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Capitulo 11 Transtorno de déficit de atencao/ hiperatividade DEBORA C. FAVA ANNA CAROLINA CASSIANO BARBOSA JOAO RODRIGO MACIEL PORTES ANA CLAUDIA ORNELAS 0 transtorno de déficit de atengao/hiperati- vidade (TDAH) € classificado como um transtorno do neurodesenvolvimento, ca- racterizado por sintomas que se manifes- tam no inicio da infancia e influenciam 0 funcionamento pessoal e social do indivi- duo. Em alguns casos, esto presentes tan- toa desatencdo quanto a hiperatividade/im- pulsividade, e em outros predomina apenas a desatengdo ou a hiperatividade (American Psychiatric Association [APA], 2014). ‘Antes e depois do diagnéstico, o compor- tamento de um individuo com TDAH pode impactar negativamente na sua atencao eno seu comportamento. Dessa forma, esse im- pacto pode interferir nas atividades diarias e sociais, como na escola, no trabalho, em ‘casa e com os amigos, influenciando, assim, ‘as crengas do individuo ao longo da vida, podendo ocorrer o surgimento de outras co- morbidades, como a depressao e a ansieda- de. Muitas pessoas com esse diagnéstico so- frem bullying, por serem lentas ou aceleradas demais, ou levam o estigma da 7 cia constante. Ao longo dos anos, esses es- tigmas podem interferir na autoestima ou na habilidade da pessoa de concluir as ati- vidades ou os estudos, ou até mesmo de de- sempenha-los de maneira funcional e espe tada (Barbaresi et al., 2013). 0 TDAH ¢ um dos transtornos mais co- muns de base cerebral e afeta cerca de uma em cada 10 criangas em idade escolar. Esti- ma-se que, em mais da metade dos indivi- duos que tem TDAH quando crianga, os sin- tomas continuam até a idade adulta. Pes- quisas até 0 momento mostraram que 0 ‘TDAH é uma condicao cerebral cujos sinto- mas também dependem de uma série de fa- tores, dentre eles a genética familiar (Kessler Solrtens Post, NeLcodi mi aes a dln - ONL 118 et al., 2006; Kessler et al., 2005). Os mesmos estudos apontam que, em 41 a 55% das fa- milias com uma crianga diagnosticada com TDAH, pelo menos um dos pais também & afetado. Da mesma forma, se um dos pais tem TDAH, a crianga tem até 57% de chan- ce de também ter o transtorno. A prevalén- cia global de TDAH na idade adulta atual é de 4,4%. A prevaléncia foi maior para 0 sexo masculino (5,4%) em comparacao ao femini- no (3,29). A prevaléncia estimada de TDAH em adultos de 18 a 44 anos foi de 8,1%. Uma das caracteristicas que mais dife- renciam 0 quadro diagnéstico de TDAH en- trecriangas e adultos é 0 declinio de compor- tamentos relacionados a hiperatividade com © aumento da idade. Apesar disso, muitos individuos nessa etapa do desenvolvimen- to demonstram incapacidade de relaxar e sensagdo de que devem continuar em movi- mento. Os sintomas de défici impulsividade tendem a perme i estaveis na adultez. Essas caracteristicas ‘so identificadas pelas dificuldades para as atividades que envolvem a organizacao ea execugao das atividades laborais, distracéo. frequente em afazeres diarios, incapacidade de manter a concentracao em tarefas que exigem atengdo de m portamentos impulsivos nulsivos observados por to- madas de decisao sem medir as consequén- dias, inclusive com maior probabilidade de envolvi jentos sexuais de risco, infraces de transito e uso abusi- vo de substancias psicoativas (Costa et al., 2014; Rohde et al., 2019). Adultos com TDAH tém apresentado pre- juizos graves nos dominios social, ocupé Moreno / Melo (eqs) | cional e interpessoal, grande parte das ve- zes decorrentes das experiéncias aversivas vivenciadas ao longo da infancia e da ado- lescéncia, prolongando-se