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PICI - Pesquisas Inovadoras na Ciência da Informação - Artigo

Educação Antirracista no Ensino da Biblioteconomia:


percepção discente
Erinaldo Dias Valério
Arthur Ferreira Campos

Resumo: Apresenta um estudo sobre a importância do ensino sobre as relações


raciais brasileira na formação de bibliotecários (as). Afirma que as discussões sobre
raça e racismo relacionadas à população negra, tem sido aos poucos inseridas nos
currículos em Biblioteconomia. Articula como objetivo, a partir da percepção discente,
analisar como o ensino das relações raciais pode contribuir para uma formação que
promova à igualdade racial. Realiza pesquisa de cunho bibliográfico, exploratória e
estudo de caso. Utiliza como instrumento de coleta de dados, o questionário aplicado
a 15 discentes. Argumenta, a partir dos resultados, que os (as) discentes acreditam
que a biblioteconomia necessita de estratégias de uma agenda antirracista no meio
acadêmico e na sociedade em geral. Finaliza apontando a necessidade de uma
discussão transversal que possa alcançar diferentes disciplinas na formação em
Biblioteconomia.

Palavras-chave: Educação antirracista. Ensino de biblioteconomia. Relações


étnicoraciais.

1 INTRODUÇÃO

Os debates referentes à educação antirracista no Brasil não são novos, o tema


vem sendo discutido desde a emergência e expansão do movimento negro brasileiro.
Vivemos numa sociedade não-linear, contemplando uma abrangência cultural, social
e moral, tornando as discussões raciais um escopo de problemática empíricas e
científicas.
Compreendemos que no âmbito da Biblioteconomia, discutir sobre as relações
raciais, com foco na população negra, subsidia a formação de bibliotecários (as)
capazes de atuar no combate ao racismo, preconceito e discriminação racial,
sistematizando informações em prol da redução das desigualdades raciais.

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Portanto, a inserção dos estudos sobre as relações raciais na grade de cursos
de graduação pode fomentar um pensamento crítico no (a) discente. Propomos aqui
uma discussão para a educação antirracista no ensino da Biblioteconomia, partindo
do seguinte questionamento: como os (as) discentes de Biblioteconomia da
Universidade Federal de Goiás (UFG) refletem sobre as questões raciais para uma
educação antirracista no contexto da área? Neste sentido, abordamos neste estudo o
objetivo de discutir, a partir da percepção dos (as) discentes do curso de
Biblioteconomia da UFG, como a inserção da temática das relações raciais pode
contribuir para uma formação acadêmica que promova a igualdade racial.
Trabalhamos com uma abordagem qualitativa delineada a partir da pesquisa
bibliográfica e da investigação exploratória, alicerçada ao estudo de caso com
discentes que cursaram a disciplina ‘Cultura Afro-brasileira: mediações da informação
étnico-racial’, ministrada no curso de Biblioteconomia da Faculdade de Informação e
Comunicação (FIC) da UFG. Utilizamos um questionário como instrumento de coleta
de dados.
A disciplina se propõe a discutir sobre os produtos culturais étnico-raciais como
suporte de informação, procurando entender a dinâmica das relações étnico-raciais e
os processos de mediação da informação para uma educação antirracista, focando na
população negra. Os temas e conceitos são discutidos fazendo relação com a
atuação e o fazer do (a) bibliotecário (a).

2 O PAPEL SOCIAL DA BIBLIOTECONOMIA E A POPULAÇÃO NEGRA

A Biblioteconomia possui seus pressupostos em técnicas milenares de


armazenamento de documentos, informação em suportes de argila, surgimento e
confecção de livros e, especificamente, na história dos livros e das bibliotecas. Ter
acesso à informação e conhecimento tanto na antiguidade quanto nos dias de hoje é
um mecanismo de poder (FOUCAULT, 1992), antes custodiado em mosteiros ou sob
a guarda de reinados. Naquele tempo, a informação era monopolizada e
disponibilizada para uma pouca parcela de sujeitos que, possuindo um título ‘nobre’,
teriam acesso a ela.
Observamos, hoje, que essa realidade foi modificada, porém em partes.
Evaristo (2009) indica que existe uma invisibilização do (a) negro (a) na literatura

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brasileira, o que, no campo prático da Biblioteconomia, mostra um monopólio para
assuntos a serem disponibilizados em acervos de unidades de informação. Nesse
contexto, é importante incentivar o acesso a literatura afro-brasileira para a
valorização da cultura negra (BRANDÃO, 2016) e, na conjectura do ensino da
Biblioteconomia e do seu papel social, essa prática de incentivo se torna implícita.
A necessidade em sistematizar o conhecimento, organizá-lo, estruturá-lo e
hierarquizá-lo tem indícios em épocas remotas, antes de Cristo, com o exemplo da
Biblioteca de Assurbanipal, rei da Assíria datando de VIII e VII a.C. e a clássica
Biblioteca de Alexandria, no século III a.C. (LEMOS; 1998; ORTEGA, 2004). A
Biblioteconomia surge a partir das práticas bibliográficas e das práticas da
documentação (ORTEGA, 2004) e no Brasil, seu ensino relaciona-se a uma iniciativa
de influência francesa e posteriormente norte-americana, consolidando o
estabelecimento do currículo mínimo em 1962 (MUELLER, 1985).
Mueller (1985) indica que a história do ensino profissional de Biblioteconomia
no Brasil passou por períodos de ‘influência’ e ‘fases’. De 1879 a 1929, sofre
influência tradicionalista francesa tendo a Biblioteca Nacional como líder institucional
desse ensino, ligando-se as práticas bibliográficas; de 1929 a 1962, foi fundado um
curso em São Paulo com influência norte-americana, com práticas ligadas a
automação, comportamento de usuários, sistemas de informação e tecnologias; no
ano de 1962, o currículo mínimo foi estabelecido, ocasionando a uniformidade dos
cursos.
Já na década de 1970, os cursos de Biblioteconomia se fortalecem e emergem
pelo Brasil e os conteúdos presentes no currículo mínimo começam a serem
modificados conforme o avanço tecnológico e o surgimento de cursos em nível de
pós-graduação. Em 1982, é aprovado um novo currículo mínimo, reformulando os
programas de ensino (MUELLER, 1985).
O primeiro curso de Biblioteconomia no Brasil surge em 1911 sob a
responsabilidade da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, com influência francesa.
Nesse tempo, sendo regulado pela Lei nº 2.356/1911, o curso tinha um ano de
duração e apenas quatro disciplinas, as quais eram: Bibliografia, Paleografia e
Diplomática, Iconografia e Numismática. Seu início data do ano de 1915 sendo extinto
em 1922. Em 1931, o curso volta a atividade com dois anos de duração, influência
americana e ainda com quatro disciplinas: Bibliografia, Paleografia e Diplomática

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(primeiro ano) e História Literária, Iconografia e Cartografia (segundo ano)
(MUELLER, 1985).
Esse início foi marcado por disciplinas técnicas, com aplicabilidades diretas na gestão
do acervo da Biblioteca Nacional.
Hoje, os cursos de Biblioteconomia duram cerca de quatro a cinco anos e
formam em Licenciatura ou Bacharelado, avançando seus estudos para além das
técnicas diretas a gestão dos acervos, isto é, com disciplinas que trabalham
perspectivas sociais ao tipo de sujeito que utilizará os recursos informacionais que a
unidade de informação oferece. Nesse contexto, os Projetos Políticos Pedagógicos
(PPC) regulamentam as disciplinas que serão abordadas na grade curricular para os
(as) discentes do curso.
A profissão do (a) bibliotecário (a) e a regulamentação do seu exercício são

“reconhecido[s] através da Lei Federal nº. 4.084/62, e seu papel tem sido fundamental
no desenvolvimento de redes, sistemas e serviços de informação em diferentes ramos
econômicos do país” (CAMPOS; FONTES; ARAÚJO, 2015, p. 112, acréscimo nosso).
Desse modo, é importante propor discussões nas matrizes curriculares com
disciplinas voltadas às relações raciais, à informação étnico-racial, às temáticas
voltadas a cultura, ao social e a incentivos para a inserção de todo tipo de literatura
nos acervos das unidades de informação, promovendo a igualdade e expondo o papel
social do (a) bibliotecário (a).
No ambiente acadêmico, por iniciativas individuais e em alguns casos,
coletivas, docentes discutem essas temáticas em disciplinas e projetos para ensino,
pesquisa e extensão, o que contribui para a formação antirracista.
Observamos que “o curso de Biblioteconomia, busca capacitar o futuro
profissional auxiliando-o a compreender o valor da informação e a reconhecer a
importância política, social, econômica e cultural da informação” (SILVA; VALÉRIO;
SILVA, 2010, p. 288). Concordamos com Valério e Silva (2017) na abordagem de que
a educação antirracista, visando a democracia brasileira, parte da necessidade de
instruir discentes, docentes, pesquisadores (as) e profissionais para a pluralidade
racial.
Destacamos as iniciativas do Movimento Negro para o ‘combate’ ao
preconceito racial na sociedade, ao passo que essas ações “oportunizaram que
fossem criados instrumentos normativos para a inclusão da História e Cultura Africana

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e Afrobrasileira em sala de aula” (SILVA; PIZARRO; SALDANHA, 2017, p. 8). No
contexto da Biblioteconomia e da Ciência da
Informação, os Projetos Pedagógicos de Curso (PPC’s), consoante as
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais (DCNs),
podem contribuir para discussões com a temática racial (SILVA; PIZARRO;
SALDANHA, 2017).
Valério e Campos (2019) indicam que os estudos sobre as relações raciais nas
grades curriculares dos cursos de Biblioteconomia incrementam a formação do (a)
bibliotecário (a) tendo a prerrogativa de uma sociedade menos desigual socialmente.
O (A) bibliotecário (a), sendo um mediador de informação, pode corroborar com a
educação antirracista em ambientes informacionais analógicos / tradicionais como as
próprias bibliotecas e outros tipos de unidades de informação, como também em
ambientes informacionais digitais ou híbridos, propondo a divulgação de temas que
refletem as relações raciais em bibliotecas digitais ou virtuais, repositórios, blogs,
redes sociais, entre outros. À exemplo disso, com o auxílio da informação e
tecnologia, esse (a) gestor (a) pode adquirir, em sua unidade informacional, materiais
de autores (as) negros (as) que trabalham ou não com as temáticas raciais e divulgá-
los em redes sociais da unidade, atraindo usuários e promovendo direta e
indiretamente a educação antirracista.
Mas para isso, o (a) profissional deve conhecer e possuir competência
informacional para promover o antirracismo. Esse processo pode acontecer mediante
a leitura e senso crítico ou mediante a apresentação de uma educação antirracista por
um (a) docente.
Desse modo, este artigo, é um relato da disciplina de “Cultura afro-brasileira:
mediações da informação étnico-racial” ofertada para o curso de Biblioteconomia da
UFG, propõe identificar a percepção dos (as) discentes quanto à temática racial -
população negra, no que abarca iniciativas antirracistas.
Os resultados da pesquisa de Silva (2016) visam compreender a inserção da
História e Cultura Africana e Afro-brasileira na formação do (a) bibliotecário (a),
mediante a percepção docente, identificando a necessidade de prática nos estudos
que competem as relações raciais – população negra. Diante disso, observamos que
nesse recorte temporal, existem instrumentos de propagação de estudos dessa
natureza, bem como análises que solidificam o ensino antirracista para a formação do
(a) bibliotecário (a).

