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Tradueéo: Olinto Beckerman Revisdo: Armandina Venéncio Capa: Carlos Clémen 1" edicdo: Janeiro/19¢9 Direitos Feservados por CENTRO. EDITORIAL Latino AMERICANO Amancio de Cc arvalho, 82 04012 - S80 Pauly SP BRAS DE CHE GUEVARA - 2 TEXTOS ECONOMICOS Centro Editorial Latino American? SOBRE A CONCEPGAO DO VALOR EM RESPOSTA A CERTAS AFIRMAGOES™ Neste numero de “Nuestra Industria — Revista Econd- mica” reproduzimos o artigo de Alberto Mora intitulado “Em torno da questdo do funcionamento da lei do valor na eco- nomia cubana no momento atual”, publicado recentemente pela revista “Comércio Externo", editada pelo respectivo Ministério. O artigo comega assim: “alguns companheiros conside- ram que a lei do valor nao funciona atualmente no setor estatal da economia cubana". A negacao dos argumentos é importante, mas também é importante saber a quem se referem. “Alguns” nao tem nome e apelido, mas os sujeitos a quem a critica se dirige tém e se personalizam no Ministério da Industria, que assi- na este artigo, e no companheiro Luis Alvarez Rom, Minis- tro das Finangas, sem contar com outros a quem podemos nos referir por seguirem a corrente do sistema orgamental de financiamento, () Artigo puslicado em “Nuestra Industria’, Revista Econdmica, ns 3, outubro de 1963. 72 2 ey re Salientamos Isto inicialmente, pois é bom fixar, nao somente os conceitos, mas também as pessoas que os de- fendem. Gostariamos de esclarecer trés afirmagdes feitas por Mora nas suas conclusées. Somos de opiniao de que a questao do artigo que mais importa discutir nao é a disputa contra os que negam a lei do valor, mas sim a propria defi- nigao de valor que é dada, pois nao se ajusta as idéias de Marx. “Enfim, o que é o valor? Quanto a mim, se atribuimos algum sentido consistente a categoria valor, nao podemos deixar de observar que ela contém (ou melhor, exprime) uma relagao. Em primeiro lugar, é uma medida, e como tal, exprime uma relagdo; e, em segundo lugar, é conseqiiente- mente uma categoria criada pelo homem em determinadas circunstancias e com determinado fim, contida no quadro das relacdes sociais por ele desenvolvidas". Vejamos. Umas linhas antes, Alberto Mora afirma: “Mas a medida de uma coisa nao é€ a coisa em si”, referindo-se ao valor; e agora diz: “em primeiro lugar é uma medida e, como tal, exprime uma relacéo". Isto nos parece contraditério. E logo a seguir diz: “...e, em segundo lugar, é conseqien- temente uma categoria criada pelo homem em determinadas circunstancias e com determinado fim". Isto esté em plena contradigéo com as idéias de Marx sobre as leis econémicas da sociedade. Todo o seu trabalho foi dedicado a descobrir a esséncia dos fendmenos debaixo da aparéncia, demonstrando que os diversos fetiches adqui- ridos pela humanidade s6 servem para dissimular a sua igno- rancia. Consideramos que, se ha alguma coisa que 0 homem nao pode fazer, é criar o valor com determinados fins. As relagdes de producdo fizeram surgir 0 valor, este existe obje- 3 tivamente e, quer 0 conhegamos quer nao, o real da sua existéncia nao varia, nem a espontaneidade de expresséo das relagdes capitalistas. A partir de Marx, fez-se luz no intricado mecanismo nas relagdes de produgao capitalistas, mas o seu conhecimento em nada modifica a realidade; a unica coisa que o homem pode fazer é alterar determinadas condigdes da sociedade mas nao “inventar” leis. Mais adiante, Mora acrescenta: “Recordemos que s6 um tipo de trabalho cria valor — o trabalho socialmente neces- sério, isto 6, a aplicagdo dos recursos limitados disponiveis na satisfagao de uma necessidade socialmente reconhecida. £ pois precisamente esta relagéo que se exprime na cate- goria valor; ela € propriamente o valor” Observemos que Mora atribui a frase “socialmente ne- cessario” um sentido diferente do que tem, quer dizer do ser necessario para a sociedade; na realidade, ele a empre- ga