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Capítulo 3

Contas nacionais e macroeconomia:


identidades e teoria

Até agora, vimos os princípios básicos que devem ser


obedecidos pelos sistemas de contas nacionais e vimos também sua
estrutura básica, de 4 ou 5 contas, que foi a que vigorou no plano
internacional até 1993 e no Brasil até 1996. Vimos também que essa
estrutura básica assenta-se na identidade Produto ≡ Dispêndio ≡
Renda, por isso chamada de identidade macroeconômica básica. O
objetivo do presente capítulo é discutir justamente qual a relação da
contabilidade nacional com a macroeconomia, o substantivo a partir
do qual se adjetiva essa identidade (já que essa identidade, básica,
é macroeconômica). Já antecipamos essa discussão no primeiro
capítulo do livro. Nosso objetivo agora é aprofundar essa questão,
seja apresentando brevemente a teoria keynesiana, a partir da qual
se tornou possível o desenho do sistema de contas nacionais, seja
estendendo a discussão até aqui feita das identidades
macroeconômicas.
3.1 Da contabilidade nacional à macroeconomia:
revisitando Keynes
Já comentamos, no início do Capítulo 1, a importância que teve,
para a definição do formato e do conteúdo do sistema de contas
nacionais, a Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de
John Maynard Keynes. Foi, como vimos, a partir da teoria
macroeconômica, que teve seu nascimento com a publicação da
Teoria Geral, em 1936, que foram envidados todos os esforços para
a construção de um sistema a partir do qual pudesse ser observada
a evolução dos agregados que são de fundamental importância na
avaliação da performance econômica de um país. Portanto, foi
partindo da macroeconomia que se chegou às contas nacionais.
Fazendo o caminho inverso, mostraremos de que maneira as
contas nacionais denunciam as relações sistêmicas (derivadas da
teoria keynesiana) que lhes deram origem, as quais, de uma
maneira ou de outra, ainda presidem senão os desenvolvimentos
teóricos contemporâneos na área de macroeconomia, seguramente
as análises quanto a crescimento, formação bruta de capital fixo,
relações externas e outras tantas variáveis determinantes na análise
evolutiva das economias reais.
Essas considerações são importantes não apenas por conta do
necessário registro histórico, mas também em função de uma
questão metodológica. No Capítulo 1, afirmamos que uma
identidade contábil não implica nenhuma relação de causa e efeito
entre as variáveis que a constituem. Poderia, portanto, parecer
contraditório pretender agora derivar relações de causalidade a partir
das identidades expressas nas contas nacionais.
Contudo, é preciso lembrar que o objetivo maior de Keynes, ao
escrever a Teoria Geral, foi contrapor-se à teoria econômica então
dominante (a teoria neoclássica,1 de orientação marginalista). Nesta
abordagem chegava-se, entre outras, à conclusão de que a
economia capitalista portava uma espécie de regulador automático
que impedia as crises e o desemprego. Todo o desemprego então
existente era tomado como desemprego voluntário, ou seja,
considerava-se que as pessoas que eventualmente não estavam
trabalhando encontravam-se em tal situação porque não se
dispunham a ofertar sua força de trabalho aos salários vigentes. Em
outras palavras, não trabalhavam porque não queriam.2
A enorme crise dos anos 1930 mostrara a clara inadequabilidade
de tal teoria para explicar a realidade. Keynes, portanto, tentou
demonstrar que não existia o tal regulador automático e que, por
conseguinte, a maior parte do desemprego era involuntário, vale
dizer, decorrente de uma demanda por força de trabalho diminuta e,
assim, incapaz de empregar toda a oferta existente. Para conseguir
demonstrar essa situação, Keynes teve de fazer uma verdadeira
revolução nas ideias econômicas e jogar por terra vários dos
postulados que constituíam a espinha dorsal da teoria então
dominante.
Embrenhado nesse caminho, porém, Keynes não apenas
questionou relações de causa e efeito tomadas como líquidas e
certas até então, mas apontou para relações distintas e muitas
vezes opostas àquelas, forjou novos conceitos (como o de incerteza,
o de preferência pela liquidez, o de custo de uso) e revelou
identidades. Assim, “fazendo o carro de Keynes andar de marcha à
ré”, mostraremos alguns dos resultados mais importantes de sua
teoria, seja no nível mesmo das identidades, seja no que diz respeito
às relações de causa e efeito a partir das quais elas foram
reveladas. Evidentemente, não pretendemos aqui, visto não ser este
o objetivo do livro, dar conta de todos os aspectos da teoria
keynesiana, mas simplesmente mostrar a ligação entre essas duas
áreas da ciência econômica – a contabilidade social e a
macroeconomia, reforçando a distinção entre as identidades
(típicas da contabilidade nacional) e as igualdades, que expressam
relações de causa e efeito de natureza teórica.

