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O mal na política

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de março de 2014

Muitas vezes o leitor já deve ter-se perguntado como é possível que tantas pessoas, aparentemente
racionais, amem e aplaudam os governos mais perversos e genocidas do mundo e se recusem a
enxergar a liberdade e o respeito de que elas próprias desfrutam nas democracias ocidentais, ao mesmo
tempo que continuam acreditando, contra todas as evidências, que são moral e intelectualmente
superiores aos que não seguem o seu exemplo.

Hoje em dia essas pessoas, no Brasil, são a parcela dominante no governo, no Parlamento, nas cátedras
universitárias, no show business e na mídia. A presença delas nesses altos postos garante a este País
setenta mil homicídios por ano, o crescimento recorde do consumo de drogas, o aumento da corrupção
até a escala do indescritível, cinquenta por cento de analfabetos funcionais entre os diplomados das
universidades e, anualmente, os últimos lugares para os alunos dos nossos cursos secundários em todos
os testes internacionais, abaixo dos estudantes de Uganda, do Paraguai e da Serra Leoa. Sem contar, é
claro, indícios menos quantificáveis, mas nem por isso menos visíveis, da deterioração de todas as
relações humanas, rebaixadas ao nível do oportunismo cínico e da obscenidade, quando não da
animalidade pura e simples.

Isso torna a pergunta ainda mais crucial e urgente. A resposta, no entanto, vem de longe.

Sessenta e tantos anos atrás, alguns estudantes de medicina na Polônia, na Hungria e na


Checoslováquia começaram a notar que havia algo de muito estranho no ar. Eles haviam lutado na
resistência antinazista junto com seus colegas, e isto havia consolidado laços de amizade e solidariedade
que, esperavam, durariam para sempre. Aos poucos, após a instauração do regime comunista, novos
professores e funcionários, enviados pelos governantes, estavam alterando profundamente o ambiente
moral nas universidades daqueles países. Um jovem psiquiatra escreveu:

“nós sentíamos que algo estranho tinha invadido nossas mentes e algo valioso estava se esvaindo, de
forma irreparável. O mundo da realidade psicológica e dos valores morais parecia suspenso em um
nevoeiro gelado. Nosso sentimento humano e nossa solidariedade estudantil perderam seus significados,
como também aconteceu com o patriotismo. Então, nos perguntamos uns aos outros: ‘Isso está
acontecendo com você também?’”

Impossibilitados de reagir, eles começaram a trocar ideias, perguntando como poderiam se defender da
devastação psicológica geral. Aos poucos essas conversações evoluíram para o plano de um estudo
psiquiátrico da elite dirigente comunista e da sua influência psíquica sobre a população.

O estudo prosseguiu em segredo, durante décadas, sem poder jamais ser publicado. Aos poucos os
membros da equipe foram envelhecendo e morrendo (nem sempre de causas naturais), até que o último
deles, o psiquiatra polonês Andrej Andrew) Lobaczewski (1921-2007), reuniu as notas de seus colegas e
compôs o livro que veio a sair pela primeira vez no Canadá, em 2006, e que agora a Vide Editorial, de
Campinas, está para publicar em tradução brasileira de Adelice Godoy: Ponerologia. Psicopatas no poder,
do qual extraí o parágrafo acima.
“Poneros”, em grego, significa “o mal”. O mal, porque o traço dominante no caráter dos novos dirigentes,
que davam o modelo de conduta para o resto da sociedade, era inequivocamente a psicopatia. O
psicopata não é um psicótico, um doente mental. É uma pessoa de inteligência normal ou superior, às
vezes dotada de uma capacidade incomum para agir no ambiente social. Só lhe falta uma coisa: os
sentimentos morais, especialmente a compaixão e a culpa. Não que ele desconheça esses sentimentos.

Conhece-os perfeitamente, mas os vivencia de maneira puramente intelectual, como informações a ser
usadas, sem participação pessoal e íntima. Quanto maior a sua frieza moral, maior a sua habilidade de
manipular as emoções dos outros, usando-as para os seus próprios fins, que, nessas condições, só
podem ser malignos e criminosos. Justamente porque não sentem compaixão nem culpa, os psicopatas
sabem despertá-las nos outros como quem toca um piano e produz o acorde que lhe convém.