aqui como a medida do trabalho que a sociedade no seu conjunto necessita para produzir um valor. Mora acaba por dizer que o valor 6 a relacdo entre as necessidades e os recursos. € evidente que, se a sociedade nao reconhecesse uma utilidade no produto, este nao teria valor de troca (daqui talvez o erro conceptual de Alberto Mora ao se referir ao trabalho socialmente necessério), mas nao é menos eviden- te que Marx identifica a idéia de valor com a de trabalho abstrato. A busca da medida do trabalho identifica-se com a busca da medida do valor. Em “O Capital” lemos 0 seguin- te: “...portanto, um valor de uso, um bem, s6 encerra um valor por incarnagéo ou materializagéo do trabalho humano abstrato. Como se mede a quantidade deste valor? Pela quantidade de substancia criadora de valor, quer dizer, de trabalho que encerra”. 74 Mas nao existe valor sem valor de uso, assim como nao podemos conceber valor de uso sem valor (salvo algu- mas forcas da natureza) dada a interrelagao dialética que existe entre eles. A idéia de que a relagdo necessidade — recursos esta implicita no conceito de valor poderia aproximar-se mais da realidade, 0 que parece ldgico, pois esta formula pode se substituir pela da oferta e da procura existente no mercado € que constitui uma das malhas do funcionamento da lei do valor ou da relagao valor. A nossa primeira objecaéo impor- tante é€ 0 perigo que seria esquematizar este problema até o reduzir a uma simples enunciagao da lei da oferta e da Procura. Passando ao comeco do primeiro pardgrafo do artigo comentado, diremos que esta apreciagdo nao é exata. Con- sideramos de outra forma o problema do valor. Vou me re- ferir ao artigo publicado em “Nuestra Industria — Revista Econémica”, n.° 1; que dizia: “Quando todos os produtos atuam de acordo com pregos que tém certas relagées inter- nas entre si, diferentes das relagdes desses produtos no mercado capitalista, cria-se uma nova relagao de pregos que nao tem paralelo com a relagéo mundial. Como fazer para que os pregos coincidam com o valor? Como manejar cons- cientemente o conhecimento da lei do valor para, por um lado, alcangar o equilibrio do fundo mercantil e, por outro lado, o reflexo fiel dos pregos? Este 6 um dos problemas mais sérios que se apresentam a economia socialista”. Quer dizer, nao contestamos a vigéncia da lei do valor, apenas consideramos que esta lei atinge a sua forma plena no mercado capitalista e que as alteragdes introduzidas no mercado pela socializagéo dos meios de produg&o e dos apa- relhos de distribuigaéo conduz a modificagées que impedem uma imediata qualificagdo da sua agao. 75 Sustentamos que a lei do valor regula as relagées mer- cantis no quadro do capitalismo e que, na medida em que Os mercados sejam distorcidos por qualquer causa, a agao da lei do valor sofrera certas distorsées. A forma e a medi- da em que isto se produz nao foram estudadas com a mes- ma profundidade com que Marx levou a cabo o seu estudo sobre capitalismo. Marx e Engels nao previram que a etapa de transigéo se pudesse iniciar em paises economicamente atrasados e, por isso, ndo estudaram nem meditaram sobre as caracteristicas econdmicas de um tal momento. Lenin apesar da sua genialidade, nao teve 0 tempo necessario para dedicar largos estudos (toda a vida como Marx) aos proble- mas econémicos desta etapa de transicdo, na qual se con- juga o fato histérico de uma sociedade que sai do capita lismo sem completar o seu desenvolvimento nessa etapa (e na qual ainda se conservam restos de feudalismo) com a concentragdo da propriedade dos meios de produgao nas maos do povo, Este € um fato real cuja possibilidade foi prevista por Lenin nos seus estudos sobre o desenvolvimento desigual do capitalismo, ¢ nascimento do imperialismo e a teoria da ruptura das malhas mais fracas do sistema em momentos de convulsado social, como as guerras. Ele mesmo provou, com a Revolucdo Russa e a criagdo do primeiro