3.1.1 A determinação da renda


Tomemos a conta de produção (ou conta do produto)
considerando uma economia fechada e sem governo, tal como
apresentada no capítulo anterior:
Quadro 3.1 – Conta do produto – economia fechada e sem governo

Débito Crédito
a1 salários C consumo pessoal
a2 lucros D variação de estoques
a3 aluguéis E formação bruta de capital fixo
a4 juros
A renda ou produto líquido
[A = a1 + a2 + a3 + a4]
B depreciação
Renda ou Produto Bruto Despesa Bruta

Como se vê, temos, do lado do débito da conta, a renda ou


Produto Nacional Bruto e, do lado do crédito, a indicação da forma
concreta tomada por essa renda, ou seja, quanto foi consumo e
quanto foi investimento (variação de estoques mais formação bruta
de capital fixo). Assim, se chamarmos a renda de Y, o consumo de C
e o investimento de I, podemos escrever que:

Essa expressão nos indica que, em cada momento do tempo,


nessa economia que ainda é fechada e não tem governo, a renda
gerada é resultado da quantidade produzida de bens e serviços, ou
seja, da quantidade produzida de bens de consumo somada à
quantidade produzida de bens de investimento (estoques aí
incluídos). Não por acaso, o lado do débito da conta de produção vai
se transformar justamente no lado do crédito da conta de
apropriação, indicando que este agregado constitui o somatório das
remunerações pagas aos diversos fatores de produção, montante
esse apropriado pelas famílias (que são as proprietárias desses
fatores).
Suponhamos agora que o nível em que se encontra Y seja muito
baixo relativamente ao potencial dessa economia, de modo que
existam fatores de produção não utilizados (uma elevada taxa de
desemprego da força de trabalho e capacidade ociosa nas
empresas). Em outras palavras, estamos supondo que essa
economia poderia estar operando num nível bem mais elevado de
produto e renda, uma vez que dispõe de recursos (fatores de
produção) para isso, mas, por alguma razão, não está se
comportando assim. Para saber qual é a causa desse fenômeno,
temos de descobrir o que determina C e o que determina I.
Keynes demonstrou que o principal fator a determinar o nível de
C é justamente a renda, ou seja, Y. Segundo sua teoria, portanto, o
consumo das famílias varia com o nível de renda: quanto maior é a
renda, maior é o consumo e vice-versa. No entanto, dado um
aumento na renda, o aumento do consumo é menos do que
proporcional àquele, uma vez que existe aquilo que Keynes chamou
propensão a consumir, a qual deriva de algo que ele denominou
lei psicológica fundamental. Em outras palavras, Keynes
constatou algo mais ou menos evidente (e por isso ele chamou de
“lei”): dado um determinado nível de renda, as famílias consomem
boa parte dela, mas também poupam uma parte. Obviamente, a
propensão a consumir é muito maior nas famílias de baixa renda (no
limite, as famílias de renda extremamente baixa não poupam nada
de sua renda, consumindoa integralmente) e muito maior nas
famílias de renda mais elevada. Na média da economia, portanto,
existe uma propensão ao consumo, que podemos chamar de c,
onde 0 < c < 1. Formalmente, portanto, podemos escrever que:

Existe também uma parcela do consumo que não varia com o


nível de renda (por exemplo, um consumo das famílias que seja
possível em função de uma poupança monetária previamente
existente) e que podemos chamar de consumo autônomo, indicado
por Ca. Portanto,

Assim, podemos reescrever a Expressão 3.1 da seguinte forma:


Quanto ao investimento, Keynes constatou que ele depende de
variáveis extremamente sujeitas a flutuações, devido às sempre
presentes incertezas em relação ao futuro. Essas variáveis são a
preferência pela liquidez (ou preferência pela segurança que o
dinheiro traz e que, segundo o economista inglês, está na base da
determinação da taxa de juros da economia) e as expectativas
quanto ao rendimento futuro esperado dos bens de capital – que
determinam aquilo que Keynes chama de eficiência marginal do
capital (EmgK). Assim, se chamarmos a taxa de juros de r,
podemos escrever que