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3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Abordamos a pesquisa bibliográfica para subsidiar o estudo, ao passo que


buscamos soluções (LIMA; MIOTO, 2007) relacionadas ao fomento das discussões
sobre a população negra no ensino em Biblioteconomia, e a investigação exploratória
abarca a fundamentação de conhecimento (MORESI, 2003) para uma educação
antirracista, visto que observamos que, no campo biblioteconômico, essas discussões
agregam considerável potencial de contextualização. Por meio da abordagem
qualitativa, trazemos reflexões pontuais sobre a importância da temática para a
formação dos (as) estudantes.
Como técnica de pesquisa extensiva, utilizamos o questionário como
instrumento de coleta de dados (MARCONI; LAKATOS, 2003). Em estudo de caso,
esse aparato utiliza 15 questionários aplicados aos (às) discentes que estavam
cursando a disciplina “Cultura afrobrasileira: mediações da informação étnico-racial”
no período 2017.2 (primeira vez que a disciplina foi ministrada). Para tabular os
dados, ilustramos as porcentagens em gráficos utilizando como softwares o Excel
(pacote Office).

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Nesta etapa, com a proposta de uma educação antirracista no ensino da


Biblioteconomia, a disciplina “Cultura afro-brasileira: mediações da informação étnico-
racial” dialogou com os (as) discentes sobre a temática racial, no contexto científico;
as experiências de abordagens das relações étnico-raciais na formação de
profissionais da informação; discutiu a produção de conhecimento sobre os (as)
negros (as) na Ciência no Brasil; apresentou as principais ações do movimento negro
organizado e a luta contra o racismo e informou sobre a influência da cultura africana
no processo de colonização do Brasil, nos aspectos econômicos, sociais e culturais.

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Ressaltamos que os questionamentos dessa disciplina procuram contribuir com
a formação de bibliotecários (as), visando à conscientização e dinamização do uso do
material bibliográfico, com vistas à implantação da Lei 10639/03.
Ilustramos, nas Figuras 1-3, os gráficos resultantes da análise com os (as)
discentes, de acordo com o que foi discutido na seção metodológica. O questionário
consta com perguntas, tanto objetivas como discursivas, divididas em seções sobre
‘Dados de caracterização’ e ‘Informações relativas ao tema da cultura afro-brasileira e
africana na Biblioteconomia e na
Biblioteca’. Em estrutura de organização, o gráfico da Figura 1 contempla parte dos
‘Dados de caracterização’ e os gráficos das Figuras 2 e 3 contemplam as
‘Informações relativas ao tema da cultura afro-brasileira e africana na Biblioteconomia
e na Biblioteca’.
Em seguimento, no âmbito dos ‘Dados de caracterização’, constatamos que
60% dos respondentes, tem entre 21 e 30 anos de idade; 33% tem entre 17 e 20 anos
e 7% estão entre 51 e 60 anos de idade. É notável que a maioria dos (as) discentes
são compostos por jovens, paralelo a uma parcela pequena de pessoas com mais de
50 anos.
Já referente às informações de gênero, constatamos que 60% dos
respondentes contemplam a identidade de Mulher (cis) e 40% possuem identidade
Homem (cis). Esses dados vão ao encontro da realidade vista em sala de aula, nos
cursos de biblioteconomia no Brasil, em que majoriamente a presença das mulheres
tem sido maior que a dos homens.
Na Figura 1, temos o gráfico que representa a cor/raça segundo os critérios do
IBGE.
Figura 1 - Raça/Cor (IBGE)

Fonte: dados de pesquisa (2019).

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De acordo com a Figura 1, constatamos que 47% dos respondentes são
brancos, 33% são pretos (as) e 20% são pardos (as). Assim como sugere o
movimento negro, a soma de pretos (as) e pardos (as) caracteriza o grupo da
população negra. Desse modo, por meio da soma, constatase que 53% dos (as)
discentes que cursavam essa disciplina eram pessoas negras.

A Figura 2 representa as ‘Informações relativas ao tema da cultura afro-


brasileira e africana na Biblioteconomia e na Biblioteca’. Para responder à pergunta
“Já foram trabalhadas, no curso, ações referentes à cultura afro-brasileira e
africana?”.
Figura 2 - Trabalho no curso referentes a cultura afrobrasileira

Fonte: Dados de pesquisa (2019).

Como consta na Figura 2, dos (as) respondentes, 53% disseram que ‘Sim’ e
47% disseram que ‘Não’. Vale aqui destacar que embora a maioria dos (as) discentes
tenham respondido que sim, o curso só oferta a disciplina específica de acordo com o
PPC, e tem inserido o tema na ementa da disciplina de Fundamentos de
Biblioteconomia. Ações como palestras, oficinas, minicursos, entre outras atividades,
não foram relatadas.
Na Figura 3, representando as ‘Informações relativas ao tema da cultura afro-
brasileira e africana na Biblioteconomia e na Biblioteca’, identificamos com a pergunta
“A trajetória do negro é estudada, como conteúdo, nas várias disciplinas que
possibilitam tratar do assunto no
Curso?”.

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Figura 3 - Trajetória do negro estudada como conteúdo

Fonte: dados de pesquisa (2019).

Em relação ao estudo da trajetória do (a) negro (a) como conteúdo nas


disciplinas da graduação, a Figura 3 aponta que 73% dos respondentes consideram
que a trajetória do negro “Não” é estudada como conteúdo e 27% dos respondentes
consideram que “Sim”. É um número baixo, porém com potencial de mudança devido
as discussões da temática em disciplinas específicas e as ações pessoais de
docentes que procuram estabelecer uma nova percepção sobre as relações raciais e
o fazer do (a) bibliotecário (a).

Por fim, é relevante ressaltar que 73% dos respondentes presenciaram atitudes
racistas na Universidade, o que é um número considerado alto e preocupante. Devido
a isso, fundamentamos que o tema das relações raciais deve ser disseminado no
âmbito da Biblioteconomia e de outros cursos, para que os (as) discentes se munem
de informações étnico-raciais para contestar de maneira consciente a inexistência de
uma democracia racial e conheçam os caminhos para combater o racismo.

4.1 Projetos desenvolvidos na disciplina

Esta seção apresenta alguns projetos que foram desenvolvidos pelos (as)
dicentes durante a disciplina. É importante frisar que todos eles estão articulados de
forma direta com a prática e o fazer profissional do (a) bibliotecário (a).

 Contação de Histórias Afro-Brasileiras na Creche da Universidade Federal


Goiás - proporcionou nas crianças o interesse em histórias e contos da cultura
africana, através de contação de história;

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 Projeto de ação e observação na Escola Municipal Marcos Antônio Dias
Batista: um estudo sobre as relações raciais – descontruiu e refletiu sobre a
ideia do mito da igualdade racial, por meio da discussão fílmica no ambiente
escolar.

 Análise de acervo da Biblioteca Libris: recorte racial e infantil - analisou o


acervo da biblioteca modelo Laboratório do Livro, Leitura Literatura e Biblioteca
(LIBRIS), localizada na Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da
UFG, à respeito da existência de obras literárias infantis na coleção da mesma
que retratem a discussão racial com a temática para crianças e que possuam
em seu conteúdo personagens negros(as), à disposição do público que faz uso
da unidade.

 Professores(as) negros(as) da Faculdade de Letras da UFG - identificou os/as


professores/as negros/as lotados/as na Faculdade de Letras da UFG. Divulgou
na Biblioteca da Faculdade de Letras, por meio de cartazes, quem são,
quantos são e quais as suas funções e capacitações, bem como, suas obras
acadêmicas e científicas, com o intuito de dar visibilidade as/aos
professoras(os) negras(os);

 Mulher Negra Brasileira - realizou uma exposição intitulada Mulher Negra


Brasileira, na Biblioteca Central da Universidade Federal de Goiás. A exposição
foi iniciada e finalizada na biblioteca central da UFG, depois disso, ela foi
levada para uma biblioteca escolar de uma escola pública do estado e foi
exposta no dia 20 de novembro, dia em que se comemora o Dia da
Consciência Negra. Além disso, a exposição foi fixada no corredor da FIC, e
contemplou alunos(as), professores(as) e técnicos(as) dos cursos de
jornalismo, publicidade e propaganda, jornalismo, biblioteconomia e relações
públicas, e interessados(as) que passavam pelo local. Além disso, a exposição
foi utilizada como instrumento de ação cultural em um Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC)1 aplicado em uma biblioteca escolar de uma instituição pública
do estado de Goiás, como pode ser observado nas figuras 4 a 7.

1 SILVA, Quedma Ramos da. Biblioteca escolar na luta antirracismo: reflexões sobre a aplicaçãoda Lei 10.639/2003. 2017. 90
f. Trabalho de Conclusão de Curso (BAcharelado em Biblioteconomia) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017.

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Foram expostas 22 biografias dessas mulheres, a saber: Lélia Gonzalez,
Esperança Garcia, Elizethe Cardoso, Clementina de Jesus, Ivete Sacramento, Fátima
Oliveira, Mãe Aninha, Marta Cezaria de Oliveira, Maria Rita Ferreira, Maria Firmina,
Tia Ciata, Mãe Menininha dos Gantois, Dona Zica, Auta de Souza, Chiquinha
Gonzaga, Chica Machado, Rurany Ester Silva, Thereza Santos, Ana das Carrancas,
Antonieta de Barros, Dulce Pereira e a Carolina Maria de Jesus.

Figura 4 – Exposição “Mulher negra brasileira” Figura 5 – Exposição


“Mulher negra brasileira”

Fonte: Silva (2017). Fonte: Silva (2019).

Figura 4 – Exposição “Mulher negra brasileira” Figura 4 – Exposição


“Mulher negra brasileira”

Fonte: Silva (2019). Fonte: Silva (2019).

Conforme Silva (2017), a objetivo da exposição foi apresentar um olhar crítico


sobre a contribuição da mulher negra na construção da sociedade brasileira, tirando
da invisibilidade as ações desenvolvidas por elas contra o racismo brasileiro. Além

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disso, tinha a intenção também de descontruir a imagem estereotipada da mulher
negra.

Uma exposição como essa, evidencia a necessidade de questionamentos


acerca da importância da mulher negra na sociedade brasileira e o papel pedagógico
da escola e da biblioteca na luta contra a discriminação racial tanto em sala de aula
quanto na sociedade. Pois, acreditamos que o ambiente escolar pode ser um grande
aliado na luta contra o racismo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos relevantes os estudos que compreendem e analisam a


formação antirracista na Biblioteconomia para uma sociedade igualitária para todas as
populações. O ensino sobre as relações raciais na formação dos (as) futuros (as)
bibliotecários (as) oportuniza a visibilidade e a representatividade da população negra,
ainda em constante luta contra o racismo.

A formação antirracista viabiliza o acesso e uso da informação por todos (as),


dando visibilidade a grupos historicamente discriminados descontruindo preconceitos.
Dessa forma, o (a) bibliotecário (a) antirracista utiliza esse conhecimento para que em
sua unidade de informação possa classificar, catalogar e organizar materiais
bibliográficos que promovam à igualdade racial; atender as necessidades
informacionais de diferentes perfis de sujeitos; desenvolver atividades culturais
inclusivas, entre outras.
O objetivo deste artigo é atingido conforme seu percurso metodológico.
Delineado com os dados obtidos com os (as) alunos (as) que cursaram a disciplina
“Cultura afro-brasileira: mediações da informação étnico-racial”, na Universidade
Federal de Goiás, inferimos que esse tipo de discussão deve ser incentivado porque
tivemos um quantitativo de apenas 27% de sujeitos que se interessam por estudos
sobre a trajetória do (a) negro (a), porém 73% dos sujeitos já sofreram racismo na
referida Instituição. Isso nos faz perceber a necessidade da representatividade do (a)
negro (a) intencionando a educação antirracista na UFG.

