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II. Educação Popular e PAULO FREIRE

Não há palavra verdadeira que não seja práxis.


Paulo Freire

Inicialmente, interessa retomar um dos problemas trazidos por Gramsci. Sendo possível
desenvolver a consciência crítica do povo, superando o senso comum, qual seria a forma de
realizar tal tarefa? 60 O próprio Gramsci oferece uma resposta à questão, da seguinte maneira:
“Este problema pode e deve ser relacionado com a colocação moderna da doutrina e da
prática pedagógicas, segundo as quais a relação entre professor e aluno é uma relação ativa,
de vinculações recíprocas, e que, portanto, todo professor é sempre aluno e todo aluno,
professor” 61 [original sem grifos]. Infelizmente o mestre italiano não aprofundou seus estudos
pedagógicos, o que leva à necessidade de socorro em outro referencial teórico para suprir tal
vazio.
Antes, porém, importante perspectiva é dada por Buber, ao comentar sobre a importância da
‘forma’ de ensino relativo à noção de ‘comunidade’. Assim se expressa: “Sem dúvida, embora
tal ensino seja importante, o seu caráter é muito mais importante que o seu conteúdo de
comunidade... Em outras palavras, o fato de o professor ensinar comunidade de modo
comunitário, ‘comunialmente’, ou, então, que ele faça, acima de tudo, aquilo que é o alfa de
toda a educação, o contexto educacional que em vez de ser uma tarefa a que o professor se
impõe é algo que ele revela”62. A ‘forma’ de ensinar pode ser, em diversos casos, tão ou mais
importante do que o conteúdo ensinado.
Para uma abordagem sobre a ‘forma’ de ensino vale-se, nesta monografia, do professor
Paulo Freire, reconhecida referência nacional e internacional. Infelizmente, sob pretexto de
utilizar suas teorias, diversas interpretações distorcidas surgiram. Essas interpretações
acabaram afastando certas camadas de intelectuais da teoria freiriana. Os juristas ali se
incluem, em geral, desconhecendo a proposta pedagógica de Paulo Freire. Esse fato deve-se
em parte pelo aludido preconceito criado, mas principalmente devido ao isolamento teórico
(ou seria retórico!?) do Direito. Importa destacar que Paulo Freire não fundou apenas um

60
Sobre a problematização do método de ensino para produção da autonomia intelectual Vide: GRAMSCI,
Antonio. Concepção Dialética da História, p.12.
61
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História, p.37.
62
BUBBER, Martin. Sobre Comunidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987, p. 99.
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método de alfabetização (como muitos pensam) mas, sobretudo, um método de ensino.


Contudo seu método de ensino parte, precisamente, do ‘ato de ler’.
O ‘ato de ler’ é conceito elucidativo da teoria de Paulo Freire. “Ler é reescrever o que
estamos lendo. É descobrir a conexão entre o texto e o contexto do texto, e também vincular o
texto/contexto com o meu contexto, o contexto do leitor”63. Para se ler, não basta apenas
‘verbalizar’ os fonemas ou conformar signos e significados. É preciso contextualizar na vida
prática, cotidiana, o texto ao contexto do leitor.
Ler um texto é relacioná-lo com o mundo64. Aprender a ler não significa apenas aprender a
ler a palavra (significado) mas também consiste em ler o mundo. “A leitura do mundo precede
a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da
leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a
ser alcançada por sua leitura crítica implica percepção das relações entre o texto e o
contexto”65. Logo, os analfabetos para Paulo Freire são pessoas que, apesar de lerem palavras,
não conseguem ler o mundo.
De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é
apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de
‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente. (...) É
neste sentido que a leitura crítica da realidade, dando-se num processo de alfabetização
ou não e associada sobretudo a certas práticas claramente políticas de mobilização e de
organização, pode constituir-se num instrumento para que o que Gramsci chamaria de
ação contra-hegemônica. 66 [original sem grifos]

A leitura do mundo não é um ato simples. Existe uma luta que a precede. A luta entre a
ideologia dominante e uma nova ideologia que busca tornar o homem crítico (em Gramsci
luta pela hegemonia e superação do senso comum). Algumas atitudes do popular refletem
essa luta. Entre elas se destaca o chamado ‘medo da liberdade’ em que os populares: “(...)
numa atitude em que manifestam o seu ‘medo da liberdade’, se referem ao que chamam de
‘perigo da conscientização’. ‘A consciência crítica (... dizem ...) é anárquica’ (...)”67.

