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VARIABILIDADE TECNOLÓGICA

EM SISTEMA DE DEBITAGEM –
SÍTIOS LITO-CERÂMICOS DO VALE
DO RIO MANSO (MT)

SIBELI A. VIANA*

Resumo: esta pesquisa analisa o sistema de debitagem utilizado para a exploração


de núcleos presentes em dez sítios lito-cerâmicos do Vale do Rio Manso (MT).
Esses sítios apresentam diferentes datações - de 340 +-50 AP a 2.230 +- 40 AP.
A análise desse material lítico se baseia na caracterização evolutiva dos sistemas
de debitagem, com identificação das diferentes concepções de produção de suporte
dos instrumentos lascados.

Palavras-chave: tecnologia lítica, sítios lito-cerâmicos, evolução tecnológica,


Planalto Central Brasileiro

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.


E ste artigo apresenta a análise tecnológica do sistema de debi-
tagem de núcleos provenientes da indústria lítica de dez sítios
ceramistas da região do vale do rio Manso, localizados na
porção centro-sul do Estado de Mato Grosso. A análise desse
material lítico se baseia na caracterização evolutiva dos sistemas
de debitagem e identifica as diferentes concepções de produção
de suporte dos instrumentos lascados presentes em contexto de
sítios lito-cerâmicos. Os sítios se destacam, em termos regionais,
por apresentarem grande quantidade de material lítico os quais
se encontram em boas condições de conservação para estudo,
conforme atestam pesquisas inicialmente desenvolvidas por
Viana et al. (2002)1 e, posteriormente, por Viana (2005) e
797 Mello (2005).
Figura 1: Localização dos Sítios Arqueológicos do Vale do Rio Manso
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Os sítios em questão podem ser conferidos na Tabela


1, com suas respectivas datações.
Tabela 1: Datação dos Sítios Arqueológicos

Nota: as datações radiocarbônicas foram realizadas no laboratório Beta Analytic Inc. As datações
por termoluminescência foram realizadas no Laboratório de Vidros e Datação – FATEC/SP. 798
Os sítios estão implantados em diferentes estratos pai-
sagísticos compostos por áreas abertas de ambientes de formações
campestres, savânicas e florestais. A região é bastante drenada. Os
recursos fluviais de maior ordem são os rios Manso (6a ordem),
Casca (5a ordem) e Quilombo (4a ordem). Os sítios estão
inseridos em meio geológico representado pelas rochas do
Grupo Cuiabá (região do rio Manso) e Formações Botucatu,
Bauru e Furnas (região dos rios Casca e Quilombo). Os solos,
em geral, são fracos, salvo as áreas relacionadas aos solos das
baixadas e dos cursos d’água. No que se refere aos aspectos
geomorfológicos, destacam-se duas unidades: a Depressão
Cuiabana e o Planalto Casca (VIANA; RESENDE, 2002).
A estratigrafia dos sítios, de certa forma, seguiu o
padrão geológico e geomorfológico da região, ou seja, os sítios
implantados nas encostas da bacia do rio Manso, caracterizada
pelas rochas do Grupo Cuiabá, apresentam, em geral, níveis
mais rasos, e a base estéril destes sítios é representada por rocha
parcialmente alterada. Já os perfis estratigráficos dos sítios que
estão localizados na bacia do rio Casca, caracterizados por
cobertura arenosa residual e coluvial das Formações Botuca-
tu e Furnas, são, em geral, mais profundos.2 Pelas datações

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disponíveis e pela análise dos materiais, a profundidade do
material arqueológico nesta região está relacionada ao processo
natural de formação dos perfis, que se caracterizam por grande
aporte de material arenoso.
Trata-se de sítios de dimensões variadas; o maior
tem 306.900m2 e o menor, 3.500m2, conforme apresentado
na Tabela 2.

Tabela 2: Área dos Sítios Selecionados

799
O material arqueológico nos dez sítios é composto
por cerâmica3 e lítico. A cultura material lítica é bastante
expressiva em termos quantitativos e qualitativos. Ressalte-se
que a abundância de matérias-primas utilizadas para confec-
ção dos artefatos e a expressiva quantidade de material lítico
arqueológico nos sítios colocam essa área, conforme ressalta
Wüst (1999b), em posição de destaque em relação às outras
áreas do Mato Grosso nas quais foram realizadas pesquisas
arqueológicas.
O material lítico dos sítios foi classificado em dife-
rentes categorias, conforme se pode observar na Tabela 3.

Tabela 3: Material Lítico – Categorias e Quantificação


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METODOLOGIA DE ANÁLISE

Os estudos tecnológicos foram utilizados como


ferramenta teórico-metodológica para estudar os sistemas
de debitagem presente nos sítios do Rio Manso. Destacam-
se as abordagens desenvolvidas por Leroi-Gourhan (1985),
com ênfase na identificação das cadeias operatórias líticas e,
posteriormente, por Boëda (1997), que ampliou esta questão
ao considerar o aspecto evolutivo da tecnologia-tecnogênese.
No Brasil, estudos tecnológicos recentes, voltados à análise
diacrítica dos instrumentos e/ou dos núcleos e interpretação
acerca das linhagens evolutivas das indústrias líticas, podem
ser conferidos em Fogaça (2001), Hoeltz (2005), Mello (2005)
e Viana (2005). 800
A presente pesquisa baseou-se, especialmente, nas
proposições teórico-metodológicas desenvolvidas por Boëda
(1997) que, com base em uma análise inter-relacional, con-
sidera o instrumento lítico pré-histórico como resultado de
uma gênese tecnológica composta por duas grandes famílias:
um sistema de debitagem, relacionado à exploração do núcleo
e à produção do suporte para o instrumento, e um sistema de
façonnage, relacionado à produção do instrumento. O presente
trabalho tem por propósito demonstrar a complexidade tec-
nológica da indústria lítica de grupos ceramistas, com base
no sistema de debitagem dos núcleos.

