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LucVan Campenhoudt MANUAL DE INVESTIGACAO 3 EM CIENCIAS — Sa TRAJECTOS 1. ANTES DE SOCRATES —mvTRODUCKO ‘AOESTUDO DA FILOSOMIA GREGA oat Trindade Sentas 2, HISTORIA DA FILOSOFIA — PERIODO cRIsTiO, Fernand Van Steenberghen 3, ACONDICAOPOS-MODERNA Jean-Francois Lyotud 4, METADIALOGOS Grogory Butesou 5, ELEMENTOS DE FILOSOFIA DA CIENCIA Ludovic Geymonat 6. DO MUNDO FECHADO AO UNIVERSO TWEINITO ‘Alexandre Koyré 7, GEOGRAFIA HUMANA —TEDRIAS ESUAS APLICACOES MG. Brodford e W. A. Kent 8, OS GREGOS BO IRRACIONAL E.R. Dodds 9. OCREPGSCULO DA DADEMEDIA EMPORTUGAL ‘Antinio fosé Saran 10, ONASCIMENTO DEUMA NOVA FISICA 1. Bernard Coen 11, ASDEMOCRACIAS CONTEMPORANEAS ‘Arend {ijphert 12. A RAZKO NAS COISAS HUMANAS Herbert Simon 13, PRE-AMBULOS — QS PRIMEIROS: PASSOS DO HOMEM ‘Yves Coppens 14, OTOMISMO F. Van Steenbergben 15, OLUGAR DA DESORDEM Raymoad Bondon 16, CONSENSO ECONFLITO Seymour Martin Lipset 17. MANUAL DEINVESTIGAGAO JEM CIENCTAS SOCIAIS Raymond Quivy e Lue Van Compenondt 18. NAGGES ENACIONALISMO Enest Gellner 19, ANGUSTIA ECOLOGICA BO FUTURO Ewico Figueiedo 20, REFLEXOES SOBRIEA REVOLUGAO NA EUROPA Ralf Dahtendort 21, A SOMBRA — ESTUDO SOBRE ‘ACLANDESTINIDADE COMUNISTA ‘oxé Pacheeo Pereira 22, DO SABER AO FAZER: PORQUE: ORGANIZARA CIENCIA Joo Caraga 23, PARA UMA HISTORIA CULTURAL E,H. Gomtrich 24, AIDENTIDADEROUBADA José Carlos Gores da Silva 25, AMETODOLOGIA DA ECONOMIA, Mark Blaug 26, A VELHA BUROPA EA NOSSA ‘Sacques Le Goff 27. ACULTURADA SUBTILEZA — ‘ASPECTOS DA FILOSOFIA ANALITICA, M, S, Lonrengo 28, CONDICGES DA LIBERDADE, Emest Geliner 29, TELEVISAO, UM PERIGO PARA, ADEMOCRACIA, Karl Popper e Join Condy 30, RAWLS, UMA TEORIA DA JUSTICA. BOS SEUS CRITICOS Chandran Kukathas ¢ Philip Pettit 31, DEMOGRAFIA EDESENVOL VIMENTO: BLEMENTOS BASICOS Adelino Tones "32, OREGRESSO DO POLITICO Chantal Moutte. 33, AMUSA APRENDE.A BSCREVER Bric A. Havelock 34. NOVAS REGRAS DO MIETODO SOCIOLOGICO, ‘Anthony Giddens 35, AS POLITICAS SOCIATS EM PORTUGAL Henrique Medina Carreira 36, AECONOMIA PORTUGUESA DESDE 1960 Tosé da Silva Lopes. 37, IDENTIDADENACIONAL ‘Anthony D, Smith 38, COMO REALIZAR UM PROIECTO DEINVESTIGAGAO. Judith Bell 39, ARQUEOLOGIA —UMA BREVE INTRODUGAO Poul Bahn 40, PRATICAS EMETODOS DE INVESTIGACAO EM CIENCIAS SOCIAIS Lue Altre, Fngolse Dignfle, Jea-Piere Hiermaux, Christan Maroy, Danille Rugooy «Flere de Snin-Georges 4, A eREPODLICA VELBA» (1910-1917) INSAIO ‘Vasco Putido Valente 42, 0S NOVOS MEDIA 0 BSPAGO PUBLICO Rogério Santos RAYMOND QUIVY LUC VAN CAMPENHOUDT MANUAL DE INVESTIGAGAO EM CIENCIAS SOCIAIS ‘TRADUGAO JOAO MINHOTO MARQUES, MARIA AMALIA MENDES E MARIA CARVALHO REVISAO CIENTIFICA RUI SANTOS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA. gradiva de recherche en sciences sociales Titulo original francés: Manwe! © Dunod, Paris, 1995 lodo Minhoto Marques, Maria Amdlia Mendes e Maria Carvalho Revisio cientifica: Rui Santos Capa: Armando Lopes Fotocomposigao: Gradiva Impressiio ¢ acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, L.* Reservados 08 direitos para Portugal por: Gradiva — Publicagées, L." Rua Almeida ¢ Sousa, 21, r/c, esq. — 1399-041 Lisboa ‘Velefs. 21 397 40 67/8 — 21 397 13 57 — 21 395 3470 Fax 2) 395 347! — Email: geral@ gradiva.mail.pt URL: hitps/www.gradiva pt 42 edigio: Outubro de 2005 Depésito legal n.° 233 090/205 gradiva Editor: Guilherme Valente . Visite-nos ‘na. Internet : http: AWww:gradiva.pt Indice Prefacio 4 2.° edic OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO. 1. Os objectivos .. 1.1. Objectivos gerais 1.2. Concepgio didictica 1.3. «Investigagao» em «ciéncias» soci 2, O procedimento 2.1.Problemas de método (0 caos original. comegat mal) 2.2. As etapas do procedimento ou tés maneiras de Primeira etapa APERGUNTA DE PARTIDA Objectivas .. 1. Uma boa forma de actuar 2. Os critérios de uma boa pergunta de pa 2.1, As qualidades de clareza 2.2.As qualidades de exequib: 2.3.As qualidades de pertinénecia » Resuino da primeira etapa . Trabalho de aplicagiio n° 1: formulagéo de wma pergunta de par- Dba 3. E se ainda tiver reticéncias... ll 15 1s 17 19 20 20 24 31 32 34 35 37 38 44 45 45 Objectives Segunda etopa AEXPLORACAO 1. A leitura .. 1.1.A escolha ¢ a organizagio das leituras .. . « Trabalho de aplicagdo n° 2: escolha das primeias leituras . 1.2. Como Ser? . = Trabalho de aplicacdo n° 3: eitura de um texto com a ajuda de ‘uma gretha de leitura . . + Trabalho de aplicagdo n° 4: resumos de textos + Trabalho de aplicacéio n° 5: comparagio de textos .. 2, As entrevistas exploratérias .. 2.1.Com quem é util ter uma entrevista? 2.2.Bm que consistem as entrevistas ¢ como realiz4-las? 23.A exploragio das entrevistas exploratérias . = Trabalho de aplicagio n° 6: realizag8o ¢ andlise de entrevistas cexploratérins . 3. Métodos exploratérios complementares + Resumo da segunda etapa + Trabalho de aplicagio n: tida .. formulagao da pergunta de par- Tereeira etapa (A PROBLEMATICA Objectives ... - 1. Dois exemplos de concepsio de uma problemitica 1.1.0 suicidio. 1.2.0 ensino.. 2. Os dois momentos de uma problematica ... 2.1. O primeiro momento: fazer o balango ¢ elucidar as probleméticas possiveis .. 2.2.0 segundo momento: atribuit-se uma problemética + Resumo da terceira etapa. « Trabatho de aplicagao n° & a escolha ¢ a explicitagéo de urna problematica 49 49 SL 57 57 58 67 67 69 7 72 79 82 85 86 405 _ Oearta capa A CONSIRUGAO DO MODELO DE ANALISE Objectivos .. . 109 1, Dois exemplos de construgio do modelo de anilise .......... 110 1.1.0 suicidio 110 1.2.Marginalidade ¢ delinquéncia 5 2, Porqué as hipéteses? .. 119 3. Como proceder concretamente? 3.1.A construgde dos conceitos . 121 3.2.A construgiio das hipdteses 135 + Resumo da quarta etapa 150 + Trabalho de aplicagao 1 formulagio das principais + Trabalho de aplicacao lise de base & ipéteses da investigagio 10: explicitago do modelo de and- Quinta etapa A OBSERVACAO Objectivos . 155 1. Observar o qué? A defini¢do dos dados pertinentes 155 2. Observar em quem? O campo de anilise e a sélecgie das unidades de observagio ... . 157 157 159 2.1.0 campo de anilise 2.2. A amostra. 3. Observar como? Os instrumentos de observacao ¢ a reco- tha dos dados ., 163 3.1.A elabora¢ao dos instramentos de obscrvacdo 163 3.2.As irs operagées da observagio 181 4. Panorama dos principais métodos de recolha das informa- goes 4.1.0 inguérito por questionério 4.2.4 entrevista 4.3.A observagio directa. 186 188 191 196 4.4. A recolba de dados preexistentes: dados secundarios ¢ dados documentais + Resumo da quinta etapa .. + Trabatho de aplicago n° 11: 201 205 concengao da observagio Sexta etapa A ANALISE DAS INFORMAGOES. Objectives ... . 211 1. Um exemplo: 0 fenémeno religioso . . 212 2. As trés operagdes da andlise das informagdes ... . 216 2.1. A preparagio dos dados: deserever € agregar 216 2.2. andlise das relagdes entre as varidveis.. 218 2.3. A comparagao dos resultados observados com os resultados espe- . 219 rados € a interpretagiio das diferengas .. 3. Panorama dos principais métodos de analise das informa- goes . 222 3.1.A anidlise estatistica dos dados 222 3.2.A analise de contetidc 226 3.3, Limites e complementaridade dos métodos especificos: 0 exem- plo da field research 233 3.4.Um cenério de investigagéo nao linear 235 3.5, Exemplos de investigagées que aplicam os métodos apresenta- 237 dos + Resumo da sexta etapa 238 + Trabatho de aplicagio n° 12; analise das informagies 239 Sétina etapa AS CONCLUSOES Objectives .. . 243 1. Retrospectiva das grandes linhas do procedimento .......... 243 2. Novos contribntos para os conhecimentos .. . 244 2.1. Novos conhecimentos relativos ao objecto de andlise 244 245 2.2. Novos conhecimentos tedricos .. 3. Perspectivas praticas UMA APLICAGAO DO PROCEDIMENTO Objectivos .. 1. A pergunta de partida 2. A exploragio . 2.1. As leituras 2.2. As entrevistas exploratérias . 3. A problematica .. 3.1. Fazer o balango .. 3.2. Coneeber uma problemética 4, A construgio de modelo de analise 4.1, Modelo ¢ hipétese: os critérios de racionalidade 4.2.8 indicadores 4.3. As relagées entre construgio e verificaga 4.4. A selecgio das unidades de observagiio 5. A observagao .. 5.1.0 instrumento de observagac 5.2.A recolha dos dadbos... 6. A anfilise das informagées .. 6.1.A medigio 6.2. desorigio dos resultados 6.3.A andlise das relagdes entre a taxa de presenga ¢ as razdes para ir as aulas.. 6.4. A comparagao dos resultados observados com os resultados espe- rados a partir da hipétese ¢ 0 exame das diferengas 7. As conclusées .. A hipétese esquecida ... Recapitulagio das operagées Bibliografia geral . Prefacio a 2." edigao Nesta 2.