Estado so- cialista, a viabilidade do fato, mas nao teve tempo de con- tinuar as suas investigagdes j4 que se dedicou plenamente & consolidagao do poder, a participar na revolugao, tal como anunciou no abrupto final do seu livro “O Estado e a Revo- lugao” (a soma dos trabalhos de Lenin sobre a economia do periodo de transic&o nos serve de valiosissima introdu- Gao ao tema, mas faltou-Ihe o desenvolvimento e o aprofun- damento que o tempo e a experiéncia lhe deveriam dar) 76 Nas suas conclusdes, 0 companheiro Mora afirma cate- goricamente: “no socialismo, a lei do valor continua a ope- rar, apesar de nao ser o unico critério regulador da produgao. No socialismo, a lei do valor opera através do plano”. Ndés nao estamos tao seguros disso, Supondo que se fizesse um plano totalmente harménico em todas as suas categorias, ha que supor que deve existir algum instrumento fora dele, que permita a sua avaliagao e esse instrumento me parece que nao pode ser outro senao os resultados do mesmo. Mas os resultados sao a compro- vacao a posteriori de que tudo anda bem ou algo anda mal (com respeito & lei do valor, entendamos ja que pode haver defeitos de outra origem). Terfamos que comegar a estudar minuciosamente os pontos fracos, para tratar de tomar me- didas prdticas novamente 4 posteriori, e corrigir a situagao por aproximagées sucessivas. Em todo o caso, o equilibrio entre o fundo mercantil e a procura solvente nao nos daria nenhuma luz, pois, por definigao, néo existem condigées para dar as pessoas o que elas procuram durante esse periodo. Suponho algo mais real: que se devam tomar medidas face a uma dada situagao, gastar dinheiro na defesa, na cor- recao de grandes desproporg6es na producao interna, em investimentos que absorvam parte da nossa capacidade de produgdo para o consumo, necessdrios pela sua importancia estratégica (nao sé no aspecto militar, mas também no eco- némico). Entao se criaréo tensdes que corrigiremos com me- didas administrativas, para impedir uma alta de precos, e Se criarao novas relagées que obscurecem cada vez mais a aco da lei do valor. Podemos sempre calcular efeitos; os capitalistas tam- bém o fazem nos seus eStudos de conjuntura. Mas, no plano havera um reflexo cada vez mais palido da lei do valor. Esta a nossa opiniao sobre a questao. 17 Queriamos também nos referir a outra parte do artigo citado, na qual se diz o seguinte: “Quando alguns compa- nheiros negam que a lei do valor opera nas relagdes entre empresas dentro do setor estatal, argumentam que todo o setor estatal € uma sé propriedade, que as empresas sao propriedade da sociedade. Esta Ultima afirmagao é eviden- temente exata, mas economicamente nao é um critério cor- reto. A propriedade estatal nado é ainda a propriedade so- cial plenamente desenvolvida, que somente se alcangara no comunismo”, E, a seguir: “...basta simplesmente atentar- mos nas relagées entre as empresas estatais, em como sur- gem contradigées entre elas e em como sao tributarias umas das outras, para nos darmos conta de que atualmente em Cuba de modo algum a totalidade do setor estatal constitui uma s6 empresa”, Alberto Mora se refere a algumas conversas que temos tido, a uma intervengao pessoal no encerramento do curso da Escola de Administradores, ou a uma brochura inédita do companheiro Alvarez Rom, na qual o tema é referido como uma aspiragaéo de Lenin. Nesta Ultima, considera-se © tratamento das fabricas como oficinas da empresa conso- lidada e o desejo de que o desenvolvimento da economia leve em conseqiiéncia todas as relagdes ao tipo das que existem numa grande fabrica Unica. Queriamos sublinhar que, se bem que seja certo existi- rem contradigdes entre diversas empresas — e nao citamos empresas da economia em geral, mas empresas sob a dire- ¢a0 do Ministério das Industrias —, néo é menos certo que existem contradigées entre fabricas de uma empresa, entre oficinas de uma fabrica e, por vezes, no caso