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KOSIK, Karel. Dialética do Concreto.

EDITÔRA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA


S. A., 1969.

Anotações sobre Pseudoconcreticidade:

- Atitude de tomar aparência fenomênica como essência do fenômeno.

- Falta concreticidade

- Realidade imediata, mundo superficial, o que sabemos por meio do senso


comum

- Tudo é e não é a um só tempo, tudo é dialético.

- Dialética é movimento.

- A dialética do concreto é sair do concreto dado, à aparência, ao concreto


pensado, a substância essencial da materialidade Emergir do abstrato ao
concreto

- Para conhecer a essência, se parte da aparência e caminha para ir observar o


fenômeno de forma mais profunda (as questões sociais, históricas, politicas,
culturais), e então volta-se para o fenômeno e observa de forma menos opaca,
e sim mais transparente (pois agora já sabe o que se esconde atrás da
superfície).

- Do concreto dado, o concreto aparente que esconde a sua essência.


Cabendo a pesquisador desvelar o que está escondido por trás da aparência. Ir
ao concreto pensado.

- El entendimiento es el elemento clave de la hermenéutica. la realidad es todo


lo que nos rodea, cuando la conocemos es lo abstracto. La pseudoconcreción
es el mundo desconocido y la concreción es el descubrimiento del
conocimiento. Es decir sustentar para explicar.

- Aparência x essência em Marx.

I – Dialética da Totalidade Concreta

O Mundo da Pseudoconcreticidade e a sua Destruição

A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um


abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade
especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um
indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e
com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e
interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. (KOSIK,
1969, p. 09)

Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o


aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente,
cujo polo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito
cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se
como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo
fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. (KOSIK, 1969, p.
10)

Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas,


sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso,
a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o
homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as
coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da
realidade. (KOSIK, 1969, p. 10)

Por este motivo Marx pôde escrever que aqueles que efetivamente determinam
as condições sociais se sentem à vontade, qual peixe n' água, no mundo das
formas fenomênicas desligadas da sua conexão interna e absolutamente
incompreensíveis em tal isolamento. Naquilo que é intimamente contraditório,
nada vêem de misterioso; e seu julgamento não se escandaliza nem um pouco
diante da inversão do racional e irracional. (KOSIK, 1969, p. 10)

O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera


comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência,
penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto
independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcretioidade.
A ele pertencem:
- O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos
processos realmente essenciais;
- O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos
homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da
humanidade);
- o mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos
externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas
ideológicas de seu movimento;
- o mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais
e não são imediatamente reconhecíveis como resultados da atividade social
dos homens. (KOSIK, 1969, p. 11)

O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O


seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao
mesmo tempo, a esconde. (KOSIK, 1969, p. 11)

O mundo fenomênico tem a sua estrutura, uma ordem própria, uma legalidade
própria que pode ser revelada e descrita. Mas a estrutura deste mundo
fenomênico ainda não capta a relação entre o mundo fenomênico e a essência.
Se a essência não se manifestasse absolutamente no mundo fenomênico, o
mundo da realidade se distinguiria radical e essencialmente do mundo do
fenômeno: em tal caso o mundo da realidade seria para o homem "o outro
mundo" (platonismo, cristianismo), e o único mundo ao alcance do homem
seria o mundo dos fenômenos. (KOSIK, 1969, p. 12)

O mundo fenomênico, porém, não é algo independente e absoluto: os


fenômenos se transformam em mundo fenomênico na relação com a essência.
(KOSIK, 1969, p. 12)

Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a


coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nêle se
esconde. Compreender o fenômeno é atingir a essência. Sem o fenômeno,
sem a sua manifestação e revelação, a essência seria inatingível. (KOSIK,
1969, p. 12)

Como a essência - ao contrário dos fenômenos – não se manifesta


diretamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser descoberto
mediante uma atividade peculiar, tem de existir a ciência e a filosofia. Se a
aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a
ciência e a filosofia seriam inúteis. (KOSIK, 1969, p. 13)

O conceito da coisa é compreensão da coisa, e compreender a coisa significa


conhecer-llie a estrutura . A característica precípua do conhecimento consiste
na decomposição elo todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para
dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o
conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o
conhecimento é a decomposição do todo. O "conceito" e a "abstração", em
uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo
para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto,
compreender a coisa. (KOSIK, 1969, p. 14)