° edigo esforg4mo-nos por nao alterar a concepgiio didactica da obra. O Manual de Investigacdo em’ Ciéncias Sociais permanece resolutamente pratico. Foram feitas muitas correcgdes e modificagdes locais em todas as partes do livro, Algumas foram transformadas de alto a baixo, As principais alteragdes sfio as se- guintes: Primeira etapa: a pergunta de partida — supressdo de algu- mas passagens que podiam conduzir a mal-entendidos ¢ nova redacgio dos comentarios de determinadas questdes (relages entre a investigagiio em ciéncias sociais e a ética, entre a descrigio e a compreensao dos fenédmenos sociais...); Terceira etapa: a problematica — capitulo quase inteira~ mente recomposto tendo em conta os contributos de obras recentes sobre os modos de explicagio dos fenémenos sociais; Quarta etapa: a construgio do modelo de andlise — refor- mulagao das dimens6es do conceito de actor social a partir de investigages recentes; Sexta etapa: a analise das informacdes —- acrescentos sobre a tipologia, a field research, a complementaridade entre métodos diferentes ¢ um cendrio de investigagao n&o li- near; + Actualizagio das diferentes bibliografias e integragio das bibliografias especializadas nas apresentagées dos métodos de recolha e de andlise das informagées, Estas alteragdes devem muito a varias pessoas, a quem queria- mos assegurar 0 nosso reconhecimento: Monique Tavernier, pela sua ajuda competente e eficaz na preparagiio desta 2." edigdo; Michel Hubert, Jean-Maric Lacrosse, Christian Maroy Jean Nizet, pelas suas criticas ¢ sugesties profissionais ¢ amigdveis; Casimiro Marques Balsa, seus colegas da Universidade Nova de Lisboa e, em particular, Rui Santos, pelo seu cxame pormenoriza- do da obra ¢ pelo acolhimento que Ihe foi dado em Portugal; os muitos professores, estudantes ¢ investigadores de Franga, Suiga, Quebeque, Senegal, Bélgica ¢ de outros paises que nos deram 2 conhecer as suas reacgdes ¢ estimulos. OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 1, OS OBJECTIVOS 1.1. OBJECTIVOS GERAIS A investigagdo em ciéncias sociais segue um procedimento andlogo ao do pesquisador de petrdleo. Nao é perfurando ao acaso que este encontraré o que procura. Pelo contrario, o sucesso de um programa de pesquisa petrolifera depende do procedimento segui- do, Primeiro 0 estudo dos terrenos, depois a perfuragdo. Este pro- cedimento implica a participagiio de numerosas competéncias dife- rentes. Os gedlogos iro determinar as zonas geogrdficas onde & maior a probabilidade de encontrar petrlco; os engenheitos irao conceber processos de perfuragao apropriados, que ‘irfio ser aplica- dos pelos técnicos, No pode exigir-se ao responsavel do projecto que domine minuciosamente todas as técnicas necessarias. O scu papel espe- cifico serd o de conceber 0 conjunto do projecto e coordenar as operagées com 0 maximo de coeréncia ¢ eficdcia, H sobre ele que recairé a responsabilidade de levar a bom termo o dispositivo global de investigagao. No que respeita a investigagao social, 0 processo é compardvel. Importa, acima de tudo, que o investigador seja capaz. de conceber e de pér em pratica um dispositivo para a elucidagio do real, isto 6, no seu sentido mais lato, um método de trabatho. Este nunca se apresentar4 como uma simples soma de técnicas que se trataria de aplicar tal e qual se apresentam, mas sim como um percurso global do espirito que exige ser reinventado para cada trabalho. Quando, no decorrer de um trabalho de investigagao social, o seu autor se vé confrontado com problemas graves que compromeiem © prosseguimento do projecto, raramente isso acontece por razdes de ordem estritamente técnica. E possivel aprender variadissimas técni- cas de um modo bastante rapido, assim como, de qualquer forma, solicitar a colaboragdo ou, pelo mienos, os conselhos de um especia- lista. Quando um investigador, profissional ou principiante, sente gran- des dificuldades no seu trabalho, as razGes so quase sempre de ordem metodoldgica, no sentido que damos ao termo. Ouvimos entiic expres- sds invariavelmente idénticas: «a nfo sei em que ponto estou», tenho a impressiio de jé nem saber 0 que procuro, «niio fago a minima ideia do que hei-de fazer para continuam, «tenho muitos dados... mas n&io sei o que fazer com cles», ou até mesmo, logo de inicio, «nfo sei bem por onde comecar. Porém, ¢ paradoxalmente, as numerosas obras que se dizem meto- doldgicas nfo se preocupam muito com... 0 método, no seu sentido * mais lato. Longe de contribuirem para formar os seus leitores num procedimento global de investigagiio, apresentam-se frequentemente como exposigdes de téonicas particulares, isoladas da reflexiio tedrica eda concepgio de conjunto, sem as quais é impossivel justificar a sua escolha e dar-lhes um sentido, Estas obras tém, bem entendido, a sua utilidade para o investigador, mas s6 depois da construgao metodolé- gica, apés esta ter sido validamente encetada, Fsta obra foi concebida pata ajudar todos os que, no ambito dos seus estudos, das suas responsabilidades profissionais ou sociais, desejem formar-se em investigagao social ou, mais precisamente, empreender com éxito um trabalho de fim de curso ou uma tese, trabalhos, andlises ou investigagdes cujo objectivo seja compreen- der mais profundamente e interpretar mais acertadamente os feno- menos da vida colectiva com que se confrontam ou que, por qual- quer razio, os interpelam. Pelos motivos acima expostos, pateceu-nos que esta obra s6 pode- tia desempenhar esta fungiio se fosse inteiramente concebida como um suporte de formagiio metodolégica, em sentido lato, isto ¢, como uma formagdo para conceber e aplicar um dispositivo de elucidagao do real. Significa isto que abordaremos numa ordem ldgica temas como a formulagiio de um projecto de investigagao, o trabalho exploratério, a construgdio de um plano de pesquisa ou os critérios para a escolha das técnicas de recolha, tratamento ¢ analise dos dados. Deste modo, cada um poderd, chegado o momento e com pleno conhecimento de causa, fazer sensatamente apelo a um ou a outro dos numerosos métodos ¢ \Genicas ae a ga em sentido restrito, para elaborar por si mes- , a partir deles, procedimentos de trabalho correctament a0 seu projecto. ee Me adepiados 4.2. CONCEPCAO DIDACTICA | No plano didactico, esta obra é directamente utilizdvel. Isto significa que o leitor que o deseje poderd, logo a partir das primei- ras paginas, aplicar ao seu trabalho as recomendagdes que lhe sero propostas. Apresenta-se, pois, como um manual cujas dife- Tentes partes podem ser experimentadas, seja por investigadores Principiantes isolados, seja em grupo ou na sala de aula, com 0 enquadramento critico de um docente formado em ciéncias sociais. No entanto, recomenda-se uma primeira leitura integral antes de iniciar os trabalhos de aplicagfio, de modo que a coeréncia global do procedimento seja bem apreendida ¢ as sugestdes sejam aplica- das de forma flexivel, critica ¢ inventiva. Uma tal ambig&o pode parecer uma aposta impossivel: como 6 possivel propor um manual metodolégico num campo de investigagéio onde, como é sabido, os dispositivos de pesquisa variain consideravel- mente com as investigagées? Nao existe aqui um enorme risco de impor uma imagem simplista ¢ muito arbitvéria da investigagio social? Por varias razées, pensamos que este risco s6 poderia resultar de uma leitura extremamente superficial ou parcial deste livro, Embora 0 contetido desta obra seja directamente aplicdvel, niio Se apresenta, no entanto, como uma simples coleccio de Teceitas, mas como uma trama geral e muito aberta, no dmbito da qual e fora da qual!) podem pér-se em pritica os mais variados procedi- mentos concretos. Se 6 verdade que contém numerosas sugestdes priticas e exercicios de aplicagao, nem aquelas nem estes arrasta- to 0 leitor para uma via metodolégica precisa e irrevogavel. Este livro foi inteiramente redigido para ajudar o leitor a conceber por si préprio um processo de trabalho, e néo para Ihe impor um determinado processo a titulo de cAnone universal. Nao se (rata, pois, de um «modo de emprego» que implique qualquer aplicagéo mecAnica das suas diferentes etapas. Propde pontos de referéncia tGo polivalentes quanto possivel para que cada um possa elaborar com lucidez dispositivos ‘metodolégicos proprios em fungéo dos seus objectivos. Com este propésito —¢ trata-se de uma segunda precaugao——, as pfginas desta obra convidam constantemente ao recuo critico, de modo que 0 leitor seja regularmente levado a reflectir com lucidez sobre o sentido do seu trabalho, 4 medida que for progredindo. AS reflexdes que propomos a0 leitor fundam-se na nossa experiéncia de investigadores em sociologia, de formadores de adultos e de docentes. Sao, portanto, forgosamente subjectivas e inacabadas. Partimos do pressuposto de que © leitor seguiu ou segue paralelamente uma forma- gdo te6rica e goza da possibilidade de discutir e ser avaliado por um. investigador ou um docente formado