dos trabalha- dores de uma brigada em regime de trabalho a tempo com prémio, expressam-se contradigées no prdéprio seio da bri- gada (um exemplo prdtico, quando uma brigada recusa que 78 um dos seus trabalhadores dedique uma hora a aprender com outros camaradas, porque a produtividade do grupo di- minui e os salarios se ressentem). Portanto, a pouco e pou- co, construimos o socialismo e suprimimos a exploragaéo do homem pelo homem. Em regime capitalista, nas oficinas de uma fabrica, de- pendentes umas das outras nao acontecem coisas pareci- das? Sera por acaso que os dois sistemas tém contradigées de tipo semelhante? As contradigdes entre os homens se refletem constan- temente no setor socialista, mas quando estes nao estao imbuidos de incompreensées extremas ou modos de atuar nao revolucionarios, sao contradigdes nao antagénicas que se resolvem dentro dos limites admissiveis pela sociedade. Admitimos que o setor estatal nao constitui ainda, de modo nenhum, uma Unica grande empresa; e isto sucede por de- feitos de organizagao, por falta de desenvolvimento da nossa sociedade e porque existem dois sistemas de financiamento. Quando exprimimos o nosso conceito de uma s6 empre- sa, baseamo-nos fundamentalmente na definigéo de merca- doria dada por Marx: “Para ser mercadoria, o produto tem que passar pelas maos de outrem, de quem o consome, por meio de um ato de troca”; e na citagao de Engels explicando que introduz o conceito de mercadoria para evitar o erro dos que consideram mercadoria todo o produto consumido por alguém que nao seja o produtor, e dando o exemplo de que os produtos entregues pelo agricultor a titulo de trisuto nao so mercadorias, porque nao existe troca. Engels dé um exemplo extrafdo da sociedade feudal, mas este conceito de mercadoria, com os exemplos correspondentes, nao pode aplicar-se & nossa época atual de construgao do socialismo? 79 Consideramos que a passagem dos produtos de uma oficina a outra, ou de uma empresa a outra num sistema orgamental desenvolvido, nao pode ser considerada um ato de troca; é simplesmente um ato de formagdo ou adigao de novos valores mediante o trabalho. Quer dizer, se mer- cadoria 6 0 produto que muda de propriedade por um ato de troca, ao estarem todas as fabricas dentro da propriedade estatal, no sistema orcamental, onde este fendmeno nao se produz, o produte so adquirira caracteristicas de mercado- ria quando, ao chegar ao mercado, passar para as maos do povo consumidor. A nossa opinido sobre os custos esta exposta no ja ci- tado artigo, que apareceu nesta revista com a minha assi- natura; para ele remetemos o leitor interessado No que respeita ao tamanho de Cuba, aplicando o crité- rio de Mora, poderiamos propor que dividisse 0 seu minis- tério em nove ministérios auténomos, um por andar, dada a sua dimens4o exagerada. Se ele nao acreditar, experimente subir até ao seu gabinete pela escada e ficaré convencido da verdade da afirmagao. Se usa o telefone, o elevador e o intercomunicador, € porque existem para isso; as distan- cias em Cuba se medem por meios técnicos de comunica- gao moderna, nao pelo tempo que demoravam os nossos antepassados quando se deslocavam de um lado para 0 outro. Estas sao as nossas divergéncias. Queremos que se saiba que esta polémica que se abre com a nossa réplica pode ter um grande valor para a nossa formacéo na medida em que formos capazes de a conduzir com o maior rigor cientifico e a maior serenidade. Nao re- cusamos as confrontagdes mas, como estamos no centro de uma discussao que atinge os niveis superiores do Governo 80 e do Partido, onde se mantém duas linhas de pensamento sobre o sistema de financiamento, cremos que o cuidado na forma e no método de discussdo é importante. Saudamos a iniciativa do companheiro Mora, que con- duziu a uma confrontagao publica, ainda que achemos que € sempre preferivel chamar as coisas pelo seu proprio nome Felicitamo-lo pela qualidade da revista do Ministério do Co- mércio Externo, qualidade que tentaremos atingir na nossa modesta publicagao. 