Gestão de Matéria-Prima Lítica

A cadeia operatória de um sistema de debitagem


está baseada na abordagem tecnológica global, que se inicia
pela escolha e pela aquisição de matérias-primas. A seleção
de matéria-prima, como toda atividade técnica, pressupõe a
existência de um “esquema conceitual” que, segundo Perlès
(1992) e Pelegrin (1995), significa que a produção de um ins-
trumento lítico pré-histórico requer um planejamento abstrato

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de ações integradas que pode ser implementado de acordo com
o projeto e as circunstâncias específicas. A efetivação deste pro-
cesso exige a aplicação de estratégias que, conscientes ou não,
permitem que soluções sejam tomadas, as quais influenciam
diretamente em termos de economia de tempo e de material,
risco de fracasso etc.
Tais estratégias não são circunstanciais e, segundo
Perlès (1992), uma vez eficazes, são implementadas e inte-
gradas no comportamento do grupo. Elas são transmitidas
através de gerações e substituídas quando novas circunstâncias
e restrições exigem a adoção de uma estratégia apropriada. Na
pré-história, as estratégias de busca de matéria-prima foram
necessárias por inconstância do ambiente. Há nas palavras
de Perlès (1992) uma “falta de harmonia” entre qualidade,
abundância e facilidade de aquisição de matéria-prima, o
801 que exige fazer escolhas e elaborar estratégias de aquisição
específicas. A seguir, algumas das variáveis consideradas pela
referida autora são:
• a natureza da matéria-prima trabalhada e as características
do material descartado;
• a abundância e o estado das diferentes matérias-primas
levadas para o sítio (blocos brutos, núcleos preformatados,
instrumentos finalizados);
• a utilização diferencial das matérias-primas;
• a necessidade técnica e a restrição funcional;
• o custo de energia gasto nas estratégias de aquisição.

Considera-se, ainda, o contexto socioeconômico do


qual o grupo faz parte e sua tradição cultural. Essas aborda-
gens, embora complexas para serem percebidas na maioria dos
contextos arqueológicos pré-históricos, relativizam as questões
relacionadas às estratégias e às escolhas de matéria-prima, na
medida em que consideram os valores sociais, culturais e sim-
bólicos que podem estar embutidos nessa abordagem.

Estruturas de Debitagem
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Pela estrutura de debitagem busca-se identificar o sis-


tema técnico do qual o suporte do instrumento é proveniente,
determinando não somente as características técnicas presentes no
suporte produzido, como também a maneira como os suportes
foram confeccionados. As cadeias operatórias de debitagem, se-
gundo Boëda et al. (1990) e Boëda (1997), podem ser divididas
em: produtoras de lascas – produção de suportes para serem
transformados em instrumentos e produtoras de núcleos que
poderão ser retomados como instrumentos.
Para tanto, o núcleo é considerado muito mais do
que uma matriz, da qual provêm lascas para serem utilizadas
como suporte, e mais que a própria matriz a se transformar
em instrumento. O núcleo é considerado como uma entidade
estrutural que é definido não exatamente pelo seu aspecto
morfológico, mas como uma forma integrante e hierárquica 802
de um conjunto de propriedades técnicas que levam a uma
composição volumétrica definida.
Admite-se que existe um elemento estruturante ou uma
“entidade técnica” estável (por exemplo, estruturas de debitagem
discóide) e a partir dele podem ser aplicados diversos métodos,
visto que cada um opera segundo regras específicas.
A variabilidade dos métodos aplicados é mantida pela
tradição cultural, já que os aspectos cognitivos e empíricos
constituem a herança técnico-cultural de um grupo, porquanto
testemunham a experiência adquirida e sucessivamente trans-
mitida de geração a geração, correspondendo ao saber-fazer,
relacionado às operações intuitivas baseadas na experiência pessoal
do artesão (BOËDA, 1997; KARLIN, JULIEN, 1996).
A constatação de esquemas operatórios diferentes
permite distinguir cadeias operatórias de debitagem também
distintas entre si. Boëda (1997) e, posteriormente, em maior
detalhe, Boëda et al. (2005), dizem que as estruturas de de-
bitagem estão agrupadas em níveis tecnológicos distintos,
que se iniciam pelos sistemas de debitagem mais simples,
representado pelas concepções de debitagem A, B, e C, e pelos
núcleos explorados por uma maior complexidade tecnológi-

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ca, representados pelas concepções de debitagem discóide e
piramidal, denominadas D e estruturas levallois e laminar,
denominadas E.
Na indústria lítica dos sítios lito-cerâmicos da região
do vale do rio Manso, foram identificadas as estruturas B, C
e D, por isso, no decorrer do texto será dada maior ênfase a
estes sistemas de debitagem.

Sistemas de debitagem de baixa complexidade tecnológica

Segundo Boëda et al. (2005), na concepção de de-


bitagem denominada A, o suporte a ser explorado não segue
uma escolha específica. Aqui se tem, por exemplo, os modos
de exploração por métodos de espatifamento. No B leva-se em
conta algumas características naturais do bloco a ser explorado,
803 como, por exemplo, blocos angulosos com quinas naturais; no
C a escolha do bloco leva em conta não somente a presença
natural de nervuras (quinas), mas, também, de forma ainda
fraca e não determinante, a convexidade das superfícies e as
extremidades distais, presentes em zonas específicas do bloco.
É por meio destas características que será possível controlar
a largura e o comprimento de uma lasca.
Para a concepção de tipo C, é possível efetuar séries
de retiradas consecutivas. A mais comum é uma seqüência
de até quatro retiradas – algorítmica. Há, nesta exploração
algorítmica, ainda que de modo fraco, uma predetermina-
ção das superfícies de debitagem e dos planos de percussão,
relacionada às restrições técnicas, que busca áreas de conve-
xidade naturais, possivelmente, para que não seja necessária
a organização da superfície de lascamento e para satisfazer as
condições de fratura.
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Figura 2: Esquema de Debitagem de Núcleo B e C 804