em ciéncias sociais. Veremos, por outro lado, no decurso desta obra, onde € como 0s recursos te6ricos itervém na elaboragio do dispositivo metodolégico. ‘Uma investigagio social nfo é, pois, uma sucessio de métodos e técnicas estereotipadas que bastaria aplicar tal e qual se apresen- tam, numa ordem imutivel. A escolha, a elaboragao e a organiza- gio dos prooessos de trabalho variam com cada investigagdo especi- fica. Por isso —e Irata-se de uma terceira precaugao —, a obra est elaborada com base em numerosos exemplos reais. Alguns deles sero varias vezes ceferidos, de modo a realgarem a coeréncia glo- bal de uma investigagao. No constituem ideais a atingir, mas sim balizas, a partir das quais cada um podera distanciar-se € situar-se. Finalmente — dltima precaugio —, este livro apresenta-se, explicitamente, como um manual de formagao. Est4 construido em fungao de uma ideia de progressio na aprendizagem. Por conse- guibte, comproender-se- imediatamente que significado ¢ o inte- resse destas diferentes etapas naio podem ser correctamente avalia- dos se forem retiradas do seu contexto global. Umas sdo mais técnicas, outras mais criticas. Algumas ideias, pouco aprofundadas no inicio da obra, sdo retomadas © desenvolvidas posteriormente noutros contextos. Certas passagens contém recomendagoes fun- damentadas; outras apresentam simples sugest6es ou um leque de possibilidades. Nenhuma delas d4, por si s6, uma imagem do dis- positivo global, mas cada uma ocupa nele um lugar necessario. 1.3. «INVESTIGAGAO» EM «CIENCIAS» SOCIAIS? No dominio que aqui ili aqui nos ocupa utilizam-se frequé ue aq lentemente — somos porgadios a incluir-nos neste «se» — as palavras investiga fo» « an mee cia» com uma certa ligeireza € nos sentidos mais clisticos Bales qi Pow exemplo, de «investigagio cientffica» para qualificar as agens de opinido, os estudos de mercado ou os diagndsticos mais bana is S6 porque foram efectuados por um servigo ou por um centr de investigagto universitério, Dé-se a entender aos estudantes do mr ‘iro nivel do ensino superior, e mesm titi anos ° u O a 10 a0s dos titimos de ensino secundario, que as suas aulas : ensing , s de métodos ¢ técnicas de i n a inves- tesco social os tomardo aptos a adoptar um «procedimento cientifi- co e, Gssde logo, a produzir um «conhecimento cientifico», quando, na erie, € muito dif, mesmo para um imestgdor profissional experiéncia, produzir conhecimento verdadei i » erdadeire faga progredir a sua disciplina, sieve noe ane ima que que, na melhor das hipéteses, se aprende de facto no i laquilo que é geralmente qualificado como trabalho de «inves- tgagio em ciéncias sociais»? A compreender melhor os significa. los de um acontecimento ou de uma ci - onduta, a fazer inteli; . 1 ( 1 ente- voeens Pome oe sua. a captar com maior petspicécia as mento de uma organizagiio, a reflectir acert mente sobre as implicagées 4 in poliien ov santas le uma decisio politica, ou ai compreender com mais nitidez o nas pensons apezene omo determinadas dem um problema e istvei indamentos das a tornar vistveis der um problems e alguns dos fundamentos das ‘ Tudo iso merece que nos detenhamos e que adquiramos essa 3 ipalmente a cla que o livro con " : In 2 sagrado. Mas. raramente se trata de investigagdes i r is que contribuam para fazer pr ered os quadros conceptuais das ciéncias sociais, os seus modelos ‘e andl ise ou os seus dispositivos metodolégicos. Trata-se de estu- dos, an ises ou exames, mais ou menos bem realizados, consoante a pefo © a imaginagdo do «investigador» ¢ as precaugdes de ee ro leia para levar a cabo as suas investigagdes. Este trabalho precioso e contribuir muito i le para a lucidez dos actore: sociais acerca das praticas de que sio te 0 autores, ou sobre os act cimentos e os fenémenos we athe rn que testemunham, mas niio se de: ti- buir-Ihe um estatuto que no Ihe 6 apropriado. “ean Esta obra, embora possa apoiar determinados leitores empenha- dos em investigagdes de uma certa envergadura, visa sobretudo ajudar os que tém ambigdes mais modestas, mas que, pelo menos, estiio decididos a estudar os fendmenos sociais com uma preocu- pagdo de autenticidade, de compreensio ¢ de rigor metodolégico. Em ciéncias sociais temos de nos proteger de dois defeitos opostos: um cientismo ingénuo que consiste em crer na possibili- dade de estabelecer verdades definitivas e de adoptar um rigor anélogo ao dos fisicos ou dos bidlogos, ou, inversamente, um cepticismo que negaria a propria possibilidade de conhecimento ciontifico. Sabemos simultaneamente mais ¢ menos do que por vezes deixamos entender. Os nossos conhecimentos constroem-se com 0 apoio de quadkos teéricos ¢ metodolégicos explicitos, len- tamente elaborados, que constituem um campo pelo menos par- cialmente estruturado, ¢ esses conhecimentos sio apoiados por uma observagiio dos factos concretos. f a estas qualidades de autenticidade, de curiosidade e de rigor que queremos dar relevo nesta obra, Se utilizamos os termos «in- vestigacaion, «investigadom ¢ aciéncias sociais» para falar tanto dos trabalhos mais modestos como dos mais ambiciosos, ¢ por uma questiio de facilidade, porque nao vemos outros mais convenientes, mas é também com a consciéncia de que sio frequentemente exces- sivos. 2. 0 PROCEDIMENTO 2.1, PROBLEMAS DE METODO (0 caos original... ou trés maneiras de comegar mal) No inicio de uma investigagao ou de um trabalho, o cenario é quase sempre idéntico, Sabemos yvagamente que queremos estudar tal ou tal problema —-por exemplo, 0 desenvolvimento da nossa propria regiao, o funcionamento de uma empresa, a introdugaio das novas tecnologias na escola, a emigragio ou as actividades de uma associagio que frequentamos —, mas nao sabemos muito bem como abordar a questo. Desejamos que este trabalho seja util e resulte em proposigSes concretas, mas temos a sensagaio de nos perdermos nele ainda antes de 0 termos realmente comegado. Eis aproximadamente a forma como comega a maior parte dos traba- thos de estudantes, mas também, por vezes, de investigadores, nos dominios que dizem respeito Aquilo a que costumamos chamar as «ciéncias sociais». Este caos original nio deve ser motivo de inquictagio; pelo contrario, € a marca de um espirito que néio se alimenta de simplismos e de certezas estabelecidas. O problema consiste em sair dele sem demorar demasiado e em fazé-lo em nosso proveito. Para o conseguinmos, vejamos primeiro aquilo que nio deve- mos de forma alguma fazer.., mas que, infelizmente, fazemos com frequéncia: a fuga para a frente. Esta pode tomar varias formas, das quais s6 iremos aqui abordar as mais frequentes: a gula livresca ou estatistica, a «passagem» as hipdteses ¢ a énfase que obscurece. Se nos detemos aqui sobre 0 que nfo devemos fazer, é por termos visto demasiados estudantes ¢ investigadores principiantes precipi- tarem-se desde o inicio para os piores caminhos. Ao dedicar alguns minutos a ler estas primeiras paginas, o leitor poupara talvez algu- mas semanas, ou mesmo alguns meses, de trabalho extenuante ec, em grande parte, indtil. ; @) A gula livresca ou estatistica Como o nome indica, a gula livresca ou estatistica consiste em «encher a cabega» com uma grande quantidade de livros, artigos ou dados miméricos, esperando encontrar af, ao virar de um pard- grafo ou de uma curva, a luz que permitird enfim precisar, correc- tamente ¢ de forma satisfatéria, 0 objectivo e o tema do trabalho que se deseja efectuar. Esta atitude conduz invariavelmente ao desalento, dado que a abundancia de informagdes mal integradas acaba por confundir as ideias. Seré entio necessario voltar atras, reaprender a reflectir, em vez de devorar, a ler em profundidade poucos textos cuidadosamente escolhidos a interpretar judiciosamente alguns dados estatisticos particularmente cloquentes. A fuga para a frente néo s6 é inutil mas também prejudicial. Muitos estudantes abandonam os seus i projectos de trabalho de fim de curso ou de tese por os terem iniciado desse modo. ; E muito mais gratificante ver as coisas de outra forma e consi- derar que, bem compreendida, a lei do menor esforgo é uma regra essencial do trabalho de investigago. Consiste em procurar sempre tomar o caminho mais curto e mais simples para 0 melbor resul- tado, o que implica, nomeadamente, que nunca se inicie um traba- lho importante sem antes teflectir sobre 0 que se procura saber ¢ a forma de o conseguir. _ Quem se sentir visado por estas observagoes nao deve deses- perar. Bastar-lhe-A simplesmente descongestionar 0 cérebro & dese- qmaranhar a meada de nimeros ou de palavras que 0 asfixia e& impede de funcionar de forma ordenada e criativa, Pare de acumu- lar sem método informagGes mal assimiladas ¢ preocupe-se primet- ro com 0 seu procedimento. 