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Quando eu era criança, muitas coisas aconteciam. E o medo de almas penadas era uma delas.

Não à toa, em 1998, eu morava ao lado de um cemitério, separado de minha casa apenas por
algumas árvores que, quando balançadas pelo vento, deixavam cruzes e jazigos a vista. Para
piorar, eu tinha um amigo que, dizia ele, falava com o além. Por isso, ele sempre ia naquele
lugar estranho para “bater papo”, por horas.

Também era comum passar em frente a nossa casa embarcações cheias de pessoas que iam se
despedir ou homenagear entes que partiram. Na teimosia de criança, a gente ia lá bisbilhotar o
evento, saber quem morreu, de que comunidade era, etc. O problema de tudo isso é que eu
tinha de passar todos os dias em frente àquele cemitério. Na ida e na volta da escola. Na ida
era dia, então eu nem lembrava que ali jaziam aqueles que se foram. Era um corajoso nato.
Mas a volta era por volta de 6:30 da noite, tudo escuro e em silêncio. De forma que era preciso
criar coragem e, ao mesmo tempo, ter estratégias para vencer o medo e estimular as pernas
bambas. Destas, a mais comum era acelerar com tudo. Passar voando por aquele lugar. A
outra era fechar os olhos e cantar alguma música “anti-mortos”, tipo “Mais perto quero
estar” ... ou “Noite feliz, noite de amor”, esta cantada pelo meu amigo que era amigo do outro
mundo. A outra era esperar o tempo passar até passar alguém pra acompanhar você em
segurança. Depois de salvo, começava a saga do outro dia, um medo renovado.

Foi um tipo de coisa que se tornou menor, mas que nunca sumiu totalmente da mente de um
ribeirinho, porque, no interior da Amazônia, a distância entre este e o outro universo não é
muito larga. Tudo ganha vida, geralmente quando o sol se vai. E a noite de uma criança do rio
se torna dia de passeio para aqueles seres que estão na outra margem do mundo.

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