Não é preciso nenhum estudo especial para saber que, invariavelmente, o discurso comunista, pró-
comunista ou esquerdista é cem por cento baseado na exploração da compaixão e da culpa. Isso é da
experiência comum.

Mas o que o dr. Lobaczewski e seus colaboradores descobriram foi muito além desse ponto. Eles
descobriram, em primeiro lugar, que só uma classe de psicopatas tem a agressividade mental suficiente
para se impor a toda uma sociedade por esses meios. Segundo: descobriram que, quando os psicopatas
dominam, a insensitividade moral se espalha por toda a sociedade, roendo o tecido das relações
humanas e fazendo da vida um inferno. Terceiro: descobriram que isso acontece não porque a psicopatia
seja contagiosa, mas porque aquelas mentes menos ativas que, meio às tontas, vão se adaptando às
novas regras e valores, se tornam presas de uma sintomatologia claramente histérica, ou histeriforme.

O histérico não diz o que sente, mas passa a sentir aquilo que disse – e, na medida em que aquilo que
disse é a cópia de fórmulas prontas espalhadas na atmosfera como gases onipresentes, qualquer
empenho de chamá-lo de volta às suas percepções reais abala de tal modo a sua segurança psicológica
emprestada, que acaba sendo recebido como uma ameaça, uma agressão, um insulto.

É assim que um grupo relativamente pequeno de líderes psicopáticos destrói a alma de uma nação
Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 18 de dezembro de 2003

Investigando durante décadas a natureza do marxismo, acabei concluindo que ele não é
só uma teoria, uma “ideologia” ou um movimento político. É uma “cultura”, no sentido
antropológico, um universo inteiro de crenças, símbolos, valores, instituições, poderes
formais e informais, regras de conduta, padrões de discurso, hábitos conscientes e
inconscientes, etc. Por isso é autofundante e auto-referente, nada podendo compreender
exceto nos seus próprios termos, não admitindo uma realidade para além do seu próprio
horizonte nem um critério de veracidade acima dos seus próprios fins autoproclamados.
Como toda cultura, ele tem na sua própria subsistência um valor que deve ser defendido
a todo preço, muito acima das exigências da VERDADE OU DA MORALIDADE, pois
ele constitui a totalidade da qual VERDADE E MORALIDADE são elementos parciais,
motivo pelo qual a pretensão de fazer-lhe COBRANÇAS EM NOME DELAS SOA
AOS SEUS OUVIDOS COMO UMA INTOLERÁVEL E ABSURDA REVOLTA
DAS PARTES CONTRA O TODO, UMA VIOLAÇÃO INSENSATA DA
HIERARQUIA ONTOLÓGICA.
A constituição da sua identidade inclui dispositivos de autodefesa que  impõem severos
limites à crítica racional, apelando, quando ameaçada real ou imaginariamente, a
desculpas mitológicas, ao auto-engano coletivo, à mentira pura e simples, a mecanismos
de exclusão e liquidação dos inconvenientes e ao rito sacrificial do bode expiatório.
Iludem-se os que acham possível “contestar” o marxismo por um ataque bem
fundamentado aos seus “princípios”. A unidade e a preservação da sua cultura estão
para o marxista acima de todas as considerações de ordem intelectual e cognitiva, e por
isso os “princípios” expressos da teoria não são propriamente “o” fundamento da cultura
marxista: são apenas a tradução verbal, imperfeita e provisória, de um fundamento
muito mais profundo que não é de ordem cognitiva e sim existencial, e que se identifica
com a própria sacralidade da cultura que deve permanecer intocável. Esse fundamento
pode ser “sentido” e “vivenciado” pelos membros da cultura por meio da participação
na atmosfera coletiva, nos empreendimentos comuns, na memória das glórias passadas e
na esperança da vitória futura, mas não pode ser reduzido a nenhuma formulação verbal
em particular, por mais elaborada e prestigiosa que seja. Por isso é possível ser marxista
sem aceitar nenhuma das formulações anteriores do marxismo, incluindo a do próprio
Marx. Por isso é possível participar do movimento marxista sem nada conhecer da sua
teoria, assim como é possível rejeitar criticamente a teoria sem cessar de colaborar com
o movimento na prática. A investida crítica contra as formulações teóricas deixa intacto
o fundamento existencial, que atacado reflui para o abrigo inexpugnável das certezas
mudas ou simplesmente produz novas formulações substitutivas que, se forem
incoerentes com as primeiras, não provarão, para o marxista, senão a infinita riqueza do
fundamento indizível, capaz de conservar sua identidade e sua força sob uma variedade
de formulações contraditórias que ele transcende infinitamente. O marxismo não tem
“princípios”, apenas impressões indizíveis em constante metamorfose. Como a
realidade da vida humana não pode ser vivenciada senão como um nó de tensões que se
modificam no tempo sem jamais poder ser resolvidas, as contradições entre as várias
formulações do marxismo farão dele uma perfeita imitação microcósmica da existência
real, dentro da qual o marxista pode passar uma vida inteira imune às tensões de fora do
sistema, com a vantagem adicional de que as de dentro estão de algum modo “sob
controle”, atenuadas pela solidariedade interna do movimento e pelas esperanças
compartilhadas. Se o marxismo é uma “Segunda Realidade”, na acepção de Robert
Musil e Eric Voegelin, ele o é não somente no sentido cognitivo das representações
ideais postiças, mas no sentido existencial da falsificação ativa, prática, da experiência
da vida. Por isso qualquer povo submetido à influência dominante do marxismo passa a
viver num espaço mental fechado, alheio à realidade do mundo externo.
Detalharei mais no próximo artigo estas explicações, resumo das que ofereci no meu
recente debate com um professor da Faculdade de Direito da USP, às quais meu
interlocutor respondeu que eu pensava assim por ter “problemas emocionais graves” —
sem perceber que, com isso, dava a melhor exemplificação da minha teoria.

