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Tes Ppgcomunicação 2020 Henriques Mariana
Tes Ppgcomunicação 2020 Henriques Mariana
Ser agradecido por tudo é uma forma de compreender que nunca estamos sozinhos e
que em todas as etapas de nossas vidas sempre tem alguém para caminhar conosco. E então,
Deus nos presenteia com nossos pais, avós e familiares e, mais tarde, com nossos professores
e amigos, com quem sempre seguiremos de mãos dadas. E aqui estamos nós, adultos e mais
maduros, encerrando mais uma fase que teve a contribuição de cada um deles, seja em forma
de ensinamentos, incentivos, conselhos, exemplos, mas que só culminou com êxito porque
teve a orientação firme, precisa, amiga e parceira de Flavi Ferreira Lisbôa Filho, que fez com
que eu realmente avançasse nessa caminhada. A ele e aos demais professores, especialmente a
Ana Luiza Coiro Moraes, Fernando de Figueiredo Balieiro, Milena Carvalho Bezerra Freire
de Oliveira-Cruz e Nísia Martins do Rosário, que desde a etapa da qualificação, contribuíram
de forma a engrandecer e aperfeiçoar esta pesquisa, meu agradecimento carinhoso. É certo
que levarei esses aprendizados para os próximos caminhos que tomarei.
É preciso ter coragem pra ser mulher nesse mundo.
Para viver como uma.
Para escrever sobre elas.
The research investigates how female representations, in Brazilian soap operas, tensioned by
hegemony and selective tradition, make the agendas of the feminist movement visible, from
the 1960s to 2010. To answer this question, we analyze the soap operas Véu de Noiva (1969),
Pecado Capital (1975), Coração Alado (1980), Explode Coração (1995), América (2005) and
A Força do Querer (2017). The general objective is to analyze the relations between Brazilian
soap operas and the feminist movement, through the representation of female characters, in
six soap operas from the 1960s to 2010. Thus, we have as specific objectives: to map the ele-
ments of the historical and social context in each moment of the feminist movement in Brazil;
verify how the production logics of the soap operas contribute to the representation of the
themes through the characters; identify the feminist themes reinforced in the soap operas and
recognize the elements used in the construction of the female characters of the soap operas. In
order to achieve these objectives, we use the theoretical-methodological assumptions of the
cultural studies, approach from which we develop the concepts such as cultural material, me-
diation, hegemony and tradition, and we also elaborate the cultural-media analysis, based on
the cultural theory proposed by Raymond Williams (1979). Besides, we present a history of
the feminist movement and its developments, mainly in the Brazilian context, based on Céli
Pinto (2003, 2018), Maria Amélia Teles (2003, 2017) and Ilze Zirbel (2007). We also high-
light the importance of soap operas in the Brazilian context, characterizing them as cultural
products with a potential for articulating representations and also as a catalyst for debates on
feminist themes, through Charlotte Brunsdon (1997), Ana Carolina Escosteguy (2003, 2019),
Heloisa Buarque de Almeida (2002, 2003) and Clara Meirelles (2009). As a result, the visibil-
ity of the agenda in the soap operas is demonstrated through five themes: motherhood, vio-
lence against women, empowerment, labor market and sexual diversity, in addition to their
consequences. In general, there is a representation through a white, little politicized, individu-
alized and meritocratic feminism, which acts within conservative and traditional limits, rein-
forcing a double sexual morality. The soap operas and feminism have intense relationships
and continuous exchanges, but when represented, it is a “well-behaved” movement, which
little reflects the plurality of this struggle, giving voice to stable and conservative models of
representations, with a guise of “new discourse”, “current” and “liberal”. Nonetheless, they
are extremely important products when dealing with this theme, as they are popular and ac-
cessible to everyone, and as they dialogue with easy transit in different contexts. This is inten-
sified in Brazil, due to its great relevance in the various cultural contexts.
VINHETA DE ABERTURA
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Feminismo. Durante muito tempo esta palavra não teve um grande significado para
mim. Um grupo de mulheres que lutava por algumas causas. Demorei a entender que mulhe-
res eram essas e o que as levava à luta. E, no entanto, sem nem entender eu já participava des-
ta batalha.
Penso que minha “iniciação” nesse mundo tenha sido através de minha mãe, que desde
cedo me ensinou sobre independência, liberdade e, principalmente, sororidade. Na escola
aprendi sobre comportamentos de meninas e meninos, ao mesmo tempo em que vi um grupo
de alunas protestarem por existirem apenas times masculinos de futebol entre as práticas de
educação física. Na graduação, comecei a perceber que o machismo estava em uma reunião
de pauta, na escolha de quem abordaria determinado assunto, no viés dado às temáticas. Foi
naquele momento, também, que despertei para o papel da comunicação e da importância de
abordagens midiáticas cada vez mais plurais. Percebi, então, que foi o feminismo que me ga-
rantiu o direito ao voto, ao estudo, ao trabalho e à profissão de minha escolha, me deu liber-
dade sexual e comportamental.
Ao mesmo tempo, me deparo, cada vez mais, com uma triste realidade em que, a cada
10 minutos, uma mulher é estuprada1 e que só no ano de 2018, 1,6 milhão de mulheres foram
espancadas ou sofreram tentativa de morte no Brasil2. E mais uma vez, vemos o movimento
feminista atuante para a promulgação de leis como a Maria da Penha (2006) e a Lei do Femi-
nicídio (2015). Junto a isto, nossos salários ainda são 30% menores do que os dos homens
ocupantes dos mesmos cargos3, nossa representação na política não passa de 20% dos eleitos4,
dados alarmantes de saúde indicam que uma em cada quatro mulheres sofre violência obsté-
1
Disponível em: <
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/08/10/casos-de-estupro-aumentam-no-brasil-foram-60-mil-
registros-apenas-em-2017.ghtml > Acesso em 07 de abril de 2019.
2
Disponível em: <
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47365503> Acesso em 07 de abril de 2019.
3
Disponível em: <
https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-que-os-homens-em-
todos-os-cargos-e-areas-diz-pesquisa.ghtml > Acesso em 07 de abril de 2019.
4
Disponível em: <
https://super.abril.com.br/comportamento/brasil-tem-menos-mulheres-na-politica-que-o-afeganistao/> Acesso
em 07 de abril de 2019.
14
trica no país5. Dados que corroboram para a classificação do Brasil como o pior país da Amé-
rica Latina em oportunidades para as meninas6.
Assim, compreendi que o feminismo não é (apenas) sobre voto, aparência física, pa-
drões de beleza ou de comportamento, ou liberdade sexual. É sobre dignidade, ser a favor da
vida, da autonomia e da liberdade de todas as mulheres. É reconhecer o meu lugar de fala e
que, para além de mim, existem diferentes formas e níveis de opressões que afetam as mulhe-
res em diversas realidades e contextos sociais. Feminismo é sair da zona de conformo e lutar
por uma causa maior, compreendendo que, enquanto houver uma mulher que não for livre,
nenhuma outra será. Foi quando percebi que, para o feminismo ser dado como “algo natural e
necessário”, ainda precisaremos “arrombar muitas portas e janelas”7.
Hoje sei porque sou feminista8 e este é o meu lugar de fala: o de uma mulher de 28
anos, cisgênero, branca, heterossexual, gaúcha, jornalista, pesquisadora e que vislumbra na
comunicação um importante e poderoso papel de transformação social, devido a sua capaci-
dade de alterar realidades, suscitar assuntos, dar voz para diferentes necessidades, ser empáti-
ca e vanguardista no que tange às problemáticas sociais e de grupos minoritários.
Assim, este estudo não tem pretensão de neutralidade ou de uma explanação de teorias
para analisar um objeto empírico. Ele é, também, um texto político, permeado por experiên-
cias, vivências e saberes pessoais, e é essa característica que marca, desde o início, nossa
aproximação com o campo dos estudos culturais, base teórica e metodológica empregada nes-
ta pesquisa. Com isto, da mesma forma que declarou Rayza Sarmento9 (2017, p.7) posso dizer
que nos inserimos no que “Donna Haraway chama de conhecimento situado, ou no que Cathe-
rine MacKinnon entende por conhecimento vivido, ou ainda aquilo que me atravessa e se ins-
creve no que sou e penso, nos termos de Iris Young, o corpo vivido.” Marcar um lugar de fala,
conforme afirma Djamila Ribeiro (2017), não reduz a teoria ou minimiza a importância e va-
lidade de um estudo, pelo contrário, carrega consigo opressões estruturais que por muito tem-
po impediram indivíduos e grupos de falarem. E é sobre isto que se deve estudar.
5
Disponível em: < https://www.geledes.org.br/uma-em-cada-quatro-mulheres-e-vitima-de-violencia-obstetrica-
no-brasil/> Acesso em 06 de abril de 2019.
6
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-o-pior-pais-da-america-do-sul-para-ser-menina-diz-
relatorio-20270607> Acesso em 15 de mar. de 2018.
7
Hall (2003, p.209), ao abordar a abertura do campo dos estudos culturais e do CCCS para os estudos feminis-
tas, relata que essa inserção foi quase que como um arrombo de portas e janelas, em um meio majoritariamente
masculino.
8
Nesta pesquisa, o termo feminista engloba, de modo geral e abrangente, as mulheres que compactuam com a
luta, as causas e as pautas do movimento, atuando, ou não, como militantes. O movimento feminista é o modo
como tais lutas se organizam de forma institucionalizada.
9
Neste trabalho, como forma de dar visibilidade à produção acadêmica feminina, optamos por citar o primeiro
nome das pesquisadoras a fim de demarcar o gênero.
15
Logo, marcar meu lugar de fala é importante, pois nele se encontra a força e a fraqueza
desta pesquisa. A força, pois permite falar de mim, daquilo que vivo e sinto. E a fraqueza, que
está no alcance de meu texto. Por mais abrangente e interseccional que se pretenda este estu-
do, com grande esforço de conhecer ao máximo o campo ao qual estou abordando, reconheço
que falo de um espaço privilegiado e que algumas lacunas, inevitavelmente, surgirão, por não
dar conta de especificidades e das lutas de todas as mulheres.
Chega a hora de adentrar no propósito da pesquisa, que se insere no campo dos estu-
dos de mídia e gênero, inegavelmente, uma área em expansão, mas que está longe de se esgo-
tar ou tornar-se obsoleta. Pelo contrário. Trabalhar gênero nos tempos atuais, por si só, já é
uma prática de resistência. Com isso, nos propomos aqui, de forma mais específica, a estudar
as relações entre telenovelas e o movimento feminista, compreendendo de que forma as pau-
tas feministas ganham espaços em uma mídia hegemônica e em um dos programas de entrete-
nimento mais populares da televisão, como é o caso das telenovelas.
Partimos da informação de que a televisão está presente em 97,2% dos lares brasilei-
ros10, tornando-se não apenas o local em que se articulam poderes e interesses econômicos,
mas, também, cumprindo papel cultural, quando se torna fonte do imaginário social e cenário
de representação de identidade. A partir desta perspectiva, os estudos televisivos e de teleno-
velas tornam-se pertinentes no contexto das pesquisas em comunicação, na medida em que
possuem grande abrangência, apresentam diversos temas que trazem à tona situações cotidia-
nas vividas por diversas mulheres e podem incitar debate e discussão na sociedade.
Hoje, sabendo que as mídias são os espaços culturais onde circulam a maioria dos sen-
tidos, entendemos a televisão, por sua abrangência, como uma importante mediadora11 de
significados e facilitadora da disseminação e do reconhecimento coletivo de características
identitárias. Nesse contexto, as telenovelas ocupam espaço de destaque nas grades das emis-
soras, atingindo um amplo e variado público, de diferentes classes, idades e gêneros.
No Brasil, a primeira telenovela, Sua vida me pertence, surgiu junto à implantação da
TV, em 1950, e, desde o princípio, o gênero ganhou mais força e segue mobilizando grandes
audiências. No entanto, é interessante observar que por muito tempo as telenovelas eram pen-
sadas como um produto para as mulheres, sem grande valor cultural – motivo pelo qual seu
estudo demorou a ganhar força no meio acadêmico. Porém, é inegável que, para firmar-se
10
Disponível em: <https://exame.abril.com.br/tecnologia/em-2013-97-2-dos-lares-contavam-com-televisao/ >
Acesso em 04 de maio de 2019.
11
O conceito de mediação será desenvolvido no tópico 1.1.1, por seu papel fundamental na experiência vivida
pela sociedade contemporânea. Contudo, os elementos da teoria cultural acionados como tensionadores analíti-
cos deste estudo serão hegemonia e tradição.
16
como um dos principais produtos midiáticos e relacionar-se com os mais variados públicos, as
telenovelas buscam, na sociedade, temáticas para serem tratadas, da mesma forma com que
sugestionam pautas e assuntos para o debate social. Assim, retratam costumes, linguagens,
hábitos e problemáticas de um determinado período, procurando identificação com sua audi-
ência.
Inevitavelmente, ao longo desses quase 70 anos, as telenovelas perpassaram vários
momentos históricos distintos: ditadura civil-militar, redemocratização, reabertura política,
nova Constituição Federal, garantia de novos direitos, expansão das redes sociais, debates
sobre gênero, etnias, movimentos sociais, inclusão, temáticas que foram sendo mescladas nas
tramas, normalmente, de enredos românticos ou de sagas familiares.
Nesta perspectiva, os estudos de gênero e telenovelas tornam-se pertinentes no âmbito
das pesquisas em comunicação. As telenovelas apresentam-se como produtos midiáticos cul-
turais que contribuem na formação e estruturação de identidades e, a partir de suas representa-
ções, podem suscitar debates diversos. Assim, tendo em vista um amplo contexto social, atra-
vessado por diversas formas de mediação, questionamos: “De que forma as representações
femininas, nas telenovelas brasileiras, tensionadas pela hegemonia12 e tradição seletiva13, vi-
sibilizam pautas do movimento feminista, ao longo das décadas de 1960 a 2010?” Este ques-
tionamento principal carrega consigo outras dúvidas, tais como: “De que forma se dá a apro-
priação das temáticas feministas nas telenovelas? O processo representativo tem se desenvol-
vido de forma a melhor apresentar e problematizar os temas ao longo do tempo? Qual o espa-
ço-tempo entre uma pauta feminista estar no contexto social e ter visibilidade na telenovela?”
Para responder tais indagações, analisamos as telenovelas Véu de Noiva (1969), Pecado Capi-
tal (1975), Coração Alado (1980), Explode Coração (1995), América (2005) e A Força do
Querer (2017), cujo recorte será justificado em subseção própria.
Então, temos como objetivo geral analisar as relações existentes entre as telenovelas
brasileiras e o movimento feminista, através da representação das personagens femininas, em
seis telenovelas das décadas de 1960 a 2010.
Como objetivos específicos pretendemos:
a) mapear os contextos históricos e sociais vigentes em cada momento do movimento
feminista no Brasil;
12
Conceito compreendido, neste trabalho, a partir de Williams (1979), como um sistema de significados e
valores, que atua na constituição de perspectivas culturais, na intenção de criar entendimentos padrões. Tal
definição será aprofundada no item 1.1.2.
13
Conceito compreendido neste trabalho, a partir de Williams (1979), como um aspecto inerente à organização
social e cultural, e uma poderosa forma de incorporação de práticas, que está a serviço de um grupo dominante.
Tal definição será aprofundada no item 1.1.2.
17
três eixos principais, para, a partir daí, elencar as palavras-chaves e suas variações. O primeiro
eixo relaciona-se aos aspectos teórico-metodológico que desenvolvemos. Procuramos, então
por estudos culturais, materialismo cultural, mediação e representação. O segundo eixo indica
o recorte temático da pesquisa. Buscamos aqui por feminismo, gênero, mulher (es), feminina
(o). Por fim, pesquisamos o eixo relativo ao produto a ser estudado: telenovela e novela. Com
isso, para afinarmos os resultados, relacionamos os eixos e as variações de palavras entre si.
Esta divisão pode ser melhor vista na Figura 1. Tanto para a pesquisa do estado da arte quanto
a bibliométrica, optamos por realizar a busca dos trabalhos da última década, 2010 até 2019.
14
Essa classificação considera o quadriênio 2013-2016.
19
No mesmo ano (2012), Jussara Reis Prá e Léa Epping, no artigo “Cidadania e femi-
nismo no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres”, examinam as ações de cidada-
nia e de proteção dos direitos humanos das mulheres. Para isso, abordam a articulação entre as
agendas públicas feministas e seus impactos na configuração de acordos internacionais que
atentem a elas.
Em 2014, Claudia de Lima Costa desenvolveu o artigo “Os estudos culturais na encru-
zilhada dos feminismos materiais e descoloniais”. Nele a pesquisadora refaz a trajetória dos
debates nos estudos culturais feministas, argumentando sobre a necessidade de defendermos
um feminismo descolonial e representarmos a prática dos estudos culturais na América Lati-
na.
Por fim, a pesquisa de Lígia Campos de Cerqueira Lana (2017), intitulada “Heroínas
pós-feministas: as contradições da produção audiovisual feminina no YouTube”, aborda as
contradições e ambiguidades de papéis sociais femininos difundidos em produções audiovisu-
ais para a internet, que, em grande parte, consideram o empoderamento feminino relacionado
à exibição da intimidade e à celebração das escolhas individuais.
A partir disso, para ampliarmos nossas referências, realizamos pesquisa de estado da
arte, buscando estudos em quatro bancos de dados: Catálogo de Teses e Dissertações da Ca-
pes15, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações16, Anais da Compós17 e Portal de
Periódicos da Capes18. A fim de efetivar esta tarefa, pesquisamos por trabalhos a partir do ano
de 2010 em todas as plataformas.
Dos trabalhos encontrados, destacamos aqueles que mais se encaixam com a pesquisa
proposta, como é o caso da dissertação de Claiton César Czizewski (2012), intitulada “Comu-
nicação e educação: a violência na telenovela Mulheres Apaixonadas”. No seu estudo o autor
objetiva investigar como o dramaturgo Manoel Carlos buscou uma abordagem socioeducativa
para inserir a temática da violência na telenovela, analisando de que forma os elementos pu-
ramente ficcionais se misturaram a informações e dados da realidade social na história de três
personagens.
Destacamos, também, a dissertação de Regina da Silva (2013), intitulada “Violência
contra a mulher, políticas públicas e telenovela - intersecções possíveis: o caso Fina Estam-
pa”. No estudo, a autora objetiva contextualizar a violência contra a mulher, e reconhecer de
que forma os produtos culturais, e nesse caso em especial, a telenovela, tem se colocado em
15
Disponível em: < http://bancodeteses.capes.gov.br/> Acesso em: 03 de mar. de 2018.
16
Disponível em: <http://bdtd.ibict.br/> Acesso em: 03 de mar. de 2018.
17
Disponível em: < http://www.compos.org.br/biblioteca.php> Acesso em: 15 de mar. de 2018.
18
Disponível em: < http://www.periodicos.capes.gov.br/> Acesso em: 16 de mar de 2018.
21
relação a este fenômeno. Observou ainda a interação entre os produtores culturais envolvidos
nessa obra e os agentes do Estado, promotores de políticas públicas de enfrentamento a essa
forma de violência.
Em 2013 o artigo “(Re)presentar: contribuições das teorias feministas à noção da re-
presentação” de Raquel Peixoto do Amaral Camargo e Eduardo Ramalho Rabenhorst se pro-
põe a problematizar a categoria da representação, em suas esferas política, social e estética, a
partir das contribuições trazidas por algumas teorias feministas.
Outro trabalho que merece atenção é a dissertação de Nícia Santos (2014), intitulada
“Violência contra mulher a gente vê por aqui!: A representação da violência doméstica em
telenovelas brasileiras”. Nesse estudo a autora analisa a representação da violência doméstica,
especificamente, contra a mulher, em duas telenovelas.
No ano de 2016, o artigo “A produção da vítima na telenovela e no telejornalismo” de
Leandro Lage problematiza a forma como a vítima é representada no Profissão Repórter, em
uma edição sobre o uso do crack e na telenovela Verdades Secretas, através da personagem
Larissa que enfrenta o mesmo problema.
Ethiene Fonseca (2016) apresenta a dissertação “A representação do protagonismo
feminino no audiovisual televisivo: a análise da caracterização das heroínas na telenovela
Cheias de Charme”. No estudo a autora relaciona aspectos da realidade do mundo contempo-
râneo às diversas questões de gênero, como mercado de trabalho, a partir da representação das
protagonistas.
A dissertação de Ana Beatriz Silva (2017), intitulada “Comunicação e Gênero: as nar-
rativas dos movimentos feministas contemporâneos” objetiva mapear e analisar as narrativas
emergentes do feminismo nas redes de comunicação, buscando diagnosticar as tensões entre
elas e o contexto vivido. Tem como objeto as narrativas autobiográficas femininas comparti-
lhadas nas redes, desde as revistas feministas online independentes até os relatos pessoais
usados como arma política das campanhas contra o assédio sexual.
Em 2017, Richard Miskolci e Larissa Pelúcio apresentaram o artigo “Gêneros, sexua-
lidades e mídias contemporâneas: do pessoal ao político”. O trabalho aborda de forma geral
como diversas mídias, com foco especial na internet, têm abordado as questões de gênero em
suas produções.
No mesmo ano, Heloisa Buarque de Almeida (2017) apresenta a pesquisa “Educação
do corpo: o seriado Mulher e a promoção de mensagens médico-educativas”. O artigo traz
uma reflexão sobre o seriado Mulher, exibido pela Rede Globo entre 1998 e 1999, dirigido ao
22
19
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Intersexuais, Assexuais e outros.
20
Conceito compreendido neste trabalho, a partir de Williams (1979), relacionado com as experiências sociais
que estão sendo definidas e sentidas ativamente por aqueles sujeitos em determinado contexto. Tal definição será
aprofundada no item 1.2.
21
Conceito compreendido neste trabalho, a partir de Williams (1979), como a materialização do vivido através
de registros culturais, como a telenovela. Tal definição será aprofundada no item 1.2.
23
que, por muito tempo, foram considerados “coisas de mulher”. Ainda, as contextualizamos
como um dos principais produtos televisivos inseridos no cotidiano dos brasileiros e por isso
sua importância como vetor cultural, de identidades e representações, tendo papel fundamen-
tal, também, ao debater temáticas feministas.
Por fim, no quarto capítulo, “Clímax - Análise cultural-midiática de telenovelas”,
apresentamos nosso corpus de pesquisa, bem como realizamos a análise textual das telenove-
las. Ao fim, buscamos elucidar as relações e intersecções entre as pautas do movimento femi-
nista e as telenovelas brasileiras.
Gostaríamos de salientar, ainda, que entendemos, assim como Ribeiro (2017), que a
linguagem é um mecanismo de manutenção de poder. Por esse motivo, há um grande esforço
nosso, em dar voz, majoritariamente, para autoras e pesquisadoras, preferencialmente brasilei-
ras, ou que abordam o feminismo por um viés não tradicional. Este mesmo critério foi utiliza-
do na seleção das telenovelas analisadas, mesmo que, no universo pesquisado, 75% delas fos-
sem de autoria masculina. Assim, “o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso
autorizado e único que se pretende universal” (RIBEIRO, 2017, p. 70), trazendo uma plurali-
dade de vozes para o debate.
24
25
PROTAGONISTAS
ESTUDOS CULTURAIS: UM CAMPO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Na busca por analisar quais são as relações existentes entre as telenovelas brasileiras e
o movimento feminista e de que forma suas pautas são representadas nesses espaços midiáti-
cos, o primeiro capítulo é de caráter teórico-metodológico, e apresenta a base que dá suporte à
pesquisa e à análise das telenovelas. Construído desta forma, compreendemos que facilita o
percurso analítico e o encontro dos resultados almejados, por entendermos que estas partes do
trabalho (teoria, método e análise) não são células independentes, e sim interconexas que con-
tribuem à complexidade da pesquisa.
Assim, os estudos culturais constituem o eixo a partir do qual desenvolvemos as no-
ções acerca do materialismo cultural e mediação, bem como elucidam os conceitos de hege-
monia (e, consequentemente, contra-hegemonia) e tradições, aqui tratados como tensionado-
res analíticos. Além disso, dão embasamento para a compreensão e realização de uma análise
cultural-midiática a partir da teoria cultural proposta por Raymond Williams (1979). Para tal,
além deste, trazemos autores como Richard Hoggart (1973), Edward Thompson (1987), Stuart
Hall (2003, 2008), Maria Elisa Cevasco (2001, 2003), Ana Carolina Escosteguy (2001, 2006,
2010), Ana Luiza Coiro Moraes (2015, 2018), entre outros que se tornaram pertinentes à pes-
quisa.
Estudar cultura nunca foi tarefa fácil. Em 1976, Raymond Williams já dizia que cultu-
ra é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa. E isso ocorre, princi-
palmente, pelo fato de o termo ser utilizado em diversas disciplinas distintas e sistemas de
pensamentos incompatíveis (WILLIAMS, 2007, p.117).
Historicamente, as origens do termo cultura já mostram uma ampla gama de usos. As
suas raízes são encontradas no latim, inglês e no francês, através da ideia de cuidado com al-
go, seja o cultivo de uma lavoura ou o trato com os animais. Mais adiante, no século XVI, a
ideia do “cuidado com algo” ampliou-se para incluir o processo de desenvolvimento humano.
Isso fez com que ocorresse uma mudança fundamental em relação ao uso do termo, que
deixou de designar atividades específicas e passa ser compreendido de forma abstrata,
originando o substantivo cultura, próximo ao que conhecemos hoje.
Já na língua alemã, no século XVIII, o principal uso do termo era como sinônimo de
civilização, primeiro, em um sentido abstrato de tornar-se “civilizado”, posteriormente, no
26
sentido estabelecido para civilização, pelos historiadores do Iluminismo, como uma descrição
do processo secular de desenvolvimento humano (WILLIAMS, 2007, p. 119). Este recorte da
história do termo é relevante, pois tal entendimento de cultura ainda é facilmente identificado
em alguns discursos contemporâneos, quando se denomina pessoas cultas de acordo com seu
grau de instrução. Exemplo recente disto, é quando o ex-ministro da Educação, Ricardo Vélez
declarou que a ideia de uma “universidade para todos” não existe, já que esta deveria estar
reservada para uma elite intelectual22. Esse entendimento de cultura como relacionada ao
erudito, de acordo com Williams (2007, p.120), começa a ser questionado por Herder, filósofo
e escritor alemão, que atacava o pressuposto de que "civilização" ou "cultura" fosse um pro-
cesso unilinear que conduziria ao ponto alto e dominante, no caso, a cultura europeia do sécu-
lo XVIII. O filósofo defendia que era preciso falar de “culturas”, no plural.
Desse modo, conforme afirma Tavares (2008), após a Segunda Guerra, da qual a In-
glaterra saiu com grandes danos, a organização social e cultural vigente até então, que enten-
dia a cultura como restrita a um grupo seleto, começa a ser questionada por jovens intelectuais
que se estabeleciam nas instituições de nível superior. Entre esses jovens, uma parte pertencia
ao Partido Comunista da Grã-Bretanha, mas, que devido a ortodoxia que vinha da então Uni-
ão Soviética, rompeu com o Partido, principalmente, à época do governo de Stalin e da inva-
são soviética na Hungria, em 1956. Assim, esses jovens romperam com o pensamento marxis-
ta mais “duro” e buscaram novas formas de compreender as transformações do contexto soci-
al que estavam vivendo. Este movimento posicionou-se contra o elitismo e o conservadorismo
da direita britânica, e o dogmatismo e o reducionismo da esquerda stalinista. De acordo com
Tavares (2008), uma das principais críticas que esse grupo de intelectuais de esquerda fazia
era em relação à visão tradicional de cultura que, através da educação e das artes, reproduzia a
desigualdade social como “herança da humanidade” ou o “repositório dos valores espirituais”.
Esta intrincada e complexa relação com o conceito de cultura é o que motiva Raymond
Williams, Richard Hoggart e Edward Thompson a pensarem no termo e proporem novas lógi-
cas para seu entendimento. Os autores, têm em comum suas origens ligadas à classe operária
inglesa e, ao mesmo tempo, ao ambiente acadêmico, o que propicia com que consigam articu-
lar vivências próprias e referencial teórico substancial a fim de compreender a cultura como
“a esfera do sentido que unifica os setores da produção e das relações sociais e pessoais”
(MORAES, 2018, p. 164). O que buscavam era um deslocamento da ideia elitista de cultura
em direção a suas práticas cotidianas. Segundo Ana Carolina Escosteguy (2010), o eixo prin-
22
Disponível em: < https://www.revistaforum.com.br/universidades-devem-ficar-reservadas-para-uma-elite-
intelectual-diz-ministro-da-educacao/> Acesso em 07 de abril de 2019.
27
cipal de pesquisa estava centrado nas relações entre a cultura contemporânea e a sociedade,
com foco nas instituições, formas e práticas culturais. Para a autora, o ponto de partida dos
estudos recai sobre as estruturas sociais e o contexto histórico como elementos essenciais para
compreender a ação dos meios massivos e assim, tematizar e investigar a cultura popular,
especialmente sob seu viés político.
A partir desse intento inicial e das contribuições teóricas e metodológicas que auxilia-
ram a repensar o conceito de cultura, os três autores podem ser considerados os fundadores
dos estudos culturais britânicos. No entanto, estudar, compreender, teorizar e analisar a cultu-
ra não foram processos imediatos e lineares, mas uma construção no tempo que levou ao de-
senvolvimento de uma teoria da cultura e do materialismo cultural – processo esse, que de
acordo com Williams (2011), levou mais de 30 anos. Logo, não é nossa intenção traçar um
desenvolvimento cronológico dos fatos, mas sim, destacar períodos e momentos importantes e
de ruptura que levaram a novas formas de pensar e analisar cultura. Cabe percorrer parte do
caminho trilhado pelos teóricos para que o entendimento do processo seja mais profícuo.
Richard Hoggart, no ano de 1957, lança o livro The Uses os Literacy, que, segundo
Escosteguy (2006), é em parte autobiográfico e em parte história cultural do meio do século
XX. Na obra, o autor procura estudar as influências da cultura de massa que emergiram no
pós 2ª Guerra, sobre as classes populares. Dessa forma, foca sua atenção sobre materiais cul-
turais antes desprezados, a cultura popular e nos mass media, inaugurando a ideia de que no
âmbito popular não há apenas submissão, mas também movimento de resistência. O que o
referido autor busca é sinalizar que cultura não está restrita a elites, tampouco, são as classes
populares, meras consumidoras e receptoras passivas de produtos culturais. Defende que pos-
suem suas próprias práticas culturais e significações, tão complexas e ricas quanto a dita “cul-
tura de elite”. Isso implica pensar que os efeitos dos mass media não são imediatos e absolu-
tos, já que conseguem negociar sentidos e significados com outras formas culturais, tensio-
nando e opondo uma resistência tradicional e interior àquilo que lhes é apresentado. (HOG-
GART, 1973). Cabe a ele, também, romper com a tradição marxista por acreditar que essa não
oferecia uma noção de classe que se preocupasse com as diversidades culturais. Para o mar-
xismo, as classes trabalhadoras eram tidas como unidade explorada, indefesa e socialmente
determinada pelos seus aspectos econômicos, o que iria de encontro ao que observou em seus
estudos.
Hall (2008) reconhece no trabalho de Hoggart uma importância fundamental para
aquele período e para todos os estudos posteriores que daí emergiram. Acredita que sem Hog-
gart não haveria “estudos culturais”, dando a ele o crédito de responsável pela “virada cultu-
28
ral” nas ciências sociais e humanas, que coloca a cultura como central nas relações humanas,
devendo ser considerada “categoria primária e constitutiva de análise” (HALL, 2008, p. 3).
No ano seguinte, 1958, Raymond Williams publica o livro Culture and Society, que
contribuiu para pensarmos cultura como uma categoria-chave que conecta, tanto a análise
literária, quanto a investigação social, já que “constrói um histórico do conceito de cultura,
culminando com a ideia de que a ‘cultura comum ou ordinária’ pode ser vista como um modo
de vida” (ESCOSTEGUY, 2001, p.2). É desse mesmo ano também o ensaio Culture is ordi-
nary. A partir dessas obras, o autor passa a defender uma ‘cultura ordinária’, que permeia
todas as atividades do homem.
Cultura é ordinária: este é o primeiro fato. Toda sociedade humana tem sua própria
forma, seu próprio propósito, seus próprios significados. Toda sociedade humana os
expressa nas instituições, nas artes e na educação. O fazer da sociedade é a busca
dos significados e direções comuns, e eles surgem no ativo debate e no aperfeiçoa-
mento pressionado pela experiência, contato e descoberta, escritos eles mesmos na
terra. (WILLIAMS, 1992, p. 6).
Essa proposta de entendimento de cultura traz o sujeito como protagonista de sua his-
tória, sendo ativo na construção dos significados de sua realidade. São suas práticas de vida,
seu pensamento, expressões cotidianas que fundamentam sua cultura. Desta forma, passa a
representar grupos maiores de uma sociedade, que ao compartilharem seus modos de vida,
identificam-se entre si. Esta posição, de acordo com Moraes (2018) confronta duas visões de
mundo que se estabeleciam na Inglaterra desde o século XIX: a primeira era a compreensão
elitista de cultura, como forma de comportamento de “pessoas distintas” e, a segunda, a rigi-
dez e o utilitarismo dos aparatos ideológicos da esquerda inglesa da época. Ao longo de sua
trajetória, Williams aproxima-se, também, do conceito de hegemonia pelo viés de Gramsci,
sendo compreendido como um importante articulador do processo de produção e reprodução
da cultura.
Posteriormente, no ano de 1963, com The making of the english working-class,
Edward Thompson propõe uma revisão crítica do marxismo, considerando a cultura e a subje-
tividade como peça chave nas relações de classe, dando foco para a classe operária. Assim,
Thompson (1987, p.10) objetivava retratar a experiência histórica dos “de baixo” e “resgatar o
pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão ‘uto-
pista’...”.
Thompson, ao lado de Williams, também teve destaque como fundador da New Left,
um movimento político e intelectual dos anos 1950 que objetivava compreender, no período
29
pós-guerra, a realidade vivida sob o capitalismo e “corrigir os erros” dos antigos partidos de
esquerda, como o Partido Comunista, superando o pensamento estruturado na dicotomia mar-
xista base/superestrutura. Um dos principais veículos de divulgação de ideias dessa nova es-
querda foi a New Left Review. Seu primeiro editor foi Stuart Hall, o qual publicou trabalhos
de Thompson e Williams que propunham uma análise crítica da cultura operária. Além disso,
as publicações também passaram a traduzir textos de pensadores marxistas como, por exem-
plo, Gramsci, Lukács, Brecht, Walter Benjamin, Adorno, Marcuse, Althusser, entre outros. O
objetivo central era, então, analisar, de forma crítica, o pensamento teórico marxista, que tinha
como foco as relações econômicas e práticas materiais como agentes determinantes de mu-
danças sociais. Esse modo de compreender a sociedade era considerado demasiado reducio-
nista para esse grupo, já que desconsiderava demais aspectos da vida humana, como os cultu-
rais. Para Cevasco (2001, p. 123-124), essa publicação foi fundamental para o “bem-sucedido
projeto intelectual de atualização do marxismo na e a partir da Grã-Bretanha”.
Assim, o que se percebe é que, historicamente, a trajetória da New Left está entrelaça-
da com a origem dos Estudos Culturais, das preocupações com movimentos sindicais, da edu-
cação de jovens e adultos, de publicações alinhadas com a militância política e do compro-
misso com mudanças sociais radicais. É nesse espaço, também, que começam a se estabelecer
as relações entre estudos culturais e feminismo, por volta dos anos 1970, através dos questio-
namentos referentes à identidade e seu não determinismo apenas por questões culturais, mas
também, de gênero. Porém, a incorporação dessa temática, mesmo que apreciada por muitos
pensadores do Centro, não se deu de forma fácil. Para Hall (2003), tal abordagem foi compre-
endida como uma “interrupção inconveniente” que alterou uma prática vigente.
Dada a importância crescente do trabalho intelectual feminista, bem como dos pri-
mórdios do movimento feminista no início da década de 70, muitos de nós no Cen-
tro – na maioria homens, é claro – pensamos que fosse o momento de introduzir o
trabalho feminista de qualidade nos estudos culturais. [...] Abrimos as portas aos es-
tudos feministas [...]. E, mesmo assim, quando o feminismo arrombou a janela, to-
das as resistências por mais insuspeitas que fossem, vieram à tona – o poder patriar-
cal plenamente instalado, que acreditara ter-se desautorizado a si próprio (HALL,
2003, p. 209).
Ainda que em sua fala Hall (2003) reconheça que, por trás de tal comportamento mas-
culino dos homens do Centro, estivesse um pensamento patriarcal já consolidado, Brunsdon
(1978, p. 218) nega que tal situação tenha ocorrido de forma “inesperada”, já que o trabalho
feminista no CCCS já era uma realidade há anos, questionando e tensionando os estudos cul-
turais, tal qual uma guerra de posições em que as feministas reivindicavam a ocupação de
30
Levei trinta anos, em um processo bastante complexo, para deslocar-me daquela teo-
ria marxista herdada (que, em sua forma mais geral, comecei aceitando), passando
por várias formas de transição da teoria e da investigação, para a oposição que de-
fendo agora e que defino como “materialismo cultural”. As ênfases da transição – na
produção (e não apenas reprodução) de significados e valores por formações sociais
específicas; no primado da linguagem e da comunicação como forças sociais forma-
tivas; e na interação complexa tanto das instituições e formas quanto das relações
sociais e convenções formais – podem ser definidas, se quisermos, como “cultura-
lismo”, e até mesmo a dicotomia (positivista) antiga e crua idealismo/materialismo
pode ser aplicada, se ajudar a alguém. (WILLIAMS, 2011, p. 331-332)
vem a (re)produção de uma ordem social profundamente arraigada. Dessa percepção, decorre
a necessidade de se estudar a cultura não só como produto, mas também como produção ma-
terial que articula de forma concreta a dinâmica da totalidade social. Por esse motivo, o refe-
rido autor criticou a proposição marxista de que a sociedade seria composta por duas esferas
fixas e separadas: a base, que seria determinante, e a ela estariam vinculados os modos de
produção e a economia; e a superestrutura, determinada, composta por ideias, culturas, artes,
instituições, processos intelectuais, políticos e sociais. Para o materialismo econômico, a eco-
nomia determinaria a consciência dos homens, os quais estariam alienados do processo produ-
tivo.
Ao propor o materialismo cultural, Williams (1979) reivindica a ação humana em so-
breposição à ideologia e a forças determinantes, considerando que a cultura também deve ser
vista como uma prática social real e material com consequências concretas para os sujeitos, os
quais passam a ser entendidos enquanto agentes sociais ativos, responsáveis pelas lutas soci-
ais. Assim, a cultura não é determinada por uma base econômica, mas está em constante rela-
ção e tensionamento com as demais forças da sociedade.
Tal posição teórico-política via no estudo da cultura a porta de entrada para uma críti-
ca comprometida, que visava entender o funcionamento da sociedade com o objetivo de trans-
formá-la. A totalidade cultural, portanto, passava a ser o objeto de análise, buscando evidenci-
ar as complexas relações das instituições e formas culturais com os vínculos sociais estabele-
cidos entre os sujeitos. “O foco central recai sobre a cultura, pensada como força produtiva a
partir do que é efetivamente vivido pelos sujeitos” (MORAES, 2015, p. 3).
Este novo modo de ver e analisar a sociedade, deu ênfase na produção (e não apenas
reprodução) de significados e valores por formações sociais específicas. Com esse pensamen-
to, o que Williams (1979, p. 332) almeja é que se alcance
[...] uma teoria da cultura como um processo (social e material) produtivo e de práti-
cas específicas, e das “artes” como usos sociais de meios materiais de produção
(desde a linguagem como “consciência prática” material até às tecnologias específi-
cas da escrita e das formas de escrita, por meio de sistemas mecânicos e eletrônicos
de comunicação).
O referido autor defende, então, que a cultura deve estar além das histórias de vida
particulares, ou seja, na relação entre elas e suas formas de organização com um contexto so-
cial mais amplo. Williams (1979) define a teoria da cultura como o estudo das relações entre
os elementos em um modo de vida total e, sendo assim, a análise da cultura é uma tentativa de
descobrir a natureza da organização que é o complexo dessas relações.
32
A partir daí, podemos compreender que o referido autor propõe uma teoria e análise da
cultura que a entenda como um processo social real interligado com as questões econômicas,
políticas e midiáticas da contemporaneidade. Dizemos, então, que a teoria da cultura e o mate-
rialismo cultural podem ser pensados não como oposição ao materialismo de Marx, mas como
em paralelo, como “uma ampliação do materialismo para abarcar domínios pouco explorados
na teoria fundante de Marx, uma continuação da tradição em sua chave mais relevante, a de
apresentar respostas à situação social” (CEVASCO, 2003, p.124).
Ao desenvolver sua teoria da cultura, Raymond Williams (1979) retoma alguns eixos
centrais da teoria marxista e dá a eles uma nova leitura tendo, como foco os aspectos cultu-
rais. Desenvolve, assim, as bases epistemológicas sobre as quais são articulados os percursos
metodológicos que têm na cultura seu ponto principal de investigação. Esses eixos dizem res-
peito aos conceitos de base e superestrutura, determinação, forças produtivas, mediação, he-
gemonia, tipificação, tradições, instituições, formações e estrutura de sentimento. Em nosso
estudo, trazemos, principalmente, os de mediação, hegemonia e tradição.
Cabe observar ainda, que ao abordar essa temática, Glaser (2008, p.88) afirma que “o
materialismo cultural se define, então, como uma teoria da cultura intrinsecamente vinculada
a uma teoria da comunicação”, isso porque destaca a centralidade da linguagem e da mídia
como atores fundamentais na disseminação, produção e reprodução cultural. Assim, se os
estudos culturais tinham como preocupação central a cultura popular e mass media, os produ-
tos midiáticos ganham destaque a partir do entendimento de que não são meros instrumentos
de manipulação e controle, mas sim que atuam na mediação de elementos da sociedade.
1.1.1 Mediações
Podemos afirmar que todos os processos sociais são mediados e a comunicação, como
algo inerente ao ser humano de todos os tempos, tem, na contemporaneidade, a ampliação da
sua função mediadora através das tecnologias e plataformas midiáticas, que permeiam os mais
variados âmbitos e instâncias cotidianas, cumprindo quase que instantaneamente, a função
mais básica da comunicação, de propor trocas de mensagens entre emissores e receptores.
Corrobora com esse pensamento, Williams (1979), ao afirmar que todos os tipos de relações
humanas são mediadas, ou seja, compreende a mediação como algo intrínseco a qualquer pro-
cesso, não podendo dele ser separado. Ainda, para Williams (1992, p. 21), a mediação, “indi-
ca as relações práticas entre formas sociais e artísticas. Em seus usos mais comuns, porém,
refere-se a um modo indireto de relação entre a experiência e sua composição”. Ou seja, com-
33
preendemos que a mediação se refere aos sentidos oriundos da interpretação entre sujeito e
objeto, quando estão em relação.
Ao explicar a origem do termo, o referido autor, à sua época, deixava nítido que a me-
diação entre arte e sociedade não poderia ser compreendida como um “reflexo” e nem uma
cópia exata das vivências e atuações nela, já que a mediação iria além e indicaria um processo
ativo que consideraria variáveis até então ignoradas. Trazendo para o campo comunicacional,
não devemos esperar encontrar realidades sociais “refletidas” diretamente nos produtos midiá-
ticos, uma vez que estas passam por um processo de “mediação”, no qual seu conteúdo origi-
nal é modificado e está sujeito à interpretação.
A fundamentação do pensamento de Williams (1979) reside, em um dualismo, uma
vez que afirma ser evidente que a arte e, em nosso caso, o produto midiático, não reflete a
realidade de uma sociedade, já que existe uma mediação cultural entre esses elementos, ainda
assim, “é praticamente impossível manter a metáfora da ‘mediação’ sem certo senso de áreas
separadas e preexistentes, ou ordens de realidade, entre as quais o processo de mediação ocor-
re” (WILLIAMS, 1979, p. 102). Apesar disso, para ele, se considerarmos que a “realidade” é
diferente de “falar a realidade”, o conceito é inevitável e deve ser utilizado a partir do conhe-
cimento de seus limites – não como o ideal, mas como o menos alienado, como uma alternati-
va ao reducionismo de uma sociedade complexa.
Ao voltarmos esse conceito para o campo midiático e, em específico para a televisão,
Martín-Barbero (1997), autor latino-americano e um dos pensadores clássicos dos estudos
culturais, destaca sua importância fundamental para a área, já que define as mediações como o
lugar desde onde se dá o sentido das comunicações. Conforme o autor, para apreender o intei-
ro processo comunicativo é necessário conhecer o contexto da mediação. Esta afirmação se dá
por ele acreditar que a comunicação, atualmente, é uma questão de mediação, já que esta per-
passa, todo o processo desde a concepção até o consumo, de um produto midiático. Isso signi-
fica dizer que todo o processo de comunicação é articulado a partir das mediações – no plural.
Por esse motivo, cabe ressaltar que, de acordo com Maria Immacolata Vassallo de Lopes
(2014, p. 70), “não há uma definição única de mediação, uma vez que ela parece ser uma no-
ção movente, que acompanha permanentemente as transformações da sociedade e especifica-
mente as da comunicação”.
Este pensamento faz com que reconheçamos a comunicação como a mediadora da vi-
da cultural e política da sociedade, pois está inserida em uma complexa teia de múltiplas me-
diações. O que estamos dizendo com isto é que, mesmo que se pense nas esferas de produção
e consumo de formas distintas, ambas se enquadram em um contexto maior que é permeado
34
por vivências individuais, crenças, tradições, culturas e valores que não podem ser desconsi-
derados em uma análise cultural. Todos esses aspectos vão interferir de modo significativo na
forma como um produto é consumido e até mesmo em como é produzido. Podemos inferir,
então, que as produções culturais constituem, por si só, processos de mediação, afinal, auxili-
am na nossa interpretação do cotidiano, da vida em sociedade. Sendo assim, são frutos da
mediação e também mediadores, já que, segundo Martín-Barbero e Munhoz (1992, p.20), “o
que [a mídia] produz não responde unicamente a requerimentos do sistema industrial e a es-
tratagemas comerciais, mas também a exigências que vêm da trama cultural e dos modos de
ver”.
Orozco (1997) afirma que os meios de comunicação são muito mais do que apenas
meios, são linguagens, dispositivos e palcos de luta pelo poder. E, por esse motivo, têm capa-
cidade de controle e modelagem social, sendo ativos dinamizadores culturais, fontes de refe-
rências cotidianas, educadores, representantes da realidade e geradores de conhecimento, au-
toridade e legitimação política. Corrobora com este pensamento, Martín-Barbero (1997) ao
afirmar que as mediações possuem natureza triádica indissolúvel, ou seja, formadas pela cul-
tura, comunicação e política, indicando assim o caráter múltiplo e onipresente delas, que cir-
culam nos mais diversos âmbitos, dialogando e compartilhando inferências trazidas do mundo
do trabalho, política, produção cultural e dos públicos de variadas etnias, gêneros, identidades,
bem como das instituições sociais a que pertencem e dos movimentos e organizações cidadãs
dos quais participa. Este conjunto de múltiplas mediações é o que define o alcance dos meios
e as apropriações, negociações e descartes da audiência.
Compreender a mídia televisiva como um ambiente que não é neutro e sim uma insti-
tuição, faz com que Orozco (1998) dê a ela uma tripla dimensão. A televisão, para o autor,
além de uma instituição é vista como um meio e uma tecnologia e por isso desencadeia diver-
sos tipos de interação, que ele denomina de multimediações.
Torna-se evidente, aqui, a pertinência do conceito de mediação para pensarmos as re-
lações entre as telenovelas e o movimento feminista, já que estabelece uma base contextual
para vislumbrarmos o espaço interseccional entre as esferas da cultura vivida e da cultura re-
gistrada. Portanto, partimos do entendimento básico de que todas as produções culturais são
mediadas, afinal, buscam trazer imagens da vida em sociedade. Entretanto, não encontraremos
o vivido efetivamente refletido na telenovela, apenas parte dele, ou elementos que nele se
inspiram ou de lá buscam referência – e que serão tensionados com as perspectivas hegemô-
nicas, contra-hegemônicas e tradicionais já estabelecidas.
35
[...] a dominação não acontece em uma via de mão única, mas como uma relação di-
fundida pelo conjunto da sociedade civil, pela qual os dominados não aparecem co-
mo meros agentes passivos, pois, em diversos momentos, assumem como sua a
ideologia dominante ou, pelo contrário, organizam resistência e oposição a ela
(COSTA, 2012, s/p).
realidade para determinada sociedade, funciona, de acordo com o supracitado autor, como
uma espécie de “cultura”, mas uma cultura que determina domínios e subordinações.
Não podemos, porém, pensar a hegemonia como algo estanque ou como um simples
processo de dominação passiva, já que deve ser entendida, não como uma estrutura, mas rea-
lizando-se nas experiências, relações e atividades, que a renovam, recriam, defendem e a atua-
lizam. Assim, conforme afirma Hall (2003, p. 339), a hegemonia nunca é uma questão de vi-
tória ou dominação pura ou um jogo cultural de perde-ganha; sempre tem a ver com mudança
no equilíbrio de poder nas relações da cultura. Como parte desse processo e em oposição a
ele, sofre pressões e resistência de uma contra-hegemonia ou hegemonia alternativa, da qual
fazem parte aqueles elementos reais e persistentes da prática e que buscam alterar o contexto
dominante, impulsionados, principalmente pelas pluralidades religiosas, étnicas, sexuais e de
gênero e que muitas vezes são invisibilizadas pela instância do hegemônico.
A hegemonia é, então, uma construção instável, sujeita a alterações, já que sofrerá ten-
sões entre blocos de grupos sociais diversos, em determinados momentos, que apresentam
formas de vida alternativas, que reorientem percepções de mundo a fim de alterar o pensa-
mento hegemônico dominante, ou seja, a contra-hegemonia. Além disso, as relações hegemô-
nicas são pedagógicas, pois suas ideias devem ser ensinadas, aprendidas, firmadas e reafirma-
das. É preciso que o pensamento dominante se estabeleça no senso comum e no espaço cultu-
ral existente, se tornando um costume, algo “natural”. Penélope Toledo (2015) afirma que a
base material para a propagação desses consensos está na educação, seja pelo sistema formal,
através da escola, ou informal, ensinada pelos meios de comunicação, pelas instituições reli-
giosas, arte, entretenimento e cultura em geral e isso ocorre por que essas formas de educar
não se apresentam como “instrumentos de controle” e, por esse motivo, encontram menos
resistência. Coutinho (1999) explica que estes, ao difundirem seus conteúdos, conhecimentos,
informações e sensações estéticas difundem junto ideias que “ensinam” um pensamento do-
minante.
Paralelamente a isso, muitos grupos vão tensionado e discutindo esses padrões e tradi-
ções vigentes. Dentre eles destacamos, neste trabalho, o movimento feminista, que, a partir
dos anos 1960, de forma mais organizada, vem atuando, quebrando barreiras e realizando
importantes avanços no contexto social. Ele apresenta formas alterativas de pensar o feminino
para além da subjugação masculina, combatendo preconceito, discriminação e violência atra-
vés de um discurso oposto ao hegemônico, que visa retificar o papel da mulher em sociedade,
sem predeterminações sociais. Assim, entende-se que, “embora por definição seja sempre
dominante, [a hegemonia] jamais será total ou exclusiva” (WILLIAMS, 1979, p.116), já que a
38
todo o momento é interpelada por formas e práticas culturais distintas. Dessa forma, os pro-
cessos hegemônicos também são suscetíveis às alterações e oposições que ameaçam seu do-
mínio. Estes embates, ao longo do tempo, vão transformando o pensamento hegemônico,
mesmo que este seja elaborado e fortemente constituído pelas tradições, já que para Williams
(1979) a tradição é a expressão mais evidente das pressões e limites dominantes e hegemôni-
cos. No entanto, cabe observar que no pensamento marxista essa categoria era tida como um
fator secundário quando não, negligenciada, considerada incapaz de modificar outros proces-
sos. Isso se deu porque a tradição era vista como inerte, apenas como uma forma de referência
e manutenção de um passado vivido. Na contramão, ao trazer este conceito ao materialismo
cultural, Williams (1979, p.188) o coloca em outro patamar, considerando-o uma “força ati-
vamente modeladora”. Dizemos, então, que a tradição, é, neste sentido, um aspecto inerente à
organização social e cultural e que está a serviço de um grupo dominante (WILLIAMS,
1979). É, assim, uma versão do passado que se deve ligar ao presente e ratificá-lo, oferecendo
a ele um senso de continuidade.