63
FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia (O cotidiano do Professor). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986,
p. 22.
64
Neste sentido o emprego do termo 'analfabetismo funcional' foi disseminado pela Unesco desde o ano de 1958,
ilustrando a observação de Paulo Freire. Cf. RIBEIRO, Vera Masagão. A promoção do alfabetismo em
programas de educação de jovens e adultos. In: RIBEIRO, Vera Masagão (org.). Educação de jovens de adultos:
novos leitores, novas leituras. Campinas SP: Mercado das Letras; São Paulo: Ação Educativa, 2001, p. 46.
65
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 18ª ed. São Paulo: Autores
Associados: Cortez, 1987, p. 11-2.
66
Ibid., p.22-4.
67
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 23. Vide também: WREN, Brian. Educação para Justiça. São
Paulo: Edições Loyola, [S.D.], p. 90.
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Paulo Freire traz dois conceitos que esclarecem as atitudes do popular. O primeiro ele
denomina: “Prescrição. Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra.
Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que
vimos chamando de consciência ‘hospedeira’ da consciência opressora. (...) o comportamento
dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas estranhas a eles – as
pautas dos opressores”68. Aliás, em Gramsci já se pode observar tal crítica:
O homem ativo de massa atua praticamente, mas não tem uma clara consciência teórica
desta sua ação, que, não obstante, é um conhecimento do mundo na medida em que o
transforma. (...) É quase possível dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma
consciência contraditória): uma, implícita em sua ação, e que realmente une a todos os
seus colaboradores na transformação prática da realidade; e outra, superficialmente
explícita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crítica.69

A partir da prescrição o segundo conceito surge – qual seja, o conceito de ‘aderência’. “O


‘homem novo’, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da superação da
contradição, com a transformação da velha situação concreta opressora, que cede seu lugar a
uma nova, de libertação. Para eles, o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores
de outros. A sua visão do homem novo é uma visão individualista. A sua aderência ao
opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoas, nem a consciência da classe
oprimida”70.
Por outro lado, o opressor, em relação ao oprimido, adota a ‘falsa generosidade’. Esta
atitude fundamenta a assistência e o assistencialismo71. Nesse caso:
(...) o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos
oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a
ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua
‘generosidade’ continue tendo oportunidade de realizar-se, de permanência da injustiça.
A ‘ordem’ social injusta é fonte geradora, permanente, desta ‘generosidade’ que se nutre
da morte, do desalento e da miséria (...) a verdadeira generosidade está em lutar para que
desapareçam as razões que alimentam o falso amor.72

68
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 34. “São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles,
como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmo ou serem duplos. Entre expulsarem ou
não o opressor de ‘dentro’ de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados”. Ibid., p.35
69
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História, p.20.
70
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 33. “E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao
buscarem recuperar sua humanidade que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem
se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos”. Ibid., p.30.
71
“(...) a solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que
os faz ser este ‘ser para outro’.” FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 36.
72
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 31. A ciência ‘oficial’ também exerce o papel de ‘opressor’ num
viés elitista, vide: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O ardil da ordem: caminhos e armadilhas da educação popular.
Campinas: Papirus, 1983, p.15.
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Neste contexto, Paulo Freire cria um método de ensino inovador, um método


problematizador (o que depois será a base da Educação Popular). Antes de ater-se a esse
método, vale elucidar o uso da expressão ‘método’.73 Para Paulo Freire:
O método é, na verdade (diz o professor Álvaro Vieira Pinto), a forma exterior e
materializada em atos, que assume a propriedade fundamental da consciência: a sua
intencionalidade. O próprio da consciência é estar no mundo e este procedimento é
permanente e irrecusável. Portanto, a consciência é, em sua essência, um ‘caminho para’
algo que não é ela, que está fora dela, que a circunda e que ela apreende por sua
capacidade ideativa. Por definição, a consciência é, pois, método, entendido este no seu
sentido de máxima generalidade. Tal é a raiz do método, assim como tal é essência da
consciência, que só existe enquanto faculdade abstrata e metódica.74 [original sem grifos]

