Helena Machado (2008)

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Heleue Hechecto (soas) Heid de Sromtegtea, foNanectnes Género e crime 1, RESULTADOS ESPERADOS DE APRENDIZAGEM No final do processo de aprendizagem desta unidade programatica, 0 estudante deveré estar apto a: + reconhecer a «invisibilidade» das mulheres na Criminologia tradicional; «debater a necessidade de uma abordagem generizada do crime e do criminoso; + questionar os motivas sociais pelos quais as mulheres cometem menos crimes do que (0s homens; + identificar a importéncia da varidvel «género» e respectivas articulagbes com outras, varidveis, tais como 2 idade, a classe social, a raga, a etna, a escolaridade e pasicao ‘econémicas « conhecer as diferentes variantes da denominada «Criminologia Feminista». 2, TEMAS E DEBATES DA CRIMINOLOGIA FEMINISTA 0 género 6 a variével de diferenciagzo mais consistente na andlise do fenémeno erimi- nal: os homens praticam mais crime, as mulheres sZo mais vitimas de crime. Os motivos pelos quais isto acontece no so ainda hoje muito claros e as possiveis respostas néo retinem consenso. Além disso, s6 recentemente o impacto das diferencas de género na abordagem do crime comecou a despertar o interesse dos investigadores e profissionais da 4rea do crime, justia e reinsercio social. Reconhecer a importancia da varivel do género na vida em sociedade, nomeadamente em relacio a questao do crime, equivale a salientar as dimensGes politicas, sexuais e cul- frais associadas as diferencas biolégicas entre mulheres e homens. A Criminologia tradicional ignorou a especificidade das mulheres ao nfvel da crimi- jclogia do Crime 12, nalidade e do sistema de justiga criminal, produzindo uma teoria generalista, suposta- mente aplicavel a0s dois sexos, ou entao distorcendo a andlise por no se considerar as possiveis especificidades das mulheres (Smart, 1976). A irrelevancia estatistica da pritica de crime por parte das mulheres ¢ a sua diminuta taxa de reincidéncia criminal contri- buiram para que, durante muito tempo, a prética do crime por parte das mulheres fosse negligenciada, ‘Ainda hoje, a abordagem tedrica e empfrica do crime parte essencialmente da anélise do comportamento dos homens, por serem estes a grande maioria dos autores do crime. | Na perspectiva de muitas feministas, a Crimonologia revela um cardcter androcéntrico, {que pode enviesar a investigacio ¢ os instrumentos analiticos tradicionais podem ser ina~ dequadios para o estudo do crime no mundo feminino. (0 desenvolvimento das teorias feministas, a partir da década de setenta do século XX, ‘comecou por questionar essa postura da Criminologia tradicional, de distanciamento face ‘as processes sociais de diferenciacSo e de desigualdade de género. ois livros publicados em 1975, sobre a criminalidade feminina, representaram um contributo inestimdvel para o desenvolvimento dos estudos sobre o crime no feminino: Sisters in crime: the rise of the new female criminal, da autoria de Freda Adler, e Women and crime, de Rita Simon. Embora defendendo teorias diferentes, ambas as autoras evi- denciaram as progressivas alteragdes no comportamento das mulheres e crescente ruptura dos papéis tradicionais femininos. ‘A obra de Freda Adler argumentava que as mulheres esto cada vez mais a adoptar comportamentos tipicamente masculinos, & medida que vo abandonando a esfera privada entrando no mercado de trabalho: estéo a tornar-se mais agressivas e competitivas. Por sua ver, Rita Simon debrucou-se de igual modo sobre o crescente aumento da criminali- dade por parte das mulheres, mas explicando essa tendéncia pelo facto da entrada das mulheres na esfera pablica oferecer mais oportunidades para a prética do crime, nomea- damente de natureza econémica (Vold ef al, 2002: 269-270). ‘Amos os trabalhos vieram a ser criticados por autoras feministas, que apontavam 0 facto de ambas as teorias negligenciarem as forcas materia e estruturais que moldam as vidas e as experitncias das mulheres (Simpson, 1989; Daly ¢ Chesney-Lind, 1988). ‘Tornou-se tema de debate académico a necessidade de produzir uma abordagem capaz de captar as relagSes socizis de género presentes na criminalidade e nos modos como as instituigdes tipificam e lidam com os criminosos. Nao $6 0s homens sfo mais frequente- i mente os autores dos crimes, como o sistema