Então, com base no referido autor, a tradição é uma poderosa forma de incorporação
de práticas. Cabe observar, no entanto, que para além dela, o que temos é uma tradição seleti-
va, ou seja, “uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presen-
te prémodelado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e identifica-
ção social e cultural” (WILLIAMS, 1979, p. 118).
Podemos afirmar, então, que essa seletividade, no passado histórico ou presente, vai
enfatizar ou ocultar certos significados e práticas. Dentro de uma cultura hegemônica, essa
seleção é apresentada como “a tradição”, “o passado”, estabelecendo uma cultura e também
um registro histórico de uma sociedade específica, assim como cria a rejeição de “zonas con-
sideráveis” da antiga geração, obedecendo diversos interesses, como, por exemplo, os de clas-
se e gênero. Nesse sentido, Johnson (2006, p. 51) afirma que “o problema é que as definições
do que é considerado importante são, em boa parte, socialmente específicas e, em particular,
tendem a corresponder às estruturas masculinas - e de classe média – de ‘interesse’”.
Reside aí a força e a fraqueza da tradição: se por um lado ela funciona através da rea-
firmação de valores, comportamentos e modos de agir, por outro, para que isso aconteça, ela
deixa de lado uma enorme variedade de significados e formas de vida, que ganham força jus-
tamente por sua diversidade. De acordo com Williams (1979, p. 119) “são em momentos de
conexão, onde uma versão do passado é usada para ratificar o presente e indicar as direções
para o futuro que uma tradição seletiva é ao mesmo tempo poderosa e vulnerável”. Poderosa,
pois já sendo dominante, tem força para seguir indicando o caminho a ser percorrido, rejei-
39
tando zonas que não lhe interessam ou que possam atacar sua hegemonia. A vulnerabilidade
está na possibilidade da recuperação de registros reais desse passado, que são, a todo momen-
to, acionados e confrontados. Esta constante batalha é parte importante de toda a atividade
cultural contemporânea. Entretanto, de modo geral, o sentido hegemônico é sempre o mais
preponderante, uma vez que oferece uma ratificação histórica e cultural. Isso ocorre, pois se
relaciona diretamente a práticas continuadas nas famílias, nas escolas, nos espaços religiosos,
públicos e locais de trabalho, visto que essas são consideradas as principais instituições for-
mais e mantenedoras das tradições.
Assim, de acordo com Williams (1979), as instituições têm uma influência profunda
nas dinâmicas sociais através do compartilhamento de ideias e comportamentos. Um processo
de socialização pode ser comparado a uma cartilha com regras, códigos de ética e conduta,
hábitos, costumes e as informações que todos devem conhecer e seguir. Entretanto, essa so-
cialização que transmite atitudes e conhecimentos age através de uma seleção de inúmeras
possibilidades a serem ensinadas. Ou seja, são selecionados “significados, valores e práticas,
que, na intensidade mesma de sua associação com o aprendizado necessário, constitui a base
real do hegemônico” (WILLIAMS, 1979, p. 120).
Acrescenta-se a estas condições, a força dos sistemas de comunicação como institui-
ções presentes e inseparáveis no cotidiano das sociedades e que, de acordo com o referido
autor, “materializam notícias e opinião, e uma ampla variedade de percepções a atitudes sele-
cionadas” (WILLIAMS, 1979, p. 121). Isso ocorre com mais intensidade nos dias de hoje,
pois o tempo despendido com os multimeios é maior do que com outros tipos de relaciona-
mentos interpessoais. Essa informação pode ser comprovada por uma pesquisa que aponta o
Brasil como líder absoluto em um ranking de países cuja população passa mais tempo no ce-
lular23. Quanto à televisão, quase 100% dos lares brasileiros possuem o aparelho24 e 57,8%
têm acesso à internet25. Essas informações tornam-se relevantes no sentido de revelar que,
cada vez mais, a mídia ganha força como uma instituição, muitas vezes, mais potente que as
demais, como a família e a escola. Abarcando um grande número de telespectadores/usuários,
em um curto espaço de tempo, ela é uma das grandes responsáveis por (re)afirmar e
(re)produzir o que se considera tradicional ou hegemônico. No pensamento de Gramsci
(2002) as mídias podem ser consideradas “aparelhos privados de hegemonia”, pois, na maio-
23
Disponível em: <https://www.tribunapr.com.br/cacadores-de-noticias/centro/vicio-nas-redes/> Acesso em 18
de abril de 2019.
24
Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-02/uso-de-celular-e-acesso-internet-
sao-tendencias-crescentes-no-brasil> Acesso em 18 de abril de 2019.
25
Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/apesar-de-expansao-acesso-a-internet-no-brasil-ainda-e-
baixo/> Acesso em 18 de abril de 2019.
40
ria das vezes, estas organizações estão a serviço da legitimação de interesses de classes e gru-
pos dominantes. Assim, perpetuam e disseminam valores que mascaram e suavizam antago-
nismos de forma a reafirmar o pensamento dominante que as mantém em atividade. Com isso,
de acordo com Coutinho (1999, p. 55-55), as mídias
[...] são organismos sociais “privados”, o que significa que a adesão aos mesmos é
voluntária e não coercitiva, tornando-os assim relativamente autônomos em face do
Estado em sentido estrito […]; mas deve-se observar que Gramsci põe o adjetivo
“privado” entre aspas, querendo com isso significar que — apesar desse seu caráter
voluntário ou “contratual” — eles têm uma indiscutível dimensão pública, na medi-
da em que são parte integrante das relações de poder em dada sociedade.
No entanto, não é possível afirmar que tais instituições atuem apenas através de um
discurso dominante, já que, ele não será único. Desse modo, mesmo que seja locus de um
pensamento hegemônico, lá circularão diferentes formas e manifestações, que tensionam o
dominante, abrindo espaço para as novas formações e contra-hegemonias.
Contudo, apenas as instituições não seriam capazes de dar conta de uma tradição, que
é, por si só, um processo hegemônico complexo, com contradições e conflitos não soluciona-
dos. São esses pontos, que Williams (1979) chama de recuo, para grupos que foram deixados
a margem por algum acontecimento hegemônico particular, que dão base para a construção de
novas formações. Estas, acabam reafirmando valores e hábitos tradicionais ou, na via oposta,
lutando para deixá-los de lado, recuperando áreas rejeitadas ou reformulando interpretações
seletivas e redutivas, a partir da incorporação de novos modos de agir, através de um viés con-
tra-hegemônico.
Assim, o estabelecimento das tradições e pensamentos dominantes não é apenas reali-
zado de modo linear pelas instituições formalmente identificáveis, mas, também pelas tensões
e relações, muitas vezes oblíquas, das novas formações, movimentos e tendências, com essas
instituições (WILLIAMS, 1979). Isso vai influenciar significativamente no desenvolvimento
de uma cultura, pois essas formações vão mesclar o que apregoam as instituições ou ainda,
proporem algo totalmente contrário a elas.
Historicamente estamos vindo de um passado patriarcal e marcadamente machista. No
contexto feminino atual, o que observamos são altos índices de violência, relacionamentos
abusivos, preconceitos, estereotipizações, culpabilização de vítimas, entre outros. Isso é refle-
xo de um modelo hegemônico e tradicional de gênero em que o feminino está associado a
delicadeza, pureza, histórias de princesas, comportamento recatado, obediência, serventia,
passividade, mundo privado. Ideias essas que, ao longo do tempo, são continuamente reforça-
41
das pela família, escola, igreja, instituições, mídias, até se tornarem hegemônicas. Ou seja, o
que estamos afirmando aqui é que as questões de gênero e os aspectos relacionados ao femi-
nino são inerentes ao processo de hegemonia. As mídias, nesse contexto, se valem do hege-
mônico e do tradicional para garantirem sua audiência e aceitação, mas, ao mesmo tempo se
atualizam e acompanham tendências e pautas do meio social em que estão inseridas, para se
manterem, darem continuidade e renovação a seus conteúdos. Podemos pensar, por exemplo,
que muitos produtos midiáticos que têm seu viés voltado à representação da figura feminina,
apelam para padrões hegemônicos e mais tradicionais de sua imagem, em um determinado
período. No entanto, essas construções se inserem em um contexto amplo de mediações que
vão forçar aberturas, rupturas e novas perspectivas representacionais, o que poderemos obser-
var a partir de nosso objeto empírico de estudo. É nesse espaço que vislumbramos a mescla e
alternância de estruturas de sentimento dominantes, residuais e emergentes, conforme propu-
nha Williams (1979) e que, por suas características, remetem às noções de tradição seletiva e
hegemonia, que utilizamos, neste trabalho, como tensionadores analíticos.
A análise cultural, com seu potencial explicativo, tem poder de embasar trabalhos, es-
pecialmente no campo da comunicação, já que consegue articular as particularidades de diver-
sas áreas de conhecimento e contextos sociais, políticos, econômicos, culturais, além de práti-
cas cotidianas. Isso é possível, pois o cerne da análise cultural está no materialismo cultural de
Raymond Williams (1979) que elege a linguagem e a comunicação como forças propulsoras e
formadoras de todos os processos produtivos e sociais. Assim, o materialismo cultural é tanto
considerado uma posição de ordem teórica e política como um método (MORAES, 2015).
Podemos dizer, então, que a análise da cultura busca compreender como se dão as in-
ter-relações de todas as práticas e padrões vividos e experimentados como um todo, em um
determinado contexto. Em sua teoria, o que Williams (2003) propõe é que entendamos a cul-
tura como um sistema de significados que organizam as diversas esferas da sociedade. Nesse
sistema, a linguagem tem papel central, pois é intrínseca a todos os elementos desse, já que
não existem apenas as instituições, obras e sistemas em si, mas necessariamente relacionam-
se a práticas e pensamentos que tem sua base na cultura. De acordo com Cevasco (2003), uma
teoria e análise da cultura foi de suma importância no contexto do surgimento dos estudos
culturais, quando os meios de comunicação de massa cresciam e ampliavam o seu alcance.
42
A partir de Williams (1958), com sua visão de cultura como ordinária, compreende-
mos que ela é algo comum, onipresente e fluida em todos os âmbitos e grupos sociais. Por
cultura, esse estudioso concebe os elementos da vida “comum”, ou seja, todos os aspectos da
vida humana, de formas variadas, expressas nas instituições, artes, educação e até nos meios
de comunicação. Ou seja, para o autor, “a cultura é de todos, em todas as sociedades e em
todos os modos de pensar” (WILLIAMS, 1958, p.2). Com este significado tão abrangente, ela
pode ser considerada como o retrato de uma sociedade porque é formada tanto pelos procedi-
mentos mais simples, usuais e cotidianos, tradicional e convencionalmente aprendidos pela
grande maioria, bem como todos os processos criativos e de significações individuais.
Com base nesse entendimento, para uma melhor compreensão das manifestações cul-
turais, Raymond Williams (2003) propõe uma classificação do termo a partir de três defini-
ções, seriam elas: a ideal, na qual a cultura é um processo de perfeição humana, cujo entendi-
mento e aceitação já é dado como fixo e absoluto e sua análise parte de uma descrição de or-
dem atemporal; a documental, que seriam as obras intelectuais e imaginativas que registram o
pensamento e a experiência intelectual do ser humano e sua análise considera a crítica não só
da obra em si, mas de todos os aspectos tradicionais e relações históricas do momento de sua
feitura; e a social, que trata de descrever a maneira de viver da sociedade, por meio das insti-
tuições, características e comportamentos específicos de grupos e sua análise requer uma in-
terpretação dos inter-relacionamentos de diversos modos de vida e de contextos variados.
As três definições de cultura tornam-se importantes para analisar a sociedade contem-
porânea, pois sua complexidade e pluralidade requer entendimentos provindos dessas três
vertentes do conceito e a análise, então, será uma mescla das teorias e tradições já estabeleci-
das e registradas, sendo interpeladas pelos novos valores e significados do meio social. Por
conseguinte, apesar de diferentes instâncias, devem ser compreendidas de forma conjunta,
pois, torna-se inaceitável, a partir de uma definição ideal, abstrair o processo de transforma-
43
ção do homem e da sociedade; da mesma forma, não é possível valorizar apenas os registros
documentais e desassociá-los do restante da vida em comunidade. Por fim, conceber os pro-
cessos de arte e aprendizado apenas como um subproduto da sociedade também não é coeren-
te. Então, Williams (2003, p. 53, tradução nossa) afirma que “[…] devemos tratar de ver o
processo como um todo e relacionar nossos estudos, se não explicitamente, ao menos através
de alguma referência, com a organização real e complexa”.
Além da definição geral do termo, Williams (2003) apresenta, também, três níveis de
cultura e que em nosso trabalho, terão importância singular para a compreensão das relações
entre as pautas feministas e as telenovelas brasileiras. A primeira delas é a “cultura vivida” de
um momento e lugar determinado, que é presencial e plenamente acessível somente a quem
vive naquele período, ou seja, se relaciona com as experiências sociais que estão sendo defi-
nidas e sentidas ativamente por aqueles sujeitos em determinado contexto. O segundo nível é
o da “cultura registrada”, que seria a materialização do vivido através de obras de arte, mu-
seus, vídeos, documentos, música, representações teatrais, linguagem e, também, os produtos
midiáticos. Neste estudo, compreendemos como cultura registrada, as telenovelas. Por fim,
como fator vinculante entre as anteriores, está a “cultura da tradição seletiva”, que funciona
como um mecanismo de resgate e incorporação de práticas do passado no presente. Williams
(2003) explica que a tradição é hoje uma seleção gradativa de elementos significativos e to-
mados como representativos de passados sobrepostos.
Cabe retomar o entendimento de que a tradição está intrinsecamente ligada a um grupo
dominante e, portanto, esta seletividade também obedecerá a esses padrões, que são, em últi-
ma instância, um sistema de mediações culturais. Focarmos nosso estudo apenas a este nível,
é incorrer em um erro de ignorarmos parte do processo histórico, do caráter social do momen-
to e das atividades de diferentes classes, que fazem parte da cultura como um todo e que nos
privariam de muitos elementos para inferências sobre um contexto mais amplo. O estudo des-
ta tradição exige um olhar crítico, já que envolve principalmente uma análise cognitiva a par-
tir de tudo que se sabe sobre ela, ou seja, “não apenas uma seleção, mas, também, uma inter-
pretação” (WILLIAMS, 2003, p. 61, tradução nossa). Porém, tal processo de “seleção” faz
com que alguns aspectos dessa cultura se tornem esquecidos. Williams (2003) adverte que,
mesmo que seja possível recuperá-los, eles permanecem abstratos. Em outras palavras, no
processo de relatar e interpretar escolhe-se o que deve ser lembrado e esquecido, conforme os
interesses que prevalecerem no momento da decisão.
Hoje, ao analisarmos, de forma mais profunda e abrangente, um produto cultural e, em
especial os midiáticos, temos que levar em conta as três definições e os três níveis de cultura
44
propostos pelo autor. Por exemplo, um programa televisivo, dependendo do contexto, da his-
tória e do local onde se passa, é produzido e exibido de formas diferentes, por mais que alguns
elementos sejam universais. Por outro lado, através do que é veiculado podemos ter uma visão
geral sobre a cultura vivida a partir da apresentação de alguns fatores selecionados para serem
representativos dessa realidade.
Tendo feito todas essas considerações, podemos afirmar que a análise cultural é uma
necessidade para a aplicação da teoria à prática, já que a dinâmica social e seus tensionamen-
tos serão o cenário cotidiano sobre o qual nos debruçamos neste estudo. É por isso que John-
son (2006, p. 29) destaca a importância de se partir de casos concretos, a fim de se discutir a
teoria de forma contínua e contextualizada ao fazer conexões entre argumentos teóricos e ex-
periências contemporâneas, assim, o projeto da análise cultural é “abstrair, descrever e recons-
tituir, em estudos concretos, as formas através das quais os seres humanos vivem, tornam-se
conscientes e se sustentam subjetivamente”.
Neste sentido, utilizamos a análise cultural como suporte analítico para desenvolvi-
mento de uma análise cultural-midiática, mais especificamente, voltado às telenovelas, onde
compreendemos os relacionamentos entre as formas de registro e os momentos socioculturais
correspondentes.
com base no texto televisivo, através da cultura que circula e que também é produzida
(STEFFEN, 2016).
Compreendendo as telenovelas como produtos culturais, elas também devem ser anali-
sadas a partir dessa perspectiva. Assim, com base na abordagem complexa e abrangente da
análise cultural de Williams (2003), objetivamos analisar as relações existentes entre as tele-
novelas brasileiras e o movimento feminista, através da representação das personagens femi-
ninas, em seis telenovelas das décadas de 1960 a 2010. Para isso, buscamos uma visão ampli-
ada que permitiu compreender essas relações e os meios sociais em que se inserem.
Com isso, apresentamos uma proposta metodológica que abrange as especificidades
do objeto pesquisado, relacionando as categorias fundamentais de nossa análise (Figura 3).
Para tanto, foi preciso aliar variadas estratégias para desdobrar as diferentes categorias apre-
sentadas e possibilitar uma melhor compreensão e apropriação destes para o estudo.
Nesta imagem é possível visualizar as principais categorias que são abordadas no de-
senvolver da investigação. Consideramos como fundamentais a cultura vivida e a cultura re-
gistrada, aqui representadas, respectivamente, pelo movimento feminista e telenovelas. Inse-
rimos esse debate em um contexto maior que é o das mediações, por acreditarmos permear
todas as instâncias do diagrama, sendo intrínseca ao fazer televisivo, bem como a qualquer
tipo de relação humana (WILLIAMS, 1979).
A primeira instância, relativa às culturas vividas, relaciona-se aos níveis de cultura
apresentados por Williams (2003) e, por ela, entende-se aquilo que é efetivamente vivido pe-
los sujeitos. A compreendemos, então, como o meio social em que se pauta a produção das
telenovelas. Ou seja, é o entorno do objeto estudado, o contexto em que se produz e se assiste,
já que, “as condições de produção incluem não apenas os meios materiais [...], mas um esto-
que de elementos culturais já existentes, extraídos do reservatório da cultura vivida ou dos
campos já públicos de discurso” (JOHNSON, 2006, p.56). Nesta pesquisa, a cultura vivida
será abordada principalmente com foco no movimento feminista. Deste ponto, vale destacar
que temos consciência de que, para estudá-la, principalmente quando falamos de janelas tem-
porais que perpassam nossa vivência, inevitavelmente torna-se necessário acessá-la por meio
de registros que, de acordo com Williams (2003), na medida do possível conseguem fornecer
ideias precisas sobre os padrões gerais de atividade que constituíram, em determinado tempo-
espaço, a cultura, os valores envolvidos e o acervo cultural proveniente de tais momentos.
Assim, para dar conta desta instância de forma mais adequada e fidedigna, é fundamental que
se busque por informações em várias fontes e vozes, que possam abordar, de forma diversa, o
referido período, evitando, ao máximo, perspectivas reducionistas ou unilaterais.
Com isso, o que buscamos não é representar uma história plena e linear do feminismo,
mas sim debater as constantes pressões e tensionamentos inerentes à cultura do vivido. É
oportuno observar que pelo tipo do objeto de estudo aqui abordado, a cultura vivida e a regis-
trada são bastante próximas, no entanto, isso não significa que elas sejam cópias exatas ou
reflexos imediatos uma da outra, mas ambas precisarão responder a pressões, tendências e
tensionamentos, e que, muitas vezes, as colocarão em lados contraditórios e que abrirão bre-
chas para o surgimento de pensamentos que rompem o hegemônico.
Assim, entendemos que incluir a cultura vivida em nosso protocolo analítico nos per-
mite complexificar a análise das telenovelas, pois, sem compreendemos os contextos históri-
cos, políticos, sociais e geográfico nos quais o feminismo foi efetivamente vivido pelos sujei-
tos, não teremos parâmetros para interpretarmos os registros do vivido. Poderemos, então,
visualizar à época dos fatos, quais acontecimentos estavam em voga, quais questões políticas
48
balizavam as discussões e pautavam o social, bem como de que forma os aspectos geográficos
tornaram-se influentes no desenvolvimento do feminismo no Brasil. Assim, seu estudo é pre-
visto na proposta metodológica e se desdobra no segundo capítulo da tese, a partir de revisão
bibliográfica e pesquisa de dados contemporâneos com foco no movimento feminista.
Já as telenovelas, por sua vez, representam a instância da cultura registrada e aqui, as
entendemos como produtos culturais que registram e representam um recorte do vivido soci-
almente em determinado período e espaço, como destacado anteriormente. Sendo um produto
midiático, sua base assenta-se sobre a dimensão textual e é a partir dela, por meio de diversos
recursos, que se produzem os significados: a linguagem verbal, sonora, imagética, enquadra-
mentos, montagens, sonorizações, entre outros. É importante destacar que as telenovelas, se
constituem a partir de variadas mediações desenvolvidas no interior de seu entorno social, ,
com o qual fazem trocas constantes, também se realizam a partir de fluxos políticos e econô-
micos de grandes empresas e organizações. Sendo assim, também terão sua construção pauta-
da pelas lógicas comerciais desses locais.
O estudo da cultura registrada está previsto para o terceiro capítulo deste trabalho. Ne-
le abordaremos questões relacionadas às telenovelas e ao modo como representam persona-
gens femininas e suas pautas. Traremos aspectos inerentes ao fazer televisivo e seus desdo-
bramentos materiais e do processo de produção, a partir do contexto em que foram produzi-
das, acontecimentos históricos de sua época, fatos marcantes que podem ter relação com a
construção do enredo. Além disso, podem ser trazidos, também, elementos mais técnicos que
ajudam a compor a história, dados de audiência, lógicas econômicas que regem a produção
televisiva bem como normativas institucionais das empresas produtoras do conteúdo. Ainda,
apresentaremos as telenovelas como importante vetor cultural e de representações no contexto
brasileiro, problematizando-as, para além de produtos meramente voltados ao público femini-
no.
A partir desse entendimento, para estudar o texto das telenovelas, utilizamos, como
procedimento auxiliar, a análise textual de Casetti e Chio (1999), que compreendem os textos
como elementos complexos, em que são reconhecidas as realizações linguísticas e comunica-
tivas, ou seja, são “construções propriamente ditas, que trabalham a partir de material simbó-
lico [...], obedecem a regras de composição específicas [...] e produzem determinados efeitos
de sentido” (CASETTI E CHIO, 1999, p. 249, tradução nossa).
A análise textual, não busca por unidades isoladas, mas pretende compreender as rela-
ções entre essas unidades e os seus significados. Os textos, principalmente os audiovisuais,
carregam consigo características complexas, formando “universos próprios” de análise, que
49
congregam diferentes aspectos de uma realidade e de um contexto em que estão inseridos. Por
isso a importância de pensar a relação entre os diversos elementos que os constituem. Desta
forma, de acordo com Casetti e Chio (1999, p.250, tradução nossa), os textos “atribuem regu-
larmente uma valorização aos objetos, aos comportamentos, as situações, etc., e, a partir daí,
lhes dão pesos diferentes, implícita ou explicitamente”.
Ainda, com a análise textual é possível ir além do próprio texto, problematizando ati-
tudes e valores de quem os cria, revelando o modo como algo é proposto e apresentado a uma
audiência. Isto é, se por um lado a análise textual atenta para os elementos concretos do texto
e sua construção, por outro também atende aos modos interpretativos desses textos e seus sig-
nificados, valorizando os temas de que se fala e as formas pelos quais são enunciados. Busca
compreender a televisão a partir de sua inserção social e cultural e com isto, “analisar o modo
em que a televisão produz sentido, assim como as regras (inclusive as implícitas) as quais se
remetem os produtores e os consumidores dos programas” (CASETTI e CHIO,1999, p. 260,
tradução nossa).
Utilizamos, então, o esquema de leitura proposto pelos autores, que se estrutura como
um guia para organizar e compreender o objeto a ser analisado e suas características de acordo
com diversas categorias. Cabe destacar que esse esquema não é um instrumento pronto e fe-
chado. Com base nisso, analisamos as telenovelas a partir de alguns aspectos principais. Sen-
do assim, o esquema proposto para este trabalho é dividido em três categorias:
a) Enredos: relaciona-se à história apresentada na telenovela, o fio condutor das narrati-
vas, o tema central, as problemáticas enfrentadas pelos sujeitos e acontecimentos marcantes,
bem como seus desdobramentos;
b) Personagens: são os sujeitos da telenovela, características, formas como se apresen-
tam no tempo e espaço, seu comportamento em relação aos demais personagens, gestos, pos-
turas e atitudes, que auxiliam a compor os textos verbais;
c) Textos: relacionam-se às falas dos personagens, estilo da linguagem, conteúdo do dis-
curso, seu tratamento e valorização explícita ou implícita, como juízos verbais pronunciados
de/sobre sujeitos.
A partir da análise textual foi possível, então, compreender de que forma as represen-
tações femininas foram construídas ao longo de seis décadas (1960-2010) nas telenovelas
brasileiras. No entanto, o enfoque recai sobre as intersecções entre as duas esferas apresenta-
das anteriormente – cultura vivida, através do movimento feminista e a cultura registrada, a
partir das telenovelas. Estas duas esferas se relacionam através da representação das pautas
50
que são perpassadas pelo pensamento hegemônico e tradições vigentes, elementos que serão
aqui chamados de tensionadores analíticos.
A análise textual e o estudo da representação das pautas feministas, através das rela-
ções entre a cultura vivida e a cultura registrada serão abordados no quarto capítulo desse tra-
balho.
26
Desde 1965 até o ano de 2000 as telenovelas da Rede Globo eram exibidas as 20 horas, após o Jornal Nacio-
nal. No ano de 2000, quando a Laços de Família foi exibida, o Ministério da Justiça classificou a obra como
imprópria para menores de quatorze anos, o que fez com que o horário de exibição se alterasse para 21 horas.
27
Manuela Dias é autora da telenovela Amor de Mãe, que teve sua estreia em novembro de 2019 e, em abril de
2020, exibição interrompida devido à pandemia de Covid-19, sendo assim, ela não integra nosso corpus de pes-
quisa. Amor de Mãe é a primeira telenovela da autora.
51
principalmente, como estratégia para observarmos de que forma as temáticas feministas são
trabalhadas nesses produtos culturais pela ótica das mulheres. Partimos, então, para uma pes-
quisa sobre cada uma das 23 telenovelas escritas por elas, buscando informações sobre seu
enredo, história e trama principal, para que fosse construída uma sinopse de cada uma (Apên-
dice C). Por ainda estar em exibição, não nos aprofundamentos em Amor de Mãe (2019), a 24ª
telenovela de autoria feminina.
Para todas essas 23, realizamos uma análise geral de suas lógicas de produção, identi-
ficando a existência ou não das temáticas feministas e quais são elas em cada uma das produ-
ções. Para esta etapa, baseamo-nos principalmente nos arquivos da Memória Globo (2020),
Xavier (2007, 2019, 2020), além do site Observatório da TV (2019). Utilizamos, também, as
informações disponibilizadas nas plataformas Globoplay e Globosat Play. Tal recorte analíti-
co foi feito por décadas, para que já conseguíssemos relacionar com os acontecimentos mais
amplos do contexto social de cada período. Dos resultados obtidos a partir dessa primeira aná-
lise exploratória, partimos para um aprofundamento da pesquisa a partir de seis telenovelas,
uma de cada década, escolhidas com base nos resultados da observação anterior e que as tor-
naram representativas do universo que desejamos abordar, auxiliando para que alcançássemos
os objetivos propostos e pudéssemos responder à problemática deste processo investigativo.
Sendo assim, a primeira telenovela analisada por nós é Véu de Noiva, exibida entre 10
de novembro de 1969 e 27 de junho de 1970, às 20 horas, na Rede Globo, contabilizando 221
capítulos em preto e branco. De autoria de Janete Clair, foi o primeiro grande sucesso televi-
sivo da autora, que se inspirou em Vende-se um Véu de Noiva, radionovela de sua autoria. Véu
de Noiva marcou época por sua proposta diferenciar-se das demais produções que vinham
sendo feitas até então. Buscou por um enredo mais moderno, com histórias contemporâneas e
diálogos coloquiais que se aproximavam da realidade brasileira do período, trazendo para o
debate conflitos familiares e diferenças sociais. Foi a primeira a contar com tramas paralelas.
Assim como as demais telenovelas da década de 1960, grande parte dos arquivos de Véu de
Noiva se perderam em algum dos incêndios na Rede Globo (1971 ou 1976). Existem apenas
alguns registros das cenas, fotografias ou entrevistas com os atores, os quais utilizamos para a
análise. Mesmo com essa dificuldade, decidimos manter essa telenovela devido à importância
que teve no período, sendo bem-aceita pela crítica e com altos índices de audiência.
Dos anos 1970, analisamos Pecado Capital, exibida entre 24 de novembro de 1975 e 4
de junho de 1976, totalizando 167 capítulos, com autoria de Janete Clair. Foi a primeira a ser
exibida em cores, no horário. Em 4 de fevereiro de 1980 foi reapresentada em um compacto
de 1 hora e 30 minutos. Em 1998 foi gravada e exibida uma nova versão, reescrita por Glória
52
Perez. Em julho de 2014, a versão de 1975 da telenovela foi lançada em um box de DVDs, da
Globo Marcas. Foi esse formato que utilizamos para nossa análise, já que a telenovela não
está disponível na plataforma Globoplay. A partir de Pecado Capital consolidou-se o chama-
do “modelo janetiano” de produção, caracterizado por tramas urbanas, dicotomias entre clas-
ses e relacionamentos amorosos conturbados. Apesar de seu sucesso, Pecado Capital não era
a novela prevista para ser veiculada na época. O planejamento da emissora é que fosse ao ar
Roque Santeiro, no entanto, pouco antes da estreia, ela foi vetada pela censura.
Coração Alado é a terceira trama que analisamos. Foi exibida entre 11 de agosto de
1980 e 14 de março de 1981, em 185 capítulos, escrita, também, por Janete Clair. Teve cenas
gravadas no agreste de Pernambuco, em Nova York e no Rio de Janeiro. Coração Alado não
foi um grande sucesso, pelo contrário, recebeu muitas críticas pela forma como abordou al-
gumas temáticas consideradas tabus para o período. A crítica chamava a novela de “sem no-
ção”, “besteirol”, grosseira, feia, o que fez com que não voltasse a ser exibida, tampouco dis-
ponibilizada nas plataformas Globo. Seus capítulos estão disponíveis através do Youtube, no
canal Telememória28.
Já da década de 1990, analisamos Explode Coração, que foi exibida entre 6 de no-
vembro de 1995 a 4 de maio de 1996, em 155 capítulos. Teve autoria de Gloria Perez e foi a
primeira a ser produzida completamente no Projac, atuais Estúdios Globo, no Rio de Janeiro.
De grande sucesso no período, obteve bons índices de audiência e foi reprisada no canal Viva,
integrante da Globosat, no ano de 2018. Tivemos acesso a história através da plataforma Glo-
bosat Play29. Foi exportada para países como Bolívia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Ni-
carágua, Paraguai, Peru, Portugal, República Dominicana, Romênia, Uruguai, Venezuela,
entre outros.
No ano de 2005 foi ao ar América, entre 14 de março a 5 de novembro daquele ano,
contabilizando 203 capítulos, nossa quinta telenovela analisada. Teve autoria de Glória Perez
e alcançou altos índices de audiência ao mesmo tempo em que sofreu várias críticas em rela-
ção as temáticas abordadas e a um suposto incentivo para brasileiros cruzarem ilegalmente a
fronteira americana. Até hoje América não foi reprisada e os capítulos estão disponíveis no
Globoplay.
Por fim, analisamos A Força do Querer, de Glória Perez, exibida entre 3 de abril e 20
de outubro de 2017, contabilizando 171 capítulos. Foi eleita pela Associação Paulista de Crí-
28
Disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UCddLnG92HKPPY5XFWAE0PKg> Acesso em 26 de
janeiro de 2020.
29
Disponível em: < https://globosatplay.globo.com/viva/explode-coracao/ > Acesso em 27 de outubro de 2019.
53
ticos de Arte a melhor telenovela daquele ano e foi premiada com o Troféu Imprensa 2017.
Juliana Paes recebeu o prêmio de melhor atriz, pelo papel de Bibi Perigosa. Conforme a Me-
mória Globo (2020), trata-se de uma novela cuja narrativa se estrutura a partir dos quereres,
dos desejos, escolhas e buscas dos personagens.
54
55
ENREDO
FEMINISMO EM PAUTA
Nos anos 1980, Michelle Perrot se perguntava se era possível uma história das mulhe-
res. A autora francesa e, hoje, uma das principais referências sobre o tema, relata que, no ano
de 1984 foi convidada para abrir um curso sobre história das mulheres, o qual intitulou de
“Uma história das mulheres é possível?”. A interrogação já dava o tom do que (não) existia na
época. Iniciou-se, a partir daí, um trabalho de resgate cronológico da figura delas, que por
muito tempo, foi ocultada, apagada ou omitida.
56
“Entrar para a história”, no entanto, não diz respeito apenas ao registro nos livros, mas
é sobre identidades, representações, lugares de fala e papéis sociais. Para Joan Scott (1994) é
sobre a forma como os sexos se organizavam e dividiam tarefas e funções e, sendo assim, é
uma das grandes responsáveis pela produção sobre a diferença sexual. Com esse mesmo pen-
samento, Joana Maria Pedro (2005) afirma que uma narrativa nunca é neutra e que narrar, por
longos períodos, fatos em que apenas homens estiveram envolvidos, construiu, no presente, as
desigualdades de gênero. “A história, neste caso, é uma narrativa sobre o sexo masculino, e
constitui o gênero ao definir que somente, ou principalmente, os homens fazem história”
(PEDRO, 2005, p.87).
Essa narrativa da humanidade, convém destacar, foi - e ainda é – majoritariamente
masculina, que apresentava um sujeito genérico “o homem”, como atuante da evolução. Eles
eram grandes heróis, reis, líderes, estavam a frente de batalhas e enfrentamentos, enquanto as
mulheres nem eram citadas no texto. De acordo com Pedro (2005, p. 83), essa forma de es-
crever, costumeiramente chamada de “positivista”, ou às vezes “empirista”, dava destaque
para personagens masculinos que participavam dos governos e/ou de guerras. Entrar para a
história, de acordo com a referida autora é, também, uma forma de imortalidade e prestígio.
Mas, a desigualdade nunca foi linear e nem da mesma forma no mundo. Ao voltarmos
no tempo, relembramos que a sociedade humana começou com pequenos grupos nômades de
caçadores e coletores. Nesse período, conhecido como a Idade da Pedra, ambos os sexos,
mesmo que com trabalhos distintos, contribuíam com bens econômicos importantes para o
grupo. A divisão do trabalho era natural, o homem caçava e pescava, a mulher coletava ali-
mentos, os preparava e cuidava da família, tarefas essas consideradas de igual valor e respon-
sabilidade. De acordo com Heleieth Saffioti (2015) essa separação não estaria ligada a uma
valoração de competências, mas sim, relacionada ao cotidiano e à importância da continuida-
de familiar, pois caso os bebês chorassem, poderiam espantar a caça, caso a mãe fosse caçar,
o bebê poderia ficar sem alimentos. Além disso, a coleta é uma atividade segura, acontece
diariamente, a caça é incerta e pode resultar em grandes quantidades de alimentos ou nenhu-
ma. “A rigor, então, a sobrevivência da humanidade, [...] foi assegurada pelo trabalho das
mulheres” (SAFFIOTI, 2015, p. 61).
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mulheres não possuíam. Na Mesopotâmia, por exemplo, elas eram consideradas inferiores e
sujeitas ao controle masculino. Lá, foram encontradas leis que ditavam papéis específicos
para homens e mulheres. No Código de Hamurabi, criado por volta do século XVIII a.C.,
consta que “uma mulher que não tenha sido uma dona de casa cuidadosa, tenha vadiado, ne-
gligenciado sua casa e depreciado seu marido, deve ser jogada na água” (STEARNS, 2015).
Já no Egito Antigo, as mulheres de classes altas eram valorizadas com base em sua beleza,
destacada nas artes e pinturas. Além disso, contava, também, com a existência de várias rai-
nhas, como Nefertiti e Cleópatra, que, de certo modo, marcam a importância e o lugar de des-
taque que as mulheres (nobres) poderiam obter. Em Roma, a sociedade da época impunha
duras punições para as mulheres, sendo o marido considerado o juiz da esposa. Todavia, eram
comuns, também, a imagens de deusas poderosas e ativas, como Vênus.
No entanto, com o passar do tempo, a desigualdade entre homens e mulheres tendeu a
crescer. A lei judaica, surgida após o Código de Hamurabi, foi ainda mais rígida com as mu-
lheres, delimitando seu papel ao espaço privado. Na China, durante a dinastia Tang (meados
do século X), criou-se o costume de quebrar e enfaixar os pés das meninas. Isso era feito co-
mo sinal de beleza, delicadeza e fortuna. Ainda, neste país, o homem deveria ser considerado
o imperador da família, ou seja, deveria ser obedecido sem questionamentos. Ademais, para
muitas mulheres, de variadas culturas, era proibido possuir propriedade de forma independen-
te, se não com a tutela do pai ou marido. O mesmo valia para o recebimento de heranças. A
sexualidade era regulada e seu espaço se restringia ao lar. Ou seja, culturalmente, o patriarca-
lismo enfatiza a inferioridade feminina, restringindo as mulheres ao doméstico, negando direi-
tos e as privando da vida pública.
De acordo com Stearns (2015), ao fim da Idade Antiga, em 476 d.C., com a grande
troca cultural, política, religiosa e econômica, decorrente dos contatos entre os países, que se
intensificava com a venda de produtos e mercadorias, abre-se espaço para novas formações
sociais. Assim, ao passo que os grupos populacionais desenvolveram seus contatos, os siste-
mas e as definições de gênero também ganharam forma. Deve-se ressaltar que não há a inten-
ção, neste trabalho, de realizar uma retomada completa da história das mulheres ao redor do
mundo, uma vez que teríamos que citá-las nos mais variados países e contextos. No entanto,
neste momento, temos a necessidade de realizar um recorte que indique o caminho que será
percorrido. Seguiremos através de uma história de base ocidental, com foco naqueles elemen-
tos que, de certo modo, possuam referências mais diretas nos acontecimentos e desdobramen-
tos do feminismo contemporâneo, no Brasil.
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Ao longo da Idade Média, a partir de 476 d.C. até o século XV, ainda é possível notar
forte influência da legislação romana em diversas sociedades. É nesse período que as mulhe-
res começam a ter educação formal, principalmente nos conventos. Aquelas que pertenciam à
Ordem das Clarissas, por exemplo, fundada em 1212 na Itália, aprendiam a ler e escrever
através da Bíblia. Para Nikelen Witter (2019), até então, o conhecimento passado às mulheres
era aquele que os homens decidiam que seria ensinado, era a única verdade. A partir do mo-
mento em que começam a ler, começam, também, a questionar os ensinamentos lá presentes,
já que se abrem novas possibilidades de interpretação do texto religioso. Com isso, não causa
estranhamento que o crescente e inevitável movimento pela educação formal das mulheres
tente ser regulado através das instituições religiosas, por meio dos conventos e da clausura,
para que o aprendizado ainda ficasse restrito a um pequeno grupo e que fosse minimamente
difundido às demais mulheres, para quem a leitura e a escrita ainda não estavam permitidas.
De acordo com a referida autora, é durante a passagem da Idade Média para o Estado Moder-
no que se cunha o termo feminino, que significa “fé mínima”, ou seja, que as mulheres teriam
menos condições de chegar a Deus.
Na contramão desse cenário, no ano de 1405, ao fim da Idade Média, a poeta italiana
Christine de Pisan escreve “A Cidade das Damas”, considerado um dos marcos do feminismo
pré-moderno. Na obra, compreendida como a primeira a questionar a supremacia masculina, a
autora buscou reconstruir o papel feminino, através de exemplos de figuras históricas, lendá-
rias, mitológicas, de grandes virtudes, que deram prova da capacidade intelectual e física das
mulheres (DEPLAGNE, 2013). Para Pisan (apud BEAUVOIR, 1970, p.132), elas deveriam
ser educadas e instruídas da mesma forma que os meninos, pois, “se fosse costume pôr as
meninas na escola e normalmente se lhes ensinassem as ciências como o fazem com os meni-
nos, elas aprenderiam tão perfeitamente e entenderiam as sutilezas de todas as artes e ciências
como eles entendem”. A obra de Pisan já abordava temas como educação, igualdade e dife-
rença entre os sexos e estupro.
Nesse período, começa a crescer a quantidade de obras, principalmente literárias, que
questionam a imagem da mulher durante o final da Idade Média. Para Éliane Viennot (2004,
p.47, tradução nossa), “pela primeira vez foi enunciada uma verdade a qual falsos raciocínios
e zombarias durante séculos tentaram ocultar: a cultura, e não a natureza, é o que se está na
origem da inferioridade das mulheres”. É nesse cenário que ganha força na França e se espa-
lha por toda a Europa, entre a elite intelectual, a Querelle des femmes, um enfrentamento polí-
tico-social, com base no debate literário, que tinha como objetivo a valoração da figura femi-
nina e o incentivo à participação das mulheres no mundo público. Conforme Luciana Deplag-
60
ne (2013), a Querelle se estendeu até o século XVIII e contou com a participação de várias
escritoras que buscavam problematizar obras de teor misógino, defendiam a emancipação
feminina e a desconstrução do patriarcalismo.
Evidentemente, essas obras atacavam a ordem social estabelecida e iam de encontro ao
que pregava a Igreja, questionando muitos de seus mandamentos. Não causa estranhamento
que, nesse mesmo período, fim da Idade Média e início do Estado Moderno, ganhe força a
Inquisição, que já atuava desde o final do século XII, período em que a Igreja Católica estava
em crise e criou tribunais religiosos que perseguiam, julgavam e puniam todos aqueles que
eram contra seus dogmas ou que poderiam representar uma ameaça a ela. As mulheres, que já
eram alvo de discriminação por muito tempo, foram, de imediato, foco, também, da Inquisi-
ção.
No ano de 1487 é publicado o Malleus Maleficarum, um manual de reconhecimento e
caça às bruxas. O livro foi amplamente utilizado pelos inquisidores por aproximadamente 250
anos, até o fim da “Santa” Inquisição. Suas teses centrais baseavam-se na ideia de que o de-
mônio procura fazer o máximo de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número
possível de almas e faz isso através do corpo e da manipulação dos atos sexuais. As mulheres,
por estarem essencialmente ligadas à sexualidade, se tornam mais passíveis para a apropriação
do demônio, que “entra em seus corpos” através da prática sexual e do prazer (MURARO,
2015). Além disso, o livro define, também, que elas, por serem indisciplinadas e mais fracas
que os homens, na mente e no corpo, se entregariam facilmente à bruxaria. Para Rose Marie
Muraro (2015, p. 95), “o Malleus Maleficarum se torna a testemunha mais importante da es-
trutura do patriarcado e de como essa estrutura funciona concretamente sobre a repressão da
mulher e do prazer”.
No catolicismo, a relação com a mulher nunca foi igualitária, desde o mito da criação,
em que Eva comeu do fruto proibido, introduzindo na terra o pecado, a desgraça e a morte.
No entanto, essa tendência atingiu seu ápice quando o sexo feminino foi reconhecido como
agente satânico. De acordo com Juliana Pereira (2011), “nenhum tratado havia sido tão enfáti-
co a esse respeito quanto o Malleus Maleficarum. Essa obra pode ser considerada como marco
da demonização do sexo feminino”. Ou seja, a caça às bruxas tem foco extremamente misógi-
no na caça das mulheres.
É oportuno, observar, contudo, que o considerado bruxaria, era a capacidade de desen-
cadear todos os males, especialmente a impotência masculina (MURARO, 2015), mas tam-
bém a impossibilidade de livrar-se de paixões, realização de abortos, oferendas, estrago das
colheitas, doenças nos animais, fazer uso medicinal de plantas, curandeirismo, trato de enfer-
61
midades a base de ervas, possuir animais de estimação, entre outros ritos que estariam fora
das normas da Igreja. É cabível essa observação, pois, de acordo com Silvia Federici (2015),
na passagem da Idade Média para a época Moderna, o capitalismo estava em crescimento e,
para isso, precisava continuamente degradar a posição que as mulheres tinham em sociedade,
caso contrário, o sistema não funcionava. A autora explica que a economia, nesse período,
estava extremamente enfraquecida após a peste negra e as guerras, o planejamento para a sua
reconstrução, entre os grupos camponeses, baseava-se em um sistema comunal, de confiança
e cuidado entre os membros. Para acabar com essa estrutura, além da centralização do estado,
torna-se necessário destruir a confiança das pessoas de determinada comunidade e isso é feito
através da figura da bruxa.
Cabe relembrar ainda que, até então, o único cuidado médico que o povo tinha era
através das curandeiras. Muraro (2015, p. 80) destaca que as mulheres camponesas não ti-
nham como cuidar de sua saúde se não através de outras mulheres, as curandeiras, que eram
“cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram também as melhores anato-
mistas do seu tempo. Eram as parteiras que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e
as médicas populares para todas as doenças”. A partir da desconfiança gerada na sua imagem,
se elas não curassem as doenças ou se alguém da aldeia morresse, a culpa seria atribuída a ela,
como feiticeira. Junta-se a isso, o surgimento, na Europa, das primeiras faculdades de medici-
na, que se colocavam contra qualquer prática de “magia” para a cura de enfermidades. Assim,
para Federici (2015, p. 297-298),
[...] a caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos
homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e
sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capita-
lista, redefinindo assim os principais elementos da reprodução social.
Além disso, outra observação importante a se fazer sobre o período é que, todas as
execuções aconteciam sob tortura e em praça pública, onde se liam as acusações às mulheres.
Nesse momento da história, no entanto, muitas das chamadas bruxas não sabiam, sequer ler, o
que tornava extremamente difícil a existência de livros ou manuais de magia. Ou seja, muito
do que se sabe, atualmente, é criação dos seus executores - homens - oriundas de depoimentos
de testemunhas ou supostas confissões mediante tortura.
Outro fato marcante ainda do período Moderno e que começa a delinear o pensamento
feminista, é a Revolução Inglesa, quando, em 1649, o rei Carlos I foi decapitado por revoluci-
onários puritanos. Esse fato leva a escritora Mary Astell, considerada a primeira feminista
62
inglesa, a questionar, no ano de 1694, na obra A Serious Proposal to the Ladies, for the Ad-
vancement of Their True and Greatest Interest, que, se é possível destituir o poder do rei,
porque não é possível destituir o poder do marido? Além disso, defendia a educação formal
para as mulheres, criticando o casamento, principalmente, quando uma menina muito jovem
se casava com um homem mais velho, porque isso diminuía as possibilidades de reação contra
práticas de violência. Defendia, também o ensino universitário para as mulheres, o que só irá
acontecer na segunda metade do século XIX.
Esse tipo de pensamento começava a se tornar crescente e fez com que a luta das mu-
lheres fossem um dos estopins para a Revolução Francesa, em 1789. Um dos grandes pensa-
dores influentes do período foi o filósofo Jean-Jacques Rousseau, cujas ideias sobre direitos
humanos e democracia inspiraram a revolução. Segundo Marta Breen (2019), ele argumenta-
va contra o autoritarismo escolar, mas também defendia a importância de criar meninos e me-
ninas de forma distinta, já que compreendia homens e mulheres como seres fundamentalmen-
te diferentes e as meninas tinham, como função primordial, servir a eles.
A luta feminina, então se estabelece justamente para que se tornassem cidadãs. E essa
passa a ser a grande batalha das primeiras mulheres iluministas, a busca por educação e igual-
dade para além do sujeito universal “homem”. Olympe de Gouges, teatróloga do período pré-
revolução, começa a questionar, em suas peças, sobre a igualdade entre homens e mulheres e,
assim, em 1791, escreve a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, como forma de
contestação à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita no ano da Revolução.
No ano seguinte, 1792, a britânica Mary Wollstonecraft, considerada a mãe do femi-
nismo, redige “Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher”, em que ataca o pensamento de
Rousseau e argumenta que as mulheres devem ter acesso à educação formal, sendo essenciais
à nação, podendo, assim, além de mães, esposas, “enfeites e propriedades”, serem “seres raci-
onais e pensantes”. O argumento de Wollstonecraft vai ao encontro do pensamento de que as
diferenças entre homens e mulheres estão na cultura. Para a pensadora, as mulheres se interes-
sam mais por beleza ou bordados, do que por ciência e política, por exemplo, porque foram
ensinadas dessa forma. Se meninos e meninas recebessem uma educação igualitária, todos
seriam cidadãos igualmente capazes em diferentes esferas da sociedade (BREEN, 2019).
Além disso, é ela quem falará pela primeira vez em direitos das mulheres. Para a autora, to-
dos nós somos humanos, ser homem ou mulher é uma contingência posterior a isso, assim,
quando falamos em direitos humanos, os direitos das mulheres deverão estar incluídos. Outra
problematização apresentada por Wollstonecraft, é o recorte de classes, já que afirma que me-
ninas mais pobres, quanto menos educadas, mais sensíveis ficavam a serem exploradas e so-
63
frerem alguma forma de assédio. Se recebessem uma melhor educação, poderiam galgar me-
lhores posições. Os eixos do programa político que ela apresenta na lista de Direitos da Mu-
lher será incorporada como programa político do feminismo: educação das mulheres, direito
ao voto, direito à cidadania, igualdade no casamento, na partilha e gerência de bens. Passados
quase 230 anos deste manifesto, tais reivindicações permanecem atuais. De acordo com dados
do Plan International Brasil30 (2019), as configurações atuais de gênero, no país, fazem com
que meninas de 10 a 14 anos passem 50% mais tempo se dedicando a trabalhos domésticos
em comparação a meninos na mesma faixa etária e, por esse motivo, têm menos tempo para
brincar e estudar. Além disso, 5 milhões de meninas de 15 a 19 anos já foram estupradas ou
violentadas sexualmente alguma vez na vida, assim, estão mais vulneráveis à violência sexual
do que os meninos. Também, segundo o relatório, o Brasil é o quarto país com maior índice
de casamento infantil no mundo, que traz graves consequências como gravidez na adolescên-
cia, evasão escolar, falta de formação profissional e violência doméstica.
Entretanto, cabe observar que, mesmo com esse impulso inicial e as diversas ações
que daí decorreram, o movimento feminista só se estabelece como tal, muito mais tarde, já no
século XIX, relacionado a lutas trabalhistas, por direitos individuais e coletivos e no cenário
político. Essas lutas, com raízes americanas e europeias, também são conhecidas como ondas
feministas e dividem-se em quatro etapas. Falaremos das ondas apenas como um recurso para
o relato da história, assumindo que não dão conta de toda a pluralidade do movimento e de
todas as suas vertentes.
A primeira delas, que se desenvolveu a partir do século XIX, contou com diversas
ações pelo direito das mulheres e tem como ponto de partida um congresso realizado na Ingla-
terra, no ano de 1840, contra a escravidão. Para o evento, foi enviada uma delegação america-
na, composta por mulheres envolvidas com o movimento de liberdade, no entanto, elas foram
proibidas de se manifestar. Como resposta a essa situação, Lucretia Mott e Elizabeth Stanton,
abolicionistas, redigem um documento baseado na Declaração de Independência dos Estados
Unidos de 1776, alegando que crianças, independentemente do sexo, devem ser criadas da
mesma forma, que as meninas devem ter acesso à educação e as mulheres deveriam ter o di-
reito de administrar sua própria renda e se divorciar. Esse debate nasce junto da luta contra a
escravidão, a partir da associação de que todas as mulheres, de certa forma, eram escravas.
No ano de 1848 o texto é apresentado durante uma conferência abolicionista em Sene-
ca Falls e essa é considerada a primeira convenção do movimento feminista e o marco inicial
30
Disponível em: <https://plan.org.br/> Acesso em 02 de maio de 2020.
64
Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é
preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os
melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por
cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim!
Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei juntei palha nos celeiros e homem ne-
nhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer
tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chico-
tadas! E não sou mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escra-
vos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E
não sou uma mulher?32
O que Sojourner Truth questionava sobre o feminismo, era o seu direcionamento ape-
nas para mulheres brancas e de classe média alta, que lutavam pelo direito de trabalhar e vo-
tar, quando ela, mulher negra, sempre trabalhou, sem nenhum direito, escravizada. De acordo
31
Nos Estados Unidos, as mulheres conquistaram direito ao voto no ano de 1920. No Brasil, será apenas em
1932.
32
Trecho do discurso de Sojourner Truth na Convenção dos Direitos da Mulher. Discurso completo disponível
em: <https://medium.com/revista-subjetiva/lute-como-uma-garota-sojourner-truth-db23354fac70 > Acesso em
21 de junho de 2019.
65
com Ribeiro (2017, p. 24), “o que a voz de Sojourner traz, além de inquietações e necessidade
de existir, é evidenciar o que as vozes esquecidas pelo feminismo hegemônico já falavam há
muito tempo”. Assim, a importância da fala de Truth está em marcar, ainda no século XIX,
que existem várias possibilidades e formas de ser mulher, que nem todas são iguais ou vivem
nas mesmas condições, pensamento esse que só ganhará força na chamada terceira onda, por
volta dos anos 1990. Ou seja, o discurso já evidencia o grande dilema que o feminismo dos
anos seguintes enfrentará: a universalização da categoria mulher.
Ainda assim, a grande marca do feminismo do século XIX é a luta pelo sufrágio e essa
primeira onda se estendeu até o final da 2ª Guerra Mundial, sendo caracterizada pela reivindi-
cação por direitos iguais entre homens e mulheres, de cidadania, educação, propriedade, he-
rança, divórcio, voto, além de direito ao trabalho remunerado para elas – mulheres brancas.
De acordo com Guacira Louro (1997), essas manifestações ganharam visibilidade a partir do
sufragismo inglês e norte-americano e se espalharam por diversos países. A partir da década
de 1880, aumentou, no mundo todo, a pressão para que as mulheres pudessem votar, e foram
inúmeras as associações que surgiram nesse período. Elas, já com mais liberdade e apoio,
viajavam para congressos, onde trocavam experiências e criavam redes internacionais con-
clamando ao voto feminino (BREEN, 2019). O primeiro país a garantir o sufrágio feminino
foi a Nova Zelândia, em 1893.
Cabe destacar, no entanto, que, de acordo com Witter (2019), dentro do feminismo do
período, também haviam diferenças táticas que acabaram por auxiliar na demora da conquista
ao voto e isso revela principalmente através das diferenças entre as sufragistas e as sufragetes.
Para a referida autora, as sufragistas acreditavam que conseguiriam o voto através da raciona-
lidade masculina, que os homens perceberiam naturalmente a necessidade para o voto das
mulheres, participavam de passeatas, reuniões e encontros na defesa de seus interesses. Breen
(2019) destaca que esse grupo teve dificuldade em alcançar seus ideais, já que esbarrava na
elite conservadora política. Já as sufragetes utilizavam táticas de guerrilha e têm como refe-
rência Emmeline Pankhurst, ex-sufragista, que abandonou a abordagem moderada para uma
atitude mais combativa. Entre suas ações, as sufragetes, realizavam incêndios em caixas de
correio, quebravam vitrines de lojas, se acorrentavam em grades, realizavam ataques princi-
palmente em locais públicos que só eram abertos aos homens, como clubes de Golf, além do
bombardeio a residência do futuro primeiro ministro inglês, David Lloyd George, contrário ao
voto feminino. Essas atitudes, evidentemente, chocaram muitos, já que esse tipo de compor-
tamento nunca esteve ligado à “natureza feminina”. Além disso, essas ações eram, também,
combatidas por muitas feministas sufragistas, que consideravam a radicalidade uma forma de
66
33
Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/patrocinado/ortep/2019/05/03/noticia-patrocinado-
ortep,1050901/assedio-no-trabalho-e-crime-que-pode-render-ate-dois-anos-de-prisao.shtml> Acesso em 30 de
abril de 2020.
67
A partir de 1911 o dia 8 de março foi comemorado em diversos países, levando milhares de
mulheres às ruas como forma de protesto por sua condição34. No ano de 1919, a Conferência
do Conselho Feminino da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovou a resolução
de salário igual para homens e mulheres que desempenhem a mesma função. Apesar disso,
ainda hoje elas tendem a ganhar menos, ao redor do mundo todo. No Brasil, por exemplo, a
diferença salarial pode ultrapassar 50%, de acordo com o nível de escolaridade.35
Ao longo do século XX, muitas pautas do feminismo foram sendo alcançadas no oci-
dente, como o voto, fim das barreiras na educação, alargamento do espectro de profissões
possíveis, igualdade de direitos dos cônjuges, mas, ainda há muito que avançar. Neste primei-
ro momento, o debate gira em torno do binarismo homem x mulher, em busca pela igualdade.
O conceito de “gênero” ainda não é problematizado.
No ano de 1949 tem-se a publicação de uma das principais obras do feminismo, O Se-
gundo Sexo, de Simone de Beauvoir, que altera a forma como o “ser mulher” era pensado até
o momento, através de um ensaio sobre a construção da condição feminina. Beauvoir (1970)
abre as portas para a segunda onda feminista questionando as relações de poder entre os sexos
e a chamada “natureza feminina”. Para a autora, não existem qualidades, valores e modos de
vida especificamente femininos e, o que existe, é uma invenção masculina para oprimir as
mulheres. Assim, Beauvoir (1970) demonstra o feminino como um conjunto de determina-
ções culturais e expectativas que limitam a autonomia das mulheres.
No fim da década de 1960 tem-se início a segunda onda do feminismo, com um deba-
te crescente entre estudiosas, militantes e críticas, “no rol dos movimentos de contracultura,
quando, de fato, se produz uma tentativa de teorizar a opressão da mulher” (GONÇALVES e
PINTO, 2011, p. 30). Nesse momento, há uma ligação entre o ativismo e a construção da teo-
ria política e assim, o “feminismo entra na academia e mantém seu pé nos movimentos soci-
ais, o que o torna duplamente incômodo” (WITTER, 2019).
Nesta fase há uma continuação do feminismo da primeira onda, havendo uma grande
preocupação com o fim da discriminação e uma valorização do direito ao prazer e ao corpo,
trazendo para o debate, temáticas como aborto e métodos contraceptivos. Margaret Sanger,
enfermeira americana, no início do século XX já se preocupava com as questões e começou a
desenvolver diferentes métodos para prevenir a gravidez, já que constatou que mulheres da
34
A versão história desta data é bastante controversa. Em todos os casos, ela deve ser tida como uma data políti-
ca que marca a luta das mulheres operárias por melhores condições de trabalho. Mais informações disponíveis
em: < https://azmina.com.br/reportagens/esqueca-o-incendio-na-fabrica-esta-e-a-verdadeira-historia-do-8-de-
marco/> Acesos em 30 de abril de 2020.
35
Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/mulheres-ganham-menos-que-
os-homens-em-todos-os-cargos-e-areas-diz-pesquisa.ghtml > Acesso em 15 de julho de 2019.
68
classe operária passavam a maior parte de suas vidas grávidas, sofrendo complicações de tan-
tas gestações ou se submetendo a abortos ilegais. Durante o período, falar sobre contracepti-
vos e sexualidade ainda era um tabu, no entanto, em 1912 a enfermeira começou a escrever
para uma coluna de jornal intitulada “O que toda mulher deveria saber”, em que abordava
sobre educação sexual e práticas de controle de natalidade, já que, acreditava que nenhuma
mulher poderia ser livre se não controlasse seu próprio corpo (BREEN, 2019). A partir de
1914 iniciou a publicação do panfleto “Mulher Rebelde”, abordando a luta pelos direitos fe-
mininos e a contracepção. Margaret Sanger trabalhou no desenvolvimento da pílula anticon-
cepcional36, que teve seu uso aprovado, nos Estados Unidos, em 9 de maio de 1960, revoluci-
onando a forma como o sexo era compreendido, até o momento, e dando às mulheres uma
maior liberdade para cuidarem de seus corpos. O debate sobre o aborto, no entanto, ainda é
um tema em ampla discussão. Nos Estados Unidos, ele é permitido em todos os estados desde
1973. Outros países como Cuba, Uruguai, Canadá, Nova Zelândia também dão direito de es-
colha à mulher. No Brasil, o aborto só é permitido quando há risco de morte da mãe, quando a
gravidez for gerada por estupro ou em casos de anencefalia do feto. No momento atual, mar-
cado por um governo conservador e um congresso fortemente religioso, percebemos uma
grande pressão de grupos com projetos contrários ao aborto em qualquer situação37.
O ambiente pós 2ª Guerra Mundial, propiciou espaço para esses novos debates pois,
segundo Céli Pinto (2003), houve a quebra de dois grandes mitos, o primeiro, do sonho capi-
talista americano, o American Way of Life, que prometia prosperidade econômica e felicidade
para todos. Ao mesmo tempo, na Europa, ruía o sonho da revolução socialista. Ambos não
tiveram força perante o movimento beatnik e hippie, nos Estados Unidos, e Maio de 1968 em
Paris, que foram as expressões mais fortes dessa nova geração que “buscava espaço no mundo
público, combatendo os cânones tanto da defesa do capitalismo norte americano como do
sonho socialista europeu” (PINTO, 2003, p. 42). Na Inglaterra, nesse mesmo momento, ganha
força a New Left e feministas ligadas a esse movimento, iniciam a luta pela participação polí-
tica e liberação sexual, além de defenderem a inclusão das discussões feministas no meio inte-
lectual socialista.
36
O nome de Margaret Sanger é um tanto controverso. Por trás da ideia da liberdade feminina e do planejamento
familiar, Sanger, fundadora da Planned Parenthood (a maior rede de clínicas de aborto e planejamento familiar
dos EUA), é acusada por declarações de base eugenista.
37
Mais informações podem ser encontradas em:
< https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/24/politica/1556137351_969753.html > Acesso em 15 de julho de
2019.
69
Em contraposição a ideia vigente no American Way of Life, em que a mulher era con-
siderada a “rainha do lar, que comandava com competência e felicidade toda a nova parafer-
nália de eletrodomésticos que o boom econômico possibilitava” (PINTO, 2003, p. 41), a ame-
ricana Betty Friedan, autora de A Mística Feminina, um dos livros mais importantes do século
XX, publicado pela primeira vez em 1963, partiu de sua experiência pessoal, como mulher
branca, de classe média alta, com acesso a diferentes bens culturais e riquezas materiais, para
desconstruir essa ideia. Ela, com todos os “privilégios” que possuía, ainda assim, se sentia
infeliz. Com base nisso, a autora defende que a mulher foi mistificada após a Crise de 1929 e
a Segunda Guerra Mundial, sendo considerada fundamentalmente como mãe e esposa. Não
eram, dessa forma, estimuladas a ser independente e, com o passar dos anos, isso as deixavam
frustradas. Essa obra inaugura os feminist media studies, já que realiza uma crítica das revistas
femininas e compreende os textos midiáticos como espaços fundamentais para a construção e
(re)produção das desigualdades de gênero (SARMENTO, 2017), trazendo, então, de forma
explícita as relações entre gênero, mídias e desigualdades.
Outra grande referência desse momento é Angela Davis, primeira mulher negra a che-
gar em uma cátedra de universidade nos Estados Unidos. Davis é responsável por grande par-
te da história do feminismo negro, tanto como ativista como no meio acadêmico. A argumen-
tação dela é que as categorias de raça, gênero e classe devem ser analisadas de forma conjun-
ta, destacando a importância da interseccionalidade38 como forma de rompimento dos padrões
hegemônicos e eurocêntricos. Para a autora, o feminismo tradicional tende a não levar em
consideração as especificidades das mulheres negras, perpetuando imagens e estereótipos
atribuídos a elas, invisibilizando suas produções intelectuais, práticas de organização sociais,
e iniciativas individuais e coletivas de resistência (DAVIS, 2016). Em suas análises, a referida
autora antecipa a constituição do conceito de interseccionalidade, termo que será problemati-
zado de forma mais intensa nos anos 1990, e hoje fundamental para pensar as desigualdades e
resistências ao redor do mundo, tornando visíveis as opressões de raça, gênero e classe de
nossa sociedade e de nossa produção de conhecimento.
É em meio a esse cenário de rápidas mudanças de comportamento e atitudes que Pedro
(2005, p. 3) afirma que “uma das palavras de ordem era: ‘o privado é político’”. É nesse con-
texto que se abre espaço para a utilização do termo “gênero” e dos questionamentos sobre o
38
Outro conceito que pode ser acionado para debater as relações entre classe, gênero, raça, sexualidade, idade,
religião, entre outros, é o de consubstancialidade, proposto por Danièle Kergoat (1978). Neste estudo optamos
por seguir através da interseccionalidade, a compreendendo como um conceito crítico e contestador que não se
esgota apenas nas relações entre gênero, classe e raça, mas tensiona entendimentos sobre racismo, sexismo,
patriarcado e subjugação de alguns grupos humanos por outros.
70
universalismo masculino e, por esse motivo, nesse período surgem, também, os chamados
“estudos da mulher”, que são o pontapé inicial para o desdobramento do conceito nos anos
seguinte. Para Adelman (2016, p.67) a segunda onda feminista “teve um grande impacto na
‘consciência coletiva’, ou seja, na forma de pensar de pessoas comuns”. Assim, repercutiu não
apenas nos participantes do movimento, mas de modo mais amplo, transformando a sociedade
como um todo. Se, até então, tínhamos grandes nomes que se destacavam na defesa dos direi-
tos da mulher, o movimento, agora, se torna maior, com cada vez mais pessoas envolvidas.
É oportuno observar nesse momento que o termo “gênero”, que começa a ser utilizado
aqui, para tratar sobre desigualdades, não é novo, porém, até então, era utilizado apenas em
uma perspectiva psicanalítica e patologizante. O seu uso nas ciências sociais é apenas no ano
de 1975, através da antropóloga Gayle Rubin. A estudiosa criou o que chamou de sistema
sexo/gênero e o definiu como “um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade
transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana” (RUBIN, 1975, p.159).
Ou seja, questionou quais são os mecanismos sociais e de poder que transformam uma fêmea
(o sexo) em uma mulher (o gênero) e, nesse sentido, acredita que o gênero seja, então, um
conceito aberto às mudanças histórias, construções sociais, lutas políticas e de movimentos
sociais, como o feminismo. Para Pedro (2005, p. 2) “buscavam, desta forma, reforçar a idéia
de que as diferenças que se constatavam nos comportamentos de homens e mulheres não eram
dependentes do ‘sexo’ como questão biológica, mas sim eram definidos pelo ‘gênero’ e, por-
tanto, ligadas à cultura” – pensamento esse que já era problematizado por Mary Wollstone-
craft, no século XVIII.
Para Scott (1994, p. 13), o gênero é a organização social da diferença sexual, mas, isso
não quer dizer que ele reflete características ou diferenças naturais entre homens e mulheres,
que capacite uns e desqualifique outros. O conceito de gênero aparece, então, como a base de
uma discussão antiga sobre a desigualdade entre homens e mulheres, “um saber que estabele-
ce significados para as diferenças corporais”. Assim, compreendemos aqui que o gênero é um
dos eixos centrais de nossa experiência no mundo social, atravessado e articulado por ques-
tões de raça, classe e sexualidade.
Já a chamada terceira onda iniciou nos anos 1990 e, de acordo com Witter (2019), é
ela que leva aos questionamentos mais profundos dos parâmetros até então estabelecidos pelo
feminismo ocidental. O movimento feminista reivindicava, nesse período, que assim como a
classe, etnia e nacionalidade, o gênero também fizesse parte da constituição do sujeito. Com-
partilhava a ideia de que não existia uma identidade fixa e estável, deveria, sim, ser articulada
ao reconhecimento de diferenças entre as mulheres, não possuindo um sentido completamente
71
unificado. Reconhece-se, agora, que não existem valores universais ao redor da figura femini-
na e, dessa forma, os enfoques devem ser individualizados e pensados para além do binômio
homem-mulher. Nesse momento, de acordo com Pedro (2005), o debate saiu da categoria
“mulher” e passou a centrar-se em “mulheres”, já que o simples fato de ser uma não torna
todas iguais e, dessa forma, as subordinações às quais eram submetidas também eram diferen-
tes.
Nesse período, ganha certa notoriedade o discurso de mulheres negras, indígenas, mes-
tiças, pobres e trabalhadoras, que reivindicaram a diferença dentro da diferença (PEDRO,
2005). Ou seja, a categoria “mulher” que as diferenciavam dos “homens”, não era suficiente
para as caracterizar, já que eram diferentes das demais (brancas e de elite) e as reivindicações
hegemônicas não as representavam. Conforme Pedro (2005, p. 82), elas
[...] não consideravam [...] que o trabalho fora do lar, a carreira, seria uma “liberta-
ção”. Estas mulheres há muito trabalhavam dentro e fora do lar. O trabalho fora do
lar era para elas, apenas, uma fadiga a mais. Além disso, argumentavam, o trabalho
“mal remunerado” que muitas mulheres brancas de camadas médias reivindicavam
como forma de satisfação pessoal, poderia ser o emprego que faltava para seus fi-
lhos, maridos e pais.
Esse debate reafirmou o pensamento de que não havia mais possibilidade de falar de
“mulher”, no singular, mas sim de “mulheres” e que as pautas de um grupo poderiam não ser
a pauta de outro, afinal, são diversas as formas de opressão vividas em sociedade e o sexo
jamais seria categoria suficientemente ampla para reunir todas em torno de uma mesma luta.
Isso nos leva a crer, também, que precisamos pensar no feminismo39 como algo plural, distan-
te de um movimento homogêneo, fixo e sem contextos, isto é, de forma interseccional. Essas
diferenças ocorrem justamente por conta da interpretação das desigualdades presentes na rea-
lidade de cada grupo e nas propostas e estratégias adotadas para combatê-las e superá-las
(ZIRBEL, 2007).
Escosteguy (2016, p.70) afirma que, nesse momento “o entendimento da categoria
‘gênero’ como construção social e cultural se associa à ideia de que as identidades se definem
de modo relacional e, a partir de determinado momento, não mais exclusivamente via o par
feminino-masculino”. Nesta mesma linha de pensamento, Judith Butler (2015) afirma que o
gênero é social e cultural, ou seja, é construído, assimilado, figurado e instituído socialmente
e, ser mulher ou homem não significa que isso seja tudo que alguém possa ser, já que em um
39
De modo geral, ao longo do trabalho optamos pelo uso do termo no singular, não como um entendimento
homogêneo do movimento, mas a partir da compreensão de sua luta mais geral: pela a superação das
desigualdades entre homens e mulheres e pela autonomia e emancipação feminina.
72
único ser coexistem elementos de diferentes contextos em que ele se insere: históricos, de
classe, de raça, étnicos, regionais e identitários. Ou seja, “resulta que se tornou impossível
separar a noção de gênero das interseções políticas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida” (BUTLER, 2015, p. 21).
Na virada para o século XXI é possível identificar uma quarta onda, que, centrada em
reivindicações identitárias, ainda não se dissipou (ESCOSTEGUY, 2016). Esse período é
marcado especialmente pelo contexto do pós-feminismo e seus debates e críticas. O grande
desafio desse momento, de acordo com Angela McRobbie (2006), encontra-se em compreen-
der o papel da cultura midiática que, através do rótulo de pós-feminismo, apaga e enfraquece o
movimento feminista, sua luta e sua história, por entender e transmitir a ideia de que esse en-
frentamento já está dado, aceito e resolvido, ou seja, não tem mais função. Porém, através de
um falso discurso e uma ilusória representação feminina, que se dissemina através de literatu-
ra, novelas, filmes e narrativas diversas, se reafirmam ideias conservadoras e relações de po-
der, que visam regular os modos de ser do indivíduo a partir de suas “próprias escolhas”. Nes-
se momento, as conquistas feministas passam a ser apresentadas como conquistas individuais,
de escolhas e trajetos percorridos por cada mulher, por seu mérito próprio. Insere-se aqui, a
comunicação e as mídias, como importantes (re)produtoras de sentidos, identidades e repre-
sentações através de seus produtos. Para Sarmento (2017, p. 61 [grifos da autora]), o “pós-
feminismo se assenta na reprivatização das conquistas e na sua individualização, tendo na
cultura popular um de seus mais potentes catalisadores”. Assim, de acordo com a autora, o
pós-feminismo relaciona-se a incorporação neoliberal dos papéis de gênero, que incorpora,
revisita e despolitiza os ideais feministas.
Paralelamente a essa perspectiva que enfraquece o movimento feminista e a luta das
mulheres, são diversos os movimentos que ganham força e mobilizam milhares de pessoas ao
redor do mundo na luta contra a desigualdade e a violência contra a mulher. No ano 2000,
podemos destacar a Marcha Mundial de Mulheres, como uma grande mobilização feminina
contra a pobreza e a violência ao redor do mundo. Tinham como tema “2000 razões para mar-
char contra a pobreza e a violência sexista”. Em 2011, a Marcha das Vadias, originária em
Toronto, no Canadá, ganha destaque internacional e se repete em centenas de cidades ao redor
do mundo. O protesto iniciou como uma forma de resposta ao comentário de um policial que
afirmou que, para evitar estupros, as mulheres deveriam parar de se vestir como vadias. Aqui
ganha força o amplo debate sobre os discursos de culpabilização das vítimas, que muitas ve-
zes se repetem em produtos midiáticos através de representações e tratativas equivocadas das
temáticas, que vão de encontro às lutas das mulheres, reafirmando ideias conservadoras e re-
73
lações de poder, que visam regular os modos de ser do indivíduo a partir de suas “próprias
escolhas”, ou seja, a violência contra a mulher passa a ser justificada com base em seu com-
portamento – característica fortemente ligada ao momento do pós-feminismo.
No ano de 2016, ganha força, a partir da Argentina, o movimento “Nenhuma a me-
nos”, como forma de protesto contra a morte violenta das mulheres. Esse movimento também
ganhou alcance internacional, principalmente na América Latina. Levanta-se o debate sobre o
feminicídio e o fim da impunidade em casos de violência de gênero. Cabe destacar que a
América Latina, ainda é marcada por altos índices de violência e desigualdades. Segundo es-
timativas de 2017, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a cada dia mor-
rem, em média, 12 mulheres vítimas da violência. A diferença salarial entre homens e mulhe-
res, na região, chega, em média, a 26%, e 29% das mulheres não têm renda própria. Nesse
contexto, ainda, o Brasil é classificado como o pior país da América Latina em oportunidades
para as meninas40. Na atualidade, ainda temos o agravamento destes problemas através do
crescimento do número de atos de violência contra a mulher, durante o período de isolamento
social, gerado pela pandemia do Coronavírus. Essa informação é a nível mundial, conforme
alertado pela Organização das Nações Unidas41 e, no contexto brasileiro, a maior permanência
dos homens em seus lares aumentou em 50% os casos de violência42, o que reforça a ideia de
que, em grande parte das vezes, o agressor é da família e convive junto à vítima. Junto a isso,
o confinamento também dificulta o acesso a formas de proteção. Essa situação, aliada a outras
históricas problemáticas da educação e saúde (ou a falta delas), serão apresentadas nas próxi-
mas páginas.
40
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-o-pior-pais-da-america-do-sul-para-ser-menina-diz-
relatorio-20270607> Acesso em 27 de maio de 2019.
41
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/artigo-violencia-contra-mulheres-e-meninas-e-pandemia-das-
sombras/> Acesso em 30 de abril de 2020.
42
Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/23/casos-de-violencia-domestica-no-rj-
crescem-50percent-durante-confinamento.ghtml> Acesso em 30 de abril de 2020.
74
ções das temáticas ocorrem de maneira distinta. É por esse motivo que, conforme Pinto (2003,
p. 9), abordar o feminismo no Brasil é algo bastante específico, “pois se trata de um fenômeno
que ainda vivemos de forma muito presente e sobre o qual ninguém, homens ou mulheres, nas
últimas décadas, ficou imune a ter uma opinião”.
Ademais, cabe destacar, que, desde o seu início, o movimento é fragmentado, se des-
dobra em diferentes correntes e vertentes, com manifestações, objetivos e pretensões diversas,
as quais tentaremos, na medida do possível, dar conta neste trabalho. Essas correntes desafia-
vam, por um lado, a ordem conservadora, que excluía a mulher do mundo público e por outro
a ordem revolucionária, que via na luta delas um desvio da luta do proletariado (PINTO,
2003).
De forma geral, como já destacado anteriormente, a luta feminina por cidadania, direi-
tos e liberdade é bastante antiga, e ao longo da história é possível identificar variadas frentes
de batalhas nos mais distintos âmbitos. No Brasil não é diferente, no entanto, é preciso pontu-
ar que grande parte de nossos registros históricos partem do ano de 1500, após a colonização
e, conforme nos diz Maria Amélia Teles (2003, p. 11) praticamente a totalidade dessa história
foi escrita por homens, “e, portanto, podemos acrescentar: está sob suspeição”.
Para a referida autora, temos, em nosso país, uma ausência tão grande de registros e in-
formações sobre a condição da mulher que, para muitos, o movimento de mulheres aqui é um
fenômeno recente. No entanto, ao buscarmos na história, é possível – mesmo que com grande
dificuldade - localizar lutas que tinham, à frente, tanto as da elite, quanto as de classes popula-
res, quilombolas e trabalhadoras que buscam articulações em prol de suas vidas (TELES,
2017). Os registros das ações femininas, porém, só ganham expressividade a partir do mo-
mento em que a própria mulher começa a escrever a sua história, por volta dos anos 1850.
Contudo, as letradas, inicialmente, pertenciam a elite.
No Brasil Colônia, período datado entre 1500 e 1822, podemos destacar a figura das
mulheres indígenas, das brancas, das negras e das miscigenadas. De acordo com Teles (2017),
na chegada dos colonizadores, eles se depararam com um grande número de povos indígenas,
divididos entre várias tribos com costumes e hábitos que poderiam ser completamente dife-
rentes. Na chegada dos Jesuítas, por volta do século XVI, a grande tarefa era transformar os
“bárbaros” indígenas em homens cristãos. Assim, os colonizadores viam os homens indígenas
para o trabalho escravo e as mulheres como esposas, concubinas ou empregadas.
As brancas eram pouco numerosas, pois dificilmente faziam a travessia do Atlântico,
uma tarefa para os “homens descobridores”. Esse fato fez com que, em 1549, o padre Manuel
de Nobrega escrevesse à Coroa portuguesa para que mandasse mulheres brancas para povoar
75
as terras. Mesmo assim, elas eram em número reduzido e, para Teles (2003), esse é um dos
motivos que contribui para a elevação do status delas e para a grande miscigenação do povo
brasileiro. Não obstante, cabe destacar que de modo geral, toda a população da Colônia era
explorada em benefício da Coroa e as mulheres, de forma dupla, pelo fato de serem coloniza-
das e, também, pelo sistema patriarcal que aqui se instalava. A elas era ensinado a cuidar da
casa, do marido e dos filhos, fiação, tecelagem e bordados. Leitura e escrita eram atividades
masculinas ou para aquelas que entravam em conventos. “Com esse conteúdo educacional, a
mulher se tornava mais tímida, ignorante e submissa. E os valores e ideias que transmitia
eram os mesmos que aprendera: tradicionais, conservadores e atrasados”, destaca Teles (2003,
p. 20).
No período, a grande força de trabalho e principal produção de riquezas eram os es-
cravizados. As mulheres negras, ou trabalhavam nos serviços domésticos, ou nas fazendas,
desempenhando o mesmo papel que os homens – podemos relembrar aqui o discurso de So-
journer Truth que denunciava essas práticas. Junto a isso, além do trabalho forçado, elas esta-
vam sujeitas a agressões, abusos e maus tratos por parte dos seus senhores. Data de 6 de se-
tembro 1770 o registro mais antigo de uma denúncia e de uma petição de uma mulher escra-
vizada dirigida a uma autoridade. No documento, Esperança Garcia escreveu ao governador
da Província do Piauí relatando a rotina de espancamentos que ela, os filhos e demais escravi-
zados sofriam (CASTRO, 2019).
Entre nomes importantes desse período estão Aqualtune, filha do rei do Congo que
comandou 10 mil guerrilheiros na Batalha de Mbwila, na defesa de seu reino, quando derrota-
da, foi vendida como escrava para o Brasil. Ao conhecer a história de Palmares, organizou
uma grande fuga para o quilombo. Aqualtune foi avó de Zumbi, um dos grandes líderes qui-
lombolas brasileiros. Dandara, esposa de Zumbi, também é outra referência do período. Após
capturada, suicidou-se para não retornar à vida escrava. Ao fim do século XVIII, cresceram os
movimentos organizados em prol da independência do Brasil. Maria Quitéria, baiana, fugiu de
casa e alistou-se para combater as tropas portuguesas. Como para as mulheres não era permi-
tido o alistamento militar, vestiu-se de homem e por sua grande capacidade estrategista, atin-
giu o posto de Cadete e recebeu de Dom Pedro I a insígnia dos Cavaleiros da Imperial Ordem
do Cruzeiro (TELES, 2003).
Já na primeira metade do século XIX, houve mulheres que começaram a reivindicar
por direito à educação, já que para elas, era permitido estudar apenas até as séries iniciais e
suas atividades seguiam restritas ao lar, como mães, esposas e donas de casa. Considerada
uma das primeiras feministas do Brasil, Nísia Floresta, defendeu o fim da escravidão, educa-
76
ção, emancipação da mulher e instauração da República. No país, é ela quem realiza a primei-
ra tradução da obra de Mary Wollstonecraft, Direito das Mulheres e Injustiças dos Homens,
em 1832, considerado o livro fundador do feminismo brasileiro.
No entanto, com a crescente industrialização, a diversificação da economia e o fim do
tráfico negreiro em 1850, cresceu a luta pela liberação dos escravos e a necessidade de mão de
obra assalariada. Nos anos 1860 eclode o movimento abolicionista, que teve grande apoio de
mulheres que se organizavam na defesa da liberdade. Bárbara Castro (2019) destaca que as-
sim como as mulheres negras que já denunciavam as mazelas do sistema escravista, as bran-
cas e de classe alta se inseriram no movimento organizando saraus e concertos em comícios
abolicionistas, criavam instituições e associações que auxiliavam mulheres negras ou arreca-
davam fundos para a causa. Para a mencionada autora, essa participação na causa abolicionis-
ta, foi fundamental para as mulheres do período.
Assim, no século XIX, já há registros de mulheres que lutaram pelo direito ao voto de
forma individual, se alistando como eleitoras ou candidatas. No ano de 1891, o direito ao voto
feminino foi discutido na Constituinte Republicana. O projeto, no entanto, não foi aprovado,
mas a Constituinte não proibiu explicitamente o voto a elas. Para Pinto (2003) isso não signi-
fica esquecimento, mas se justifica, pois, as mulheres simplesmente não existiam como seres
dotados de direitos para os constituintes. Foi essa brecha que permitiu que muitas delas reque-
ressem o alistamento eleitoral ao longo dos mais de 40 anos que vigorou a Constituição de
1891. Durante esse período, ganhou força a imprensa feminina e feminista43. Foram vários os
jornais que surgiram e que, editados por mulheres, tiveram a função de disseminar novas idei-
as sobre as potencialidades delas, alertar para a necessidade da luta por direitos e por educa-
ção formal para todas. Essa característica fez do Brasil o país latino-americano onde houve
maior empenho do jornalismo feminista (TELES, 2003, p. 33). De acordo com Ilze Zirbel
(2007), essas primeiras publicações já davam indícios do movimento político e intelectual que
estava latente, com o intento de repensar, mesmo que ainda sem a base teórica que se formará
43
As diferenças entre imprensa feminina e feminista estão no direcionamento de seus conteúdos. Enquanto aque-
la é pensada para as mulheres, de forma ampla, esta é dirigida para o mesmo público, mas com mote contestador
e de luta por direitos.
77
mas tarde, os modos de dominação, as relações de poder, a opressão e exploração ao qual es-
tavam sujeitas as mulheres, se contrapondo ao sistema patriarcal vigente.
A partir da década de 1910, o processo de urbanização pelo qual passava o país foi
acompanhado pelo surgimento de camadas médias e operárias que abriram espaço para o apa-
recimento de novas formas de organização da sociedade, como o movimento das mulheres.
Nesse período, cresce ainda mais o uso de jornais, folhetins, presença em eventos públicos e
até a realização de passeatas como forma de angariar apoio às causas. São mobilizações como
essas que dão base para, no ano de 1910, um grupo de mulheres fundar o Partido Republicano
Feminino, destacam-se aqui os nomes de Leolinda Daltro e Gilka Machado. Esse fato merece
atenção, de acordo com Pinto (2003), por ser um partido político composto por pessoas que
não tinham direitos políticos, ou seja, que teria que ocorrer fora da ordem estabelecida. Desse
modo, tinham como propósito, além de defender o direito ao voto, lutar por emancipação e
independência. Outra importante bandeira levantada por essas mulheres era que propugnavam
o fim da exploração sexual, adiantando em mais de 50 anos a luta das feministas da segunda
metade do século XX.
No ano de 1917, o partido promoveu uma marcha, pelas ruas do centro do Rio de Ja-
neiro, com a participação de cerca de 90 mulheres. Cabe observar que, mesmo que esse núme-
ro pareça pequeno, naquela época, as ruas não eram espaços para elas, que tinham função
restrita ao lar e ao privado. Assim, conforme Pinto (2003) a existência dessa marcha é revela-
dora de uma militância que desafiava e ao mesmo tempo buscava dar visibilidade a sua causa
e, o fato dessas mulheres terem saído em passeata tem um forte sentido de enfrentamento à
ordem estabelecida e ao patriarcalismo que estavam sujeitas.
O Partido Republicano Feminino desapareceu nos últimos anos da década de 1910,
mesmo período em que Berta Lutz retornou de Paris e começou a organizar o que seria a mai-
or expressão do feminismo da época, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF).
Assim, conforme Pinto (2003), a primeira fase do feminismo no Brasil aproxima-se muito do
que estava acontecendo no cenário internacional, com busca por igualdade, direitos políticos e
sociais. Esse primeiro momento esteve intimamente relacionado ao nome de personalidades
que rompiam com seus papéis estabelecidos e que se colocavam no mundo público em defesa
de novos direitos para elas.
Nesse período inicial, podemos identificar três vertentes do movimento. A primeira é o
“feminismo bem-comportado”, liderado por Bertha Lutz, é o que tem mais força e organiza-
ção nesse momento. As pautas de luta são, principalmente, os direitos políticos às mulheres,
bem como a promoção da educação, a elevação do nível de instrução feminina, proteção das
78
44
Bertha Lutz, grande representante desse momento, reuniu em si várias condições que a permitam ocupar esse
espaço: pertencia a uma elite econômica, cultural e ainda estava inserida no mercado de trabalho, como cientista.
Bertha estudou em Paris e foi lá que conheceu e se aproximou de diversas manifestações.
79
ainda esbarrava nos limites de uma classe média urbana e culta, pois os índices de analfabe-
tismo das mulheres ainda eram extremamente altos, principalmente entre as classes populares.
Nesse contexto, no entanto, Pinto (2003) ressalta que, mesmo que tenham surgido va-
riadas formas de publicações com seu conteúdo voltado às mulheres, grande parte deles não
problematizava suas condições e tinham como tema quase exclusivo, moda e culinária. Ao
longo dos anos, apareceram revistas que falavam de política, literatura e cultura. Nome impor-
tante desse período é Francisca Senhorinha Motta Diniz, considerada a primeira mulher a
fundar um jornal no Brasil, em 1873, O Sexo Feminino, com o objetivo de divulgar a “causa
das mulheres”. O jornal tinha tiragem quinzenal e, além da preocupação com o voto, interes-
sava-se por debater os direitos civis, principalmente em relação ao casamento e educação
emancipatória.
Já a terceira vertente, manifestava-se no movimento anarquista e, posteriormente, no
Partido Comunista. São mulheres trabalhadoras, intelectuais e militantes de esquerda que de-
fendem a total liberação da mulher. Pautavam questões relativas à exploração no mundo do
trabalho. É a face menos “comportada” do feminismo brasileiro do período e o grande nome
desse momento é Maria Lacerda de Moura. O contexto das primeiras décadas do século XX, é
marcado pela grande presença de imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, que se torna-
ram operários nas indústrias paulistas e cariocas. Com eles, foram introduzidas, no país, as
ideias libertárias do anarquismo, que podem ser observadas através do crescente número de
greves e de uma imprensa extremamente ativa, que contava com forte presença feminina
(PINTO, 2003).
Desse cenário, Castro (2019) destaca que, no ano de 1917, mulheres trabalhadoras da
indústria têxtil organizaram uma grande greve. Elas eram a maior força de trabalho do setor e
por meio da paralisação e com o auxílio da imprensa feminista e anarquista, denunciam as
explorações sofridas, as péssimas condições de trabalho, as elevadas cargas horárias, a violên-
cia, assédio e trabalho infantil. A partir da organização de comitês e ligas operárias, reivindi-
cavam o fim do trabalho noturno, o direito à greve, a proibição do trabalho para menores de
14 anos e a licença maternidade. Com isso, garantiram esses direitos primeiramente nas indús-
trias e legislações estaduais e, mais tarde, na legislação trabalhista promulgada por Getúlio
Vargas, em 1943. Cabe aqui, comentarmos que, ainda nos dias de hoje, o trabalho infantil é
uma realidade no Brasil e a luta para sua extinção não acabou. Na contramão, o atual presi-
80
dente da república, Jair Bolsonaro, em julho de 2019, fez declarações que levantam dúvidas
sobre o entendimento da real dessa problemática45 por parte do governo.
A vertente anarquista e, mais tarde, o ideário comunista, possuíam posição ambígua
em relação à condição da mulher: por um lado, diferentemente do pensamento dominante da
época, a incorporava ao espaço público como parceira de lutas, por outro, tinha dificuldade
em aceitar a dominação da mulher como um problema diferente da dominação de classe. Para
Pinto (2003, p. 34), aí reside um paradoxo: “é nesses espaços revolucionários, não feministas
em princípio, que se encontravam [...] as manifestações mais radicalmente feministas, no sen-
tido de uma clara identificação da condição explorada da mulher como decorrência das rela-
ções de gênero”. Assim, diferentemente da luta das sufragistas, que tinham como mote a pre-
ocupação com os direitos políticos, essas mulheres apontavam nitidamente a opressão mascu-
lina, demonstrando que os aspectos de gênero deveriam ser percebidos como elementos estru-
turantes das desigualdades presentes nas relações de trabalho. Além disso, destacavam tam-
bém que o poder dos homens se apoiava e se firmava na exploração delas.
Para aquelas ligadas a essa vertente, não existe a possibilidade de chegar à igualdade
sem o reconhecimento da desigualdade particularizada da mulher na fábrica. Com isso, ante-
cipam uma luta que só ganhará espaço e legitimidade no fim do século XX: a do reconheci-
mento da especificidade das opressões, ou seja, os oprimidos não são oprimidos da mesma
forma. Ser mulher, ser negro, de classe popular ou pertencer a qualquer grupo diferente do
dominante, formado por homens e brancos, adiciona um elemento a mais na luta pela igual-
dade. Tinham como pauta, também, o fator “tempo”, tema que se tornará constante na luta das
feministas ao longo do século XX, sempre com referência à dupla jornada de trabalho.
Desse primeiro momento, de acordo com Pinto (2003), pode-se concluir que houve, se
não um movimento feminista, de modo estabelecido, uma movimentação feminista, que se
expressou de diferentes formas, graus e modos de problematizar a situação da mulher. A
grande vitória e marca aqui, que faz com que o feminismo brasileiro caminhe em um ritmo
semelhante ao americano e europeu, foi a conquista ao voto. Essa inquietação inicial que ten-
dia a ganhar força durante as próximas décadas, no entanto, regride com o golpe de 1937, em
que o movimento fica adormecido por certo período de tempo.
A partir do ano de 1937 até 1945, o Brasil viveu o período chamado “Estado Novo”,
um regime ditatorial, sob o comando de Getúlio Vargas. Nessa fase, o Congresso Nacional foi
45
Mais informações sobre as declarações e o cenário do trabalho infantil no Brasil atual podem ser encontradas
em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/qual-e-a-realidade-do-trabalho-infantil-defendido-por-
bolsonaro/> Acesso em: 16 de julho de 2019.
81
fechado, bem como as assembleias estaduais e câmaras municipais e a agenda feminista, que
ganhava força entre a classe política, foi deixada de lado. O Poder Executivo passou a ter o
controle efetivo sobre as demais instâncias de poder, com o apoio das lideranças militares.
Para Castro (201), nesse momento, o Estado, fortemente conservador, voltava sua atenção à
defesa da família e das crianças.
Apesar disso, mesmo nesse cenário que dificultava a luta das mulheres, um elemento
importante a ser destacado são os movimentos que iniciam no final da década de 1940, quan-
do mulheres de diferentes classes sociais se organizam na luta contra a carestia, alta no custo
de vida, melhorias na saúde, educação e serviços públicos em geral (BREEN, 2019). Essas
articulações ganham força principalmente entre as mulheres de classe popular, que se organi-
zavam, não para pôr em xeque a condição da opressão feminina, mas para discutir a própria
condição da mulher como dona de casa, mãe e esposa (PINTO, 2003).
Com a redemocratização, em 1946 e, principalmente, durante a década de 1950 até o
golpe de 1964, as lutas sociais estavam, no Brasil e no mundo, muito determinadas pelo viés
socialista e comunista que tinha como contexto o período pós 2ª Guerra. Assim, as chamadas
“lutas particulares”, como aquelas das mulheres, não ganharam força (PINTO, 2003). No en-
tanto, na esfera econômica o Brasil tendeu a crescer e foram significativas as transformações
políticas, culturais e sociais do final dos anos 1950 e década de 1960. A participação feminina
no mercado de trabalho aumentou, bem como a presença delas nas universidades e conforme
Zirbel (2007, p. 34) “o movimento hippie, a mini-saia e a pílula anticoncepcional revolucio-
navam o cotidiano e os costumes”. Essa “modernização da mulher”, no entanto, entrava em
curso “numa sociedade altamente hierarquizada em termos de classe, raça e gênero, reprodu-
zindo estas diferenciações” (SARTI, 1988, p. 39). Esse contexto fez com que apenas parte da
população feminina, as mulheres brancas e de classe alta, estivem incluída nesse novo espaço.
Para outras, o trânsito foi limitado e só conseguiam vislumbrar novas perspectivas através do
contato que possuíam com as famílias de classe alta, como empregadas domésticas. Ou seja, a
“independência feminina” teve um nítido recorte de classe e cor (SARTI, 1988)
O golpe de 1964 causou grande impacto entre os novos grupos que se organizavam no
cenário político. A repressão atingiu, principalmente, as formações populares, sindicalistas e
camponesas. Todos aqueles que se colocavam contrários ao novo regime eram perseguidos,
exilados ou mortos. De acordo com Teles (2017), as mulheres foram as primeiras a entrar em
cena, seja juntando-se à luta armada, participando de organizações clandestinas ou a procura
de parentes presos ou desaparecidos. Assim, por volta dos anos 1970, quando o movimento
feminista teve o seu boom na Europa e Estados Unidos, relacionado, principalmente, a efer-
82
vescência política e cultural desses locais, no Brasil, vivíamos um período de ditadura civil-
militar, com forte repressão social e política. Dessa forma, a apropriação das temáticas e o
modo como o movimento se organizou no país tomou contornos diversos, dando destaque
para determinadas pautas enquanto outras ainda tinham pouca força. De acordo com Pinto
(2003, p.45) o feminismo brasileiro se desenvolve dentro de um paradoxo: ao mesmo tempo
em que teve de administrar a sua autonomia enquanto movimento pela luta dos direitos das
mulheres e contra a ditadura, foi visto pelos integrantes dessa mesma luta como um “desvio
pequeno-burguês”, pois, dada a situação, lutar por direitos das mulheres em um período onde
a liberdade era mínima para todos, parecia pouco promissor.
O movimento feminista no Brasil, nesse período, se organiza a partir de duas proble-
máticas principais: a primeira delas é que ser mulher, tanto no espaço público quanto privado,
é problemático e, a partir disso, busca transformar as relações de gênero. A segunda questão é
que existem outros problemas que também devem ser enfrentados, como fome, miséria e de-
sigualdade sociais, questões que não podem ficar de fora da luta feminista e que começam a
despertar o pensamento de que nem todas as mulheres são iguais e sofrem dos mesmos pro-
blemas, na mesma intensidade – com destaque para as mulheres negras e periféricas.
Pinto (2003, p.46) afirma que o movimento feminista no Brasil, nesse momento,
Destarte, enquanto em outros lugares do mundo a segunda fase foi marcada pelos dis-
cursos relativos às liberdades individuais, ao prazer e ao corpo, no Brasil “um punhado de
mulheres fazia a mesma coisa, mas pedindo desculpa” (PINTO, 2003, p. 51), já que soava
egoísta na sociedade da época dar atenção a “pequenos problemas pessoais” quando o país
necessitava de ações políticas maiores.
Dois eventos de natureza distinta, que aconteceram em 1972, marcaram a história e as
contradições do movimento no período. O primeiro é o congresso promovido pelo Conselho
Nacional da Mulher, liderado por Romy Medeiros, que marca a transição efetiva do feminis-
mo bem-comportado, de Bertha Lutz, para um feminismo contestador que enfrentavas ques-
tões, até então, consideradas tabus, como planejamento familiar e a posição das mulheres di-
ante das novas tecnologias. O segundo, foram as primeiras reuniões de grupos de mulheres
83
em São Paulo e no Rio de Janeiro, de caráter quase privado. Esses encontros eram espaços de
reflexão para mulheres que se inspiravam no crescente feminismo americano.
É nesse período, também, que, de acordo com Cyntia Sarti (2004, p.37), o feminismo
no Brasil adquire um viés militante, que começou a aparecer nas ruas, como consequência da
resistência das mulheres à ditadura. É oportuno observar que, “a presença das mulheres na
luta armada, durante os anos de chumbo, implicava não apenas se insurgir contra a ordem
política vigente, mas representou uma profunda transgressão ao que era designado à época
como próprio das mulheres”. A presença feminina, naqueles espaços, por si só já era trans-
gressora de um lugar e comportamento tradicionalmente atribuído a elas. Assim, de acordo
com Sarti (2004, p.37),
[...] o feminismo militante no Brasil, que começou a aparecer nas ruas, dando visibi-
lidade à questão da mulher, surge, naquele momento, sobretudo, como conseqüência
da resistência das mulheres à ditadura, depois da derrota das que acreditaram na luta
armada e com o sentido de elaborar política e pessoalmente essa derrota.
luta de classe, e as liberais a luta por direitos individuais” (PINTO, 2003, p. 60). Um quarto
grupo, ainda, colocava em evidência a própria condição de mulher no centro das discussões,
levantando questões menos aceitas no coletivo, expondo com força as diferentes formas de
opressão feminina, grupo esse, mais próximo àquilo que se pensava no feminismo do hemis-
fério norte. Foi o que mais teve dificuldade de se afirmar e se manter na sociedade do período.
É nessa brecha aberta pelo Ano Internacional da Mulher que ganha força o feminismo
acadêmico, que, além da militância, começa a desenvolver pesquisas científicas sobre a con-
dição da mulher no Brasil. Pinto (2003) problematiza essa situação lembrando que o movi-
mento feminista não era popular em sua origem e só chegou até lá como uma escolha política
estratégica e não em decorrência de seu desenvolvimento natural. Por outro lado, a aproxima-
ção com a cultura erudita, mais especificamente com as universidades, ocorreu de forma faci-
litada.
Para Zirbel (2007, p. 18), a partir desse momento, reflexão teórica e militância política
tornaram-se marcas do feminismo. Essas estudiosas, buscavam novas maneiras de pensar a
cultura e questionar as definições tradicionais de sociedade, política, público, privado, auto-
nomia, liberdade, e, “de igual forma, as experiências de vida (e sujeição) das mulheres servem
de base para a reflexão, impondo novos temas e metodologias de trabalho”.
Para Louro (1997, p. 148), é necessária uma “transformação no modo de construção,
na agência e nos domínios do conhecimento” e, para isso, é necessário a subversão dos conte-
údos científicos pelos estudos feministas.
Uma grande marca, ainda do feminismo dos anos 1970, é a utilização da imprensa al-
ternativa, ou imprensa “nanica”, caracterizada assim pelo tamanho pequeno das publicações.
Esse tipo de mídia, tinha como característica a declarada oposição ao regime militar e era
formada majoritariamente por grupos de esquerda, jornalistas que buscavam alternativas ao
fechamento de postos de trabalho e intelectuais que queriam burlar, de alguma forma, a cen-
sura.
A partir dos anos 1980, com a redemocratização, tem início uma nova fase do movi-
mento no Brasil. Porém, com o pluripartidarismo retornado, muitas das feministas se dividi-
ram entre a luta pela institucionalização do movimento e aproximação com a esfera estatal e,
por outro lado, as autonomistas, viam na primeira opção uma forma de cooptação (PINTO,
2003). Dessa forma, as relações entre o feminismo e o campo político devem ser observadas
através da institucionalização do movimento, da presença de mulheres em cargos eletivos e
das formas alternativas de participação política. No que se refere à conquista de espaços no
plano institucional, isso se deu principalmente através de Delegacias da Mulher e do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, junto ao Ministério da Justiça, que atuou
até 1989, abordando variadas pautas da agenda feminista, como a luta por creches, sexualida-
de e direito reprodutivo. Ademais, a grande atuação do CNDM foi a “Carta das Mulheres”,
entregue aos constituintes. Conforme Pinto (2003), esse foi o documento mais completo e
abrangente sobre a condição da mulher, produzido na época, sendo um dos mais importantes
elaborados pelo feminismo brasileiro. A Carta propõe uma ampla agenda do movimento, tra-
zendo temáticas como justiça social, criação de um Sistema Único de Saúde, ensino público e
gratuito em todos os níveis, autonomia sindical, reforma agrária, reforma tributária, negocia-
ção da dívida externa, entre outras propostas.
Além disso, o documento inovava ao abordar temas até então não tratados. O primeiro
deles é a violência contra a mulher, abrangendo, também, a violência psicológica, redefinindo
o conceito de estupro e solicitando a criação de delegacias especializadas no atendimento às
mulheres. O segundo tema era o aborto, afirmando, já naquele ano, que a mulher tem o direito
de decidir sobre o próprio corpo. Como já destacado anteriormente, essa é uma pauta que se-
gue ainda em debate.
Para a mencionada autora,
Podemos dizer, então que uma das grandes marcas do feminismo brasileiro dos anos
1980 é a atuação política propositiva, por meio da organização dos grupos de mulheres de
todo o país.
Cresciam com força, ainda, as temáticas relativas à violência e saúde. No ano de 1981
surgiu a primeira organização de apoio à mulher vítima de violência, o SOS Mulher, no Rio
de Janeiro e que em pouco tempo se espalhou por todo país. Pinto (2003) observa que nesse
momento houve um choque de percepção para as feministas militantes quando percebiam que
as mulheres que recebiam o atendimento não queriam ser ativistas, mas, apenas não queriam
mais apanhar de seus agressores. Desse encontro, surge um novo tipo de feminismo, mais
profissional, que atua na prestação de serviços para mulheres vítimas de violência. No ano de
1985 é criada a primeira delegacia especializada. No âmbito da saúde, esse debate trazia junto
outros três grandes temas, que ainda nos dias atuais, causam polêmica: planejamento familiar,
sexualidade e aborto. A grande marca de institucionalização do feminismo no campo da saúde
e das políticas públicas, foi a criação, em 1983, do Programa de Atenção Integral à Saúde da
Mulher (PAISM), pelo Ministério da Saúde.
Esse período, conforme Zirbel (2007) ainda foi marcado pelo crescimento de movi-
mentos populares e sociais, (mulheres, negros, étnicos, indígenas, homossexuais, pequenos
agricultores, sem-terra, deficientes físicos, ecologistas), que trouxeram à pauta, temas que até
então não haviam tido relevância no cenário político. Desse modo, as ideias ligadas ao femi-
nismo saíram da esfera privada e ganharam o espaço público, através de clubes de mães, pos-
tos de saúde, associações, sindicatos, partidos políticos, centros acadêmicos, teatros, jornais,
igrejas, universidades e centros de pesquisa, gerando tensões, rupturas e mudanças. No entan-
to, entre os setores mais conservadores da sociedade, as pautas encontraram forte rejeição,
perceptível na forma como a mídia do período criou estereótipos em torno da figura feminista.