Para construir um novo método pedagógico, Freire parte de uma crítica ácida ao que ele
denomina como ‘ensino bancário’. “Na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação
dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das
manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que
constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre
no outro”75. A crença na ignorância do educando é o fundamento da educação bancária76. O
educando ignorante e submisso é o educando objeto. O educando onde se depositarão
conteúdos, como se depositam valores em um cofre. O educando objeto é o educando
domesticado. Acima de tudo é o educando incapaz de ser sujeito. “(...) a narração os
transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vá
‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será”77. Freire resume
a posição do educador e do educando da seguinte maneira:

CONCEPÇÃO BANCÁRIA DE ENSINO


PAPEL DO EDUCADOR PAPEL DOS EDUCANDOS
educa são educados

73
“MÉTODO – (Do gr. méthodos, ‘caminho para chegar a um fim’) 1. Caminho pelo qual se atinge um objetivo.
(...) 3. Processo ou técnica de ensino: método direto. (...)” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo
Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.1128. Vide também:
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. [trad. Fátima Sá Correia, et alii] São Paulo:
Martins Fontes, 1993, p. 679. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000,
p. 532. Aqui, método será usado no sentido de ‘forma intencional’.
74
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. p. 56.
75
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 58.
76
É possível encontrar algumas charges sobre a questão do ensino bancário em: FREIRE, Paulo; CECCON,
Claudius; OLIVEIRA, Miguel Darcy de; OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Vivendo e Aprendendo (experiências
do Idac em educação popular). 6ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983, p. 107-122.
77
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 58. Atente-se que “(...) temos que reconhecer que nem todos os
tipos de aulas expositivas pode ser consideradas educação ‘bancária’. Você pode ser muito crítico fazendo
preleções. (...) O educador libertador iluminará a realidade mesmo com aulas expositivas”. FREIRE, Paulo &
SHOR, Ira. Medo e Ousadia, 1986, p. 53-4.
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sabe não sabem


pensa são pensados
diz a palavra escutam docilmente
disciplina são disciplinados
opta e prescreve sua opção seguem a prescrição
atua ilude-se, acreditando atuar
escolhe o conteúdo programático não são ouvidos e se acomodam ao conteúdo
identifica autoridade do saber com a autoridade adaptam-se as determinações do educador
funcional
é o sujeito do processo educativo são os objetos do processo educativo
Fonte: Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987, p. 59.

As características do ensino bancário demonstram a sua estreita ligação com a ideologia


dominante. Aquelas figuram um aparato simbólico para a dominação. O educando quando
reificado se desumaniza. Porém não só o educando é desumanizado: o processo também
desumaniza o professor, o qual não consegue aprender enquanto ensina. A educação, pelo
viés tradicional, é uma atividade de opressão, de imposição e de submissão78. Paulo Freire, ao
denunciar o método bancário, expôs a questão política da educação. Assim, “(...) o que
pretendem os opressores ‘é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que
oprime’, e isto para que, melhor adaptando-se a esta situação, melhor dominem. Para isto se
servem da concepção e da prática ‘bancárias’ da educação, a que juntam toda uma ação social
de caráter paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpático de ‘assistidos’.” 79 O
ensino bancário é a base de uma ação antidialógica que se pautará em: conquista; divisão para
manter a opressão; manipulação; invasão cultural80.
Por isso, Paulo Freire propõe um novo método de ensino que não parta da crença da
ignorância do educando. “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se
educam entre si, mediatizados pelo mundo”81. “‘Não há educadores puros’, pensou Paulo
Freire. ‘Nem educandos’. De um lado e do outro do trabalho em que se ensina-e-aprende, há
sempre educadores-educandos e educandos-educadores. De lado a lado se ensina. De lado a
lado se aprende”82. Neste sentido FOUCAULT elucida:
(...) o que os intelectuais descobriram desde o avanço recente é que as massas não têm
necessidade deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que

78
Vide: CAPALBO, Creusa. Ideologia e Educação. São Paulo: Convívio, 1978, p. 54 e Ss.
79
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 60.
80
Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 135 e Ss.
81
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 68.
82
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é método Paulo Freire. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p.
22.
20

eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe,
invalida este discurso e este saber. Poder que não está somente nas instâncias superiores
da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a rede da
sociedade. Eles próprios, os intelectuais, fazem parte deste sistema de poder, a idéia de
que eles são os agentes da ‘consciência’ e do discurso, ela própria, faz parte deste
sistema. O papel do intelectual não é mais colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de
lado’ para dizer a verdade muda de todos; é antes lutar contra as formas de poder onde ele
é ao mesmo tempo o objeto e o instrumento: na ordem do ‘saber, da ‘verdade’, da
‘consciência’, do ‘discurso’. É nisto que a teoria não expressará, não traduzirá, não
aplicará uma prática, ela é uma prática.83 (sublinhamos)