Do marxismo cultural
Olavo de Carvalho

O Globo, 8 de junho de 2002


Segundo o marxismo clássico, os proletários eram inimigos naturais do capitalismo. Lênin acrescentou a
isso a idéia de que o imperialismo era fruto da luta capitalista para a conquista de novos mercados.
Conclusão inevitável: os proletários eram também inimigos do imperialismo e se recusariam a servi-lo
num conflito imperialista generalizado. Mais apegados a seus interesses de classe que aos de seus
patrões imperialistas, fugiriam ao recrutamento ou usariam de suas armas para derrubar o capitalismo em
vez de lutar contra seus companheiros proletários das nações vizinhas.
Em 1914, esse silogismo parecia a todos os intelectuais marxistas coisa líquida e certa. Qual não foi sua
surpresa, portanto, quando o proletariado aderiu à pregação patriótica, alistando-se em massa e lutando
bravamente nos campos de batalha pelos “interesses imperialistas”!
O estupor geral encontrou um breve alívio no sucesso bolchevique de 1917, mas logo em seguida veio a
se agravar em pânico e depressão quando, em vez de se expandir para os países capitalistas
desenvolvidos, como o previam os manuais, a revolução foi sufocada pela hostilidade geral do
proletariado.
Diante de fatos de tal magnitude, um cérebro normal pensaria, desde logo, em corrigir a teoria. Talvez os
interesses do proletariado não fossem tão antagônicos aos dos capitalistas quanto Marx e Lênin diziam.

Mas um cérebro marxista nunca é normal. O filósofo húngaro Gyorgy Lukacs, por exemplo, achava a
coisa mais natural do mundo repartir sua mulher com algum interessado. Pensando com essa cabeça,
chegou à conclusão de que quem estava errado não era a teoria: eram os proletários. Esses idiotas não
sabiam enxergar seus “interesses reais” e serviam alegremente a seus inimigos. Estavam doidos. Normal
era Gyorgy Lukács. Cabia a este, portanto, a alta missão de descobrir quem havia produzido a insanidade
proletária. Hábil detetive, logo descobriu o culpado: era a cultura ocidental. A mistura de profetismo
judaico-cristão, direito romano e filosofia grega era uma poção infernal fabricada pelos burgueses para
iludir os proletários. Levado ao desespero por tão angustiante descoberta, o filósofo exclamou: “Quem
nos salvará da cultura ocidental?”