Ao fim dos anos 1980 o que se percebeu, conforme afirma Pinto (2003), é que o femi-
nismo, enquanto movimento, não teve um grande aumento no número de militantes ou força
para grandes transformações sociais e inserção nas agendas políticas, no entanto, ganhou for-
ça no debate acerca da saúde e violência contra a mulher, de forma ampla na sociedade. As-
sim, nesse contexto, os anos 1990 carregaram de modo ainda mais forte a ideia de um femi-
nismo difuso. Isto é, muitas de suas ideias, começam a se espalhar, mesmo que não identifica-
das como uma proposta feminista.
Esse modelo tem como principal característica a não existência de militantes ou orga-
nizações, é defendido por homens e mulheres que muitas vezes não se dizem feministas de
fato, mas defendem a igualdade e, conforme Pinto (2003, p.93), “é um discurso que transita
87
nas mais diferentes arenas e aparece tanto quando silencia o contador da anedota sexista como
quando o programa de um candidato à Presidência da República se preocupa com políticas
públicas de proteção aos direitos da mulher”.
Assim, o que se percebe, a partir da década de 1990, é que, se por um lado não houve
grande expansão do movimento, o cenário da época foi propício para que as pautas fossem
incorporadas por grandes parcelas da sociedade e dos discursos políticos (PINTO, 2003).
Ocorre, então, uma mudança de postura e certa vigilância contra atos machistas, racistas, ho-
mofóbicos, acompanhada por uma institucionalização dos direitos da mulher, combate à vio-
lência e novas formas de proteção. Uma das grandes temáticas que ganha força nesse período
é o assédio sexual, que passa a ser considerado um crime, incluído no Código Penal Brasilei-
ro.
De acordo com Sarmento (2017) essas lutas ganham ainda mais força a partir da cria-
ção de organizações não governamentais (ONGs), que se espalharam por todo o país. Femi-
nistas que eram militantes dos anos 1970 e 1980 profissionalizaram-se nas mais diferentes
carreiras e, com seu trabalho, dão suporte a causa de diversas formas, como advogadas, médi-
cas, psicólogas, professoras, entre outros. Pinto (2003, p. 97) avalia que, ainda que a segmen-
tação seja uma característica das ONGs, isso também é uma resposta aos novos rumos que o
feminismo da década de 1980 e 1990 seguiam,
isso parte do reconhecimento de que ainda nem todos conseguiram compreender as lógicas da
sociedade que subjugam as mulheres há séculos.
Essa situação faz com que, muitas vezes, pautas feministas e cenário político andem
em paralelo, com uma convivência difícil e em constante tensão. Um exemplo é a atual minis-
tra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que adicio-
na nessa relação, ensinamentos religiosos, como direcionamento político. Em diversas situa-
ções a Ministra já criticou o movimento, combateu o aborto, afirmou que a maternidade é da
natureza feminina e que meninas devem ser como princesas. Atitudes que apenas reafirmam e
mostram o quanto a luta feminista está longe do fim e ainda precisa vencer muitas barreiras.
A década de 2000 traz novos rumos para o feminismo. De acordo com Sarmento
(2017), ao mesmo tempo em que as pautas feministas, principalmente aquelas referentes à
violência de gênero, ganham força no Estado, surgem outras formas de ativismo, a exemplo
dos eventos transnacionais como a Marcha Mundial das Mulheres, Marcha das Vadias, e de
formas de atuação facilitadas pelas novas tecnologias, principalmente a internet, que possibili-
ta as organizações em rede. É dos anos 2000, também, a criação, pelo governo federal, da
Secretaria de Políticas para as Mulheres, responsável pelo planejamento e implementação de
políticas públicas para combater a violência e ampliar a autonomia econômica das mulheres
(CASTRO, 2019). Fato importante desse período é a promulgação da Lei Maria da Penha, em
2006, coibindo a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Nos anos mais recentes, podemos dizer que o movimento feminista novamente ganha
fôlego e volta às ruas, a exemplo da Primavera das Mulheres Brasileiras, em 2015, que levou
milhares às ruas em protesto contra o machismo, assédio, conservadorismo política e extinção
de direitos já conquistados. Isso pode ser visto como uma forma de resposta ao que vinha
acontecendo na década anterior, que promulgava o fim do feminismo, declarando que todas as
lutas já haviam sido ganhas, acarretando certa acomodação no contexto social. Entretanto, na
prática, não foi o que aconteceu e isso se refletiu em elevados índices de violência, feminicí-
dio, salários ainda mais baixos, pouca representação política – talvez, resida aí, também, a
crescente força do conservadorismo que não enxerga, em movimentos como esse, uma luta
necessária. E, se nos espaços políticos e midiáticos tradicionais o feminismo perdeu força, as
redes, nesse sentido, “têm servido como um palco de circulação e produção de novos conhe-
cimentos e de mobilização política” (CASTRO, 2019, p. 125). Ganham destaque, então algu-
mas ações como #ChegadeFiuFiu, #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto, denunciando
assédios e formas de violência que as mulheres sofrem.
89
Nas ruas, um dos principais momentos marcantes do feminismo da década foi a mani-
festação #EleNão, no dia 29 de setembro de 2018, em repúdio ao então candidato a presidente
Jair Bolsonaro. O ato, se organizou através da internet e se espalhou pelas ruas de centenas de
cidades brasileiras e até fora do país e, de acordo com Pinto (2018), foi considerada a maior
manifestação de mulheres na história do Brasil, além de uma das maiores manifestações con-
tra um candidato. A hashtag #EleNão foi criada em 12 de setembro de 2018, no grupo do Fa-
cebook “ Mulheres Unidas Contra Bolsonaro", em reação às declarações misóginas do então
candidato e, em apenas 12 dias, contabilizou mais de 1,6 milhão de menções contrárias ao
candidato. De acordo com Rosana Pinheiro-Machado e Joanna Burigo (2018, online) "#Ele-
não não é uma simples hashtag, mas um movimento extraordinário de base, capilar e micros-
cópico, que ao mesmo tempo organiza um ato político e serve de ponto de convergência para
outras movimentações de mulheres, online e face a face.”
Conforme Pinto (2003), o feminismo das gerações passadas era formado por mulheres
acadêmicas ou de movimentos sociais, tendo muita influência na Constituição de 1988, mas,
muito fechado em um grupo, o que fez com que fosse malvisto tanto pela sociedade mais con-
servadora como pela própria esquerda e agora, "o que aconteceu foi uma popularização do
feminismo. Está espraiado na sociedade. Ninguém mais pode dizer que é contra os direitos
das mulheres" (PINTO, 2018, s/p). As pautas desse momento, estavam para além da defesa
dos direitos das mulheres, mas, traziam para o debate, a temática dos direitos humanos e a
defesa da democracia, lutando contra o fascismo, o racismo, a ditadura e a favor das diferen-
ças.
Por fim, mais recentemente, no contexto brasileiro os debates e discussões feministas
ainda seguem fortes e necessários, frente a um cenário conturbado com a proliferação do con-
servadorismo e discursos de ódio. Dessa forma, se estendem cada vez mais para além das mu-
lheres, mas trazem temáticas dos variados gêneros, tendo, muitas vezes, que relembrar os di-
reitos constitucionais básicos de igualdade e dignidade.
Na Figura 4, apresentamos um quadro relacional entre os contextos do feminismo
americano e europeu e seus desdobramentos ao longo do tempo, em comparação à história do
movimento, no Brasil.
90
A referida autora, afirma que para que possamos pensar sobre a realidade das mulheres
de forma mais efetiva, precisamos viajar-entre-mundos, pois só assim é possível identificar as
verdadeiras pautas do movimento. “Conhecer os ‘mundos’ das outras mulheres é parte de
conhecê-las e conhecê-las é parte de amá-las” (LUGONES, 1987, p. 17, tradução nossa).
Dito isso, nos parece necessário que, para além da trajetória do feminismo e seus des-
dobramentos no contexto brasileiro, seja necessário compreender, na prática, como as lógicas
de desigualdade de gênero operam nos mais variados espaços sociais e que podem ser perce-
93
bidas através de diferenças salariais, índices de violência, número de políticas públicas, entre
outros indícios.
Como já abordado anteriormente, a grande ruptura nas estruturas de poder, que come-
çam a estabelecer os papéis femininos e masculinos advém do período colonial. Lá, as mulhe-
res indígenas foram dizimadas e as que restaram tinham como função o trabalho doméstico. O
destino das mulheres negras não era melhor, vieram ao Brasil na condição de escravizadas e
mesmo após a abolição, mantiveram condições precárias de vida. As mulheres brancas ganha-
ram status e possuíam privilégios entre as demais. Os efeitos dessa realidade colonial perdu-
ram até hoje, como apontam diversos indicadores socioeconômicos.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2018), em to-
das as sociedades existem diferenças entre os papéis masculinos e femininos e isso causa im-
pactos específicos sobre homens e mulheres, determinando variações na saúde, educação,
trabalho, vida familiar e no bem-estar geral de cada um. Assim, produzir e analisar estatísticas
implica em revelar desigualdades através da análise conjunta de outras características.
Assim, podemos compreender que o debate a ser feito é estrutural e deve tensionar as
condições que fazem com que determinado grupo possa exercer seus direitos plenamente,
enquanto outros ainda lutam por condições mínimas de dignidade.
Em relação à educação, no Brasil, apenas em 1827 o ensino público e gratuito foi san-
cionado, e assim, as mulheres adquiriram o direito de acesso à educação formal. Já a educação
superior foi apenas conquistada no ano de 1879. Entretanto, esses espaços eram frequentados
pela elite branca. Nas escolas, a lei da época exigia que meninos tivessem aulas com professo-
res homens e meninas com mulheres, delimitando o que cada um poderia ensinar e aprender,
conforme segue:
Art 12º As mestras, além do declarado no art 6º, com exclusão das noções de geo-
metria e limitando a instrucção da arithmetica só as suas quatro operações, ensinarão
tambem as prendas que servem á economia domestica;47
No que se refere aos direitos civis das mulheres, as primeiras legislações tinham como
base as ordenações jurídicas portuguesas, chamadas de Ordenações Filipinas e foram vigentes
até o ano de 1916. Nesse código, ao marido não era imputado pena por aplicação de castigos
corporais à mulher e aos filhos. Além disso, previa-se o direito de ele agredir e, se julgasse
necessário, matar a esposa flagrada em adultério. O título XXV desse ordenamento jurídico,
explicitamente, recomenda: “E toda mulher, que fazer adultério a seu marido, morra por is-
so.”48
No ano de 1916 um novo código civil entrou em vigência e partia do predomínio da
autoridade marital, trazendo o homem como o chefe da família, sendo a base para regular seus
direitos, conforme pode ser observado no artigo 22349.
Ou seja, nesse cenário fortemente marcado pelo patriarcalismo, a mulher não era um
ser dotado de direitos e que pudesse fazer escolhas por conta própria. Durante sua infância e
juventude estava atrelada ao poder do pai, que, posteriormente a “entregava” ao marido. O
inciso dois, do artigo 6 do referido código deixava nítido que “São incapazes, relativamente a
certos atos as mulheres casadas”. A escolha da profissão, o recebimento de herança, ou a ven-
da de seus bens só poderia ser feita com autorização do marido. Além disso, às mulheres era
exigida a virgindade no momento do casamento e o desrespeito a isso permitia a sua anulação
– para além das questões jurídicas, isso refletia na “honra” da mulher e sua família.
Esse cenário era o palco do crescente feminismo brasileiro da época, que lutava em
meio a um espaço extremamente machista e patriarcal. Como já mencionado, das lutas dessas
47
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-
publicacaooriginal-90222-pl.html > Acesso em 18 de julho de 2017.
48
Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242733 > Acesso em 18 de julho de 2019.
49
Disponível em: < https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/103251/codigo-civil-de-1916-lei-3071-16>
Acesso em 18 de julho de 2019.
95
50
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4121-27-agosto-1962-353846-
publicacaooriginal-1-pl.html> Acesso em 18 de julho de 2019.
51
A dissertação intitulada “Identidade feminina gaúcha: representações de gênero nos programas regionais
Bah!” buscava problematizar os sentidos sobre a identidade da mulher gaúcha, mobilizados pela RBS TV, a
partir dos especiais “Bah!”, exibidos nos anos de 2013, 2014 e 2015, alusivos à Revolução Farroupilha. Para a
pesquisa, na época, também buscamos o contexto das mulheres no período, com foco no Rio Grande do Sul.
Disponível em: < https://repositorio.ufsm.br/handle/1/6370> Acesso em 30 de abril de 2020.
96
Realizando essa mesma pesquisa no ano de 2019, para compreender seu funcionamen-
to na esfera política atual, os links que indicavam as ações e projetos da SNPM direcionavam
todos para uma página de erro. Outra informação relevante é que, até 2015, essa mesma secre-
taria possuía o status de Ministério, a partir dessa data, foi incorporada ao Ministério das Mu-
lheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). No ano de 2016, o
MMIRDH foi extinto e as atribuições da Secretaria passaram ao Ministério da Justiça e Cida-
dania. A partir de 2019, a SNPM passou a integrar Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos. Essa irregularidade e instabilidade sobre a forma como a Secretaria é geri-
da e quais são os projetos desenvolvidos, além da perda do status de Ministério, reflete certo
desinteresse por parte dos governantes em atentar para a pauta das mulheres, ao mesmo tempo
em que o conservadorismo ganha espaço no Brasil.
Já no ano de 2006, podemos citar como avanço fundamental a Lei 11.340, de 07 de
agosto de 2006, a Lei Maria da Penha52, que além de criar mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra mulheres, busca assegurar formas de garantir seus direitos através
do desenvolvimento de políticas públicas ou programas governamentais. Essa Lei, de acordo
com Castro (2019) é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das
maiores legislações do mundo de combate à violência doméstica. Na avaliação da Diretora-
Executiva da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Samira Bueno (2019), é
uma grande conquista e muito boa no papel, mas ainda com grande dificuldade de implemen-
tação.
No âmbito trabalhista, a Constituição Federal de 1988 já havia garantido uma série de
direitos às mulheres, como licença maternidade, proteção do mercado de trabalho da mulher,
assistência gratuita em creches e pré-escolas, proibição de diferença salarial motivada pelo
sexo, entre outro. No entanto, esse rol de benefícios não era extensivo a todas as mulheres ou
a todos os tipos de trabalho e dele estava fora o trabalho doméstico, desempenhado, em gran-
de parte, por mulheres negras. A equiparação de direitos ocorreu somente com a Emenda
Constitucional nº 72, de 2013, que foi posteriormente regulamentada pela Lei Complementar
150, de 2015. A PEC das domésticas, como ficou conhecida a lei, deve ser também observada
com base nas mulheres que são beneficiadas por ela. Conforme o Instituto de Pesquisa Eco-
nômica Aplicada (IPEA) (2017), historicamente o trabalho doméstico é realizado por mulhe-
res negras. Em 2015, estimou-se que o Brasil possuía cerca de 6,2 milhões de pessoas que
52
Sobre a Lei, pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas observou que sua aplicação
reduziu em 10% a taxa de homicídios contra as mulheres dentro de suas próprias residências. Disponível em: <
http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24610&catid=8&Itemid=6>
Acesso em 30 de jun. de 2015.
97
trabalhavam como domésticas, sendo 5,7 milhões, mulheres. Dessas, 3,7 milhões eram negras
e pardas e 2 milhões eram brancas. O nível escolar das brancas era 6,9 anos de estudo, en-
quanto que das negras e pardas, era 6,6.
É de 2015, também, a promulgação da Lei nº 13.104, conhecida como Lei do Femini-
cídio, que passa a tipificar o homicídio de mulheres como um crime hediondo, quando envol-
ve menosprezo ou discriminação à condição feminina. Ou seja, feminicídio trata-se de um
crime de ódio contra as mulheres. A tipificação desse tipo de crime é necessária por ele estar
intimamente relacionado à violência de gênero – isto é, em grande parte das vezes, não é um
ato isolado, vem antecedido de outras formas de violência, física, sexual, psicológica, patri-
monial, entre outros. De acordo com o IPEA (2017, p. 37), os dados sobre violência contra a
mulher e feminicídio “revelam um quadro grave, e indicam também que muitas dessas mortes
poderiam ter sido evitadas. Em inúmeros casos, até chegar a ser vítima de uma violência fatal,
essa mulher é vítima de uma série de outras violências de gênero”. É inevitável não relacio-
narmos esse fato com a falta de políticas públicas de prevenção à violência e atenções especi-
ais às mulheres, que resultam de pouca importância e baixa valorização dada pelo atual go-
verno para a SNPM, que teria como objetivo promover tais políticas e ações. Apesar de tudo,
mais recentemente, em 2019, uma vitória foi a criminalização da homofobia e da transfobia.
Com isso, atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais devem ser enquadrados no
crime de racismo, um crime inafiançável e imprescritível.
No entanto, a despeito da igualdade conquistada em leis, da garantia ao voto, a igual-
dade salarial, ao trabalho remunerado e ao combate à violência, a realidade ainda mostra que
temos muito o que avançar e na prática, por vezes, parece que regredimos e isso é possível de
ser visualizado através de alguns dados de nosso contexto social atual.
No Brasil, de acordo com dados do IBGE, no ano de 2018, as mulheres dedicaram
cerca de 73% a mais de horas do que os homens no cuidado de pessoas e/ou afazeres domésti-
cos. Isso resulta em cerca de 18,1 horas semanais para as mulheres, contra 10,5 para os ho-
mens. Ao observarmos essa estatística com o recorte de raça, o número aumenta para 18,6
horas para as mulheres negras ou pardas e permanece inalterado para os homens. O que po-
demos perceber aqui é que, mesmo com a maior participação das mulheres no mercado de
trabalho, maior tempo dedicado aos estudos, redução do número de indivíduos na família que
requerem cuidados, as mulheres seguem dedicando mais tempo aos afazeres domésticos do
que os homens, revelando a face da dupla jornada de trabalho delegada a elas.
Em relação à remuneração, os dados do IBGE (2018) atestam que elas seguem rece-
bendo cerca de 75% do que os homens recebem. No entanto, se formos analisar esses núme-
98
ros por nível de instrução, o diferencial é ainda mais elevado entre homens e mulheres que
possuem ensino superior completo ou mais. Nessa categoria, no ano de 2016, as mulheres
receberam 63,4% do salário masculino. Ribeiro (2017, p. 40) alerta ainda, sobre a necessidade
de visualizarmos esses dados salariais a partir de um recorte de raça, pois pontua que “mulhe-
res brancas ganham 30% menos que homens brancos. Homens negros ganham menos do que
mulheres brancas e mulheres negras ganham menos que todos”. De acordo com o IPEA
(2017) 39,6% das mulheres negras estão inseridas em relações precárias de trabalho. São elas,
também, o maior contingente de pessoas desempregadas ou no trabalho doméstico. É interes-
sante pensarmos nesses números e contrapormos ao aumento contínuo dos níveis de escolari-
dade feminina nas últimas três décadas. De acordo com o IBGE (2018, p.5), “diversos indica-
dores confirmam essa tendência geral de aumento da escolaridade das mulheres em relação
aos homens, apesar de a estrutura ocupacional de homens e mulheres permanecer bastante
desigual”.
No entanto, observando o quesito “educação” através das taxas de atraso escolar, per-
cebemos que os dados apresentados anteriormente escondem um grave recorte étnico: 30,7%
das mulheres negras ou pardas estão atrasadas na escola, enquanto 19,9% das brancas estão na
mesma situação. Ainda assim, as mulheres atingem, em média, um nível de instrução maior
que os homens. O acesso ao nível superior pelas mulheres é 37,9% superior ao dos homens.
No entanto, cabe observar que mulher é essa que atinge o nível superior: 23,5% são brancas
contra 10,4% negras ou pardas. Com isso, fica evidente a desigualdade no acesso à educação
entre mulheres brancas e negras ou pardas, ou seja, saber que as mulheres têm aumentado seu
nível de instrução é algo positivo, mas é necessário que se compreenda que essa ainda não é a
realidade de todas.
Em relação à participação feminina na esfera política, é importante destacar que desde
1995 o Brasil possui legislação que prevê cotas eleitorais, reservando um percentual de candi-
daturas em eleições proporcionais para as mulheres, contudo, somente a partir da Lei n.
12.034, de 29 de setembro de 2009, essas cotas tornaram-se obrigatórias. Assim, é necessário
que haja no mínimo 30% e no máximo 70% de candidaturas de cada sexo, em cada partido ou
coligação partidária. Essas cotas, no entanto, garantem apenas a candidatura e, em 2017, o
percentual de cadeiras ocupadas por mulheres em exercício no Congresso Nacional era de
11,3%. No Senado Federal, eram 16% e na Câmara dos Deputados, apenas 10,5% (IBGE,
2018). Em 2019, essa lei foi questionada por um projeto de lei do senador baiano Angelo Co-
ronel, com a justificativa de que limita a autonomia partidária. A proposta foi rejeitada.
99
53
Disponível em: < http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/bolsonaro-vira-reu-por-falar-que-maria-do-
rosario-nao-merece-ser-estuprada.html> Aceso em 17 de julho de 2019.
100
não permitirem54. Mais recentemente, em 2019, o presidente nacional do Partido Social Libe-
ral (PSL) declarou que “a política não é muito da mulher. Eu não sou psicólogo, mas eu sei
isso”.55 Esse tipo de pensamento e atitudes advindas dos mandatários do país, que são refe-
rência para muitos, devendo dar o exemplo, suscitam e dão abertura para acontecimentos co-
mo o assassinato, ainda sem resolução, da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, em
março de 2018, mulher negra, lésbica, feminista e ativista de movimentos sociais.
No que se refere à participação das mulheres em cargos gerenciais, apenas 39,1% de-
les são geridos por elas, percentual que aumenta de acordo com a elevação da faixa etária.
Para mulheres negras ou pardas, o número ainda é menor: 37,2%. Assim, embora as mulheres
constituam mais da metade da população brasileira e apresentem índices maiores de estudo, as
posições de liderança ainda são masculinas. Essa situação reflete e pode se desdobrar em ou-
tras, como são casos de abuso, assédio e violência. Culturalmente, aos homens, também foi
ensinado um “modo de ser homem”, que está atrelado à masculinidade, autoridade, força físi-
ca e demonstrações públicas de poder. Para eles foi transmitido que as mulheres estariam à
disposição, os obedeceriam e eram seres menos capacitados. Alterar essa lógica cultural cons-
truída por mais de séculos, não é tarefa fácil.
Mary Wollstonecraft, no século XVIII, já problematizava uma situação decorrente
dessa realidade, que quanto mais pobres e menos educadas, mais sensíveis as mulheres ficam
a serem exploradas, sofrerem violência e assédio. Essa assertiva se reflete nos números de
violência contra a mulher no nosso país. De acordo com o Instituto DataSenado (2016), no
Brasil, as maiores taxas de violência letais são contra mulheres pretas e pardas, podendo che-
gar a ser três vezes maior do que contra as mulheres brancas. Esse mesmo Instituto destaca
ainda que em 2014, em Roraima e Ceará, a taxa de homicídio de mulheres indígenas foi maior
do que a soma de mulheres brancas, negras e pardas. Outro destaque importante é que, se es-
ses números forem observados em comparação com o ano de 2006, percebe-se uma redução
na taxa de homicídios de mulheres brancas, em contrapartida ao aumento do número de morte
de mulheres negras e pardas.
Essa realidade é apresentada através de um estudo do Escritório das Nações Unidas
para Crime e Drogas (UNODC), de 2018, que mostra o Brasil como um dos países mais vio-
lentos do mundo para as mulheres. A pesquisa revela que, enquanto a taxa de homicídios fe-
mininos global foi de 2,3 mortes para cada 100 mil mulheres em 2017, no Brasil, a taxa é de 4
54
Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/governos-precisam-ter-marido-dai-nao-quebram-diz-temer-
sobre-crise-fiscal-21277333> Acesso em 17 de julho de 2019.
55
Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/politica-nao-e-muito-da-mulher-diz-
presidente-nacional-do-psl.shtml> Acesso em 17 de julho de 2019.
101
mulheres mortas para cada grupo de 100 mil mulheres, ou seja, 74% superior à média mundi-
al.
Dados ainda mais atuais, de 2019, levantados pelo Instituto Datafolha, indicam que 1,6
milhão de mulheres, no Brasil, foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no
último ano, enquanto 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio.
Entre os casos de violência, 42% ocorreram no ambiente doméstico. Após sofrer uma violên-
cia, mais da metade das mulheres (52%) não denunciou o agressor ou procurou ajuda. Essa
informação é extremamente problemática por revelar que os dados, que já são desfavoráveis a
elas, são subnotificados. Mais uma vez, é possível afirmar que essa situação está atrelada à
condição de muitas mulheres que, em grande parte das vezes, são dependentes econômicas de
seus parceiros, possuem medo de denunciar, não contam com o apoio da família e, tampouco
de grande parte da sociedade que ainda as culpabiliza em inúmeras situações.
De acordo com o Instituto Patrícia Galvão (2019), os números são ainda mais assusta-
dores e relatam que a cada 9 minutos uma mulher é vítima de estupro no país. Em 24 horas,
treze mulheres são vítimas de feminicídio. A cada dois minutos uma mulher registra algum
tipo de agressão com base na Lei Maria da Penha, isso significa 606 casos diários. A cada dia,
uma pessoa trans é assassinada e, entre 2016 e 2017, houve um aumento de 127% nos homi-
cídios contra gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros - dado que faz com que o país seja o
que mais mata pessoas trans e gênero-diversas, que possuem uma expectativa de vida de cerca
de 40 anos.
Segundo o IPEA (2019), no ano de 2017 foram registrados 4.936 casos de homicídios
de mulheres, indicando que, de 2007 para cá, houve aumento de 20,7% na taxa nacional. Des-
se número, ainda é preciso que se observe que 3.288 delas eram mulheres negras, o que repre-
senta 66% de todas as mulheres assassinadas no país. Enquanto a taxa de homicídios de mu-
lheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mu-
lheres negras cresceu 29,9% no mesmo período.
Outros dados relevantes levantados pelo IPEA (2019) relatam que do total de homicí-
dios contra mulheres em 2017, 54,3% deles foram com arma de fogo e 583 tiveram o ambien-
te doméstico como cenário do crime. O estudo destaca que, na última década, o número de
homicídios por armas de fogo em residência aumentou 40,5%. Esse último dado, para Bueno
(2019), é extremamente alarmante no contexto atual, em que o presidente, Jair Bolsonaro,
expediu um decreto que facilita a posse de armas, ou seja, que dá o direito para o cidadão pos-
suir armas em casa, local onde justamente as mulheres mais morrem. Assim, com base nas
evidências atuais, de acordo com a diretora, é praticamente inevitável que, nos próximos anos,
102
se tenha um aumento no número de feminicídios ou lesões graves contra mulheres, já que, “se
cidadão que é um perpetrador de violência doméstica tem uma arma dentro de casa, é uma
receita para a tragédia. Estamos dando um instrumento mais poderoso ao algoz de uma mu-
lher” (BUENO, 2019, s/p).
Todos esses fatos e mudanças apresentados até agora, inevitavelmente, foram acom-
panhadas de perto por formas de mídia existentes em suas respectivas épocas. Se de modo
inicial, as pautas feministas ganhavam espaço em folhetins e panfletos, mais atualmente lutam
por espaço em grandes mídias, que executam um importante papel na divulgação da agenda
do movimento, tanto de forma positiva, quanto negativa. Serão essas relações, entre mídia e
feminismo, que serão abordadas no capítulo seguinte.
103
CONFLITO
TELENOVELA E REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS
As relações entre mídia e feminismo não foram sempre lineares, já que os objetos mi-
diáticos não eram o foco de estudo das primeiras pesquisadoras feministas. Por muito tempo
eles funcionaram apenas como um canal para difusão de ideias e pensamentos. A mídia femi-
nista ou aquela orientada para as mulheres, mas que diferenciava o seu tratamento de temas
considerados tradicionalmente femininos, como casa, família, moda, entre outros, começou a
surgir a partir do século XIX. Amy Farrell (2004) menciona que no cenário americano, perió-
dicos como o Woman’s Journal e The Revolution já circulavam no início do século, abordan-
do assuntos relativos aos direitos das mulheres e ao movimento sufragista. No Brasil, não é
diferente e desde os anos 1800, foram vários jornais, panfletos, cartazes e revistas publicados
e editados por mulheres que buscavam, de certo modo, trazer à baila a política feminista.
104
Esses periódicos tiveram um grande papel para estimular e disseminar novas ideias a
respeito das potencialidades femininas. Uma das primeiras iniciativas que podemos mencio-
nar, surgiu em Porto Alegre, em 1833, com Maria Josefa Barreto, que editou os jornais Belo-
na Irada Contra os Sectários de Momo e Idade D’Ouro, ambos marcadamente com viés polí-
tico e, mesmo que não abordassem diretamente questões de gênero, “não traziam nem borda-
dos, nem culinária, nem boas maneiras. Por isso, estavam muito à frente do seu tempo” (MU-
ZART, 2003, p. 230). Essas primeiras publicações não ganharam notoriedade por seus temas
estarem mais restritos ao espaço físico da então Província de São Pedro, atual estado do Rio
Grande do Sul.
Então, umas das primeiras publicações reconhecidas foi O Jornal das Senhoras56, de
1852, no Rio de Janeiro, que alertava as mulheres sobre suas necessidades de estudo e qualifi-
cações, bem como capacitações para gerir suas vidas. No entanto, ainda enfatizava que o prin-
cipal papel feminino estava atrelado à família e sua função era “amar e agradar aos homens”
(TELES, 2003). Também no Rio de Janeiro, em 1862 foi publicado o Belo Sexo.
Contudo, o principal título do período foi o jornal semanal O Sexo Feminino57, publi-
cado pela primeira vez em 1873. Diferentemente das publicações anteriores, não tinha sua
escrita voltada aos homens, nem tentava ganhar espaço entre eles ou convencê-los sobre as
potencialidades femininas, mas era dirigido diretamente às mulheres, para que tomassem
consciência de seus direitos. Em seu texto, defendia a ideia de que a dependência econômica
determinava a sujeição feminina e uma educação melhor as ajudaria a elevar seu status. Bus-
cava, também, pelo direito ao voto e abolição da escravatura (TELES, 2003). O Sexo Femini-
no teve sua fundação em Minas Gerais, mas na busca por maior alcance, mudou-se para o Rio
de Janeiro.
É oportuno observar aqui que, de acordo com dados do IBGE de 1872, a proporção de
mulheres alfabetizadas no Rio de Janeiro era de 29,3% da população, o que representava ape-
nas 11,5% do total da população brasileira que sabia ler e escrever. Ou seja, as publicações,
em geral, eram lidas por mulheres elitizadas, que tinham acesso à educação. Ainda assim, as
10 primeiras edições do jornal venderam mais de 4 mil exemplares, no Rio de Janeiro. Em
1889, com a Proclamação da República, o jornal passou a se chamar de Quinze de Novembro
do Sexo Feminino.
56
O Jornal das Senhoras possui todas suas edições online no site: <http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-
digital/jornal-senhoras/700096> Acesso em 12 de fevereiro de 2020.
57
O Sexo Feminino possui todas suas edições online no site: < http://bndigital.bn.br/acervo-digital/sexo-
feminino/706868> Acesso em 12 de fevereiro de 2020.
105
De acordo com Maria Amélia Teles (2003) e Karina Woitowicz (2012), ao longo da
década de 1870, acontece a expansão das publicações, surgem, então O Domingo (1874), O
Jornal das Damas (1874), ambos no Rio de Janeiro, Myosotis (1875), no Recife, Echo das
Damas (1879) e O Direito das Damas (1882), no Rio de Janeiro, A Família (1888), em São
Paulo, entre outros. Essas publicações abordavam temáticas distintas, desde a defesa da ma-
ternidade, dos direitos e aptidões das mulheres, até conhecimentos em áreas específicas como
saúde, arte e cuidados domésticos. Muitas defendiam a igualdade da mulher e o direito à edu-
cação. Josefina Álvares Azevedo, editora de A Família, apoiava o direito ao voto e era expli-
citamente contrária à chefia masculina das famílias, já que considerava o homem
“[...] um déspota”, que tratava sempre de exercer o domínio sobre outros indivíduos.
Defendia o divórcio alegando que, “se uma mulher pudesse repudiar o marido que
os pais lhe impuseram sem a sua afeição”, ela poderia controlar o “seu destino” mais
do que aquelas que sacrificavam “a existência inteira a um capricho da autoridade
paterna” (TELES, 2003, pp. 35-36).
Josefina, em suas publicações, também apelava aos homens para que abrissem cami-
nhos à educação feminina e repudiava o que considerava como “atitude egoísta masculina”,
que impedia o desenvolvimento das aptidões delas. Acreditava e propagava a ideia de que era
preciso uma rebelião das mulheres contra o tratamento de escravas, proferidos pelos homens
(TELES, 2003).
Constância Duarte (2017) contabiliza que, ao longo desse século, mais de 143 jornais e
revistas femininos e feministas circularam pelo Brasil, tornando-o o país da América Latina
com o maior número de publicações nessa área. Durante esse período, foram múltiplos títulos,
larga amplitude e alcance nacional, tensionando a opinião pública não apenas nos grandes
centros, mas no interior, periferias, litoral ou províncias afastadas. É por essa abrangência e
diversificação que, para a autora, “[...] foram os jornais os primeiros e principais veículos da
produção letrada feminina, que desde o início se configuraram em espaços de publicidade,
aglutinação e resistência” (DUARTE, 2017, p. 98).
Na virada do século, a partir dos anos 1900, além da gradativa incorporação das mu-
lheres aos veículos de comunicação, o que fez com que as temáticas se diversificassem, as
publicações cresceram exponencialmente e se segmentaram cada vez mais, para dar conta de
interesses variados. Era preciso acompanhar as transformações do período e falar para as jo-
vens, as solteiras, as casadas, as executivas, as esportistas, as mães, as independentes, as ati-
vistas ou para qualquer mulher que tivesse o interesse na leitura (DUARTE, 2017). Títulos
como A Cigarra (1914), A Violeta (1916), Renascença (1916), Momento Feminino (1947),
106
Capricho (1951), Manequim (1959), Claudia (1961), Vogue (1975) são alguns dos represen-
tantes desse novo momento. Não obstante, é a partir dos anos 1970 que o cenário de publica-
ções periódicas femininas adquire um novo impulso, com a efervescência do movimento fe-
minista.
Nesse período, que acompanha a ditadura civil-militar (1964-1985), no Brasil, ganha
força a participação da mídia alternativa, como forma de expressão de grupos que desejavam
questionar e promover mudanças, mas que não encontravam espaços na mídia tradicional.
Como aponta Woitowicz (2008), “diante da criação de grupos feministas no país, surgem pu-
blicações entre o final dos anos 1970 e o início dos 80 que, com orientações editoriais distin-
tas, inserem o debate sobre diversas questões feministas nos meios da política, da intelectuali-
dade e em setores de base”, como a luta pela melhoria das condições e custo de vida, reivindi-
cações de direitos trabalhistas, salário digno e a implementação de creches que atendessem os
filhos de mães trabalhadoras. Para Leila Barsted (1983), esse foi um momento de criação ou
reapropriação da mídia: era preciso criar novos meios para falar e, de maneira mais difícil, era
preciso angariar espaço dentro de veículos de amplo alcance, como rádio, televisão ou cine-
ma. Para a autora, essas fontes de comunicação deveriam ser utilizadas como estratégia de
educação do movimento feminista, de resgate da história e recriação da identidade feminina
perdida nos tempos de ditadura58. Entre as publicações da imprensa alternativa feminista, des-
tacam-se os jornais Brasil Mulher (1975-1979), Nós Mulheres (1976-1978) e Mulherio (1981-
1987), que tiveram uma importante contribuição na difusão de reivindicações e propostas di-
retamente relacionadas com a condição das mulheres.
Brasil Mulher foi o primeiro jornal dirigido às mulheres no período pós-1975, já inici-
ada a abertura política no país. Em seus textos, abordava a especificidade da luta delas pela
emancipação, os problemas do patriarcalismo e da dominação feminina, reivindicava pela
anistia, creches para as crianças e liberdades democráticas. Tratava, também, de assuntos que
não eram veiculados na imprensa oficial do período, como violência doméstica, condições de
trabalho, direito reprodutivo, aborto e sexualidade. O jornal se comprometeu em dar visibili-
dade às mulheres negras, o que foi feito já na primeira edição (Figura 6).
58
Não devemos esquecer, conforme abordado anteriormente, que, de acordo com Teles (2017), nos tempos de
ditadura, as mulheres foram as primeiras a entrar em cena, seja juntando-se à luta armada, participando de
organizações clandestinas ou a procura de parentes presos ou desaparecidos.
107
Fonte: OperaMundi
[...] Queremos falar dos problemas que são comuns a todas as mulheres do mundo.
Queremos falar também das soluções encontradas aqui e em lugares distantes; no
entanto, queremos discuti-las em função de nossa realidade brasileira e latino-
americana. A época do beicinho está definitivamente para trás, porque milhares de
mulheres em todo o mundo fazem jornada dupla de trabalho, num esforço físico que
faz com que uma jovem mãe de 30 anos pareça estar com mais de 50; mulheres que
desejavam trabalhar e serem independentes economicamente de seus maridos [...]
Queremos usar a inteligência, informação e conhecimentos em função da igualdade
e, desde já, a propomos, como equidade entre homens e mulheres de qualquer latitu-
de. (BRASIL MULHER, 1975, p.2)
Dessa forma, mesmo que em seu princípio o jornal não se intitule como “feminista”,
devido à resistência que o termo sofria no período, as pautas tratadas por ele dialogavam de
forma explícita com a agenda do movimento.
No ano seguinte, em 1976, inicia a publicação do jornal Nós Mulheres59 (Figura 7),
que tem como grande inovação a utilização do termo “nós”, em seu título, rompendo com o
tratamento dado às mulheres pela imprensa feminina tradicional, “em que um editor impesso-
al e assexuado dita regras e 'aconselha' uma leitora chamada de ‘você, mulher’” (LEITE,
2003, s/p). Suas publicações buscavam abordar a especificidade de variadas lutas, problemati-
59
Nós Mulheres possui suas edições online no site: <https://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/nosmulheres/>
Acesso em 12 de fevereiro de 2020.
108
Passados mais de 40 anos da publicação original do texto, ainda hoje ele carrega gran-
de carga de atualidade e segue retratando muitos das lutas e enfrentamentos do feminismo dos
anos 2020.
O terceiro periódico que merece destaque é Mulherio60, que teve sua primeira edição
em 1981 (Figura 8). Com caráter acadêmico, foi um importante veículo de discussões femi-
nistas no meio científico na década, já que tinha como objetivo ser um informativo para a di-
vulgação de pesquisas e debates sobre temas relacionados à situação da mulher no Brasil, com
destaque à vida das operárias, de moradoras de periferia e de produção cultural de escritoras e
artistas de todo país (ZIRBEL, 2007).
60
Mulherio possuiu suas edições online no site:
< https://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/capas2.html > Acesso em 12 de fevereiro de 2020.
110
Na reportagem, era problematizado sobre o modo como a televisão dizia o que cada
indivíduo deveria fazer e como, manipulando a opinião pública, desconsiderando as práticas
de resistência da audiência. Sugeriam que os meios de comunicação são fundamentais na
formulação da ideologia dominante e possuem capacidade de favorecer a transformação ou
operarem na manutenção do status quo. Sobre as representações, afirmavam que era evidente
que a mulher nunca era representada como sujeito e sim como objeto. Isso acontecia, pois a
construção dessas imagens não era feita pelas próprias mulheres, como alertava o texto.
É preciso atentar para o fato que as estruturas informativas estão nas mãos dos ho-
mens e a construção da imagem da mulher e suas possibilidades de existência só se
dão nas coordenadas patriarcais, segundo as quais a imagem e a existência estão em
função do desejo do homem. A mulher negra, por exemplo, é sempre mostrada co-
mo sensual e boa de cama, representação há muito tempo combatida pelo movimen-
to negro (MULHERIO, 1988, p.4).
Com um tom pessimista que ainda compreendia o espectador como passivo, não apre-
sentava muitas formas de se opor ao que era veiculado, indicando apenas que era preciso não
61
Disponível em: < https://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/arquivo/VIII_38_1988menor.pdf >
Acesso em 13 de fevereiro de 2020.
111
dialogar com a mídia, ignorar o que era exibido ou como uma ideia ainda distante, “negociar
seu conteúdo”, adotando critérios e níveis de aceitação do que é veiculado. A mídia alternati-
va também sofria impacto com as transformações do momento e a revista já alertava para as
dificuldades que sofreriam com o “avanço tecnológico daqueles que detêm o poder na comu-
nicação. [...] É como enfrentar um tanque com um canivete” (MULHERIO, 1988, p. 4). Ou
seja, até esse momento, as mídias não eram pensadas como objetos a serem apropriados, e por
certo tempo, foram repudiadas.
Essa reação de pesquisadoras brasileiras não é isolada. No contexto americano, quando
do surgimento das soap operas62, por volta dos 1960, as produções que eram patrocinadas por
fabricantes de sabão e sabonete e, no senso comum, associadas ao público feminino, não obti-
veram grande relevância no mundo acadêmico, pelo contrário, havia certo repúdio, já que “era
considerada como o ópio das massas (particularmente das massas de mulheres), produtor e
produto da falsa consciência” (MEIRELLES, 2009, p. 55). As soap operas foram criticadas
pela forma como representavam e pautavam temáticas femininas, oferecendo imagens de mu-
lheres que não encontrariam correspondente na realidade: seriam construídas pelos produtos
midiáticos, perpetuando desigualdades e estereótipos. No entanto, a repulsa pelo produto tele-
visual teve de ser contornada na medida em que ele se tornava cada vez mais popular e com
grandes índices de audiência, ficando praticamente impossível desconsiderar a relevância so-
cial de tais objetos.
Essa percepção se aproximava muito do campo dos estudos culturais que, nesse mo-
mento, estava em expansão e lutava pela valorização e legitimação acadêmica de objetos cul-
turais, populares e cotidianos, como as soap operas e neste estudo, as telenovelas63. Além
disso, a partir do impulso inicial gerado pelas inquietações promovidas pelas soap operas, se
desenvolveram, também, os estudos de televisão, dando ainda mais força para a área. Con-
forme Meirelles (2009, p. 58) “a atenção que a crítica feminista deu às imagens seguiu o inte-
resse do movimento sobre o impacto da mídia na vida cotidiana das mulheres”, destacando as
formas positivas e negativas utilizadas nas representações.
62
Programas ficcionais dramáticos ou de comédia, exibidos no formato seriado. Possui duas características
principais: os episódios não são histórias isoladas, podendo os conflitos se prolongarem por diversos episódios, o
que os aproxima das telenovelas e a produção não tem data de fim, podendo ser renovada continuamente. O
gênero é bastante popular nos Estados Unidos. No Brasil, um exemplo pode ser Malhação, exibida na Rede Glo-
bo desde 1995.
63
Nossa intenção não é tratar soap operas e telenovelas como sinônimos ou produtos idênticos. Utilizamos os
termos e por vezes os intercambiamos por conta da raiz ficcional em comum, pela origem das pesquisas sobre
tais atrações e por ambas trilharem caminhos semelhantes ao serem consideradas, em sua início, “produtos de
mulher”, com pouca valorização e prestígio acadêmico.
112
única formulação para o que é uma mulher – tampouco essa passaria apenas pelo viés midiáti-
co (BRUNSDON, 1997).
Com base nesse cenário e nas alterações de perspectiva acerca da análise dos produtos
midiáticos, Brunsdon (1997) destaca quatro pontos principais que incentivaram as feministas
a se interessarem pelo tema. O primeiro deles é relativo às audiências. As produções eram
feitas para as mulheres, com temáticas cotidianas e com uma série de competências inerentes
ao papel social preestabelecido, como maternidade, família e sexualidade. Outro elemento
dessa lógica de produção é a própria estrutura da soap opera: organizada em blocos que per-
mitiam a elas, durante os intervalos, desempenhar as tarefas domésticas. Para aquelas que
ficassem em frente ao aparelho, eram mostrados comerciais de alimentos, cosméticos, produ-
tos para a casa e limpeza. Ou seja, em sua concepção e formato existia a intencionalidade de
dirigir a produção para um público específico, ela era pensada para as mulheres, levava em
conta suas rotinas e modos de vidas.
O segundo ponto é a relação público x privado que tais produções pautavam, conforme
explica Brunsdon (1997, p.39),
Se pessoal é político, se é no lar, nas relações, nas famílias, que a opressão íntima
das mulheres – ou a opressão das mulheres como mulheres – é, consensualmente,
mais rígida, então as construções da mídia e as representações da vida pessoal se
tornam um objeto de estudo urgente e fascinante.
Se a representação pública das produções leva em conta o privado do lar, temas que
antes não eram pauta fora do núcleo familiar, agora poderiam ser debatidos como um “assunto
da televisão”. Nessa lógica começaram a ficar explícitos alguns dos aspectos inerentes ao co-
tidiano feminino, de forma a serem problematizados e questionados, como os relacionamen-
tos, o cuidado com filhos e marido, o mercado de trabalho, a busca por independência e até
elementos como a submissão, violência e machismo nas relações íntimas.
O terceiro aspecto é a releitura da própria crítica feminista sobre as soap operas. Foi
preciso compreender que se esses programas têm como foco as mulheres, tratam da vida delas
e com assuntos relativos aos seus universos, não as aceitar como objetos dignos de análise é,
também, dizer que as mulheres não são relevantes. Isto é, os programas estavam sendo consi-
derados desprezíveis e banais, bem como as mulheres, e essa concepção era equivocada
(BRUNSDON, 1997).
O quarto ponto está na compreensão de que as audiências não são passivas e não era
mais possível pensar que os discursos criadores do feminino estavam apenas nas soap operas,
115
como uma influência direta nos modos de ser individuais. Foi preciso enxergar a autonomia
feminina como audiência, com capacidade de escolhas, poder de decisão e negociação frente
ao que era exibido, perspectiva alinhada a Stuart Hall, e já expressa no ensaio “Codificação-
Decodificação” (1973). Nesse texto o autor sugeria que os textos televisivos são polissêmicos
e os diversos modos de interpretações ocorrem através de processos ativos de negociação, que
se apresentam através de se três posições de interpretação da leitura: dominante, negociada e
de oposição.
Com forte base e concordância com os estudos culturais, as relações acadêmicas entre
mídia e feminismo se intensificam, principalmente, com o crescimento dos estudos de televi-
são, que voltaram um outro olhar para as questões de representação de gênero. De acordo com
Laura Mumford (1998) as intersecções entre os campos dos estudos culturais, feministas e de
telenovelas não aconteceram por acaso, já que as três áreas possuíam preocupações que cami-
nhavam juntas.
A partir desse momento, essas áreas se tornaram cada vez mais próximas e interliga-
das. O aparelho televisivo estava em ascensão, angariando um número de espectadores cada
vez maior, diversificando as programações e conquistando adeptos ao redor do mundo inteiro.
As soap operas ou telenovelas firmavam seu espaço como objetos dignos de atenção e análi-
se. Os produtos culturais, de modo geral, obtinham um novo status, se tornando importantes
para o próprio sistema capitalista, que ganhava força, já que, “se até então cultura era encara-
da como um termo oposto ao capitalismo, agora as coisas se invertiam completamente: um e
outro se confundiam e se mantinham” (MEIRELLES, 2009, p. 51).
A grande diferença desse momento para o anterior foi a compreensão da audiência
como complexa, o que fez com que o questionamento fosse dirigido para o modo como os
produtos midiáticos se posicionavam, dialogavam e interpelavam as mulheres (MUMFORD,
1998). A análise ganhou fôlego e abriu brecha para novas interpretações das imagens, as per-
sonagens também se apresentavam cada vez mais plurais, como mulheres fortes, independen-
tes e poderosas, o que de certa forma gerava, se não a identificação, a ampliação do universo
116
das assistentes, que viam uma realidade diferente das suas, podendo ser uma inspiração ou
não. Nesse cenário, o estudo das representações femininas ganhou força através das variadas
personagens, com características distintas, indo além das personificações das mocinhas apai-
xonadas e dos heróis galanteadores.
No Brasil, a trajetória das telenovelas não é muito diferente. Os estudos sobre repre-
sentação e mídia são impulsionados pela expansão do número de lares com aparelhos de tele-
visão e da diversidade da programação exibida, em período concomitante ao projeto de mo-
dernização do país. Entretanto, as primeiras pesquisas não abordavam questões relativas ao
feminino e utilizavam a categoria gênero somente para indicar a distinção entre os sexos (ES-
COSTEGUY, 2001). Já as investigações específicas sobre as telenovelas não recaiam nas
problematizações sobre representações de gênero, mas, de forma ampla, dentro dos primeiros
estudos sobre cultura de massa no país. Isso fica evidente através de um levantamento realiza-
do por Maria Malcher e Narciso Lobo (2005), que aponta os assuntos mais analisados em
pesquisas acadêmicas sobre telenovelas, em ordem decrescente: recepção, cotidiano e cultura,
etnia, historiografia, antecedentes de novelas, impacto social e minisséries. As relações de
gênero não aparecem citadas. Para Meirelles (2009, p. 74)
Essa é uma ausência notável, que se torna motivo para reflexão por duas razões
principais: a associação da ficção seriada televisiva com o âmbito do privado e do
feminino é uma marca forte da cultura brasileira; diversas pesquisas, principalmente
as pioneiras, tiveram como pressuposto a natureza presumidamente feminina do te-
ma, inclusive deixaram que ele atravessasse suas análises. Se foi possível expor uma
longa trajetória que vincula a crítica feminista anglo-americana ao melodrama, ao
tratar das pesquisas brasileiras a reflexão terá como ponto de partida, ao contrário, o
quase silêncio em relação a esse tema, que pode ser traduzido na seguinte pergunta:
o que poderia justificar o afastamento do olhar feminista brasileiro à telenovela?
A supracitada autora sugere que o fato de, no Brasil, a crítica feminista não ter se
apropriado das telenovelas como objetos de estudo revela que no país o foco estava em outros
objetos de análise, o que se justifica pelo momento político pelo qual passávamos, que neces-
sitava de abordagens mais amplas. Para abarcar e esse panorama, a autora analisa as princi-
pais publicações feministas e, a partir daí, consegue elencar alguns focos de análise preponde-
rantes nos estudos. Um dos grandes eixos das pesquisas está no conceito de gênero em si, a
partir da desconstrução do binarismo sexual e calcado nos diversos sentidos culturais, políti-
cos e históricos do termo. Outro tópico de interesse das feministas é na corporalidade, através
da estética feminina, tendo como base de análise, as revistas. Mais atualmente, vinculam-se
aos queer studies e adotam uma outra perspectiva, relacionada a travestis, drag queens e drag
kings, que fazem uso de práticas médicas e de indumentária que realocam os binarismos sexu-
117
ais, evocando uma noção mais fluida do conceito de gênero, para além da visão heterossexista
(MEIRELLES, 2009).
Além desses, temas tradicionalmente vinculados às mulheres e basilares para os estu-
dos de gênero e feminismo são costumeiramente abordados, como o patriarcalismo, a mater-
nidade, infância, adoção, bem como as novas relações familiares e a paternidade. Também
estão presentes como temas de interesse as questões políticas e sociais vinculadas à legisla-
ção, como a Lei Maria da Penha e a criação de delegacias de mulher, leis trabalhistas e a ga-
rantia de direitos e políticas públicas. A inserção no mercado de trabalho e os espaços ocupa-
dos pelas mulheres no meio público, como a política, também estão em pauta. As relações
entre gênero e raça, principalmente através das mulheres negras também é recorrente, princi-
palmente através do conceito de interseccionalidade.
O levantamento realizado por Meirelles (2009) é de grande importância em nossa
pesquisa. Ele nos auxilia a compreender o panorama amplo de assuntos de interesse das pes-
quisadoras feministas brasileiras e, a partir daí, compor aquilo que, em nosso estudo, vamos
chamar de “pautas transversais”, assuntos que não fazem parte de uma agenda feminista pro-
priamente dita, mas que dialogam e trazem à tona temas relevantes, em paralelo às “pautas do
movimento”.