5) A «passagem» as hipéteses Aqui esti uma outra forma diferente de fuga para a frente. Os jogadores de bridege sabem bem o que é uma «passagem». Em vez. de jogar primeiro o 4s e assegurar assim a vaza, 0 terceiro jogador tenta ganhar 0 ponto com a dama, esperando que o quarto nfo tenha o rei. Se a jogada resultar, 0 jogador ganha a yaza e conserva o as, Uma tal aposta néio se justifica em investi- gagio, onde é absolutamente necessério assegurar cada ponto € realizar cuidadosamente as primeiras ctapas antes de pensar nas seguintes. ; . . A «passagem» as hipoteses consiste precisamente em precipl- tar-se sobre a recolha dos dados antes de ter formulado hipéteses de investigagaio — voltaremos adiante a esta nogao —— e em preo- cupar-se com a escolha € @ aplicagao pratica das técnicas de inves- tigagiio antes mesmo de saber exactamente aquilo que se procura ‘a 0 que ito servir, Oa ouvir umn estudante declarar que tenoiona fazer um inquérito por questiondtio junto de uma dada populagio quando no tem nenhuma hipétese de trabalho e, para dizer a verdade, nem sequer sabe © que procura, $6 € possivel escolher uma técnica de pesquisa quando se tem uma ideia da natureza dos dados a re- colher, o que implica que se comece por definir bem o projecto, Esta forma de fuga para a frente é corrente, sendo encorajada pela crenga segundo a qual a utilizagao de técnicas de investigaciio consagradas determina o valor intelectual e o cardcter cientifico de um trabalho, Mas que utilidade tem a aplicagao correcta de téoni- cas experimentadas se estas estiverem ao servigo de um projecto vago e mal definido? Outros pensam que basta acumular um mé- ximo de informagSes sobre um assunto e submeté-las a varias técnicas de andlise estatistica para descobrir a resposta As suas perguntas, Afundam-se, assim, numa armadilha cujas consequén- cias podem cobri-los de ridiculo. Por exemplo, num trabalho de fim de curso um estudante tentava descobrir quais os argumentos mais frequentemente empregues por um conselho de turma para avaliar a capacidade dos estudantes. Tinha gravado todas as discus- sdes dos docentes durante o conselho de turma de fim de ano e, apés ter introduzido tudo num ficheiro de computador, havia-o submetido a um programa de anélise de contetido altamente sofis- ticado. Os resultados foram inesperados. Segundo o computador, os termos mais empregues para julgar os alunos eram palavras como «e»... «de»... «heim»... «capaz»,., «mas»... etc.! c) A énfase que obscurece Este terceiro defeito é frequente nos investigadores princi- piantes que estao impressionados e intimidados pela sua recente passagem pela frequéncia das universidades e por aquilo que pensam ser a ciéncia, Para assegurarem a sua credibilidade jul- gam ser titil exprimirem-se de forma pomposa e ininteligivel e, na maior parte das vezes, nio conseguem evitar raciocinar da mesma maneira. Duas caracteristicas dominam os seus projectos de investigagiio ou de trabalho: a ambi¢do desmedida e a mais completa confusio. Umas vezes parece estar em causa a reestruturagao industrial da sua regio; outras, o futuro do ensino; outras ainda é nada menos do que o destino do Terceiro Mundo que parece jogar-se nos seus poderosos cérebros. Estas declaragdes de inteng&o exprimem-se numa giria, tio oca quanto enfatica, que mal esconde a auséncia de um projecto de investigacao claro ¢ interessante. A primeira tarefa do oricntador deste tipo de trabalho serd ajudar o seu autor a assentar os pés na terra ¢ a mostrar mais simplicidade e clareza. Para vencer as suas eventuais reticéncias é necessério pedir-lhe sistematicamente que defina todas as palavras que emprega e que explique todas as frases que formula, de modo que rapidamente se dé conta de que ele proprio nfio percebe nada da sua algaraviada. Se pensa que estas consideragdes sc the aplicam, esta tomada de consciéncia, por si s6, p6-lo-4 no bom caminho, dado que uma carac- teristica essencial — e rara — de uma boa investigagao é a autentici- dade, Neste dominio que nos ocupa, mais do que em qualquer outro, niio ha bom trabalho que néo scja uma procura sincera da verdade. Nao a verdade absoluta, esiabelecida de uma vez por todas pelos dogmas, ‘mas aquela que se repde sempre em questiio ¢ se aprofunda incessan- temente devido ao desejo de compreender com mais justeza a reali- dade em que vivemos ¢ para cuja produgio contribuimos. Se, pelo contrario, pensa que nada disto Ihe diz respcito, faga- -se, mesmo assim, o pequeno favor de explicar claramente as palavras ¢ as frases que j4 tenha eventualmente redigido sobre um trabalho que inicia, Pode honestamente afirmar que se compreende bem a si mesmo ¢ que os seus textos néo contém expressées imi- tadas ¢ declaragdes ocas e presungosas? Se assim é, se possui a autenticidade e 0 sentido das proporgées, entiio, ¢ s6 entéo, é pos- sivel que o seu trabalho venha a servir para alguma coisa. Apés termos examinado varias maneiras de comegar muito mal, vejamos agora como 6 possivel proceder de forma valida a um trabalho de investigagiio e assegurar-Ihe um bom comego. Com a ajuda de esquemas, referiremos primeiro os principios mais impor- tantes do procedimento cientifico e apresentaremos as etapas da sua aplicagao pritica. 2.2, AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Fundamentalmente, o problema do conhecimente cientifico poe-se da mesma maneira para os fenémenos sociais ¢ para os fenémenos naturais: em ambos os casos ha hipéteses tebri devem ser confrontadas com dados de cbservagio Sn decane mentagao. Toda a investigagao deve, portanto, responder a alguns Principios estiveis e idénticos, ainda que varios percursos diferen- tes conduzam ao conhecimento cientifico, Um procedimento € uma forma de progredir em direcgfo a um objectivo. Expor © procedimento cientifico consiste, portanto, descrever os princfpios fundamentais a por om pritica em qualquer trabalho de investigagao. Os métodos niio sio mais do que formalizagées particulares do procedimento, percursos diferentes concebidos para estarem mais adaptados aos fendmenos ou domi- nios estudados. Mas esta adaptagio nfio dispensa a fidelidade do investigador aos principios fundamentais do procedimento cientifico. __ Ao dar mais relevo ao procedimento do que aos métodos par- ticulares, a nossa formulacio tem, assim, um alcance geral ¢ pode aplicar-se a todo 0 tipo de trabalho cientifico em ciéncias sociais. Mas quais séo esses principios fundamentais que toda a investiga- gio deve respeitar? Gaston Bachelard resumiu o processo cientifico em algumas palavras: «O facto cientifico é conquistado, construido ¢ verifi- —Conquistado sobre os preconceitos; — Construido pela razdo; — Verificado nos factos, A mesma ideia estrutura toda a obra Le métier de sociologue, de P. Bourdieu, J. C. Chamboredon e J. C. Passeron (Paris, Mouton, Bordas, 1968). Nela os autores descrevem o procecimento come um processo em trés actos cuja ordem deve ser respeitada. E aquilo a que chamam «hierarquia dos actos epistemoldgicos». Estes trés ae sao a ruptura, a construgiio ¢ a verificago (ou experimenta- Q objectivo deste manual é 0 de apresentar estes principios do procedimento cientifico em ciéncias sociais sob a forma de sete etapas a percorrer. Em cada uma delas sao descritas as operagdes a empreender para atingir a seguinte © progredir de um acto para © outro. Ou seja, este manual apresenta-se como uma pega de teatro classica, em trés actos € sete cenas. O esquema da pagina seguinte mostra a correspondéncia entre actapa e os actos do procedimento. Por razGes didacticas, os actos e as etapas sfio apresentados como operagdes separadas e numa ordem sequencial. Na realidade, uma investigacao cientifica nao é to mecnica, pelo que introduzimos no esquema circuitos de retroacgfio para simbolizar as interacgdes que realmente existem entre as diferentes fases da investigagao. a) Os trés actos do procedimento Para compreender a articulago das etapas de uma investigago com os trés actos do procedimento cientifico é necessério dizer primeiro algumas palavras sobre os principios que estes trés actos encetram e sobre a légica que os une. A ruptura Em ciéncias sociais, a nossa bagagem supostamente «tedrica» comporta numerosas armadilhas, dado que uma grande parte das nossas ideias se inspiram nas aparéncias imediatas ou em posigGes parciais. Frequentemente, nao mais do que ilusdes ¢ preconceitos. Construir sobre tais premissas equivale a construir sobre areia. Daf a importancia da ruptura, que consiste precisamente em romper com os preconceitos ¢ as falsas evidéncias, que somente nos dio a ilusdo de compreendermos as coisas. A ruptura é, portanto, o pri- meiro acto constitutivo do procedimento cientifico. A construgio. Esta ruptura s6 pode ser efectuada a partir de um sistema conceptual organizado, susceptivel de exprimir a légica que o in- vestigador supde estar na base do fenémeno. E gragas a esta teoria que ele pode erguer as proposig6es explicativas do fendmeno a estudar e prever qual o plano de pesquisa a definir, as operagGes a aplicar e as consequéncias que logicamente devem esperar-se no AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Etapa 1 — A pergunta de partida Etapa 2— A exploragiio As leituras | —>] As entrevistas} exploratérias Etapa 4— A construgio do modelg de andlise RUPTURA CONSTRUGAO- VERIFICAGAO, termo da observagao. Sem esta construgiio teérica nao haveria experimentagao valida. Nao pode haver, em ciéncias sociais, veri- ficagdo frutuosa sem construg%o de um quadro teérico de referén- cia, Nao se submete uma proposig¢’o qualquer ao teste dos factos. As proposigées devem ser o produto de um trabalho racional, fundamentado na légica e numa bagagem conceptual validamente constituida (J.