81 SIGNIFICADO DA PLANIFICAGAO SOCIALISTA™ A revista “Cuba Socialista" publicou no seu numero 32 um artigo do companheiro Charles Bettelheim intitulado “Formas e Métodos da Planificagaéo Socialista e Nivel de Desenvolvimento das Forgas Produtivas”. Este artigo aborda temas de inegdvel interesse mas tem além disso, para nds a importancia de se destinar a defender o chamado Calculo Econémico e as categorias que este sistema pressupée no setor socialista, tais como o dinheiro como meio de paga- mento, 0 crédito, a mercadoria, etc. Consideramos que neste artigo se cometeram erros fun- damentais, que trataremos de definir: O primeiro refere-se & interpretagdo da necessaria cor- relagdo que deve existir entre as forcas produtivas e as re- lagées de produgéo. Neste ponto, 0 companheiro Bettelheim segue o exemplo dos classicos do marxismo. Forgas produtivas e relagées de produgado sao dois me- canismos que marcham indissoluvelmente unidos em todos 0s processos médios do desenvolvimento da sociedade. Em que momentos puderam as relagdes de produgaéo nao ser fiéis ao reflexo do desenvolvimento das forgas produtivas? Nos momentos de ascensaéo de uma sociedade que avanga (*) Artigo publicado na “Cuba Socialista’’, n.° 34, junho de 1964. 160 sobre a anterior para romper com ela e nos momentos de ruptura da velha sociedade, quando a nova, cujas relagdes de produgao serao implantadas, luta por se consolidar e por destrogar a antiga superestrutura. Deste modo, nem sem- pre as forgas produtivas e as relagdes de produgao poderao, num dado momento histdrico analisado concretamente, estar em correspondéncia de uma forma totalmente coerente. Essa € precisamente a tese que permitia a Lenin dizer que a Revolugdéo de Outubro era uma revolugao socialista e, no entanto, num dado momento, defender que se devia ir para © capitalismo de Estado e preconizar cautela nas relagGes com os camponeses. A razao desta posi¢aéo de Lenin encon- tra-se precisamente na sua grande descoberta do desenvol- vimento do sistema mundial do capitalismo. Bettelheim diz: “...a alavanca decisiva para modificar © comportamento dos homens 6 constituida pelas alteragoes introduzidas na produgdo e na sua organizagaéo. A educagao tem essencialmente por missdo fazer desaparecer atitudes € comportamentos herdados do passado e que sobrevivem, e assegurar a aprendizagem de novas normas de conduta impostas pelo proprio desenvolvimento das forgas produ- tivas”. Lenin diz: “A Russia néo alcangou um nivel de desen- volvimento das forgas produtivas capaz de tornar possivel © socialismo. Todos os herdis da II Internacional e, entre eles, naturalmente, Soukhanov, andam para tras e para a frente com esta tese, tal como um menino com sapatos no- vos, Repetem esta indiscutivel tese de mil maneiras e pa- rece-lhes que 6 decisiva para avaliar a nossa revolugdo. Mas, que fazer, se uma situagdéo peculiar conduziu a Russia primeiro & guerra imperialista mundial, na qual intervieram todos os paises mais ou menos importantes da Europa Oci- dental, e colocou o seu desenvolvimento & beira das revo- 164 lug6es nascentes e das que em parte jé comecaram no Oriente, em condigées que tém permitido por em pratica precisamente essa alianca da “guerra camponesa” com o movimento operdrio, a qual foi considerada uma das prova- veis perspectivas por um “marxista" como Marx, referin- do-se a Prissia em 1858? “E, que deviamos fazer, quando uma situacéo absoluta- mente sem saida, decuplicando as forcas dos operarios e camponeses, nos abria a possibilidade de passar de uma maneira diferente de todos os demais paises do Ocidente Europeu & criagdéo das premissas fundamentais da civiliza- ¢d0? A linha geral do desenvolvimento da histéria universal foi por isso modificada? Modificou-se por isso a correlagao essencial das classes fundamentais em cada pais que entra, ou ja entrou no curso geral da historia universal? Se para implantar o socialismo se exige um determi- nado nivel cultural (ainda que ninguém possa dizer qual é 2ste determinado nivel cultural, porque ele é diferente em cada um dos paises da Europa Ocidental), porque razdo entao, néo podemos comegar primeiro pela conquista por via revoluciondria das premissas para este determinado nivel e depois, j4 com base no poder operdrio e camponés e no re- gime soviético, caminhar para alcancar os demais paises?”