Por isso uma pedagogia inovadora não pode ser concebida pelos intelectuais ‘para’ os
populares. Tem que ser construída em conjunto, “(...) pedagogia do oprimido: aquela que tem
de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de
recuperação de sua humanidade”.84 “Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas
criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”.85
Uma nova educação pretende humanizar os homens, transformá-los em sujeitos históricos.
“A educação das massas se faz, assim, algo de absolutamente fundamental entre nós.
Educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e de
libertação. A opção por isso, teria de ser também, entre uma ‘educação’ para a
‘domesticação’, para a alienação, e uma educação para a liberdade. ‘Educação’ para o
homem-objeto ou educação para o homem-sujeito”.86
Neste contexto, a nova educação é uma educação para a cidadania. “O fator essencial para
esse progresso é a cidadania, definida como competência humana de fazer-se sujeito, para
história própria e coletivamente organizada”.87 “Um dos aspectos mais importantes do
nosso agir educativo, na fase atual de nossa história, será, sem dúvida, o de trabalhar no
sentido de formar, no homem brasileiro, um especial senso, que chamamos de senso de
perspectiva histórica”.88
Freire não transformou o ato da educação em um ato meramente político (apesar de ter
desvelado o seu caráter político) – pelo contrário, considerava de extrema importância o

83
FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. In: ESCOBAR, Carlos Henrique de. Psicanálise e Ciência da
História. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca Ltda., 1974, p. 141.
84
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 32.
85
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 16ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2000, p. 52.
86
FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1969, p.36.
87
DEMO, Pedro. Cidadania Tutelada e Cidadania Assistida. Campinas: Autores Associados, 1995, p. 01.
88
FREIRE, Paulo. Educação e Atualidade Brasileira. 2ª ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2001, p.
20.
21

ensino da técnica.89 Também não forjou uma pedagogia periférica: pretendeu, com seu
método, estabelecer novos horizontes educacionais. Transformou o processo educativo em um
processo democrático. “A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode
temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser
uma farsa”.90 O ensino inovador é a base de uma ação dialógica que se pautará em:
Colaboração; União; Organização; Síntese Cultural.91
Comparando as concepções de ensino é possível observar suas implicações. “A ‘bancária’
insiste em manter ocultas certas razões que explicam a maneira com estão sendo os homens
no mundo e, para isto, mistifica a realidade. A problematizadora, comprometida com a
libertação, se empenha na desmitificação. (...) a primeira nega o diálogo, enquanto a segunda
tem nele o selo do ato cognoscente, desvelador da realidade (...) A concepção e a prática
‘bancárias’, imobilistas, ‘fixistas’, terminam por desconhecer os homens como seres
históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da
historicidade dos homens”.92
Na análise do ensino jurídico, importa olhar seus rastros históricos: “(...) sustentam que as
academias de Direito foram responsáveis por uma prática de tal modo comprometida com os
processos de exploração econômica e de dominação política que o bacharel não foi preparado
para o exercício da função crítica”.93 No cotidiano, o método de ensino jurídico se apresenta
majoritariamente através do método bancário ou tradicional. Neste sentido:
A educação a nível universitário converteu-se, então, numa banal e descompromissada
atividade de informações genéricas e/ou profissionalizantes – como os alunos sem saber
ao certo o que fazer diante de um conhecimento muitas vezes transmitido de maneira
desarticulada e pouco sistemática, sem rigor metodológico, sem reflexão crítica e sem