-M. Berthelot, L’Intelligence du social, Paris, PUF, 1990, p. 39). A verificacio Uma proposigao 6 tem direito ao estatuto cientifico na medida em que pode ser verificada pelos factos. Este teste pelos factos é designado por verificagio ou experimentagiio. Corresponde ao ter- ceiro acto do processo, 5b) As sete etapas do procedimento Os trés actos do procedimento cientifico nao siio independentes uns dos outros. Pelo contrario, constituem-se mutuamente. Assim, por exemplo, a ruptura no se realiza apenas no inicio da investi- gaciio; completa-se na e pela construgdo, Esta nfio pode, em contra- partida, passar sem as etapas iniciais, principalmente consagradas a mptura. Por seu tumo, a verificag&o vai buscar o seu valor & qualidade da construgio. No desenvolvimento concreto de uma investigagio, os trés actos do procedimento cientifico sto realizados ao longo de uma suces- sio de operagdes, que aqui sao reagrupadas em sete etapas. Por razGes didécticas, 0 esquema anterior distingue de forma precisa as etapas umas das outras. No entanto, circuitos de retroacgao lem- bram-nos que estas diferentes etapas estiio, na realidade, em perma- nente interacgdo. Nao deixaremos, alids, de mostré-lo sempre que possivel, uma vez que este manual dard especial relevo ao encadea- mento das operagdes ¢ a légica que as liga. PRIMEIRA ETAPA A PERGUNTA DE PARTIDA AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Erapa 2— A exploragao [>| As entrevistas| I exploratérias Etapa 3 -— A problemética Etapa 4 — A construgio do modelo de andlise Btapa $— A observagio ; Etapa 6— A andlise das informagoes Ftapa 7 -— As conclusdes | As leituras OBJECTIVOS O primeiro problema que se pde ao investigador 6 muito sim- plesmente o de saber como comegar bem o seu trepalho. De facto, no € facil conseguir traduzir o que vulgarmente se apresenta como um foco de interesse ou uma preocupagio relativamente vaga num projecto de investigactio operacional. O receio de iniciar mal o trabalho pode levar algumas pessoas a andarem as voltas durante bastante tempo, a procurarem uma seguranga iluséria numa das formas de fuga para a frente que abordémos, ou, ainda a renun- ciarem pura e simplesmente ao projecto. Ao longo desta etapa mostraremos que existe uma outra solugdo para este problema do arranque do trabalho, A dificuldade de comegar de forma vilida um trabalho tem, frequentemente, origem numa preocupagao de fazé-lo demasiado bem e de formular desde logo um projecto de investigagio de forma totalmente satisfatoria. E um erro, Uma investigagiio ¢, por definiggo, algo que se procura. E um caminhar para um melhor conhecimento € deve ser aceite como tal, com todas as hesita- g6es, desvios e¢ incertezas que isso implica. Muitos vivem esta realidade como uma anglstia paralisante; outros, pelo contrario, reconhecem-na como um fenémeno normal ¢, numa palavra, esti- mulante. Por conseguinte, o investigador deve obrigar-se a escolher rapi- damente um primeiro fio condutor to claro quanto possivel, de 2, OS CRITERIOS DE UMA BOA PERGUNTA DE PARTIDA ‘Traduzir um projecto de investigagaio sob a forma de uma per- gunta de partida sé seré til se essa pergunta for correctamente formulada, Isto nao é necessariamente facil, pois uma boa per- gunta de partidaeve preencher varias condigdes. Em vez de apre- sentar imediatamente estas condigdes de forma abstracta, é prefe- rivel partir de exemplos concretos. Procederemos, assim, ao exame critico de uma série de perguntas de partida, insatisfatorias, mas com formas correntes, Este exame permitir-nos-d reflectir sobre os critérios de uma boa pergunta e o significado profundo desses critérios. O enunciado de cada pergunta sera seguido de um co- mentério critico, mas seria preferivel que cada um discutisse por si mesmo estas perguntas, se possivel em grupo, antes de ler, mais ou menos passivamente, os nossos comentirios. Ainda que os exemplos de perguntas apresentados Ihe paregam muito claros, até mesmo demasiado claros, e que as recomendagdes propostas Ihe paregam evidentes ¢ elementares, nio deixe de levar a sério esta primeira etapa. Aquilo que pode ser facil quando um critério 6 apresentado isoladamente sé-lo-4 muito menos quando se tratar de respeitar o conjunto destes critérios para uma tnica per- gunta de partida: a sua. Acrescentemos que estes exemplos niio sao puras invengdes da nossa parte, Ouvimo-los todos, por vezes sob formas muito ligeiramente diferentes, da boca de estudantes. Se, das centenas de perguntas insatisfatérias sobre as quais trabalhamos com eles, acabémos por reter aqui apenas sete, é porque elas sio bastante representativas das falhas mais correntes ¢ porque, juntas, cobrem bem os objectivos pretendidos. Veremos progressivamente a que ponto este trabalho, longe de ser estritamente técnico e formal, obriga o investigador a uma cla- rificago, frequentemente muito util, das suas intengdes ¢ perspec- tivas espontfineas. Neste sentido, a pergunta de partida constitui normalmente um primeiro meio para pér em prética uma das dimen- ses essenciais do proceso cientifico: a ruptura com os preconceitos e as nogées prévias. Voltaremos a este ponto no fim do exercicio. © conjunto das qualidades requeridas pode resumir-se em algu- mas palavras: uma boa pergunta de partida deve poder ser tratada. Isto significa que se deve poder trabalhar eficazmente a partir dela e, em particular, deve ser possivel fornecer elementos para Ihe responder, Estas qualidades tém de ser pormenorizadas. Para esse efeito, procedamos ao exame critico de sete exemplos de perguntas, 2.1, AS QUALIDADES DE CLAREZA _As qualidades de clareza dizem essencialmente respeito a pre- cisfo € a concisio do modo de formular a pergunta de partida. Pergunta 1 Qual € o impacto das mudangas na organizagio do espago, urbano sobre a vida dos habitantes? Comentirio Esta pergunta é demasiado vaga. Em que tipos de mudangas se pensa? O que se entende por «vida dos habitantes»? Trata-se da sua vida profissional, familiar, social, cultural? Alude-se as suas facilidades de deslocacio? As suas disposigdes psicolégicas? Po- deriamos facilmente alongar a lista das interpretagdes possiveis desta pergunta demasiado vaga, que informa muito pouco acerca das intengdes precisas do seu autor, se é que estas 0 sto. Convird, portanto, formular uma pergunta precisa cujo sentido ndo se preste a confusdes. Ser muitas vezes indispensavel definir claramente os termos da pergunta de partida, mas é preciso pri- meiro esforgar-se por ser o mais limpido possivel na formulagio da propria pergunta Existe um meio muito simples de se assegurar de que uma pergunta é bastante precisa. Consiste em formulé-la diante de um Pequeno grupo de pessoas, evitando comentd-la ou expor o seu sentido, Cada pessoa do grupo é depois convidada a explicar como compreendeu a pergunta. A pergunta ser precisa se as interpreta- gOes convergirem © corresponderem 4 intengiio do seu autor. Ao proceder a este pequeno teste em relagio a varias perguntas diferentes, depressa observaré que uma pergunta pode ser precisa e compreendida da mesma forma por todos sem estar por isso limitada a um problema insignificante ou muito marginal, Consi- deremos a seguinte pergunta: «Quais so as causas da diminuigao dos empregos na indistria vali! no decurso dos anos 802» Esta pergunta é precisa no sentido de que cada um a compreenderd da mesma forma, mas cobre, no entanto, um campo de andlise muito vasto:(0 que, como veremos mais 4 frente, colocard outros proble- mas). Uma pergunta precisa nao é, assim, o contrario de uma pergunta ampla ou muito aberta, mas sim de uma pergunta vaga ou impre- cisa. Nao encerra imediatamente o trabalho numa perspectiva restritiva e sem possibilidades de generalizagio. Permite-nos sim- plesmente saber aonde nos dirigimos e comunica-lo aos outros. Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida tera de ser precisa. Pergunta 2 Em que medida o aumento das perdas de empregos no sector da construgao explica a manutengio de grandes projectos de trabalhos pUblicos, destinados nao sé a manter este sector, mas também a diminuir os riscos de conflitos sociais inerentes a esta situagao? Comentério Esta pergunta é demasiado longa e desordenada. Contém supo- sigSes e desdobra-se no fim, de tal forma que ¢ dificil perceber bem 0 que se procuta compreender prioritariamente. E preferivel formu- lar a pergunta de partida de uma forma univoca e concisa para que possa ser compreendida sem dificuldade ¢ ajudar o seu autor a perceber claramente o objectivo que persegue. Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida tera de ser univoca e to concisa quanto possivel. "Da Velénia, regio francéfona da Belgica. (NM. do T,) 2.2. AS QUALIDADES DE EXEQUIBILIDADE As qualidades de exequibilidade estio essencialmente ligadas ao cardcter realista ou irrealista do trabalho que a Ppergunta deixa entrever. Pergunta 3 Os dirigentes empresariais dos diferentes paises da Comunidade Europeia tém uma percepgio idéntica da concorréncia econdmica dos Estados Unidos ¢ do Japio? Comentévio Se puder dedicar pelo menos dois anos inteiros a esta investi- Bago, se dispuser de um orgamento de varios milhdes e de colabo- radores competentes, eficazes ¢ poliglotas, teré, sem duvida, algu- mas hipdteses de realizar este tipo de projecto ¢ de obter resultados suficientemente pormenorizados para terem alguma utilidade. Se nao, é preferivel restringir as suas ambigoes. Ao formular uma pergunta de partida, um investigador deve assegurar-se de que os seus conhecimentos, mas também os seus recursos em tempo, dinheiro e meios logisticos, Ihe permitirao obter elementos de resposta validos. O que é concebivel para um centro de investigaco bem equipado e para investigadores com experiéncia nao o é forgosamente para quem nio dispde de recur- sos comparaveis. Os investigadores principiantes, mas por vezes também os pro- fissionais, subestimam quase sempre as restrigées materiais, parti- cularmente as de tempo, que os seus projectos de investigagao implicam. Realizar as iniciativas prévias a um inquérito ou a entre- vistas, constituir uma amostra, decidir as pessoas-chave que podem dar apoio, organizar reunides, encontrar documentos tteis, etc., podem devorar 4 partida uma grande parte do tempo e dos meios consagrados a investigagao. Em consequéncia, uma boa parte das informagGes recolhidas & subexplorada e¢ a investigagéio termina num sprint angustiante, durante o qual nos expomos a erros e negligéncias, Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida deve ser realista, isto é, adequada aos recursos pessoais, materiais e técnicos, em cuja necessidade podemos imediatamente pensar € com que podemos razoavelmente contar. 23. AS QUALIDADES DE PERTINENCIA As qualidades de pertinéncia dizem respeito ao registo (expli- cativo, normativo, preditivo...) em que se enquadra a pergunta de partida. Procedamos, também aqui, ao exame critico de exemplos de perguntas semelhantes as que encontramos frequentemente no ini- cio de trabalhos de estudantes. Pergunta 4 A forma como 0 fisco est organizado no nosso pais é social- mente justa? Comentério Esta pergunta no tem, evidentemente, como objectivo analisar o funcionamento do sistema fiscal ou o impacto da mancira como ele é concebido ou levado a cabo, mas sim julgé-lo no plano moral, © que constitui um procedimento completamente diferente, que nao diz respeito as ciéncias sociais. A confusao entre a anilise ¢ © juizo de valor € muito usual ¢ nem sempre é facil de detectar. De uraa maneira geral, podemos' dizer que uma pergunta é moralizadora quando a resposta que Ihe damos sé tem sentido em relagao ao sistema de valores de quem a formula. Assim, a res- posta seré radicalmente diferente consoante a pessoa que responde ache que a justica consiste em fazer cada um pagar uma quota- -parte igual 4 dos outros, sejam quais forem os seus rendimentos (como é 0 caso dos impostos indirectos), uma quota-parte propor- cional aos seus rendimentos ou uma quota-parte proporcional- mente mais importante & medida que forem aumentando os seus rendimentos (a taxa progressiva aplicada nos impostos directos). Esta iltima f6rmula, que alguns considerarao justa por contribuir para atenuar as desigualdades econémicas, sera julgada absoluta- mente injusta por quem considere que, assim, o fisco lhe extorque bastante mais do que aos outros do fruto do seu trabalho ou da sua habilidade. Os lagos entre a investigagio social e o julgamento moral sio, evidentemente, mais estreitos e mais complexos do que este sim- ples exemplo deixa supor, mas nao é este o lugar para os aprofundar. O facto de um projecto responder a uma preocupagao de cardcter ético e politico (como contribuir para resolver problemas sociais, para instaurar mais justiga e menos desigualdades, para lutar contra a marginalidade ou contra a violéncia, pata aumentar a motivagao do pessoal de uma empresa, para ajudar a conceber um plano de renovagao urbana...) nao é, em si, um problema. Longe de dever ser evitada, esta preocupagio de pertinéncia prética com uma intengao ética deve ser encorajada, sob pena de produzir investiga- g6es desprovidas de sentido e que constituiriam tdo-somente «exer cicios de estilo» mais ou menos brilhantes. Tal nao impede a inves- tigacflo de ser conduzida com rigor, pelo menos desde que o investigador saiba clarificar as opgdes subjacentes e controlar as implicagdes possiveis. Esse problema nao 6, alias, proprio das ciéncias sociais, que, habitualmente, tém 0 mérito de 0 colocarem e de o enfrentarem mais explicitamente do que outras disciplinas. Acresce que uma investigago realizada com rigor é cuja problems- ica € construida com inventividade (v, quarta etapa) evidencia os desafios éticos ¢ normativos dos fenémenos estudados, de maneira anfloga aos (rabalhos dos bidlogos, que podem revelar desalios eco- I6gicos. Deste modo, a investigagao social cumpre 0 seu verdadeiro papel e 0 conhecimento por ela produzido pode inscrever-se no proces- so mais englobante de um verdadeiro pensamento. Enfim, tal como foi bem demonstrado por Marx (L’Idéologie allemande), Durkheim (Les formes élémentaires de la vie religieuse) ou Weber (L'Ethique protestante et l’esprit du capitalisme), 0s sistemas de valores e de normas fazem parte dos objectos privilegiados das ciéncias sociais, porquanto a vida colec- tiva é incompreensivel fora deles. Resumindo, se 0 investigador deve esforgar-se por pensar nos lacos entre o conhecimento, 0 ético e o politico, também deve evitar as confusdes entre os registos e, durante o trabalho de inves- tigagiio, abordar o real em termos de anilise, e niio de julgamento moral. Trata-se, alids, de uma condigao da sua credibilidade @, por conseguinte, em ultima andlise, do impacto ético ¢ politico dos seus trabalhos. . Tal nao é forgosamente simples, pois, tanto na vida corrente como em determinadas aulas do ensino secundario, esses registos so regularmente confundidos. Considera-se, por vezes, de bom tom terminar os trabalhos ou as dissertagSes com um pequeno toque moralizador, destinado tanto a edificagio ética dos leitores como a convencé-los de que se tem bom coragao. Também aqui a ruptura com os preconceitos ¢ os valores pessoais ¢ fundamental. Resumindo, uma boa pergunta de partida nao devera ser mora- lizadora. Nao procurara julgar, mas sim compreender. Pergunta 5 Seré que os patrdes exploram os trabalhadores? Comentario Esta pergunta é, na tealidade, uma «falsa perguntay, ou, por outras palavras, uma afirmagio disfargada de pergunta. E evidente que, na mente de quem a fez, a resposta 6, @ priori, «sim» (ou «nao»). Serd, alids, sempre possivel responder-lhe afirmativamente, como também é possivel «provarm que, inversamente, os trabalhadores exploram os patrdes. Basta para isso seleccionar cuidadosamente os critérios ¢ os dados adequados e apresenté-los da forma que convém. As més perguntas de partida deste tipo sfio abundantes. A que se segue 6 uin exemplo suplementar, ainda que menos nitido: «Sera a fraude fiscal uma das causas do défice orgamental do Estado?» Também aqui é facil imaginar que o autor tem, a partida, uma ideia bastante precisa da resposta que, custe o que custar, tenciona dar a esta pergunta. a O exame de uma pergunta de partida deve, portanto, incluir uma reflexfo sobre a motivagéio ¢ as intengées do autor, ainda que niio possam ser detectadas no enunciado da pergunta, como € 0 caso do nosso exemplo, Conviri, nomeadameate, definir se o seu objective é de conhecimento ou, pelo contrario, de demonstragio. O esforco a despender para evitar formulagGes tendenciosas da pergunta de partida, tal como os debates que poder ter sobre este assunto, podem contribuir de um modo eficaz para um recuo das ideias preconcebidas. Uma boa