.") Com a expansao do capitalismo como sistema mundial e o desenvolvimento das relagdes de exploracdo nao so- mente entre os individuos de um povo mas também entre Os povos, o sistema mundial do capitalismo passou a ser imperialismo, entra em conflitos e pode romper-se pelo seu elo mais fraco. Esta era a Russia czarista desde a primeira guerra mundial até ao principio da Revolugao, na qual coe- xistiam os cinco tipos econémicos apontados por Lenin na- (4) Lenin, ""Problemes da edificagéo do soclaliemo @ do comuniamo ne URSS". 162 quela altura: a forma patriarcal mais primitiva de agricul- tura, a pequena produgao mercantil (incluindo a maioria dos camponeses que vendiam o seu trigo), 0 capitalismo priva- do, 0 capitalismo de Estado e o socialismo. Lenin fazia no- tar que todos estes tipos apareciam na Russia irnediatamente depois da Revolugao; mas o que qualificava o pais em geral era a caracteristica socialista do sistema, apesar de o de- senvolvimento das forgas produtivas nao ter em determina- dos pontos alcangado a sua plenitude. Naturalmente, quan- do o atraso é muito grande, a correta acdo marxista deve ser temperar o mais possivel o espirito da nova época, que tende para a supressaéo da exploragao do homem pelo ho- mem, com as situagées concretas do pais; e assim o fez Lenin na Russia recém libertada do czarismo, foi essa a nor- ma da Uniao Soviética. Estamos convencidos de que toda esta argumentacao, absolutamente valida e de extraordindria perspicacia naquele momento, € aplicdvel as situagdes concretas em determina- dos momentos histéricos. Desde esse tempo, sucederam coisas de grande transcendéncia, como o estabelecimento de todo o sistema mundial do socialismo, com cerca de mil milhées de habitantes, um terco da populagéo do Mundo. O avanco continuo de todo o sistema socialista influencia a _consciéncia das pessoas a todos os niveis e, por conse- ia, em Cuba no momento da sua histéria produz-se a definigéo da sua revolugao socialista; esta definigéo nao Precedeu, nem mais e nem menos, o fato real de que ja existiam as bases econémicas estabelecidas para esta afir- macao. Como se pode produzir a transigéo para o socialismo num pais colonizado pelo imperialismo, sem nenhum desen- volvimento das industrias basicas e numa situagao de mo- noprodutor dependente de um sé mercado? 163 Varias respostas se podem dar. Declarar, como os ted- ricos da II Internacional, que Cuba furou todas as leis da dialética, do materialismo histérico e do Marxismo, e que portanto nao é um pais socialista, ou que deve regressar a situagao anterior? Pode-se ser mais realista, e a este titulo procurar nas relagdes de produgao de Cuba os motores internos que pro- vocaram a revolugao atual. Mas naturalmente, isso levaria & demonstragao de que ha muitos paises na América e nou- tros lugares do Mundo onde a revolugao é muito mais viavel do que era em Cuba. Resta a terceira explicag40, quanto a nds exata, de que no quadro geral do sistema mundial do capitalismo em luta contra 0 socialismo, se pode romper um dos seus elos fra- cos, neste caso concreto Cuba. Aproveitando condigdes historicas excepcionais e sob a correta diregdo da sua vanguarda, as forcas revoluciona- rias tomam o poder num dado momento e, baseadas em que ja existem as suficientes condigdes objetivas quanto @ so- cializagéo do trabalho, queimam etapas, decretam o carater socialista da revolugéo e empreendem