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Negacionistas: céticos ou crentes?

Reviravoltas de encantamento e
desencantamento

1. Eduardo Guerreiro Lossodisse:

15 de dezembro de 2021

7
 

I. Confiança e desconfiança

 Você se desiludiu com o progresso tecnológico? O progresso da civilização?
O progresso do conhecimento?


 Ou você se tornou descrente das instituições públicas? Da ciência? Da
mídia? Das autoridades?


 Você confia no mercado? Ou desconfia dele? Confia no Estado? Ou
desconfia dele? Confia nas instituições internacionais (ONU, OMS, FMI,
UNESCO)? Ou desconfia da globalização?

II. Estabilidade institucional

 No período do pós-guerra, até bem recentemente, houve um grande esforço
nacional e global em prol da estabilidade das instituições, das ciências e dos
órgãos mediadores entre elas e a população: o espaço público.


 Para compensar a extrema vulnerabilidade dos alicerces nacionais num
mundo destruído, depois da Segunda Guerra Mundial, houve um
investimento maciço na reconstrução dos Estados, especialmente com o
Plano Marshall.


 Dentro da oposição entre civilização e barbárie, isso foi interpretado como
uma retomada do projeto civilizatório. Como remediação de um enorme
sacrifício mortífero, traumático e do resultado visivelmente ruinoso, a
reconstrução da Europa comportou a instalação de instituições fortes e a
segurança de emprego, direitos e serviços sociais.


 Se eram os EUA que financiavam a Europa, eles também deviam fornecer
aos seus cidadãos a mesma qualidade, e estavam se encaminhando para isso
desde o new deal.


 Tal refundação da civilização foi acompanhada do aperfeiçoamento de
serviços tecnológicos para a massa, o que a levou a habitar numa sociedade
de consumo e num espaço público enquadrado na grande mídia televisiva e
órgãos institucionais democráticos diversos.


 Nos países chamados subdesenvolvidos, tal estabilidade nunca foi
alcançada. Mesmo assim, no Brasil, houve considerável esforço nesse
sentido, especialmente na Era Vargas e no desenvolvimentismo, que
forneceu a instauração de vários órgãos públicos fundamentais de educação,
ciência, cultura e comércio.


 Todo esse arcabouço governamental recuperou a ilusão de supostas
verdades indubitáveis: primeiro, a marcha para a civilização é um projeto
moderno irreversível e positivo; segundo, o aprimoramento técnico,
educativo e político da população levaria a uma sociedade mais responsável,
consciente e satisfeita consigo mesma.


 Por trás da monumentalidade das instituições estabelecidas, de um espaço
público dominado por uma mídia elitizada composta de autoridades políticas
ou científicas e celebridades atraentes ou divertidas, uma multidão de
pessoas sem reconhecimento – sejam os pobres, vítimas de preconceito ou
os financeiramente modestos mas orgulhosos de seus pífios privilégios –
sentiu-se completamente excluída do chamado progresso civilizatório e
começou a duvidar de seus representantes.


 Com o desmonte neoliberal, generalizado a partir dos anos 1980, aumentou
o número de pessoas em estado precário que se sentiram alijadas da festa,
“barrados no baile”, literalmente, para citar uma canção de sucesso de 1983,
de Eduardo Dusek.

 À medida que os efeitos dessa desregulamentação foram se agravando, o
coro dos descontentes se amplificou nas redes sociais e estourou a frágil
legitimidade do espaço público.

III. Monomania capital

 A partir daí, sobressaiu a crise da credibilidade  nas instituições, nas
autoridades e nos especialistas.


 Um estranho fenômeno desponta nesse momento histórico. Se, no período
do Estado de bem-estar social, muitos supunham que a mentalidade geral se
direcionava para um progressivo desencantamento do mundo mágico e
religioso – bem como uma superação de concepções pessoais meramente
opiniáticas – movido por burocratas, cientistas e pesquisadores, arautos do
progresso civilizatório, agora, para o horror dos tecnicistas, disseminou-se
uma verdadeira suspeita opiniosa contra a ciência.


 A partir de pesquisas sociológicas, constata-se que a ciência depende de
uma confiança pública depositada nela para legitimar seu papel. Se ela se
torna motivo de desconfiança, então, vê-se um verdadeiro desencantamento
de parte preocupante do público com a ciência.


 Primeira surpresa: o que deveria desencantar, foi desencantado. Segunda
surpresa: ninguém suspeitava que o desencantamento científico sempre
dependeu do encantamento. Os desencantados sempre estiveram cegamente
encantados com a imensa presunção de serem desencantados.