O conhecimento se realiza como separação de fenômeno e essência, do que é


secundário e do que é essencial, já que só através dessa separação se pode
mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa.
Neste processo, o secundário não é deixado de lado como irreal ou menos
real, mas revela seu caráter fenomênico ou secundário mediante a
demonstração de sua verdade na essência da coisa. (KOSIK, 1969, p. 14)

Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem


espontâneamente no pensamento comum como realidade (a realidade
mesma ) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do
conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto
natural da praxis cotidiana. (KOSIK, 1969, p. 15)

A praxis utilitária cotidiana cria "o pensamento comum" - em que são captados
tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a
técnica de tratamento das coisas - como forma de seu movimento e de sua
existência. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de
todos os dias. (KOSIK, 1969, p. 15)
A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da
realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições
históricas petrificadas. (KOSIK, 1969, p. 15)

A distinção entre representação e conceito, entre o mundo da aparência e o


mundo da realidade, entre a praxis utilitária cotidiana dos homens e a praxis
revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a "cisão do único'', é o modo
pelo qual o pensamento capta a "coisa em sf'. A dialética é o pensamento
crítico que se propõe a compreender a "coisa em si" e sistemàticamente se
pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade . Por isso, é o
oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações
comuns. (KOSIK, 1969, p. 15)
.
O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a
concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo
da aparência se desvenda o mundo real; por trás da aparência externa do
fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o
movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência. (KOSIK, 1969, p. 16)

Entretanto a destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico,


graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo
reificaao e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da
dialética, como método revolucionário de transformação da realidade. Para que
o mundo possa ser explicado "criticamente", cumpre que a explicação mesma
se coloque no terreno da "praxis" revolucionária. (KOSIK, 1969, p. 18)

A diferença entre a realidade natural e a realidade humano-social está em que


o homem pode mudar e transformar a natureza; enquanto pode mudar de
modo revolucionário a realidade humano-social porque êle próprio é o produtor
desta última realidade. (KOSIK, 1969, p. 18)

O mundo real, oculto pela pseudoconcreticidade, apesar de nela se manifestar,


não é o mundo das condições reais em oposição às condições irreais,
tampouco o mundo da transcendência em oposição à ilusão subjetiva; é o
mundo da praxis humana. É a compreensão da realidade humano-social como
unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura.
(KOSIK, 1969, p. 18)

O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos "reais" fixados, que sob o
seu aspecto fetichizando levem uma existência transcendente como uma
variante naturallsticamente entendida das idéias platônicas; ao invés, é um
mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como
produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do
mundo social. (KOSIK, 1969, p. 18)

Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o


mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e
predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na
consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a
história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade. A
destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade. não é nem
inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo,
se desenvolve e se realiza. (KOSIK, 1969, p. 19)

Portanto, a destruição da pseudoconcreticidade se efetua como: 1) crítica


revolucionária da praxis da humanidade, que coincide com o devenir humano
do homem, com o processo de ''humanização do homem" (A. Kolman), do qual
as revoluções sociais constituem as etapas-chave; 2) pensamento dialético,
que dissolve o mundo fetichizado da aparência para atingir a realidade e a
"coisa em si”; 3) realizações da verdade e criação da realidade humana em um
processo ontogenético, visto que para cada indivíduo humano o mundo da
verdade é, ao mesmo tempo, uma sua criação própria, espiritual, como
indivíduo social-histórico. (KOSIK, 1969, p. 19)

A pseudoconcreticidade é justamente a existência autônoma dos produtos do


homem e a redução do homem ao nível da praxis utilitária. A destruição da
pseudoconcreticidade é o processo de criação da realidade concreta e a visão
da realidade, da sua concreticidade. As correntes idealísticas absolutizaram ora
o sujeito, tratando do problema de como encarar a realidade a fim de que ela
fôsse concreta ou bela, ora o objeto, e supuseram que a realidade é tanto mais
real quanto mais perfeitamente dela se expulsa o sujeito. (KOSIK, 1969, p. 19)

