O consentimento informado no Poder Judiciário Brasileiro
No âmbito da assistência médica, consentimento informado é entendido como a
comunicação recíproca entre médico e paciente. Neste processo estão inseridas todas a informações sobre os riscos e benefícios de determinado tratamento, que servirão como base para que esse paciente seja capaz de decidir autonomamente se quer ou não se submeter ao procedimento. A perspectiva da Bioética é importante nesse contexto, pois leva a discussão sobre consentimento informado para além dos seus aspectos meramente legais. No Brasil, não existem leis específicas que tratem desse tema, porém há várias normas gerais do ordenamento jurídico que tratam indiretamente o assunto e permitem afirmar que há uma fundamentação legal para a sua exigência. O CDC é geralmente aplicado à esses casos e fundamenta o consentimento informado, mas este não pode ser encarado apenas como uma exigência de consumo. Além dos fundamentos legais do consentimento informado, deve-se analisar de que forma o Poder Judiciário Brasileiro lida com as demandas judiciais de responsabilidade civil contra médicos e instituições hospitalares. Por isso, esse artigo teve como objetivo apresentar os principais resultados de uma pesquisa de jurisprudência nacional sobre consentimento informado. Métodos A pesquisa foi realizada em seis Tribunais de Justiça Estaduais: O TJ MG; o TJ RJ, o TJ RS, o TJ PR, o TJ SC e o TJ SP. Esses Tribunais foram selecionados pois suas bases de dados em mecanismos de pesquisa permitiram a busca pelos seguintes descritores: “consentimento informado”; “consentimento esclarecido”; “consentimento livre e esclarecido” e “termo de consentimento”. A coleta dos dados foi realizada entre janeiro de 2022 e janeiro de 2009. Para análise, foram coletadas ementas e partir delas, a íntegra de acórdãos (decisão proferida por um órgão colegiado, turma de julgadores) pertinentes ao tema da responsabilidade civil por falta de consentimento informado na assistência médica. Resultados Foi somente no ano de 2002 que a expressão “consentimento informado” foi utilizada em uma decisão judicial no Brasil. Nesse caso, um acórdão pioneiro do STJ afirmou a responsabilidade civil do médico e da instituição hospitalar pelos danos causados a uma paciente que foi submetida a um procedimento cirúrgico oftalmológico, sem que tivesse sido informada devidamente sobre o risco de cegueira, o qual ocorreu, gerando dano. Considerou-se nesse caso a falta de informação como violadora das regras éticas na relação entre médico-paciente. Essa decisão é diferenciada pois considera o consentimento informado uma exigência ética e não somente uma regra de consumo. Após isso, vários tribunais regionais passaram a julgar demandas similares, dando início a construção jurisprudencial brasileira sobre o tema. Entende-se por jurisprudência: “a forma de revelação do direito que se processa através do exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de decisões nos tribunais” (conjunto de decisões judiciais em um mesmo sentido proferida pelos tribunais). Nos seis referidos Tribunais do estudo, foram localizadas 264 referências a acórdãos, dos quais 67 se referiam a ações de responsabilidade civil em assistência à saúde. Foi observada uma distribuição não-homogênea nos descritores utilizados, no qual predominou o uso do termo “consentimento informado”, citado em 60% dos acórdãos. Este achado é relevante à medida que foram utilizadas diferentes expressões indistintamente, embora na literatura seja possível encontrar aplicações distintas para estes termos, na assistência à saúde ou na pesquisa envolvendo seres humanos. Ao avaliar as 67 referências de acórdãos, identificou-se a utilização de mais de um descritor para uma mesma referência em 7 casos, ou seja, em 7 situações, um mesmo acórdão foi capturado pela busca de mais de uma expressão relacionada ao tema. Nesse caso, os acórdãos analisados foram reduzidos a 60. Esta verificação faz-se perceber que a expressão “consentimento livre e esclarecido”, embora presente em norma nacional que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos, não tem sido utilizada isoladamente pelo Poder Judiciário para se referir aos casos de assistência à saúde. No que se refere a descrição dos réus, os profissionais foram demandados em 90% dos casos e as instituições em 65%. Houve uma demanda simultânea em 55% das ocasiões. Dos 60 acórdãos, 44 (73%) citaram algum fundamento normativo em função do consentimento informado. Houve uma preponderância do CDC em 60% dos casos. Apenas 1 acórdão (2%) citou a CF. Esses dados contrariam o que preconiza Rachel Sztajn, Doutora em Direito e Professora