Para a estrutura C, a inicialização do núcleo pode ser
realizada de duas formas: pela escolha de uma matriz que apresente
uma superfície naturalmente adequada ou que possua uma super-
fície antiga de debitagem, portanto, já preparada e que possa ser
retomada ou, em segunda instância, pela preparação do plano de
percussão. Em ambos os casos, a preparação do plano de percussão
localiza-se normalmente em uma parte do bloco, portanto, não
há uma estruturação total da matriz. Mesmo com o andamento
da exploração do núcleo, não é comum uma reestruturação da
peça e, sim, um aproveitamento das superfícies e dos planos de
percussão existentes.
Aparentemente, o núcleo C pode estar totalmente
explorado, mas observe-se que as seqüências de exploração
são independentes umas das outras (as partes não estão em
sinergia). Mesmo que haja mais de uma superfície de lasca-
mento, elas são independentes entre si.
Sobre a morfologia desses núcleos, eles asseme-
lham-se ao aspecto morfológico do bloco inicial e, quando
bastante explorados, podem apresentar morfologia poliédri-
ca. A técnica empregada é a percussão direta com percutor
duro, com ângulo de percussão abrupto ou semi-abrupto

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e aplicado não muito próximo à charneira, prova disto é a
presença comum de contrabulbos marcados e os sinais fre-
qüentes de golpes mal dados sobre os planos de percussão
(TEYSSANDIER, 2000).

Produtos de Lascamento Provenientes da Debitagem C


por Algoritmo

Sobre os produtos de lascamento provenientes


da estrutura de debitagem C, os mais comuns são aque-
les provenientes das séries algorítmicas das quais sai uma
série de até quatro retiradas. Como já foi mencionado, a
primeira lasca (realizada principalmente mediante caracte-
rísticas naturais do núcleo, como, por exemplo, a presença
de uma nervura-guia natural) produzirá um negativo com
805 nervura longitudinal, que servirá de guia para a retirada da
lasca seguinte, adjacente, e assim sucessivamente (Figura
2). A largura e o comprimento são predeterminados pelas
convexidades laterais e distais.

Sistemas de debitagem de tecnologia complexa

Seguindo a referida linha evolutiva, em seguida vêm


os núcleos de tipo D, representados pelos núcleos de concepção
de debitagem discóide e piramidal. Nestes núcleos todas as
características do bloco são determinantes: as superfícies e as
extremidades laterais e distais são levadas em consideração no
momento da escolha do bloco e, durante o processo de debi-
tagem, cada retirada influenciará no sucesso da próxima lasca.
Utiliza-se a noção de recorrência não apenas para a produção
de uma lasca com gume, mas, também, para obter um conjunto
de características técnicas mais diversificadas. Este processo é
considerado o início de normatização da produção.
A estrutura E é representada pelos sistemas levallois
e laminar, é constituída por meio de um alto investimento
técnico de produção, representa o ápice desta linha evolutiva.
Nela ocorre primeiramente uma produção do núcleo e, poste-
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riormente, sua exploração. No caso da estrutura levallois, todo


o bloco é preparado para a retirada de uma única lasca.

• Concepção de debitagem discóide

A definição de núcleo discóide, embora tenha


sido elaborada primeiramente por Bordes (apud BOËDA,
1993), que o classificou como resultante da reutilização de
um núcleo levallois, foi reelaborada por Boëda (1993, 1997,
1995a, 1995b) que, em períodos mais recentes, retomou essa
discussão, definindo e distinguindo o sistema técnico discóide
como portador de regras técnicas precisas, independente da
estrutura levallois. Com base nessa segunda abordagem, os
núcleos discóides das indústrias líticas do vale do rio Manso
foram analisados. Segundo o referido autor, a estrutura de
debitagem discóide apresenta critérios tecnológicos específicos 806
que podem ser acompanhados pela figura e pela descrição,
apresentados a seguir:
– Considera-se um plano de interseção imaginário (charnei-
ra), que delimita duas superfícies convexas e assimétricas,
secantes.
– As superfícies convexas atuam ora como plano de percussão,
ora como superfície de debitagem. A exploração das duas
faces está em total sinergia. Ressalta-se que a “escolha”
da superfície é prevista desde o início da construção do
núcleo e influenciará no método a ser aplicado, na forma
geral do núcleo e nas características das lascas a serem
produzidas.
– Os planos de fratura das retiradas são secantes ao plano de
interseção das duas superfícies. O ângulo secante garante
a manutenção da convexidade periférica e a retirada das
lascas procuradas. O eixo de percussão das retiradas prede-
terminadas deve ser perpendicular à superfície recebedora
do impacto.
– A predeterminação das lascas está garantida pela organização
da convexidade periférica mantida pelos golpes secantes.
Por meio deles, controla-se o fraturamento lateral e distal

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de cada retirada. De modo geral, a intenção é produzir
suportes curtos e convexos.
– A técnica é compreendida pela percussão direta com per-
cutor duro, aplicada a alguns milímetros da charneira.

Ressalta-se ainda que apresentam aspecto morfo-


lógico variável, segundo o estado de exploração. Quando
ocorre a exploração máxima das duas faces, o núcleo resulta
numa forma poliédrica, neste caso, a morfologia inicial destes
núcleos será difícil de ser reconhecida.

Produtos de lascamento decorrentes da debitagem discóide

As características morfotécnicas das lascas predeter-


minadas, provenientes da debitagem discóide, resultam da
807 utilização do “método recorrente”, que consiste em produzir
várias lascas de uma única superfície de lascamento. Análises
tecnológicas realizadas por Boëda (1995b), no sítio Külna
(Checoslováquia), identificaram lascas de direção “cordal” e
de direção “centrípeta”.