de justica criminal produz tratamentos dife- renciados para homens e mulheres ~ por exemplo, verifica-se uma lendéncia para conde- nar corn penas mais severas as mulheres quando se trata de crime sexuais, mas feralmente as penas sio mais suaves para o género feminino quando ocorrem crimes violentos, como homicidios (Feinman, 1986) A variagdo das sentencas em funcio do género do arguido parece depender das expec- tativas culturais dominantes, ou seja, quanto mais a prética do crime se revela distante do que € socialmente esperado, maior ser4 a severidade da pena atribufda. Este facto ver explicar que, por exemplo, as sentengas dirigidas as mulheres tendam também a variar de acordo com a diversidade das situagdes familiares, na medida em que os papéis sociais femininos esto predominantemente associados 8 esfera privada. O sistema juridico-penal confirma o cardcter «politico» da esfera privada, reafirmando a distribuicgo de papéis. Assim, as mulheres que so mies e que tém filhos menores a cargo tendem a receber penas ‘menos pesadas do que as mulheres sem filhos (Eaton, 1986) 3. AS DIFERENTES CORRENTES DAS TEORIAS FEMINISTAS DO CRIME As teorias feministas representam um conjunto de pressupostos tedricos gerafs sobre a vida social, centrada na perspectiva sobre e das mulheres. Dentro das teorias ferninista, podemos encontrar correntes de pensamento muito distintas, mas seguindo a sistemati- zagio de Lengermann e Niebrugge (1996) pode afirmar-se que a teoria feminista se centra nas mutheres pelo objecto de estudo (as experincias e situagoes sociais das mulheres na sociedade), pelo sujeito de estudo no processo de investigacSo (estuda-se 0 mundo social a partir do ponto de vista das mulheres), pela perspectiva critica ¢ emancipatéria (propde- se contribuir para o bem-estar das mulheres), Os primeiros estudos feministas do crime pouco se distanciavam da criminologia tra- dicional. Como referem Vold e outros (Vold e¢ al., 2002: 270), os trabalhos iniciais da cri- ‘minologia feminista procuravam apenas preencher as lacunas da criminologia tradicional, sein desenvolverem uma operacéo de ruptura com os instrumentos analiticos e concep- tuais do passado. Estes primeiros estudos inscreviam-se no denominado feminismo libe- ral, que € uma corrente de pensamento que postula a defesa dos direitos das mulheres, cextensio das oportunidades e a transformacao dos paps tradicionais, mas operando no quadro das estruturas sociais existentes. Abordagens ferinistas criticas vieram a desenvolver-se no ambito da Sociologia do Crime, empreendendo uma critica e desconstrugao dos sistemas de pensamento ¢ conhe- cimento instituidos e dominantes (ideologia), por considerar que as estruturas sociais reproduzem sobretudo a visio masculina do mundo. Neste contexto, destacam-se as abordagens do crime desenvolvidas pelo feminismo ‘marxista, Esta corrente do feminismo considera que a principal e fundamental causa das. desigualdades de género reside no sistema capitalista, que promove e sustenta a divis8o sexual do trabalho. As acgdes que ameacam o modo de funcionamento do sistema capita- lista séo tipificadas como crime. Assim, as acces das mulheres que ameacam a domina- 40 econémica dos homens sio classificadas como crimes de propriedade, enquanto que as préticas fernininas que amieacam 0 controlo masculino da sexualidade e corpos fernini- nos sZo classificadas como crimes sexuais (Radosh, 1990). Avvisio do crime e do sistema de justiga criminal preconizado pelo feminismo mar- xista tanto adopta uma visio instrumental do direito criminal - pela assumpcao de que a lei € um instrumento de cardcter masculino, de opressio das mulheres — como uma abor- dagem de carécter estrutural, pela qual a lei se destina a manter em vigor o sistema de patriarcade, Por sua vee, o feminismo socialista caracteriza-se por articular a andlise dos papéis sociais de género com o sistema econémico, distanciando-se deste modo do pendor excessivamente materialista do marxismo ortodoxo. O principal argumento consiste em defender que a causa das desigualdades reside no sistema capitalista, que promove e sus- tenta a divisio sexual do trabalho. As diferencas biol6gicas entre homem e mulher servem para consolidar a divisio entre o ptilico eo privado, reforgando a opressio & subjugagio das mulheres, Deste modo, a chave para a igualdade residiré na possibilidade das mulheres conseguirem ter 0 controlo da sexualidade, da reprodugio e dos seus cor- pos (Firestone, 1970). 