pergunta de partida sera, portanto, uma «verdadeira pergunta», ou seja, uma pergunta «aberta», o que significa que devem poder ser encaradas @ priori varias respostas diferentes ¢ que nifio se tem a certeza de uma resposta preconcebida. Pergunta 6 Que mudangas afectario a organizagio do ensino nos proximos vinte anos? Comentirio O autor de uma pergunta como esta tem, na realidade, como Projecto proceder a um conjunto de previsdes sobre a evolugio de um sector da vida social. Alimenta, assim, as mais ingénuas ilusdes sobre o alcance de um trabalho de investigactio social. Um astré- nomo pode prever com muita antecedéncia a passagem de um cometa nas proximidades do sistema solar, porque a sua trajectoria tesponde a Icis estaveis, as quais no pode furtar-se por si proprio. Isto nao acontece no que respeita as actividades humanas, cujas orientagdes nunca podem ser previsias com certeza. Podemos, sem divida, afirmar, sem grande risco de nos enga- narmos, que as novas tecnologias ocuparfio um lugar cada vez maior na organizagiio das escolas e no contetdo dos programas, mas somos incapazes de formular previsdes seguras que transcen- dam este tipo de banalidades. Alguns cientistas particularmente clarividentes ¢ informados Conseguem antecipar os acontecimentos e pressagiar o sentido pro- vavel de transformagées proximas melhor do que o faria o comum dos mortais. Mas estes pressentimentos raramente se referem a acontecimentos precisos ¢ apenas so concebidos como eventua- lidades. Basciam-se no seu profundo conhecimento da sociedade, tal como hoje funciona, ¢ nio em prognésticos fantasistas que munca se verificam, a nao ser por acaso. | a Significar4 isto que a investigagfio em ciéncias sociais nada tem a dizer quanto ao futuro? Certamente que nao, mas 0 que ela tem a dizer depende de outro registo. Com efcito, uma investigagdo bem conduzida permite captar os constrangimentos ¢ as l6gicas que determinam uma situagao ou um problema, assim como dis- cernir a margem de manobra dos «actores sociais», e evidencia os desafios das suas decisées ¢ telagées sociais. B nisso que cla interpela directamente o futuro ¢ adquire uma dimenso prospec- tiva, embora nfo se trate de previsio no sentido estrito do termo. Essa dimensao prospectiva enraiza-se no exame rigoroso do que existe e funciona aqui ¢ agora e, em particular, das tendéncias perceptiveis quando se observa 0 presente & luz do passado. Fora desta perspectiva, as previsdes feitas com ligeireza atriscam-se fortemente a ter pouco interesse e consisténcia. Deixam os seus autores desarmados perante interlocutores que, por seu lado, nao sonham mas conhecem os seus dossiers. Resumindo, uma boa pergunta de partida abordard o estudo do que existe ou existiu, e nfo o daquilo que ainda nfio existe. Nao estudaré a mudanga sem se apoiar no exame do funcionamento. Nao visa prever o futuro, mas captar um campo de constrangimentos e de possibilida- des, bem como os desafios que esse campo define. Pergunta 7 Os jovens stio mais afectados pelo desemprego do que os adultos? Comentério Em primeiro lugar, podemos temer que esta pergunta exija apenas uma resposta puramente descritiva, que teria como {nico objectivo conhecer melhor os dados de uma situagdo, Se a intengao de quem a formula se limita, com efeito, a juntar e a exibir os dados — oficiais u produzidos pelo rio, pouco importa neste caso — , sem procu- ee eine a partir deles, 0 fenémeno do desemprego © as logicas da sua distribuiggo nas diferentes categorias da populagio, teremos de reconhecer que é «um pouco curta». Em contrapattida, numerosas questdes que se apresentam, a primeira vista, como descritivas nem por isso deixam de implicar uma finalidade de compreens&o dos fenémenos sociais estudados. Descrever as relagdes de poder numa organizagao, ou situagdes socialmente problemdticas que mostrem precisamente em que so «problemiticas», ou a evolugo das condigées de vida de uma parte da populagao, ou os modos de ocupagao de um espaco pii- blico ¢ as actividades nele desenvolvidas... implica uma reflexio acerca do que & essencial salientar, uma selecgdo das informagdes a recolher, uma classificagiio dessas informagdes com 0 objectivo de descobrir linkas de forga e ensinamentos pertinentes. A despeito das aparéncias, trata-se de algo diferente de uma «simples descrigio», ou seja, no minimo, de uma «descrigdo construida» que tem o seu lugar na investigagiio social e que requer a concep¢ao ¢ a realizagio de um verdadeiro dispositivo conceptual e metodolégico. Uma «descrigo» assim concebida pode constituir uma excelente investigacdo em ciéncias sociais e uma boa maneira de a iniciar, Aliés, muitas investigagdes conhecidas apresentam-se, de certo modo, como descrigdes construidas a partir de critérios que rompem com as categorias de pensamento geralmente admiti- das € que, por isso, conduzem a reconsiderar os fenémenos estu- dados sob um olhar novo. La distinction, critique social du jugement, de Pierre Bourdieu (Paris, Editions de Minuit, 1979), & um bom exemplo: a descrig&o de priticas e disposigées culturais é realizada a partir do ponto de vista do hébito e de um sistema de desvios entre as diferentes classes sociais. Estamos, porém, muito longe de uma simples intengdo de agru- pamento nfio critico de dados e de informagées existentes ou pro- duzidas pelo proprio. E desejavel que essa inteng&o de ultrapassar esse estAdio transparega na pergunta de partida. Resumindo, uma boa pergunta de partida visaré um melhor conhecimento dos fenémenos estudados e iio apenas a sua des- crigao. No fundo, estas boas perguntas de partida so, portanto, aque- Jas através das quais o investigador tenta destacar os processos sociais, econémicos, politicos ou culturais que permitem com- preender melhor os fenémenos ¢ os acontecimentos observaveis ¢ interpreté-los mais acertadamente. Estas perguntas requerem res- postas em termos de estratégias, de modos de funcionamento, de telagdes ¢ de conflitos sociais, de relagdes de poder, de invengo, de difusio ou de integrag&o cultural, para citar apenas alguns exemplos classicos de pontos de vista, entre muitos outros perti- nentes para a andlise em ciéncias sociais, ¢ aos quais teremos ocasiao de voltar. Poderiamos ainda discutir muitos outros casos exemplares e salientar outros defeitos e qualidades, mas o que foi dito até aqui & mais do que suficiente para fazer perceber claramente os trés niveis de exigéncia que uma boa pergunta de partida deve respeitar: primeiro, exigéncias de clareza; segundo, exigéncias de exequibi i- dade; terceiro, exigéncias de pertinéncia, de modo a servir de primeiro fio condutor a um trabalho do dominio da investigagao em ciéncias sociais. RESUMO DA PRIMEIRA ETAPA APERGUNTA DE PARTIDA ‘A melhor forma de comegar um trabalho de investigagiio em cién- cias sociais consiste em esforgar-se por enunciar 0 projecto sob a forma de uma pergunta de partida, Com esta pergunta, o investigador tenta exprimir o mais exactamente possivel aquilo que procura saber, elucidar, compreender melhor. A pergunta de partida servird de primei- ro fio condutor da investigacao. . Para desempenhar correctamente a sua funco, a pergunta de partida deve apresentar quatidades de clareza, de exequibilidade e de pettinéncia: + As qualidades de clareza: — ser precisa; — ser concisa ¢ univoca; * As qualidades de exequibilidade: — ser realista; + As qualidades de pertinéncia: — ser uma verdadeira pergunta; — abordar 0 estudo do que cxiste, basear o estudo da mudanya no do funcionamento; —— ter uma intengao de compreenso dos fenémenos estudados. 