ao longo da vida adulta com consequéncias também sobre a satide mental e importante sofrimento psi- col6gico, com niveis importantes de ansie- dade e depressao (Costa et al., 2014; Rohde etal., 2019; Silva et al., 2006). ‘Aavaliacao das comorbidades é necessé- ria para um diagnéstico diferencial e prin- cipalmente para distinguir quando 0s casos de TDAH sao a causa primaria. Nesses ca- sos, os sintomas de TDAH sao considerados como crénicos devido ao inicio na infancia ea continuidade na adultez com prejuizos significativos no funcionamento do indivi- duo (Asherson et al., 2016). A indicagdo de tratamento nao medica- mentoso para os casos de TDAH é a terapia cognitivo-comportamental (TCC), segundo a Divisao 12 da American Psychological As- sociation (APA), que indica os tratamentos baseados em evidéncias cientificas. Essa indicagao é reforcada por estudos de meta- nalise conduzidos nos tltimos anos, como 0 de Young et al. (2016) e o de Knouse et al.. (2017), que apontam a eficacia do uso da TCC para a melhora de sintomas do TDAH em adultos com efeitos de moderados a grandes quando comparados em pré e pos- -intervencao. Este capitulo tem como objetivo apresen- tarum caso clinico de um adulto com TDAH e as possibilidades de avaliagdes diagnds- ticas e intervengdes mais atuais na visio TCC, apresentando brevemente as possibi- lidades de intervengao. A CASO CLINICO = Motivo da busca do atendimento Marcelo esta com 35 anos e busca atendimento porque recebe muitas criticas de sua es- posa, Martha. Ele se sente confuso, pois, de certa forma, entende as criticas da esposa, mas nao consegue interagir de forma a nao criar uma grande briga em torno da reclama- ¢ao dela. Na tentativa de melhorar seu bem-estar na relacao, ele busca psicoterapia es~ pontaneamente. Desde que se casaram, Martha reclama de algumas de suas caracteristi- as, como deixar as coisas espalhadas pela casa, iniciar tarefas e nao as finalizar, no lem- brar do que ela fala poucas horas depois de terem conversado, etc. Mais recentemente, | sua esposa tem-Ihe referido profundo desagrado e sentimento de rejeicio quando ele a interrompe nas conversas a dois. Com frequéncia Martha pergunta se ele est prestando atenco, e, quando pede para ele repetir 0 que ela falava, ele assume estar coma cabeca em outro lugar. Além disso, Marcelo refere que ndo sabe por que faz isso, mas as vezes se sente inquieto e acaba levantando da mesa se esto conversando e se envolve em ou- tra atividade, como olhar seu celular ou mexer em alguma coisa da casa. Diz que nao faz por mal e é repreendido por ela, mesmo que ele explique que sé precisou se mexer, mas estaria a ouvindo. Esse padrdo inquieto se repete em reunides familiares ou com amigos intimos do casal, ou em situacdes que exijam do seu tempo, como esperar em fila de su- permercado ou em filas para pagar contas em restaurantes. No inicio do casamento, am- bos estavam mais tolerantes e animados com a unio, portanto, 0 foco nao estava nessas caracteristicas. Ainfancia Marcelo foi uma crianca muito ativa; costumava brincar bastante na rua em frente a sua casa com os amigos. Era o lider da turma, e todos queriam ser corajosos como ele. Es- calava muros e arvores, seus pais constantemente chamavam sua atencao, e costumava voltar sempre com machucados no final da tarde. Quando os pais Ihe dirigiam a palavra, Marcelo parecia jd saber 0 que eles falariam e os interrompia com frequéncia. As vezes, parecia nio ter paciéncia para ouvir, e outras vezes parecia nao ouvir quando Ihe dirigiam a atenco. Na escola, 0s professores 0 enviavam para a coordenacao, pois ele, apesar