Figura 3: Estrutura Volumétrica de Debitagem Discóide


Fonte: baseado em Boëda (1993).
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Figura 4: Lascas Provenientes de Núcleo Discóide


Fonte: baseado em Boëda (1995). 808
As retiradas de direção “cordal”, segundo Boëda
(1995b), são feitas de eixo desviado em relação ao centro do
núcleo, suas funções são manter e controlar as convexidades
laterais do núcleo, já que, com o decorrer da exploração, as
retiradas centrípetas tendem a desconfigurar a convexidade
do núcleo. Os golpes são aplicados em direção paralela ao
talão, desta forma, nem sempre o eixo de debitagem dessas
retiradas é semelhante ao eixo morfológico. Dois tipos de
lascas ocorrem em direção “cordal”, as lascas denominadas
pseudo-levallois e transbordante.
As lascas de direção “centrípeta” representam nú-
cleos em estado avançado de exploração. Ocorrem dois tipos
principais: um caracterizado por lascas mais largas do que
compridas e com negativos na face externa cujas direções
convergem para o centro do núcleo; entre estes negativos,
nota-se a presença de uma retirada localizada na porção distal,
cuja direção é oposta ao eixo de debitagem da lasca. O outro
tipo é caracterizado por lascas com poucos negativos, em geral
de tendência quadrangular, cujos negativos são paralelos ao
eixo de debitagem da lasca suporte.

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• Concepção de debitagem piramidal

Segundo Boëda (1997), de um modo geral, as estruturas


necessárias à debitagem piramidal não permitem um grande
número de métodos e, quanto mais reduzida a variabilidade
dos métodos inerentes, mais a padronização se firmará.
A escolha do suporte de núcleo piramidal é deter-
minada pelos blocos que apresentam naturalmente uma das
faces espessas e outra plana ou por um bloco espesso, com as
superfícies organizadas de modo que uma delas se apresente
plana e a outra, convexa. O ângulo de retirada das lascas não
pode ser exageradamente abrupto, ou muito rasante, o que
inviabilizaria a produção de lascas que esse tipo de núcleo per-
mite: retangulares e pouco espessas. Se o ângulo for abrupto,
as lascas sairão curtas e, de outro modo, se for muito rasante,
809 o negativo produzido irá desconfigurar a superfície convexa.
Assim, o golpe de percussão para efetuar as retiradas deve ser
de ângulo semi-rasante e a manutenção deste núcleo piramidal
pode ser garantida com a retirada da extremidade do núcleo,
o ápice (Figura 5).
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Figura 5: Esquema de Debitagem de Núcleo Piramidal

Produtos de lascamento provenientes da debitagem piramidal

Os produtos de lascamento provenientes destas


debitagens piramidais são, assim como as lascas discóides, de
dimensões menores e bastante normatizadas, se comparadas às
das debitagens de baixo investimento tecnológico. Apresentam
forma retangular e face externa com uma ou mais nervuras-guias.
O negativo deixado na superfície de lascamento irá direcionar
a retirada da lasca posterior. O ângulo de percussão é semi-
abrupto. Não apresentam dorso e são pouco volumosos, em
geral apresentam perfil helicoidal e gumes rasantes. 810
SISTEMA DE DEBITAGEM DA INDÚSTRIA LÍTICA
DE SÍTIOS CERAMISTAS DO VALE DO RIO MANSO

Nos dez sítios estudados do Vale do Rio Manso, os


sistemas de debitagem se apresentaram de forma heterogênea.
Nota-se que há uma convivência, nos sítios, entre sistemas
tecnológicos de produção de instrumentos mais elaborados
e sistemas tecnológicos mais simples, como se pode observar
pela Tabela 4.

Tabela 4: Estrutura de Debitagem e Quantidade de Núcleos

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Legenda: X = concepção de debitagem constatada a partir dos produtos de lascamento.

Para apresentar os sistemas de debitagem registrados


nas indústrias líticas dos sítios de ceramistas da região do vale
do rio Manso, é preciso considerar primeiramente alguns
aspectos relacionados à gestão da matéria-prima. Para isso,
além da identificação do tipo de matéria-prima presente nas
séries líticas lascadas, algumas questões foram levantadas: quais
as matérias-primas que teriam sido utilizadas na pré-história
para a confecção dos instrumentos lascados desta região?
Qual a qualidade deste material rochoso? O que estava sendo
procurado? Em outras palavras, quais são as características
dessas rochas, os locais de ocorrência delas, como teria sido
possível obtê-las e qual a energia gasta para sua localização,
811 extração e transporte?
Gestão de Matéria-Prima

Embora à primeira vista a região do vale do rio


Manso apresente uma notável variedade e disponibilidade
de matérias-primas, uma análise mais detalhada, baseada não
somente nas características físicas do ambiente, mas também
na sua comparação com a coleção lítica presente nos sítios,
permite uma melhor reflexão.
De um modo geral, esta região possui, ainda hoje,
abundante matéria-prima lítica que esteve disponível para ser
utilizada na fabricação de instrumentos lascados pelas popu-
lações pré-históricas. A maior disponibilidade é atestada nas
áreas em que se encontram os estratos geológicos do Grupo
Cuiabá (bacia do rio Manso). Esta disponibilidade, em menor
proporção, também é atestada nas margens dos rios da bacia
do rio Casca (Formação Furnas e Botucatu), bem como nos
relevos de topo tabular, ambos presentes no entorno da região:
Morro da Mesa, Morro do Descalvado, Morro do Chapéu.
Pela análise do material lítico, constata-se que o sílex
e o arenito4 foram as matérias-primas predominantemente
utilizadas para lascar, ambas são provenientes de seixo de rio
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e fragmentos de colúvio (seixo, calhau e bloco). O sílex pode