Ao contrário delas, na destruição materialista da pseudoconcreticidade, a


liberalização do "sujeito" (vale dizer, a visao concreta da realidade, ao invés da
"intuição fetichista") coincide com a liberalização do "objeto" (criação do
ambiente humano como fato humano dotado de condições de transparente
racionalidade), pôsto que a realidade social dos homens se cria como união
dialética de sujeito e objeto. (KOSIK, 1969, p. 19)

PARTE II - Metafísicada Vida Cotidiana

O MODO primordial e elementar em que a economia existe para o homem é a


"preocupação". Não é o homem que tem "preocupação", é a "preocupação"
que possui o homem. (KOSIK, 1969, p. 59)

A "preocupação" não é o estado de consciência cotidiano de um indivíduo


cansado, que dela se pode libertar mediante a distração. A "preocupação" é o
engajamento prático do indivíduo no conjunto das relações sociais,
compreendidas do ponto de vista deste engajamento pessoal, individual e
subjetivo. Tais relações não são objetivizadas, não são objeto da ciência e da
investigação objetiva; constituem a esfera do engajamento individual. (KOSIK,
1969, p. 60)

O indivíduo não é apenas aquilo que ele próprio crê nem o que o mundo crê; é
também algo mais: é parte de uma conexão em que ele desempenha um papel
objetivo, supra-individual, do qual não se dá conta necessariamente. (KOSIK,
1969, p. 60)

O homem como "preocupação" é a própria subjetividade sempre fora de si, visa


a uma outra coisa qualquer, ultrapassa continuamente a própria subjetividade.
A superação ou a transcendência do homem significa que o homem, com a sua
atividade, é supra-subjetivo e supra-individual. (KOSIK, 1969, p. 61)

O sujeito é determinado pelo sistema das relações objetivas, mas se comporta


como indivíduo movido pela "preocupação", o qual no curso da sua ação cria a
rêde das relações. A "preocupação" é :
1 . inserimento do indivíduo social no sistema das relações sociais sob
fundamento do seu engagement e da sua práxis utilitária;
2 . o agir dêste mesmo indivíduo, agir que - no seu aspecto elementar - se
manifesta como solicitude e preocupação;
3. sujeito de ação (preocupação e solicitude ) que se manifesta como
indiferenciação e anonimidade. (KOSIK, 1969, p. 63)

A passagem do "trabalho" para a "preocupação" reflete de maneira mistificada


o processo da fetichização das relações humanas-, cada vez mais profundo,
em que o mundo humano se manifesta à consciência diária ( fixada na
ideologia filosófica ) como um mundo fá pronto, e provido de aparelhos,
equipamentos, relações e contatos, onde o movimento social do indivíduo se
desenvolve como empreendimento, ocupação, onipresença, enleamento - em
uma palavra, como "preocupação". (KOSIK, 1969, p. 63)

O indivíduo se move em um sistema formado de aparelhos e equipamentos


que êle próprio determinou e pelos quais é determinado, mas já há muito
tempo perdeu a consciência de que êste mundo é criação do homem. (KOSIK,
1969, p. 63)

O preocupar-se é a praxis no seu aspecto ferwmênico alienado, que já agora


não alude à gênese do mundo humano (o mundo dos homens, da cultura
humana e da humanização da natureza) mas exprime a praxis das operações
diárias, em que o homem é empregado no sistema das "coisas" já prontas, isto
é, dos aparelhos, sistema em que o próprio homem se toma objeto de
manipulação. A praxis da manipulação (faina, labuta) transforma os homens
em manipuladores e objetos de manipulação. (KOSIK, 1969, p. 64)

O preocupar-se é manipulação (de coisas e homens) na qual as ações,


repetidas todos os dias, já de há muito se transformaram em hábito e, portanto,
são executadas mecânicamente. O caráter coisificado da praxis, expresso pelo
termo preocupar-se, significa que na manipulação já não se trata mais da obra
que se cria, mas do fato de que o homem é absorvido pelo mero ocupar-se e
"não pensa" na obra. (KOSIK, 1969, p. 64)

O ocupar-se é o comportamento prático do homem no mundo já feito e dado; é


tratamento e manipulação dos aparelhos no mundo, mas não é criação do
mundo humano. (KOSIK, 1969, p. 64)