 Depois de ser indubitavelmente comprovado que o aquecimento global
ocorre por responsabilidade humana, pela primeira vez ficou mais clara a
diferença entre a autonomia da ciência e os interesses econômicos
tecnocráticos que financiam extrativismo, monocultura e poluentes
ambientais.


 Tal diferença elucidou que o capitalismo fez predominar uma atitude
econômica de drástica intervenção no meio ambiente. Já os chamados
“povos primitivos” indígenas, vistos como ingenuamente encantados,
desenvolveram uma relação integrada com o mesmo, preservando a valiosa
fauna e flora tropical.


 Os índios, “encantados”, percebem nos proprietários brancos a fixação
idólatra pelo lucro rápido e máximo a todo custo. Antropólogos e
ambientalistas também tentam alertar a gravidade da monomania absurda
desses negociantes e apontam, nos índios, um novo modelo de tecnologia
sustentável: um modo de vida sem intervenção violenta no bioma.


 Nesse sentido, os encantados dão uma lição técnica para os desencantados.
Os índios foram, num louvável trabalho de milênios, os horticultores das
florestas tropicais.

IV. Encantamento tônico e tóxico



 Porém, nem todo encantado é belo. Os atuais negacionistas do clima e da
vacina, crentes em Terra plana e QAnon, opositores do “marxismo cultural”
ou, nas versões especificamente brasileiras, proponentes do Escola sem
Partido, são o lado pavoroso do encantamento.


 A espiritualidade do índio vive de uma atávica tradição oral; feministas
defensoras de saberes mágicos e medicinais oprimidos, chamados de
“feitiçaria”, resgatam tradições perdidas como forma de resistência ao
machismo por trás da exploração de trabalho não reconhecido de
cuidadoras. As crenças afro-brasileiras renovaram tradições africanas no
contexto da modernização nacional, fundaram terreiros e ressignificaram
encruzilhadas metropolitanas. Além desses exemplos mais recentes, o
maravilhamento da classe média europeia e norte-americana com o Oriente
(lutas marciais, yoga, meditação, alimentação e cultura) se tornou parte de
sua diversidade de opções. Podemos denominar esses exemplos de
variedades de encantamento tônico, renovador da espiritualidade
contemporânea contrária à idolatria capitalista.


 No caso dos negacionistas conspiradores, a recusa da ciência, tanto a
empírica quanto a humana, serve para respaldar precisamente as práticas
depredadoras que a responsabilidade científica não mais pode aceitar.
Podemos nomeá-los de encantamento tóxico. Tal adjetivo está na moda e é
frequentemente usado de forma inadequada, mas, nesse caso, seu sentido é
literal.


 Crenças que põem em dúvida dados científicos e acreditam em fantasias
opostas estão do lado dos devastadores do meio ambiente, da cultura e da
democracia. Só são céticos em relação à ciência para adorar os interesses
mais nocivos.

V. Magia e niilismo

 Percebe-se que hábitos intelectuais profundamente arraigados de desprezo
por concepções encantadas estão sendo postos em xeque. Tal suspeita tem
frequentemente levado muitos entusiastas a atacar o desencantamento
científico em bloco, como se ele fosse equivalente à sua instrumentalização
tecnocrática. Em muitos casos, nota-se uma verdadeira defesa do
encantamento identitário contra o desencantamento de “técnicos”; além de
uma associação indevida entre ciência e homem branco.


 Contudo, ao mesmo tempo, observa-se o ressurgimento maciço do
encantamento tóxico. O que os entusiastas do encantamento diriam deles?
Não, isso não é encantamento? Existe encantamento verdadeiro e falso?


 Prefiro colocar de outra maneira: o encantamento não é solução para todos
os problemas, assim como, igualmente, nunca foi o desencantamento. Para
combater o encantamento tóxico, não há outro remédio: é preciso crítica. E
crítica é uma operação desencantada; mesmo se usada por encantados.
Afinal,  quando encantados apontam a falácia dos desencantados, estão
desencantando o seu encantamento disfarçado.


 Diante de tantas reviravoltas conceituais, estamos passando por um
questionamento agudo dos pressupostos da crítica, ao implicar em
radicalização de uma visão perspectivista. Por outro lado, não há desistência
de critérios de aferição.


 O que deve ser motivo de cuidado da crítica é que não se pode cair num
novo binarismo de defesa dos encantados, pois, primeiro: há lugar para
encantamento e desencantamento tônicos que cooperam entre si;
segundo: todos nós somos desencantados com alguma coisa e
encantados com  outra.


 Muito se ilude quem se considera inteiramente desencantado, ou encantado.
Somos fruto da estranha geleia geral de magia e niilismo.