Atualmente, embora haja um crescimento nas pesquisas que abordam os eixos centrais
desse trabalho, telenovelas e feminismo, de forma independente, percebemos, com o auxílio
de Meirelles (2009), que estudos que congregam as duas áreas, ainda são escassos no Brasil.
Nos questionamos se a falta de interesse de pesquisadoras feministas nas telenovelas ainda
carrega certo preconceito com o objeto. Porém, é inegável que, para além de “coisas de mu-
lher”, as telenovelas estão presentes e já arraigadas no cotidiano dos brasileiros. Servem de
referências de hábitos, padrões comportamentais, pautam o dia a dia, ditam moda e formas de
consumo, quer façamos parte de sua audiência ou não.
ral, bem como na programação televisiva, por meio de regulamentações, censura e políticas
normativas (LOPES, 2002).
Houve, dessa forma, por parte do governo ditatorial, um incentivo à indústria da tele-
visão, fazendo com o que a aquisição do bem se tornasse prioritária nos lares brasileiros.
Hamburger (2011, p. 64) salienta que, nesse período, “em domicílios de famílias de baixa
renda, o aparelho televisor veio antes da geladeira e da máquina de lavar na lista de priorida-
des. A televisão se estabeleceu como meio capaz de falar a segmentos os mais variados em
termos sociais, etários e regionais”. Ela foi utilizada como vitrine do novo modelo político,
que tinha como bandeira uma expansão econômica, modernização e formação de uma socie-
dade de consumo. O propósito era que, assistindo televisão, as pessoas veriam lá um estilo de
vida urbano, altamente consumista, com referências de vestimentas, padrões de beleza, produ-
tos ou até de modos de agir, constituições familiares, tipos ideais de ser homem, mulher, pai,
mãe, marido ou esposa, e desejassem seguir o que era mostrado, como forma de estar incluído
nesse universo (HAMBURGER, 2007). As telenovelas ascenderam às posições de líderes de
audiência, por retratarem essa nova realidade que se estabelecia ou que era objeto de desejo.
Ainda vale lembrar que, embora fossem concessões estatais, as televisões brasileiras eram de
ordem comercial e se sustentavam através de anunciantes. Assim sendo, os comerciais das
atrações também eram utilizados para venda. Os primeiros intervalos de telenovelas, que, até
então eram pensadas como produtos para mulheres, eram utilizados para anúncios de sabão,
produtos de limpeza e utensílios domésticos (Figura 10).
64
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Iu3Av9QJOpg > Acesso em 29 de fevereiro de 2020.
120
as tarefas domésticas, são representadas bem-vestidas, com roupas elegantes, salto alto e ca-
belos arrumados, dando a ideia de que deveriam estar sempre prontas para servir. Na primeira
cena, enquanto a mulher serve seu esposo e filhos, um narrador em off afirma que “esta é uma
dona de casa feliz!”
A Rede Globo surge justamente nesse período. Criada no ano de 1965, Lopes (2002)
acredita que foi uma das maiores beneficiadas pelas políticas estatais, já que em um momento
em que a liberdade de expressão estava prejudicada, a TV Excelsior estava indo à falência e a
Rede Tupi enfrentava crises financeiras, a emissora cresceu e assumiu o posto dominante no
mercado, tornou-se lucrativa, vendeu produtos e atuou na divulgação e propagação dos ideais
do regime, que, desde o governo Castelo Branco (1964 – 1967) se preocupava em fomentar
uma cultura e uma identidade nacional (MEIRELLES, 2009).
A partir de sua fundação, a grande responsável pela dramaturgia no canal foi Glória
Magadan, autora de títulos como Eu Compro Esta Mulher, O Sheik de Agadir, A Rainha Lou-
ca e O Homem Proibido. Tinha como característica de suas produções, a herança do tom me-
lodramático das radionovelas e que pouco dialogavam com a realidade brasileira do período e,
menos ainda, com os anseios modernizantes do governo. De acordo com o arquivo Memória
Globo (2020), Glória Magadan foi uma das responsáveis por organizar a produção de teleno-
velas brasileiras segundo um processo industrial. Além disso, já naquele período, a autora
trabalhava assumidamente a partir de pesquisas de opinião, criando e extinguindo persona-
gens e tramas de acordo com sua própria aferição do gosto popular. Todavia, na busca por
inovar em suas produções e estar mais alinhada ao contexto contemporâneo, a Rede Globo
contratou, em 1967, Janete Clair, que seria responsável por dar um novo rumo a teledramatur-
gia nacional.
Em 1968, a Tv Tupi exibiu Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso, uma novela inovado-
ra, que transformou significativamente os estilos narrativos subsequentes. Ela se passava em
São Paulo, possuía uma história descontraída, pouca dramaticidade, temáticas contemporâ-
neas e diálogos coloquiais. A trama foi um sucesso e amplamente aceita, o que fez com que a
Rede Globo também alterasse seus modos de produção. Em 1969 Janete Clair escreveu Véu
de Noiva, também “moderna”, com história que se passava no Rio de Janeiro com persona-
gens com dilemas distintos, para além do par romântico.
No final da década de 1960, o panorama novelesco já era diferente. As tramas apresen-
tavam o universo das cidades, gravações externas localizavam o espectador no tempo e no
espaço, a linguagem coloquial aproximou e compartilhou referências entre os brasileiros, e
foram essas características que auxiliaram na consolidação da telenovela como o gênero mais
121
popular e lucrativo da televisão brasileira. De agora em diante, elas iriam se apresentar como
realistas, críticas da realidade social, cultural e política brasileira (LOPES, 2002).
Na década de 1970, a televisão já estava consolidada e a Rede Globo firmada em sua
posição como uma das principais produtoras audiovisuais do país, resultado do investimento
contínuo, da qualificação e criação de padrões técnicos para seus produtos, o que ficou conhe-
cido como Padrão Globo de Qualidade, regras implícitas ou explícitas que norteiam as produ-
ções do canal. Esse período coincide com o chamado “milagre econômico brasileiro”, uma
fase de modernização do país e do crescimento da economia, que só aconteceu as custas de
uma imensa desigualdade social, uma grande aceleração da dívida externa e uma alta na infla-
ção, já que o planejamento desse desenvolvimento foi desvinculado das necessidades reais da
população e acobertava os desmandos e horrores do período ditatorial. Como resultado do
momento, o número de aparelhos de televisão comprados cresceu de forma exponencial. No
ano 1970 são 5 milhões de televisores em todo o país, em 1975 já serão 10,2 milhões (MEI-
RELLES, 2009). Também em 1975, é lançada a Política Nacional de Cultura, que em seu
texto explicitamente indicava a necessidade de “estímulo à criação [...] do espírito do homem
brasileiro, visando à difusão desses valores através dos meios de comunicação de massa”
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA, 1975, p. 24).
Assim, a programação da televisão, que já era composta por grande quantidade de
produções brasileiras, se expande e parte dela, incluindo aí as telenovelas, é concebida como
um tipo de serviço de utilidade pública: a ficção passa a se preocupar com o enfoque naciona-
lista, com a melhora na qualidade das tramas e com os temas educativos (MEIRELLES,
2009). Para Lopes (2002), é possível, dessa forma, atribuir às telenovelas da Globo o papel de
protagonistas na construção de uma dramaturgia nacional, que alinhada às mudanças estrutu-
rais do período, como a urbanização, industrialização e a entrada da mulher no mercado de
trabalho,
Isto é, a fusão dos domínios públicos e privados realizada pela televisão, permite com
que sintetize problemáticas amplas em personagens e enredos localizados, ao mesmo tempo
em que expande assuntos pessoais para o contexto de debate público.
122
Com a percepção de que o formato deu certo e foi apreciado no contexto interno do
país, ainda nos anos 1970, a emissora encontrou mercado para exportar suas produções, pri-
meiro para Portugal, depois para América Latina e até para países socialistas. Dessa maneira,
“vindas de um país de Terceiro Mundo, em plena Guerra Fria, as novelas sugeriam que alter-
nativas liberais ao produto imperialista eram possíveis. [...] A exportação de novelas demons-
trou a possibilidade de reversão dos fluxos transnacionais de informação e cultura”, avalia
Hamburger (2011, p. 72). A exportação também se expandiu para países europeus e norte-
americanos, possibilitando e evidenciando a necessidade de abordagens abrangentes que fos-
sem consumidas em contextos culturais diferenciados. O sucesso das produções pode estar
atrelado, para além das representações nacionais, através do samba, futebol, carnaval e da
mulher sensualizada, estereótipos esses amplamente utilizados, mas, também, a uma hibrida-
ção com elementos referenciais já globalizados.
Hoje, o Brasil, através da Rede Globo, é um dos maiores produtores e exportadores de
ficção seriada no mundo, ao lado de países como o México, com a Televisa. Juntas, as duas
emissoras já produziram aproximadamente 1100 títulos. As produções da Globo já chegaram
a 132 países65, com Avenida Brasil, de 201266.
Então, já não era mais possível desconsiderar a importância deste formato na televisão
brasileira. A programação das redes passou a valorizá-lo e rotinas de exibição foram criadas.
A fixação de horários e a segmentação de temas surgiram como uma estratégia, também dos
anos 1970, para convergir grandes parcelas da população em torno das telenovelas. De hora
em hora, a partir da 18h, terminando as 22h, diferentes tramas, com enfoques específicos
eram exibidas e pautavam, ao mesmo tempo em que organizavam, o dia a dia da audiência.
De acordo com Lopes (2002, p. 7), nessa sistemática
65
Mundialmente a telenovela mais exportada foi Maria do Bairro, da Televisa, assistida em 182 países.
66
Informações disponíveis em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-
arte/2018/05/03/interna_diversao_arte,677893/compra-e-venda-de-novelas-aquece-o-comercio-entre-emissoras-
internacio.shtml> Acesso em 18 de fevereiro de 2002.
123
Atualmente, a primeira faixa é a das 17h30, ocupada por Malhação, dirigida para o
público infantojuvenil, seguida da novela das 18 horas, de temática geralmente histórica ou
romântica, às 19 horas, é exibida uma história atual, jovem e por vezes cômica, às 21 horas, é
a trama principal, com temática social e adulta. Ou seja, a telenovela atua na tentativa de criar
hábitos, rotinas e costumes, tornando-se assim, parte do cotidiano dos brasileiros, de todas as
idades e classes sociais67.
Para tal, sua estrutura narrativa é pensada para atrair, genericamente, “a família toda”.
Essa preocupação existe, pelo menos, desde 1970, com Irmãos Coragem, a primeira telenove-
la que, em seu planejamento buscou considerar a audiência masculina. Conforme Xavier
(2020), inspirada em filmes de bang bang americanos e italianos, teve como pano de fundo a
temática do futebol, buscando explicitamente captar esse público. Segundo o site Memória
Globo (2020), em 22 de junho de 1970, tiveram mais aparelhos ligados nessa produção do
que na final da Copa do Mundo de 1970, exibida no dia anterior. Hamburger (2005) relembra
dados divulgados pela Rede Globo no período após a exibição da trama, em que cerca de 40%
da audiência das telenovelas era masculina e que esses homens começaram a gostar do gêne-
ro, a partir de Irmãos Coragem. Para a autora, essa situação só mostrou para eles um formato
novo, frente ao que estavam acostumados, e que independente da temática, continuou tendo
aceitação por esse público.
A explicação para o sucesso dessa novela entre homens brasileiros estaria em sua
inspiração nos westerns norte-americanos. [...] A explicação não esclarece, no entan-
to, por que, depois de terminada Irmãos Coragem, o público masculino permaneceu
ligado às novelas, que não repetiram a referência ao western (HAMBURGER, 2005,
p. 65).
Outro aspecto interessante levantado pela autora é a estimativa de que esse percentual
seja ainda maior, já que há, entre os homens, resistência em falar que assiste novelas, prefe-
rem apontar que acompanham notícias ou futebol. A tese de Hamburger (2005) pode ser con-
firmada de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e
Estatística (Ibope) (2014), que indica que o gênero mais assistido por homens na televisão
aberta, em todo o país, são as telenovelas, seguidas do futebol, minisséries, filmes e progra-
mas de humor.
Se em seu princípio as telenovelas eram centradas em tramas românticas, dramas amo-
rosos e focadas em um público imaginado como feminino, ao longo do tempo esse cenário se
67
Em março de 2020, durante a pandemia de Covid-19 houve a necessidade da interrupção de gravações das
telenovelas em exibição. Por esse motivo, foram apresentadas reprises.
124
altera e se torna mais dinâmico, complexo e plural. As produções deveriam, agora, alcançar
públicos femininos, masculinos, infantis, juvenis, que gostam do romance, da aventura ou do
esporte, que trabalham em casa, nas indústrias ou chefiam empresas, que buscam por inde-
pendência, ou apenas querem um entretenimento na televisão, que estavam localizados desde
o norte até o sul do país, ou fora dele, com hábitos e costumes variados. A própria concepção
da telenovela precisou se reinventar e abranger um público que ansiava por um novo capítulo,
torciam pelas histórias e criavam expectativa sobre os personagens, que representavam suas
vivências dentro ou fora do Brasil.
Podemos afirmar que as narrativas das telenovelas dos anos 1970 e 1980 se mantive-
ram em torno de representações que tinham como cerne a formação de uma imagem nacional,
calcada em um país moderno e desenvolvido, com foco no eixo Rio-São Paulo e que pouco
problematizava ou questionava a estrutura política do período. A partir dos anos 1990, com a
diversificação da estrutura da televisão, a popularização da TV a cabo, o aumento da concor-
rência, a abertura política, a redemocratização, o crescimento dos movimentos sociais e a glo-
balização, mais uma vez a televisão precisou se adequar para novas representações, que, por
vezes, questionam e desestabilizam o que era trazido anteriormente (LOPES, 2002).
Nesse processo, utilizando de estruturas narrativas próprias e pouco definida em ter-
mos ideológicos ou políticos (LOPES, 2002), as telenovelas, ao longo de sua história, levanta-
ram debates públicos sobre temáticas diversas. Para além das narrativas padrões, dos conflitos
e dramas amorosos, abrem espaço para problematizar questões do cotidiano que estão invari-
avelmente em pauta. Isso pode ser considerado como merchandising social ou ações socioe-
ducativas, ou seja, inserções de temas sociais e mensagens educacionais no enredo de teleno-
velas e minisséries. Em grande parte das vezes, sem a intenção de debater o tema, apenas de
apresentá-lo nas narrativas. Nesse aspecto, a telenovela pode ser vista através de um movi-
mento pendular, tanto como uma vitrine de consumo, hábitos e comportamentos, quanto co-
mo um painel de temas sociais, antecipando ou reafirmando ideias e concepções (LOPES,
2002).
Exemplos podem ser vistos ao longo das décadas. Nos anos 1950, em Sua Vida me
Pertence, o debate foi em torno de um beijo entre os protagonistas, atitude considerada afron-
tosa para o período e ainda um tabu na televisão. Com o passar do tempo, os assuntos e mo-
dos de representar personagens, relações amorosas e familiares se diversificaram em muitos
sentidos. Houve, gradualmente, uma liberalização crescente em torno do romance, cenas de
nudez e sexo começaram a ser exibidas, ao mesmo tempo em que as relações sexuais antes do
casamento se tornaram comuns, desvinculando-as da procriação, ideias explícitas em Irmãos
125
Coragem (1970) ou Selva de Pedra (1972). A liberdade de escolha da mulher apareceu atra-
vés do divórcio e da possibilidade de novas uniões, comportamentos que ao longo dos anos
foi sendo legitimado nas novelas, antes mesmo de ser legalizado, como em Pecado Capital
(1975). A política também virou assunto, como em Vale Tudo (1988) que refletiu o momento
de corrupção pelo qual o país passava, às vésperas das primeiras eleições democráticas, que
elegeram Fernando Collor de Mello. Três anos depois, Anos Rebeldes (1992) exibiu o proces-
so de impeachment desse mesmo presidente. Barriga de Aluguel (1990) e O Clone (2001)
abriram espaço para o debate sobre as tecnologias reprodutivas e Laços de Família (2000)
questionou os arranjos familiares padrões. Explode Coração (1998) abordou a independência
feminina frente a tradições culturais e o desaparecimento de crianças. Casamentos interraciais,
muito polêmicos em suas primeiras aparições, tornaram-se comuns a exemplo de Corpo a
Corpo (1984) e Por amor (1997), e as uniões homoafetivas começam a ganhar espaço e, ainda
hoje, não sem polêmica, como em Torre de Babel (1998), América (2005) e Amor a vida
(2013). A violência contra a mulher foi pautada em Mulheres Apaixonadas (2003). O debate
sobre o feminismo ainda é incipiente, mas já pode ser visto em Órfãos da Terra (2019), Éra-
mos Seis (2019 e Amor de Mãe (2019), que tem foco na maternidade.
Essas construções acontecem, para além de uma necessidade de abordar temáticas des-
se cunho, mas como uma forma da telenovela mostrar-se que está atenta a sua audiência e ao
meio em que se insere. A partir daí, podemos afirmar que ela se constituiu, como um veículo
que “capta e expressa a opinião pública sobre padrões legítimos e ilegítimos de comportamen-
to privado e público, produzindo uma espécie de fórum de debates sobre o país” (LOPES,
2002, p. 12). Isso se evidencia de diferentes formas ao longo de suas produções, desde a esco-
lha do tema e do autor, que possuiu afinidade com determinadas pautas, até a exibição do
produto ainda durante sua fase de feitura, o que possibilita que sofra inferências em sua narra-
tiva, de acordo com manifestações do público, índices de audiência, de comentários nas mí-
dias ou, mais atualmente, nas redes sociais. Esse modo de produção, simultâneo à exibição,
possibilita diversas formas de interlocução entre autor e espectadores, que pode alterar o rumo
dos enredos e faz com que o telespectador se sinta ainda mais parte da história, já que possui
formas de interferir em seu fluxo.
Porém, invariavelmente, a mídia não é capaz de abarcar todas as pluralidades, já que
ela fala de um espaço determinado, que tem relação com o meio social e cultural dos seus
produtores, que também possuem predisposições. O trabalho, nesse sentido, pressionado pelos
índices de audiência será alargar o espectro possível de representações, privilegiando o con-
sensual (ALMEIDA, 2007). Essas construções acontecem assim, pois é necessário que exista
126
um diálogo entre setores e negociação de sentidos para que tais representações sejam aceitas
pela maior parcela de sua audiência. Nessa esfera, as telenovelas vivem em um constante ten-
sionamento entre o conservadorismo e o progressismo o que faz com que Lopes (2002, p. 15)
as visualize como “não lineares nem unilaterais, mas antes, bastante nuanceadas e marcadas
por um movimento ambivalente entre transgressão e conformismo”.
Para Hamburger (1998), a expressão mais intensa da capacidade das telenovelas em
aglutinar experiências públicas e privadas está na trajetória das personagens femininas, que,
por exemplo, já não podem mais ser construídas como antes, mulheres frágeis, do lar e que só
se preocupam com o casamento e cuidado familiar, distantes da realidade atual. No entanto, a
mulher que não tem interesse em constituir família ou não deseja a maternidade, ainda é ques-
tionada por abrir mão da “natureza feminina”. Para as personagens não se tornarem incômo-
das ou ousadas demais aos setores conservadores da população, que também constituem parte
da audiência, existe a busca por conciliar independência feminina, mercado de trabalho, cui-
dados do lar e da família em uma única personagem, criando a imagem de supermulheres.
Esse tipo feminino admirado por diversas pessoas [...] é o mesmo tipo que agrega
características consideradas pelos publicitários como tradicionais (a boa dona-de-
casa, mãe e esposa dedicada) junto com aspectos que consideram modernos (mulher
que trabalha fora, independente, elegante e sensual) e que é também muito explora-
do pelos anúncios publicitários, de forma a agradar vários tipos de público, tanto o
“tradicional”, como o “moderno”, sem incomodar e nem bater de frente com valores
que consideram ser importantes e quase imutáveis nos seus públicos-alvo. (AL-
MEIDA, 2007, p. 189)
Através dessa estrutura narrativa, com suas intensas repetições, criou-se e cristalizou-
se categorias culturais, entre elas a de uma representação ideal de mulher: independente, que
possui um bom emprego, estudou, tem um bom casamento, vida sexual ativa, é boa mãe, ele-
gante e bem-vestida (LOPES, 2002). Por outra via, sedimentou a ideia de que, para as mais
humildes, só chegariam a esse patamar através do seu esforço e mérito próprio, dando origem
à imagem das mulheres “fortes”, “batalhadoras” e “guerreiras”, como é o caso de Pereirão de
Fina Estampa (2011)68. Atualmente, essa ideia já é discutida como podemos ver na cena da
novela Amor de Mãe (2019) em que a personagem Camila, após levar um tiro na escola em
que trabalhava, fala para sua mãe que está cansada de ser forte, por ser mulher, negra, pobre e
68
Fina Estampa foi uma das telenovelas escolhidas para serem reprisadas durante a pandemia de Covid-19, no
horário das 21. Cabe observar que, na época de sua exibição original, não causou debate sobre machismo, homo-
fobia e violência de gênero. No entanto, desta vez, cenas e situações começaram a ser questionadas por parte da
audiência, ao mesmo tempo em que normalizada por outros. Mais informações sobre essas críticas podem ser
visualizadas em: < https://brasil.elpais.com/cultura/2020-04-13/reprise-de-fina-estampa-mostra-um-brasil-que-
nao-se-espanta-com-machismo-de-seus-personagens.html?ssm=FB_BR_CM> Acesso em: 21 de abril de 2010.
127
professora e questiona se será sempre assim. Como resposta ouve que, enquanto vivermos
neste mundo, nós, mulheres, deveremos continuar sendo fortes ao mesmo tempo em que te-
mos que lutar para desconstruir essa imagem69.
Seguindo esse viés, Almeida (2007, p. 183) indica ainda que nesse processo de atuali-
zação e conexão com a audiência e seus anseios, as telenovelas incorporam ideais que podem
ser atrelados ao feminismo, na concepção de suas personagens, seus modos de vida, suas rela-
ções afetivas, familiares e moral sexual. No entanto, essa característica da supermulher está
atrelada ao dilema de lidar com o mercado de trabalho e a maternidade ao mesmo tempo, co-
mumente associado às mulheres brancas e de classe média ou alta – já que, para as negras e
periféricas, escolher entre um ou outro não é uma opção. Isso porque, como afirma a autora, o
dilema do feminismo de classe média é solucionado através da contratação de uma boa em-
pregada doméstica, em grande parte das vezes negra, que cuida da limpeza do lar, da alimen-
tação e dos filhos da patroa. Desta mulher, a empregada doméstica, pouco se sabe da história
ou da família dela, quando se sabe, ela é mostrada como uma “guerreira” ou “batalhadora”,
que se esforça muito para atingir seus objetivos. Posições essas que pouco podem ser associa-
dos a um ideal feminista, interseccional e não meritocrático. Esse cenário é o que Hamburger
(2011) classifica como uma expansão despolitizada do universo feminino e a valorização per-
versa de uma ideia de “mulher forte”. Assim, embora alguns elementos dessas trajetórias pos-
sam ser associada ao feminismo e seus ideais libertários, dificilmente uma telenovela é classi-
ficada ou afirma-se como tal, bem como, as personagens não são construídas nessa perspecti-
va. Sobre esses padrões e as formas de representação femininas, abordaremos de forma mais
aprofundada no próximo item.
No ano de 1987, já com a compreensão de que gênero é uma construção social do ho-
mem e da mulher, Teresa de Lauretis cunhou o conceito de tecnologia do gênero. Para a auto-
ra, a noção de gênero não está atrelada apenas à diferença sexual, mas se revela a partir de
efeitos de imagem e do imaginário, sendo produto de diferentes tecnologias sociais. Ela com-
preende que o feminino não está construído somente pela diferença entre os sexos, mas sim
através linguagem, representações culturais, vida cotidiana, comunidade intelectual e artística,
69
Cena completa disponível em: < https://globoplay.globo.com/v/8233949/ > Acesso em 29 de fevereiro de
2020.
128
produtos audiovisuais, entre outros. Essa construção seria, ainda, atravessada por elementos
de classe e raça.
A partir desse entendimento e compreendendo que o conceito de tecnologia do gênero
vai além da problematização do termo pelos aparatos tecnológicos e audiovisuais, é possível
dialogar com De Lauretis (1994) através de quatro proposições que a autora apresenta sobre
essa construção e que podem ser apropriadas em nossa pesquisa. A primeira delas é a com-
preensão de que gênero é uma representação com implicações concretas, reais e sociais na
vida das pessoas. A segunda é que essa construção pode ser visível em toda arte e cultura e o
terceiro é que ela não acontece apenas em lugares “comuns” como na mídia, nas escolas, na
família ou na religião, mas, também, na academia, na comunidade intelectual, nas práticas
artísticas de vanguarda, nas teorias, no movimento feminista, através da reprodução de com-
portamentos, ideias do senso comum e atitudes hegemônicas. O último aspecto apresentado
pela autora é que a construção do gênero também se faz por meio de sua desconstrução e da
percepção do que está às margens do que foi construído. “O gênero [...] é não apenas o efeito
da representação, mas também o seu excesso, aquilo que permanece fora do discurso como
um trauma em potencial que, se/quando não contido, pode romper ou desestabilizar qualquer
representação” (DE LAURETIS, 1994, p. 209).
Ou seja, de acordo com a referida autora, gênero é tanto uma construção sociocultural,
quanto um sistema de representação que atribui significados (valor, prestígio, posição social,
status dentro da hierarquia social, etc.) a indivíduos dentro da sociedade. Essa construção po-
de ocorrer através das várias tecnologias do gênero, como, por exemplo, as telenovelas, ou
através de discursos institucionais e religiosos, ambos com poder de guiar o campo de signifi-
cados sociais e gerenciar as representações.
Assim, para compreendermos essa complexidade, seus significados e implicações prá-
ticas, torna-se necessário abordarmos o desenvolvimento do conceito e sua relação com a mí-
dia, eixos centrais que sustentam esta pesquisa, já que os entendimentos acerca do tratamento
das pautas feministas passa pela forma como são representadas as personagens, nos mais dis-
tintos contextos.
O conceito de representações sociais, por um viés sociológico, foi, primeiramente, tra-
balhado por Durkheim, em 1898, no mesmo sentido de representações coletivas, isto é, cate-
gorias de pensamentos que determinada sociedade elabora e expressa sua realidade, a partir de
fatos sociais, que são “modos de fazer”, com existência própria, independente das manifesta-
ções individuais e imprimem coerção exterior ao sujeito (DURKHEIM, 2007), exercendo
forças sobre eles, em relação aos modos de agir, pensar e sentir. Esses fatos sociais são guia-
129
dos por três características básicas: a coerção (costumes, crenças, valores), a exterioridade (se
refere às vontades coletivas que existem independentes das vontades individuais, como leis,
regras e normas já instituídas) e a generalidade (ideias amplamente aceitas pela maioria)
(SANTOS e DIAS, 2015).
A teoria durkheimiana sobre as representações sofreu diversas críticas, entre elas a de
Moscovici, no ano de 1961, que alega que o modo de pensar de Durkheim não dá conta da
pluralidade do pensamento social. Desse modo, renova a proposição, refletindo sobre a repre-
sentação no contexto das sociedades contemporâneas, caracterizadas pela fluidez e intensida-
de das trocas comunicativas, em que as ações podem se modificar através da relação entre
sujeitos, ativos e pensantes, e destes com a realidade social ampla (SANTOS e DIAS, 2015).
Enquanto que para Durkheim (2007) as representações coletivas deveriam ser estudadas como
fatos sociais, Moscovici (2010) as enxerga como uma maneira de compreender e de se comu-
nicar com a realidade: elas têm a capacidade de abstrair o sentido do mundo e introduzir nele
ordem e percepções, que o reproduzam de modo significativo. Neste sentido, para Moscovici
(2010, p. 10), “as representações sociais são conhecimentos práticos que se desenvolvem nas
relações do senso comum, são formadas pelo conjunto de ideias da vida cotidiana, construída
nas relações estabelecidas entre sujeitos ou através das interações grupais”. Elas circulam, se
entrecruzam e se cristalizam continuamente, através de palavras, gestos, e atos do cotidiano,
estando presentes na maioria das relações estabelecidas, nos objetos produzido, consumidos e
nas comunicações. Assim, para o referido autor, a finalidade de todas as representações é tor-
nar familiar algo não familiar.
Para isso, explica que as representações sociais são formadas por dois processos bási-
cos, a ancoragem, que é a classificação e nomeação de algo e a objetivação, que é a transfor-
mação de uma ideia abstrata em algo concreto, “transferindo o que está na mente em algo que
exista no mundo físico” (MOSCOVICI, 2010, p. 60). Nesse processo, essas definições vão
sendo partilhadas pelo grupo, construindo realidades em comum, visões consensuais, modos
de ação e formas de conhecimento e classificação. Para Maria Cecília Minayo (1995) as dife-
rentes formas de expressão da realidade são compreendidas, negociadas e incorporadas pelos
indivíduos através da vida em sociedade, das normas e regras que formam a estrutura social e
dos contextos que os abrigam, em uma dinâmica cultural complexa e em constante alteração.
O fato é que, “cada sociedade, para se manter, necessita ter concepções de mundo abrangentes
e unitárias e que, em geral, são elaboradas pelos grupos dominantes” (MINAYO, 1995, p. 94).
Através das ideias amplamente partilhadas que, em geral, tem como base um pensamento he-
gemônico, se define o que está correto ou incorreto, o que deve ser incluído ou não e o que é
130
aceito ou desviante, fazendo com que indivíduos sejam mais ou menos aceitos, se encaixem
na ordem social ou dentro de uma hierarquia. Tais atitudes, muitas vezes são reforçadas e re-
produzidas nos produtos midiáticos, ganhando força e atingindo um status de verdade única e
absoluta. Por esse motivo, podemos dizer que as representações, ancoradas na cultura, envol-
vem relações de poder, sendo capaz de produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e
grupos sociais.
Moscovici (2010) já alertava, também, para a importância dos meios de comunicação
no processo de construção das representações, os considerando componentes culturais funda-
mentais nesse processo. Para o autor, os meios aceleram a construção e variação das represen-
tações ao mesmo tempo em que criam modos de compreensão do mundo, realidades e senso
comum. No século XX, com a proliferação das mídias, as questões envolvendo representações
sociais tornam-se mais fortes. Neste contexto, a partir das concepções de Moscovici, Jodelet
(1993) busca atualizar o conceito, e as define como fenômenos complexos e ativos, “uma
forma de conhecimento, socialmente elaborada e compartilhada, que tem um objetivo prático,
e concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET,
1993, p.4). De acordo com a autora, o ser humano, para viver em sociedade, necessita ajustar-
se, localizar-se e, principalmente, identificar-se com algo, ou seja, é preciso reconhecer-se no
mundo que o rodeia. Isto é, a importância das representações está em guiar a maneira como
conduzimos nossas ações e definimos os aspectos da realidade, auxiliando na interpretação e
tomadas de posição, e isso é facilmente percebido nos discursos, nas palavras, nas mensagens
e imagens midiáticas. Então, os meios passam a ser compreendidos mais que apenas difusores
de informação, mas também como “responsáveis pela produção dos sentidos que circulam na
sociedade” (MORIGI, 2004, p. 3), comunicando cultura e valores. A televisão, devido a sua
abrangência e amplo alcance, ganha destaque nesse cenário, configurando-se como uma im-
portante componente cultural relacionada às representações sociais. É por este motivo, que
Morigi (2004) afirma que as representações estão tanto na mente das pessoas como nos meios.
Essa compreensão caminha juntamente ao pensamento de Hall (1997), ao explicar que
ela se realiza através do uso da linguagem, que é utilizada para apresentar o mundo de uma
maneira significativa para o outro. Nessa ação, cria significados que são organizados com
base em sistemas classificatórios que variam conforme o contexto cultural em que se insere,
sendo, então, um sistema aberto, interligado às práticas sociais e relações de poder (HALL,
2016). A partir do momento em que compartilhamos o mesmo quadro de referências, perce-
bemos o mundo de uma forma semelhante, com os mesmos significados e valorações. Entre-
tanto, um entendimento caro para o autor é a ideia de que o significado não é imediato nem
131
comum a todos, sendo sempre negociado, isto é, “o sentido não é inerente às coisas, ao mun-
do. Ele é construído, produzido, firmado e reafirmado. É o resultado de uma prática signifi-
cante – uma prática que produz sentido, que faz os objetos significarem” (HALL, 2016, p.
46). Dessa forma, é construído a partir do uso que fizemos das coisas, do que falamos, do
modo como nos posicionamos, daquilo que usamos ou consumimos. A partir desses significa-
dos que tem bases em nossas convenções sociais, culturais e linguísticas, se cria a representa-
ção, que é parte essencial do processo pelo qual o significado é produzido e intercambiado
entre os membros de uma cultura. Além disso, nenhuma linguagem é neutra, por isso, estão
permeadas por ideologias e pensamentos partilhados entre quem apresenta e quem consome
um produto cultural.
Ao transpormos esse entendimento para o espaço midiático, devemos levar em conta
que a mídia ainda necessita vender seus produtos, gerar reconhecimento e angariar audiência,
já que, grande parte dela, se trata de uma organização comercial, que busca lucro aos seus
acionistas. Sendo assim, o que passamos a chamar de representações midiáticas, considera o
apresentado anteriormente e o insere no contexto dos meios de comunicação. Agora, defini-
mos que as elas são os modos pelos quais a mídia, através de sua linguagem, discursos, pala-
vras, mensagens e símbolos, elabora seus textos verbais ou não-verbais e produz sentidos so-
bre uma dada coletividade, grupos sociais, indivíduos ou até temáticas, buscando trazer nos
seus produtos as formas como tais grupos ou sujeitos se identificam, pensam as suas relações
e se organizam em sociedade. Via de regra, a mídia, a partir de seus modos de produção, tenta
criar imagens e representações que gerem identificação com seus telespectadores de forma
ampla. Quanto mais genérica, maior a chance de ser aceita por uma parcela vasta da audiên-
cia. Porém, nesta simplificação e padronização, desconsidera características e especificidades
da variedade da audiência que poderiam ser exploradas.
Ao trazermos esse conceito às representações midiáticas femininas, percebemos que
em grande parte das vezes, elas tomam o masculino como referência e, a partir dele, buscam
modos de serem significativas para uma comunidade, atuando na construção dos sujeitos, na
delimitação de seus lugares de fala, na afirmação e reafirmação de modos de ser e na demar-
cação de posições de poder. Situações essas que transcendem o espaço midiático e possuem
implicações concretas no contexto social, conforme alertava De Lauretis (1994).
É com entendimento semelhante que Morigi (2004) defende que as representações dis-
seminadas pelos meios de comunicação, se constituem como realidades, integrando a opinião
pública como um “discurso da atualidade”. O problema, para o autor, é que esse discurso se
apresenta como plural e polifônico, mas carrega em si o poder hegemônico e o viés de quem o
132
profere, um meio socialmente legitimado, que possui interesses reais em tal construção de
sentidos. Hamburger (2007) corrobora com essa ideia e indica que esse tipo de discurso da
atualidade foi fortemente utilizado pelas telenovelas na década de 1970, como forma de ga-
nhar espaço, gerar audiência e angariar confiança de seus espectadores.
Lopes (2009) afirma que, nesse sentido, a televisão oferece informações acessíveis a
todos, independente de classe, gênero ou religião e torna disponíveis repertórios de certas ins-
tituições socializadoras tradicionais como escola, família, a igreja, partido político ou agência
estatal. Cria, então, a ideia de um discurso midiático “produtor de sentidos a partir de outros
discursos produzidos. Entretanto, sua força consiste no caráter persuasivo em dar visibilidade
aos acontecimentos e as interpretações, possibilitando o acesso relativamente plural às men-
sagens e à produção de sentido social” (MORIGI, 2004, p. 7). Isto é problemático na medida
em que, conforme afirmou Hall (2016), a mídia tem o poder para criar classificações de mun-
do com ampla disseminação e status absoluto, assentada em seus valores e princípios morais e
alinhadas ao que considera necessário para legitimar seu espaço e garantir sua audiência.
Desse modo, é possível afirmar que o discurso midiático atua na regulação cultural de
práticas e condutas, constituindo-se em um instrumento poderoso na definição de quem per-
tence a determinado grupo e quem é visto como o “outro”. Conforme Hall (1997) e Minayo
(1995) as representações midiáticas possuem um enquadramento particular, parcial e frag-
mentado da realidade, que dá forma, direção e propósito específico e limitado à conduta, às
práticas e às experiências humanas. Elas podem elencar o que é normal ou anormal, valorar
tipos físicos, repudiar comportamentos, estereotipificar modos de ser, silenciar ou visibilizar o
que for conveniente em determinado espaço e tempo, podendo mobilizar discussões que in-
centivem a construção de políticas públicas, gerar debates ou trazer à tona assuntos não abor-
133
dados. Por outro lado, pode reforçar preconceitos, ampliar desigualdades e reafirmar posições
de poder.
Trazendo essa problematização para o campo das representações de gênero, Henriques
(2016) afirma que as representações femininas, nos mais variados âmbitos midiáticos, ainda
carregam traços do modo androcêntrico de pensar. Grosso modo, essa situação é advinda de
uma realidade historicamente vivida em um sistema patriarcal dominante até o século XIX e
que desenhou os papéis sociais masculinos e femininos em que a mulher estava sempre em
segundo plano comparada ao homem. Esse cenário pode ser evidenciado em diversos tipos de
produções, como nas revistas femininas que, em um primeiro momento, atuavam como conse-
lheiras, trazendo dicas e truques para se conseguir um bom marido (Figura 11) e, atualmente,
estampam supermulheres em suas capas; na publicidade ora a representava como dona de
casa, serviçal ao marido, ora como mulher erotizada (Figura 12); e os programas televisivos,
ainda hoje, aparecem, muitas vezes, em papéis secundários, como assistentes de palco ou dan-
çarinas, se enquadradas no padrão de beleza hegemônico ou como apresentadoras de progra-
mas “voltados ao público feminino” (Figura 13), de culinária, sobre novelas ou vida dos artis-
tas.
Fonte: Pinterest
134
Fonte: Pinterest
Fonte: Pinterest
e Chio (1999), ao afirmarem que a televisão funciona não apenas como um espelho, mas co-
mo um exemplo do mundo, mostrando como ele é e como devemos estar lá.
Todo o apresentado anteriormente reafirma a posição das mídias e, em específico, das
telenovelas, como importantes produtos culturais, mediadores do mundo social. Isso torna
ainda mais relevante nossa pesquisa, já que é na inter-relação entre cultura e mídia, através
das representações, que justificamos nossa escolha metodológica pela análise cultural, ade-
quada aos meios de comunicação. Nesse cenário, é possível identificarmos algumas constru-
ções e modos de representar o feminino marcantes ao longo da história. Pesquisas anteriores
já se debruçaram na tarefa de compreender esse fazer, em produções isoladas. Será com al-
guns desses trabalhos, identificados através do estado da arte, que dialogamos para compor-
mos e expandirmos nosso arcabouço contextual acerca do tema. Nosso foco, então, esteve nos
estudos sobre as telenovelas da Rede Globo, mas outras produções relevantes também foram
eventualmente acionadas.
Ortis, Henriques e Lisboa Filho (2018), observam que as primeiras representações fe-
mininas em telenovelas, eram derivadas do sistema patriarcal e as personagens normalmente
apareciam como donas de casa, mães, empregadas domésticas, suas histórias comumente
eram relacionadas a uma figura masculina, como o pai, nos primeiros anos de vida ou ligada a
um par romântico, quando possuíam idade para casar. Esse é o caso de Sua vida me pertence,
da TV Tupi (Figura 14). A história era sobre um homem apaixonado por uma mulher, mas
que não era correspondido. Por esse motivo, ele dizia a ela: “Eu vou te conquistar e você vai
me amar porque sua vida me pertence”70. Ao fim da trama, o casal vive um grande amor e
protagoniza o primeiro beijo da televisão brasileira, considerado um tabu na época. Na Rede
Globo, exemplo desse tipo de abordagem é Eu compro esta mulher (Figura 15), exibida pelo
canal em 1966. No roteiro, estava a história de um homem muito rico que se casou com uma
jovem apenas para vingar-se da família dela, pois a moça era filha de seu inimigo. Ao longo
da trama, apaixonaram-se e viveram um romance. Outros exemplos desse tipo de narrativa e
representação são aqueles que já elencamos na composição do corpus de pesquisa, como A
Sombra de Rebeca e Sangue e Areia.
70
Informações disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?v=J1nLAewwdJk> Acesso em 11 de fevereiro
de 2020.
136
Figura 14 - Cena de Sua vida me pertence Figura 15 - Cena de Eu compro esta mulher
Para além dos títulos das produções, que já explicitam o tom machista e de superiori-
dade masculina das telenovelas, Cristiane Costa (2000) pontua que essas primeiras persona-
gens foram extremamente significativas ao despertar o interesse para o estudo sobre as repre-
sentações femininas nesse tipo de produto. Ela identifica, ainda, que nas primeiras novelas,
com um maior caráter melodramático, surgem e ganham força o mito da Cinderela, em que
uma moça pobre se apaixonada por um homem rico que mudará sua vida, os triângulos amo-
rosos e a valorização do indivíduo em relação à ordem social, que possibilita a ascensão eco-
nômica através do casamento. Essa fórmula de conduzir as narrativas será marcante ao longo
de toda a teledramaturgia brasileira, com variações e adaptações em cada período.
Com o tempo, as produções brasileiras começam a expandir os modos de representar,
mas, esse formato que tem como foco o amor romântico de um único casal principal, segue
vigente até os anos 1970, quando já estavam distantes da realidade vivida no meio social, sen-
do necessárias novas construções de personagens. Assim, novos assuntos entraram em pauta,
como sexo, independência financeira e carreira, abrindo, também, espaço para a discussão de
temáticas contemporâneas, como violência contra a mulher, sexualidade, drogas, mercado de
trabalho, entre outros. Meirelles (2009), observa traços dessa abertura na personagem Potira,
de Irmãos Coragem (1970), também exibida pela Rede Globo. Ela foge às regras que eram
comuns até então, desfazendo seu casamento arranjado para buscar a realização profissional e
estar ao lado de quem ama. O custo para tal atitude, no entanto, é a morte dela (Figura 16).
137
Para Hamburger (2007), essa telenovela torna-se marcante por opor modelos de mu-
lher com iniciativa, mas submissas, a mulheres liberadas, mas pervertidas. De acordo com
Meirelles (2009, p. 84), o momento não permitia com que tais comportamentos fossem bem-
vistos ou aceitos pelo público em geral.
18), uma mulher rica, de personalidade forte, decidida, extravagante, que busca o amor de
forma livre e compreende o sexo a partir do prazer e não apenas da procriação (MEIRELLES,
2009).
Para Ortis, Henriques e Lisboa Filho (2018) ao abordar, em tempos de ditadura civil-
militar, temas como aborto, separação, pílula do dia seguinte e lesbianismo, a série tornou-se
um marco na teledramaturgia brasileira, dando indicativos de que o contexto social também
estava em processo de mudanças, dialogando com crescente movimento feminista do período,
trazendo elementos que estavam em debate no cenário brasileiro e pautas que são característi-
cas do feminismo americano e europeu. Cabe destacar, no entanto, que ainda que Malu Mu-
lher abordasse temáticas que faziam parte da agenda feminista do período, as pautas represen-
tavam os interesses de uma classe média, branca e elitizada culturalmente, que necessitava, de
alguma forma, dialogar com a censura para que fosse exibida. Ou seja, mesmo que o discurso
fosse, por vezes, declaradamente feminista, ele era expresso através de uma personagem com
um modelo de comportamento tradicional, típico das já conhecidas “boas moças” das teleno-
velas, agindo no limite da pressão entre o contexto ditatorial e os “novos modos de ser mu-
lher” apresentados na década de 1970.
Hamburger (2007) alerta para o fato de que Malu Mulher é uma das precursoras na as-
sociação da liberdade da mulher com a “força da mulher” que se liberta do homem e consegue
realizar tudo sozinha. Dessa forma, acaba legitimando o padrão da supermulher: aquela que
acumula as funções tradicionais de mãe e esposa com a de provedora do lar, que será vasta-
mente explorado nas décadas seguintes. Isso só foi possível, para a autora, pois a liberdade de
Malu era despolitizada, situada nos assuntos domésticos e sem questionar padrões de gênero.
Já em Vale Tudo, de 1988, era mostrado uma gama de diferentes possibilidades para as
mulheres, tendo como pano de fundo o período de ditadura e a inversão de valores como ho-
nestidade e desonestidade, moralidade e imoralidade. Sobre os papéis femininos, Meirelles
(2009) aponta que algumas chefiavam empresas, trabalhavam em profissões glamourosas co-
mo a moda, ou construíam a independência baseadas em saberes tidos como femininos, como
a culinária. Entre as personagens principais está Odete Roitman (Figura 20), considerada por
muitos a pior vilã da televisão brasileira, uma mulher rica, elegante e autoritária que humilha
todos aqueles que acreditava serem inferiores. Possuía um relacionamento com César, que
também é amante de sua nora. Seu comportamento foi punido com seu assassinato. A impor-
tância dessa personagem e seu envolvimento com a audiência foi tão grande que, até os dias
de hoje, sua morte ainda rende comentários para situações semelhantes: “quem matou Odete
Roitman?”. Fátima, também vilã, repudiava a situação de pobreza que vivia e saiu de sua ci-
dade natal para buscar um marido rico que a sustentasse, no Rio de Janeiro. De acordo com o
site Memória Globo (2020), o fim da história de Fátima foi algo inusitado, até então. Ela não
foi punida, casou-se com um nobre italiano, a fim de roubar o seu dinheiro.
140
Na contramão delas, está Raquel, uma mulher simples e honesta que sobrevivia ven-
dendo sanduíches na praia (Figura 21). A partir de seu esforço próprio, expandiu seu negócio
e tornou-se dona de uma rede de restaurantes. Hamburger (2007) atenta para a trajetória de
Raquel: uma mulher inicialmente dependente, que passa por provações como maus-tratos do
marido alcoólatra, mau provedor e ausente. Enfrenta uma separação, volta para a casa do pai,
com uma filha pequena. Passa a trabalhar como guia turística, seu pai morre, a filha a trai e
rouba seu dinheiro. Vai para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida e com
esperança de se reconciliar com a filha, o que não acontece. Encontra um novo companheiro,
que a trai e é preso, ela o perdoa e com ele vive um final feliz, criando uma neta. O enredo
não apresenta situações de discriminação de gênero e a construção da “mulher forte” está no
esforço e mérito pessoal de Raquel, transmitindo a ideia de que a ascensão social só aconteceu
por conta de sua luta e determinação. Conforme aponta Hamburger (2007, p. 167) “a mulher
‘forte’ e ‘liberada’ da novela não reivindica igualdade de condições, cotas, salários. Não apa-
recem leis, ações, delegacias da mulher. [...] A recompensa do sucesso é apresentada como
mérito exclusivo da boa índole e perseverança dela. As conquistas são morais” e não políticas.
De acordo com Lopes (2009), foi nesse momento, por volta dos anos 1980, que a re-
presentação da sociedade, promovida pela televisão, começou a ser pensada e problematizada
de forma mais contundente. O aparelho já ocupava um papel central na vida dos brasileiros e
era responsável por fornecer um repertório comum por meio do qual pessoas de classes soci-
ais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se posicionavam e se reconheciam. Para a autora,
a telenovela possuía a capacidade de definir pautas e regular as intersecções entre a vida pú-
141
blica e a vida privada, dando visibilidade a certos assuntos, comportamento, produtos e não a
outros.
Nos anos de 1990, podemos destacar, como exemplo, Tieta, exibida a partir de 1989.
A produção conta a história de Tieta (Figura 22) que, quando jovem, foi expulsa de sua cidade
natal, no interior do nordeste, pelo pai que considerava seu comportamento inaceitável para os
padrões locais, pois a jovem havia perdido a virgindade com um mascate. Ela muda-se para
São Paulo para fugir do conservadorismo de Santana do Agreste. Lá se torna dona de uma
rede de casa de massagens. Ao retornar, choca todos os moradores ao envolver-se com seu
sobrinho, um jovem seminarista. Alia-se, também, a um amigo de infância e o auxilia no obje-
tivo de levar o progresso e desenvolvimento para o local, apoiados por políticos poderosos da
região, que estão interessados no benefício próprio. É oportuno observar, ainda, que Tieta tem
sua história desassociada de um par romântico, não representa a imagem tradicional da “mo-
cinha” e trouxe uma protagonista distante dos padrões femininos hegemônicos. Ademais,
além do perfil diferenciado da personagem principal, outras temáticas como abuso sexual,
adultério, concubinato, prostituição e alcoolismo são abordadas - antecipando assuntos que só
terão visibilidade na agenda feminista brasileira na década seguinte.
Outro caso que merece ser lembrado, conforme Meirelles (2009), é a personagem Lu-
ana, de O Rei do Gado (1996), uma boia–fria, que se uniu aos sem-terra e despertou a paixão
do protagonista da novela, um rico latifundiário (Figura 23). No decorrer da trama, ao firma-
rem o relacionamento, Luana abre mão de suas lutas políticas e ideológicas, deixa o movi-
mento e passa a “se dedicar a seu próprio destino e sua luta pessoal - amor pelo latifundiário”
(COSTA, 1997, p. 81). No entanto, apesar da mudança em sua condição social, a personagem
não muda seu figurino, tampouco torna-se uma mulher poderosa e elegante, o que é avaliado
142
por Meirelles (2009) como uma ruptura parcial no mito da Cinderela. Sobre essa situação,
Almeida (2003) constatou que grande parte das telespectadoras não concordava com a estag-
nação da condição social dela e defendiam que Luana deveria mudar e tornar-se uma mulher
mais bem-vestida.
Também merece destaque e foi objeto de análise de Ortis, Henriques e Lisboa Filho
(2018) a série Mulher, exibida em 1998, que se centrava no cotidiano de duas médicas, Mar-
tha e Cristina (Figura 24), que trabalhavam em uma clínica especializada no atendimento às
mulheres. Nos episódios da trama, são discutidas temáticas consideradas polêmicas no perío-
do, como o aborto, gravidez na adolescência, frigidez, adultério, violência contra a mulher e
câncer de mama, incorporando alguns tópicos do debate feminista sobre a saúde e direitos
reprodutivos. No entanto, ao mesmo tempo em que mostra personagens independentes e que
lutam pelo seu espaço na sociedade, as médicas abdicavam da vida pessoal em prol da profis-
sional, rompendo com o modelo de supermulher, ao mesmo tempo em que era exigido delas
uma masculinização, principalmente quando eram abordadas as mudanças nas relações de
gênero, a partir da inserção no mercado de trabalho, em áreas predominantemente masculinas.
143
A temática sobre a saúde da mulher seguiu em pauta no ano de 2003, com a telenovela
Mulheres Apaixonadas. A trama, para além de narrar a vida de personagens que tinham suas
histórias, dilemas e problemas atravessados por pares masculinos, ganha relevância ao dar
destaque para Raquel, uma professora que, em um relacionamento abusivo, sofria violência
física por parte de seu companheiro (Figura 25). Ela era agredida pelo marido e não tinha co-
ragem de denunciá-lo. Para Ortis, Henriques e Lisboa Filho (2018), a telenovela cumpriu um
importante papel social quando incentivou as mulheres a não se calarem a esse tipo de prática.
De acordo com notícia publicada pelo jornal Estadão, em 29 de setembro de 200371, com a
exibição da cena em que a personagem denuncia o marido, a Delegacia Especial de Atendi-
mento à Mulher do Rio de Janeiro registou um aumento de mais de 40% de denúncias. Ou
seja, possivelmente, muitas mulheres se identificaram com a situação e decidiram agir con-
forme a personagem. Nesse caso, mais do que apenas apresentar o tema da violência contra a
mulher, ela debateu o assunto e levou o público a questionar tais atitudes. Além disso, a nove-
la retratou uma relação homossexual entre duas adolescentes, Clara e Rafaela, dando espaço e
abertura para que as representações LGBTQIA+72 fossem veiculadas e trabalhadas na mídia
hegemônica (Figura 26).
71
Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,novela-faz-mulher-perder-medo-de-
denunciar,20030929p3005> Acesso em 11 de fevereiro de 2020.