0 feminismo de terceira vaga ou pés-moderno, que se desenvoiveu a partir da década de oitenta do século XX, preocupa-se com a andlise das vivencias e narrativas das mulhe- res, No contexto da abordagem sociolégica do crime, a preocupagio seré a andlise dos dis- cursos e da linguagem e 0 modo como so produzidas as identidades das criminosas e da diferenga e 0s conceitos de «verdade», nomeadamente por acco do sistema de justica penal (Smart, 1989; Wonders, 1998). ‘Abordagens feministas recentes valorizam a multiculturalidade, acentuando as dife- rengas entre as mulheres, em termos de classe, de raca, de elnia, a0 nfvel das experiéncias com o crime, avitimizac3o e o sistema de justica (Walby, 1990). Sumariamente, pode afirmar-se que a criminologia feminista veio acentuar a necessi- dade dos estudos do crime tomarem em consideracio as mulheres, nos seguintes aspec- tos: 05 estudos do crime no podem continuar a negligenciar as vivéncias, préticas e expe- riéncias femininas relativas 20 mundo do crime; as relagdes das mulhéres com a criminalidade surgem sob diversas formas, como praticantes do crime e como vitimas; 0 crime é uma actividade dominantemente masculina, em virtude de diferengas de género. Salienta-se que pode ser mais proficua uma anélise do crime que contemple os impac tos criados pela variével do «género» do que propriamente o desenvolvimento de uma rea de investigacio que se dedique exclusivamente a estudar as relagBes das mulheres como crime. A adopgdo desta citima vertente pode ajudar a perpetuar a marginalizacao das mulheres, pelo que seré mais defensével uma posicao que defenda a pesquisa de _género no seio da Sociologia do Crime, o que passaré por estudar tanto as mulheres como os homens. 4, OS IMPACTOS DO GENERO NO CRIME A discussao da importancia de se considerar os impactos do género na abordagem do crime é usualmente feita a dois niveis: a questo da generalizagio ea diferenca da cri- minalidade feminina e masculina (Vold ef al., 2002: 273). A questo da generalizagao remete para a reflexZo sobre a adequagao dos conceitos e dos instrumentos de anélise, geralmente formulados para abordar a realidade masculina. 0 facto de os homens ten- derem a demonstrar uma maior tendéncia para a prética do crime € um dos outros aspectos de debate. Varias feministas defender que a tendéncia para a generalizagdo é de evitar, na medida em que a andlise ancora-se nas experiéncias masculinas, sem atender & especificidade do ‘mundo feminino. Uma das formas de tomar em consideragao a particularidade das vivén- cias das mulheres no mundo do crime passaré pela utilizacdo de métodos qualitativos de pesquisa, nomeadamente estudos de caso ¢ histérias de vida (Daly e Chesney-Lind, 1988: 518), jé que a utilizagao de estatisticas, tao frequente na criminologia, torna invisiveis as relagies sociais de género, Estatisticamente, a condenagZo de mulheres pela prética de crime é diminuta em rela- fo ao mesmo fendmeno para os homens: segundo dados do Instituto Nacional de Bsta~ tistica, em Portugal, em 2001, de um total de 60.480 individuos pela pratica de crime em tribunais de 1.*insténcia, apenas 8% eram mulheres. A menor incidéncia de condenacbes de mulheres pela prética de crime parece ser comum a outros pafses — por exemplo, no Reino Unido, em 2000, a percentagem de réus do sexo masculino no total de condenagées por pratica de crime era de 8196 (Home Office, 2001). A criminologia tradicional explicava as diferencas de comportamento entre homens € mutheres em relacéo ao crime com base em diferencas biol6gicas, sendo célebre 0 traba- Iho de Lombroso sobre «a mulher criminosa, a prostituta ea mulher normab» (Lombroso, 1893), na qual retoma o conceito de atavismo (reaparicao de caracteristicas que foram apresentadas somente em ascendentes distantes), para explicar que a mulher comete ‘menos crimes do que o homem por apresentar com menos frequéncia uma predisposicao genética para a pritica do desvio. Durante muito tempo, as explicagbes da criminalidade feminina centravar-se na andlise de patologiasindividuais, muitas vezes associadas a distirbios psicofisioldgicos do aparelho repro-

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