A resposta não demorou a surgir. Felix Weil, outra cabeça notável, achava muito lógico usar o dinheiro
que seu pai acumulara no comércio de cereais como um instrumento para destruir, junto com sua própria
fortuna doméstica, a de todos os demais burgueses. Com esse dinheiro ele fundou o que veio a se
chamar “Escola de Frankfurt”: um “think tank” marxista que, abandonando as ilusões de um levante
universal dos proletários, passou a dedicar-se ao único empreendimento viável que restava: destruir a
cultura ocidental. Na Itália, o fundador do Partido Comunista, Antônio Gramsci, fôra levado a conclusão
semelhante ao ver o operiado trair o internacionalismo revolucionário, aderindo em massa à variante
ultranacionalista de socialismo inventada pelo renegado Benito Mussolini. Na verdade os próprios
soviéticos já não acreditavam mais em proletariado: Stálin recomendava que os partidos comunistas
ocidentais recrutassem, antes de tudo, milionários, intelectuais e celebridades do “show business”.
Desmentido pelos fatos, o marxismo iria à forra por meio da auto-inversão: em vez de transformar a
condição social para mudar as mentalidades, iria mudar as mentalidades para transformar a condição
social. Foi a primeira teoria do mundo que professou demonstrar sua veracidade pela prova do contrário
do que dizia.

Os instrumentos para isso foram logo aparecendo. Gramsci descobriu a “revolução cultural”, que
reformaria o “senso comum” da humanidade, levando-a a enxergar no martírio dos santos católicos uma
sórdida manobra publicitária capitalista, e faria dos intelectuais, em vez dos proletários, a classe
revolucionária eleita. Já os homens de Frankfurt, especialmente Horkheimer, Adorno e Marcuse, tiveram a
idéia de misturar Freud e Marx, concluindo que a cultura ocidental era uma doença, que todo mundo
educado nela sofria de “personalidade autoritária”, que a população ocidental deveria ser reduzida à
condição de paciente de hospício e submetida a uma “psicoterapia coletiva”.

Estava portanto inaugurada, depois do marxismo clássico, do marxismo soviético e do marxismo


revisionista de Eduard Bernstein (o primeiro tucano), a quarta modalidade de marxismo: o marxismo
cultural. Como não falava em revolução proletária nem pregava abertamente nenhuma truculência, a nova
escola foi bem aceita nos meios encarregados de defender a cultura ocidental que ela professava
destruir.

Expulsos da Alemanha pela concorrência desleal do nazismo, os frankfurtianos encontraram nos EUA a
atmosfera de liberdade ideal para a destruição da sociedade que os acolhera. Empenharam-se então em
demonstrar que a democracia para a qual fugiram era igualzinha ao fascismo que os pusera em fuga.
Denominaram sua filosofia de “teoria crítica” porque se abstinha de propor qualquer remédio para os
males do mundo e buscava apenas destruir: destruir a cultura, destruir a confiança entre as pessoas e os
grupos, destruir a fé religiosa, destruir a linguagem, destruir a capacidade lógica, espalhar por toda parte
uma atmosfera de suspeita, confusão e ódio. Uma vez atingido esse objetivo, alegavam que a suspeita, a
confusão e o ódio eram a prova da maldade do capitalismo.

Da França, a escola recebeu a ajuda inestimável do método “desconstrucionista”, um charlatanismo


acadêmico que permite impugnar todos os produtos da inteligência humana como truques maldosos com
que os machos brancos oprimem mulheres, negros, gays e tutti quanti, incluindo animais domésticos e
plantas.
A contribuição local americana foi a invenção da ditadura lingüística do “politicamente correto”.

Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante nas universidades, na


mídia, no show business e nos meios editoriais do Ocidente. Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo
de “marxismo”, são imbecilmente aceitos como valores culturais supra-ideológicos pelas classes
empresariais e eclesiásticas cuja destruição é o seu único e incontornável objetivo. Dificilmente se
encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de teatro, um livro didático onde as crenças do
marxismo cultural, no mais das vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a
virulência do seu conteúdo calunioso e perverso.

Tão vasta foi a propagação dessa influência, que por toda parte a idéia antiga de tolerância já se
converteu na “tolerância libertadora” proposta por Marcuse: “Toda a tolerância para com a esquerda,
nenhuma para com a direita”. Aí aqueles que vetam e boicotam a difusão de idéias que os desagradam
não sentem estar praticando censura: acham-se primores de tolerância democrática.
Por meio do marxismo cultural, toda a cultura transformou-se numa máquina de guerra contra si mesma,
não sobrando espaço para mais nada.

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