72
Essa telenovela não foi a primeira a apresentar um casal homossexual. O Rebu, de 1974, é considerada a pri-
meira telenovela a apresentar um casal gay e lésbico, na mesma trama (FERNANDES, 2014). Já o primeiro
personagem gay da televisão brasileira foi de O caso Maurizius, da TV Tupi, em 1960, mas que não obteve su-
cesso em seus relacionamentos. (FERNANDES e BRANDÃO, 2013).
144
que a função da mulher é lavar a roupa de seu marido73, e a dupla moral sexual, quando a
chamam de “piranha” e “safada” por ter traído os dois74.
Na mesma telenovela, o confeiteiro Abel apaixona-se por Britney, uma transexual. O
romance segue bem, enquanto ele não desconfia da identidade de gênero dela. Após saber a
verdade, eles rompem. Depois de vários desencontros, acabam retomando o relacionamento e
terminam juntos (Figura 32). O casal auxiliou no debate sobre a transexualidade e conquistou
o público, que torceu pela felicidade deles75. Na rede social Twitter, eles foram shippados76
com a #Bribel.
Figura 31 - Kim com seus dois namorados Figura 32 - Casamento de Abel e Britney
73
Disponível em: < https://globoplay.globo.com/v/7879715/> Acesso em 01 de março de 2020.
74
Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/8091932/> Acesso em 01 de maço de 2020.
75
Reações do público e torcida pelo casal podem ser encontradas em :
<https://www.vix.com/pt/tv/580711/traicao-de-berta-deixou-o-publico-revoltado-no-final-de-a-dona-do-pedaco-
reacoes?utm_source=next_article> Acesso em 21 de março de 2020.
76
Shippar é uma expressão criada a partir da palavra inglesa relationship. Muito utilizada nas redes sociais,
significa torcer para a união de um casal.
148
que, não necessariamente, são vistos como feministas, nem possuem personagens marcantes
ou histórias com foco em mulheres, mas, que por suas pautas identificadas previamente, dia-
logam com essa pesquisa. Assim, temos a intenção de observar qual é o tratamento dado ao
assunto e a forma como se desenvolveu.
149
CLÍMAX
ANÁLISE CULTURAL-MIDIÁTICA DE TELENOVELAS
no horário das 20, 21 e das 23 horas, na Rede Globo, do ano de 1965 ao ano de 2020. Esco-
lhemos esse recorte, pois são os horários em que possuem maiores audiências e apresentam
histórias mais complexas. Optamos, por prosseguir com as telenovelas das 20 e 21 horas, tota-
lizando, 91 títulos. Esse recorte foi feito para privilegiar as produções de autoria feminina, já
que, no horário das horas, todas as tramas possuíam autoria masculina ou compartilhada.
Chegamos ao número de 24 telenovelas.
Partimos, então, para uma pesquisa sobre cada uma delas, buscando informações sobre
seu enredo, história e trama principal, para que construíssemos uma sinopse de cada uma,
disponível no apêndice C. Para esta etapa, baseamo-nos principalmente nos arquivos da Me-
mória Globo (2020), Xavier (2007, 2019, 2020), além do site Observatório da TV (2019).
Utilizamos, também, as informações disponibilizadas nas plataformas Globoplay e Globosat
Play.
Nesta subseção do trabalho, desdobramos 23 telenovelas77 em uma análise geral de
suas produções, identificando alguns elementos que embasaram a seleção final das escolhidas.
Para tal, criamos quadros que reuniram as seguintes informações:
• Autoria: autora responsável pela história;
• Período: ano em que a telenovela foi exibida;
• Ambientação: local ou locais principais em que se desenvolve a trama;
• Época: momento histórico em que a trama acontece;
• Trama principal: fio central da narrativa;
• Histórias secundárias: histórias paralelas que possuem relação com a temática desta
pesquisa;
• Outras informações: dados relevantes que auxiliam na compreensão do contexto;
• Pautas acionadas: pautas ou temáticas feministas e/ou transversais desenvolvidas ou
acionadas na narrativa.
Sobre este último item, é importante destacar dois aspectos: o primeiro deles diz res-
peito ao entendimento que damos para a forma como as pautas são acionadas, isto é, elas po-
dem não aparecer explicitamente nas tramas, mas através de assuntos que as indicam, como,
por exemplo, a subordinação feminina, que é algo combatido pelo movimento feminista. O
outro ponto é a presença de temas transversais, ou seja, assuntos que não são diretamente vin-
culados ao feminismo, mas que interseccionam com ele, como, por exemplo, racismo e ado-
77
A última telenovela, Amor de Mãe, não foi incluída nessa etapa, por ter sua exibição interrompida, a partir do
dia 21 de março de 2020, pela pandemia de Covid-19 e suas gravações ainda estarem em andamento.
151
ção, que se vinculam à pluralidade das mulheres e a maternidade, temas que também são pau-
ta.
Além disto, algumas considerações devem ser feitas. Primeiramente, estamos reali-
zando essa análise em um tempo e local específico, posterior às produções, o que faz com que
as interpretações sejam diferentes daquelas imaginadas no momento da produção. O que, na
época, servia apenas como um gancho ou uma história paralela que desencadeava fatos, no
contexto atual, ganha relevância como foco de estudos, como é o caso do abandono parental,
o estupro e os relacionamentos abusivos. Ou seja, atualmente conseguimos visualizar esses
temas com mais clareza, mas no contexto de suas produções, não tinham as mesmas intencio-
nalidades. Ainda, a simples aparição desses assuntos na história, não garante a sua tratativa de
um modo correto, informativo ou problematizado, por isso a necessidade de aprofundar o es-
tudo para um nível analítico, que dê conta de compreender as telenovelas com profundidade e
observar de que forma essas pautas são construídas e representadas.
A partir daí, para cada telenovela desenvolvemos um quadro base que congregou esses
itens, onde foram analisadas conjuntamente, por década, destacando particularidades de cada
período a fim de que pudéssemos escolher a telenovela mais representativa de cada momento.
Tais observações podem ser vistas nos quadros 1, 2, 3, 4, 5 e 6.
Histórias secundárias -
Outras informações - para lutar no exército, Rosa finge ser um homem;
- a telenovela precisou ser aumentada, pois em junho de 1969 a
TV Globo sofreu um incêndio que atrasou as próximas produ-
ções;- não existem registros, em vídeo, dessa telenovela pois as
fitas foram reutilizadas ou perderam-se em um dos incêndios na
TV Globo (1971 e 1976).
Pautas Acionadas Liderança
Véu de Noiva
Autoria Janete Clair
Período 10/11/69 – 07/06/70
Ambientação Rio de Janeiro, Brasil
Época Contemporânea à exibição.
Trama principal Triângulo amoroso entre um homem e duas mulheres, que cul-
mina na morte do personagem masculino.
Histórias secundárias História da família Montserrat, envolvendo problemas financei-
ros, traição e assassinatos.
Outras informações - marca o rompimento da TV Globo com o formato de grandes
dramas românticos, ambientados em cenários distantes;
- apresenta personagens mais próximos ao público, em uma nar-
rativa atual;
- o slogan da produção era: “Em Véu de Noiva tudo acontece
como na vida real. A novela verdade”;
- marca o surgimento das tramas paralelas;
- a personagem Flor dividiu as opiniões femininas da década de
1970, já que na época, ser mãe solteira era considerado desonra;
- existem poucos registros, pois as fitas de videoteipe perderam-
se em um dos incêndios na TV Globo (1971 ou 1976).
Pautas Acionadas Rompimento da passividade feminina
Maternidade
Mito do amor materno
Guarda infantil
Abandono parental
Violência verbal
Fonte: elaborado pela autora
Em 1955, quando as antenas de televisão abrangiam apenas Rio de Janeiro e São Pau-
lo, estima-se que havia 74 mil aparelhos de televisão em uso (ROCHA, 2005). A sua expan-
são, ocorrida nos anos 1960, a partir das capitais e centros maiores, grandes dinamizadores e
polos do projeto de modernização do país, se consolida apenas na década de 1970. Assim, a
programação exibida no aparelho, recém-surgido nos lares brasileiros, e ainda restrito aos que
154
pudessem pagar por ele, em seu momento inicial, não acompanhou a efervescência e a reali-
dade do contexto social vigente. As tramas e representações das telenovelas, por exemplo,
baseavam-se em grandes sagas e romances literários, normalmente, de origem estrangeira,
que tinham suas referências em um sistema fortemente patriarcal, cujas figuras femininas
normalmente apareciam como donas de casa, mães, empregadas domésticas e suas histórias
eram comumente relacionadas a uma figura masculina ou ligada a um par romântico.
As primeiras telenovelas brasileiras da década de 1960 traziam essa característica: his-
tórias de amor ambientadas em locais distantes e que tinham como foco, quase exclusivo, as
dificuldades de relacionamento de algum casal. A Sombra de Rebecca (1967) e Sangue e
Areia (1967) trazem fortes essas características, principalmente quando as personagens prin-
cipais cometem atos extremos para provar o seu amor, como indício de não poder viver sem
ele. É interessante observar, no caso de A sombra de Rebecca (1967) a existência de um rela-
cionamento que envolve universos culturais distintos, a cultura japonesa e a inglesa, tema que
ainda segue sendo pautado em diversas telenovelas atuais e, por vezes, continua causando
polêmica.
Passo dos Ventos, em 1968, apresenta algumas atualizações nos modos de representar.
A história de amor, que continua sendo o foco central da trama, começa a ser atravessada por
outros elementos, como os aspectos econômicos. Além disso, a protagonista é retratada, inici-
almente, como uma mulher decidida que quer ter o comando de sua vida e autonomia finan-
ceira. No entanto, no desenrolar da trama, ela é envolvida em um relacionamento forçado, que
podemos considerar como abusivo, já que sofre constante violência psicológica, na relação.
Esse tema não é problematizado nem debatido, apenas é retratado na história. Outro aspecto
importante de Passo dos Ventos (1968) é quando mostra o relacionamento inter-racial entre
dois personagens, que na época, foi considerado absurdo pela audiência, havendo a necessi-
dade de o par não permanecer junto.
Já Rosa Rebelde (1969), inicialmente, aparenta ter um posicionamento distinto na re-
presentação feminina, exposto, inclusive, em seu título. A personagem principal é destemida,
lidera exércitos, parte para a guerra, defende seus ideais e companheiros. Ainda é possível
identificar uma crítica, mesmo que não de forma explícita, aos papéis femininos e masculinos
quando, para lutar no exército, ela vestiu-se de homem. No entanto, todos esses avanços e
inovações na forma de representar perdem força quando Rosa se apaixona pelo líder do exér-
cito oposto. O encantamento romântico faz com que ela abra mão de seus sonhos e ideais para
viver uma história de amor.
155
O destaque da década, no entanto, é Véu de Noiva (1969). A produção marca uma rup-
tura no que era produzido até o momento e começa a desenvolver uma história mais próxima
da realidade, tratando temáticas que poderiam estar presentes no cotidiano dos telespectado-
res. O triângulo amoroso apresentado aqui é resolvido não com a morte ou prova de amor de
alguma das mulheres envolvidas, mas sim com o assassinato desse homem, entendido como o
responsável pelas desgraças causadas a elas. Ou seja, a assassina, no caso a mãe das duas jo-
vens, rompe com a lógica de aceitação e passividade feminina, fazendo justiça com as pró-
prias mãos.
Outra pauta debatida é a maternidade. Uma das personagens, quando engravida, é
abandonada pelo seu parceiro e com medo de ser “mãe solteira”, entrega o filho para adoção.
Na época, a gravidez de uma mulher solteira ainda era um tema tabu e retratá-lo em uma tele-
novela era um assunto delicado. Devemos lembrar que vivíamos, nesse momento, o período
de ditadura no país, com um Estado fortemente conservador que voltava sua atenção à defesa
da família, da moral e dos “bons costumes”. Ou seja, o pai abandonar o filho e a possível fa-
mília, era um ato grave, no entanto, ser “mãe solteira” era algo ainda pior, desonrando a mu-
lher, que era julgada de maneira negativa, escancarando a dupla moral sexual, em que um
mesmo comportamento é aceito para os homens, enquanto é condenável às mulheres. Pensa-
mento esse, ainda muito vigente nos dias atuais.
Assim, o que observamos dessa primeira fase é que a representação feminina das pro-
tagonistas acompanhava um pensamento ainda vigente da subalternidade, em que eram consi-
deradas personagens sofredoras, passivas, em busca de um grande amor para sua realização e
felicidade o que só conquistariam ao lado de um par romântico, pois, sozinhas, não viveriam
suas próprias histórias. Nesse contexto, as pautas feministas são quase inexistentes e têm pou-
ca expressividade. Apenas começam a ganhar relevância na última telenovela da década, Véu
de Noiva (1969).
O Semideus
Autoria Janete Clair
Período 20/08/73 – 08/05/74
Ambientação Brasil
Época Contemporânea à exibição.
Trama principal Disputas financeiras.
Histórias secundárias -
Outras informações O Semideus foi criado com urgência para preencher o horário
que seria de Cidade Vazia, vetada pela censura.
Pautas acionadas Nenhuma pauta foi encontrada.
Fogo sobre Terra
Autoria Janete Clair
Período 08/05/74 – 04/01/75
Ambientação Rio de Janeiro e Mato Grosso, Brasil.
Época Fim da década de 1950.
Trama principal Disputa familiar envolvendo dinheiro e amor, tendo como pano
de fundo, o progresso econômico do país.
Histórias secundárias A personagem Bárbara, inicialmente, é representada como uma
mulher de personalidade forte, independente e decidida. Ao fim
da telenovela casa-se e vive uma história de amor tradicional,
deixando de lado os ideais anteriormente buscados.
Outras informações - a telenovela adotava o ponto de vista do progresso, criticando o
homem do campo, no entanto, o efeito foi o oposto, com o públi-
co identificando-se com os moradores de Divineia;
- a censura reprovou o comportamento do personagem principal,
que liderava a luta contra a construção da hidrelétrica, exigindo
que ele se tornasse um cidadão comum.
Pautas acionadas Independência
Pecado Capital
Autoria Janete Clair
Período 24/11/75 – 06/06/76
Ambientação Rio de Janeiro, Brasil.
Época Contemporânea à exibição.
Trama principal Triângulo amoroso formado por um taxista, um viúvo rico e uma
jovem com o sonho de ascensão social.
Histórias secundárias Casal com relacionamento conturbado e abusivo, devido a ciúme
excessivo. O casal termina desquitado.
Outras informações - a telenovela foi a primeira em cores transmitida no horário;
- a personagem principal, Lucinha, possuía personalidade forte e
batalhava por seus objetivos, enquanto que o protagonista era um
homem comum, com defeitos e qualidades, rompendo a dualida-
de do bem x mal;
158
Nessa década foram exibidas nove telenovelas de autoria feminina, todas de Janete
Clair. Logo no início dos anos 1970, Irmãos Coragem (1970) apresentava algumas novas
abordagens na forma de contar histórias. A primeira delas relaciona-se ao modo como a auto-
ra construiu a narrativa. A temática central era a luta pela liberdade e contra a opressão, em
uma cidade fictícia, que tinha como principal atividade econômica, o garimpo. O local era
comandando por um Coronel corrupto que controlava o comércio de diamantes e todas as
atividades da cidade. Inevitavelmente, a história realizava uma analogia crítica à realidade
política do país. O segundo ponto é a forma como o enredo se desenvolveu, tendo como foco
central a história de três irmãos que, entre suas ações, traziam elementos ligados ao masculi-
no, como aventura e futebol, para conquistar esse público (XAVIER, 2019). Até então, as
telenovelas eram voltadas, majoritariamente às mulheres, característica essa que Brunsdon
(1997) diz ser evidente através da organização das narrativas: pequenos blocos, de modo que
elas pudessem assistir e, nos intervalos, cumprir com suas tarefas domésticas.
Um ponto que merece destaque na trama de Irmãos Coragem (1970) é a história de Ju-
ca Cipó que estuprou a personagem Cema e a engravidou. É importante observar que o maior
impasse gerado por essa violência é com o marido da jovem, que começa a entrar em conflito
com ela pois não aceitava ter um filho branco. Ou seja, o problema não é o estupro, nem o
agressor, mas sim a honra do marido que poderá ter um filho que não é seu – caso isso acon-
160
tecesse, ele mataria Cema. Essa situação, hoje compreendida como a culpabilização da vítima,
na época era algo normal, não trazendo nenhum tipo de questionamento ou problematização.
De acordo com Xavier (2019) os telespectadores torciam para que a criança nascesse negra e
o casal tivesse um final feliz. Essa torcida pelo casal inter-racial, mostra uma alteração do
pensamento do público frente a essa situação, que tinha sido rejeitada em telenovelas anterio-
res, como Passo dos Ventos (1968).
Mesmo com fortes críticas ao sistema político brasileiro do período, Irmãos Coragem
(1970) sofreu pouco com a ação da censura, diferente de O Homem que deve morrer (1971),
que teve seus 10 primeiros capítulos vetados, pois a história original trazia referências que
poderiam ser relacionadas à passagem de Cristo pela Terra e, por esse motivo, foi considerada
inadequada pelo governo da época, que informava que a produção apresentava situações de
“adultério a misticismo, passando por desmoralização da Justiça, ridicularização aos símbolos
religiosos e telepatia, apregoamento tácito da degradação da Justiça ensejando o desfibramen-
to dos valores morais e propiciando a infiltração de doutrinas alienígenas” (FERREIRA,
2016). Isso fez com que a telenovela fosse alterada e Ciro tivesse sua história relacionada,
mais com extraterrestres do que com a religião, mas terminando como um médico comum e
extremamente competente em suas habilidades de cura (XAVIER, 2019). Em um contexto
social conturbado, que impossibilitava a tratativa de muitas temáticas, a grande pauta da tele-
novela foi o racismo, que nesse período já era um tema em vias de consolidação.
Em Selva de Pedra (1972), podemos verificar a existência de duas pautas significati-
vas, a primeira delas é uma das personagens com um comportamento liberal, ao tomar inicia-
tiva de esconder em sua casa o protagonista e, a partir daí, conduzir sua vida. A outra temática
é a desconstrução do mito do amor materno, visível através da personagem Walkíria, que as-
sassina seu amante e culpa sua filha por isso, comportamento não associado à figura de mãe.
Na sequência, O Semideus (1973) não obteve grande sucesso, pois foi construída às
pressas, para ocupar o horário em que seria exibida Cidade Vazia, vetada pela censura. O en-
redo não apresentou pautas nem temáticas a serem debatidas. Já Cidade Vazia foi reformulada
e estreou, posteriormente, com o nome de Fogo sobre Terra (1974). Entre as pautas dessa
última, surge a preocupação ambiental e com os recursos naturais, que começava a emergir
frente ao grande desenvolvimento gerado no período. No entanto, para nós, aqui, vale destacar
a atuação da personagem Bárbara, que, em um primeiro momento foi apresentada como uma
mulher decidida e independente, mas que teve essa característica rejeitada pelo público, pois
era distante das costumeiras representações de protagonistas, principalmente em se tratando
da atriz Regina Duarte que, na época, era tida como a “namoradinha do Brasil”. Isso fez com
161
que a autora precisasse alterar a história dela para que fosse mais bem-aceita pela audiência,
dando o tratamento comum às protagonistas da época: final feliz, com par romântico e consti-
tuição de família.
A aposta em protagonistas fortes continuou e em Pecado Capital (1975), Lucinha se
apresenta como uma delas. Esse mesmo ano, 1975, foi considerado, pela ONU, o Ano Inter-
nacional da Mulher e com isso, se abre espaço para pautas que saíssem do âmbito econômico.
Nessa telenovela, mesmo que os embates financeiros seguissem como pano de fundo da nar-
rativa, novamente as relações inter-raciais aparecem em cena, no entanto, diferente de O Ho-
mem que deve morrer (1971), exibida quatro anos antes, o relacionamento não foi bem-aceito
pela audiência. Nossa análise prévia para esse fato, é que o personagem negro, dessa vez, é
um homem de classe média alta, com status, causando estranhamento em um público com
preconceitos raciais e classistas. Além disso, outra pauta que merece destaque em Pecado
Capital (1975) é o relacionamento abusivo vivido por Vitória. Seu companheiro, Ernani era
extremamente possessivo e ciumento, impedindo que a jovem desenvolvesse relações inter-
pessoais até com sua própria família. Um ponto importante é que, aqui, a relação tem fim e
Vitória separa-se de Ernani, algo inédito até então, já que rompia com a “moral e os bons cos-
tumes” aos quais a “família brasileira” estava acostumada a assistir. Dois anos depois, em
1977, foi promulgada, no Brasil, a Lei do Divórcio. Por suas características, Pecado Capital
(1975) é a telenovela que destacamos dessa década.
A crítica ao regime ditatorial reaparece em Duas Vidas (1976), uma telenovela que
novamente exibe, com força, as temáticas do desenvolvimento e progresso econômico brasi-
leiro. A pauta que merece destaque aqui é o relacionamento intergeracional entre Sônia e
Mauricio, um homem mais jovem que ela. Essa relação foi criticada pela censura que obrigou
sua oficialização através de um casamento ou não poderia prosseguir. Tem-se, também,
exemplos de relacionamentos abusivos, machismo e ciúmes excessivo de um dos persona-
gens, que perseguia a ex-companheira.
O Astro (1977) e Pai Herói (1979), telenovelas exibidas na sequência, seguem a mes-
ma lógica apresentada na década: têm como base da história de todos os conflitos, os aspectos
econômicos. Em O Astro (1977), podemos mencionar a personagem Lili, uma taxista, como
um ponto de destaque da trama. Até os dias atuais, essa não é uma profissão comum às mu-
lheres. Em Pai Herói (1979) algumas pautas importantes novamente são acionadas, como a
maternidade, o abandono parental e os relacionamentos abusivos. No entanto, elas têm pouca
expressividade na trama, que foca em dar um final feliz para os protagonistas e apresentam
162
uma das personagens ficando louca por ter sido abandonada por seu grande amor, quase como
uma referência aos primeiros dramalhões apresentados no início dos anos 1960.
A década de 1970, mesmo que envolvida pela ditadura, propiciou um cenário frutífero
para o desenvolvimento de diversas tramas de telenovelas e muitos enredos conseguiram, de
algum modo, driblar a censura e apresentar, em suas tramas, alguma forma de protesto e críti-
ca ao sistema político vigente e as lógicas da “moral e bons costumes” da época, falando so-
bre relacionamentos abusivos, separações, machismo e independência feminina. Ainda assim,
grande parte das produções da década tiveram, como pano de fundo de suas histórias, o “mi-
lagre econômico brasileiro” e os conflitos apresentados, em grande parte, relacionavam-se a
problemas financeiros, ganância, posses e brigas por fortunas. De acordo com Fernandes
(1997), as vitórias eram sempre do bem contra o mal, da moral e dos bons costumes, que ga-
rantiam o sucesso financeiro, contra as contravenções que levavam à derrota e à falência.
A década de 1980 foi relativamente fraca para as produções escritas por mulheres. Nos
anos 1970, Janete Clair havia emplacado uma trama seguida de outra e o formato, por vezes
parecia perder fôlego por conta da repetição. Iniciava, também, após a abertura política, uma
maior variação de autores. Se até então as telenovelas, produtos voltados para uma audiência
feminina, eram praticamente de uma única autora, os anos 1980 dão espaço para o surgimento
de novos enredos, tramas e autores que começam a diversificar as formas de narrativas.
O destaque dessa década pode ser dado a Coração Alado (1980), uma telenovela que,
mesmo recorrendo ao tradicional drama do triângulo amoroso e das grandes dificuldades para
o casal terminar junto, exibiu diversas temáticas relevantes. Entre elas está a saúde, tema que
ganhava espaço no contexto brasileiro da década, assim como a violência sexual, com o sur-
gimento das primeiras delegacias de atendimento à mulher. É oportuno observar que, até en-
tão, casos de estupro nas novelas não levantavam o debate criminal sobre a violência, serviam
apenas como um gancho para outros acontecimentos futuros no enredo, geralmente, o nasci-
mento de um filho, que terá uma posição importante nas narrativas. Sexualidade, maternidade
e adoção também foram temas trazidos pela autora. O alargamento do espectro de profissões
possíveis para as mulheres, aparece na figura de Maria Faz-Favor, uma jovem que atua como
164
cobradora de ônibus, de personalidade forte e independente. Dessa vez, uma personagem ba-
talhadora que fugia do estereótipo da “mocinha sonhadora” conquistou o público.
Essa mesma construção foi feita para Gisa, a caminhoneira retratada em Sétimo Senti-
do (1982) e, mais uma vez, a audiência aprovou. Podemos analisar essa situação a partir do
contexto do período e das próprias personagens. Os anos 1980, além da abertura política que
possibilitou o debate de pautas até então não tratadas, traz o reconhecimento da pluralidade
das mulheres. Tanto Maria Faz-Favor quanto Gisa, eram de origem humilde, para as quais o
trabalho sempre foi necessário para seus sustentos. Diferentemente da mocinha rica e descon-
tente de Fogo Sobre Terra (1974), agora as personagens tinham uma ligação mais próxima
com a realidade de suas audiências. Outra observação importante é que em ambos os casos, é
destacado o esforço e luta pessoal das personagens, garantindo que só alcançam seus objeti-
vos por trabalharem muito para isso. Esse pensamento pode ser relacionado ao que, no con-
texto americano e europeu, se conceitua como o pós-feminismo na década de 2000 e aos ide-
ais meritocráticos.
Após 10 anos sem telenovelas de autoria feminina, nos anos 1990, Glória Perez come-
ça a ganhar espaço entre os grandes autores. Tem como característica, debater, em suas tra-
mas, assuntos atuais e que tenham função social. Em De Corpo e Alma (1992) esse conflito
relacionava-se à doação e transplante de órgãos. Junto a isso, também abordou os papéis soci-
ais femininos e masculinos, principalmente através de Juca, que trabalhava como stripper e
garoto de programa, atividades, normalmente, ligados à figura feminina. Ainda, ele era extre-
mamente vaidoso e sustentado por uma mulher mais velha, situação que causou certo estra-
nhamento em um público acostumado a ver “mocinhas” dependentes de seus maridos. No
entanto, durante a gravação da telenovela, a atriz Daniela Perez foi morta por um colega. O
crime levou a autora debater, ainda, a morosidade da justiça e a inadequação do código penal.
A discussão que iniciou na telenovela, tomou grandes proporções, levando à alteração da Lei
dos Crimes Hediondos, que passou a incluir o homicídio qualificado, ou seja, praticado por
motivo torpe ou fútil, ou cometido com crueldade.
166
Ainda assim, podemos considerar que o grande destaque da década foi a telenovela
Explode Coração (1995), através de um debate que envolvia culturais antigas e o contempo-
râneas, a partir da figura de uma jovem cigana que, mesmo seguindo as tradições de seu povo,
queria independência financeira, realizações profissionais e liberdade na escolha de seu par
romântico. Esse comportamento entrava em choque com seu povo, mas, ao mesmo tempo,
estava conectado com o cotidiano da audiência. Além disso, mais uma vez falou-se sobre re-
lacionamentos intergeracionais. Dessa vez, o casal teve uma final feliz, não sem polêmica.
Outro destaque que deve ser feito, é em relação à personagem Sarita Vitt, uma travesti
que conquistou a simpatia do público por suas características que mesclavam irreverência
com seriedade. Apesar disso, a personagem não era consensual com grupos gays, que não se
sentiram representados por ela, já que não a consideravam nem gay, nem travesti, nem transe-
xual ou drag-queen.
Dessa década, é possível observar uma abertura ainda maior na representação e aceita-
ção de temas e personagens, gerando, assim, uma maior pluralidade nos enredos. Observa-
mos, de modo inicial, que os debates sobre gênero, nas telenovelas pesquisadas, iniciam nesse
período, a partir do exemplo de Juca e Sarita. Junto a isso, se desenvolvem, também, narrati-
vas mais próximas ao cotidiano dos telespectadores, abordando aspectos da educação e mer-
cado de trabalho, bem como relacionamentos diversos.
América
Autoria Gloria Perez
Período 14/03/05 - 05/11/05
Ambientação Rio de Janeiro, Brasil e Miami, Estados Unidos.
Época Contemporânea à exibição.
Trama principal Busca por um sonho e independência financeira. O par amoroso Sol
e Tião não termina junto, pois, os sonhos individuais são incompa-
tíveis.
Histórias secundárias Foi criada uma grande expectativa em torno dos personagens Júnior
e Zeca, que poderiam protagonizar o primeiro beijo homossexual
masculino em uma novela da TV Globo. No entanto, a cena foi es-
crita, gravada, mas não foi ao ar, pois a produção acreditava que o
público ainda não estava preparado para compreendê-la. O primeiro
beijo gay entre dois homens, em novelas da Globo, só foi ocorrer
em 2014, no último capítulo de Amor à Vida, de Walcyr Carrasco.
O amor intergeracional mais uma vez foi abordado, agora através
da viúva Neuta e do Peão Dinho. O casal foi bem-aceito e o público
apoiou o romance.
Outras informações -
Pautas Acionadas Independência
Relacionamento abusivo
Homossexualidade
Violência física
Machismo
Caminho das Índias
Autoria Glória Perez
Período 19/01/09 - 12/09/09
Ambientação Brasil e Índia.
Época Contemporânea à exibição.
Trama principal Amor proibido entre dois jovens indianos de origens distintas, co-
mo pano de fundo, trazia a diversidade cultural.
Histórias secundárias Shanti sai de casa para ser atriz e fugir da obrigação de noivar com
um comerciante indiano, muitos anos mais velho que ela, escolhido
pelos seus pais.
Ravi, também indiano, casa-se com a brasileira Camilla, uma mu-
lher de personalidade forte, mas que aceita se submeter as tradições
da cultura indiana e ir morar com a família do marido, em nome de
seu amor. No entanto, ao conhecer a realidade da cultura, passa a
viver grandes conflitos com a família de Ravi: precisa usar o véu,
não pode beijar seu marido em público nem o chamar pelo nome,
além disso, deve executar diversas tarefas domésticas, tradicional-
mente feitas pelas mulheres, como preparar e servir o chá. Camilla
abandona Ravi, mas retorna para ele, engravida e os dois vivem
168
felizes.
Outras informações - a telenovela foi criticada por retratar a cultura indiana de forma
muito caricata e carnavalesca;
- foi a primeira telenovela brasileira a ganhar um Emmy Internacio-
nal de melhor novela, em 2009.
Pautas acionadas Submissão
Machismo
Fonte: Elaborado pela autora
78
A separação por castas na cultura indiana foi abolida em 1947 quanto o país se tornou independente da Ingla-
terra, porém, ainda assim, segue residual na sociedade.
170
A década de 2010, mesmo com apenas duas novelas de autoria feminina, ambas de
Glória Perez, traz para as telas temas relevantes e até então não abordados. Salve Jorge (2012)
apresenta o tráfico de mulheres e a exploração sexual. A personagem principal, envolvida no
conflito, buscava por melhores condições financeiras para sustentar seu filho, já que foi mãe
aos 14 anos e o pai da criança nunca o assumiu. Mesmo com a independência e perseverança
dela, na busca por seus sonhos, sua história só será completa quando preenchida pelo par ro-
mântico, que, nesse caso, é um capitão da cavalaria do Exército – um príncipe encantado,
montado a cavalo, que salva a mocinha e com ela tem um final feliz. Outro ponto que merece
destaque é a trilha sonora do personagem Théo, “Esse cara sou eu”, de Roberto Carlos, que,
na época, teve alguns questionamentos por sua letra retratar um homem machista, manipula-
dor e dominador.
Outras duas histórias interessantes apresentadas nessa produção é a de Bianca e Helô.
Bianca é inicialmente retratada com o estereótipo da mulher rica e independente, comemoran-
do o seu divórcio em uma festa de descasamento. Se até pouco tempo falar disso em telenove-
las atentava contra a moral e os bons costumes, em Salve Jorge (2012) é motivo de comemo-
ração. Desapegada, larga tudo e vai para a Turquia, onde vive uma história de amor que não
dá certo devido às diferenças culturais que possui com seu par, restringindo sua liberdade, ou
seja, diferentemente de telenovelas anteriores, a personagem Bianca não abre mão de sua li-
berdade para viver um relacionamento amoroso. Helô também é uma mulher forte, determi-
nada e com grande capacidade de liderança. Conduz as investigações sobre a quadrilha que
realiza o tráfico de pessoas e mantém, ao longo da trama, um relacionamento conturbado com
seu ex-marido, com quem termina junto. No entanto, a história de Helô é diretamente ligada
as suas qualidades profissionais e não ao par romântico, são histórias independentes e que se
cruzam na personagem.
Em A Força do Querer, de 2017, novamente há uma gama de pautas acionadas ao
longo da história. A primeira delas, devemos destacar, que já fica marcada no título, é a ideia
meritocrática da busca e conquista dos objetivos. A construção dos personagens e suas histó-
rias passa pelas escolhas feitas por eles e nas consequências que isso acarreta, para o bem ou
para o mal. Ideia essa que pode ser associada ao contexto pós-feminista em voga no cenário
do feminismo europeu e americano. A personagem Jeiza é um exemplo disso. Enfrenta pre-
conceito e grandes dificuldades por ser da carreira policial e mais ainda por querer ser lutado-
ra de artes marciais mistas (MMA). A partir de sua força de vontade, vence os obstáculos e
atinge o objetivo. Já Bibi realizou escolhas erradas ao longo da vida, largou o primeiro grande
172
amor, parou de estudar e entrou para o mundo do crime atrás de um novo relacionamento,
sofrendo as consequências disso, ao longo da trama.
Um dos pontos principais da história, no entanto, foi a personagem Ivan, que se apre-
sentou como um homem trans, suscitando um grande debate sobre identidade de gênero. A
autora foi uma das pioneiras a tratar desse assunto em telenovelas e conseguiu levar a pauta
até o fim, com aceitação positiva, com caráter informativo e expositivo. Ivana (nome dado por
sua mãe) passa a se chamar Ivan, toma hormônios, debate sobre as consequências em seu or-
ganismo, relata preconceitos sofridos e, ainda, realiza a cirurgia para retirada dos seios, mos-
trando aspectos da realidade e dificuldades encontradas por muitos homens trans. Essa teleno-
vela é o destaque da década.
Verificamos, assim, que, embora a amostra da década contemple apenas duas teleno-
velas, ambas oferecem uma vasta possibilidade de estudos por trazerem pautas variadas e até
então inexploradas. Ao fim dessa primeira etapa de análise, de caráter exploratório e majorita-
riamente descritivo, já é possível realizarmos algumas inferências e delimitarmos nosso cor-
pus, conforme pode ser observado no quadro a seguir.
79
Janete Clair foi uma das principais autoras de telenovelas brasileiras. Iniciou sua carreira como radioatriz e
locutora e, posteriormente, passou a redigir radionovelas e telenovelas. Foi casada com Dias Gomes, também
autor de radionovelas. Em 1948, a ligação de Dias Gomes com o Partido Comunista e os problemas daí decor-
rentes, fez com que eles se mudassem para o Rio de Janeiro. Lá Janete intensificou suas escrita e começou a
ganhar notoriedade. (MEMÓRIA GLOBO, 2020)
80
Glória Perez é uma dos principais autoras atuais de telenovelas. Também ficou conhecida por ser mãe da atriz
Daniella Perez, assassinada durante as gravações de uma trama de sua autoria, em 1992. Desde então, busca
trazer questões sociais em suas produções. Ainda tem como característica histórias baseadas na diversidade cul-
tural. (SITE TELEDRAMATURGIA, 2020)
174
12
10
0
Homossexualidade
Machismo
Maternidade
Adoção
Liderança
Sexualidade
Transexualidade
Violência verbal
Independência
Submissão
Rompimento da passividade
Mercado de trabalho
Violência física
Violência sexual
Assédio
Relacionamento abusivo
Estudo e qualificação
Violência psicológica
Padrão comportamental
Abandono parental
Gravidez precoce
Guarda infantil
Aceitação do corpo
Exploração sexual
Alargamento do espectro de profissões
Número de aparições
A partir daí, percebemos que esses temas centrais convergiam para grandes pautas fe-
ministas, sendo elas: maternidade (abandono parental, adoção, gravidez precoce, guarda in-
fantil, mito do amor materno), violência contra a mulher (assédio, exploração sexual, ma-
chismo, relacionamento abusivo, submissão, violência física, psicológica, sexual e verbal),
empoderamento (aceitação do corpo, independência, liderança, padrão comportamental,
rompimento da passividade, sexualidade), mercado de trabalho (alargamento do espectro de
175
30
25
20
15
10
0
Maternidade Violência contra a Empoderamento Mercado de Diversidade sexual
mulher trabalho e de gênero
Percebemos, ainda, o silenciamento de algumas pautas e/ou debates que são comuns
ao movimento feminista. A primeira delas é sobre a diversidade das mulheres. Das telenove-
las aqui analisadas, todas as protagonistas são mulheres brancas e, salvo exceções, de classe
média alta. Cabe destacar que a primeira telenovela que contou com uma protagonista negra
foi Da Cor do Pecado, de João Emanuel Carneiro, em 2004, no horário das 19 horas. Além
disso, mesmo que protagonistas das histórias, as personagens de Janete Clair e Glória Perez,
de modo geral, não são lembradas como fortes ou marcantes, assim como foram Malu, em
Malu Mulher (1979), Odete Roitman, em Vale Tudo (1988), Tieta, em Tieta (1989), Raquel
em Mulheres Apaixonadas (2002), Maria do Carmo, em Senhora do Destino (2004), Pereirão,
em Fina Estampa (2011), Clara e Marina em Em Família (2014) – todas, com exceção de
Malu Mulher, de autoria masculina. Temáticas como o aborto e saúde da mulher também não
têm expressividade. Notamos, de modo inicial, que as autoras, principalmente Glória Perez,
transitam em um caminho seguro, onde falam sobre liberdade e autonomia feminina dentro de
176
um espaço já conquistado. Assim, nos parece que muitas das pautas do feminismo sofrem, de
fato, interferência dos contextos hegemônicos e tradicionais presentes nos modos de produção
das telenovelas. No entanto, essas observações só poderão ser verificadas e confirmadas atra-
vés do aprofundamento da análise, o que será feito nas próximas etapas.
enredo, das personagens e dos textos que contribuíram para a compreensão sobre os modos
de representar e pautar o feminismo. Cabe destacar que não temos a intenção de analisar em
profundidade cada uma das telenovelas, e sim, a forma como a pauta, em específico, foi abor-
dada. Portanto, apresentaremos aqui, recortes e trechos que avaliamos como adequados, para
ilustrar o modo como a temática se desenvolveu. Mais detalhes e informações sobre a análise
textual, podem ser encontrados no Apêndice D.
Em nosso universo mais específico de análise, as seis telenovelas, novamente elenca-
mos aqueles temas que se relacionam diretamente às pautas feministas, como pode ser obser-
vado no Quadro 8.
Quadro 8 - Temas e pautas feministas nas telenovelas
Temas incluídos Pautas feministas
Abandono Parental
Guarda infantil
Maternidade
Adoção
Mito do amor materno
Relacionamento abusivo
Machismo
Assédio
Violência sexual
Violência contra a mulher
Violência física
Violência verbal
Violência psicológica
Submissão
Independência
Liderança
Rompimento da passividade Empoderamento
Sexualidade
Aceitação do corpo
Alargamento do espectro de profissões
Estudo e qualificação
Mercado de trabalho
Inserção no mercado de trabalho
Divisão sexual do trabalho
Trans*81 Diversidade sexual e de gênero
Fonte: elaborado pela autora
81
O termo trans* pode ser utilizado como a abreviação de várias palavras que expressam diferentes identidades,
como transexual, transgênero, travesti, entre outros. Nesse sentido, o uso do asterisco ao fim da palavra é para
evitar classificações excludentes e estigmatizantes, transformando-o um termo guarda-chuva para todas as iden-
tidades atreladas a ele.
178
Evidentemente, tais pautas não existem de forma isolada, tampouco possuem limites
fixos em sua abrangência. Elas se cruzam e dialogam de forma contínua. Tal separação foi
feita a fim de facilitar o entendimento e análises realizadas.
Maternidade
Em Véu de Noiva (1969) a maternidade é uma das temáticas centrais da história, uma
vez que envolve duas irmãs na disputa pela guarda de uma criança. A mãe biológica entregou
seu filho a sua irmã, por questões morais, relacionadas a ser mãe solteira e, ao mesmo tempo,
por querer dar continuidade em sua carreira de bailarina. Soma-se a esse contexto, o abandono
parental por parte do pai, que também não queria abrir mão de sua carreira como pianista, mas
em nenhum momento recaía sobre ele a responsabilidade ou a culpabilidade sobre esta ques-
tão. Já sobre a atitude da personagem feminina, decorreu um grande debate no contexto soci-
al, dividindo a opinião, principalmente, das mulheres. Ou seja, o abandono parental feminino
é penalizado de forma mais severa que o masculino, pois uma mãe abandonar um filho é, ain-
da hoje, julgado de forma mais grave que quando o pai o faz. Enquanto que para o homem há
uma opção de escolha, para as mulheres não. Independente do caminho seguido, ela será jul-
gada. A luta das mulheres, nesse período, ainda estava ganhando seu espaço, a independência
feminina não era para todas e para além da vergonha de ser “mãe solteira”, essa discussão traz
oculta o debate sobre as mulheres, a maternidade e o mercado de trabalho. De acordo com
dados do IBGE (2018), ainda há 5,5 milhões de brasileiros que não possuem registro paterno
na certidão de nascimento e 11,6 milhões de famílias que são formadas por mães solo, signifi-
cando a importância desse tema e suas consequências também na atualidade.
Embora a personagem tenha tido essa atitude, que podemos entender com uma ruptura
com o mito do amor materno, adiante, na história, arrependida, decide querer ser mãe e, por
não mais poder engravidar, pede o filho de volta para a irmã, restaurando a ideia da materni-
dade como algo inscrito na “natureza feminina”. A importância para tal temática desenvolvida
em Véu de Noiva (1969) ficou explícita já que foi preparado, a pedido do diretor Daniel Filho,
um júri real82 para decidir com quem a criança ficaria no final da novela. A disputa mobilizou
o país e entrou na pauta de inúmeros debates (MEMÓRIA GLOBO, 2020).
Em Pecado Capital (1975) a maternidade não tem grande peso na narrativa, tampouco
é debatida. Ela aparece, principalmente, relacionada à ideia de que uma mulher só é completa
ao ter filhos, como podemos observar no seguinte trecho de um diálogo entre os personagens
Vitória e seu marido Ernani.
82
Na época de exibição da telenovela, o diretor Daniel Filho solicitou ao juiz de menores, Eliézer Rosa, que
fosse preparado um júri para decidir com quem a criança ficaria no final da novela. Nem Janete Clair sabia qual
seria a decisão. O julgamento foi gravado sem ensaio, dando ganho de causa para Andréa, a mãe não biológica.
180
Em outro recorte podemos perceber, também, a maternidade como uma “tarefa” ex-
clusivamente feminina e que a restringe ao espaço privado do lar, em oposição ao trabalho
masculino no universo público.
Vitória: Ernani, eu ando triste, chateada. Está tudo tão complicado, eu quero mais da minha
vida. Acho que eu queria trabalhar, assim como você.
Ernani: Vitória, pelo amor de Deus, tira isso da cabeça.
Vitória: você não tá entendendo, eu tô aqui conversando e você não me ouve.
Ernani: Vitória, o teu problema é preencher o teu tempo... então faz o seguinte, faz um curso
de culinária, cuida dos nossos filhos, essa é sua função, não é?
Em Coração Alado (1980), novela exibida durante a abertura política prometida por
João Baptista Figueiredo, que havia assumido a presidência do país em 1979, foram realizadas
críticas até então intratáveis no espaço televisivo. A pauta da maternidade aqui aparece atra-
vés da violência sexual, que gera uma gravidez e tangencia a temática do aborto. Mais uma
vez, a personagem divide-se entre seguir o “instinto materno” ou desistir da gravidez, devido
ao fato de o filho ter sido fruto da violência. Ela opta por ter a criança e entregar para adoção,
arrependendo-se mais tarde, da mesma forma que a personagem de Véu de Noiva (1969).
Diante da solução apresentada pela trama, o que percebemos é um conservadorismo na
conduta da personagem, já que, apesar de a criança ter sido fruto de um estupro, o que daria à
mãe respaldo legal83 para o aborto, ela decide por manter a gravidez. Assim, mesmo que, no
contexto americano e inglês, a pauta tenha se tornado central para o feminismo já na década
de 1960, no Brasil, ainda não é tratada com a mesma força e é incorporada, midiaticamente,
de forma contrária ao movimento. Tal atitude vai ao encontro do pensamento hegemônico da
época, conforme o artigo de opinião da Folha de São Paulo de 3 de outubro de 1980, que
afirmava que “uma moça direita não faria tal procedimento”84. Vale lembrar que, ainda nos
dias atuais, o debate sobre o abordo segue gerando polêmica. No ano de 2019, foi reapresen-
tada uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de 2015, que tem o intuito de proibir
o aborto independentemente das circunstâncias, impossibilitando a interrupção de gravidez
em situações já previstas em lei. A PEC ainda está em tramitação.
83
O Código Penal Brasileiro, no artigo 128, do Decreto - Lei n° 2848 de 07/12/1940, afirma que "Não se pune o
aborto praticado por médico: "I - Se não há outra maneira de salvar a vida da gestante. II - Se a gravidez resulta
de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu responsável legal".
84
Disponível em:
<https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=7453&anchor=4266918&origem=busca&pd=c5cfd01a8aab15f17
d651aea940bc4d6> Acesso em 25 de abril de 2020.
181
O grande sonho da personagem era ser mãe, para isso, busca adotar uma criança
portadora do vírus HIV. Mais uma vez, a situação não é problematizada, apenas apresentada,
mesmo assim, a consideramos de grande importância, já que, ainda hoje a adoção de crianças
por famílias não tradicionais (pai e mãe heterossexuais) causa polêmica e é dificultosa.
Levantar esse assunto no ano de 1995 já indicava a necessidade de se falar sobre, dando
abertura para a reflexão sobre a temática.
Ainda assim, embora a maternidade não tenha sido o tema condutor da narrativa e ela
não estivesse atrelada a feminilidade da personagem principal, identificamos, aqui, o início de
uma série de “finais felizes”, que só se concretizam com a família e os filhos (Figura 33).
Sol: Eu não vou entregar a minha vida na mão de um homem que vai me falar um monte de
coisa linda e que no outro dia vai embora me deixando com um filho no braço, que nem eu ve-
jo acontecer com um monte de mulher por aí. E aí eu tenho que tomar conta da criança sozi-
nha enquanto eles saem pelo mundo.
Fonte: Globoplay
Em A Força do Querer (2017), como nas duas novelas anteriores, todas com autoria de
Glória Perez, essa pauta também não tem peso na história, mas embora a personagem termine
a novela com casamento e filhos (Figura 35), não abre mão de seu objetivo.
183
Durante a narrativa ela, diversas vezes, afirma que o casamento e filhos não era sua
meta de felicidade, já que suas realizações estariam no âmbito profissional, sendo desacredi-
tada, inclusive, por um de seus namorados e sua mãe, conforme se percebe nos diálogos a
seguir.
Vitor: Fala quando a gente tiver um filho, uma menininha, uma Jeizinha aqui, como é que vai
ser?
Jeiza: Com filho ou sem filho, eu vou ser a mesma, vou ser eu. Você vem com esse papo de
casamento achando que quando tiver um filho, eu vou mudar a minha personalidade. Pode
tirar seu cavalinho da chuva, porque não vou.
Nesse último recorte, percebe-se, o pensamento hegemônico de que o ideal para ela
seria casar, ter filhos e cuidá-los, modificando seu comportamento e atitudes que destoam
dessas prerrogativas.
Deste item, o que pudemos concluir, até então, é que a representação da maternidade
em produtos midiáticos não acompanha a crescente liberalização no comportamento feminino.
Prevalece atrelada a pensamentos hegemônicos patriarcais, tradições conservadoras e
instituições religiosas que não incentivam o uso métodos contraceptivos e controle de
natalidade. Também, reforça a ideia da maternidade compulsória, com a felicidade completa,
junto aos filhos. Ainda, apresenta apenas uma de suas faces, ocultando as dificuldades em ser
184
Sabemos que as relações entre feminismo e violência contra a mulher são históricas,
vinculadas a uma sociedade patriarcal sexista que condiciona, até hoje, os papéis ditos mascu-
linos e femininos, inferiorizando e subjugando as mulheres. Isto criou, ao longo do tempo,
uma estrutura social e cultural hegemônica, cristalizada em ideias, conceitos, hábitos e costu-
mes em que o poderio masculino se sobrepujava de forma estrutural e praticamente inquestio-
nável, do ponto de vista do sistema patriarcal.
Todo esse bloco de pensamento se sedimenta e se difunde por toda a sociedade, atra-
vés de tradições e instituições formais, o que faz com que seja assumido de forma naturaliza-
da. Isso é visível através das estruturas hierárquicas familiares, pensamento religioso, práticas
escolares, elaborações legislativas e aparatos governamentais, produções artísticas e midiáti-
cas e ações cotidianas.
De forma contra-hegemônica, o feminismo questiona e tensiona tal condição e acom-
panha as mudanças sociais e políticas vividas nas várias décadas no país e no mundo, e a vio-
lência contra mulher se constituiu como uma das principais pautas do movimento e área de
interesse de pesquisadoras. Dentro de nosso estudo, não foi diferente. Visualizamos a temática
da violência em todas as produções que analisamos. Aqui, a compreendemos de acordo com a
Convenção de Belém do Pará85 (1994, p.2), para a qual significa “qualquer ação ou conduta,
baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mu-
lher, tanto no âmbito público como no privado”. Portanto, nesta pauta observaremos os rela-
cionamentos abusivos, machismo, assédio, violência sexual, física, verbal, psicológica e a
submissão feminina.
Em Véu de Noiva (1969) a violência exibida é o assédio, a física e a verbal, através de
um dos personagens principais masculinos, que apresentava traços de agressividade com as
três parceiras amorosas que teve ao longo da telenovela. Esses comportamentos aconteciam
85
A Convenção de Belém do Pará ou Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher, aconteceu no ano de 1994, como um acordo, no âmbito da Organização dos Estados
Americanos, para a adoção de medidas normativas de proteção, no âmbito do direito internacional, às mulheres
vítimas de violência.
185
A atitude dele demonstra a ideia de posse de sua noiva e, mesmo que a dela seja a de
um enfrentamento momentâneo, compreende o comportamento ciumento dele como sinal de
amor. Em outra cena, ela chega de carona com o proprietário da agência de publicidade pelas
quais faz as fotos. Em um ato de ciúmes, Carlão o agride, dizendo que “é uma vergonha o que
ela acabou de fazer, moça de família não faz isso”. Hoje, notoriamente a relação entre eles
poderia ser considerada abusiva. No período, não era vista dessa forma.
186
Eugênio: o que você gosta e o que você não gosta em uma mulher, Carlão?
Carlão: ah, eu não gosto de vestido muito curto, justo, colado no corpo, roupa decotada, essas
pinturas.
Alzira: isso é papo de machista!
Emilene: para mãe. Conta mais, Carlão.
Carlão: ah, eu não gosto de cabelo espalhafatoso, essas coisas de unha pintada. Não gosto de
barriga aparecendo. Acho horrível. Outra coisa é calça. Não consigo entender como mulher
pode usar calça! Mulher fica bonita mesmo de saia.
Alzira: ê conversa de machão.
O único questionamento sobre tais ideias, parte de Alzira, mãe de Lucinha, que o julga
como machista, por essa fala, não por seu comportamento ao longo da história. Em outra situ-
ação o mesmo personagem, que trabalha como taxista, assedia uma passageira durante o per-
curso. A construção narrativa realizada dá o entendimento de que tal atitude era corriqueira e,
por diversas vezes, correspondida, novamente, não sendo compreendida como problemática.
Carlão: esses ricão são uma figura, né. Os caras já acordam de cara amarrada, mau humor,
nunca vi. Já peguei alguns aqui no meu taxi e fico imaginando esses caras dentro de casa com
a mulher. Já deve acordar reclamando com a mulher da gravata, que não tá boa, que o café não
tá pronto, que o botão do terno não tá costurado...
Passageira: sabe que é mesmo...
Carlão: é, né.. eu não. Eu não mesmo. Acordo no meio bom humor. Já pego a mulher, danço
pela casa...
Passageira: é, eu também acordo muito alegre.
