Você está na página 1de 1

DEUS CRISTAL

O cristal sempre estivera ali, e era um motivo de orgulho arraigado para o povo de Urielka.
Nos ermos mais solitarios de Tyrondir, havia pouco pelo que se orgulhar, e o grande cristal
motivara o surgimento da vila, atraira os parcos viajantes que surgiam de tempos em tempos.
Urielka plantava, criava animais esparsos, subsistia. O cristal, pouco menor que um homem e cravado
desde sempre na terra, bem no centro do povoado, nunca fizera nada alem de existir, refratando a luz do
sol.
Mas, naquela manhã, Dealla acordou com uma certeza diferente. Passou pelo cristal
enquanto levava o balde ate o poco, e enxergou as caras esmaecidas dos conterrâneos. Havia um medo
inexplicável, uma sensacao de final iminente. Ninguém conversava no alvorecer de Urielka, nada mais
era bom. A água tinha um gosto estagnado. Os filhos de Dealla não quiseram deixar as camas, e ela pegou
o marido soluçando, escondido no celeiro.
Apenas o cristal continuava o mesmo.
Durante o dia, ela arranjou pretextos para vê-lo de novo, e a cada vez mais belo e imutavel.
Noitinha, estava sentada frente ao objeto, e percebeu que davam por sua falta. Antes de ir
embora, pediu que o cristal abençoasse seu sono.
Na manhã seguinte, Dealla parou em frente ao cristal, e pediu, em voz alta, que velasse por sua família.
Recebeu olhares, mas nao se importou.
No terceiro dia, Dealla arrastou um bezerro até o cristal, e cortou sua garganta em
homenagem. O povo da aldeia olhou aquilo, e alguns acharam que Dealla ficara louca.
Mas alguém disse:
— Se ela estiver certa, não fará mal rezar também.
Primeiro dois, depois sete, vinte, cem pessoas rezaram ao cristal no centro de Urielka. Sacrificaram
animais, deixaram oferendas de comida e moedas. Aos poucos, o vazio que
sentiam desde aquela noite tornou-se menos agudo. Havia assunto em Urielka. Alguns
comecaram a lembrar de milagres realizados há muitos anos, pelo cristal. O primeiro viajante que se
deparou com aquilo achou estranho. Mas, temendo a hostilidade da sacerdotisa Dealla e de seu rebanho,
tambem se ajoelhou. Contou a história a alguém, numa estalagem, e logo vieram pessoas oferecer
devoção.
Urielka estava cheia, depois de dois meses. Dealla falava por horas sobre a maravilha do
cristal, sobre como sua angústia fora varrida. No inicio do terceiro mês, o cristal brilhou com luz própria.
— Meus filhos — disse o objeto.

Você também pode gostar