavam a comu- (...) Hoje, o problema é complicado pelo facto de
nidade internacional no seu todo. A época era a Declaração ter de ser de aplicabilidade mun-
largamente colonial e as Nações Unidas só ti- dial. Deve incluir e reconhecer a validade de
nham 58 membros (hoje são 193). O cunho oci- muitos modos de vida diferentes”. Todavia, além
dental da declaração é comprovável em Elea- da substância e pertinência das críticas, impor-
nor Roosevelt, viúva do presidente americano ta reconhecer algo crucial: o mundo é um lugar
Franklin D. Roosevelt e impulsionadora da melhor com a Declaração Universal dos Direi-
ideia. É também visível na comissão que a redi- tos Humanos de 1948. A brutal realidade da
giu. Teve 18 membros, de várias partes do mun- guerra, as perseguições políticas e religiosas e
do, mas os protagonistas eram ocidentais ou os abusos flagrantes à dignidade do ser humano
ocidentalizados. Foi o caso de René Cassin, ju- mostram que, apesar das imperfeições e proble-
rista francês de ascendência judaica, e John mas, é um bem maior. Para as inúmeras vítimas
Humphrey, jurista canadiano, que tiveram pa- no mundo, a declaração e as convenções sobre
pel maior no rascunho. Outros contribuintes os Direitos Humanos que inspirou são uma últi-
importantes, como Pen Chun Chang, diploma- ma réstia de esperança e de dignidade.
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