3. TRABALHO DE APLICACAO N° 1 FORMULAGAO DE UMA PERGUNTA DE PARTIDA Se vai iniciar um trabalho: de investigagiio sacial sozinho ov em grupo, ou se tenciona come¢a-lo em breve, pode considerar este exer= cicio a primeira etapa desse trabalho. Mesmo no caso de o seu estudo Ja estar iniciado, este exercicio pode ajuda-lo a enfocar melhor as suas Ppreocupacdes. Para quem comega uma investigagdo seria muito imprudente cumprir atabalhoadamente esta etapa. Dedique-the uma hora, um dia ou uma semana de trabalho. Realize este exercicio sozinho ou em grupo, com a ajuda critica de colegas, amigos, professores ow formadores. VA tra- balhando a sua pergunta de partida até obter uma formulagio satisfatéria € correcta, Efectue este exercicio com todo o cuidado que merece. Despachar rapidamente esta etapa do trabalho seria o seu primeiro erro, € o mais caro, pois nenhum trabalho pode ser bem sucedido se for incapaz de decidir A partida. e com clareza, mesmo que provisoria- mente, aquilo que deseja conhecer melhor. O resultado deste precioso exercicio no ocupard mais-de duas a trés Jinhas numa folha de papel, mas constituiré 0 verdadeiro ponto de partida do seu trabalho. Para levar este a bom termo pode proceder do seguinte. moda: — Formule um projecto de pergunta de partida; — Teste esta pergunta de partida junto das pessoas que o rodeiam, de modo a assegurar-se de que ela é clara e precisa e, portanto, compreendida da mesma forma por todas; — Verifique se ela possui igualmente as outras. qualidades acima recordadas; — Reformule-a, caso no seja satisfatéria, e recomece todo 0 pro- cesso, . E SE AINDA TIVER RETICENCIAS... Talvez ainda tenha reticéncias, Conhecemos as mais frequentes, * O meu projecto ainda ndo esta suficientemente afinado para proceder a este exercicio, Neste caso, ele convém-Ihe perfcitamente, porque tem precisa- mente como objectivo ajudi-lo —e obrig4-lo— a tomar o seu projecto mais preciso. + A problemdtica ainda s6 esté no inicio. Apenas poderia formular uma pergunta banal. Isto nao tem importancia porque a pergunta niio é definitiva. Por outro lado, que pretende «problematizar», se é incapaz de formular claramente 0 seu objectivo de partida? Pelo contrfrio, este exerci- cio ajudé-lo-4 a organizar melhor as suas reflexdes, que de mo- mento se dispersam em demasiadas direcgdes diferentes. + Uma formulagdo tao lacénica do meu projecto de trabatho n@o passaria de uma grosseira redugdo das minhas interrogacdes e das minhas reflexdes tedricas. Sem diivida, mas as suas reflexdes nfio se perderio por isso. Irio reaparecer mais tarde e serdio exploradas mais depressa do que pensa. O que é necessfrio neste momento é uma primeira chave que permita canalizar o seu trabalho e evite dispersar as suas preciosas reflexes. + Nao me interessa apenas uma coisa. Desejo abordar varias facetas do meu objecto de estudo. Sc é essa a sua intengiio, ela respeitivel, mas ja est4 a pensar em «problemftica», Passou por cima da pergunta de partida, O exercicio de tentar precisar o que poderia constituir a pergunta central do seu trabalho vai fazer-lhe muito bem, porque qualquer investigagao coerente possui uma pergunta que Ihe assegura unidade. Se insistimos na pergunta de partida, é porque a evitamos com demasiada frequéncia, seja porque parece evidente (implicita- mente!) ao investigador, seja porque este pensa que verd mais claro 4 medida que avanga, E um erro, Ao desempenhar as fungdes de primeiro fio condutor, a pergunta de partida deve ajudé-lo a progre- dir nas suas leituras ¢ nas suas entrevistas exploratérias, Quanto mais preciso for este «guia», melhor progrediré o investigador. Além disso, é «moldando» a sua pergunta de partida que o inves- tigador inicia a ruptura com os preconceitos e com a ilusio da transparéncia, Finalmente, existe uma iltima razdo decisiva para efectuar cuidadosamente este exercicio: as hipéteses de trabalho, que constituem os eixos centrais de uma investigagdo, apresentam- -se como proposigGes que respondem a pergunta de partida. SEGUNDA ETAPA A EXPLORACAO AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Elapa 1 — A pergunta de partida Etapa 2 — A oxploragio Efapa 3— A problematica Etapa 4— A construgao do modelo de andlise Etapa 5 —- A observacio j Ftapa 6 — A andlise das informagdes Elapa 7 — As conclusbes exploratérias OBJECTIVOS Ao longo do capitulo anterior aprendemos a formular um pro- jecto de investigagio sob a forma de uma pergunta de partida apropriada. Até nova ordem, esta constitui 0 fio condttor do traba- lho. O problema é agora o de saber como proceder para conseguir uma cerla qualidade de informagiio; como explorar o terreno para conceber uma problemAtica de investigagio. E este o objecto deste capitulo, A explorago comporta as operagées de leitura, as entre- vistas exploratérias e alguns métodos de exploragdio complementa- res, As operagdes de leitura visam essencialmente assegurar a qua- lidade da problematizagiio, ao passo que as entrevistas ¢ os métodos complementares ajudam especialmente o investigador a ter um contacto com a realidade vivida pelos actores sociais. Tremos aqui estudar métodos de trabalho precisos e directa- mente aplicdveis por todos, qualquer que seja o tipo de trabalho em que se empenhem. Estes métodos siio concebidos para ajudarem o investigador a adoptar uma abordagem penetrante do seu objecto de estudo ¢, assim, encontrar ideias e pistas de reflexdio esclare- cedoras, 1. A LEITURA O que é valido para a sociologia deveria sé-lo para qualquer trabalho intelectual: ultrapassar as interpretagdes estabelecidas, que contribuem para reproduzir a ordem das coisas, a fim de fazer aparecer novas significacées dos fenémenos estudados, mais esclarecedoras ¢ mais perspicazes do que as precedentes. E sobre este ponto que querfamos comegar por insistir. Esta capacidade de ultrapassagem nao cai do céu, Depende, em certa medida, da formagio teérica do investigador e, de uma ma- neira mais ampla, daquilo a que poderiamos chamar a sua cultura intelectual, seja ela principalmente sociolégica, econémica, poli- tica, histérica ou outra. Um longo convivio com o pensamento sociolégico antigo e actual, por exemplo, contribui consideravel- mente para alargar o campo das ideias e ultrapassar as interpreta- des jA gastas. PredispGe a colocar boas questées, a adivinhar 0 que nao é evidente e a produzir ideias inconcebiveis para um investi- gador que se contente com os magros conhecimentos tedricos que adquitiu no passado. Muitos pensadores siio investigadores mediocres, mas em cién- cias sociais nao existe um Gnico investigador que nio seja também um pensador, Desiludam-se, pois, os que créem poderem aprender a fazer investigagao social contentando-se com o estudo das técni- cas de investigagio: terao também de explorar as teorias, de ler e reler as investigagdes exemplares (sera Pproposta uma lista no segui- mento deste livro) e de adquirir o habito de reflectir antes de se precipitarem sobre o terreno ou sobre os dados, ainda que seja com as técnicas de andlise mais sofisticadas, Quando um investigador inicia um trabalho, é pouco provavel que 0 assunto tratado nunca tenha sido abordado por outra pessoa, pelo menos em parte ou de forma indirecta, Tem-se frequentemente a impressao de que nfo hé «nada sobre o assunto», mas esta opi- nido resulta, em regra, de uma ma informagdo. Todo o trabalho de investigagao se inscreve num continuun © pode ser situado dentro de, ou em relagiio a, correntes de pensamento que o precedem ¢ influenciam, F, portanto, normal que um investigador tome conhe- cimento dos trabalhos anteriores que se debrugam sobre objectos comparaveis ¢ que explicite 0 que aproxima ou distingue o seu trabalho destas correntes de pensamento. E importante insistir desde o inicio na exigéncia de situar claramente o trabalho em relagfo a quadros conceptuais reconhecidos. Esta exigéncia tem um nome que exprime bem aquilo que deve exprimir: a validade externa. Falaremos novamente disto no ambito da etapa intitulada «Problematica», Ainda que @ sua preocupagao nao seja fazer investigacio cien- (fica em sentido estrito, mas sim apresentar um estudo honesto sobre uma questo particular, continua a set indispensavel tomar conhecimento de um minimo de trabalhos de referéncia sobre o mesmo tema ou, de modo mais geral, sobre probleméticas que Ihe estao ligadas, Seria ao mesmo tempo absurdo e presungoso acredi- tar que podemos pura e simplesmente Passar sem esses contributos, como se estivéssemos em condigées de reinventar tudo por nés préprios. Na maior parte dos casos, porém, o estudante que inicia una dissertagiio de fim de curso, 0 trabalhador que deseja realizar um trabalho de dimensio modesta ou o investigador 2 quem 6 pedida uma anélise rapida nfo dispdem do tempo necessério para abordarem a leitura de dezenas de obras diferentes. Além disso, como ja vimos, a bulimia livresca é uma forma muito mé de iniciar uma investigagdo. Como proceder nestas situagdes? © ‘Tratar-se-4, concretizando, de seleccionar muito cuidadosamen- te um pequeno nimero de leituras e de se organizar para delas retirar 0 maximo proveito, 0 que implica um método de trabalho cortectamente elaborado. E, portanto, um método de or; anizacdo, de realizagio e de tratamento das leituras que comegaremos por estudar, Este € indicado para qualquer tipo de trabalho, seja qual for o seu nivel. J4 foi experimentado com sucesso em miiltiplas ocasiées por dezenas de estudantes que nele confiaram. Inscreve- “Se na nossa politica geral do menor esforgo, que visa obter os melhores resultados com o menor custo em meios de todo o tipo, a comegar pelo nosso precioso tempo. Jl. A ESCOLHA E A ORGANIZACAO DAS LEITURAS a) Os critérios de escotha A escolha das leituras deve ser realizada com muito cuidado. Qualquer que seja o tipo e a amplitude do trabalho, um investigador dispée sempre de um tempo de leitura limitado, H4 quem s6 possa consagrar-Ihe algumas dezenas de horas, outros vatias centenas,

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