da USP que admite apenas o uso do CDC como instrumento de defesa secundária, por entender que a assistência médica não é uma atividade empresária e possui caráter personalíssimo (em direito, caráter personalíssimo é o que está relacionado à pessoa e não pode ser transferido para outros). Ela destaca: “a lei de defesa do consumidor há de aplicar-se, portanto, de forma parcimoniosa, sem constituir o meio de defesa principal dos pacientes, que deverão estar amparados pelo CC e, subsidiariamente, pelos Códigos de Ética Médica (...)” Observou-se que os acórdãos relativos ao consentimento informado na jurisprudência brasileira omitem o princípio da dignidade humana como fundamento normativo. Além disso, poucos referem o Art. 15 ou demais dispositivos dos direitos de personalidade previstos no CC de 2002. Apenas um acórdão entre os analisados cita a CF, assim se manifestando: “[...] o paciente deve participar na escolha e discussão acerca do melhor tratamento, tendo em vista os atos de intervenção sobre o seu corpo, observando-se que as consequências dos procedimentos médicos serão por ele suportadas”. Nesse contexto, surgiu a necessidade de munir o paciente com as informações claras e precisas sobre eventual tratamento médico, salientando riscos e contraindicações, para que ele possa decidir conscientemente manifestando o seu interesse, registrado pelo consentimento informado. Entre os 60 acórdãos, os autores alegaram tanto a ausência da informação, quanto imperícia como causadores de dano. Ao analisar os desfechos das demandas, observou- se que em 7 casos a imperícia foi considerada como a única causa do dano, assim estes casos foram excluídos da análise. Restaram 54 acórdãos, que foram avaliados em relação a uma possível associação entre os resultados das demandas como procedentes ou improcedentes e o uso do termo de consentimento como meio comprobatório da defesa. Destes, apenas 12 apresentaram termo de consentimento como prova, sendo que destes, 6 foram julgados procedentes e 6 improcedentes. 10 acórdãos improcedentes não apresentaram termo de consentimento, porém outros meios foram utilizados pela defesa do réu e foram considerados suficientes para provar o cumprimento dos deveres informativos. Verificou-se também quais foram os tipos de assistência médica que originaram as demandas judiciais e a grande maioria derivou de procedimentos invasivos. As demandas decorrentes de procedimentos cirúrgicos de esterilização merecem atenção especial devido à grande carga de expectativa do resultado pelos pacientes, visto que são considerados métodos contraceptivos irreversíveis e reclamam obtenção de consentimento muito bem esclarecido e documentado. Foram encontrados 6 acórdãos decorrentes de esterilização e todos partiram da alegação de imperícia médica, que resultou na falha do método contraceptivo e consequente gravidez indesejada. Em 4 decisões, os réus apresentaram termo de consentimento que informava sobre a não infalibilidade do método. Em dois casos essa prova foi considerada suficiente e os casos foram julgados improcedentes, porém, nos outros dois casos, o colegiado entendeu que os documentos não eram suficientes no cumprimento do dever de informar e os julgou procedentes. Já os dois casos que não apresentaram termo de consentimento, curiosamente foram improcedentes. Em um deles, a prova testemunhal foi suficiente e no outro a perícia foi conclusiva em aferir que os autores estavam cientes dos riscos inerentes ao procedimento. Percebe-se que o Poder Judiciário, nesses casos, não tratou as demandas sob uma perspectiva unicamente legalista e considerou válidos outros meios comprobatórios dos deveres informativos do médico. Por outro lado, também não considerou suficiente a mera elaboração de documentos como prova da efetiva informação. Conclusão O Poder Judiciário Brasileiro ainda demonstra certa confusão entre o significado do consentimento informado como processo e sua forma escrita documental. Ao observar casos procedentes que apresentaram o termo de consentimento, é importante refletir sobre a sua qualidade e é fundamental questionar a validade da utilização desses documentos como prova em juízo. Portanto, o termo de consentimento não deve ser prova incontestável do cumprimento dos deveres informativos do médico. Ao contrário do que se pretende, ao formular documentos vagos e imprecisos pode-se constituir um indício probatório de que o paciente não foi adequadamente informado. De outro lado, um termo de consentimento bem elaborado pode ser utilizado como ferramenta educacional no processo de comunicação entre o médico e o paciente e assim contribuir para a promoção da sua autonomia sanitária.