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência


da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira
Margem.

Reviravoltas de encantamento e
desencantamento

1. Eduardo Guerreiro Lossodisse:

15 de dezembro de 2021
7
 

I. Confiança e desconfiança

 Você se desiludiu com o progresso tecnológico? O progresso da civilização?
O progresso do conhecimento?


 Ou você se tornou descrente das instituições públicas? Da ciência? Da
mídia? Das autoridades?


 Você confia no mercado? Ou desconfia dele? Confia no Estado? Ou
desconfia dele? Confia nas instituições internacionais (ONU, OMS, FMI,
UNESCO)? Ou desconfia da globalização?

II. Estabilidade institucional

 No período do pós-guerra, até bem recentemente, houve um grande esforço
nacional e global em prol da estabilidade das instituições, das ciências e dos
órgãos mediadores entre elas e a população: o espaço público.


 Para compensar a extrema vulnerabilidade dos alicerces nacionais num
mundo destruído, depois da Segunda Guerra Mundial, houve um
investimento maciço na reconstrução dos Estados, especialmente com o
Plano Marshall.


 Dentro da oposição entre civilização e barbárie, isso foi interpretado como
uma retomada do projeto civilizatório. Como remediação de um enorme
sacrifício mortífero, traumático e do resultado visivelmente ruinoso, a
reconstrução da Europa comportou a instalação de instituições fortes e a
segurança de emprego, direitos e serviços sociais.


 Se eram os EUA que financiavam a Europa, eles também deviam fornecer
aos seus cidadãos a mesma qualidade, e estavam se encaminhando para isso
desde o new deal.


 Tal refundação da civilização foi acompanhada do aperfeiçoamento de
serviços tecnológicos para a massa, o que a levou a habitar numa sociedade
de consumo e num espaço público enquadrado na grande mídia televisiva e
órgãos institucionais democráticos diversos.


 Nos países chamados subdesenvolvidos, tal estabilidade nunca foi
alcançada. Mesmo assim, no Brasil, houve considerável esforço nesse
sentido, especialmente na Era Vargas e no desenvolvimentismo, que
forneceu a instauração de vários órgãos públicos fundamentais de educação,
ciência, cultura e comércio.


 Todo esse arcabouço governamental recuperou a ilusão de supostas
verdades indubitáveis: primeiro, a marcha para a civilização é um projeto
moderno irreversível e positivo; segundo, o aprimoramento técnico,
educativo e político da população levaria a uma sociedade mais responsável,
consciente e satisfeita consigo mesma.


 Por trás da monumentalidade das instituições estabelecidas, de um espaço
público dominado por uma mídia elitizada composta de autoridades políticas
ou científicas e celebridades atraentes ou divertidas, uma multidão de
pessoas sem reconhecimento – sejam os pobres, vítimas de preconceito ou
os financeiramente modestos mas orgulhosos de seus pífios privilégios –
sentiu-se completamente excluída do chamado progresso civilizatório e
começou a duvidar de seus representantes.


 Com o desmonte neoliberal, generalizado a partir dos anos 1980, aumentou
o número de pessoas em estado precário que se sentiram alijadas da festa,
“barrados no baile”, literalmente, para citar uma canção de sucesso de 1983,
de Eduardo Dusek.


 À medida que os efeitos dessa desregulamentação foram se agravando, o
coro dos descontentes se amplificou nas redes sociais e estourou a frágil
legitimidade do espaço público.

III. Monomania capital

 A partir daí, sobressaiu a crise da credibilidade  nas instituições, nas
autoridades e nos especialistas.

 Um estranho fenômeno desponta nesse momento histórico. Se, no período
do Estado de bem-estar social, muitos supunham que a mentalidade geral se
direcionava para um progressivo desencantamento do mundo mágico e
religioso – bem como uma superação de concepções pessoais meramente
opiniáticas – movido por burocratas, cientistas e pesquisadores, arautos do
progresso civilizatório, agora, para o horror dos tecnicistas, disseminou-se
uma verdadeira suspeita opiniosa contra a ciência.


 A partir de pesquisas sociológicas, constata-se que a ciência depende de
uma confiança pública depositada nela para legitimar seu papel. Se ela se
torna motivo de desconfiança, então, vê-se um verdadeiro desencantamento
de parte preocupante do público com a ciência.


 Primeira surpresa: o que deveria desencantar, foi desencantado. Segunda
surpresa: ninguém suspeitava que o desencantamento científico sempre
dependeu do encantamento. Os desencantados sempre estiveram cegamente
encantados com a imensa presunção de serem desencantados.