O indivíduo maneja o telefone, o automóvel, o interruptor elétrico, como uma


coisa banal e indiscutível. Somente um defeito, uma interrupção, lhe revela que
êle existe em um mundo de aparelhos. que funcionam e que formam um
sistema internamente interligado, cujas partes dependem umas das outras. O
defeito demonstra que o aparelho não é uma coisa isolada, é uma pluralidade;
(KOSIK, 1969, p. 64)

O ocupar-se, como trabalho humano abstrato no seu aspecto fenomênico, cria


um mundo utilitário igualmente abstrato, no qual tudo se converte em aparelho
utilitário: neste mundo as coisas não possuem significado independente nem
existência objetiva; assumem significado apenas quando postas em relação
com a própria manipulabilidade . (KOSIK, 1969, p. 65) – isso aqui dá pra ligar
com a ideia de que o sentido só está completo quando há a legitimação do
sentido por parte do receptor.

Na manipulação prática (isto é, no ocupar-se) , as coisas e os homens são


aparelhos, objetos da manipulação e só assumem um significado no sistema
da manipulabilidade universal. (KOSIK, 1969, p. 65)

Todavia, na perspectiva da "preocupação'', o mundo objetiva e sensivelmente


prático se dissolveu, se transformou em mundo dos significados traçados pela
subjetividade humana. É um mundo estático, em que a manipulação, o ocupar-
se e o utilitarismo representam o movimento do indivíduo prêsa da solicitude,
em uma realidade já pronta e acabada, cuja gênese está oculta. (KOSIK, 1969,
p. 66)

Na "preocupação" se expressa e realiza a dependência do indivíduo face à


realidade social, a qual, todavia, se apresenta à consciência "preocupada"
como mundo coisificado da manipulação e do "assumir a preocupação"'. O
preocupar-se como aparência universal e reificada da praxis humana não é
produto e criação do mundo humano objetivamente prático: é manipulação da
ordem existente como conjunto dos meios e exigências da civilização. (KOSIK,
1969, p. 66)

O mundo da praxis humana é a realidade objetivamente humana em seu


nascimento, na produção e reprodução, ao passo que o mundo da
"preocupação" é o mundo dos aparelhos já prontos e da sua manipulação.
(KOSIK, 1969, p. 66) – importante resumo.

O homem como "preocupação" não é apenas "jogado" no mundo, que já existe


como realidade pronta e acabada; êle se move neste mundo, que é criação
humana, como em um conjunto de aparelhos que êle é capaz de manejar sem
ter de conhecer o verdadeiro movimento dêles e a verdade do ser dêles. O
homem como "preocupação" no seu "assumir a 'preocupação"', maneja o
telefone, a televisão, o elevador, o automóvel, o bonde, porém mesmo ao
manejá-los não se dá conta da realidade técnica e do sentido dêsses
aparelhos. (KOSIK, 1969, p. 66)

Como "preocupação" o homem é ativamente inserido nas relações sociais, mas


ao mesmo tempo tem uma determinada relação com a natureza e · cria para si
uma determinada representação da natureza. No conhecimento do mundo
humano, como mundo utilitário, se revela uma grande verdade : trata-se de um
mundo social, no qual a natureza se manifesta como natureza humanizada, isto
é, como objeto e base material da indústria. No "assumir a 'preocupação'", a
natureza é laboratório e reserva de matérias-primas, e a relação do homem
com ela é relação do dominador e do criador com o material. (KOSIK, 1969, p.
66)

Na "preocupação" o indivíduo sempre já está no futuro e se serve do presente


como de um meio ou instrumento para realizar os seus projetos. Na
"preocupação" como engajamento prático do indivíduo concede de certo modo
um privilégio ao futuro e dêle faz a fundamental dimensão temporal, a cuja luz
são compreendidos e "realizados" o presente e o passado. (KOSIK, 1969, p.
67)

O indivíduo avalia o presente e o passado com base nos projetos práticos em


que vive, com base em planos, esperanças, apreensões, expectativas e metas.
Como a "preocupação" é antecipação, ela deprecia o presente e tende para o
futuro, que ainda não é. (KOSIK, 1969, pp. 67-68)