Salientamos a criação de variados projetos que evidenciam a visibilidade da


população negra em consequência dessa disciplina supracitada. Foram desenvolvidos

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também, trabalhos de conclusão de curso apontando a necessidade de mais
disciplinas com discussões que focassem as relações racias. As possibilidades de
pesquisa decorrentes deste estudo indicam um parâmetro social necessário à luta
contra o racismo, oportunizando discussões que responsabilizem os cursos de
biblioteconomia na formação de profissionais concientes sobre as relações raciais
brasileiras para o enfrentamento do problema racial que afeta as unidades de
informação e a sociedade em geral.

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PICI - Pesquisas Inovadoras na Ciência da Informação - Artigo

BIBLIOTECONOMIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UMA PERSPECTIVA


DECOLONIAL

Igor Soares Amorim


Ueliton dos Santos Alves

Resumo: Discute os conceitos de colonialidade e decolonialidade no contexto


epistemológico da Biblioteconomia e Ciência da Informação. É questionado em que se
corporifica a colonialidade presente na epistemologia da Biblioteconomia e da Ciência
da Informação, bem como é procurado meios de ruptura de tal discurso, na direção de
uma perspectiva decolonial. Para tanto, o conceito de epistemologia é explorado.
Então, é recuperado o histórico da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, de
modo a enfocar as evidências as condições coloniais que formaram ambas as áreas.
Em seguida, discute o conceito de colonialidade e decolonialidade. Finalmente, o
caráter dual da Biblioteconomia e da Ciência da Informação é constatado por ser um
espaço de saber e poder que tanto pode reforçar como resistir ao poder da
colonialidade.

Palavras-Chave: Colonialidade. Decolonialidade. Biblioteconomia. Ciência da


Informação. Epistemologia.

1 INTRODUÇÃO

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Tanto a Biblioteconomia como a Ciência da Informação são áreas destinadas
ao controle da informação e do conhecimento. Isso significa que ambas têm um
grande impacto na rede das ideias que circulam socialmente.
A sociedade é composta por tensões e forças que a configuram como um
espaço de disputa em seus diversos domínios. A Biblioteconomia e a Ciência da
Informação legitimam-se assim como espaços configuradores de um saber-poder que
é transversal.
Um saber se constitui enquanto tal conforme as relações de poderes se
conformam em tensões geradoras dos próprios saberes (FOUCAULT, 2019), assim
não é um equívoco esperar que a Biblioteconomia e a Ciência da Informação
consolidem discursos que conservem as estruturas sociais, políticas e econômicas
desse mundo desigual. É sabido que tanto a Biblioteconomia como a Ciência da
Informação emergem no hemisfério norte do planeta e, como tal, foram adequadas a
contextos específicos. A cultura moderna ocidental é fortemente marcada por um
caráter colonialista, o que culminou com a supressão de culturas e experiências de
diferentes grupos e povos em favor de uma homogeneização a partir do mundo
europeu, branco e masculino.
Nesse sentido, almeja-se averiguar em que se corporifica a colonialidade
presente na epistemologia da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, bem como
abrir caminhos para o estabelecimento de uma perspectiva decolonial nas mesmas.
Para alcançar tal meta, recorre-se ao desenvolvimento histórico de ambas as
áreas a fim de avaliar como essas colocaram-se frente às demandas de grupos
marginalizados, das minorias. Também é necessário identificar elementos e
propriedades presentes nas epistemologias da Biblioteconomia e da Ciência da
Informação que apontem uma manifestação colonialista, a fim de reconhecer
criticamente o viés dominante nas áreas. Por fim, é necessário, em diálogo com um
referencial crítico, cartografar linhas decolonizadoras para a Biblioteconomia e a
Ciência da Informação. Esses são os principais objetivos deste estudo, que se
justificam na necessidade de fortalecer uma visão crítica da área em favor da
democratização da informação e do conhecimento.
Esta pesquisa é caracterizada como teórica e exploratória e usa como método
o estudo de bibliografias que tratam das configurações epistemológicas da área da
Biblioteconomia e Ciência da Informação.

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A colonialidade obstrui e silencia o conhecimento, sua complexidade e
diversidade. Esta pesquisa justifica-se pela proposição de novas chaves para
compreensão da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, não só em seus relatos
históricos hegemônicos. Justifica-se também por colaborar com a construção de uma
Biblioteconomia e Ciência da Informação articulada às necessidades específicas da
situação brasileira e latino-americana.
Na sequência, aborda-se a noção de epistemologia, adentrando-se nas suas
condicionantes de poder. Em seguida, discute-se os aspectos teóricos e históricos da
Biblioteconomia e da Ciência da Informação, para finalmente, refletir sobre a
colonialidade e decolonialidade presente na Biblioteconomia e na Ciência da
Informação.

2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE EPISTEMOLOGIA

A palavra epistemologia é relativamente nova, surge com o idealismo moderno,


porém, seu campo de estudo nasceu provavelmente na Grécia Antiga, com a
preocupação filosófica com o saber, mais especificamente, com a dúvida sobre como
o conhecimento é possível. Por tomar o conhecimento como objeto, a epistemologia
também pode ser designada pelo termo teoria do conhecimento. Moser, Mulder e
Trout (2008, p. 6) afirmam que “epistemologia é o estudo filosófico da natureza, das
fontes e dos limites do conhecimento”.
Platão, por exemplo, pretendeu saber o que era o conhecimento e quais suas
benesses, enquanto Locke buscou mapear as operações do processo de
compreensão humana; já Kant estudou as condições da possibilidade da
compreensão humana. No fim do século XIX e início do século XX, os estudos sobre
a epistemologia passaram a concentrar esforços para compreender o conhecimento
científico. Assim, se contextualiza a epistemologia de Russell ou Popper, bem como
as reflexões epistemológicas de campos especializados feitas pelos próprios
especialistas. Nesse sentido, podese notar que a epistemologia se constitui como um

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conjunto discursivo que enfoca um saber que carrega consigo o valor do “verdadeiro”.
A epistemologia constitui-se historicamente como um estudo do “conhecimento
verdadeiro”. Para Moser, Mulder e Trout (2008), a epistemologia tradicional afirma a
existência de três elementos individualmente necessários e conjuntamente suficientes
ao conhecimento: a justificação, a verdade e a crença, todavia os próprios autores
destacam que essa perspectiva foi relativizada por uma “racionalidade social”, que
questionou a rigidez da noção de “verdade”.
É importante lembrar da noção de dispositivo. Deleuze (1996) afirma que um
dispositivo é um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente. E, no
dispositivo, “as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogêneos por sua
própria conta, como o objecto, o sujeito, a linguagem, etc., mas seguem direções,
traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se
afastam uma das outras” (DELEUZE, 1996, n.p.). A epistemologia é um dispositivo,
nesse sentido, composto por linhas que variam, composto por um arquivo, mas
também por devires. O dispositivo da epistemologia funciona não só para investigar o
conhecimento, mas também para definir o que é e o que não é conhecimento.
Quando um epistemólogo se coloca numa posição de neutralidade a fim de pesquisar
o processo de conhecer sem uma perspectiva crítica, promove uma “segregação” sob
aquilo que é “científico”, “de valor”, “evoluído”, “desenvolvido” em contraponto com
aquilo que não o é, por não atender critérios característicos à um restrito grupo de
conhecimento que substanciou a definição destes mesmos, ou por sequer ser tomado
como saber candidato.
De acordo com Kilomba (2005, p. 5), a epistemologia define:

1. (os temas) quais temas ou tópicos merecem atenção e quais questões


são dignas de serem feitas com o intuito de produzir conhecimento verdadeiro.
2. (os paradigmas) quais narrativas e interpretações podem ser usadas
para explicar um fenômeno, isto é, a partir de qual perspectiva o conhecimento
verdadeiro pode ser produzido. 3. (os métodos) e quais maneiras e formatos
podem ser usados para a produção de conhecimento confiável e verdadeiro.

Assim, a autora sublinha que a epistemologia não define apenas o como


produzir conhecimento, “mas também quem produz conhecimento verdadeiro e em
quem acreditamos" (idem). Assim, questiona-se: quem produz o conhecimento
verdadeiro da Biblioteconomia e da Ciência da informação? Quem estabelece quais

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são os temas, os paradigmas e os métodos dessas áreas? Nesse sentido, abordamos
a noção de epistemicídio, que refere-se ao descredenciamento da cultura e da
racionalidade daquilo que é estranho, daquilo que vem do Outro. Santos (1995) afirma
que o epistemicídio é inerente ao genocídio vinculado à dominação europeia do
mundo na modernidade, cujo papel dentro da dinâmica de poder é subalternizar,
subordinar, marginalizar, ou ilegalizar não apenas aqueles saberes constituídos pelas
minorias em geral, mas também os próprios portadores desses saberes.
De acordo com Carneiro (2005, p. 97), o epistemicídio é “um processo
persistente de produção da indigência cultural” que se dá em duas principais vias:
pela negação da racionalidade do Outro e pela imposição cultural. Quijano (2007)
aponta que após um período de repressão sistemática e expropriação dos
conhecimentos dos povos colonizados, os colonizadores impuseram seus padrões,
crenças e imagens não apenas como modo de inibir a produção cultural dos
dominados, mas como uma forma de controle social e cultural.

The colonizers also imposed a mystified image of their own patterns of


producing knowledge and meaning. At first, they placed these patterns far out
of reach of the dominated. Later, they taught them in a partial and selective
way, in order to coopt some of the dominated into their own power institutions.
Then European culture was made seductive: it gave access to power. After all,
beyond repression, the main instrument of all power is its seduction. Cultural
Europeanisation was transformed into an aspiration. It was a way of
participating and later to reach the same material benefits and the same power
as the Europeans: viz, to conquer nature - in short for ‘development’. European
culture became a universal cultural model.
(QUIJANO, 2007, p. 169).

Para o autor, o genocídio na América Latina, considerado o caso mais extremo


de colonização cultural europeia, transformou as altas culturas deste continente em
subculturas camponesas, condenadas à oralidade: “os sobreviventes não teriam
outros modos de expressão intelectual e plástica ou visual formalizada e objetivada,
senão através dos padrões culturais dos governantes, ainda que os subvertendo em
certos casos para transmitir outras necessidades de expressão” 2 (QUIJANO, 2007, p.
170, tradução nossa).
Neste contexto, Quijano (2007) destaca que há uma crise do paradigma de
conhecimento europeu e tece algumas faces dessa crise, que se estrutura
principalmente pela deficiência do pressuposto que estabelece que o conhecimento é
produto da relação entre “sujeito” e “objeto”.
2 Original: “the survivors would have no other modes of intellectual and plastic or visual formalized and objectivised expressions, but through
the cultural patterns of the rulers, even if subverting them in certain cases to transmit other needs of expression”

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Isso porque tanto o “sujeito” quanto o “objeto” são elementos idênticos a si mesmos, o
primeiro se auto constitui em um movimento de reflexão, e o segundo se define por
suas propriedades. Ainda, ambos diferem por natureza. Essa configuração inviabiliza
uma compreensão intersubjetiva e dialógica. Por conta disso, não há espaço para
compreensão do Outro, a não ser enquanto elemento objetivado, o que é um
obstáculo ao reconhecimento do socius enquanto uma totalidade. Assim, a cultura
europeia ocupou um espaço de sujeito, e as outras tantas culturas, como objetos e,
enquanto tais, são diferentes por natureza e, portanto, viabilizando uma hierarquia
entre o europeu e os outros.