Carlão: é, acho que a gente devia tentar acordar um dia junto, o que você acha?
Outro casal da novela também vivencia o que hoje tratamos como relacionamento
abusivo e com episódios de violência física e psicológica. Vitória é submissa ao marido Erna-
ni, que a considera incapaz, tenta afastá-la de sua família e, em mais de uma situação, a agride
verbal e fisicamente. Diferente da situação anterior, Vitória percebe, ao longo da história que
seu relacionamento não é saudável e várias vezes questiona o marido sobre o modo pelo qual
ele age assim. Nos trechos a seguir é possível exemplificar algumas características dessa rela-
ção:
Ernani: Vitória, eu tô fazendo uma coisa importante, não posso ficar me preocupando com
suas bobagens, sai da minha frente e acha o que fazer, vai ver televisão. Você só me atrapalha
Ernani passa por Vitória e a empurra.
187
Vitória: oi, meu amor. Você voltou cedo! Não teve jogo de tênis?
Ernani: onde é que você estava?
Vitória: fui na casa da Zuleika, não te deram o recado?
Ernani: e como está a Zuleika?
Vitória: está ótima, te mandou um beijo.
Ernani: mandou um beijo pra você também. Eu liguei pra lá. Você me fez passar por uma si-
tuação constrangedora, Vitória!
Vitória: ai, Ernani, eu fui andar um pouco. Fui ficar sozinha. Fui espairecer. Eu inventei essa
história da Zuleika porque você sempre fica chateado quando eu saio sozinha. Você se aborre-
ce.
Ernani: agora você está dando pra mentir pra mim?
Vitória: você me obriga a mentir pra você. Você vive me colocando contra a parede. Não me
dá outra saída.
Ernani: Vitória, isso é revide porque ontem eu não quis passar o meu domingo na casa do seu
pai? Porque eu quis passar o meu domingo com a minha família? Será que eu vou ser o único
pai do mundo que vou ser acusado de querer curtir os filhos no domingo?
Vitória: eu não quero mais falar disso!
Ernani: você não saiu sozinha coisa nenhuma!
Vitória: eu saí sozinha, sim!
Ernani segura Vitória pelo braço e a sacode.
Ernani: vai mal, Vitória. Presta atenção, pelo amor de Deus! Depois não reclame das conse-
quências!
Fonte: Globoplay
No diálogo sobre a cena em que ele a prende em casa, fica explícita a falta de
problematização sobre a situação, justificando a atitude machista e violenta dele, que foi
aceita com naturalidade por sua parceira.
Fonte: Globoplay
Fonte: Globoplay
Zeca: ô Jeiza, tô notando agora esse teu decote aí... dá pra ver tudo.
Jeiza: ah, pelo amor de Deus!
Zeca: tô vendo tudo, Jeiza. Dá pra ver demais. Não tá acreditando em mim não? Tô vendo,
Jeiza.
Jeiza: não acredito que tô ouvindo um treco desses.
Zeca: Jeiza, eu tô querendo dizer é que você não pode sair assim, com um negócio mostrando
demais. Tu, bonita assim, todo mundo vai ficar vendo.
Jeiza: isso é novidade pra mim... tu patrulhando meu decote.
Zeca: tô querendo dizer que tu não é nenhuma rede rasgada pra se apresentar num lugar com
tudo a mostra desse jeito. Troca esse vestido.
Jeiza: não vou!
Zeca: troca sim.
Jeiza: não troco.
Zeca: se não trocar não saio contigo.
Jeiza: então fica, eu saio.
Aurora: para Zeca, deixa eu ver aqui.
Aurora derrama café na roupa de Jeiza, propositalmente, obrigando a filha a trocar de roupa
disso, a situação não teve problematização e sua principal função foi servir de gancho para o
seguimento da história, confirmado pela própria autora, Janete Clair, em uma entrevista ao
jornal O Globo, de 28 de setembro de 1980, em que contou que esta cena foi decisiva para a
novela. “A partir desse fato, as emoções começam a se suceder. O que aconteceu com Vivian
vai servir de fio condutor para o surgimento de muitas coisas novas”. Ou seja, a proposta não
é debater acerca da violência contra a mulher, mas sim usar a situação de forma dramática
para dar continuidade na história. A violência é gratuita e não tem desenvolvimento, tampou-
co problematização sobre o ocorrido. Na mesma reportagem, o ator Ney Latorraca, que inter-
pretou o estuprador, falou sobre a cena e indicou que perdoaria o personagem, pois ele estava
cego de amor:
Acho que se Leandro for encarado apenas como um mau-caráter, a história perde
muito de sua graça. Ele tem altos e baixos, é um personagem humano, igual a milha-
res de pessoas que andam impunemente pelas ruas. Foi um momento de fraqueza e
qual o homem que não se sentiria atraído por uma cunhada como a Vera Fischer? 86
86
Disponível em:
<https://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&pagina=67&ordenacaoData=dataAscendente&
allwords=&anyword=&noword=&exactword=&decadaSelecionada=1980&s_variedades=on&ss_jornaldafamili
a2=on&ss_domingo2=on&s_tv=on&ss_cadernodetv=on&ss_revistadatv=on&GLBID=164bd3f550ad2bc43faff7
05d0c0773c24932377657464839685f58706579364530503871574a586c31756b47526e42393333357144546447
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3d3d3a303a7572656c63627861636e62726469786973676b70>. Acesso em 26 de fevereiro de 2020.
87
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/celina/short-tipo-anitta-ou-qualquer-outra-roupa-nao-justificam-
assedio-parece-obvio-mas-ate-cantora-teve-que-explicar-veja-video-24258562> Acesso em 10 de março de
2020.
88
Disponível em: < https://oglobo.globo.com/celina/para-deputado-roupa-chamariz-para-estupros-voce-sabe-
risco-que-esta-correndo-1-23655705 > Acesso em 10 de março de 2020.
191
Em Explode Coração (1995) a violência física e verbal sofrida pela personagem prin-
cipal é justificada, majoritariamente, pelas diferenças culturais. Dara é agredida por sua mãe,
seu pai e seu marido, por quebrar as tradições de seu povo cigano. Nos trechos destacados,
sua mãe e marido já dão indícios de que a violência é justificável em situações de enfrenta-
mentos e rompimentos com comportamentos estabelecidos (Figura 40).
Em outro momento, a personagem é, inclusive, expulsa da família, por seu pai, con-
forme pode ser visto nos recortes a seguir.
Jairo: você vai viver como uma cigana ou então não pertence mais a essa família. Você esco-
lhe se você quer romper seus laços com a gente agora, pode esquecer que a gente existe.
Dara vai embora de casa
Dara: pai?
Jairo: eu não sou eu seu pai. Não me chama de pai. Não sou eu pai, não sou seu pai. Eu odeio
você!
Importante observar que, no campo jurídico, ao longo desses anos, foram diversos os
mecanismos e instituições que foram criadas para o combate à violência contra a mulher, co-
mo as Delegacias da Mulher, legislações específicas, programas de apoio e amparo. No entan-
to, em nenhuma das seis telenovelas analisadas aqui, houve qualquer tipo de menção a isso,
ou foi utilizado como um recurso para um contraponto ou apoio a mulheres em situação de
192
violência. Em A Força do Querer (2017), por exemplo, a personalidade de Jeiza, aliada à sua
profissão, poderia ter gerado um amplo campo para abordar tal pauta.
Além disso, percebemos, que a representação dos personagens masculinos e suas ati-
tudes machistas e violentas são sempre justificadas de alguma forma: como naturais, traços de
personalidade, “coisas de homem”, amor excessivo. Nesta mesma linha, observamos, também
uma romantização dos relacionamentos abusivos. Isto é, personagens que cedem as vontades
de seus parceiros, brigas que são resolvidas com beijos e sentimento de culpa por parte delas
pelas situações. Temos, aqui, um exemplo dos complexos processos de mediação, atravessa-
dos pelo hegemônico, novamente. Ao mesmo tempo em que a telenovela reproduz tais atitu-
des vividas por muitas mulheres (Figura 41), a alguns telespectadora aprovam e retroalimen-
tam as lógicas de produção (Figura 42).
Empoderamento
Sendo assim, mais do que uma pauta específica, o empoderamento permeia toda a his-
tória das mulheres, já que sempre existiu, mais como um sentimento de vontade, resistência e
autodeterminação e que sem ele, as demais lutas seriam prejudicadas, pois é causa e ação do
feminismo, fazendo com que elas enxerguem suas próprias opressões, combatam imposições
e inspirem outras mulheres a promoverem mudanças no meio em que estão inseridas. O em-
poderamento serviria, conforme Cecília Sardenberg (2006, p. 2), como uma “libertação das
mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal”.
194
Neste trabalho, a pauta do empoderamento foi percebida por nós através da indepen-
dência, liderança, rompimento da passividade feminina, sexualidade e aceitação do próprio
corpo, o que fica mais visível através de comportamentos, posturas, discursos e modos de agir
das personagens.
A telenovela Véu de Noiva (1969) já apresentava um aspecto bastante interessante, que
é a ruptura com os modelos de feminilidade utilizados até então, através de uma personagem
que assassina o genro, justificando seu ato por ele ter prejudicado a vida de suas filhas. Ainda
assim, mesmo que, em um primeiro momento pareça interessante pensar sob esse viés, essa
perspectiva tira a possibilidade de as personagens femininas conduzirem suas próprias vidas,
como se fossem apenas guiadas pelos parceiros.
Em Pecado Capital (1975), a personagem feminina principal pode ser compreendida
como a representação da “nova mulher” das telenovelas, forte, independente, que trabalha e
busca por seus sonhos, ainda assim, a felicidade é completa quando ao lado de um par român-
tico. Lucinha vem de classe baixa, moradora do subúrbio carioca e sonha com uma vida me-
lhor, mesmo que para isso tenha que abrir mão de seu antigo relacionamento e ir de encontro
aos valores morais de sua família, principalmente seu pai, que considerava a profissão de mo-
delo (Figuras 43 e 44) não adequada a uma “moça de família”. Além disso, ela fugia aos tra-
dicionais estereótipos do período, não era ingênua e sofredora, tinha personalidade marcante
e, seguidamente enfrentava seu noivo, questionando atitudes que considerava machistas,
agressivas ou que a impediam de realizar seus objetivos, como podemos observar nos trechos
e imagens a seguir.
195
Figura 43 - Lucinha em ensaio fotográfico Lucinha: eu quero sair dessa desgraça de vida.
E se demorar a pintar emprego pra mim, eu vou
sim fazer mais fotografia e quero ver quem me
para.
Carlão: vai o que?
Lucinha: eu vou, não tem nada demais, Carlão,
pelo amor de Deus! Se você quiser vai junto
comigo olhar como funciona.
Carlão: tá decidido! Você vai decidir! A foto-
grafia ou eu!
Lucinha: quer saber, Carlão? Não quer casar
comigo, não casa!
Fonte: Globoplay
Carlão: peraí, Lucinha. Eu perdoo tudo que você fez. Eu perdoo. A gente casa! Eu te dou essa
colher de chá?
Lucinha: colher de chá?
Carlão: é, colher de chá. Que homem faria isso depois de tudo que você aprontou? Tá aí, to
estendendo a mão
Lucinha: pode recolher essa mão, eu não tô despencada no chão pra você tá me fazendo fa-
vor.
Carlão: para Lucinha! Pensa. Vamos casar. Vai ser bom. Você fica lá em casa, cuida do meu
pai, me espera chegar do trabalho. Vai ser legal.
Mulher preguiçosa, mulher tão dengosa, mulher. Você não passa de uma mulher (ah,
mulher). Mulher tão bacana e cheia de grana, mulher. Você não passa de uma mu-
lher. Olha que moça bonita. Olhando pra moça mimosa e faceira. Olhar dispersivo,
anquinhas maneiras. Um prato feitinho pra garfo e colher. Eu lhe entendo, menina,
buscando o carinho de um modo qualquer. Porém lhe afirmo, que apesar de tudo vo-
cê não passa de uma mulher. Olha a moça inteligente Que tem no batente o trabalho
mental, QI elevado e pós-graduada, psicanalisada, intelectual, vive à procura de um
mito pois não se adapta a um tipo qualquer. Já fiz seu retrato, apesar do estudo Você
não passa de uma mulher. Menina-moça também é mulher. Pra ficar comigo tem
que ser mulher, fazer meu almoço e também meu café. Não há nada melhor do que
uma mulher. Você não passa de uma mulher. (MARTINHO DA VILA, 1975)
A letra, de caráter bastante sexista, resume boa parte do comportamento dos homens
da trama, representativo de uma moralidade machista, que objetifica a mulher, seu corpo, des-
valoriza suas conquistas e menospreza sua própria condição feminina.
Da mesma telenovela, podemos destacar, também o comportamento de uma persona-
gem coadjuvante, Vitória, uma mulher de classe alta que mantém um relacionamento que hoje
podemos considerar abusivo. Durante a trama, ela percebe a opressão sofrida por muito tempo
e rompe com a moral familiar e a instituição do casamento, terminando a história, desquitada,
algo que até então não era bem-aceito na sociedade, em geral, visto que, até então, o divórcio
não era legalizado, o que aconteceu apenas dois anos depois. É um exemplo de uma temática
que foi legitimada nas novelas, antes mesmo de ser oficializada em lei.
A utilização do desquite através de uma personagem que passava por um relaciona-
mento abusivo e vivia diversas situações de violência, como já mencionado anteriormente, é
de grande importância para o período. Se tratando de uma época de ditadura, em que eram
poucos espaços para debates de assuntos considerados subversivos, abordar tal temática e a
forma como a personagem reconhece sua opressão e consegue romper com ela, é de grande
valia na medida em que pôde servir como referência para outras mulheres.
Já Coração Alado (1980) explorou o empoderamento feminino através da sexualidade,
com a personagem Catucha, em uma cena inédita de masturbação na televisão, o que causou
grande polêmica. De acordo com o site Memória Globo (2020), um erro com o videotape fez
com que as cenas fossem ao ar com um áudio vazado, no qual o diretor orientava a atriz sobre
como se comportar. Logo após a exibição, sumiram do arquivo da emissora todas as cópias
deste script, e a fita do capítulo 171 foi apagada. Em revistas da época, o assunto foi comen-
tado. Um artigo da Revista Veja de 11 de março de 1981, fala sobre a cena e sua repercussão
(Figura 45).
197
dar as relações de poder e, por isso mesmo, ainda encontra muitas resistências, traz à tona este
empoderamento pela via da sexualidade. Ainda assim, até a década de 1980, o movimento
feminista se movia dentro dos limites da heterossexualidade, deixando de lado as questões de
idade e raça. Foram as feministas lésbicas que começaram a questionar essa normatização,
propondo outras possibilidades para a vivência sexual das mulheres.
Em outra telenovela, Explode Coração (1995), logo no início da história, uma cena
que merece nossa atenção, é a da personagem Dara, uma cigana, que, inconformada com as
imposições culturais de seu povo, entre elas o casamento escolhido por seus pais e a proibição
de cursar o ensino superior, busca desabafar com alguém desconhecido através da internet,
conforme pode ser visto no trecho selecionado.
Júlio: hi!
Dara: hi! Eu preciso falar com alguém. Alguém que não entenda nada o que eu estou dizendo
pra eu falar tudo aquilo que nunca tive coragem de dizer pra ninguém.
Júlio: talk to me! Talk to me!
Dara: meu nome é Dara , eu tenho 20 anos, e não quero me casar com um homem que eu
nunca vi nem de fotografia. Eu sou cigana e casamento cigano é assim. A gente quase nunca
tem direito de escolher. Cigano não acredita em paixão, cigano não namora, cigano casa e acha
que o amor vai nascendo despois, na convivência. Mas eu não entendo isso, eu só entendo a
paixão. Que que eu faço? Logo agora que eu passei para a faculdade. Eu estudo escondida do
meu pai e da minha mãe porque a gente não pode frequentar a escola. Escola só até a 5ª série,
no máximo, que é pra gente não se misturar e não acabar perdendo os nossos valores. Meu pai
é muito tradicional, por ele a gente não ia pro colégio, a gente tinha aprendido a ler e escrever
aqui em casa mesmo. Mas a minha mãe pediu muito aí ele acabou deixando.
Embora ela lute para conseguir seus objetivos, abrindo mão, em alguns momentos, de
seu povo e de sua família, rejeitando o marido escolhido para ela, mais uma vez, essa
independência não é total. Ela só se contrapõe ao que concerne à tradição familiar e aos
hábitos corriqueiros. A busca por estudo e qualificação perde força ao longo da história e seu
limite está no relacionamento com um par romântico, não sendo politizada.
O empoderamento feminino em Explode Coração (1995) tem menos força devido à
característica do núcleo principal, que é representado de forma tradicional, machista e
patriarcal, com hábitos e costumes da cultura cigana bastante arraigados, os quais tentam
preservar de diferentes formas, visto através da representação da mãe de Dara, da irmã e da
sogra, e dos personagens masculinos.
De outro núcleo, podemos destacar Sarita Vitt, uma mulher trans, cuja personagem
dialoga com pautas do feminismo trans, que estavam em vigência no contexto americano por
volta dos anos 1991, a partir do texto inaugural The empire strikes back, de Sandy Stone
(McCANN et al, 2019). Essa personagem, embora não fosse uma das protagonistas, tinha
grande destaque na história e isso é de grande relevância no espaço brasileiro por trazer o
debate sobre a pluralidade das mulheres e a necessidade de respeitá-las em qualquer situação.
Sarita é, então, uma mulher forte, decidida e exige aceitação por ser quem é, visível no trecho
destacado (Figura 47).
200
Odaléia: tudo isso é por que me iludi com as palavras bonitas do teu pai. Ia casar comigo, me
dar de tudo. Não foi nem te conhecer, quando você nasceu. Nunca acredita no que um homem
te disser, Sol.
Esse pensamento a personagem sustentou ao longo da história, pois, mesmo que tenha
tido um relacionamento e estivesse de casamento marcado, abandonou o noivo, ao obter uma
nova possibilidade de partir para os Estados Unidos. No trecho selecionado podemos observar
que a personagem Sol quer ter participação ativa nos processos decisórios de sua vida e é
questionadora dos papéis sociais masculinos e femininos, reivindicando seu lugar no espaço
público.
Sol: eu tô indo embora pros Estados Unidos. Falei pra você que tinha o sonho de morar fora.
Tião: Sol, você vai pros Estados Unidos, Nós vamos. Juntos. Entramos pelo portão da frente.
Eu tô crescendo, fazendo meu nome. Eu te levo pros Estados Unidos.
201
Sol: eu não vou esperar pra pegar carona no seu dinheiro, não.
Tião: e a gente?
Sol: Não tenho temperamento pra jogar minha vida toda pro alto por causa de homem. Eu amo
você. Sei que nunca vou gostar de ninguém como gosto de você, mas agora vou agir com a
cabeça. Não vou trocar minha vida inteira por uma tarde com um homem.
mesma, vou ser eu.”, houve momentos na trama em que a personagem perde suas característi-
cas de mulher independente e cede frente as ações machistas do namorado, e acaba por ques-
tionar sua própria identidade.
Percebemos que, por mais forte e determinada que a personagem pudesse ser, o pen-
samento patriarcal hegemônico, advindo de sua família, a partir de sua mãe, amigos e princi-
palmente namorado, tem grande força tensionadora e, à época da exibição da telenovela gerou
alguns debates sobre as escolhas feitas por ela. Mais uma vez e, talvez até por questões de
audiência e para contentamento do público, o casal termina juntos, com filhos, mas, o diferen-
cial em relação às telenovelas anteriores é que Jeiza não precisa abrir mão de seus objetivos
pessoais (Figura 48). Tal representação reafirma a ideia das supermulheres, tão em voga no
período, acionando uma independência ilusória e um falso e perverso empoderamento.
Fonte: Globoplay
Na via oposta da história está Bibi, uma personagem que representa uma história real.
Ela é uma mulher de classe média baixa, moradora de uma favela no Rio de Janeiro, que teve
acesso ao ensino superior, mas, que, por amor abre mão da vida que estava construindo como
estudante de direito e ingressa no mundo do tráfico. Lá, fica conhecida como Bibi perigosa,
uma mulher influente, inteligente, articuladora e líder, que utiliza os conhecimentos adquiri-
dos na faculdade para transitar nos meios criminais. Também ela pode ser classificada como
uma supermulher, trabalha, é responsável pelo sustento da família, pelo cuidado com o filho,
é bonita, sensual e possui um “bom casamento” (Figura 49).
203
Fonte: Globoplay
Ambas as personagens são empoderaras, cada uma a seu modo. Seus destinos, na tra-
ma, são apresentados de forma meritocrática, como consequência direta de suas escolhas des-
considerando contextos maiores em que se inserem.
Por fim, podemos trazer, ainda, a personagem Abigail, uma mulher gorda, bem resol-
vida com o próprio corpo. Ao longo da história combate diversas formas de gordofobia e in-
centiva a valorização de outros padrões de beleza, conforme pode ser observado no diálogo a
seguir e na Figura 50:
Fonte: Globoplay
A segunda via, é a forma coletiva de empoderar, que passa pela representação e defesa
das demandas de grupos minoritários, como é o caso da personagem Abigail. Avaliamos que
essa construção representativa poderia ser mais explorada em outras situações e telenovelas,
já que se mostra bastante efetiva por gerar reconhecimento com parcelas da audiência.
Mercado de trabalho
As relações entre mulheres e mercado de trabalho são antigas e, desde sempre, desi-
guais em relação ao dos homens. As concepções do que se entende hoje ainda, como “traba-
lho de mulher” foram utilizadas na época da Revolução Industrial (1760 – 1840) devido a elas
estarem acostumadas com trabalhos repetitivos e tediosos do lar e do campo e, com essas ca-
racterísticas, possuíam perfil para o trabalho mecânico e em série que hora iniciava
(McCANN, 2019). É evidente que as vagas eram mal remuneradas, com durações de, em mé-
dia 13 diárias, em espaços insalubres e pouco adaptados às funções. Junto a isso, não possuí-
am experiência ou capacitações para as atividades, ficando aos homens as funções de chefia e
gerenciamento.
Junto a 2ª Guerra Mundial e o crescimento acelerado da industrialização, houve um
impulsionamento da inserção da mulher no mercado de trabalho, quer pela falta do homem
que estava no front de batalha ou pela necessidade de complementar a renda familiar. No Bra-
sil, isso ocorre devido ao desenvolvimento econômico que possibilitou o aumento da mão de
obra feminina, principalmente no ambiente fabril. Embora a Constituição Federal de 1988
garanta direitos, salários e espaços iguais, na prática, tal situação não ocorre até os dias de
hoje. Nesse sentido, o movimento feminista atua na luta pela equidade, também, no mercado
de trabalho.
Atualmente, além da já consolidada presença feminina no mercado de trabalho, sabe-
se que possuem um maior nível de instrução e ascensão a cargos de chefia. Ainda assim, os
salários não acompanham essa evolução e, muitas vezes, para que cheguem até essas posi-
ções, precisam adiar ou abdicar de outros projetos pessoais, já que, além de trabalhar e ocupar
cargos de responsabilidade fora de casa, elas também se dedicam ao trabalho doméstico, re-
sultando em uma segunda jornada, o que é comprovado pelos dados do IBGE (2018), que
revelam que as mulheres trabalham, em média 7 horas semanais a mais que os homens.
Esta pauta é representada através de várias personagens nas novelas por nós analisa-
das. A primeira delas é Flor, de Véu de Noiva (1969), que era bailarina e que decidiu abrir
mão da maternidade para seguir em sua carreira, comportamento questionado no período, no
206
entanto, não problematizado na telenovela, sendo essa, uma pauta tratada com pouca relevân-
cia na narrativa.
Já para a personagem Lucinha, de Pecado Capital (1975), a questão da inserção no
mercado de trabalho é muito mais relevante, pois, como um dos núcleos da história se passa
no subúrbio, a questão “trabalhar” não é uma escolha, mas uma necessidade. O período pelo
qual o Brasil passa, uma época de expansão da economia, também colabora para a relevância
da temática. Grande parte das personagens femininas tem a identificação de sua profissão bem
delimitada ao longo da história e aí vemos cabeleireiras, doceiras, donas de comércios locais,
fabris, secretárias e dançarina. Por outro lado, no núcleo com maior poder aquisitivo, ter um
emprego é uma opção, pela qual elas lutam, dentro de suas áreas de estudo, como artes plásti-
cas, comunicação social, filosofia, entre outros.
Representando a primeira situação, trazemos, novamente Lucinha, que junto com sua
irmã trabalha em uma indústria têxtil para ajudar no sustento da família, cuja mãe é doceira e
o pai auxilia na venda dos produtos. Ela vê, no trabalho, a possibilidade de melhorar de vida e
ascender socialmente, visível no trecho em destaque.
Em cena seguinte, ela tenta convencer seu noivo sobre a importância que seu trabalho
tem em sua vida, e demonstra que não abrirá mão dele pelo parceiro.
Carlão: Você quer trabalhar, não quer? Eu deixo! Eu deixo você trabalhar.
Lucinha: você deixa?
Carlão: deixo. Nos controles assim, eu te levando no trabalho, indo te buscar... desde que vo-
cê ficasse só na agência, né. O que eu não queria é que você ficasse desfilando pros malandros
Lucinha: quer dizer, você deixa mas não deixa?
Carlão: poxa, eu tô entregando os pontos.
Lucinha: eu mudei! Eu mudei muito desde que saí daqui. Eu tô estudando, eu tô fazendo um
curso que é bom pra mim. O curso que vai me dar status, vou poder ganhar dinheiro e ajudar
minha família.
Vitória: eu tô sufocada! De repente eu preciso trabalhar... não sei... extravasar o que eu sinto
aqui dentro.
Ernani: tá, aham.
Vitória: eu tô mal, Ernani.
Ernani: Vitória, você tem sua casa, seus filhos. Não te basta?
Vitória: não basta! Pela primeira vez na vida eu tenho certeza que não basta.
Ernani: você não sabe fazer nada, Vitória. Você nunca trabalhou na vida.
Vitória: eu me formei em comunicação.
Ernani: você se formou... ora... você frequentou uma faculdade de patricinhas. Isso é muito
diferente. Você vai querer entrar no mercado de trabalho e não está preparada. Isso não é pra
mulheres como você.
Vitória: Ernani, eu quero...
Ernani: Vitória, pelo amor de deus, tira isso da cabeça.
Pecado Capital (1975) já evidenciava, embora não de forma intencional, uma proble-
mática que só ganhou força no feminismo, por volta dos anos 1990, a universalização da cate-
goria mulher e a necessidade de pensá-la em suas pluralidades e de acordo com os diversos
tipos de opressão que viviam. A história explicita a ideia a partir do momento em que, en-
quanto mulheres de classe média alta lutavam pelo direito de trabalhar e se posicionar nos
espaços públicos, as de classe baixa sempre tiveram que trabalhar e suas pautas não eram as
mesmas.
208
Além dos exemplos citados, podemos afirmar que dentre as novelas por nós analisa-
das, Pecado Capital (1975), foi a que representou essa pauta com maior força e importância
na história, quer seja pela situação econômica em que vivíamos, como já mencionado, quer
pela instituição do Ano Internacional da Mulher que colocou as problemáticas das mulheres
em evidência.
Ainda dentro desse assunto, podemos mencionar o alargamento do espectro de profis-
sões para as mulheres, visíveis através das personagens Maria Faz-Favor, de Coração Alado
(1980), uma cobradora de ônibus (Figura 51) e Jeiza, da novela A Força do Querer (2017),
uma policial e lutadora de MMA (Figura 52). No primeiro caso, se compararmos com a tele-
novela da década anterior, Pecado Capital (1975), em que as profissões das mulheres de clas-
se média baixa, eram aquelas consideradas tradicionais, femininas e mais restritas ao espaço
privado, Maria Faz-Favor, quebra esse estereótipo atuando em uma área que até hoje é majo-
ritariamente masculina. Talvez por suas características divertida, trabalhadora, desbocada, o
público se identificou com ela, sendo considerada, pelo jornal Última Hora, de 19/08/198089,
como a melhor personagem de Coração Alado (1980) e esta situação não foi problematizada
na época. Ainda assim, tal representação é válida na medida em que apresenta possibilidades
de atuação às mulheres.
89
Disponível em: < http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/uh_digital/index/> Acesso em 20 de feverei-
ro de 2020.
209
Figura 51 - Cena de Maria Faz Figura 52 - Cena de Jeiza em seu local de trabalho
Favor em seu local de trabalho
Fonte: Globoplay
Fonte: Telememória
Já a personagem Jeiza enfrenta preconceito em sua área de atuação por parte da socie-
dade, de seus colegas de trabalho, da família, amigos e relacionamentos, conforme fica evi-
dente no trecho selecionado. Diferente da telenovela anterior, aqui existe um debate e proble-
matização sobre o preconceito. Inspirada em uma profissional real, tal construção, vem no
sentido de expor o que mulheres da área sofrem.
Jeiza: Ontem mesmo você estava dizendo para eu largar a PM para a gente dar certo.
Vitor: Eu não falei em largar. Quem falou em largar foi você.
Jeiza: Fazer um trabalho administrativo atrás de uma mesa é a mesma coisa que largar. Eu não
estou menosprezando o trabalho de ninguém não, mas o que me atrai para vestir aquela farda é
o sangue na veia, entendeu? O combate, o frio na barriga. Saber que estou protegendo aquelas
pessoas, que estou fazendo uma coisa diferente, potente.
210
Além de ser policial, Jeiza tem como paixão ser lutadora de MMA, uma área, também,
considerada masculina e pela qual sofre os mesmos preconceitos, conforme pode ser visto no
trecho a seguir. Mais uma vez, tais representações associadas à Jeiza são válidas por apresen-
tar novas possibilidades de atuação da mulher na vida e pública e mercado de trabalho.
Nas duas outras novelas analisadas por nós, Explode Coração (1995) e América
(2005), a temática do mercado de trabalho não tem grande peso na narrativa e apenas aparece
como pano de fundo das histórias. Em América (2005), o núcleo de classe média baixa nova-
mente tem profissões como costureira, cabeleireira, ajudante na mercearia. Sol vê no trabalho
a possibilidade de romper com essa realidade e alcançar melhores condições de vida. Já em
Explode Coração (1995), por ter como temática a cultura cigana e, nesse contexto, o fato de
as mulheres não trabalharem, a pauta, no núcleo principal, passa apenas pelo desejo de Dara
de estudar.
Em relação a personagem Sarita, que trabalha como cantora e dançarina em uma boa-
te, a busca por um emprego formal é um desejo que esbarra no preconceito encontrado por ser
uma mulher trans.
Tadeu: Sarita Vitt. Muito bom, muito bom! Vi aqui que você fala 3 idiomas, inglês, francês e
qual o terceiro?
Sarita: espanhol (em voz baixa)
T: que?
S: espanhol (ainda baixo)
T: anjinho... fala um pouquinho mais alto.
S: espanhol
Tadeu olha para Sarita, apavorado, e percebe que ela é travesti.
T: bom, olhando seu currículo, a impressão que dá é que você é super... é... assim... a
senhora... é super qualificada. Isso pode criar problemas com seus colegas.
S: eu sou muito discreta doutor. Quanto a isso o doutor pode ficar absolutamente
despreocupado.
T: não ia dar certo, porque segredos como esse não se consegue guardar. Infelizmente não vai
ser dessa vez.
S: se tu fosse homem tinha falado que percebeu meu gogó.
T: eu tô querendo lhe poupar.
211
Nos anos 1980 essa problematização começa a ser pensada dentro do movimento fe-
minista, a partir da pesquisadora americana Adrienne Rich, no ensaio “Heterossexualidade
compulsória e existência lésbica”. Ela tentava compreender o funcionamento da heterossexua-
lidade como uma instituição política e instrumento de poder do patriarcado. Com esse impul-
so inicial, as feministas lésbicas começaram a questionar tal normatização e propor outras
possibilidades para a vivência sexual das mulheres (McCANN et al, 2019)
Além do feminismo lésbico, ganhou espaço, também, o feminismo trans ou transfemi-
nismo, com texto fundamental de 1991. Ele pode ser compreendido, conforme Emi Koyama
(2001, p.1, tradução nossa), como “um movimento feito por e para mulheres trans que enten-
dem que a sua liberação está intrinsecamente ligada à liberação de todas as mulheres e além”.
Na contramão desse pensamento, dentro do próprio movimento feminista, existem vertentes
excludentes que acreditam que “ser mulher é uma experiência vivida” e que, por tal motivo,
mulheres trans não seriam “verdadeiramente” mulheres. Aqui, seguimos com a compreensão
da defesa da pluralidade dos feminismos, como temos reafirmado.
Entre as pautas do transfeminismo estava a luta pelo reconhecimento de seus gêneros e
nomes, bem como a garantia de suas seguranças na sociedade, que, notadamente, são hostis e
violentas em relação a elas. Vale lembrar que conforme Benevides e Nogueira (2020), dossiê
da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, o Brasil continua sendo o país que mais
mata travestis e transexuais em todo o mundo.
É nesse cenário que, em 1995, a telenovela Explode Coração apresenta a personagem
Sarita, uma mulher trans (Figura 53), que, em suas participações traz à tona essa reflexão,
conforme visto no diálogo a seguir.
213
É importante salientar que, até 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifi-
cava a transexualidade como “transtornos de personalidade e comportamento”, sendo caracte-
rizada como uma doença mental. Com a nova classificação, passou a ser chamada de “incon-
gruência de gênero”, compreendida dentro das condições relacionadas à saúde sexual, despa-
tologizando.
Hanna McCann et al (2019) aponta que, além dos objetivos do feminismo trans, já
mencionados anteriormente, está a busca por enriquecer e aprofundar o movimento através de
percepções variadas sobre ser mulher, ao mesmo tempo em que desejam levar esse entendi-
mento sobre gênero, sexualidade e poder para outras pessoas trans. Nesse sentido, trazemos,
aqui a representação do personagem Ivan, um homem trans, de A Força do Querer (2017),
como uma pauta transversal ao feminismo das mulheres trans. Através dele, é retratada outra
batalha desse grupo, que é o uso do nome social (Figura 55). Essa possibilidade, de forma
abrangente e legal, é relativamente nova, e data da última década90.
90
Nas instituições de ensino superior, por exemplo, a pioneira no uso do nome social é a Universidade Federal
do Amapá, em 2009. Na UFSM tal possibilidade existe desde 2015.
215
Fonte: Globoplay
Sobre Ivan, mesmo em um contexto mais atual, foram várias críticas recebidas, princi-
palmente através de grupos religiosos91 e políticos que acreditavam que a telenovela dissemi-
nava uma ideologia de gênero92. Em uma entrevista à Rádio Jovem Pan, a atriz que interpre-
tou o personagem também relatou sofrer preconceito por conta da representação93.
Da análise desta pauta, percebemos que a diversidade de gênero e os assuntos à ela re-
lacionados (assim como a homossexualidade em América (2005)), mesmo que, não presentes
em todas elas e nem através de protagonistas ou como foco principal dos enredos, acabam
tendo tratamento e desenvolvimento diferenciados que dão maior relevância ao assunto. Isso é
visível através de longos diálogos, debates mais aprofundados, abordagens mais didáticas e
informativas e que geram retorno (positivo ou não) por parte do público. Para nós, tal situação
é bastante significativa pois os debates sobre tais representações evidenciam as constantes
relações de mediação entre televisão e audiência.
Diferente de grande parte das pautas anteriores, que entravam nos enredos por estarem
inseridas em um contexto maior e sem intencionalidades específicas, como é o caso da inde-
pendência feminina ou inserção no mercado de trabalho, esta parece vir com objetivos defini-
dos, seja pelo viés social, de apresentar e debater um assunto, seja pelo viés mercadológico de
abordar um tema emergente. Em ambos os casos é preciso que se reafirme a importância des-
sas representações nos espaços midiáticos como forma de dar visibilidade a esses grupos mi-
noritários e suas demandas.
91
Disponível em: < https://noticias.gospelmais.com.br/a-forca-do-querer-ideologia-de-genero-evolucao-humana-
93332.html > Acesso em 24 de abril de 2020.
92
Ideologia de gênero é um termo pejorativo criado e disseminado por grupos conservadores que se posicionam
contra a diversidade sexual. Por meio dele, barram iniciativas que buscam falar sobre gênero e sexualidade, já
que acreditam que são definidos pelo sexo biológico. Defendem que a disseminação dessas ideias induziria cri-
anças e jovens a serem homossexuais ou transexuais.
93
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=qMJ3gZAs1-o > Acesso em 24 de abril de 2020.
216
Ao fim desta etapa de análise textual (com mais informações disponíveis no Apêndice
D), que buscou observar seis telenovelas brasileiras à luz do movimento feminista, ainda é
importante que se façam algumas considerações para além dos cinco temas centrais estabele-
cidas (maternidade, violência contra a mulher, empoderamento, mercado de trabalho e diver-
sidade sexual e de gênero). As pautas, independentemente da forma como são tratadas dão
dinamicidade aos enredos das telenovelas, já que as histórias, grosso modo, possuem um fio
condutor bastante linear e conhecido. Elas geralmente retratam estilos de vida e hábitos de
famílias do eixo urbano Rio-São Paulo, com temas considerados femininos, românticos, fami-
liares, afetivos, disputas amorosas, por poder, econômicas ou entre o bem e o mal (maniqueís-
tas). O final, também já é o esperado: o casal protagonista termina junto, com filhos, felizes
em família, problemas resolvidos. Os maus são punidos, os bons recompensados, reafirmando
os ideais meritocráticos. Ainda assim, ao longo do tempo, houve um alargamento de pautas e
assuntos tratados e representados nas telenovelas, tanto aqueles com vínculo direto ao femi-
nismo, quanto aqueles transversais, como os relacionamentos inter-raciais, intergeracionais e
interclasses, racismo, homossexualidade, diversidade cultural e justiça e código penal, temas
que, não são abordados aqui mas que renderiam novos estudos.
Sobre as personagens que possuíam relação mais direta com as pautas analisadas, to-
das eram mulheres brancas. Oposições entre classes eram recorrentes, em que as protagonistas
estavam nas mais baixas e possuíam comportamentos femininos normatizados como “pa-
drão”, enquanto as antagonistas eram associadas à riqueza e a comportamentos mais liberais.
Em relação à autoria das telenovelas, temos três de Janete Clair e três de Glória Perez.
As tramas de Janete Clair, devem ser vistas em relação ao período em que se passam, durante
a ditadura. Ela utilizava-se majoritariamente de modelos tradicionais de feminilidade para
representar suas protagonistas, porém, a forma como conduzia o enredo e os temas dava bre-
chas para discussões que tinham seu trânsito dificultado no momento, como estupro, sexuali-
dade, violência doméstica e críticas políticas. De certo modo, suas produções revolucionam o
cenário novelístico brasileiro e podemos dizer que foram uma das grandes responsáveis pela
alteração das lógicas público x privado, mostrando, na televisão, assuntos que até então eram
restritos ao lar, como a violência contra a mulher, o machismo nos relacionamentos, a busca
pela independência financeira, desquite entre outros.
Já Glória Perez, transita por caminhos já estabelecidos e seguros e pouco altera ou
problematiza tais conquistas. Suas personagens, porém, são mulheres mais fortes, indepen-
dentes, empoderadas e determinadas do que as de Janete Clair, no entanto, ainda engessadas
dentro de um comportamento padronizado por estruturas machistas e morais conservadoras, o
217
que podemos atrelar, também, ao período histórico em que se inserem. Por outro lado, suas
temáticas, normalmente vinculadas a diferenças culturais, com foco em trazer à tona costumes
variados, utilizam-se de pautas de cunho social e, com isso, também possuem grande impor-
tância. Neste sentido, nos parece que, um dos assuntos caros para a autora é o gênero, já que
nas três telenovelas analisadas, ele aparece com bastante peso e de formas variadas.
Vale lembrar que as telenovelas, por suas características, são generalistas e por dispu-
tarem, hoje, espaço com outras mídias, não devem desconsiderar, também, as especificidades
do público. Precisam, então, quebrar essa linearidade e renová-la, de modo que pareça atuali-
zada e inédita. Para isso, agregam pequenos fragmentos temáticos, que já estão em eferves-
cência em sociedade, como experiências em processo, e os apresentam como inovadores.
Para que possamos responder adequadamente ao nosso problema de pesquisa, que in-
daga “de que forma as representações femininas, nas telenovelas brasileiras, tensionadas pela
hegemonia e tradição seletiva, visibilizam pautas do movimento feminista, ao longo das déca-
das de 1960 a 2010”, é preciso que levemos em conta diversos elementos que se articulam em
um constante processo de mediação: os contextos sociais, as lógicas televisivas, as pautas do
movimento feministas, suas representações, as personagens que as vivenciam, as configura-
ções midiáticas plurais e as novas formas de ativismo. Inserem-se aí, também, a hegemonia de
pensamento e a tradição seletiva, instauradas em sociedade.
Sobre as lógicas televisivas, é importante, em primeiro lugar, que enxerguemos a tele-
visão como vital nos processos de mediação de pensamentos, atitudes, comportamentos e co-
tidianos, dando a situações privadas contornos de ordem pública, ao mesmo tempo em que
traz o universo público para o privado do lar. Este movimento de trocas provoca a necessida-
de de negociar sentidos entre campos e sujeitos. Neste processo, a mídia constrói representa-
ções a partir de discursos, imagens e mensagens e, conforme o modo como isso é feito, pode
dar legitimidade, visibilidade e valorar positiva ou negativamente as temáticas que aborda.
Consideramos, então, que, as telenovelas, como produtos culturais midiáticos que são, têm
grande relevância na medida em utilizam seus espaços para colocar assuntos e temáticas em
evidência. Com sua abrangência e multiplicidade de perfis de audiência, o que é exibido lá
fica disponível a todos que a assistem, independente de tal assunto ser de interesse ou não do
telespectador. De qualquer forma, serve de familiarização ou informação sobre universos dis-
218
tintos, considerados importantes, sob o ponto de vista da emissora, que atua através de lógicas
econômicas e de poder.
No caso deste estudo, ao abordar o feminismo, as telenovelas visibilizam cinco pautas
principais e alguns desdobramentos (maternidade, violência contra a mulher, mercado de tra-
balho, empoderamento e diversidade sexual e de gênero). Evidentemente, esses assuntos tra-
tados nas seis telenovelas assistidas, não esgotam, nem devem ser representativos da multipli-
cidade e pluralidade do movimento feminista, uma luta antiga, de resistência e contra-
hegemônica, conforme desdobramos no capítulo dois desta pesquisa. Menos ainda, se pouco
politizados e exibidos, na maioria dos casos, de maneira rasa, silenciando ações, ativismos
coletivos, pluralidade das mulheres, diferenças salariais, combate à violência e discriminações
de todo tipo, entre outros. Ainda assim, desta forma, tal aproximação entre os campos, teleno-
vela e feminismo, é válida, na medida em que, por menores que sejam os pontos de contato, é
uma maneira de trazer tal corrente contra-hegemônica dentro de um espaço hegemônico.
Adentrando nas telenovelas, representações femininas e de pautas, é necessário pontu-
armos que nossas percepções são feitas com base na realidade atual, sobre épocas e contextos
passados, ou seja, muito do que observamos não era pensado ou interpretado de tal modo,
tampouco, poderá ser da mesma forma, futuramente. Assim, tal análise não é fechada, estan-
que, ou acabada, já que está intimamente atrelada aos mais diversos contextos sociais, tempo-
rais, culturais, econômicos ou políticos. Neste sentido, como nosso objetivo de pesquisa é
analisar as relações existentes entre as telenovelas brasileiras e o movimento feminista, atra-
vés da representação das personagens femininas, em seis telenovelas das décadas de 1960 a
2010, o que podemos concluir é que estas construções, das pautas do movimento e das repre-
sentações, se dão através de duas vias que caminham em paralelo, em ritmos diferentes e com
alguns pontos de convergência.
Em relação às personagens femininas, mesmo com os avanços e novas formas de re-
presentá-las, ainda são submetidas a modelos hegemônicos e tradicionais de feminilidade,
ligadas à maternidade, mito da beleza, amor romântico e passividade. De modo geral, são
raros os exemplos que rompem com esse modelo, o que acaba pouco contribuindo para que
haja uma verdadeira luta pela conquista da igualdade e uma modificação no modo como são
representadas, pois o que foi visto é uma atualização de velhos padrões, não uma modificação.
Na verdade, as que tentam romper, contribuem para endossar o padrão da supermulher, aque-
las que devem ser “completas” como mães, esposas, profissionais, sensualizadas, o que isso,
para as mulheres, é perverso, pois cobra delas que tenham um desempenho ampliado, com
resultado superior ao dos homens, nos espaços em que atuam, para serem respeitadas de for-
219
ma “mais” igualitária. Temos, então, que as narrativas das telenovelas ainda apontam para
modelos estáveis e conservadores de representações e, mesmo que pareçam discursos novos e
audaciosos, estão dentro de limites e normativas já há tempos conhecidos e estabelecidos
através de lógicas patriarcais. Há, com isso, um reforço em todas as telenovelas assistidas, em
diferentes níveis, de uma dupla moral sexual, que condena fortemente nas mulheres aquilo
que é aceitável nos homens, como atitudes e posicionamentos, comportamentos sexuais e re-
lações com o mercado de trabalho e a família. Tal lógica de pensamento continua vigente nos
dias atuais.
Esta práxis acontece assim, pois, as telenovelas são, antes de mais nada, produtos co-
merciais, que operam nesta lógica, precisam vender, gerar lucro e se manter nas grades das
emissoras como rentáveis. Dialogam, então, com os mais variados setores populacionais, quer
progressistas, quer conservadores. Para tal, elas, no momento de construir suas personagens
femininas, conciliam valores dessas parcelas da população, apostando em conceitos ditos tra-
dicionais, associados a mulheres fortes e independentes. Este tipo de representação, da forma
como é posta, pouco altera as relações e estruturas de gênero. Age nos limites de um femi-
nismo “bem-comportado”, aos moldes de Bertha Lutz, embora quase um século depois, não
buscando levantar nenhuma bandeira que cause enfrentamento e que possa desestabilizar as
estruturas de poder. As mulheres apresentadas nas telenovelas como empoderadas, sexual-
mente liberadas, independentes, inseridas no mercado de trabalho, não reivindicam salários
iguais, legislações específicas, nem denunciam violências sofridas. Ou seja, não é uma repre-
sentação politizada, e a visibilização das pautas feministas é feita através de lutas individuais,
com méritos próprios, que desconsideram o coletivo do pensamento feminista e de batalhas
anteriores de outras mulheres.
Tal ponto é extremamente problemático, uma vez que as ideias meritocráticas, já tão
instituídas em sociedade, e hoje, mais do que nunca, reafirmadas por discursos políticos, par-
tidários, administrativos e institucionais, colaboram para que escondam injustiças e desigual-
dades, ao mesmo tempo em que isentam o Estado de cumprir o papel de promotor de justiça e
políticas públicas igualitárias, acesso à saúde e educação. Entre as novelas estudadas, perce-
bemos essa construção de forma crescente, tendo o seu ápice em A Força do Querer (2017),
que traduz a ideia em seu próprio título. Ainda, em sua frase final, afirma que “a vida é isso:
esse embate entre quereres diferentes que se harmonizam e se confrontam. Cada um deles
encontrou o que foi buscar com a força do seu querer”. Isso justificaria o destino de cada per-
sonagem, desconsiderando seus contextos, problemas enfrentados e situações particulares.
220
fundar os temas e, nos parece essa ser uma característica da própria Rede Globo, em não as-
sumir um posicionamento. Embora não seja desprezível a ação de exibir os temas, pela força
contida no próprio veículo de comunicação, poderiam ter uma abordagem mais qualitativa.
Acreditamos ser uma posição confortável para a emissora e autoras das telenovelas, que cum-
prem, assim, um papel importante, mas ainda pobre em relação à capacidade e poder que têm.
Mas aí, mesmo que haja tentativas, elas são sufocadas por barreiras estruturais da hegemonia
e das tradições, que permeiam as lógicas de produção. Aferimos, então, que o sentido hege-
mônico é normalmente o mais preponderante, uma vez que ratifica sentidos já estabelecidos,
pois se relaciona diretamente a práticas continuadas nas famílias, nas escolas, nos espaços
religiosos, públicos, locais de trabalho e até na própria mídia.
Tomando este entendimento, temos a convicção que, enquanto produtos culturais as
telenovelas são subaproveitadas tanto no viés da produção, quanto da pesquisa. Se, dentro das
emissoras possuem os maiores índices de audiência, dialogam com públicos variados e têm
credibilidade reconhecida, poderiam ser mais incisivas no ato de informar, divulgar, apresen-
tar assuntos para reflexão, debate, promoção de ações de cunho social, de forma a auxiliar na
alteração de estruturas já consolidadas, porém desiguais. No entanto, parece mais fácil apenas
falar sobre as pautas das mulheres e do feminismo do que as representar de maneira a levar
grupos à reflexão e à ação, de modo que se sintam incluídos em todos os níveis de tomadas de
decisão e nas soluções dos seus conflitos. Defendemos o pensamento de que este espaço de
grande visibilidade midiática pode ser utilizado de forma mais propositiva ao abordar as de-
mandas que concernem ao movimento feminista, de forma a atrair a atenção, não apenas da
sociedade como um todo, mas, também, do poder público, para que fomentem discussões e se
criem soluções, investimentos, políticas públicas e oportunidades a grupos sociais minoritá-
rios, neste caso, as mulheres.
Por outro lado, se da forma como já está posto, o universo de análise é extremamente
grande e rico, e as pesquisas sobre feminismo e telenovelas, no âmbito da produção, ainda são
escassas, conforme verificado no estado da arte, indica haver, ainda, certo preconceito com o
gênero. E, mais uma vez, é preciso repensar o modo como o feminismo acadêmico, majorita-
riamente branco e elitista, aborda tais produtos. Devemos ter em mente que grandes parcelas
da audiência se encontram nas classes média e baixa, que não possuem acesso a canais de
televisão a cabo ou opções via streaming, e nesses espaços, as telenovelas funcionam como
uma das principais fontes de informação e acesso a vivências diversas, o que torna fundamen-
tal atentarmos para o modo como isso é expresso nelas.
223
Contudo, mesmo que essas opções midiáticas não sejam acessíveis a todos, é interes-
sante trazê-las aqui, como tensionadoras do espaço hegemônico televisivo94. Essa complexa
configuração midiática, com as quais disputam poder, possui capacidade para falar com os
mais diversos nichos, principalmente, considerando que os sujeitos conseguem se expressar
através, principalmente, da internet, que permite uma produção paralela de conteúdos, que
não necessariamente se produzem no mesmo sentido das televisões. Com isso, dão voz para
aquilo que foi silenciado pelas mídias hegemônicas e trazem à tona uma série de pautas que
também se vinculam ao feminismo e fazem com que tenham visibilidade.
O movimento feminista, hoje, tem se utilizado intensamente desses espaços, e, dife-
rente das telenovelas, que atuam de forma planificada e individual, se baseiam em percepções
intersecionais e de positividade sexual. Esse feminismo digital, que está mais atuante no mo-
mento, considerado, por alguns como a 4ª onda, é formado pelas gerações millenialls e Z
(McCANN, 2019). A importância deste recorte está em reconhecer que são essas gerações,
que cresceram em culturas e famílias com mulheres que começaram a falar e vivenciar as ex-
periências iniciais do feminismo, que atualizam o ativismo de outras maneiras, ensejando ou-
tras mídias a saírem de posições de conforto, na medida em que precisam acompanhar a flui-
dez com que as ideias circulam nesses meios.
Por outro ângulo, essa articulação também tem ingerência nas formações familiares e
sociais, que já não correspondem aos modelos de “família tradicional”, e fazem o tema circu-
lar por vias diversas, entre gerações. São como pequenas infiltrações por rachaduras em estru-
turas já desgastadas de um sistema patriarcal hegemônico, o que permitem aberturas e refle-
xões que se multiplicam em diferentes sentidos. Tal movimento atua na percepção de opres-
sões, no entendimento sobre o feminismo, o movimento e suas lutas, no reconhecimento da
pluralidade das mulheres e na importância da sororidade. Por isso, em um processo natural,
começam a serem cobradas mudanças de comportamento e atitudes no meio social, conse-
quentemente, também nas representações televisivas, já que, o que está posto, não mais dá
conta das realidades vividas.