Assim, o investimento é, para Keynes, uma variável


extremamente instável e que pode explicar por que, em
determinados momentos, a economia opera num nível de produção
que não é suficiente para empregar todos os fatores de produção
disponíveis. Como a teoria keynesiana dos determinantes do
investimento é extremamente complexa, explicá-la em detalhes
demandaria talvez vários capítulos, o que, com certeza, foge ao
escopo deste livro. O assunto voltará a ser enfocado com um pouco
mais de detalhes no Capítulo 9, mas, para nossos propósitos aqui,
basta enfatizar que a determinação do nível de renda e produto é,
para Keynes, intimamente dependente do comportamento do
investimento e que este é bastante sujeito a flutuações. Assim, com
o que temos, já podemos mostrar algumas importantes conclusões
quanto à determinação do nível de produto e renda em que opera a
economia.
Se retomarmos a expressão 3.4, perceberemos facilmente que
podemos reordenar seus termos do seguinte modo:
Y (1 − c) = Ca + I e, logo,

Keynes chamou o termo 1/(1 – c), de multiplicador. Ele indica a


magnitude do aumento no nível de renda em decorrência seja de um
aumento em Ca, seja de um aumento em I. Ele indica também que,
quanto maior for a propensão da economia a consumir, maior é o
efeito multiplicador de uma elevação em Ca ou I. Por exemplo, se c
for igual a 0,9 (ou seja, na média, as famílias consomem 90% de sua
renda), o multiplicador será 10, de modo que se houver um aumento
de $ 100 no investimento, o aumento na renda será de $ 1.000. Se,
numa outra hipótese, tivermos c igual a 0,5, o multiplicador será 2,
de modo que o mesmo aumento de $ 100 no investimento provocará
uma elevação na renda de apenas $ 200.
Supondo, como parece razoável, que Ca é uma variável bastante
estável, a atuação positiva do efeito multiplicador sobre o nível de
renda fica na inteira dependência do comportamento de I. Como
esta variável está sujeita, pelas razões já expostas, a intensas
flutuações, os momentos em que I decresce provocam um efeito
sobre o nível de renda e produto que é magnificado pelo efeito
multiplicador (que evidentemente também opera no sentido inverso).
Nesses momentos, mesmo dispondo de fatores de produção para
operar num nível mais elevado, a economia permanece operando
num nível insuficiente para empregar toda a força de trabalho e toda
a capacidade instalada.
É importante perceber, em todo esse raciocínio, a manutenção
da identidade entre produto e renda, ao mesmo tempo em que ele
também nos permite identificar os determinantes do nível de renda
no qual opera a economia. É por conta deste último elemento que, a
partir da equação apresentada na expressão 3.2, pudemos substituir
o sinal indicador de identidade (≡) pelo sinal de igualdade (=).

3.1.2 A teoria keynesiana e a contabilidade


nacional
Se tomarmos agora a conta do produto em sua versão final e,
portanto, considerarmos uma economia aberta e com governo,
chegaremos a outras conclusões importantes sobre essa questão.
Quadro 3.2 – Conta de produção

Débito Crédito
I importações de bens e serviços não fatores G exportações de
J-H renda líquida enviada [+] ou recebida [−] bens e serviços não
do exterior fatores
a1 salários C consumo pessoal
a2 lucros L consumo do
a3 aluguéis governo
D variação de
a4 juros
estoques
A renda ou produto nacional líquido E formação bruta
[A = a1 + a2 + a3 + a4] de capital fixo
B depreciação
Q-N impostos indiretos líquidos de subsídios
Oferta de Bens e Serviços Demanda por
Bens e Serviços

Como se percebe, a conta traz agora, do lado do débito, a oferta


total de bens e serviços e, do lado do crédito, a demanda. Se
passarmos a rubrica importações para o lado do crédito com o sinal
negativo, encontraremos a expressão 3.7:

onde
C = consumo (rubrica consumo pessoal),
G = gastos do governo (rubrica consumo do governo),
X = exportações de bens e serviços não fatores,
M = importações de bens e serviços não fatores,
enquanto Y e I conservam seus significados anteriores.