The European paradigm of rational knowledge, was not only elaborated in the
context of, but as part of, a power structure that involved the European
colonial domination over the rest of the world. This paradigm expressed, in a
demonstrable sense, the coloniality of that power structure.
(QUIJANO, 2007, p. 174).

3 ASPECTOS HISTÓRICOS E EPISTEMOLÓGICOS DA


BIBLIOTECONOMIA E DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Internacionalmente é comum o emprego do termo Library and Information


Science, pressupondo um sentido de unidade. No Brasil, por vezes o termo Ciência da
Informação incorpora a noção de Biblioteconomia, como se os aspectos bibliográficos
e biblioteológicos compusessem parte de um grupo maior de saberes, a Ciência da
Informação. Essa perspectiva deriva de uma visão positivista, construída pelos
documentalistas belgas do século XIX, Otlet e La Foteine. No Tratado de
Documentação de Otlet (2018), há um manifesto em favor de uma grande ciência (ora
referida como Documentologia) que abarcaria os problemas das bibliografias e das
bibliotecas.
Já a noção Ciência da Informação estabilizou-se no pós-guerra, quando a
Europa se reconstruiu e os Estados Unidos tornaram-se referência ocidental em
diversos aspectos, dentre esses a própria Ciência. Em solo estadunidense o termo
“documentação” não criou aderência como na Europa ocidental, e passou a concorrer
com a noção de “Ciência da Informação” revigorada pelos estudos em information
retrieval.
De qualquer modo, é importante demarcar aqui uma diferença crucial entre o
que se passava até então no hemisfério norte e sul, sob nosso tema de interesse. O

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Iluminismo na Europa e nos Estados Unidos propiciou a difusão de livros e bibliotecas
e, as populações desses locais tiveram acesso massivo à um sistema educacional e
cultural, o que possibilitou uma relação e significação das pessoas com o livro, com a
biblioteca e com o conhecimento de uma forma distinta do que ocorreu em grande
parte do globo Ainda hoje não é fácil o acesso a livros e a outras tecnologias de
informação, assim como não são difundidas as competências técnicas e culturais para
apropriação das ideias e inclusão nos debates públicos locais, nacionais ou
internacionais. Nesse sentido, faz-se necessário um resgate histórico da
Biblioteconomia e da Ciência da Informação separadamente, de modo a enfatizar os
problemas específicos de cada uma das áreas.
Fonseca (2007) aponta que epistemologicamente a Biblioteconomia se define
pelo conhecimento de regras por meio das quais os livros são organizados em
espaços apropriados, como, prateleiras, estantes, armários e salas. Nesse sentido, a
Biblioteconomia tem uma relação fundante com a “gestão das bibliotecas”. Antes do
século XVII, não era explícito um campo do conhecimento próprio para as questões
da biblioteca. Esses conhecimentos e práticas eram pertinentes ao domínio da
Bibliografia, que se caracterizava sobretudo pelo estudo das técnicas de descrição e
ordenação de registros de documentos em listas, bibliografias e catálogos.
Nos séculos XVII e XVIII, motivado pelo surgimento das bibliotecas nacionais e
públicas, pela ampliação das coleções e da alfabetização das populações da Europa
ocidental, os problemas relacionados às bibliotecas e a relação deste espaço com os
livros e os leitores tiveram um interesse renovado. Uma das questões fulcrais nesse
contexto foi a discussão em torno da organização dos catálogos de bibliotecas, se
deveria ser alfabética ou sistemática (por assunto). Mais tarde, essa questão da
ordenação impactaria também a própria coleção de livros e, em ambos os casos, nos
catálogos e no acervo, a classificação de assunto foi a versão que mais ganhou
adeptos. Com os problemas relativos ao contexto das bibliotecas, a Biblioteconomia
se diferencia da Bibliografia, tomando para si questões relacionadas à gestão da
instituição, ao seu acervo e aos seus frequentadores. As diferenças entre essas duas
áreas tomaram tamanha proporção que a Biblioteconomia terá primazia daquela no
final do século XIX.
Nesse contexto, a Biblioteconomia adquire mais consistência teórica, quando o
catálogo e a organização dos livros requerem trabalho de pesquisa. Diversos

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europeus e estadunidenses concentraram esforços sobre os processos de descrição e
classificação de livros a fim de garantir o acesso à informação.
Além disso, há que se ratificar a função social e política da biblioteca, de seu
profissional e de sua ciência, no contexto europeu e estadunidense. A biblioteca foi
ressignificada sob os ideais Iluministas com a Revolução Francesa, em 1789, quando
visualizou o acesso ao conhecimento como ferramenta de emancipação cidadã, cuja
finalidade seria a evolução humana por meio da “razão” ao encontro da “verdade”
(SILVA et al., 2019). Até então as bibliotecas tinham o acesso restrito e o foco por
vezes delimitado na preservação dos livros.
O Iluminismo de fato abriu as portas das bibliotecas para um número maior de
pessoas, mas há que se compreender criticamente qual a imagem que tal período
cristalizou sob as noções de “cidadão”, “razão” e “verdade”, noções que originalmente
não se enquadram em outro esquema epistemológico senão o Europeu. A concepção
moderna de “cidadão” se consolidou no século XVIII e refere-se aos letrados que
participavam de círculos privilegiados e de discussões sobre os interesses coletivos.
Tais debates pressupunham que o cidadão precisava se informar por meio dos textos
escritos, para então discutir e votar. Essa noção entra em crise no século XX a partir
da crítica e da reinvindicação de minorias, como mulheres, negros, operários,
camponeses, o que provocou uma mudança lenta que ampliou a esfera pública e,
consequentemente, a dimensão da participação democrática (CANCLINI, 1999).
A razão toma centralidade no Iluminismo a ponto de Kant (1990) afirmar que o
iluminismo é a saída do homem da menoridade por sua nova capacidade de usar a
razão sem orientação de outrem. A razão já entronizada nas ciências, torna-se
soberana no século XVIII pautando-se em dois principais pressupostos: “a idéia de um
universo totalmente acessível ao racional” e “a concepção de uma humanidade guiada
pela Razão” (MORIN, 2005, p. 24). A razão coroou o discurso científico como o
“verdadeiro”, motivado pelo sucesso das ciências físicas, químicas e biológicas ao
longo dos séculos XVII e XVIII. Nesse sentido, uma hierarquia passou a imperar na
valoração dos saberes, criando uma cisão entre o conhecimento produzido por
cientistas, presunçosamente “verdadeiro”, e todos os outros. A partir da descoberta do
inconsciente, das atrocidades experienciadas nas Guerras Mundiais, de movimentos
artísticos vanguardistas, filosofias críticas e a iminência das catástrofes derivadas da
exploração desenfreada dos recursos naturais, tal perspectiva de razão e verdade foi
questionada e tem passado por um redimensionamento tanto funcional quanto

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conceitual (MORIN, 2005). É nesse contexto que se insere a noção de Ciência Pós-
Moderna de Boaventura de Sousa Santos, bem como a de paradigma da
complexidade de Morin.
De qualquer modo, a Biblioteconomia desenvolveu-se sob o signo de tais
concepções. O Iluminismo de fato ampliou o acesso à informação no contexto
europeu. Ainda, a Revolução Científica e Industrial atualizou a função das bibliotecas
entre o final do século XIX e início do século XX, que passaram a preocupar-se com a
alfabetização e a formação educacional e cultural dos trabalhadores. Nesse cenário
que a Biblioteconomia passa a pensar a tríade usuárioconhecimento-coleção com
maior rigor (NITECKI, 1968).
Já a Ciência da Informação nasce em meados do século XX, vinculada aos
problemas da comunicação científica que, embora fomentada pelo contexto de Guerra
Fria, apresentava empecilhos ao desenvolvimento científico. Barreto (2008, n.p.)
aponta dois principais vértices que impulsionaram a Ciência da Informação. Primeiro,
a publicação do texto As we may think de Vannevar Bush em 1945, no qual descreve
“sobre o problema da informação em ciência e tecnologia e os possíveis obstáculos
que poderiam ser encontrados na sua organização e repasse a sociedade”. O
segundo vértice foi a realização em 1948 da Royal Society Scientific Information
Conference em Londres, na qual mais de 300 pesquisadores de diversos países
(predominantemente do hemisfério norte) discutiram os problemas da organização e
acesso da informação e instituíram o campo da Ciência da Informação. Araújo (2014)
apontou quatro fatores principais que condicionaram o surgimento da Ciência da
Informação: a) A dissociação entre bibliografia e biblioteconomia e documentação; b)
A institucionalização da noção de “informação” nos currículos, planos e designações
das organizações da área; c) A demanda por produtos documentários (índices e
resumos) mais especializados; e, d) O desenvolvimento tecnológico que permitiu a
separação da informação de seu suporte analógico, o que levou a pesquisa sobre a
recuperação automática da informação (information retrieval).
De acordo com Borko (1968), a Ciência da Informação se atenta às
propriedades e aos comportamentos da informação, às forças que a constrange e às
técnicas que a processa e permitem sua armazenagem, recuperação e disseminação.
Para Araújo (2014), há na Ciência da Informação uma crítica às disciplinas que
abordam os documentos e a informação sob uma lógica custodial, contudo, tal crítica
não foi suficiente para dissociar a área de seu anseio positivista, o que só veio

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acontecer no final do século XX, quando os estudos informacionais passaram a
dialogar com a teoria crítica e a tecer abordagens historicistas e hermenêuticas, como
reforça Capurro (2003).
É notório que a Biblioteconomia e a Ciência da Informação se desenvolveram
no contexto da Europa e América do Norte, sendo a primeira movida pelos efeitos do
Iluminismo e a segunda da competitividade militar, científica e econômica
característica do século XX. Embora tais áreas tenham se desenvolvido na América
Latina, há que se discutir em que medida tal projeto se alinha à uma perspectiva
colonial.

