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I Teri ra a vista! Esse ¢ 0 enunciado inaugural do Brasil. Repetido ritualisticamente acada vez que ‘havios encontram onde aportar, nao se trata de uma fala original. E chapa cristalizada, estereotipada. Comentario de aventureiros, Fala de piratas. De descobrido descobertas.Des-cobrimento. = Se nos aproximamos mais desse enunciado podemos ainda especificar que é uma exclamacio, De que natureza seria: de jubilo, de surpresa, de alivio, de apreensio, de curiosidade? De todo modo, por significae red}ele pode indicar, de um lado (daquele dos que ancoram), a chegada (porto seguro) ¢, de outro _ (0 dos que aqui estao), entrada (invasio). Promessa ou ameaga? Visitantes ou invasores? Terra a servir de berco espléndido? A ser pilhada? De quem, essa terra? A vista. discurso das Ver” tem um sentido bem especifico nesse contexto: 0 que é visto ganha estatuto de existéncia, Ver, tornar visivel, ¢ forma de apropriagao. O que o olhar abarca é 0 que se torna ao alcance das maos. O visivel (o descoberto) ¢ 0 preambulo do legivel} co- nhecido, relatado, codificado. Primeiro passo para qite se assente asua posse. A submissio as letras comega ¢ termina no: olhar|O discurso das descobertas dé noticias do que vé. Considerando, dizia ‘TERRA A VISTA sthevee (i367) em seu rlato, “a minhalongae Penosaperegrings, a0, realizada com o designio de ver...” fuir que “Terra a vista” — a prime; q sta’ — a primeira fal, Podemos assim concl sobrcp Brasil —expressa o olhar inaugural que atesea nas let sore prigem. Pero Vaz de Caminha dard prOximo passo lange sores certidao, com sua Carta. Ao mesmo tempo, para os cu von cata exclamagao dit-0 inicio de um processo de apropriaszo, Deseoberta significa, entio, conquista. ‘Mas pode significar muitas outras coisas. De qualquer modo, SA 4 discurso das descobertas é um discurso que domina a nesia, existéncia como brasileiros, quer dizer, ele se estende ao longo de es produzindo e absorvendo sentidos. ra nossa historia, Tduma cumplicidade do discurso das descobertas como cien- tifico que lhe dé um modo de existéncia ideoldgico, que vai assim resultar em um “fechamento”: descobrir é dizer 0 conhecido. \s-¢ ria, em nossa , Osadiscursos estabelece perspectiva dis va, nao se define pela cronologia, nem por seus acidentes, nem é tampouco evolugao, mas produgio de sentidas (Paul Henry, 1985). Ela é algo da ordem do discurso. Nao ha. histéria sem discurso. E alids pelo discurso que a historia nao é sé evolugao mas sentido, ou melhor, é pelo discurso que nao se esta s6 na evolugao mas na histéria. . 0 discurso das descobertas institui uma modalidade para o ea existéncia da nossa histéria, dos nossos senti- to estabelecem uma historia. A histéi estabelecimento dos. Esse modo tem de especifico 0 apresentar-se justamente sob a forma do(discurso etnoldgico, Este nosso trabalho representa um esforgo de intervir no modo pelo qual institucionalizagao dessa forma de discurso cientifico toma o lugar do discurso histérico, produzindo o brasileiro como um sujeito-cultural ¢ negando-lhe o estatuto de sujeito-his- . trico. - A pritica ideolégica do discurso das descobertas é tal que a insticuigao se apropria desse discurso e, despossuindo dele o antro- pdlogo, folcloriza-o ao mesmo tempo em que elide — elidindoa materialidade histérica sob o pretexto da cientificidade — 0 fato ‘TERRA A VISTAL de que os acontecimentos histéricos nao 0 sio por si, mas porque reclamam um sentido, Nossa anilise incide basicamente sobre os relatos dos capuchi- nhos franceses, ¢a primeira coisa ase notar, em termos de historia, éainscrigao dos disciarsos dos capuchinhos no registro do discurso das descobertas. Mesmo as traducées para o portugués se fazem no registro desse discurso. Assim, ele nao. pertence ao discurso da histéria mas ao da etnologia: [..] tomei a