89
“O educador libertador procurará ser eficiente na formação dos educandos científica e tecnicamente, mas
tentará desvendar a ideologia envolvida nas próprias expectativas dos estudantes”. FREIRE, Paulo & SHOR, Ira.
Medo e Ousadia, p. 86.
90
FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade, p. 96.
91
Cf. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 165 e Ss.
92
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 72.
93
ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder, Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1988, p.159. “Efetivamente não
parece que a principal atividade desses intelectuais/bacharéis tenha sido a de se dirigir às massas populares,
fazendo proselitismo das letras numa intensa atividade civilizatória entre essas camadas sociais”. Ibid., p.160.
22

estímulo às investigações originais.94 O ensino jurídico tem que buscar uma concepção
totalizadora do direito (...) Não é possível reduzir o direito à técnica jurídica (...).95

Na UFPR a crítica contundente é oferecida pelo prof. Eroulths CORTIANO JUNIOR:


Há um grande descompasso entre o ensino do direito, o direito existente e a própria
sociedade onde se produz este direito ensinado, ou não ensinado. Esse descompasso põe
em dúvida os vários métodos de ensino, os conteúdos programáticos dos cursos de
direito, as grades curriculares, a função das faculdades de direito e dos bacharéis que
delas sairão. Põe em dúvida, enfim, todo o ensino jurídico no Brasil. Por isso as críticas à
formação dos juristas que, baseada na valha aula-douta coimbrã, na pregação catedrática
e no caráter livresco do ensino, acabou por revelar uma personalidade especial do
bacharel, que foi comparado aos mandarins, pelo poder e pelos rituais que os cercavam.96
[original sem grifos]

Enfim, não é preciso esforço “Para se perceber o quão dissociado está o conteúdo
transmitido das necessidades sociais, basta analisar a prática pedagógica dos cursos de Direito
e sua estrutura curricular: baseia-se na transmissão de conceitos abstratos, genéricos, de
conhecimento da estrutura do sistema de normas legais, seus institutos jurídicos, valorizando
os aspectos técnicos e procedimentais, sem qualquer referência a sua função social,
desprezando qualquer análise crítica”.97 O estudante de Direito objeto reproduz o método de
ensino que conhece na Universidade quando atua nas atividades de extensão. Sem uma
reflexão crítica acaba por tratar a questão da democratização do conhecimento jurídico apenas
pelo método bancário. Em resumo, reproduz-se um método de ensino para estagnação social.
Assim, preconiza-se:
(...) uma transformação radical na instituição universitária com a adoção de uma nova
pedagogia, que supere a metodologia normativista, caudatária do ‘cientificismo’ jurídico
que teve suas origens nas filosofias políticas do século XVIII.98 Uma instituição
consciente, contudo, não é aquela que se limita a elaborar críticas brilhantes, na pura
reflexão, no discurso progressista. Criticar muito não é suficiente; tem que se fazer

94
FARIA, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1987, p. 18.
Vide: Ibid., p. 28-9; CUNHA, Rosa Maria Cardoso da; WARAT, Luis Alberto. Ensino e Saber Jurídico. Rio de
Janeiro: Eldorado Tijuca, 1977, p.12; MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Introdução ao estudo do Direito :
conceito, objeto, método. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1982, p. 163-4; MARQUES NETO, Agostinho
Ramalho. Reflexões sobre o ensino de Direito. In: Anais Seminário Nacional de Ensino Jurídico, Cidadania e
Mercado de Trabalho. Curitiba: Gráfica Linarth, 1996, p. 30.
95
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Do Ensino Jurídico: conhecimento e produção criativa do direito. In: Direito e
Democracia - Revista de Ciências Jurídicas Ulbra. Vol. 2, nº 1, 1º Semestre de 2001, Canoas: Editora Ulbra,
2000, p. 64.
96
CORTIANO JUNIOR., Eroulths. O Discurso Jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do Ensino
do Direito de propriedade. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p.207-8.
97
RIBEIRO, Guilherme Wagner. Uma abertura para a universidade aberta: ensino jurídico e estágio na periferia
In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Nova Fase. Vol. 35, nº 35, Belo Horizonte, 1995, p. 352.
98
PORTANOVA, Rui. Motivações Ideológicas da Sentença. 4ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000,
p. 98.
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presente no mundo, transformando-o a partir da dialética prática/teórica. É pela


transformação do mundo que se toma consciência dele.99

A extensão universitária é uma atividade abandonada nas Universidades de Direito, sendo