4 COLONIALIDADE E DECOLONIALIDADE NA EPISTEMOLOGIA DA


BIBLIOTECONOMIA E DA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Segundo Quijano (2014), a colonialidade trata da constituição de um padrão de


poder que não se restringe às questões formais de exploração ou dominação colonial,
mas envolve as diversas maneiras pelas quais as relações intersubjetivas se articulam
a partir de posições de domínio e subalternidade. Nesse sentido, a colonialidade é
uma prática que por meio da ciência moderna/colonial produziu um modelo único,
tendo como referência a Europa, pretensamente considerado universal e objetivo, o
que pode ser chamado de eurocentrismo. De acordo com Quijano (2007), a
colonialidade é um sistema de poder centrado na Europa que se estruturou a partir da
classificação social da “raça” que organizou identidades, políticas e a divisão do
trabalho, e que se desdobrou em novas configurações de dominação ao longo dos
séculos.
A fim de compreender melhor a colonialidade convém discerni-la daquilo que é
o colonialismo. Segundo Aníbal Quijano (2014) e Enrique Dussel (1994), o
colonialismo denota uma relação política e econômica de dominação colonial de um
povo ou nação sobre outro, já a colonialidade trata da constituição de um padrão de
poder que não se restringe às questões formais de exploração ou dominação colonial,
mas envolve as diversas formas pelas quais as relações intersubjetivas se articulam a
partir de posições de domínio e subalternidade.
Como o colonialismo, a colonialidade apresenta um elemento material de
exploração, contudo implica também em uma formatação ideacional e identitária.
Assim, a colonialidade é uma prática que sobrevive mesmo quando não há mais uma

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relação político econômica entre o colonizador e a (ex-)colônia, ou seja, a
colonialidade pode existir sem o colonialismo, por meio de uma imposição que se
desdobra nas relações de aprendizagem, no senso comum e na autoimagem dos
povos.
Os estudos críticos da colonialidade surgem, assim, com um movimento
político, intelectual e interdisciplinar e que entre seus primeiros interlocutores teve
Albert Memmi, com a obra Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador,
de 1947, Aimé Cesárie, com o livro Discursos sobre o colonialismo, de 1950, Franz
Fanon, com Os condenados da terra, de 1968, e Edward Said, com a obra
Orientalismo: o oriente como invenção do Ocidente de 1978, conforme aponta Aguiar
(2016). Ainda, na década de 1970, sob a direção do historiador indiano Ranajit Guha,
é composto o (Grupo de Estudos Subalternos), o qual ganhou notoriedade nos
Estados Unidos e Inglaterra (AGUIAR, 2016).
Os Subaltern Studies inicialmente pretendiam analisar a historiografia da Índia
feita por ocidentais europeus e também a historiografia eurocêntrica produzida por
indianos. Nesse contexto é fundado nos Estados Unidos o Foreign Culture (Culturas
Estrangeiras), grupo de estudo sobre as perspectivas “pós-coloniais”. Dos debates
desse grupo percebe-se a necessidade de se pensar uma nova repolitização da
teoria, calcada nas especificidades da América Latina (AGUIAR, 2016).
Essa perspectiva latino-americana dos estudos pós-coloniais estabelece-se
quando John Berverly, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, dentre outros pensadores
fundam em meados de 1990 o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos, nos
Estados Unidos, cujo um dos marcos foi a publicação do Manifiesto Inaugural, no qual
se colocam o desafio de “buscar nuevas formas de pensar y de actuar políticamente”,
endossando um movimento contemporâneo em que “varios intelectuales de la región”
estão a revisar “algunas epistemologías previamente establecidas en las ciencias
sociales y las humanidades”, a fim de alcançar “una reconceptualización del
pluralismo y de las condiciones de subalternidad al interior de sociedades plurales”
(GRUPO LATINOAMERICANO DE ESTUDIOS SUBALTERNOS, 1995, n.p.).
Mais tarde um novo grupo foi fundado, o Grupo Modernidade/Colonialidade
inicialmente, hoje chamado de Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (CMD),
sob a crítica principalmente de Walter Mignolo de que o grupo anterior não rompia o
suficiente com autores eurocêntricos (AGUIAR, 2016).

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O CMD tem como principal força orientadora uma reflexão contínua sobre a
realidade cultural e política latino-americana, incluindo o conhecimento subalternizado
dos grupos locais (ESCOBAR, 2003). Uma das principais críticas do CMD é sobre os
conceitos de periferia e subdesenvolvimento, pois tais nomenclaturas justificam em
alguma medida a subordinação dos Estados-nação póscoloniais, durante os séculos
XIX e XX. Para Escobar (2003), trata-se de um movimento teóricometodológico que
originou a escola de pensamento latino-americana denominada de Estudos
Decoloniais, e que alguns autores também chamam de Giro Decolonial
(BALESTRIN, 2013), caracterizando-se por um desacordo com o “espelhamento” das
respostas asiáticas ao colonialismo latino-americano que apresenta uma trajetória de
dominação e resistência própria.
Como intenta o movimento giro decolonial, se faz fundamental despertar nos
espaços de debate, temas caros quando se trata de América Latina como
descolonização, autonomia e plurinacionalidade, retomando os estudos do
processo de dominação e reprodução do subdesenvolvimento, recusando o
europeísmo e dependentismo intelectual que permeiam a comunidade
acadêmica hegemônica. Para contribuir na explicação e superação desse
colonialismo foi que pautamos os debates com os autores aqui enunciados,
com reflexos na cultura e na política. (AGUIAR, 2016, p. 286).

Ao vislumbrar a formação histórica da Biblioteconomia e da Ciência da


Informação, nota-se o seu desenvolvimento calcado na Europa e Estados Unidos e,
em tais contextos, são formatadas epistemológica, teórica, praticamente sob
conjunturas específicas de países colonizadores e/ou imperialistas. Nesse sentido,
cabe apontar essa diferença fundamental: enquanto no norte global ocidental havia
um usufruto econômico e consequentemente social das riquezas expropriadas das
colônias, seja por meio da colonização padrão ou do imperialismo que se concretizava
em uma dominação cultural, política e legal, nas ex-colónias o contexto era outro. Em
diversos países do sul, o acesso à educação, informação e cultura era precário.
Importante também destacar que essa situação de precariedade das populações do
sul, em grande medida, fortalecia também uma outra relação de dominação, entre
uma elite local e o restante da população que era mantida à margem do poder
político, em uma posição de subalternidade.
É nesse sentido que a Biblioteconomia e a Ciência da Informação são
constituídas sob o signo da colonialidade. Segundo Aníbal Quijano (2014), a
colonialidade diz respeito a constituição de um padrão do exercício de poder que não
se restringe às questões formais de exploração ou dominação colonial

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tradicionalmente reconhecidas, inclui também as diversas formas pelas quais as
relações intersubjetivas se estruturam a partir de posições de domínio e
subalternidade. A colonialidade fundamenta uma prática que, no contexto da ciência,
produziu um modelo único, pretensamente definido por sua universalidade e
objetividade, mas, contrariamente, toma como referência a Europa e os valores
patriarcais e da branquitude.
Assim, a produção e o controle de informação são instrumentos fortalecedores
de uma sociedade baseada na colonialidade. A colonialidade do poder e do saber
foram trazidas por Anibal Quijano, e a do ser por Mignolo (BALLESTRIN, 2013).
Assim, é a dimensão do saber que é mais pertinente nesta reflexão, sendo que esta
trata-se do monopólio sobre determinados conhecimentos que possibilitam a
constituição de uma narrativa única, tal narrativa pode ser usada para justificar
atrocidades como a colonização de outros povos. Como afirma Santos (2007), é uma
perspectiva que:

Portanto, excluiu outros saberes e outras formas de interpretar o mundo,


desautorizando epistemologias da periferia do ocidente. Tal colonialidade do
saber é representada na geopolítica do conhecimento, a partir da qual a razão,
a verdade e a ciência são atributos possíveis nas – e das – metrópoles,
cabendo aos territórios (ex) coloniais e seus sujeitos o status de objetos,
classificados como populares, leigos, naturais, ignorantes, sem lei (SANTOS,
2007, p. 72).

A colonialidade do saber implica em reavaliações discursivas e epistemológicas


nos constructos das ciências, sobretudo no que concerne a história do conhecimento
em questão, uma vez que é justamente através da história que se tece o monopólio
sobre determinados fundamentos, teorias e conceitos, o que viabiliza a constituição
de uma narrativa hegemônica.
Assim, descortinar a colonialidade do saber significa erradicar a “narrativa única” e
amplificar outras vozes silenciadas pelo poder da colonialidade e da branquitude.

A “democratização da informação” é um pilar ético dos bibliotecários e demais


profissionais da informação, o que conecta esses trabalhadores às premissas e
proposições do giro decolonial. Assim, cabe atentar-se a situação dúbia em que se
encontram os profissionais da informação: se por um lado esses são intercessores
importantes no combate a colonialidade, as bibliotecas, arquivos, museus, centros de

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informação e documentação são também instrumentos que reforçam o poder da
colonialidade.
O poder define a hegemonia de narrativa, a centralidade dos valores
ocidentais, os quais articulam as epistemologias, as teorias e as práticas científicas.
Quando os profissionais da informação atuam sem um compromisso ético com a
transformação do mundo, de maneira acrítica, acaba por reforçar as estruturas de
poder, inviabilizando saídas e rupturas das condições econômicas, sociais e culturais.
Contudo, se engajado na desarticulação desse mesmo poder, buscará alternativas
para confrontar a narrativa única, enfatizando o Outro, outras vozes, outras faces,
outras memórias, outras necessidades, outros recursos.
Portanto, partindo da perspectiva que informação é poder, pode-se dizer que a
colonialidade do poder é um monopólio onde os que concentram as narrativas
informacionais ditam o funcionamento do mundo, a partir desse controle expressa
outras duas colonialidade, a do saber e a do ser, dessa forma entendemos que que a
teoria decolonial se intersecciona com a Biblioteconomia e Ciência da Informação
devido ao fato do poder, saber e ser possuírem forte influência sobre o fazer de
profissionais da informação. Uma vez que bibliotecas e centros de informação são
importantes instrumentos para a construção do saber, logo trata-se de espaços que
possibilitam a transformação do ser e do poder.
Nesse cenário, os profissionais da informação em seus ambientes de atuação,
são importantes agentes no movimento da decolonialidade, por exemplo, bibliotecas
em suas diferentes tipologias têm como missão romper com a concentração e
controle do conhecimento, fazem a mediação para que os usuários sejam autônomos,
que possam construir com as informações ali disponíveis o seu conhecimento e sua
subjetividade, o caráter pedagógico de uma unidade de informação é um usuário
emancipado, sendo assim, o trabalho e a existência torna-se ferramenta fundamental
para a luta decolonial.
A discussão aqui levantada, propõe que quando o pensamento decolonial lido
como contraponto é ampliado para ambas as áreas, que são uma ciência social
aplicada, demonstra que existe uma necessidade de repensar alguns aspectos de
construção do pensamento e da história social que as áreas buscam preservar e
propagar, tanto suas práticas e suas teorizações podem e devem compartilhar o
espaço com saberes e práticas até então subalternizadas. Cabe ressaltar que não se

34
trata de eliminação ou interdição de determinados saberes, o processo de
decolonização não deve ser confundido com a rejeição da criação humana realizada
pelo norte global e associado com aquilo que seria genuinamente criado no sul, no
que pese práticas, experiências, pensamentos, conceitos e teorias.

REFERÊNCIAS

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35
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1, 2019.

PICI - Pesquisas Inovadoras na Ciência da Informação - Artigo

O livro de imagem e a inclusão da criança surda na biblioteca escolar

Ana Paula Pereira


André Luís Onório Coneglian
Sueli Bortolin
Adriana Rosecler Alcará

Resumo: O objetivo do artigo é refletir sobre o processo de leitura e de escrita dos


surdos, evidenciando o seu impacto nas ações do mediador da leitura na biblioteca

36
escolar e apresentar o livro de imagem como um recurso eficiente para o fluir da
leitura dos surdos. Defende que a surdez ultrapassa a constatação de uma deficiência
e se caracteriza por uma diferença. Nesse sentido, foi essencial abordar nesse
trabalho a Língua de Sinais, uma Língua espaço-motoravisual que mediará o
pensamento e a comunicação do sujeito surdo, pois seu pensamento se processa de
modo diferente dos ouvintes, isto é, por sinais. Como procedimentos metodológicos, o
texto foi construído com base em pesquisa bibliográfica, nas áreas da Educação,
Biblioteconomia e Ciência da Informação, sem delimitação temporal em virtude da
escassez de produção científica, especialmente nas duas últimas áreas. Salienta que
a biblioteca escolar precisa valorizar a leitura da literatura infantil, a qual pode ser
fonte de diversidade e de multiplicidade, sendo fundamental a ação dos mediadores
da leitura no fortalecimento das práticas leitoras. Detecta que, de modo geral, a
biblioteca escolar não se apresenta como local acessível e inclusivo e, por essa razão,
não faz parte da vida dos surdos; bem como a atitude dos mediadores diante da
criança surda não fortalece o sentimento de pertença e a apropriação dos diversos
textos literários. Conclui que o livro de imagem, com seu vocabulário receptivo visual,
tende a contribuir para a inserção da criança surda no universo da leitura e favorecer
a fruição, o prazer e o aprender por meio da literatura.