de obediente, era inquieto e perturbava os colegas com barulhos e conversas paralelas. Mar- celo passou por média em todas as disciplinas da escola e nunca repetiu de ano. Os pais referem que ele era muito inteligente e por isso ndo precisava estudar para as provas. préprio Marcelo admite que no estudava e que de ultima hora lia os resumos de seus colegas e fazia as provas com facilidade. ne Ce TS A adolescéncia lo estavam muito focados em estudar para 0 vestibular, enquanto ele nao havianem pensado no que queria cursar. nos 17 aa ie seu primeira vestibular, optou por Administrago de Empresas, PO's seguiu o conselho de seu pai, que era administrador e acreditava ser uma faculdade que abria portas para diversas atuagées profissionais. Marcelo, que ndo sabia o que queria, mas no ultimo ano havia trocado de op¢do inumeras vezes, passou no vestibular e ingressou na faculdade. Aos 16 anos, os amigos de Marcel No periodo da faculdade, Marcelo sentiu muita dificuldade em estudar as mateérias que envolviam calculos complexos e longos textos. Nao tinha os amigos do colégio para ajudé- “o.com resumos, e a exigéncia na faculdade era muito maior. Refere que naquela época, quando lia os textos enviados pelos professores, quando virava as paginas, percebia que no lembrava nada do que havia lido, Retomava a leitura do inicio, lia em voz alta, maso mesmo acabava ocorrendo novamente. Comegou a ir mal nas provas semestrais e, por is 0, repetiu muitas vezes as disciplinas da faculdade. Além disso, deixava para a Ultima ho- ra 0s trabalhos, pois relutava em envolver-se no que exigiria mais esforgo cognitivo. Mar- celo terminou a faculdade apés 10 anos, devido a tantas repeténcias. Ao longo desse tempo na universidade, Marcelo foi perdendo seus amigos pela diferen- a nas rotinas quando estes entravam no mercado de trabalho e ele seguia estudando. Esse histérico, somado ao cansaco de estar tanto tempo preso & faculdade, 0 fez cairem um episédio de humor deprimido ao final do ano quando ainda tinha 25 anos. Durante as férias de verao, ele foi levado a um psiquiatra pelos pais. O psiquiatra o diagnosticov com depressao, prescreveu um antidepressivo ¢ fez algumas orientagdes sobre como Ii- dar com essa fase. Marcelo conseguiu se recuperar e, ainda desmotivado, conseguiu fina lizar a faculdade, aos 27 anos. Na festa de formatura, estava aliviado e feliz pela conclusdo do curso, ocasido em que co- nheceu a prima mais velha de uma formanda, Martha. Na ocasido, Martha refere que se apaixonou pelo jeito brincalhao e piadista de Marcelo e achava que ele tinha uma ener- gia contagiante. Avida adulta Depois de graduado, Marcelo conseguiu um emprego na empresa de seu pai e tio e de- sempenhava a fungdo muito bem. Seu tio foi um grande mentor no inicio da carreira, aju- dando-o a cumprir protocolos de atividades que garantiriam qualidade e cumprimento das tarefas. Marcelo se pressionava para seguir de forma rigida as recomendagées e con- feréncias, pois sabia que, se ficasse mais “solto’,iria se distrair e acabar perdendo o ritmo. Por isso, dedicou-se ao maximo para garantir seu emprego e poder ter autonomia e inde- pendéncia para poder se casar com Martha e construirem uma vida juntos. ‘Aos 30 anos de idade, eles se casaram, e Martha sempre o admirou pela dedicac3o ao trabalho e o considerava até rigido com horarios e conferéncias antes de sair de casa, pa- ra ndo esquecer nada. Com o passar do tempo, Martha comecou a observar as outras caracteristicas que ela nao admirava, e, por isso, as discussdes tornaram-se mais frequen- tes.

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