 Depois de ser indubitavelmente comprovado que o aquecimento global
ocorre por responsabilidade humana, pela primeira vez ficou mais clara a
diferença entre a autonomia da ciência e os interesses econômicos
tecnocráticos que financiam extrativismo, monocultura e poluentes
ambientais.


 Tal diferença elucidou que o capitalismo fez predominar uma atitude
econômica de drástica intervenção no meio ambiente. Já os chamados
“povos primitivos” indígenas, vistos como ingenuamente encantados,
desenvolveram uma relação integrada com o mesmo, preservando a valiosa
fauna e flora tropical.


 Os índios, “encantados”, percebem nos proprietários brancos a fixação
idólatra pelo lucro rápido e máximo a todo custo. Antropólogos e
ambientalistas também tentam alertar a gravidade da monomania absurda
desses negociantes e apontam, nos índios, um novo modelo de tecnologia
sustentável: um modo de vida sem intervenção violenta no bioma.


 Nesse sentido, os encantados dão uma lição técnica para os desencantados.
Os índios foram, num louvável trabalho de milênios, os horticultores das
florestas tropicais.

IV. Encantamento tônico e tóxico



 Porém, nem todo encantado é belo. Os atuais negacionistas do clima e da
vacina, crentes em Terra plana e QAnon, opositores do “marxismo cultural”
ou, nas versões especificamente brasileiras, proponentes do Escola sem
Partido, são o lado pavoroso do encantamento.

 A espiritualidade do índio vive de uma atávica tradição oral; feministas
defensoras de saberes mágicos e medicinais oprimidos, chamados de
“feitiçaria”, resgatam tradições perdidas como forma de resistência ao
machismo por trás da exploração de trabalho não reconhecido de
cuidadoras. As crenças afro-brasileiras renovaram tradições africanas no
contexto da modernização nacional, fundaram terreiros e ressignificaram
encruzilhadas metropolitanas. Além desses exemplos mais recentes, o
maravilhamento da classe média europeia e norte-americana com o Oriente
(lutas marciais, yoga, meditação, alimentação e cultura) se tornou parte de
sua diversidade de opções. Podemos denominar esses exemplos de
variedades de encantamento tônico, renovador da espiritualidade
contemporânea contrária à idolatria capitalista.


 No caso dos negacionistas conspiradores, a recusa da ciência, tanto a
empírica quanto a humana, serve para respaldar precisamente as práticas
depredadoras que a responsabilidade científica não mais pode aceitar.
Podemos nomeá-los de encantamento tóxico. Tal adjetivo está na moda e é
frequentemente usado de forma inadequada, mas, nesse caso, seu sentido é
literal.


 Crenças que põem em dúvida dados científicos e acreditam em fantasias
opostas estão do lado dos devastadores do meio ambiente, da cultura e da
democracia. Só são céticos em relação à ciência para adorar os interesses
mais nocivos.

V. Magia e niilismo

 Percebe-se que hábitos intelectuais profundamente arraigados de desprezo
por concepções encantadas estão sendo postos em xeque. Tal suspeita tem
frequentemente levado muitos entusiastas a atacar o desencantamento
científico em bloco, como se ele fosse equivalente à sua instrumentalização
tecnocrática. Em muitos casos, nota-se uma verdadeira defesa do
encantamento identitário contra o desencantamento de “técnicos”; além de
uma associação indevida entre ciência e homem branco.


 Contudo, ao mesmo tempo, observa-se o ressurgimento maciço do
encantamento tóxico. O que os entusiastas do encantamento diriam deles?
Não, isso não é encantamento? Existe encantamento verdadeiro e falso?


 Prefiro colocar de outra maneira: o encantamento não é solução para todos
os problemas, assim como, igualmente, nunca foi o desencantamento. Para
combater o encantamento tóxico, não há outro remédio: é preciso crítica. E
crítica é uma operação desencantada; mesmo se usada por encantados.
Afinal,  quando encantados apontam a falácia dos desencantados, estão
desencantando o seu encantamento disfarçado.


 Diante de tantas reviravoltas conceituais, estamos passando por um
questionamento agudo dos pressupostos da crítica, ao implicar em
radicalização de uma visão perspectivista. Por outro lado, não há desistência
de critérios de aferição.


 O que deve ser motivo de cuidado da crítica é que não se pode cair num
novo binarismo de defesa dos encantados, pois, primeiro: há lugar para
encantamento e desencantamento tônicos que cooperam entre si;
segundo: todos nós somos desencantados com alguma coisa e
encantados com  outra.


 Muito se ilude quem se considera inteiramente desencantado, ou encantado.
Somos fruto da estranha geleia geral de magia e niilismo.

Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência


da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira
Margem.

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