Transpondo para essa expressão ampliada as mesmas


considerações anteriormente feitas para uma economia fechada e
sem governo, podemos perceber que o nível de produto e renda em
que opera a economia não depende apenas do consumo e do
investimento, mas também dos gastos do governo e das
exportações líquidas das importações. Valem, para essas novas
variáveis, as mesmas relações anteriormente estabelecidas para Ca
e I.
Assim, um efeito multiplicador (devidamente modificado pela
introdução do governo, particularmente por sua capacidade de
tributar)3 também vai atuar sobre os possíveis aumentos, seja nos
gastos do governo, seja nas exportações líquidas das importações.
Em outras palavras, um aumento nos gastos do governo eleva o
nível de renda e um aumento nas exportações produz efeito
idêntico, enquanto um aumento nas importações produz efeito
contrário, todos esses efeitos devidamente ampliados, para cima ou
para baixo, conforme o caso, pela magnitude do multiplicador.
Uma forma bastante sugestiva de compreender esse processo é
pensar num mecanismo de estímulos e desestímulos que estão
permanentemente influenciando o nível de renda e de produto. Se
há um aumento na parcela autônoma do consumo, ou no
investimento, ou nos gastos do governo, ou ainda na demanda
externa pelos bens e serviços que a economia em questão produz,
qualquer um desses aumentos vai estimular a produção e elevar o
nível de renda na magnitude determinada pelo multiplicador. No
caso das exportações, trata-se, na verdade, de um estímulo externo,
ou, em outras palavras, de uma injeção de demanda na economia,
que provém de um aumento na demanda externa pelos bens e
serviços internamente produzidos. Simetricamente, um aumento nas
importações representa um vazamento de estímulo, ou seja, uma
transferência, para fora da economia, de uma parcela de sua
demanda por bens e serviços.4
A expressão 3.7 mostra-nos, ainda, a importância que acabou
sendo atribuída ao governo por conta das considerações de Keynes
quanto aos determinantes do nível de renda. Se um aumento no
nível de renda e produto em que opera a economia pode ser
proveniente de uma elevação nos gastos do governo, então cabe a
este um importante papel, além daqueles normalmente a ele
consagrados. Em determinados momentos em que o investimento
insista em manter-se deprimido e em que os estímulos advindos de
fora da economia não sejam suficientes para evitar o desemprego,
só o governo tem condição de retirar a economia de tal situação.
Aumentando seus gastos, ele promoverá, consequentemente, uma
elevação no nível de renda e produto, que poderá, inclusive, reverter
as expectativas pessimistas quanto ao futuro e, assim, recuperar, em
curto espaço de tempo, o próprio nível de investimento. É em função
de tal capacidade que, a partir de Keynes, o governo passa a ter
também a responsabilidade por aquilo que se costuma denominar
controle da demanda efetiva. Em outras palavras, ele tem de
acompanhar a evolução da economia e intervir sempre que
necessário para impedir que ela fique deprimida por longos períodos
de tempo.
Tais considerações, bem como o novo papel que ganha o
governo a partir delas, deram origem, no mundo acadêmico, ao que
se chamou consenso keynesiano, e, no funcionamento prático do
capitalismo, particularmente nas economias centrais, a um período
de cerca de 30 anos (do pós-guerra até meados da década de
1970), em que o Estado efetivamente assumiu esse papel.
A partir de então, muita coisa mudou. No mundo acadêmico, o
consenso foi rompido pelo advento da teoria das expectativas
racionais, que deu nova vida aos pressupostos que Keynes atacara
e recuperou a primazia da teoria ortodoxa (neoclássica). No mundo
real, a combinação de inflação com desemprego levou a uma onda
de contestação quanto à pertinência do papel do Estado como
regulador do nível de demanda e pôs em destaque as políticas
associadas àquilo que se costuma chamar neoliberalismo (controle
dos gastos públicos, Estado mínimo, privatizações,
desregulamentação e abertura econômica, entre outros). O sistema
de contas nacionais, porém, pouco ou nada foi abalado por toda
essa reviravolta, o que comprova aquilo que, desde o início,
tentamos demonstrar, ou seja, que as identidades macroeconômicas
não são, por si só, indicadoras de relações de causalidade entre as
variáveis que as constituem.
Na relação entre macroeconomia e contabilidade nacional, o que
de fato ocorreu foi que, partindo de sua preocupação em construir
uma teoria da demanda como um todo que, segundo Keynes, faltava
à teoria econômica de então,5 o trabalho teórico desse grande
economista britânico permitiu descobrir a existência ex-post da
identidade entre produto, renda e dispêndio (demanda agregada).
Hoje, essa identidade não é questionada por ninguém,
independentemente de se aceitar ou não as relações de causa e
efeito que as proposições teóricas keynesianas defendem para a
dinâmica ex-ante do sistema econômico. Por isso, uma das óticas de
mensuração do produto é justamente a ótica da demanda
(dispêndio), a qual mostra a composição do PIB a partir das
categorias de demanda tal como estipulado na equação Y = C + I +
G + (X − M). Esta última, portanto, além de ser uma proposição
teórica derivada da teoria keynesiana, acabou por constituirse
também numa identidade macroeconômica. O formato da conta do
produto tal como apresentado pelo sistema que vigorou no Brasil até
1996, e que vai reproduzida abaixo, mostra claramente essa relação.