Palavras-chave: Leitor surdo. Livro de imagem. Mediador da leitura. Biblioteca


escolar acessível.

1 INTRODUÇÃO

A chamada “literatura surda” que preconiza o empoderamento de autores


surdos, com personagens surdos e com comunicação fortemente visual em Língua de
Sinais e/ou em signwriting ainda não é um material de fácil aquisição. Como
alternativa propõe-se a utilização do livro de imagem, também denominado de livro
sem texto ou narrativa visual no incentivo à leitura pelos leitores surdos. Por
observação e relatos de experiências é possível afirmar que ele pode contribuir nos
momentos de mediação da leitura para o público escolar. (PAIVA, 2014; COSTA;
SANTOS NETO, 2019).
O livro de imagem desperta a emoção, a sensibilidade, a imaginação e
favorece a socialização, tornando-se para a criança surda um dispositivo precioso na
apropriação da leitura, da literatura e da informação.Portanto, considerar o potencial
do livro de imagem e a situação lamentável de poucas iniciativas na Biblioteconomia
em prol de uma biblioteca escolar acessível, inclusiva e acolhedora, é fundamental
para“[...] garantir o acesso à informação, mas também formar um espaço agradável e
acolhedor, no qual minorias sociais e linguísticas possam exercer a sua cidadania e
lazer.”(PEREIRA, 2018, p.03).

37
O objetivo do artigo foi propiciar reflexões acerca do uso do livro de imagem no
incentivo à leitura para os leitores surdos. Optou-se em promover inicialmente
discussões quanto ao processo de leitura e de escrita dos surdos e, posteriormente,
focou-se na biblioteca escolar como dispositivo e nos mediadores, como possibilidade
de aproximação com a literatura.
Nesse sentido, esta investigação, de abordagem qualitativa, foi desenvolvida
por meio de pesquisa bibliográfica, nas áreas da Educação, Biblioteconomia e Ciência
da Informação, principalmente nas bases de dados Scielo, Base de Dados de
Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI) e Google Acadêmico. Lima e Mioto
(2007, p.44) consideram esse gênero de pesquisa “[...] importante na produção do
conhecimento científico capaz de gerar, especialmente em temas pouco explorados, a
postulação de hipóteses ou interpretações que servirão de ponto de partida para
outras pesquisas.”
Para que se possa alcançar o objetivo proposto, este estudo foi estruturado da
seguinte forma, essa introdução; em seguida nas subseções dois e três denominadas
A criança surda e a leitura e A criança surda e a escrita visou-se conhecer com
detalhes os atos de ler e escrever, que se processam de modos diferentes na criança
surda. Na subseção quatro aborda-se a Biblioteca acessível.Os Mediadores e o livro
de imagem são valorizados na seção de número cinco e, na subseção seis apresenta-
se as considerações finais na perspectiva de incompletude, visto que ainda há muito a
ser discutido e partilhado entre Educação, Biblioteconomia e áreas da saúde que
venham ampliar o conhecimento e entendimento dos usuários surdos.

2 A CRIANÇA SURDA E A LEITURA

Inicialmente, é necessário esclarecer os termos e os seus usos adequados e


inadequados. “Deficiente Auditivo” é um termo adequado para uso na área médica e
fonoaudiológica, pois refere-se aos graus de perda da audição humana. “Surdo” é um
termo adequado de autodenominação e, preferencialmente, utilizado pela comunidade
surda; termo com denotação mais social e antropológica. (SKLIAR, 1998; 2000).

Os termos inadequados são “surdo-mudo” e “mudinho”, o primeiro ainda muito


utilizado no senso comum, atribui-se a ele o fato do sujeito surdo não ouvir, portanto,

38
não poder vocalizar, o que não é real, pois o sujeito surdo, mesmo não ouvindo, pode
emitir sons, pode aprender a leitura orofacial com profissionais habilitados para tanto.
“Mudinho” tem conotação mais pejorativa e, durante décadas, denominou vários
sujeitos deficientes auditivos/surdos como alcunha e até mesmo substituindo o nome
desses indivíduos.
Portanto, a concepção de surdez e surdo para o artigo, é entendida como uma
diferença e não uma deficiência e “[...] deve ser definida positivamente pela presença
da Língua de Sinais e por tudo aquilo em que ela implica para a constituição de
identidade e cultura próprias.” (CAPOVILLA et al., 2001, p.1507).
Para tanto, a criança surda precisa desenvolver habilidades que permitam a ela
se apropriar da informação por meio da leitura, sendo assim o domínio da Língua de
Sinais é essencial. Destaca-se que esse domínio não é apenas para os surdos, mas
também para os ouvintes, isto é, para os demais atores sociais que se comunicam
com a palavra falada, permitindo que os surdos tenham outros interlocutores.
Segundo Guarinello (2007, p.54) estudos apontam que os surdos que nascem
em família com pais surdos: “[...] estão mais bem preparados para enfrentar a etapa
escolar e apresentam melhor desempenho na leitura e na escrita, já que foram
expostos a uma Língua comum a si e a seus pais, ou seja, a Língua de Sinais.”
Uma mudança nesse sentido exige: a compreensão, por parte do ouvinte, de
que o código alfabético não atua da mesma maneira para o surdo porque ele não
acessa aos sons da fala. Consequentemente, sua comunicação e o seu pensamento
se processam de forma diferente, isto é, por sinais.Neste caso, “[...] enquanto a
criança ouvinte recorre [...] a forma de sua fala interna, a Surda tende a recorrer às
propriedades [...] a forma de sua sinalização interna”. (CAPOVILLA et al., 2001,
p.1492). A criança surda irá recorrer ao seu “banco de dados léxico”, que é formado
essencialmente por sinais, e em fase de aprendizagem, esse banco de dados léxico a
auxiliará a aprender novos temas (portanto, novos sinais), considerando que a criança
surda tenha outro interlocutor em Língua de Sinais.
O processo ocorre diferente quando estiver frente ao material escrito em Língua
Portuguesa. Essa criança precisará associar a palavra escrita (unidade mínima com
significado) a um léxico (também com um significado) da Língua de Sinais para fazer
sentido (o sinal interno). Com um processo de ensino-aprendizagem adequado, a
criança surda logo incorporará também esse outro banco de dados léxico (Português

39
escrito) atribuindo significado, sem necessariamente passar pela “tradução”
correspondente na Língua de Sinais.
A criança ouvinte, por sua vez, se apropria da fala – aquela que irá subsidiar a
aprendizagem da leitura e da escrita em idade escolar (da Língua que ouve desde que
nasceu e fala já há algum tempo), enquanto o mesmo não acontece com a criança
surda que utiliza a Língua de Sinais para realizar os atos de ler e escrever (numa
língua que não ouve).
A aquisição da linguagem escrita pela criança surda ocorre apoiada pela visão.
Entretanto, para ela o “[...] vocabulário receptivo visual [...] contribui pouco para
aumentar a compreensão direta do significado da leitura alfabética [...].” (CAPOVILLA
et al., 2001, p.1505).
A título de exemplo, as crianças que escutam, dificilmente farão troca ou
confusão entre o significado das palavras ALMOÇO e ABRAÇO. Porém, para um
estudante surdo, que se apoia exclusivamente ao que Capovilla et al.(2001)chamaram
de “vocabulário receptivo visual”, a criança trocou em Libras, os sinais: para a palavra
ALMOÇO, sinalizou ABRAÇO.Ou seja, apoiando-se apenas na visão das palavras
(AbrAÇO, AlmOÇO, AbraÇO, AlmoÇO), a criança surda leu “abraço” onde estava
escrito “almoço”, pois ortográfica e visualmente o início e término das palavras são
similares.
De maneira geral, os mediadores da biblioteca escolar, em sua maioria
ouvintes, tem dificuldade de compreender a forma de leitura dos surdos, mas, talvez o
mais complexo seja conceber que a escrita deles difere do estudante ouvinte,
conforme será abordado na seção 3 deste artigo.“Há um abismo informacional e
atitudinal entre ouvintes e surdos, o qual ultrapassa o despreparo diante do
desconhecido, para a omissão e o descaso diante da invisibilidade da diferença
sensorial auditiva em relação à condição ouvinte majoritária.” (CORRADI, 2011, p.21).
Em face disso, pode-se “[...]imaginar quão difíceis são a leitura e a escrita do
código alfabético para criança surda, que simplesmente não tem acesso à fonologia
relevante à leitura e a escrita do código alfabético.” (CAPOVILLA et al., 2001, p.1504).
Nesse sentido, é importante salientar que
[...] a criança Surda tende a passar pelos mesmos estágios de leitura e escrita
que a ouvinte. [...] a criança Surda abandona a mera memorização global e
passa a ancorar a leitura e a escrita alfabéticas na Língua de Sinais, que é,
para ela, a Língua primária com que se comunica com os outros e consigo
mesma. O problema, no entanto, reside na natureza do código alfabético que,
ao mapear os sons da fala, naturalmente reforça e premia a tendência da

40
criança ouvinte de ler e escrever da forma como ela fala, mas é incapaz de
reforçar e premiar do mesmo modo a tendência da criança Surda de ler e
escrever da forma como ela sinaliza. (CAPOVILLA et al., 2001, p.1504).

Na criança ouvinte, a fala apoia a leitura e a escrita, porém, para a criança


surda isso não ocorre na mesma forma. Exatamente pelo fato de a criança ouvinte ler
e escrever a Língua que fala e pensa. Para a criança surda, como dito anteriormente,
a Língua de Sinais é a Língua de pensamento. Ao ler e escrever em Português, ela
precisará fazer, mentalmente, o processo de tradução para a Língua de Sinais.
No entanto, é preciso lembrar que “[...] a necessidade de adquirir informação
sobre o mundo ao redor, não é menor para as crianças surdas.” (FREEMAN; CARBIN;
BOESE, 1999, p.283). Pelo contrário, a leitura para as crianças (surdas ou ouvintes)
“[...] contribui para compreender os próprios problemas, estimular a imaginação [...]
desenvolver potencialidades, estimular sua curiosidade, inquietar-se por tudo que é
novo.” (DOMINGUES et al., 2008, p.07).
Convém ressaltar que a recepção de um texto apesar de sofrer influências
externas, é peculiar a cada indivíduo e pode “[...] provocar reações diversas em
indivíduos diferentes, em função de suas experiências, de sua condição social ou de
seu poder de percepção e de entendimento.” (DOMINGUES et al., 2008, p.07).
Segundo Castro (2015, p.283) na atualidade a criança foi “[...] elevada ao status
de cliente, isto é, um sujeito que compra, gasta, consome e, sobretudo, é muito
exigente.” Nesse sentido, uma obra literária e o imaginário que ela desperta pode
liberar e“[...]extrair dos alunos sentimentos reprimidos, apaziguar emoções e [...]ter
uma maior interação com o meio em que vive.” (DOMINGUES et al., 2008, p.08).
Para que o mediador (seja ele professor ou bibliotecário) efetivamente
contribua com a autonomia e independência da criança surda, além do seu processo
de leitura é necessário que ele compreenda a construção da comunicação escrita
dessa criança. A seguir apresenta-se algumas reflexões a respeito disso.