"Viver no futuro" e "antecipar'' significam, em certo sentido, negar a vida; o


indivíduo como "preocupação" não vive o presente, mas o futuro; negando
aquilo que existe e antecipando aquilo que não existe, reduz a sua vida à
nulidade, vale dizer, à inautenticidade. Montaignell conhecia bem esta forma de
alienação. (KOSIK, 1969, p. 68)

A COTIDIANIDADE E A HISTÓRIA

Todo modo de existência humana ou de existir no mundo possui sua própria


cotidianidade . A idade média tinha uma sua cotidianidade, que se dividia entre
as várias classes, camadas e corporações . :f: fato que a vida diária de um
servo da gleba era diferente da de um monge, de um cavaleiro andante e de
um senhor feudal, mas o denominador comum, que marcava o tempo e
impunha o ritmo segundo o qual se desenrolava a vida de todos era um
fundamento único : a sociedade feudal. (KOSIK, 1969, p. 68)

A indústria e o capitalismo, juntamente com os novos instrumentos de


produção, as novas classes e as novas instituições políticas, trouxeram consigo
também um novo tipo de existência cotidiana, essencialmente diferente do das
épocas anteriores. (KOSIK, 1969, p. 68)

Que é, então, a cotidianidade? A cotidianidade não significa a vida privada em


oposição à vida pública. Não é tampouco a chamada vida profana em oposição
ao mais nobre mundo oficial : na cotidianidade vive tanto o escrituário como o
imperador. (KOSIK, 1969, p. 69)

A vida cotidiana é antes de tudo organização, dia a dia, da vida individual dos
homens; a repetição de suas ações vitais é fixada na repetição de cada dia, na
distribuição do tempo em cada dia. A vida de cada dia é divisão do tempo e é
ritmo em que se escoa a história individual de cada um. (KOSIK, 1969, p. 69)

A vida de cada dia tem a sua própria experiência, a própria sabedoria, o próprio
horizonte, as próprias previsões, as repetições, mas também as exceções; os
dias comuns, mas também os dias feriados. A vida de cada dia não é, assim,
entendida como oposição ao que sai da norma, aos feriados, à
excepcionalidade ou à História: a hipóstase da vida de cada dia como
banalidade em oposição à História, como exceção, já constitui o resultado de
uma certa mistificação. (KOSIK, 1969, p. 69)

Na cotidianidade a atividade e o modo de viver se transformam em um


instintivo, subconsciente e inconsciente, irrefletido mecanismo de ação e de
vida. As coisas, os homens, os movimentos, as ações, os objetos circundantes,
o mundo, não são intuídos em sua originalidade e autenticidade, não se
examinam nem se manifestam: simplesmente são; e como um inventário, como
partes de um mundo conhecido são aceitos. (KOSIK, 1969, p. 69)

O ditado popular - o homem se acostuma até com a forca - significa que o


homem cria para si um ritmo de vida até no ambiente menos habitual, menos
natural e humano; também os campos de concentração têm a sua própria
cotidianidade, e até mesmo um condenado à morte. (KOSIK, 1969, p. 70)

No choque da cotidianidade com a Hist6ria ocorre uma subversão. A História (a


guerra) rompe a cotidianidade, mas a cotidianidade subjuga a História,
porquanto tudo tem sua própria cotidianidade . A separação da cotidianidade,
da História, separação que constitui o ponto de vista - tanto de partida, como
de passagem, vale dizer, permanente - da consciência cotidiana, demonstra-se
praticamente, neste choque, como uma mistificação. (KOSIK, 1969, p. 71)

A cotidianidade e História se interpenetram. Nessa interpenetração o seu


pretenso ou aparente caráter se muda: a cotidianidade não é aquilo que a
consciência comum acredita, assim como a História não é aquilo que se
manifesta à consciência comum. (KOSIK, 1969, p. 71)

A cotidianidade é o mundo fenomênico em que a realidade se manifesta de um


certo modo e ao mesmo tempo se esconde. (KOSIK, 1969, p. 72)

De certo modo a cotidianidade desvenda a verdade da realidade, pois a


realidade à margem da vida de cada dia seria urna irrealidade transcendente,
isto é, uma configuração sem poder nem eficácia; do mesmo modo, porém,
também a esconde: a realidade não está contida na cotidianidade
imediatamente, e na sua totalidade; está contida por certos aspectos
determinados e mediatamente. (KOSIK, 1969, p. 72)