Quadro 3.3 – Conta Produto Interno Bruto (PIB)

Débito Crédito

Produto Interno Bruto a custo Consumo final das famílias


de fatores Remuneração dos Consumo final das
empregados Excedente administrações públicas
Operacional Bruto
Formação bruta de capital fixo
Tributos indiretos
Variação de estoques
(menos) Subsídios
Exportações de bens e serviços
não fatores
(menos) Importações de bens e
serviços não fatores
Produto Interno Bruto a Dispêndio Correspondente ao
preços de mercado (PIBpm) Produto Interno Bruto
3.2 As identidades contábeis presentes no
sistema de contas nacionais
Além da identidade contábil básica entre produto, dispêndio e
renda, existe outra de grande importância, à qual também já nos
referimos anteriormente, que é a identidade entre poupança e
investimento. Foi discutindo essa identidade que, no Capítulo 1,
começamos a introduzir a questão que é objeto deste capítulo, qual
seja, a relação entre contabilidade nacional e macroeconomia e, daí,
a distinção entre igualdades (=), em geral derivadas de proposições
teóricas que estabelecem relações de causa e efeito, e identidades
(≡), que expressam as diferentes óticas por meio das quais se pode
enxergar e mensurar os agregados econômicos. Dissemos ali que
não é raro que se enxergue, numa identidade, mais do que ela de
fato expressa e que quando se diz, por exemplo, que poupança =
investimento, existe uma tentação muito grande de se ler tal
expressão como se ela estivesse dizendo a poupança precede o
investimento, ou sem poupança não há investimento ou a poupança
explica o investimento. Observamos, então, que tais afirmações
envolvem relações de causa e efeito que não podem ser
legitimamente extraídas da expressão poupança = investimento, a
qual significa tão somente a existência de uma identidade contábil
entre os dois elementos.6
Tendo isso em mente, cabe-nos, nesta última seção do presente
capítulo, apresentar o conjunto das demais identidades contábeis
que derivam dessas duas identidades básicas (produto ≡ dispêndio
≡ renda e investimento ≡ poupança) e que estão presentes no
sistema de contas nacionais. Ao fazê-lo, adiantaremos a explicação
de alguns conceitos relativos a agregados econômicos que nos
serão úteis no próximo capítulo, quando faremos a apresentação do
sistema atualmente vigente no Brasil, construído a partir das
determinações do SNA 93.
Comecemos lembrando a distinção existente entre os agregados
medidos internamente e aqueles medidos nacionalmente. Como já
vimos, os agregados mensurados do ponto de vista interno medem
o valor total produzido no território do país, independentemente da
origem dos fatores responsáveis por essa produção, enquanto os
agregados mensurados do ponto de vista nacional consideram o
valor adicionado gerado por fatores de produção de propriedade de
residentes, independentemente do território onde esse valor é
gerado. Vimos também que o sistema de contas construído a partir
das determinações do SNA 93, e seguido pelo Brasil desde 1996,
não utiliza mais a terminologia PNB ou PNL, pois parte do princípio
de que “nacional” é uma qualificação que se aplica apenas à renda
gerada, já que tem que ver com a nacionalidade dos proprietários de
fatores de produção.

Assim, falamos em Produto Interno (bruto ou líquido, a


preços de mercado ou a custo de fatores), mas em Renda
Nacional (bruta ou líquida, a preços de mercado ou a custo
de fatores). O primeiro agregado reflete o produto total
produzido no território do país, independentemente da origem
dos fatores de produção responsáveis por ele. O segundo
considera o valor adicionado gerado por fatores de produção
de propriedade de residentes, independentemente do
território onde esse valor é gerado.

Temos, com isso, a seguinte expressão contábil que deriva da


identidade teórica inicial Renda ≡ Produto ≡ Dispêndio:

1) RNB = PIB − RLEE, onde


RLEE = renda líquida enviada ao exterior

A identidade 1 mostra que a Renda Nacional Bruta (RNB) pode


ser entendida como o valor do PIB deduzido das rendas líquidas
enviadas ao exterior, caso em que o PIB será maior que a RNB, ou
como o valor do PIB somado ao das rendas líquidas recebidas do
exterior, caso em que o PIB será menor do que a RNB.
É a partir do conceito de RNB que se chega, nas contas
nacionais, ao conceito de Renda Nacional Disponível Bruta (ou
RDB) que, como vimos no capítulo anterior, é o nome que toma a
antiga Conta de Apropriação na versão do sistema brasileiro vigente
até 1996, composto por 4 contas. Como veremos adiante, o conceito
RDB é importante porque é a partir dele que se pode determinar a
poupança bruta da economia, ou poupança doméstica (SD),7 como
também é conhecida. Esse agregado indica o valor da poupança
bruta (considerando-se aí, portanto, também a formação de capital
fixo necessária para repor o desgaste do estoque de capital) feita
pela economia como um todo, ou seja, incluindo-se o governo, num
determinado período de tempo.
Como se chega, então, do conceito RNB ao conceito RDB? Para
entender essa passagem, temos que lembrar que a renda
efetivamente disponível para os residentes de um país (incluindo o
governo) decidirem entre consumir ou poupar tem de incluir também
as transferências recebidas do exterior, bem como descontar as
transferências enviadas. Transferências, como já vimos, são
transações unilaterais, ou seja, que têm apenas uma mão, não
representando, portanto, transações econômicas usuais de compra
e venda de bens e serviços ou de pagamento a fatores de produção.
Assim, as transferências enviadas ao exterior e recebidas do exterior
incluem, por exemplo, ajuda humanitária, remessas de imigrantes
etc. Isso posto, podemos escrever a seguinte identidade:

2) RDB = RNB + TUR, onde


RDB = Renda Nacional Disponível Bruta
TUR = Transferências Unilaterais Líquidas Recebidas

A partir das expressões anteriores podemos escrever que:

PIB = RNB + RLEE (identidade 1 reescrita) e


RNB = RDB – TUR (identidade 2 reescrita), e então
3) PIB = RDB + RLEE – TUR

A identidade 3 indica que o PIB de um país pode ser visto como


a soma da Renda Nacional Disponível Bruta mais a renda líquida
enviada ao exterior, deduzidas dessa soma as Transferências
Unilaterais Correntes Líquidas Recebidas (TUR). Está claro que
se a renda recebida do exterior for maior que a renda enviada, esse
líquido será negativo, indicando que o agregado Renda Nacional
alcançou um valor maior que o agregado Produto Interno, o que
tende a acontecer, como já adiantamos, com os países mais
desenvolvidos e que são exportadores de capital. Analogamente, se
as transferências unilaterais enviadas alcançarem um valor maior do
que as transferências unilaterais recebidas, o sinal da variável TUR
deverá ser positivo e não negativo.
As identidades até aqui apresentadas estão se referindo
obviamente a uma economia aberta. O governo, contudo, apesar de
estar aí implícito, ainda não apareceu explicitamente. Para que ele
apareça, é preciso lembrar que a RDB, pode ser dividida em renda
do setor privado e renda do governo ou renda líquida do governo
(RLG), a qual é composta pela soma dos impostos diretos e
indiretos e das outras receitas correntes do governo, deduzidas as
transferências (recursos pagos diretamente às famílias sob a forma
de assistência e previdência, bem como os juros da dívida pública) e
os subsídios concedidos às empresas. Sendo assim, podemos
escrever:

RLG = receita total do governo – (transferências + subsídios) e,


portanto,
4) RDB = RPD + RLG ou RPD = RDB - RLG, onde
RPD = Renda Privada Disponível

Tendo escrito as identidades Produto ≡ Renda de modo a tornar


aparentes os ajustes requeridos pelo fato de as economias reais
serem economias abertas e com governo, cabe-nos agora, para
completar o quadro das identidades macroeconômicas presentes no
sistema de contas nacionais, considerar a natureza da demanda que
gerou esse produto, bem como a alocação da renda gerada por tal
produção.
Para tanto, retomemos por pouco tempo a ideia de uma
economia fechada e sem governo. Considerando tal economia,
pensemos em identidades capazes de expressar a demanda pelo
produto e a alocação da renda. Teríamos então que, por um lado, o
produto (Y) é igual à demanda por consumo (C) e à demanda por
investimento (I), enquanto, por outro, a renda (Y) é igual a consumo
(C) mais poupança (S). Formalmente temos que:
Y = C + I e também Y = C + S
e derivamos daí que:
5) I = S (ou I ≡ S)

Ora, com a introdução do governo, as duas expressões que


geraram a identidade I ≡ S ficam modificadas, pois, do ponto de vista
da demanda que dá origem ao produto, temos que acrescentar os
gastos do governo (G), enquanto, do ponto de vista da renda que é
alocada, temos de introduzir a RLG, uma vez que, além de consumir
e poupar, os agentes também pagam impostos, taxas e outros
tributos. As mudanças nas expressões que geram a identidade entre
investimento e poupança alteram também esta última identidade da
seguinte maneira:

Y = C + I + G e também Y = C + S + RLG
e derivamos daí que:
6) I + G = S + RLG ou
6A) I = S + RLG – G

A identidade 6 foi escrita também no formato 6A


propositadamente. Isso porque a expressão “RLG – G” significa
exatamente a poupança do governo (Sg), enquanto o termo S
significa agora apenas a poupança privada. A identidade 6, portanto,
reproduz a identidade básica entre investimento e poupança
modificada pela presença do governo. Portanto, ainda sobre a
identidade 6, podemos escrever:

Sg = RLG – G, donde
6B) I = S + Sg

E se chamarmos a soma da poupança privada com a poupança


do governo de poupança doméstica (SD), cujo significado já
apresentamos anteriormente, teremos ainda (tudo em termos
brutos):

S + Sg = SD e, portanto,
6C) I = SD

Isso posto, temos por fim de reintroduzir o setor externo na


identidade 6C. Para tanto, é preciso trazer ao quadro as informações
referentes à alocação da renda e lembrar que a Renda Disponível
Bruta que aparece na identidade 3 também pode ser escrita, do
ponto de vista de sua alocação, como o somatório dos recursos
destinados ao consumo, com aqueles destinados à poupança e com
aqueles destinados ao pagamento de tributos. Sendo assim, temos:

3) PIB = RDB + RLEE – TUR, e também


RDB = C + S + RLG, donde
PIB = C + S + RLG + RLEE – TUR
Como também
PIB = C + I + G + (X – M), temos
7) I + G + (X – M) = S + RLG + RLEE – TUR, ou ainda
7A) I – S + (G – RLG) = (M – X) + RLEE – TUR
E lembrando que
RLG – G = Sg, e que
(M – X) + RLEE – TUR = Poupança externa (SE), temos
finalmente
7B) I – S – Sg = SE, ou
7C) I ≡ S + Sg + SE

A identidade 7, em seu formato 7C, reescreve, para uma


economia aberta e com governo, a identidade básica entre
investimento e poupança. Ela nos diz que a poupança necessária
para suportar o investimento bruto feito pela economia como um
todo (governo incluído) vem de três fontes possíveis: do setor
privado (S), do governo (Sg) e do setor externo (SE).
Evidentemente, qualquer uma delas pode ser negativa. Se, por
exemplo, a poupança do governo for negativa, isso significa que, no
período em questão, foi a poupança privada e eventualmente
também a poupança externa que possibilitaram a realização do
referido investimento. Analogamente, uma poupança externa
negativa significa que essa economia, no período estudado, ao invés
de necessitar de financiamento externo, foi capaz de financiar o
resto do mundo. Nos próximos capítulos, entenderemos melhor por
que a poupança externa (SE) é igual à soma dos termos (M – X) e
RLEE, deduzido o termo TUR.

Resumo
Os principais pontos vistos neste capítulo foram:

1. A contabilidade nacional surgiu a partir do advento da teoria


keynesiana. O economista inglês John Maynard Keynes, em
meados dos anos 1930, escreveu a Teoria Geral do Emprego,
do Juro e da Moeda para atacar a teoria então vigente e mostrar
que a economia não dispunha de mecanismos automáticos para
sair de situações de recessão e desemprego.
2. Ao questionar o automatismo implícito na concepção ortodoxa
(hoje conhecida como escola neoclássica), Keynes jogou por
terra vários dos pressupostos teóricos então vigentes, forjou
novos conceitos e revelou identidades. Essas identidades
constituíram o fundamento a partir do qual pôde ser desenhado o
sistema de contas nacionais.
3. É preciso distinguir entre identidades, que não pressupõem
nenhuma relação de causa e efeito entre os termos que as
constituem, e proposições teóricas, que pressupõem tais
relações.
4. A identidade entre renda e dispêndio demonstrada pela conta de
produção permite perceber que o nível de renda e, portanto, de
emprego em que opera a economia depende do nível da
demanda agregada.
5. A demanda agregada é composta por quatro elementos: o
Consumo privado, o Investimento, os gastos do Governo e as
eXportações líquidas das iMportações.
6. A Conta Produto Interno Bruto do Sistema de Contas, tal como
vigorou no Brasil até 1996, permite perceber claramente a
identidade Produto ≡ Dispêndio, bem como esses componentes
da demanda agregada.
7. A relação entre o consumo agregado e a renda produz o
multiplicador keynesiano, que magnifica os impactos da
demanda agregada sobre os níveis de renda e emprego.
8. Em função da permanente incerteza quanto ao futuro, o
investimento é uma variável extremamente instável.
9. A atuação positiva do efeito multiplicador depende do
comportamento do investimento, que é muito instável, e da
demanda externa líquida, variável cujo controle não está na
inteira dependência do país. Daí que cabe ao governo, por meio
de seus gastos, atuar como regulador do nível de demanda
efetiva e impedir a permanência de situações recessivas.
10. O “consenso keynesiano” foi rompido, em meados da década de
1970, pelo advento da teoria das expectativas racionais, que deu
nova vida aos pressupostos que Keynes atacara e recuperou a
primazia da teoria ortodoxa.
A inflação combinada ao desemprego que marcou o final dos
anos 1970 levou a uma onda de questionamentos quanto à
pertinência da atuação do Estado como regulador do nível de
demanda efetiva e, assim, pôs na dianteira as políticas
associadas àquilo que se convencionou chamar neoliberalismo
(desregulamentação, controle dos gastos públicos, Estado
mínimo, privatizações).
11. Além da identidade Produto ≡ Dispêndio ≡ Renda, existe outra,
que é também fundamental: a identidade Investimento ≡
Poupança. É a partir dela e da recuperação dos conceitos de
interno e nacional que se constituem as demais identidades
componentes do Sistema de Contas Nacionais.
12. Os agregados mensurados do ponto de vista interno medem o
valor total produzido no território do país, independentemente da
origem dos fatores responsáveis por essa produção, enquanto os
agregados mensurados do ponto de vista nacional consideram o
valor adicionado gerado por fatores de produção de propriedade
de residentes, independentemente do território onde esse valor é
gerado.
13. Apesar de ambos os conceitos poderem teoricamente ser
utilizados em qualquer agregado (produto, renda ou dispêndio),
por determinação do SNA 93 não se utiliza mais a terminologia
PNB ou PNL, pois parte-se do princípio de que “nacional” é uma
qualificação que se aplica apenas à renda gerada, já que tem
que ver com a nacionalidade dos proprietários de fatores de
produção. Assim, fala-se em Produto Interno (bruto ou líquido, a
preço de mercado ou a custo de fatores), mas em Renda
Nacional (bruta ou líquida, a preços de mercado ou a custo de
fatores).
14. Nesses termos, temos que:
(1) RNB = PIB – RLEE
(2) RDB = RNB + TUR
(3) PIB = RDB + RLEE – TUR
(4) RDB = RPD + RLG
(5) I = S
(6) I (incluindo investimento público) = SD, onde SD = S + Sg
(7) I (incluindo investimento público) = SD + SE, onde SE = (M –
X) + RLEE – TUR

Questões para revisão


1. Explique a diferença entre identidades e relações de causa e
efeito.
2. Por que foi a partir do advento da teoria keynesiana que se tornou
possível a constituição de um sistema de contas nacionais?
3. Por que o nível de renda é determinado pelo nível da demanda
agregada da economia?
4. Por que um aumento nas exportações pode elevar o nível de
renda e emprego?
5. Que nova atribuição foi conferida ao governo depois do advento
da teoria keynesiana?
6. Segundo Keynes, a quantidade de bens de consumo que
compensa aos empresários produzir depende da quantidade de
bens de investimento que eles estejam dispostos a produzir.
Lembrando-se do multiplicador, você conseguiria explicar por que
ele diz isso?
7. Por que o atributo nacional é utilizado para os agregados que se
referem à renda, mas não é utilizado para os agregados que se
referem a produto?
8. Qual é a diferença existente entre o PIB e a RNB? Explique.
9. O que é Renda Nacional Disponível Bruta? Como se chega a ela?
10. Como se divide a RDB considerando a existência do governo?
11. Como fica a identidade entre Poupança e Investimento numa
economia aberta e com governo?

Referências
FEIJÓ, Carmem A.; RAMOS, Roberto L. O. Contabilidade social. 3ª
ed. Rio de janeiro: Elsevier, 2008.
SIMONSEN, Mario H.; Rubens Penha Cysne. Macroeconomia, 2ª
ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996.

Na internet
Banco Central do Brasil (uma das fontes mais completas de
informações sobre a economia brasileira): http://www.bcb.gov.br
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (o mais
completo site de informações estatísticas sobre o Brasil):
http://www.ibge.gov.br
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA:
http://www.ipea.gov.br; http://www.ipeadata.gov.br

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