3 A CRIANÇA SURDA E A ESCRITA

A compreensão do processo de educação formal dos estudantes surdos, em


especial, na escrita é influenciada por diversos fatores. Isso porque, nela estão
envolvidos aspectos fisiológicos, psicológicos e pedagógicos que exigem, dentro da

41
escola, um redimensionamento dos aspectos conceituais, metodológicos e avaliativos
que envolvem o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita para os
sujeitos surdos. Esse contexto torna a atuação dos mediadores de leitura ainda mais
desafiadora. Nesse sentido, a família, os professores, bibliotecários e toda a
comunidade escolar, sejam gestores, coordenadores ou pedagogos precisam estar
informados dos requisitos necessários ao processo de aprendizagem dos surdos.
Bortolin, Coelho e Araújo (2017, p.09-10) afirmam que “[...] os profissionais que
atuam na biblioteca infantil necessitam ter conhecimento do processo de escrita[dos
surdos], que é diferenciado daquele do sujeito ouvinte.” Para tornar compreensiva a
afirmativa, um tanto enfática, as autoras destacam que: “[...] em uma oficina de
produção de textos devem-se considerar possíveis ausências ou troca de artigos,
elementos de ligação, gênero, verbos entre
[outros] fatores gramaticais.” (BORTOLIN; COELHO; ARAÚJO, 2017, p.10).
A escola e sua biblioteca são agentes formadores, porém, ao conceber “[...] a
linguagem e as atividades de leitura e escrita [...] como algo passível de ser aprendido
por meio de exercícios mecânicos e descontextualizados, contribui para que os
problemas dos surdos com a escrita aumentem.” (GUARINELLO, 2007, p.55).
Na obra Libras? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da
Língua de Sinais e da realidade surda, Gesser (2009) a dividiu em três capítulos (1. A
Língua de Sinais; 2. O surdo e 3. A surdez) e subdividiu os capítulos em tópicos
questionadores, imbricados com mitos e crenças e senso comum, os quais passa a
refutar, embasados em pesquisas científicas.
Utiliza-se aqui duas dessas questões para problematizar e refletir acerca da
apropriação da Língua escrita pelo indivíduo surdo: “O surdo tem dificuldade de
escrever porque não sabe falar a Língua oral?” e “O uso da Língua de Sinais
atrapalha a aprendizagem da Língua oral?” (GESSER, 2009, p.56-59).
Segundo a autora, sobre a primeira questão “[...] é uma crença nociva e levanta
várias questões sobre as quais é preciso refletir” (GESSER, 2009). Prossegue,
estabelecendo que “[...] a escrita é uma habilidade cognitiva que demanda esforço de
todos (surdos, ouvintes, ricos, pobres, homens, mulheres...) e geralmente é
desenvolvida quando se recebe instrução formal.” (GESSER, 2009, p.56).
Desse modo, o ensino da Língua Portuguesa, a Língua majoritária em solo
brasileiro “[...] deve ser pautada no ensino formal em sua modalidade escrita”

42
(GESSSER, 2009, p.59), o que exige o reconhecimento por parte do professor da
disciplina que as habilidades cognitivas de leitura e de escrita são distintas e podem
ser ensinadas sem a intermediação da voz (da oralidade).Para Guarinello e Gregolin
(2005) diferentes profissionais se dedicam aos estudos da surdez, porém em suas
publicações

[...] destacavam as dificuldades e as diferentes construções escritas dos surdos; alguns


se detinham na sua escrita considerada “atípica”; outros na interferência da Língua de
Sinais nas construções escritas; outros na condição da surdez, e havia, ainda, os que
relacionavam a escrita a técnicas pedagógicas inadequadas. Porém, poucas eram as
propostas para o desenvolvimento da escrita [...] muitos surdos continuam com
dificuldades para aprender a ler e a escrever, e um grande número deles não tem
acesso a práticas discursivas significativas que propiciem o domínio da linguagem
escrita. (GUARINELLO; GREGOLIN, 2005, p.135).

Dito de outro modo, os indivíduos surdos podem aprender a ler e escrever a


Língua Portuguesa sem oralizá-la. A leitura “silenciosa”, mental, num processo
cognitivo de interrelação com a Língua de Sinais e aprendizagem da escrita
ortográfica, visualmente, relacionando cada unidade visual (a palavra) a um outro
signo linguístico (em Língua de Sinais).

Pessoas ouvintes, ao iniciar o processo de aprendizagem de uma língua


estrangeira – Russo, por exemplo – podem optar por aprender ler e escrever Russo,
sem necessariamente aprender a pronunciar (oralizar) Russo. Para as pessoas
surdas, o processo de aprendizagem da Língua Portuguesa é similar: aprenderam a
ler e escrever o Português sem pronunciá-lo.No entanto, em muitos casos a escrita
produzida por um surdo não corresponde a escrita exigida dos ouvintes. A seguir
temos um exemplo de escrita citada por Guarinello e Gregolin (2005, p.138) no artigo
intitulado As produções escritas de sujeitos surdos:

Quadro 1 – Exemplo de texto produzido por um surdo


1 - Um Acontecer,minha irmã
apartamento, o ladrão pega um ferro forçar, a
porta quebrou abril,
2 - ele pulo na dentro casa andou viu
todos
cosia, 3 - ele robrou TV. Radio, cd 70.
4 - Karina e Terezinha chegou para apartamento,
5 - elas viu subiu Tv, rádio, cd 70,

43
6 - ela ficou chora, chora, a Terezinha ficou
nervosa. 7 - Ela falou para namorada também eu.
Fonte: Adaptado de Guarinello e Gregolin (2005, p.138).

No trecho (quadro 1), apresentado de modo a ilustrar um tipo de escrita do


surdo, fica bem evidente a necessidade do mediador, seja o bibliotecário ou o
professor, ter o domínio de diferentes habilidades e estratégias para lidar com a
produção textual do surdo, conforme já sinalizado por Bortolin, Coelho e Araújo
(2017). Assim, para a sua efetiva atuação com o leitor surdo, o mediador precisa
buscar continuamente a formação complementar, com apoio de educadores,
estudiosos e especialistas da leitura e escrita no contexto da surdez.
Ademais, iniciativas por meio de políticas públicas, projetos institucionais e
empresariais visando à acessibilidade são (ou deveriam ser) prioridades sociais. A
produção científica na área da Educação, principalmente na Educação Especial é
abundante, assim como movimentos em defesa da igualdade de oportunidades. Na
Ciência da Informação e Biblioteconomia ainda são necessários, além de pesquisas,
projetos que possam transformar as unidades de informação em ambientes
acessíveis e inclusivos. Neste artigo aborda-se apenas a biblioteca acessível, mas
deve-se destacar que há a necessidade de se promover a inclusão também em
arquivos e museus.

4 BIBLIOTECA ACESSÍVEL

Desde 1975 a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes garante a elas
“[...] o direito inerente de respeito por sua dignidade humana.” Porém, historicamente,
as barreiras criadas pela sociedade excluíram as pessoas com deficiência de tal
forma que o acesso à informação, à arte, à literatura lhes foi negado, não podendo
sequer conviver socialmente e de maneira digna. Nega-se também o “[...] direito à
educação, ao trabalho produtivo, aos serviços públicos, à recreação e a outras
atividades humanas.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1981, p.47).
Uma sociedade acessível, justa e igualitária deve propiciar à todos os
indivíduos (sem excluir ninguém) a acessibilidade, isto é, a “[...] inclusão e acesso a
locais, produtos, serviços e informação [...] independentemente de capacidades
físicas, perceptivas, motoras, culturais e sociais [...].” (SOUZA et al., 2013, p.08).

44
Quando se trata de acesso à informação, que é um direito dos indivíduos,
esbarra-se na instituição biblioteca que dispensa ser apontada como prioridade na
vida do cidadão, mas que ainda de fato, pelo menos uma parcela das bibliotecas
públicas, não conseguiram exercer plenamente seu papel social. Portanto, propiciar o
livre acesso à informação
[...] deve ser uma meta a ser perseguida, não por estar em consonância com
as políticas públicas (leis, decretos e normas que embasam tais políticas
públicas), como também e principalmente por respeitar a dignidade humana
das pessoas com deficiência [...].
(CONEGLIAN; SILVA, 2006, p.03).

Da mesma maneira, os acervos de uma biblioteca precisam atender as


necessidades do leitor, mas ainda não o fazem, pois, na maioria das bibliotecas
inexiste a literatura surda, que abrange livros de histórias em LIBRAS e que é fator
de ampliação das possibilidades de leitura para os surdos. Coneglian e Silva (2006,
p.06) afirmam que a “[...] tendência é que esse público não seja frequentador da
biblioteca e seus serviços [...].”
Os referidos autores ressaltam que as bibliotecas devem realizar ações
apropriadas para os leitores surdos. Ainda que sejam usuários em potencial, a
dificuldade da comunicação não pode impedi-los de utilizar esse espaço. A este
propósito, ressaltam que a biblioteca não é acessível, então alguns surdos precisam
“[...] de terceiros (pessoas ouvintes que possuem conhecimento em Língua de
Sinais) para terem acesso a informações.” (CONEGLIAN; SILVA, 2006, p.09).
Desse modo, é fundamental que no mínimo uma pessoa que trabalhe na biblioteca
seja fluente em Língua de Sinais. O Relatório de Diretrizes para Serviços de
Biblioteca para Surdos atenta ao fato de que a surdez é denominada “[...] „deficiência
invisível ‟, porque os surdos não são identificados como surdos pela observação
casual e tendem a se mesclar na sociedade.” (IFLA, 2000).
Essa invisibilidade faz com que os surdos, muitas vezes permaneçam
imperceptíveis na biblioteca, entretanto não se trata de um preconceito por parte dos
mediadores, mas o é quando o profissional não procura se inteirar a respeito das
deficiências, das diferenças, da acessibilidade (principalmente a acessibilidade
atitudinal) e do aprendizado da Língua de Sinais.
Nesse sentido, concorda-se com Barros (2015, p.68) quando afirma que “[...] o
desconhecimento de como é o outro provoca o preconceito, isto é, a ideia pré-

45
concebida, acompanhada quase sempre pela suspeita, intolerância ou aversão.” A
autora acrescenta dizendo que: “Se o desconhecimento pode ser entendido como
falta de conhecimento, isto é, estado de ignorância, seu antídoto seria o oposto –
conhecer, obter informação para entender melhor o outro e os motivos da aversão.”
(BARROS, 2015, p.68). Assim, a informação e o conhecimento ajudam a romper
preconceitos e permitem entender que determinados comportamentos e atitudes são
errôneos diante da deficiência e ao conhecê-la caminha-se no sentido do respeito e
da tolerância.
O fato da surdez ser concebida como uma diferença e não uma deficiência
representa uma conquista para o surdo, “[...] uma nova fase de luta pelo direito à
diferença, que reflete também questões políticas, de poder e de inserção social.”
(SANTANA, 2007, p.33).É importante salientar que ações preconceituosas e injustas
contrariam a diversidade de tal forma que “[...] corremos o risco de aderir ou
reproduzir em nossa vida pessoal e profissional se não estivermos atentos.”
(BARROS, 2015, p.68). O maior perigo está na aceitação e no conformismo diante
do preconceito e da injustiça, o que, talvez, possa levar os mediadores a agirem da
mesma forma, isto é, sem perceber, são coniventes e indiferentes.
Entende-se então, a necessidade de diferentes ações e mediações que
possam promover a acessibilidade e a apropriação da leitura pelos surdos. Esse
assunto será tratado a seguir.