“(...) considerada uma atividade marginal, sem muita importância. Considerá-la atividade
secundária é um equívoco lastimável, pois, intrínseco ao seu conceito, está a noção do
compromisso social que a universidade tem com a realidade circundante”.100
A extensão que pretenda ser crítica não pode assimilar o método de ensino tradicional.
Novamente o primeiro passo recai sobre a desconstrução da crença na ignorância da
comunidade: “Ninguém sabe tudo, assim como ninguém ignora tudo. O saber começa com a
consciência do saber pouco (enquanto alguém atua). É sabendo que sabe pouco que uma
pessoa se prepara para saber mais”.101
Para ser desenvolvida uma atividade de extensão deve-se ficar atento ao conceito de invasão
cultural e de prescrição anteriormente tratados. Na “(...) invasão cultural (...) O invasor reduz
os homens do espaço invadido a meros objetivos de sua ação. (...) O primeiro atua, os
segundos têm a ilusão de que atuam na atuação do primeiro; este diz a palavra; os segundos,
proibidos de dizer a sua, escutam a palavra primeiro. O invasor pensa, na melhor das
hipóteses, sobre os segundos, jamais com eles; estes são ‘pensados’ por aqueles. O invasor
prescreve; os invadidos são pacientes da prescrição”.102 Freire polemiza contrariando o uso da
expressão ‘extensão universitária’, a qual identifica como ensino bancário e a invasão
cultural, sugerindo sua substituição pela expressão ‘comunicação’. Não se adotará esta porque
se entende que a expressão recorrente é ‘extensão’ e, portanto, a fim de superar a metodologia
tradicional é preciso reconhecer-se a atividade exercida e, em última análise, sua
argumentação é de grande valia e enriquecedora.103 Por isso, a atividade de extensão não pode
se resumir a uma atividade assistencialista: ela precisa superar a função de assistência para
atingir uma função emancipadora. “Insistimos em afirmar que esta não é uma discussão
bizantina. No momento em que os ‘trabalhadores sociais’ definam seu quefazer como
assistencialista e, não obstante, digam que este é um quefazer educativo, estará cometendo na

99
RIBEIRO, Guilherme Wagner. Op. Cit., p. 354.
100
RIBEIRO, Guilherme Wagner. Op. Cit., p. 355.
101
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 47. “Se você estuda
Ciências Sociais na universidade, segundo certa abordagem, aprende que a realidade é uma coisa, uma pesquisa,
ou um modelo estatístico. Outra coisa, porém, é aprender sentindo a realidade como algo de concreto. Para
aprender esse sentimento concreto, nada melhor do que ter trabalhadores como seus professores. Eles vivem a
experiência das coisas que devemos estudar”. FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia, p.42.
102
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação?, p. 41-2.
103
Vide: FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação?, p. 19 e Ss.
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verdade um equívoco de conseqüências funestas, a não ser que tenham optado pela
‘domesticação’ dos homens, no que estarão sendo coerentes e não equivocados”.104
Cabe aqui, ainda, a reflexão sobre o conceito de ‘quefazer’. O conceito freiriano de quefazer
aproxima-se do conceito de práxis marxiana. “Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e
ação, estão intimamente solidários. Mas a ação só é humana quando, mais que um puro fazer,
é um quefazer, isto é, quando também não se dicotomiza da reflexão”.105 “O quefazer é teoria
e prática. É reflexão e ação. Não pode reduzir-se (...) nem ao verbalismo, nem ao ativismo”.106
Freire utiliza-se desse conceito para definir a educação como um quefazer. Aliás, mais do que
isso, educação é um quefazer político.
A educação deixa de ser estática acepção de conteúdo para ser tarefa de práxis, tarefa de
libertação constante. “Vale dizer, pois, que reconhecerem-se limitados pela situação de
opressão, de que o falso sujeito, o falso ‘ser para si’, é o opressor, não significa ainda sua
libertação. Como contradição do opressor, que tem neles a sua verdade, como disse Hegel,
somente superam a contradição em que se acham quando o reconherem-se oprimidos os
engaja na luta por libertar-se (...) que se entreguem à práxis libertadora”.107
Neste sentido a omissão também é uma postura, a postura da manutenção do status quo. O
poder estabelecido não pretende discutir o ensino e seu método. “Os defensores da
neutralidade da alfabetização não mentem quando dizem que a clarificação da realidade
simultaneamente com a alfabetização é um ato político. Falseiam, porém, quando negam o
mesmo caráter político à ocultação que fazem da realidade”.108 “Promover processos
educacionais sem questionar o paradigma hegemônico significaria esquivar-se da
responsabilidade política da educação em relação ao presente e ao futuro”.109
Principalmente depois do exílio pós-golpe militar de 64, Freire se torna mais realista em
relação aos limites da educação. BOURDIEU já anota que: “Seria, pois, ingênuo esperar que,
do funcionamento de um sistema que define ele próprio seu recrutamento (impondo
exigências tanto mais eficazes, talvez, quanto mais implícitas), surgissem as contradições