ainda ser encontrado sob a forma de veio (também denomi-
nado de nódulo). Em geral, a qualidade da matéria-prima
disponível na região varia de média a regular. No entanto,
análises de detalhe permitem fazer algumas considerações
mais específicas.
No que diz respeito ao sílex, há uma diferença de
qualidade conforme sua forma de procedência. As rochas que
provêm de veio apresentam, em geral, grãos mais compactos
e homogêneos, com menos intrusões e superfícies de aspectos
translúcidos, consideradas de melhor qualidade, se comparadas
com aquelas provenientes de seixos rolados ou de fragmentos
coluviais (seixos, calhaus e blocos), que apresentam mais
fissuras e uma granulação menos compacta. Ressalta-se que
é justamente na forma de veio que ocorre a maior parte do
material arqueológico em sílex. 812
Embora a maior ocorrência de material arqueológico
em arenito tenha sido registrada na forma de seixo rolado, a
melhor qualidade ocorre nos grandes blocos. Os fragmentos
coluviais, em geral, se apresentam como matéria-prima de
qualidade inferior.
Também com base nas séries líticas analisadas,
observa-se que as peças em arenito, embora na maioria dos
sítios sejam quantitativamente menos representativas em
relação ao sílex, apresentam maiores dimensões. Os materiais
apresentam vestígios de córtex que denotam uma preferência
por seixos volumosos, de superfícies convexas, formando
ângulos naturais, representados por “quinas”, o que, em
termos tecnológicos, permite um melhor direcionamento
de retirada da lasca (TIXIER; INIZAN; ROCHE, 1980),
recurso comum nas debitagens de baixa complexidade tec-
nológica. Dessa situação, infere-se uma questão bastante
enfatizada por Pelegrin (1995), Boëda (1997), entre outros,
que se refere às “preferências” e às “escolhas” preconcebidas
de requisitos determinados, já que no ambiente dos referidos
rios distribuídos na região há tanto seixos angulosos quanto
arredondados e informes. Constata-se, ainda, preferência

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por seixos menores (de cerca de 20cm), mas também com
pelo menos uma das superfícies convexas, relacionados à
debitagem de estrutura discóide.
Sobre a ocorrência dessas matérias-primas, elas ocor-
rem, em geral, relativamente próximas aos sítios5. Informações
ambientais e observações de campo atestam que o rio Casca
e os afluentes de maior porte não constituem, em toda sua
extensão, locais propícios à localização de grandes seixos,
em razão da sedimentação fluvial de grande fluxo, pois estão
implantados em ambientes de baixa energia, levando à forma-
ção de meandros e transbordamentos de planícies. Não são,
portanto, propícios para a acumulação de cascalheiras. Esses
blocos grandes poderiam ter sido encontrados na região do
rio Manso, prioritariamente próximo aos sítios Salto Grande
e Estiva 1. Essas áreas caracterizam-se por sedimentação de
813 alta energia, possibilitando deposição lateral de cascalheiras.
O fluxo de alta energia, associado à quebra de relevo, torna
exposto o embasamento rochoso e a formação de pequenas
corredeiras. Portanto, são interpretados como possíveis locais
de pontos de captação de matéria-prima de características
desejáveis para os grupos pré-históricos da região do vale do
rio Manso.
Esses blocos grandes teriam sido parcialmente
explorados no local, hipótese baseada na dificuldade em
transportar blocos maiores, bem como na análise do material,
que aponta limitada presença de detritos líticos de descorti-
cagem nos sítios. Corroborando esta hipótese, constata-se,
em alguns sítios, como no Ribeirão Vermelho 6, a presença
de instrumentos volumosos cujos suportes provavelmente
teriam sido levados para estes assentamentos em estado de
preformatação.
Os seixos de dimensões menores (dimensão inferior
a 20cm), podem ser encontrados mais facilmente nos rios de
maior porte, em períodos de seca ou em qualquer época, às
margens dos afluentes dos rios maiores.
Os fragmentos coluviais, por sua vez, podem ocor-
rer em tamanhos e formas variadas. Essa matéria-prima
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localiza-se em ambientes de fácil acesso nas encostas de


praticamente toda a região, em especial do rio Manso, e
poderia ter sido transportada para o interior do sítio sem
representar esforços maiores.
A matéria-prima em sílex de veio, como já mencionado,
de um modo geral, apresenta melhor qualidade do que a de
sílex em seixo rolado ou em fragmentos coluviais, ocorrendo
em maior representatividade nos topos do Morro da Mesa e
Morro do Descalvado. Para a aquisição desta rocha, deve-se
levar em conta o tempo e a energia gastos para se chegar a esses
locais, já que estas regiões são formadas por escarpas muito
verticalizadas. A aquisição deveria ser feita por extração, já que
o material se encontra no subsolo, em profundidades variáveis.
Não há um padrão quanto às dimensões desses materiais, mas,
conforme observações de campo, ocorrem peças bem grandes,
com até três metros de comprimento. 814
Diante desse fato, considera-se que também no
presente caso haveria uma pré-formatação do núcleo e/ou do
suporte, antes de ele ser levado ao sítio. Finalmente, destaca-
se que a ocorrência de sílex de boa qualidade (em veio) não
foi pouco representativa nos sítios arqueológicos, embora
essa escolha tenha representado a necessidade de adoção de
estratégias específicas para aquisição dessa matéria-prima, sem
contar o tempo e a energia gastos para sua aquisição.

Sistemas de Debitagem de Baixa Complexidade Tecnológica

Sistemas de debitagem B e C

Foram identificados 26 núcleos, provenientes de sete


sítios arqueológicos. Eles ocorrem em sílex e arenito e são de
tamanhos diversos. O maior tem cerca de 130mmx120mmx
90mm e o menor, cerca de 45mmx30mm e 35mm.
A debitagem C, por meio da exploração por algo-
ritmo, esteve presente em todos os sítios. Ela foi constatada
diretamente, por meio dos núcleos, ou indiretamente, pelos
produtos de lascamento característicos (lascas com vestígios

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.


de predeterminação). Quando este tipo de núcleo não estava
presente, situação observada nos sítios São Roque, Milharal,
Fartura e Coca-Cola, supõe-se que os produtos de lascamento
tenham sido levados de fora para o interior do sítio.
Por vezes, analisando os núcleos desta categoria,
tem-se a impressão de que o núcleo tenha sido totalmente
explorado por séries contínuas de retiradas, em número supe-
rior a quatro. Todavia, após uma leitura diacrítica atenciosa e
da observação da presença de pátinas distintas, nota-se que se
trata de retomadas de séries anteriores, já existentes. Não há,
portanto, recorrência entre as séries, elas são somente sucessi-
vas. Esta situação é perceptível não somente nos núcleos com
mais de um plano de percussão, como também em algumas
lascas que apresentam evidências (negativos da face externa
com direção de retirada diferente do eixo tecnológico da lasca
815 e, em alguns casos, presença do próprio talão) de um outro
plano de percussão, produzido anteriormente e localizado,
neste momento, no dorso destas lascas.
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