5 MEDIADORES DE LEITURA E O LIVRO DE IMAGEM

A mediação é um dos meios de permitir a acessibilidade, não apenas ao


espaço físico, mas à informação e à leitura, valorizando a autonomia e a dignidade
do leitor. Ao mesmo tempo em que promove a igualdade, propicia a inclusão na
biblioteca.
Como dito, o maior desafio não se encontra nas barreiras físicas, mas nas
barreiras comportamentais, as denominadas “barreiras de atitude”. (BAPTISTA,
2008). Em outras palavras a acessibilidade não se reduz ao ambiente, mas abrange
principalmente as ações “[...] tendo como foco principal a idéia de que todas as
pessoas têm direitos e deveres em uma sociedade democrática e que ninguém deve
ser excluído por qualquer razão que seja.” (BAPTISTA, 2008, p.25).

46
Por isso, os mediadores da leitura na biblioteca escolar devem estar
preparados para atender as crianças com deficiência que “[...] merecem a mesma
consideração que os demais, e, portanto, são bem-vindas e desejáveis: entretanto, há
que haver tanto constatação quanto preparo para saber lidar com suas capacidades
[...].” (BARROS, 2006, p.150). Dessa maneira, acolher as crianças da melhor forma,
significa respeitálas, compreender e saber como agir. Além disso, o profissional deve
ser flexível e estar “[...] preparado e apto para lutar e exigir que a sua instituição
atenda aos dispositivos legais, promova a equiparação de oportunidades, a interação
entre pessoas com e sem deficiências [...].” (ALVES; VIGENTIM, 2013, p.13).
A luta por melhores condições de acessibilidade exige preparação e aptidão
para lidar com situações reais e cotidianas, mas também requer um profissional
responsável, envolvido e comprometido. Ao se referir à biblioteca, Barros (2006,
p.150) afirma que esta tem um papel e uma responsabilidade diante das pessoas
com deficiência ao “[...] atender apropriadamente essa clientela [...] devem ser
consideradas suas necessidades universais de aceitação, interação social,
estabilidade emocional, independência e estimulação intelectual.”
As necessidades universais elencadas pela autora são significativas ao
desenvolvimento infantil, principalmente no que se refere à socialização, a emoção e
a cognição. Baptista (2008) menciona que a inclusão conduza avaliação de ideias
arcaicas, mudara visão de mundo, do eu e do outro. Em se tratando das crianças
surdas, Freeman, Carbin e Boese (1999, p.28) defendem que “Só quando
conseguimos corrigir nossa percepção [...] e quando encontramos um senso de
humanidade compartilhada, é que nossos horizontes podem ser ampliados para
incluir a [...] criança surda [...].”
Desse modo, o mediador precisa avaliar sua postura e ações, pois será a sua
visão humanista e alteritária que possibilitará a inclusão. Assim como a mediação da
leitura e da literatura pode favorecer a inserção das crianças surdas no universo
ficcional, tão salutar ao seu desenvolvimento.
O mediador desempenha uma ação essencial porque age “[...] sobre a
quantidade, o gosto, o interesse [e] o comportamento do leitor.” (PAIVA, 2006,
p.258). Vale nesse momento questionar quem é este sujeito? Para Bortolin (2006,
p.49) o mediador tem a “[...] função de facilitar o encontro entre o leitor e o texto,
cujas ações possam contribuir para a formação e o amadurecimento [...] do mesmo.”

47
Com base nesta definição, o mediador de leitura é o facilitador da relação
entre o leitor e o texto pois sua ação fortalece o crescimento do leitor, e assim
também, contribui significativamente na formação da criança surda, levando-a ao
encontro da literatura podendo utilizar os livros de imagem e realizar a contação de
história em Língua de Sinais. Aqui vale ressaltar que a Língua de Sinais é “[...] uma
língua viso-espacial que se articula por meio das mãos, das expressões faciais e do
corpo.” (GUARINELLO, 2007, p.51). Enfatiza-se então, que é responsabilidade do
mediador adequar sua ação às necessidades dos leitores e no caso da criança
surda, o uso da Língua de Sinais é fundamental. Assim

[...] é preciso conhecimento e preparo no trato com [...] leitor ou não-leitor,


com capacidades plenas ou não. Por outro lado, o papel do mediador de
leitura é promover o melhor encontro entre o texto e o leitor (bem como o
leitor em potencial) sem cercá-lo ou limitálo, pois somente os céus podem
determinar a altura de cada vôo, quer em sala de aula, quer na biblioteca.
(BARROS, 2006, p.154155).

Os mediadores não devem ignorar a liberdade que está associada ao ato de


ler, tampouco desprezar as sensações dele advindas. A eles cabe interferir nesta
relação para torná-la cada vez mais agradável, encantadora e surpreendente.
Bortolin (2011, p.263) explica que “Um aspecto fundamental [...] é que os mediadores
devem [...] descobrir como acontece a recepção de um texto por parte do leitor (seja
lendo ou ouvindo)” ou sinalizando a narrativa. Ouvir, no contexto da surdez, é ler por
meio do olhar e da Língua de Sinais utilizada pelo mediador/intérprete.
No entender de Silva e Bortolin (2006, p.77) “A literatura é um dos
componentes fundamentais no processo de desenvolvimento infantil, pois
proporciona à criança resolver seus conflitos internos, além de estimular sua
imaginação, contribuindo para que o lúdico esteja presente em sua vida cotidiana.”
Para tanto, as obras devem ser selecionadas criteriosamente pelo mediador
contemplando textos diversos. Nas palavras de Barros (2006, p.148): “[...] a
responsabilidade consciente da seleção prévia pelo mediador [...] deve resguardar a
questão da individualidade, do interesse particular, do patamar intelectual e cognitivo,
da faixa etária mental e cronológica de cada aluno [...].”
O mediador deve direcionar sim, mas não “enclausurar” a leitura. A autora
conclui: “O aluno especial merece que se lhe ofereça uma leitura especial, e não

48
leitura de qualidade duvidosa, por uma escolha aligeirada.” (BARROS, 2006, p.148).
É importante salientar que o mediador não caminha sozinho na escola e precisa
contar com o trabalho de toda equipe pedagógica.
Além de compreender as diferenças, os mediadores precisam contextualizar a leitura
e a literatura, que são possibilidades que a criança surda tem de ampliação e de
multiplicidade de ideias. Em casa a família também deve participar propiciando o
contato com as narrativas. Contudo “[...] em casa, muitas vezes a criança surda não
tem acesso aos livros e aos jogos de leitura, o que lhe dificulta a construção de
hipóteses sobre o objeto escrito e a percepção das diferenças entre a escrita e a
fala.” (GUARINELLO, 2007, p.55).
Nesse sentido, entende-se que os mediadores da leitura podem utilizar o livro
de imagem para provocar o olhar e intensificar as emoções da criança surda. Nesse
artigo utiliza-se o conceito de Camargo (1995, p.70) de que “Livros de imagem são
livros sem texto. As imagens é que contam a história. Os livros com pouco texto, em
que o papel principal cabe à ilustração, também podem ser chamados de livros de
imagem.”Defende-se que a leitura da imagem é primordial, pois é ela que forma “[...]
os primeiros conhecimentos da criança, que usa seus sentidos para captar as
imagens que a rodeia, compreender seus significados e reagir a elas.” (GONDIM;
CUNHA; DIAS, 2006, p.17).
Para ilustrar o conceito de livro de imagem apresenta-se na figura 1, duas
imagens do livro O palhaço voador(1987) de autoria de Rogério Borges. Este livro de
imagem compõe a coleção Bons Tempos sendo que a maioria de suas narrativas
está disponível no site da Rede de Leitura Mediar, integrando o projeto Livroterapia3.

Figura 1 – Livro de Imagem O palhaço voador

3 REDE Mediar. Projeto Livroterapia. nov. 2020. Disponível em:


https://redemediar.wordpress.com/2020/11/13/o-que-e-livroterapia/#obras-livroterapia. Acesso em: 17 jun. 2021.

49
Fonte: Borges (1987).

Como se pode notar o livro de imagem favorece a apropriação da narrativa


pela criança surda porque “As ideias ilustradas expressam sentido, colocam em jogo
códigos culturais e compõem uma estética apreciável através das situações
ilustradas.” (PAIVA, 2014, p.47). Na concepção da autora, as imagens transmitem
ideias e essas ideias representam culturas; assim também o belo e a arte podem ser
explorados, contemplados e mediados pela ilustração.
Os estímulos do livro de imagem podem incentivar a leitura, pois os “Apelos
visuais, rítmicos, bem como jogos de cena [...] conseguem provocar o olhar e criar um
magnetismo entre livro e leitor, de forma a suscitar que a criança deseje a leitura e o
contato com o livro.” (PAIVA, 2014, p.49). Ao despertar na criança surda estes
desejos pode-se criar um elo indissociável, uma força de aproximação.
Diante do livro de imagem, as reações são as mais diversas, tendo em vista
que o leitor “[...] sorri, ri, se espanta, se encanta, olha assim meio bobo porque nunca
pensou em nada parecido [...] E fica brincando horas, olhando devagarinho ou
depressa, formando e imaginando mil e uma histórias [...].” (ABRAMOVICH, 2001,
p.29).
Com tantas possibilidades, dentre as quais se destaca a de olhar, de brincar e
de imaginar, o leitor surdo pode ter uma nova experiência de leitura conforme suas
percepções e seu ponto de vista. Quando levado para a sala de aula, o livro de
imagem pode “[...] ampliar o repertório dos alunos não somente no que diz respeito à
origem de autores, ilustradores e temas, mas [...] ampliar o senso estético e a
curiosidade por livros [...].” (PAIVA, 2014, p.46).
Pereira (2016) em pesquisa de Iniciação Científica (IC) financiada pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) cujo título
foi Mediação com livros de imagem localizou 344 livros sem texto publicados e
comercializados em terras brasileiras. Desde então outros títulos foram lançados e
isso demonstra uma parcela do amplo acervo disponível ao mediador de
leitura.Acredita-se que além de contribuir na ampliação da percepção estética dos
leitores surdos, isto é, na contemplação do belo, os livros de imagem permitem que
eles interpretem a narrativa a seu modo, pois “As imagens [...] exigem decifrações e
sentimentos. Muitas vezes podem inclusive provocar uma necessidade intensa de

50
interpretação [...]” (PAIVA, 2014, p.45) e, possivelmente de novas leituras. Os
questionamentos suscitados pela imagem podem levar a criança surda para um rico
“encontro” com a literatura, além de possibilitar a sua autonomia e favorecer a
criatividade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Língua de Sinais é fundamental para o desenvolvimento do surdo. O
mediador de leitura precisa dominá-la para poder se comunicar e atrair os seus
leitores, portanto, quanto maior o número de mediadores com fluência, maior será a
quantidade de serviços oferecidos aos surdos, por exemplo, em uma biblioteca.
O livro de imagem tem se mostrado eficaz ao favorecer o imaginário da
criança surda, possibilitando que ela sinalize um texto literário em Língua de Sinais,
desenvolvendo assim o letramento visual ao observar os detalhes da ilustração e
interpretar a história, além de contemplar a imagem, os traços, conhecer os
ilustradores, aprender novos sinais e novas palavras.
A biblioteca e o mediador de leitura, junto com o acervo e serviços oferecidos,
podem ser aliados no processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita das
crianças surdas. É preciso que tais reflexões estejam presentes na formação inicial e
continuada dos professores (Pedagogia e Letras), bem como na dos profissionais da
informação, em especial do bibliotecário.

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