104
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação?, p. 44.
105
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 40.
106
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 121.
107
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 35-6.
108
FREIRE, Paulo. A educação é um quefazer neutro? Parte final de sua fala no Simpósio Internacional para a
Alfabetização, em Persépolis, IRÃ, em setembro de 1975. In: GADOTTI, Moacir. História das Idéias
Pedagógicas. (p. 254-5) São Paulo: Editora Ática,1995
109
HORTA, Maria del Mar Rubio. Educar em direitos humanos: compromisso com a vida. SACAVINO, Susana.
Educação em Direitos Humanos e Cidadania. In: CANDAU, Vera Maria (org.); SACAVINO, Susana (org.); et
alii. Educar em Direitos Humanos. Construir Democracia. Rio de Janeiro. DP&A, 2000, p. 128.
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capazes de determinar uma transformação profunda na lógica segundo a qual funciona esse
sistema, e de impedir a instituição encarregada da conservação e da transmissão da cultura
legítima de exercer suas funções de conservação social”.110 A educação é apenas uma parte do
processo (total) de exclusão social, atente-se que “A partir da década de sessenta, os estudos
sociológicos foram revelando que a massificação da educação não alterava significativamente
os padrões de desigualdade social”.111
Freire, consciente dessa reflexão, assinala zelo ao se tratar dos limites da educação na
transformação social. “Ao discutir os limites da educação, eu quis dizer que todos esses tipos
de expressão cultural de que você falou – silêncio, alienação, sabotagem, agressão – têm
algumas razões materiais muito, mas muito concretas na sociedade. E eu queria acrescentar
que não é só através de nosso testemunho democrático que mudamos essas condições, embora
nosso testemunho seja exigido como uma força importante para realizar a mudança. Só as
condições sociais podem explicar as reações dos estudantes em sala de aula e para mudar
essas condições é preciso mais do que nossa pedagogia democrática”. 112
A educação serve para o desenvolvimento da experiência democrática num país sem
tradição democrática como o Brasil. Logo, “O problema para nós prossegue, transcende a
erradicação do analfabetismo e se situa na necessidade de erradicarmos também a nossa
‘inexperiência democrática’, através de uma educação para a democracia, numa sociedade que
se democratiza”.113
Nesse sentido, a metodologia libertadora de Paulo Freire inspira a prática de uma Assessoria
jurídica popular que se pretende inovadora, uma vez que não reifica o sujeito que dela
participa, superando o problema do analfabetismo (inclusive político) para construir uma
experiência democrática.
Tal perspectiva coaduna-se com os ensinamentos de Gramsci no que concerne à consecução
de uma democracia em nível superior, que seja substancial, partindo da ação política da
conquista da hegemonia mediante a educação. Também retoma-se de Gramsci a possibilidade
de todo homem ser intelectual face à igualdade com seus semelhantes. Todos podem ser

110
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. (organização Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani) Petrópolis
(RJ): Vozes, 1998, p. 58.
111
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. 3ª ed. São
Paulo: Cortez, 1997, p. 212.
112
FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia, p. 162. Vide também: Ibid., p. 157-8.
113
FREIRE, Paulo. Educação e Atualidade Brasileira, p. 87.
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intelectuais porque todos têm algo a ensinar. Por isso, o diálogo fundamenta a educação para a
democracia substancial.
Roberto Lyra Filho, como a seguir será visto, resgata a função do Direito, dentro da tarefa
de construir a experiência democrática nacional, através da problematização de dogmas em si
impregnados. Assim, quebra a idéia do monopólio estatal do jurídico, o que sustenta uma ação
dialogal para a consciência dos direitos, defendendo a teoria dialética do Direito. Sua proposta
instrumentaliza o fenômeno jurídico como substrato da educação para a democracia.

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