Figura 6: Núcleo de Debitagem C – Sítio Mundo Novo

Figura 7: Núcleo de Debitagem C – Sítio Ribeirão Vermelho 6 816


A debitagem de tipo B, nos termos definidos por Boëda
et al. (2005), embora tenha sido identificada num único sítio
(Poção), é bem possível que tenha sido utilizada em outros
sítios. A ausência destes núcleos pode ser inferida pela sua
retomada como suporte para debitagem de tipo C, o que
camuflaria o negativo anterior (pertencente a B). Ademais,
já foi salientada a dificuldade em se reconhecer os produtos
de lascamento específico da debitagem B quando isolados
do núcleo, pois podem ser confundidos com os produtos

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.


Figura 8: Núcleo de Debitagem C – Sítio Ribeirão Vermelho 6

Produtos de Debitagem

Na indústria lítica dos sítios do vale do rio Manso,


em geral, as primeiras lascas provenientes de núcleos B ou C
foram retiradas com aproveitamento de características naturais
do núcleo. As mais comum são as quinas naturais6 dispostas
em sentido longitudinal aos seixos. Nota-se, ainda, predileção
por núcleos com áreas de convexidade natural, pelas quais é
possível predeterminar o comprimento das lascas. Pelo que
817 se observa, as lascas provenientes deste sistema de debitagem
normalmente são mais volumosas em relação àquelas retiradas
a partir do “método recorrente” (utilizado para a exploração
de estruturas discóide e piramidal).
As debitagens de tipos B e C produziram suportes
bastante variados tanto em forma como em dimensões. Delas
são provenientes lascas espessas e grandes, geralmente pro-
duzidas fora do sítio e introduzidas neles para se tornarem
suportes de núcleos ou de instrumentos. Também produziram
(no interior ou fora dos sítios) lascas médias, com volume
suficiente para serem moldadas por meio de atividades de
façonnage e/ou produzirem retoques no gume.
Ainda sobre os núcleos presentes nas indústrias lí-
ticas dos sítios, aqui em estudo e explorados por sistemas de
debitagem tecnologicamente mais simples, foram classificados
os núcleos explorados por procedimentos bipolares, conforme
definição de Crabtree (1972) e Prous (1986/1990) e os núcleos
explorados por fatiagem, apresentados no tópico a seguir.
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

Figura 9: Lascas Provenientes de Núcleos C – Sítios do Vale do Rio Man- 818


Sistema de debitagem bipolar

Os materiais7 obtidos por procedimentos bipolares


(nos termos definidos por Crabtree (1972) e Prous (1986/1990)
incluem-se no sistema de debitagem de tipo “B”, já que esta
estratégia, embora em raros casos possa produzir produtos
predeterminados (lascas em gomo, calotas etc.), em geral,
oferece pouco controle sobre as características dos produtos
de debitagem a serem obtidos. Os procedimentos bipolares
também representam desperdício de matéria-prima, pois,
para sair uma lasca em gomo – produto característico desta
debitagem –, normalmente uma grande quantidade de matéria-
prima é desperdiçada. Em contrapartida, entre as vantagens do
lascamento bipolar está o fato de a seleção da matéria-prima
não ser criteriosa: há possibilidade de lascar blocos de boa
qualidade (grãos compactos, homogêneos e sem fissuras) ou
não e de selecionar seixos sem que o controle do ângulo das
arestas seja levado em conta. Portanto, podem ser utilizados
até os seixos arredondados. E, finalmente, esse lascamento não
exige uma preparação anterior do núcleo (plano de percussão
ou superfície de debitagem).

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.


O material bipolar, nos termos acima definidos,
esteve presente em todos os sítios da região em estudo, mas
foi mais utilizado para abertura de plano de percussão de
seixos arredondados ou como forma de testar a qualidade
da matéria-prima. Produtos bipolares (especialmente lascas
em gomo e em calotas) em matéria-prima de boa qualidade
não são comuns, assim como há poucos instrumentos que
utilizavam este material como suporte.

Sistema de debitagem por fatiagem

A debitagem por fatiagem de seixo rolado foi relacio-


nada à concepção de debitagem do tipo C. Ela é um pouco
mais avançada que a debitagem algorítmica, pois toda a forma
da superfície natural do núcleo é levada em conta. Ela foi
819 constatada no vale do rio Manso especialmente a partir das
lascas encontradas nos sítios e não exatamente pela presença
dos núcleos. Pôde-se observar que a debitagem por fatiagem
consistiu na exploração de seixos de tamanhos medianos e
pequenos, de morfologia específica: alongados e de superfícies
levemente achatadas.
A debitagem teria sido realizada de dois modos:
• A partir de golpes abruptos aplicados em direção horizontal,
o núcleo é fatiado. As lascas obtidas apresentam em ambas
as laterais e na extremidade distal dorsos corticais contínu-
os, que se prolongam até as extremidades, formando lascas
“achatadas”, pouco espessas, em forma de disco.
• Os golpes podem ser em direção oblíqua, de forma que as
lascas apresentam uma das laterais com dorso e a outra é
formada por um fino gume. Note-se, pela figura 10, que as
lascas acompanham todo o comprimento do núcleo8.
• O núcleo teria sido iniciado a partir de uma retirada obtida
por golpe rasante, criando ângulo para as retiradas seguintes,
como sugere a Figura 11.
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

Figura 10: Esquema de Debitagem por “Fatiagem”


Fonte: Mello et al. (1996). 820
Figura 11: Esquema de Abertura de Plano de Percussão – Debitagem por
Fatiagem
Nota: desenho esquemático de Ernesto Tedesco.