Concluímos, então, que ainda há muito a ser feito, mas, mais uma vez, reafirmamos a
importância da inserção das pautas feministas nas telenovelas, na exposição e familiarização
94
Um exemplo desta interrelação e potencialização entre meios, é um dos paredões do programa televisivo Big
Brother Brasil, no ano de 2020, que teve, em uma das votações online, 1,5 bilhão de votos, número maior que
todas as edições anteriores. Ao mesmo tempo, o programa também atingiu elevados índices de audiência. Dispo-
nível em: < https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/04/27/bbb20-entrou-para-o-guinness-com-recorde-de-
votos-veja-outros-numeros-das-20-edicoes-do-programa.ghtml > Acesso em 01 de maio de 2020.
224
DESFECHO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para muitos e, por muito tempo, assistir telenovelas foi considerado algo banal, um
simples entretenimento, dirigido às mulheres, principalmente, às donas de casa. Hoje, vencido
esse preconceito inicial com o produto, elas são as produções midiáticas que têm as mais altas
audiências, fazem com que muitos parem suas atividades para assisti-las, pautem suas conver-
sas sobre o que é mostrado, busquem mais informações em outros veículos, como revistas ou
sites especializados. Além disso, é inegável que o conjunto de telenovelas, enredos, histórias e
representações nos ofereça vários objetos ricos para estudos no campo da comunicação, pois
falam sobre costumes, modos de vida, hábitos e práticas culturais de determinada sociedade.
É exatamente por essa preferência brasileira pelas telenovelas que elas se tornam de
grande importância quando suscitam discussões, tanto para quem as considera “vilãs”, dando
maus exemplos, incitando práticas equivocadas, reproduzindo estereótipos e preconceitos,
exaltando o amor romântico e a incompletude feminina sem um par masculino, como também
podem contribuir para debates sociais ao apresentarem pautas e temáticas novas e, a partir daí,
gerarem reflexões e fazerem com que certas práticas sejam repensadas ou atualizadas. Isto
acontece quando uma telenovela, por exemplo, aborda a violência contra a mulher, mostra a
realidade de casais intergeracionais, a possibilidade de as mulheres estarem nos mais variados
meios e profissões, a transgeneridade, transexualidade, independência feminina, modos de
vida plurais e desmistificação de padrões arraigados.
Foi esse entendimento que balizou a construção de nossa pesquisa. Compreendendo as
telenovelas como produtos culturais midiáticos, também as vemos como importantes vetores
de formação e estruturação de representações, e que ainda podem funcionar como um “guia”
de vida para muitas pessoas. Essas telenovelas, evidentemente, também estão amparadas e
mediadas por um contexto muito mais amplo da sociedade, que é atravessado e tensionado
por aspectos de classe, gênero, tradição, religião, política, economia, entre outros. Junto a
estes elementos, encontra-se, também, o movimento feminista, de luta pela emancipação e
liberdade feminina e que tem sua atuação quase tão antiga quanto a própria história da huma-
nidade. Ao longo do tempo, esse movimento toma forma e ganha força, desdobrando-se em
inúmeras vertentes, com pautas plurais, as quais, mesmo que tentássemos, não conseguiría-
mos abranger em sua totalidade.
Mesmo assim, é a partir delas que se construiu nosso questionamento de pesquisa, in-
dagando “de que forma as representações femininas, nas telenovelas brasileiras, tensionadas
226
pela hegemonia e tradição seletiva, visibilizam pautas do movimento feminista, ao longo das
décadas de 1960 a 2010”. Para operacionalizar nosso problema, apresentamos como objetivo
geral analisar as relações existentes entre as telenovelas brasileiras e o movimento feminista,
através da representação das personagens femininas, em seis telenovelas das décadas de 1960
a 2010, quais sejam Véu de Noiva (1969), Pecado Capital (1975), Coração Alado (1980),
Explode Coração (1995), América (2005) e A Força do Querer (2017).
Desta análise, percebemos que a visibilização das pautas do movimento passam por
cinco temas centrais e recorrentes nas telenovelas. O primeiro deles é a maternidade, que
teve uma representação que não acompanha a crescente liberalização no comportamento fe-
minino, reforçando e valorizando a ideia da maternidade compulsória. O segundo é a violên-
cia contra a mulher, presente em todas as histórias, de formas diversas, sem problematiza-
ções e justificadas como naturais, traços de personalidade, “coisas de homem”, amor excessi-
vo, ocasionando uma romantização de relacionamentos abusivos. O terceiro é o empodera-
mento, bastante presente nas histórias, também de modos diversos, porém individualizados, o
que faz, com que, em alguns momentos, induza à meritocracia, desconsiderando formas de
luta coletivas. O quarto é o mercado de trabalho, através do qual percebemos um alargamen-
to no espectro de profissões e possibilidades disponíveis às mulheres, porém não encontramos
a luta por igualdade nesses espaços. Por fim, a diversidade sexual e de gênero, pauta com
maior aprofundamento por parte da produção, é exitosa em trazer tais assuntos para as teleno-
velas. Na análise conjunta destes elementos, o que percebemos foi que a visibilidade de pau-
tas se dá através de um feminismo branco, pouco politizado, individualizado, meritocráti-
co, que age dentro de limites conservadores e tradicionais, reforçando uma dupla moral
sexual, com pequenas aberturas para rompimentos.
Conseguimos dar conta destas problematizações através de quatro objetivos específi-
cos. O primeiro deles foi mapear os diferentes contextos vigentes em cada momento do mo-
vimento feminista no Brasil. Tal tarefa foi desempenhada no segundo capítulo deste trabalho,
quando buscamos o histórico das mulheres e do movimento de forma ampla, mas focando no
contexto brasileiro, através da apresentação de dados, números e informações de nosso país e
que auxiliaram na compreensão de nossa história, que, de certo modo, é o cenário das narrati-
vas.
O segundo objetivo foi verificar as lógicas de produção das telenovelas e o modo co-
mo contribuíram para a representação das temáticas através das personagens femininas. Essa
etapa foi desenvolvida no terceiro capítulo, onde trouxemos as relações entre mídia e femi-
nismo, as construções das telenovelas e suas características, bem como as representações mi-
227
diáticas femininas nesses espaços, vinculando-as como produtos culturais com forte relação
com a sociedade brasileira.
O terceiro e o quarto objetivo eram, respectivamente, identificar as temáticas feminis-
tas reforçadas nas seis telenovelas analisadas e reconhecer os elementos utilizados na constru-
ção das personagens femininas. Tais ações foram cumpridas ao longo do quarto capítulo,
quando utilizamos a análise textual para desdobrar nosso corpus de pesquisa e compreender
as representações das personagens e o modo como se relacionavam com as pautas identifica-
das.
O que vemos, então, é um alargamento de espaços e assuntos que as telenovelas de-
senvolveram ao longo de seis décadas. Entre eles, as pautas que hoje reconhecemos como
feministas também ganharam visibilidade e foram mais ou menos debatidas de acordo com o
momento histórico. Ainda assim, mesmo no período de ditadura civil-militar, conseguimos
reconhecer o rompimento da passividade feminina, o machismo, a violência sexual e a inde-
pendência entre os temas das narrativas. Após a abertura política, tal como no contexto social
das lutas do movimento feminista, os debates sobre gênero ganharam força e, entre as pautas,
começaram a ter relevância a homossexualidade, as identidades de gênero, a transgeneridade
e transexualidade, entre outros. Percebemos, também o silenciamento de alguns temas, como
saúde da mulher, diversidade, pluralidade feminina, lesbianismo e interseccionalidades entre
gênero, raça e classe nas personagens, já que, na grande maioria, eram mulheres, brancas, de
classe média e alta que tiveram seu final feliz em um relacionamento heterossexual a partir da
formação de uma família dita tradicional.
Assim, conforme pressupomos de modo inicial, confirmamos parcialmente nosso
pressuposto teórico: está correto afirmar que as mediações são intrínsecas ao fazer televisivo,
estando presentes em todas as etapas do processo, desde a concepção do produto, sua produ-
ção, circulação e consumo, bem como nas inter-relações com outras mídias, como a internet.
As telenovelas se confirmaram como um exemplo disto e as representações construídas por
elas foram, constantemente, atravessadas por outros elementos de contexto, como a hegemo-
nia, a tradição e as novas formações sociais, como é o caso do movimento feminista e suas
características contra-hegemônicas. Assim, aferimos que, de fato, este movimento tensiona
uma dada conjuntura social e, as telenovelas, a fim de garantir sua audiência plural e atualizar
suas formas de produção, de modo que não fiquem desconexas com a realidade em que se
inserem, transitam e dialogam com diferentes contextos culturais, trazendo para suas produ-
ções elementos representativos dessas novas conjunturas.
228
por vezes, não permitem que enxerguemos toda a abrangência e nuances daquilo que falamos.
Além disso, vale relembrar que, por seu viés macro, inserido em um universo amplo, pode-
mos ter incorrido no erro de desconsiderar algum aspecto que, aos olhos de outros pesquisa-
dores, podem se mostrar fundamentais. Neste sentido, sabemos que esta pesquisa vai muito
além das pautas abordadas aqui, que poderiam ter sido desdobradas, debatidas e problemati-
zas de forma diferente, em outras situações. O desejo de continuar aprofundando esse estudo
foi crescendo na medida em que avançávamos nas análises. Porém, também é tarefa do pes-
quisador saber quando parar, reconhecer os limites temporais e físicos dos estudos e seus limi-
tes como sujeito.
Não termino, assim, considerando tal pesquisa como acabada, já que cada uma das
pautas renderia novos trabalhos, bem como cada uma das telenovelas que analisamos. Além
delas, outras que, em um horizonte próximo já apresentam grande potencial de estudo, como
Amor de Mãe (2019), já referida por nós. Finalizo, assim, na esperança de que este trabalho
inspire novas pesquisas e sirva como ponto de partida para outros desdobramentos.
230
231
CRÉDITOS FINAIS
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243
Década 1960
Início Término Título Capítulos Autoria
Década de 1970
Início Término Título Capítulos Autoria
Década de 1980
Início Término Título Capítulos Autoria
Década de 1990
Início Término Título Capítulos Autoria
29/10/90 18/05/91 Meu Bem, Meu Mal 173 Cassiano Gabus Mendes
Década de 2000
Início Término Título Capítulos Autoria
Década 2010
Início Término Título Capítulos Autoria
Rosana, no entanto, não está morta, ela simulou suicídio para fugir com o pintor René
Antoine – que a abandonou poucos meses depois. Então, para ganhar a vida, tornou-se dança-
rina no cabaré da cidade, com o nome de Carmencita. Lien, atual esposa de Gervilén, usa essa
informação para chantagear Vivian e acaba matando a dançarina porque esta representava
uma ameaça a seus planos. Colocou então sua irmã gêmea, Simone, no lugar de Rosana, para
dar continuidade às chantagens
Por acreditar que o pintor René seja o culpado pela morte de Rosana, Simone o mata e
foge. A culpa recai sobre Vivian e seu irmão, Marcel, que assume a autoria do crime para
inocentar a irmã. Lien continua suas chantagens, mas agora com André, por quem está apai-
xonada, no entanto, acaba sendo assassinada por Dubois, seu parceiro de crimes e que man-
tém uma admiração pela vilã. Ao fim da trama, Marcel é salvo da forca pela confissão de Si-
mone.
Antes de morrer, Gervilén confessou que René Antoine era seu filho, fruto de um relaciona-
mento extraconjugal e, por isso, rejeitado. O pintor sabia e por esse motivo, invejava André,
reconhecido como filho legítimo. Tentou, então, destruir seu casamento com Rosana e o rela-
cionamento com Vivian, fazendo André acreditar que o filho que ela esperava, era fruto de
traição. No último capítulo, André e Vivian se reconciliam, formando uma família.
Durante o período de internação, Andréa apaixona-se por Marcelo, que é noivo de Ire-
ne. Andréa e Marcelo casam - se em segredo. Luciano abandona Flor ao descobrir que ela
estava grávida. Não querendo assumir o filho sozinha, por vergonha de ser mãe solteira, ela
entrega a criança para a irmã. Algum tempo depois, Flor se casa com Armando, que quer ter
filhos. Ao saber que não podia mais ser mãe, Flor pediu seu filho de volta. As irmãs passam a
disputar a guarda da criança na justiça, e Andréa vence a disputa.
No decorrer da história, Luciano é assassinado, sua morte levanta suspeitas sobre vá-
rios personagens e a identidade do responsável perdurou até os capítulos finais da trama,
quando foi revelado que a assassina era Rita, mãe de Andréa e Flor, que o matou porque acre-
ditava que Luciano arruinara a vida de suas duas filhas.
para Coroado, está envolvido com Paula. O conflito cresce quando Ritinha passa a noite com
Duda, que, por esse motivo, é obrigado a se casar com ela.
No fim da história, João recupera o diamante e o destrói por julgá-lo responsável por
todas as tragédias que abalaram sua família e Coroado. Pedro Barros enlouquece, incendeia
sua casa, a cidade, e deixa-se consumir pelo fogo. João, ao lado de Lara, reúne os moradores
para construir uma nova cidade, livre de todo o jugo e exploração.
tiano, o abriga em sua casa. Porém, com medo de ser acusado da morte, o jovem deixa a cida-
de com Simone para morar no Rio de Janeiro, onde casam-se.
Enquanto Simone investe em sua arte, Cristiano aproxima-se de Miro que, ao perceber
a ambição do jovem, o influencia a entrar em contato com Aristides, um tio rico. Começa en-
tão a frequentar a casa dele, estreitando os laços com o tio, seu primo Caio, e a noiva dele,
Fernanda – que acaba se interessando por Cristiano.
Sem saber que Simone está grávida, Cristiano rompe o relacionamento com ela. Miro,
no entanto, vê em Simone o principal obstáculo à ascensão de Cristiano e, por tabela, à sua
própria, e sugere que Cristiano deva matá-la. Cristiano recusa e os dois brigam. Simone en-
volve-se em um acidente e, embora tenha escapado com vida, finge estar morta e deixa o país.
Cristiano, se sentindo responsável pela morte de sua mulher, abandona Fernanda no altar, que,
com desejo de vingança, o perseguirá obsessivamente.
Anos depois, Simone retorna com a identidade de Rosana e segue desprezando Cristi-
ano por ainda acreditar que ele planejou a sua morte. Quando os dois se entendem, os pais do
jovem, que morreu durante a briga inicial, reaparecem, e dão queixa contra Cristiano. Fernan-
da, sabendo que Simone iria depor a favor de Cristiano, a sequestra. Seu paradeiro só é desco-
berto no dia do julgamento, mesmo assim, consegue chegar a tempo de testemunhar. Ao fim
da trama, Cristiano é declarado inocente e ele e Simone vivem felizes.
Leda, envolve-se, então, simultaneamente com Dr. Victor Amadeu e com Dino César,
sua paixão de adolescência. Dino, quando jovem, havia ido embora da cidade para tentar a
sorte na indústria fonográfica, no entanto fracassa e retorna, tentando retomar a antiga relação
com Leda. Ao mesmo tempo, utiliza-se de todos os subterfúgios possíveis para ainda alcançar
o sucesso e assim aproxima-se de Cláudia, dirigente de uma gravadora, e acaba por se juntar a
ela, atingindo seu objetivo.
Leda, após muitos desencontros, ao fim da novela viverá o seu amor com Dr. Victor.
Janeiro para elucidar a morte do pai, tido como bandido, e inocentá-lo da acusação de ter rou-
bado terras e matado um padre. A principal barreira é Bruno, um empresário mafioso, e ex-
sócio de seu pai, hoje casado com sua mãe, Gilda.
No Rio, André é impedido por Bruno de se aproximar da mãe e é, então, acolhido por
Ana Preta, uma mulher sofredora que se envolveu com diversos homens de mau caráter, in-
cluindo Bruno, com quem tem uma filha, Geni.
No outro núcleo da telenovela, está Carina, uma bailarina famosa, de família rica e
tradicional do Rio de Janeiro. A avó de Carina é uma mulher dominadora que devido ao seu
comportamento, causa na filha Walkíria, constantes crises de depressão, o que faz com que se
envolva em relacionamentos ruins como forma de provocação à família. Um desses envolvi-
mentos é com César, que, interessado em liderar os negócios da família, casa-se com Carina,
que agora é mãe solteira de Ângela. Oprimida pelo marido, a jovem o abandona, mas perde a
guarda da filha. Nesse momento, reencontra André, que, em oportunidade anterior, já havia a
salvado de morrer afogada.
André e Carina fogem dos problemas que estavam vivendo no Rio de Janeiro. Acio-
nista majoritária das empresas da família, ela passa uma procuração para que ele a represente
perante os negócios. André retorna e enfrenta César. Nesse meio tempo, Carina é vítima de
um atentado. Dada como morta, a culpa recai sobre André, que terá que provar sua inocência.
O atentado, no entanto, foi planejado por César e Bruno.
Carina, que consegue sobreviver, foge e passa a assumir diversas identidades e disfar-
ces, acreditando que o mandante do crime foi André. No fim da trama, ele é inocentado e os
dois seguem suas vidas juntos.
O casamento de Juca e Catucha termina quando Juca decide acompanhar o irmão Ga-
briel em seu exílio político no México. No retorno, quando Gabriel foi beneficiado pela lei da
anistia, Juca se reencontra com Vivian, que sempre foi a mulher que amou.
Com auxílio de um advogado, Luana consegue ter acesso a documentos que provam
que a família Camará é proprietária legítima do patrimônio da família de Antônio e assim
consegue recuperá-lo.
Ao fim da trama, Luana e Tião se casam e têm um filho juntos.
que é muito ligada aos valores de seu povo, apesar de estar em conflito com a família. Dara
não deseja negar sua origem: ela quer casar-se virgem, adora as músicas e as danças ciganas,
orgulha-se de suas raízes e emociona-se com as profecias de seu avô Mio Sbano: só não con-
corda com a falta de liberdade que lhe impõem.
Adiante, na trama, Dara inicia uma relação, pela internet, com o empresário Júlio, que
vive um casamento de fachada com Vera. O relacionamento ganha intensidade quando os dois
se conhecem pessoalmente e, com isso, os obstáculos ao romance também aumentam: a cultu-
ra milenar do povo cigano e as tradições da família de Júlio. Dara só dá continuidade ao so-
nhado relacionamento pois tem o apoio de Odaísa, a empregada da família, que sente pena
dela. No entanto, Ianca, que quer casar-se logo, aparece como antagonista, fazendo de tudo
para que a irmã mais velha se case com Igor para que ela possa se casar também.
O relacionamento com Júlio segue complicado e após enfrentar muitos problemas, Da-
ra cede aos apelos da família e se casa com Igor, embora grávida de Júlio. Porém, na cultura
cigana, no dia do casamento a noiva deve dar uma prova de sua virgindade. Ciente da situação
de Dara, Igor promete que, apesar de casados, não a tocará. E, para ajudá-la a forjar a falsa
prova diante de sua comunidade, faz um corte no próprio braço e suja a saia da jovem com
sangue.
Dara permanece casada com Igor até o último capítulo da telenovela, quando dá à luz
ao filho. O parto, realizado em uma praia, é acompanhado por ele, que leva Dara e a criança
ao encontro de Júlio, e parte para sempre.
Ela não aceita as tradições de seu povo, em que o homem é a autoridade máxima, e a mulher
pode ser punida com a morte por não se casar virgem e, ainda, sem a liberdade de escolher
com quem quer relacionar-se.
No Rio de Janeiro, Diogo sofre um acidente de helicóptero e morre. Latiffa se casou
com Mohamed e mudou-se com ele para a mesma cidade, com isso, Jade recebe autorização
para ir junto. Lá, ela e Lucas continuam se encontrando às escondidas e decidem se casar. No
entanto, Leônidas proíbe o casamento e Jade é obrigada a voltar ao Marrocos e casar-se com
Said, com quem terá uma filha, Khadija.
Lucas retorna ao Marrocos a procura de Jade, que, mesmo casada, segue se encontran-
do escondida com ele. Said, ao ficar sabendo, decide matar Lucas, mas é impedido por Ali.
Jade decide que deve esquecer Lucas, pois a relação não tem como dar certo. Após a desilu-
são, Lucas se casa com Maysa, com quem tem uma filha, Mel.
Albieri, também abalado com a morte de Diogo, decide guardar, em segredo, célu-
las de Lucas para cloná-lo e assim trazer Diogo de volta e realizar o maior sonho de sua vida:
ser o primeiro a realizar a clonagem de um ser humano. A experiência foi feita com uma paci-
ente, Deusa, sem o consentimento da mesma. Nasce Léo que, quando adulto, também se apai-
xonará por Jade. Ao descobrir a verdade, começa a refletir sobre sua vida e Leônidas briga na
justiça com Deusa pela sua paternidade. Ela entra em desespero ao saber que seu filho não
possui o seu sangue e sim o de Lucas. Após muitos anos, Lucas e Jade se reencontram no
Brasil, por acaso, o que faz com que a velha paixão reapareça. Jade consegue abandonar Said
e após muitos desencontros, vive feliz com Lucas, com quem terá um filho chamado Diogo.
Tião é peão em Boiadeiros, mesma cidade em que mora Júnior, um jovem gay e apai-
xonado por ele, mas que irá viver um relacionamento mais sério com Zeca. Essa relação criou
muita expectativa em torno da telenovela, pois poderia levar ao ar, o primeiro beijo homosse-
xual masculino em uma novela da TV Globo. Entretanto, não aconteceu.
Neste item apresentamos recortes de cenas e trechos de diálogos das telenovelas, bem
como uma caracterização sucinta das personagens envolvidas nos conflitos. Dada a extensão
que o documento ficaria, optamos por selecionar e trazer aqui o que consideramos mais repre-
sentativos daquilo que buscávamos analisar.
Véu de Noiva
Vinheta de abertura de Véu de Noiva
Guia de Personagens
Andréa (Regina Duarte) Função na narrativa: protagonista Identidade de gênero e orientação
Profissão: atendente de loja de sexual: mulher cis heterossexual
departamento Etnia: branca
Objetivo: felicidade em família Trilha sonora: instrumental
Condição social: classe média Caracterização: “mocinha” da
baixa história, age de forma passiva e
sonha com o amor romântico.
Fonte: Memória Globo
Flor (Myrian Pérsia) Função na narrativa: coadjuvante Identidade de gênero e orientação
Profissão: bailarina sexual: mulher cis heterossexual
Objetivo: ascensão social Etnia: branca
Condição social: classe média Trilha sonora: instrumental
baixa Caracterização: irmã da protago-
nista, ambiciosa e racional, age para
alcançar seus objetivos
Pecado Capital
Vinheta de abertura de Pecado Capital
Cenas e diálogos
Diálogo entre Carlão em Lucinha, sobre ela ter saído sozinha
Lucinha: oi!
Carlão: onde é que você tava?
L: eu vim da cidade.
C: que negócio é esse de dentista na cidade, hein?
L: eu tenho tido muita dor de dente...
C: abre a boca!
L: pra quê?
C: quero ver se foi no dentista mesmo!
L: ah, que desaforo, não abro nada!
Carlão a puxa pelo braço.
L: não abro. Acho desaforo. Que mania de duvidar de tudo...
Carlão a beija a força.
C: da próxima vez que você for em dentista que coloca remédio e não deixa gosto de nada,
você me avisa que vou junto.
268
Diálogo entre Carlão, Nélio e Lucinha, após ela pegar uma carona com Nélio
Nélio: é aqui?
Lucinha: é, obrigada, viu?!
N: só um pouquinho, vamos conversar um pouco.
L: xi! Meu noivo!!
N: noivo?
L: oi, bem!
Carlão: que negócio é esse? Que carro é esse? Você veio de onde, hein?
L: é seu Nélio. A condução tava difícil, ele veio me trazer.
N: tudo bem aí, amizade?
Carlão abre a porta do carro e puxa Nélio para fora.
C: amizade o escambau!
L: peraí! Carlão o que é isso?
N: eu só vim trazer ela.
Carlão agride Nélio.
C: me larga! Me larga!
L: Carlão! Isso é uma vergonha!
C: vergonha? Vergonha é o que você acabou de fazer! Uma moça direita não faz isso, não.
Diálogo entre Marciano, Clóvis, Otília, Ritinha e Cibele sobre o outdoor de Lucinha
Clóvis: olha, o Carlão fez muito bem de ter tomado uma atitude, hein. Se ele não desmancha
esse noivado, ia perder a moral com a vizinhança toda. Aliás, já perdeu!
Marciano: dessa vez a Lucinha extrapolou!
C: um bando de homem frouxo que não sabe segurar as rédeas de uma mulher. Se o Carlão se
casa ia ficar igual ao Orestes, um comandado.
Ritinha: é, mas até que tá bonito, né...
M: é, isso a gente tem que reconhecer que é, né .
O: e desde quando pouca vergonha é bonito?
Cibele: fiquei de queixo caído com a coragem dela. Não pela foto, mas pela coragem que ela
teve de enganar todo mundo. Mentir pro Carlão dizendo que nunca mais tinha botado os pés
na agência...
O: Aquilo ali nunca me enganou. Eu não falava sempre pra você, Clóvis? Eu tenho ojeriza a
mulher sem vergonha! Tem cosias que em homem a gente aceita, né, agora em mulher eu não
perdoo. Mulher tem que andar na linha, não é favor, é obrigação.
Diálogo entre Carlão e Lucinha, assim que ela embarca no trem para ir trabalhar como mode-
lo
Carlão: Lucinha! Lucinha! Volta aqui! Desce daí!
Lucinha: vai ter que aceitar! Se quiser ficar comigo, vai ter que aceitar minha profissão!
C: pois vou jogar isso aqui fora (referindo-se a aliança).
L: então joga!
C: é, colher de chá. Que homem faria isso depois de tudo que você aprontou? Tá aí, tô esten-
dendo a mão.
L: pode recolher essa mão, eu não tô despencada no chão pra você tá me fazendo favor.
C: para Lucinha! Pensa. Vamos casar. Vai ser bom. Você fica lá em casa, cuida do meu pai,
me espera chegar do trabalho. Vai ser legal.
Diálogo entre Salviano e Lucinha, assim que ele abre a porta do carro pra ela
Lucinha: nossa, seu Salviano, do jeito que o senhor desceu correndo achei que tinha aconte-
cido algo!
Salviano: não, eu só fui abrir a porta pra você.
L: ah, a porta tá quebrada?
S: não, é que um homem sempre deve abrir a porta pra uma mulher.
L: ah é? Por quê?
S: bom... porque é educado. Um homem deve sempre tratar uma mulher assim, com gentileza,
delicadeza.
Diálogo entre Orestes, Carlão, Alzira e Emilene, sobre o que ele gosta em uma mulher
Orestes: calma, Carlão.. você vai achar uma mulher pra você.
Carlão: sei não... tá muito difícil achar mulher que preste.
Emilene: oi!
C: oi!
E: e o que você gosta em uma mulher? Qual seu tipo ideal?
C: eu acho que nem existe mais. Mulher perfeita pra mim seria como minha santa mãe. Que
Deus a guarde. Aquilo sim era uma mulher direita. Igual a ela não se acha mais, não.
E: o que você gosta e o que você não gosta, Carlão?
C: ah, eu não gosto de vestido muito curto, justo, colado no corpo, roupa decotada, essas pin-
turas.
Alzira: isso é papo de machista!
E: para mãe. Conta mais, Carlão.
C: ah, eu não gosto de cabelo espalhafatoso, essas coisas de unha pintada. Não gosto de barri-
ga aparecendo. Acho horrível. Outra coisa é calça. Não consigo entender como mulher pode
usar calça! Mulher fica bonita mesmo de saia.
A: ê conversa de machão.
Diálogo entre Lucinha e Seu Salviano, após ele chegar em sua casa
Lucinha: Seu, Salviano! Puxa! Desculpa! Fiquei tão contente de ver o senhor! Entra! Não
repara na bagunça!
Salviano: Você está sozinha?
L: tô.
S: é, eu também, muito só hoje.
L: gozado a vida, né, mas agora a gente não tá mais sozinho. Senta aí, por favor, senta!
S: esse novo corte de cabelo ficou lindo, em você!
L: ah, obrigada!
S: tudo fica lindo em você!
274
L: você deixa?
C: deixo. Nos controles assim, eu te levando no trabalho, indo te buscar... desde que você
ficasse só na agência, né. O que eu não queria é que você ficasse desfilando pros malandros.
L: quer dizer, você deixa mas não deixa?
C: Lucinha, eu tô sendo compreensivo até demais. Tem coisa que o homem não aceita. E é
isso que você não entende. Olha, eu acho que a gente pode chegar num ponto em comum que
dê certo pros dois.
L: um ponto em comum? Desde que você fique no comando, é isso?
C: poxa, eu tô entregando os pontos.
L: eu mudei! Eu mudei muito desde que saí daqui. Eu tô estudando, eu tô fazendo um curso
que é bom pra mim. O curso que vai me dar status. Mas o que mudou mesmo é que eu conhe-
ci alguém. Alguém que me entende e me apoia.
Cenas finais da telenovela, que mostram, na mesma página de jornal, o casamento de Lucinha
e Salviano e a morte de Carlão
277
Coração Alado
Vinheta de abertura de Coração Alado
Guia de personagens
Vivian (Vera Fischer) Função na narrativa: protagonista Identidade de gênero e orientação
Objetivo: encontrar-se profissio- sexual: mulher cis heterossexual
nalmente e possuir um bom relaci- Etnia: branca
onamento amoroso Trilha sonora: Meu bem querer -
Condição social: classe média Djavan
Caracterização: “mocinha” da
trama. Apaixonada e sofredora.
Fonte: Memória Globo
Catucha (Débora Função na narrativa: antagonista Identidade de gênero e orientação
Duarte) Profissão: marchand sexual: mulher cis heterossexual
Objetivo: casar-se com o protago- Etnia: branca
nista Trilha sonora: Momentos - Joanna
Condição social: classe alta Caracterização: mulher de perso-
nalidade liberal, decidida e racio-
nal. Opõe-se à Vivian.
Cenas e diálogos
Conversa entre Leandro e Vivian, em que ele é malicioso com ela
Leandro: brigou com o namorado?
Vivian: eu hein... pergunta boba!
278
L: tá com cara de poucos amigos. Por que você tá sempre assim? Com essa cara azeda, hein?
V: Eu tenho o..., Leandro, eu tenho o.... que me enche, tá, bom?
L: eu acho que você fica mais bonita quando fica zangada, eu gosto de mulher zangada, sa-
bia?
Ele fecha o porta-malas e bate nela, propositalmente.
V: ai! Cuidado!
L: desculpa! Puxa vida, foi sem querer.
V: não, pode deixar, me larga! Tá bom, tá bom!
Ele tenta se aproximar e beijar o machucado.
V: tá bom, eu já disse que está bom!
L: vamos lá dentro, eu faço um curativo.
V: não!
Em off, como se estivesse narrando a história, a voz de Vivian diz: eu odeio ele.
Explode Coração
Vinheta de abertura de Explode Coração
Guia de personagens
Dara (Tereza Seiblitz) Função na narrativa: protagonista Etnia: branca
Objetivo: independência Trilha sonora: Explode Coração -
Condição social: classe média alta Maria Bethânia
Identidade de gênero e orientação Caracterização: questionadora e
sexual: mulher cis heterossexual decidida. Busca independência.
Cenas e diálogos
Diálogo entre Dara e Ianca sobre Igor
Dara: mamãe parece que não tem o que fazer, fica toda hora mandando gente atrás desse Ígor.
Ianca: Mas como você é egoísta, hein, Dara?! Preciso te lembrar que eu só posso casar depois
de você?
D: Para que eu não tô a fim de papo, não.
I: Ah! Ótimo! E eu é que me dane! Mas eu já tô com 15 anos! 15! Meu Deus, daqui a pouco
eu já tô ficando solteirona!
Diálogo entre Sarita e um cliente da lancheria, sobre ele ter rido dela
Cliente: Vento fresco aqui, hein?
Sarita: Tão fresco que derruba a gente!
Sarita agride o cliente.
S: Droga! Quebrou! (referindo-se as unhas)
S: Sou Sarita Vitt. Sarita de Sarita Montiel e Vitt de Mônica Vitt. Eu aluguei a casa 38, ali na
vila. Respeito todo mundo e gosto que me respeitem. Prazer, vizinhos!
Diálogo entre Dara e Lola, sobre não querer casar com Igor
Dara: eu não vou me casar.
Lola: Ah, casa! Casa, nem que seja debaixo de pancada!
282
J: quero fazer um pedido especial. Quero que você se vista com roupas do seu povo e dance
para mim.
Dara dança.
J: Como é que a gente pode se apaixonar e não pode chegar perto? A gente vê e não pode
tocar, a gente sente e não pode viver. Não existe mais nenhum computador entre a gente. Só
existe essas regras e essas tradições que eu não entendo. E tudo isso que deveria me afastar,
me encanta.
Cena de Dara e Júlio, quando ela perde a virgindade com ele, na praia
Diálogo entre Dara e Igor, em que ela fala para ele seguir a vida sem ela
Dara: Igor, vive a tua vida, não fica me esperando, não, porque eu não vou voltar com você!
Igor: vai sim!
D: Eu tô apaixonada por outro homem e vou me casar com ele.
Diálogo entre Dara e Júlio sobre as roupas que ela usava, trajes ciganos, para ser apresentada
à imprensa
Dara: por que está me olhando assim? É minha roupa?
Júlio: Não... é... que...
D: você tinha achado essa roupa linda, lembra?
Dara vai embora.
J: Dara, espera!
Júlio vai atrás dela.
Dara, chateada, rompe o noivado e tira a aliança.
D: toma, Júlio, eu não vou colocar essa aliança no meu dedo!
J: bota essa aliança de novo no dedo! Agora!
Dara joga o anel no chão.
284
Cena em que Dara briga com Vera, ex-esposa de Júlio, após ser insultada por ela.
Diálogo entre Dara e Júlio, sobre ele precisar romper o relacionamento com ela para seguir na
carreira política
Júlio: Dara, não dá mais!
Dara: você é um fraco! Você não sabe o que você quer! Você tem medo de tomar uma deci-
são e deixa que todo mundo decida por você.
285
Cena de Dara desamparada após rompimento com Júlio. Igor aparece para ajudar
Cena de Dara dando à luz na praia, sendo ajudada por Igor e depois encontrando Júlio. Igor
vai embora para sempre.
Diálogo entre Sarita, Odaísa, Salgadinho, Tom, Lucineide e Edu, sobre ele estar escondido na
casa de Sarita
Salgadinho: o Edu?
Tom: pois é. Acharam ele na casa da Sarita.
Salgadinho: ah, isso é que não. O Edu?
Chegam Edu, Odaísa, Sarita e Lucineide.
Lucineide: aí ó. Tava lá na casa da Sarita. Tava dando guarida a ele. Sabendo da agonia da
gente, da aflição da gente, e não fez nada.
Sarita: dona Lucineide! Me desculpe, Dona Lucineide, mas eu só queria ajudar. Não era me-
lhor o Edu estar aqui perto da senhora do que no meio da rua se escondendo em casa de estra-
nho?
L: o melhor era ele estar aqui dentro de casa. Quer se esconder? Eu que sou mãe dele vou
esconder ele melhor do que ninguém.
Salgadinho: é... Ele tava dormindo aonde?
Edu: Na sala, né, pai.
Salgadinho respira aliviado.
América
Vinheta de abertura de América
Guia de Personagens
Sol (Deborah Secco) Função na narrativa: protagonista Etnia: branca
Profissão: cabeleireira/dançarina Trilha sonora: Don’t – Shania
em boate Twain
Objetivo: morar nos Estados Uni- Caracterização: determinada, de
dos temperamento forte e sonhadora.
Condição social: classe média Não abre mão de seus sonho de
baixa morar nos Estados Unidos por ne-
Fonte: GloboPlay Identidade de gênero e orientação nhum motivo. Evita relacionamen-
sexual: mulher cis heterossexual tos e não acredita no amor.
288
Fonte: GloboPlay
Mari (Camila Rodri- Função na narrativa: coadjuvante Identidade de gênero e orientação
gues) Profissão: auxiliar de vendas sexual: mulher cis heterossexual
Objetivo: cursar medicina Etnia: branca
Condição social: classe média Trilha sonora: Regresa a Mí – Il
baixa Divo
Caracterização: simples e sonha-
dora, sonha em cursar o ensino
superior e ajudar os pais.
Fonte: GloboPlay
May (Camila Morgado) Função na narrativa: antagonista Identidade de gênero e orientação
Profissão: professora sexual: mulher cis heterossexual
Objetivo: trabalhar e casar com um Etnia: branca
dos protagonistas Trilha sonora: Você – Marina
Condição social: classe média alta Elali
Caracterização: determinada, ego-
ísta e de temperamento forte, não
gosta de imigrantes e é opositora de
Sol.
Fonte: GloboPlay
Neuta (Eliane Giardini) Função na narrativa: coadjuvante Identidade de gênero e orientação
Profissão: fazendeira sexual: mulher cis heterossexual
Objetivo: cuidar da fazenda e dei- Etnia: branca
xar o comando dos negócios para o Caracterização: determinada, for-
filho te, tinha posição de liderança e era
Condição social: classe alta referência para todos que moravam
na região.
Fonte: GloboPlay
Cenas e diálogos
Diálogo entre Odaléia e Sol, após serem despejadas da casa em que moravam
Odaléia: tudo isso é por que me iludi com as palavras bonitas do teu pai. Ia casar comigo, me
dar de tudo. Não foi nem te conhecer, quando você nasceu. Nunca acredita no que um homem
te disser, Sol!
289
Diálogo entre Sol e Odaléia sobre ela querer ir para os Estados Unidos
Odaléia: tava mais é na hora de você arrumar um bom rapaz. Se casar...
Sol: pra que? Pra ele me largar com um filho pela mão, que nem meu pai te largou? Casamen-
to? Amor? Eu não quero saber disso não. Eu quero me dar bem na vida.
Diálogo entre Sol e Tião sobre ela estar indo para os Estados Unidos
Sol: eu tô indo embora pros Estados Unidos. Falei pra você que tinha o sonho de morar fora.
Tião: deixa de ser boba Sol. Você não tá vendo as pessoas serem presas?
S: isso é só pra quem tem os contatos errados.
T: Sol, você vai pros Estados Unidos, nós vamos juntos. Entramos pelo portão da frente. Eu
tô crescendo, fazendo meu nome. Eu te levo pros Estados Unidos.
290
Diálogo entre Sol e Tião, após ele prender ela em casa, para não fugir do casamento
Sol: Por que você me trancou?
Tião: tá tudo certo, eu falei com o padre e vamos nos casar amanhã.
Os dois se beijam.
292
Diálogo entre Júnior e Maria Elis,, sobre casamento e orientação sexual dele
Maria Elis: Júnior, mais dia menos dia a madrinha vai querer que você se case, que você dê
netos pra ela.
Júnior: aí pode até ser que até lá minha cabeça já esteja diferente.
ME: você sabe que você não vai querer isso nunca, Júnior?
J: como que eu posso saber, Elis?
ME: Júnior, você sabe do que eu tô falando... você não vai querer isso nem agora nem nunca.
Ai, Júnior, você sabe que você não gosta de mulher.
J: por que você falou isso?
ME: porque é verdade, não é?
J: todo mundo acha isso?
ME: eu não sei, eu nunca comentei isso com ninguém.
J: Elis, eu quero saber se as pessoas tão achando isso, é isso que eu quero saber...
ME: sua mãe, não, né Júnior, as outras pessoas que acho que reparam, sim.
J: quando você começou a achar isso de mim?
ME: logo que eu vi você.
293
J: por que?
ME: ah, Júnior, pelo seu jeito, sua maneira.
J: pelo meu jeito? Minha maneira? Eu posso ser confuso, sim, mas isso não quer dizer que eu
não goste de mulher. Eu nunca me envolvi com homem nenhum.
ME: mas se sente atraído por eles.
J: isso é você que tá dizendo.
ME: Júnior, eu vi o jeito que você olha pro Tião. Eu vi o jeito que você olha pra todos os
outros peões.
J: e daí, Elis? Por que que eu não posso achar homem bonito? Por que eu não posso admirar?
Você tá falando isso porque eu faço vestido, né? E isso não é coisa de homem. Homem tem
que andar a cavalo, segurar o touro na unha. Você sabe como é o nome disso? Preconceito.
Você acha que eu não percebo o jeito que todo mundo me olha em Boiadeiros, Elis? Eu
percebo. Pra esses caras, ser homem é andar de calça agarradinha, usar chapéu de peão, isso é
ser homem! Ficar contando historinha do bar de menininha que já pegou. Isso é ser homem.
Será que isso é ser homem? Pra mim não. Pra mim, ser homem é ser correto, é ser decente,
isso é ser homem.
J: medo. Minha mãe me adora porque eu sou igual meu pai. Ou melhor, porque ela acha que
eu sou que nem meu pai. Mas eu não sou. O que você acha que ela vai sentir quando descobrir
isso?
Z: eu acho que você vive falando da tua mãe, que a tua mãe isso, tua mãe aquilo, mas o pro-
blema maior não é ela, é você.
J: eu? Imagina, Zeca. Se a minha mãe entendesse que a minha vocação é pra ser estilista tava
tudo resolvido.
Z: ainda assim faltaria uma parte. Uma parte que você não assume.
J: do que que você tá falando?
Z: você sabe.
J: eu não sei se eu tô pensando a mesma coisa que você.
Z: tá sim.
J: você acha que eu sou gay, né? Eu não vou mentir pra você, não vou falar que não rola uma
dúvida. Rola uma dúvida forte, mas não é certeza, não é, eu preciso ter certeza, Zeca. Eu tô
perdido, completamente perdido. Eu tô numa crise de identidade, não só sexual, uma crise
geral. Eu quero muito me descobrir, me conhecer. Eu preciso disso.
Diálogo entre Júnior e Kerry, com posterior chegada de Neuta, sobre a orientação sexual de
Júnior
Júnior: Kerry?
Kerry: Oi, Júnior! Eu queria te pedir desculpas pelo jeito que eu falei com você ontem. Eu
não queria ter falado com você daquele jeito, Júnior, mas é que eu fiquei chocada. Eu fiquei...
J: Kerry...
K: De verdade chocada.
J: Kerry... Olha...
K: Júnior, escuta! Eu não quero ouvir explicações agora, por favor! Sabe? O que eu vi ficou
muito claro pra mim.
J: Não é questão de te dar explicação agora.
K: Ô, Júnior! De verdade, de verdade... Calma! Eu não quero ouvir de você que eu me
enganei, que você fez uma coisa que eu não vi, que eu tô enganada. Eu não quero ouvir isso!
J: Eu só quero que você saiba...
K: Júnior, se você gostar de homem, Júnior, assume!
Neuta chega no quarto e ouve a conversa
J: Eu não tava usando você, Kerry! Eu não tava! Olha, quando eu digo que te adoro é porque
eu te adoro! De verdade...
K: Eu sei! Eu acredito que você me adora, Júnior. Mas apaixonado, apaixonado, você é
apaixonado pelo Zeca!
Júnior percebe que a mãe, Neuta, está na porta do quarto.
J: Mãe?
N: O que é que essa menina tá dizendo?
J: É verdade!
N: Você casou com a Maria Elis, teve um filho com a Maria Elis! Eu vejo as meninas loucas
atrás de você... Essa Kerry... Ela é doida por você, Júnior! Você não vê? Não ia ser assim se...
Se... Se você fosse como ela disse! Você está numa idade que... As pessoas ficam mesmo
295
cheias de dúvidas a respeito de tudo... A gente se pergunta: quem eu sou? Como é que eu sou?
Do que é que eu gosto? Olha pra mim. Diz alguma coisa... Olha pra mim!
J: mãe, eu sou apaixonado pelo Zeca! Eu não sou o filho que você queria ter, mãe. Eu sou
complemente diferente do que você pensa que eu sou. Complemente! E não aguento mais ser
quem eu não sou, gostar das coisas que eu não gosto. Sabe esses desenhos que você gosta e
fala que são lindos? E eu falava que era da minha amiga? Não é. É tudo meu. São meus
desenhos, é minha arte. É isso que eu sei fazer, que eu gosto de fazer. E é isso que eu vou ser,
estilista. É isso que eu quero e vou ser. Eu não gosto de fazenda, de Boiadeiro, de boi, de
vaca, eu gosto de cidade, de movimento, eu gosto de outra coisa, não isso aqui. Eu não vou
casar com ninguém. Eu vou ser quem eu sou. Desculpa! Desculpa! Desculpa se te
decepcionei, mas eu sou assim. Não adianta mais fingir. Eu nasci assim, eu não optei, não foi
eu que escolhi.
A Força do Querer
Vinheta de abertura de América
Guia de personagens
Jeiza (Paolla Oliveira) Função na narrativa: protagonista Identidade de gênero e orientação
Profissão: policial e lutadora de sexual: mulher cis heterossexual
MMA Etnia: branca
Objetivo: conquistar o cinturão Trilha sonora: Se você pensa -
Condição social: classe média Pitty
Caracterização: decidida,
determinada, trabalhadora e
independente. Focada em seus
sonhos, não abre mão deles por
Fonte: GloboPlay relacionamentos.
Ritinha (Ísis Valverde) Função na narrativa: coadjuvante Etnia: branca
Profissão: sereia Trilha sonora: Sereia – Roberto
Objetivo: liberdade Carlos
Condição social: classe média Caracterização: extrovertida e
baixa sedutora, gosta de relacionamentos
Identidade de gênero e orientação mas não sabe lidar com a
sexual: mulher cis heterossexual possibilidade de eles diminuírem
sua independência.
Fonte: GloboPlay
Bibi (Juliana Paes) Função na narrativa: protagonista Identidade de gênero e orientação
Profissão: estudante de direito / sexual: mulher cis heterossexual
chefe do tráfico Etnia: branca
Objetivo: formar-se em direito e Trilha sonora: Flor do Ipê – Mari-
manter o casamento sa Monte
Condição social: classe média Caracterização: extremamente
baixa/classe alta passional, abre mão de sua família,
estudo e amigos para acompanhar o
Fonte: GloboPlay marido que é traficante.
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Cenas e diálogos
Diálogo entre Eugênio e Joice, sobre a Ivan ainda criança, por telefone
Joice: você tinha que estar aqui pra ver tua filha, Eugênio. Ivana tá linda, charmosa,
glamourosa, essa menina já nasceu estrela. Vai ficar uma beleza esse álbum, Eugênio. Cê
lembra daquela miniatura do meu sapato que eu mandei fazer nos Estados Unidos? Chegou!
Salto alto? Claro! É lógico que ela tá a vontade com isso, amor! E não duvide que ela não
consiga mesmo andar com eles!
S: mas sou uma mulher independente e vou continuar sendo, eu escolho onde gastar meu
dinheiro!
Diálogo entre Dedé, Bibi, Rubinho e Aurora, sobre o fato deles terem sido despejados
Bibi: meu filho, por um ou dois dias você vai ficar na casa da vovó.
Dedé: e você e o papai?
Rubinho: é por pouco tempo, filho. Eu já liguei lá pro dono do bar que o papai tá fazendo
bico e ele falou que por um ou dois dias ele vai deixar a mamãe e o papai dormirem lá, depois
que o bar fechar. É o tempo da gente arrumar um cantinho.
Aurora: peraí, dormir onde? Não é um quarto?
R: quarto, dona Aurora? Se tivesse quarto não precisava esperar o bar fechar, né?
B: parece que bebe. Amor, vamos levar aquela colcha que é bem fofinha. Vai quebrar nosso
galho mais tarde.
A: Bibi, você não quer ir comigo também? Deixa o Rubinho aí nesse bar.
B: bem a senhora, né mãe. Largar o homem na hora que ele mais precisa, que tá no sufoco.
Por isso que tu nunca parou com ninguém, que está sozinha até hoje. Porque tu não tem
sentimento.
R: vai com ela, Bibi. Você vai ficar melhor acomodada lá.
B: eu não vou. não vou mesmo.
V: mas não é possível que dentro da polícia não tenha um posto, um cargo que você possa ter
hora certa pra entrar e sair. Porque você não vai pro administrativo?
J: não vou! Nem morta. Eu gosto de fazer o que eu faço. Eu nasci pra isso. Sou da ação, do
combate, do desafio.
V: quer saber, Jeiza, se esse é o tamanho da importância que você dá pra mim, melhor a gente
dar um tempo.
J: melhor. Eu sou assim. Quem me quiser tem que querer assim e deu.
J: entendeu mesmo, ou está com esse papinho mole achando que morando junto, você vai
assumir o controle? Quero saber, porque se for isso não vai dar certo. Você sabe que sou bem
autocomandada, não sabe?
V: eu sei. Vamos casar.
J: casar, assim? Casamento de papel passado e tudo, sem nenhum teste de convivência antes,
nem nada? Não estou confiando não.
I: não, Simone, eu fiz tudo direitinho. Eu passei maquiagem, eu fui de salto, usei a bolsa no
braço. Eu também não tava sendo eu mesma. Parecia que estávamos representando um papel.
S: sabe qual o nome disso? Insegurança.
I: Simone, vocês não entendem. Parece que não conseguem entender. A única coisa que me
põe pra baixo é eu ter que representar uma coisa que não sou. Essa é minha única insegurança.
Pô, parece que quando você nasce mulher você tem que ser de um jeito, andar de um jeito,
gostar ou não gostar de tais coisas... e quando você não consegue cumprir essas exigências
todas e não se encaixa no padrão? Eu não suporto essas coisas que a minha mãe acha que eu
devia adorar porque nasci mulher.
Diálogo entre Bibi e Aurora, sobre a festa de aniversário preparada por Rubinho
Bibi: ai, mãe, foi lindo, né?
Aurora: é, foi sim.
B: ah, mãe, vai dizer que a senhora não ia gostar de alguém que fizesse isso pela senhora?
A: Bibi, nunca fui mulher de esperar muito de homem, não?
306
B: sabia que é triste ouvir isso de uma mulher linda que nem a senhora?
A: por que triste? Não acho, não. Até porque nunca fui que nem você, que vive pra receber
demonstração de amor.
B: por isso que a senhora não entende.
Cenas de Ivan sem gostar de sua imagem feminina no espelho x experimentando roupas de
Ruy
307
Diálogo entre Jeiza e Alan sobre o convite para lutar nos Estados Unidos
Alan: Esse é o teu momento, se você quiser ganhar espaço no UFC, esse é o teu momento.
Escuta, Jeiza, se isso rolar pra você, e eu tenho certeza que vai rolar, você vai ter que se
preparar pra abrir mão de muita coisa da tua vida pessoal.
Jeiza: tô sabendo bem.
A: até aqui você conseguiu administrar a sua relação, o seu namoro. Daqui pra frente vai ser
mais difícil. As exigências são muito maiores.
J: Abel, não tem nem o que pensar.
A: não, pensa bem. Qual é a sua prioridade? Se não você pode perder os dois, o Zeca e o
cinturão.
J: eu não tenho nem o que pensar. Eu não tenho o que pensar. Eu sei exatamente o que eu
quero. Eu sempre soube. Eu quero o cinturão.
Diálogo entre Jeiza e Zeca, sobre o convite para lugar nos Estados Unidos.
Jeiza: o pessoal do UFC, eles me convidaram pra passar uma semana nos Estados Unidos.
Zeca: e você disse que não ia, né? Tu não vai, né? Tu disse não pra eles?
J: hã? Até pouco tempo tu estava todo feliz e orgulhoso. Dizendo que as pessoas tinham
comentado da minha luta... eu não tô entendendo porque isso.
Z: falei que tava gostando de ouvir, não de ver. Jeiza, eu não vou deixar tu fazer essa viagem.
J: deixar? Deixar? Desde quando eu preciso da tua permissão pra tocar minha vida e minha
carreira? Arrego!
Z: precisa. Precisa sim. Nós estamos namorando e é namoro sério.
J: ah, quer dizer então que a partir de agora você vai pedir permissão pra fazer entregas fora
do Rio de Janeiro também? E se eu não deixar, não vai...
Z: tá louca é? É diferente. Tu vai viajar com homem que não é teu namorado. Se tu for, pode
me esquecer.
J: você que sabe. Eu vou.
Diálogo entre Ivan e Eugênio, após nascer um fio de barba nela, devido aos hormônios
Eugênio: deixa eu ver.
Ivan: aqui oh! Mas não toca. Ninguém vai tirar.
E: você vai deixar aí? Não achei bonito.
I: pai, não tem a ver com beleza. Tem a ver com identidade.
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