A análise da vida de cada dia constitui - em certa medida, apenas - a via de


acesso à compreensão e à descrição da realidade; além das "suas
possibilidades", ela falsifica a realidade. Neste sentido não é possível entender
a realidade da cotidianidade, mas a cotidianidade é entendida com base na
realidade. (KOSIK, 1969, p. 72)

Se a cotidianidade é a "característica" fenoménica da realidade, a superação


da cotidianidade reificada não se processa como salto da cotidianidade à
autenticidade, mas como destruição prática do fetichismo da cotidianidade e da
História; isto é, como eliminação prática da realidade reificada, tanto nos seus
aspectos fenomênicos como na sua essência real. (KOSIK, 1969, p. 72)
A cotidianidade se manifesta como anonimidade e como tirania de um poder
impessoal que dita a cada indivíduo seu comportamento, modo de pensar,
gôsto e seu protesto contra a banalidade. (KOSIK, 1969, p. 73)

Na existência humana a relação de sujeito e objeto não coincide com a relação


de interioridade e exterioridade, ou com a relação do sujeito isolado - pré-social
ou associai - com a entidade social . O sujeito já é constitucionalmente
impregnado de objetividade, que é objetivação da praxis humana. (KOSIK,
1969, p. 75)

O homem pode perder-se no mundo "exterior" porque na sua existência êle é


um sujeito objetivo, que s6 existe enquanto produz subjetivamente o mundo
histórico objetivo. A filosofia moderna revelou uma grande verdade: o homem
não nasce jamais em condições que lhe são "próprias", êle é sempre "jogado"
no mundo, cuja autenticidade ou inautenticidade êle tem de comprovar por si
mesmo, na luta, "na praxis'', no processo da história da própria vida, no curso
do qual a realidade é possuída e modificada, reproduzida e transformada.
(KOSIK, 1969, p. 75)

Já definimos a cotidianidade como um mundo em cujo ritmo regular o homem


se move com uma instintividade mecânica e com o sentimento da familiaridade.
Da reflexão sôbre o sentido da cotidianidade nasce a consciência absurda, a
qual não encontra sentido algum na cotidianidade: "É terrivelmente aborrecido
vestir sempre primeiro a camisa e depois as calças, e de noite meter-se na
cama para depois se levantar na manhã seguinte e sempre, dêste modo,
colocar um pé diante do outro; o homem não consegue absolutamente
imaginar que tudo isto possa um dia mudar. (KOSIK, 1969, p. 76)

O essencial, porém, não é a consciência do absurdo criada pela cotidianidade;


é o problema que surge quando a reflexão se eleva acima da cotidianidade.
Não se procura o sentido da cotidianidade – com o seu automatismo e a sua
imutabilidade - porque ela se tornou um problema mas porque no seu
problematismo se reflete o problematismo da realidade: originàriamente não se
procura o sentido da cotidianidade mas o da realidade. (KOSIK, 1969, p. 76)

A destruição da pseudoconcreticidade do mundo alienado da cotidianidade se


efetua como alienação, como modificação existencial e como transformação
revolucionária. Embora em tal transformação se respeite uma certa hierarquia,
cada uma das mencionadas formas de destruição conserva uma relativa
independência própria, em cujo âmbito cada uma delas é insubstituível.
(KOSIK, 1969, p. 77)

O mundo da cotidiana familiaridade não é um mundo conhecido e notório. Para


que seja reconduzido à própria realidade, êle tem de ser arrancado da
familiaridade intimamente fetichizada e revelado na sua brutalidade alienada.
(KOSIK, 1969, p. 77)

A alienação da cotidianidade reflete-se na consciência, ora como posição acrí


tica, ora como sentimento do absurdo. Para que o homem possa descobrir a
verdade da cotidianidade alienada, deve conseguir dela se desligar, liberá-la da
familiaridade, exercer sôbre ela uma "violência". (KOSIK, 1969, p. 78)

A nosso ver um dos princípios essenciais da arte moderna - poesia, teatro,


artes plásticas e cinema - é a "violência" exercida sôbre a cotidia11idade, a
destruição da pseudoconcreticidade. (KOSIK, 1969, p. 78)

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