Depois da abertura do plano de percussão, as lascas


teriam sido produzidas a partir de golpes abruptos aplicados
no centro da superfície do núcleo, porém, diferente da situação
anterior, as retiradas teriam sido feitas no sentido reto e não
atingiriam a extremidade do núcleo, já que a lasca inicial teria
produzido uma superfície oblíqua (rasante). Tal procedimento
resultou em lascas com córtex, que se estende da porção pro-
ximal até a parte das laterais, enquanto a extremidade distal é
formada por um gume rasante. Ressalte-se que o número de
retiradas seria limitado e, para dar continuidade à exploração
do núcleo, seria necessário outra retirada de golpe rasante. Por

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.


meio das características morfológicas do seixo e do ângulo,
teria sido possível obter a predeterminação da lasca: compri-
mento, largura e espessura do dorso.

Figura 12: Lascas Esquemáticas Provenientes de Debitagem por Fatiagem


821 Nota: desenho esquemático de Ernesto Tedesco.
A debitagem C, explorada por fatiagem, esteve pre-
sente em todos os sítios do vale do rio Manso, embora, em
geral, de forma pouco representativa. Ressalta-se que, com
exceção do sítio Ribeirão Vermelho 6 e do sítio Estiva 1, nos
demais não foram encontrados os núcleos desta concepção
de debitagem, o que leva a supor que a exploração tenha
sido realizada em outro local ou que o núcleo foi bastante
explorado, dificultando sua identificação.
As lascas produzidas por fatiagem são bastante padro-
nizadas: lascas circulares ou semicirculares, presença de dorso
cortical localizado na porção proximal, ou seja, no talão, enquanto
a porção distal apresenta gume rasante. Nota-se que lascas com
estas características também podem ser obtidas pela debitagem
C, explorada por algoritmos, e, em vários sítios, este tipo de lasca
serviu de suporte para instrumentos, diferentemente da lasca
de “fatiagem”, em que somente no sítio Ribeirão Vermelho 6
foram percebidas, com clareza, marcas de utilização. Sabe-se,
também, que a debitagem por “fatiagem” exige um controle
maior em relação à algorítmica, já que nela todas as partes do
núcleo têm de ser levadas em conta. Neste sentido, então, por
que não utilizar o método de exploração mais simples (do tipo
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

“C” por algoritmo) para produzir tais suportes?

Figura 13: Lascas de Fatiagem – Sítios do Vale do Rio Manso 822


Neste caso, uma resposta com base somente em pressu-
postos tecnológicos não é suficiente para esclarecer esta questão.

Sistema de Debitagem de Tecnologia Complexa


Sistema de debitagem discóide

Foram identificados 28 núcleos discóides, provenien-


tes de sete sítios arqueológicos. Eles ocorrem em arenito e sílex
e têm dimensões medianas: o maior tem cerca de 80mmx
60mmx30mm, e o menor, cerca de 35mmx30mmx20mm.
A debitagem discóide só está ausente no sítio Ronca-
dor dos Mendes. Nos sítios Coca-Cola e São Roque elas estão
representadas somente pelas lascas, já que os núcleos não foram
encontrados. Nos demais sítios, ela é bastante representativa.
Entre os núcleos dos sítios do vale do rio Manso, o
requisito volumétrico, ou seja, as superfícies convexas foram
obtidas de duas formas: escolha de seixos arredondados e de
convexidade média e produção de lasca, por percussão unipolar,
a partir de seixos médios a pequenos que apresentassem pelo
menos uma das superfícies convexas. A configuração final desta
lasca é marcada, na face interna, por um bulbo proeminente

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.


e, na face externa, por uma convexidade natural.

823 Figura 14: Suporte de Núcleos Discóides


Figura 15: Esquema de Delineamento de Gume de Núcleo Discóide

Observou-se, assim como foi proposto por Boëda


(1997), que, entre os núcleos das indústrias dos sítios do vale
do rio Manso, a exploração das superfícies não é rígida, ou
seja, ora atuam como plano de percussão ora como superfície
de debitagem. Foram observados núcleos com as seguintes
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

situações de exploração: as superfícies sendo alternadamente


exploradas; núcleos onde primeiramente uma face foi explo-
rada, e depois a outra, e núcleos discóides pouco explorados.
Ressalte-se que os núcleos apresentam em média duas (até
três) séries de retiradas, todavia, todas são sinérgicas entre si.
Aliás, de outra forma, o núcleo seria desestruturado. O esta-
do de exploração das faces destes núcleos iria refletir numa
variabilidade morfológica.
Pela medida do ângulo de retirada das lascas, nota-se
que o resultado vai ao encontro do exposto anteriormente,
ou seja, todas são secantes, variando de 60 a 50º.
Quanto à técnica de lascamento, foi registrada a
percussão direta com percutor duro. Os contrabulbos dos
negativos nos núcleos normalmente são pouco marcados, e
as lascas apresentam lábio destacado. A percussão é localizada
a alguns milímetros da charneira. 824
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.
Figura 16: Núcleos Discóides – Sítio Milharal e Sítio Ribeirão Vermelho 6

Produtos de debitagem

Os produtos de debitagem discóides das indústrias


líticas em estudo são mais normatizados, se comparados à
debitagem B ou C. Também são menos volumosos, de dimen-
sões menores e de formato quadrangular ou retangular. Neste
caso, os maiores comprimentos estão na largura. Apresentam,
ainda, gumes rasantes, e o ângulo de percussão é semi-rasante.
Apresentam perfil helicoidal. Não apresentam dorso (com
exceção das lascas de direção “cordal” e transbordante) e, em
geral, caracterizam-se pelos tipos mencionados por Boëda
825 (1995): cordal e centrípeta.
Ressalte-se novamente que, embora muitas destas
lascas apresentem evidências macroscópicas de terem sido
utilizadas brutas, há muitas outras lascas com características
tecnológicas semelhantes que não apresentam tais evidências.
Neste caso, exames de traceologia serão necessários.
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