resolugio de descrever os factos ou coisas mais notéveis que cuidadosamente observei em minha viagem [...] localizagao ¢ dis- posicao dos lugares [..] temperatura do ar, costumes e maneiras de viver dos habitantes ...] (A. Thever, 1557) 8 A historia se faz assim com un imaginarip que, n¢sse caso, 0 dos relatos, os inscreve no discurso das descobertas que, por sud vez, € 0 discutso que “dé'a conhecer o Nove Mundo”? ~ O princfpio talvez mais forte de constituicao do discurso co- lonial, que ¢ 0 produto mais eficaz do discurso das descobertas, ¢ reconhecer apenas 0 culturalje des-conhecer (apagar) o histérico, \.g politico. Os efeitos de sentido que até hoje nos submetem a0 “espitito” de colonia séo os que nos negam historicidade ¢ nos apontam como seres-culturais (singulares), a-historicos. De nossa parte, queremos pensar singularidade ea pluralidade nao no dominio da cultura, mas da histéria, Ea partir desse fato de linguagem (apagamento de sentidos pela sobreposigio de um discurso a outro) que resolvi embarcar, nio no caminho das Indias, mas no da desconstrugao de um certo olhar que nao nos dé outro direito senao o de termos particularidades, singularidades, peculiaridades culturais. Procuro saber alguma outra forma de nossa histéria. Des-cobrir sentidos. Nao nos embala, no entanto, a ilusio de “recuperar” a nossa historia “verdadeira’. Assim como sabemos que, como diz Pécheux (1984): 10 urs ne prétend pas sinstituer en ; écial : de disco i Pecalise [-] fa oa “Je” sens des textes, mais seulement Constry; ao ONStrine sexposantle regard/-lecteur ides niveaux Opaques Alaction desproctre sujet }.Lenjew crucial est de construire des interpré aed un: strattgig i? dundise os ; “p’importe quoi” d’un di. i aisles neutraliser ni dans le porte qi "scours sure sansjamals discours, ni dans Fincerprésation un espace logique stabilisé & prétention universelle, Por isso, distinguimos interpretagao . compreensio, Nig es “um” sentido para a nossa historia. A proposty é Pee een rocessos de significacao, ou seja, 0 que ficoy “compreendet” 05 P ducao de linguagem sobre o Brasil, atestado a0 longo da producao de lin a : Nio pretendemos tampouco definiro bras leiro.O gue ‘Visamos é observar como o discurso que defineo brasileiro Constitui processos de significagao, produzindo o imagindrio pelo qual se rege a nossa sociedade. Ou, dito de outra forma, procuramos compreender 0 processos discursivos que vao provendo o brasileiro de uma definicao que, por sua vez, € parte do funcionamento imagindrio da sociedade brasileira. Em suma, analisamos as falas que definem o brasileiro ¢ constituem 0 nosso imagindrio social. Nio se trata, pois, de falar da “identidade”, mas antes do ima- ‘initio que se constrdi para a significacao do brasileiro. Qual éa concepgao de brasileiro desses ssa c que EOS ¢ COMO essa conc Aideologia tem, Pois, tm que se pode ter aces enor — go que chamo Isto é, no imagindrio construido Por 20 TERRA A VISTA! essas Praticas de linguagem, as relagdes de colonizacio aparecem nao em seu lugar préprio, mas sim como reflexo indireto. Isso acontece sempre que um discurso se faz passar por outro discurso. Nesse caso, apaga-se 0 discurso histérico e produz-se um discurso sobre-a-cultura. Como efeito desse apagamento, a.cultura resulta ) a “ ismo”. Paralelamente, apagam-se as razes politicas, que se apresentam entio como um discurso moral, de apreciagao: © “letun ZF ners _ brasileiro éjulgado por suas “qualidades’Sele aparece como supet- (ficial e, légico, ‘alegre, Folgazao, indolénte e sensual. Também se diz. que ele é dotado de inteligénéiarque, infelizmente, desperdica sem objetividade (razao). Coneluir que esses ditos sao clichés é banal. Mais interessante é procurar compreender como se produzem esses sentidos que se dio por evidentes ¢ definidos.

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