Figura 17: Lascas Provenientes de Núcleos Discóides – Sítios do Vale do


Rio Manso 826
Sistema de debitagem piramidal

Os onze núcleos relacionados a este sistema de de-


bitagem ocorrem somente em sílex, o maior mede cerca de
70mm x 65mm x 55mm, e o menor cerca de 35mm x 30mm
x 35mm.
Quanto à concepção de debitagem piramidal, ela
foi a menos freqüente em alguns sítios e ausente em outros,
como demonstra a tabela anterior. No que se refere à qua-
lidade da matéria-prima, com exceção dos sítios Ribeirão
Vermelho 6 e Estiva 1, os núcleos são em matéria-prima de
qualidade média a ruim, o que contribuiu, conforme análise
dos negativos presentes nos núcleos e das lascas identificadas,
para retiradas não muito homogêneas, algumas refletidas ou
interrompidas por intrusões.

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

Figura 18: Núcleo Piramidal – Sítio Ribeirão Vermelho 6

Produtos de debitagem

As lascas piramidais são, assim como as provenientes


da debitagem discóide, bastante normatizadas – retangulares,
pouco espessas, apresentam, em geral, gumes afiados e dimen-
827 sões menores que as provenientes dos núcleos C.
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

Figura 19: Lascas Provenientes de Núcleos Piramidais – Sítios do Vale do


Rio Manso 828
Em alguns sítios constata-se ainda a presença de
pequenas lascas espessas, com superfície externa em forma
de ápice, cujos negativos convergem para o centro. Algumas
destas peças apresentam marcas de utilização. Provavelmente
se trata de ápices retirados de núcleos piramidais, já que alguns
núcleos não apresentam esta extremidade pontiaguda.

CONCLUSÃO

O estudo da cultura material lítica lascada dos sítios


de grupos ceramistas da região Centro-Oeste, diferentemente
do material cerâmico, tem sido, ao longo dos anos, pouco
aprofundado. Essa diferença de abordagem é justificada como
decorrente da pouca representatividade (em termos quanti-
tativos e qualitativos) deste tipo de material no contexto dos
sítios arqueológicos desta natureza. Não obstante, é importante
acrescentar que, mesmo em sítios onde o material lítico é
representativo, o estudo das análises líticas não acompanhou
o aprofundamento dado às análises cerâmicas. Desta forma,
em geral, o material é rotulado como tecnicamente simples
e circunstancial, sem uma base analítica segura que remeta a

, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.


tais características.
Além dos instrumentos polidos considerados como
representantes típicos destes assentamentos, pouco se sabe
acerca da parafernália lítica produzida e utilizada nos sítios de
ceramistas. Considerando as poucas informações da pré-história
regional acerca das indústrias líticas destes sítios, o presente
trabalho questiona se essas indústrias eram realmente tão
simples a ponto de não justificar um maior detalhamento das
pesquisas ou se as estratégias de análise não foram adequadas
para apreender outras características destes materiais.
Com esta pesquisa pôde-se constatar que a indústria
lítica dos sítios arqueológicos de grupos ceramistas pré-históricos
do vale do rio Manso está embasada numa estrutura complexa
de conhecimentos tecnológicos. Esta complexidade pôde ser
constatada pelos níveis evolutivos de debitagem (B, C e D)
829 que exigiu não somente seleção de matéria-prima adequada,
obtida com base em “escolhas” previamente determinadas, mas
também conhecimento e domínio dos métodos e técnicas, que
cada concepção exige para a eficácia de sua produção. Espera-
se que esta pesquisa, embora de caráter regional, possa não
somente contribuir com novos dados para a caracterização de
grupos ceramistas, mas também representar um instrumental
metodológico capaz de detectar variabilidades tecnológicas
presentes em indústrias líticas de sítios arqueológicos.

Notas

1
A região do vale do rio Manso começou a ser sistematicamente pesquisada no
final da década de 1990, por ocasião da construção da UHE-Manso/MT.
2
Há ainda sítios lito-cerâmicos localizados em planícies de inundação e
que apresentam contexto estratigráfico específico, mas que não foram
considerados pela presente pesquisa.
3
Para informações acerca das características do material cerâmico, consultar
Viana et al. (2002).
4
No tratamento das peças arqueológicas em laboratório, não foi possível
identificar quando um vestígio lítico era em arenito ou em quatzito,
principalmente em função do baixo grau de metamorfismo das rochas
do Grupo Cuiabá. Optou-se, por isso, identificá-lo como arenito.
, Goiânia, v. 4, n.2, p. 797-832, jul./dez. 2006.

5
Para Perlès (1992), matérias-primas locais são aquelas presentes num raio
de 5km.
6
Estas lascas também podem ser provenientes de exploração B.
7
Aqui se incluem lascas e “nucleiformes”, conforme definição de Prous
(1986, 1990).
8
Este tipo de exploração foi evidenciado também na região Centro-Oeste,
em sítios arqueológicos localizados na região de Serra da Mesa (GO) que
Fogaça (comunicação pessoal, 2005) considera terem sido explorados sobre
uma superfície (bipolar), dadas as dimensões avantajadas dos núcleos.
Mello et al. (1996) também registraram fatiagem em sítios na região do
rio Corumbá (GO).

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Jardim, Casca, Quilombo e Manso, 3 a 7 de junho de 1999. Goiânia


(impresso).

Abstract: this research analyze the debitage system used for exploration of core
present in ten litho-ceramic archaeological sites of the Manso river valley in
Mato Grosso (Brazil). These sites’ dates resulted in 340 (+-50) AP to 2.230
(+-40) AP. The analysis of this lithics objects is based on the debitage system
development characterization, identifying the different conceptions of support
production of flaking tools.

Key words: litho-ceramic sites, lithic technology, technical evolution, Brazilian


Central Plateau

* Doutora em Arqueologia pela PUCRS. Professora no Instituto


Goiano de Pré-história da Universidade Católica de Goiás.
E-mail: sibele@ucg.br 832

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