a construcao do so- cialismo. Esta € a forma dinamica, dialética, de vermos e anali- sarmos o problema da necessdria correlacdo entre as rela- g6es de produgao e o desenvolvimento das forcas produtivas. Depois de produzido o fato da Revolug¢aéo cubana, que n&o pode escapar a andlise nem se iludir ao fazer investl- gagao sobre a nossa histéria, chegamos a conclusao de que em Cuba se fez uma revolucao socialista e que, portanto, havia condig6des para isso. Porque, realizar uma revolugéo 164 sem condicoes, chegar ao poder e decretar o socialismio por artes de magia, é algo que nao esta previsto por nenhuma teoria e nao creio que tenha o apoio do companheiro Bet- telheim. Se € produzido o fato concreto do nascimento do socia- lismo nestas novas condigdes, é porque o desenvolvimento das forcas produtivas chocou com as relagées de produgado antes do que racionalmente se esperaria para um pais ca- pitalista isolado, O que sucede? Que a vanguarda dos mo- vimentos revolucionarios, influenciados pela ideologia mar- xista-leninista cada vez com maior intensidade, é capaz de prever na sua consciéncia toda uma série de passos a dar e de forgar a marcha dos acontecimentos, mas forga-la den- tro do que é objetivamente possivel. Insistimos muito neste ponto, porque é uma das falhas fundamentais do argumentc utilizado por Bettelheim. Se partimos do fato concreto de que sé se pode realiza uma revolugdéo quando ha contradigées fundamentais entre o desenvolvimento das forgas produtivas e as relagdes de produgdo, temos que admitir que isto aconteceu em Cuba e temos que admitir também que esse fato confere carac- teristicas préprias a Revolugdéo cubana, apesar de numa andlise objetiva se encontrarem no seu interior toda uma série de forcas que ainda estéo num estado embriondrio ou que nao se desenvolveram ao maximo. Mas se nestas con- digdes se produz e triunfa a revolugao, como utilizar depois © argumento da necessdria e obrigatéria correspondéncia, de um modo mec§nico e estrito, entre as forgas produtivas e as relagdes de*produgdo, para defender, por exemplo o Célculo Econémico e atacar o sistema de empresas conso- lidadas que praticamos? Dizer que a empresa consolidada é uma aberracao equi- vale aproximadamente a dizer que a Revolugéo cubana 6 165 uma aberragéo; séo concepgdes do mesmo tipo e poderiam Se basear na mesma analise. QO companheiro Bettelheim nunca negou a autenticidade da Revolugao Socialista cubana, mas diz que as nossas atuais relagdes de produgao nao cor- respondem ao desenvolvimento das forgas produtivas e pre- vé, portanto, grandes fracassos. O erro do companheiro Bettelheim é provocado pela aplicagao rigida do pensamento dialético a estas duas cate- gorias, de amplitude diferente mas com a mesma tendéncla. As empresas consolidadas nasceram, se desenvolveram e continuam a desenvolver-se porque o podem fazer; é uma verdade de La Palisse da pratica. Se o método administra- tivo é ou nao o mais adequado é questéo que tem pouca importancia em definitivo, porque as diferengas entre um método e outro sao fundamentalmente quantitativas. O nos- | so sistema aponta para o futuro, para um desenvolvimento mais acelerado da consciéncia e, através da consciéncia, das forgas produtivas. O companheiro Bettelheim nega esta agdo particular da consciéncia, baseando-se nos argumentos de Marx de que esta 6 um produto do meio social e nao o contrario. Nés utilizamos a andlise marxista para conquistar Bettelheim, dizendo-lhe que isto esta absolutamente certo mas que, na época atual do imperialismo, também a consciéncia adquire caracteristicas mundiais. E que esta consciéncia de hoje é © produto do desenvolvimento de todas as forgas produtivas mundiais e do ensino e educacao exercidos sobre as massas de todo o Mundo pela Unido Soviética e pelos outros paises socialistas. Nessa medida, devemos considerar que a consciéncla dos homens de vanguarda num dado pais, baseada no de- senvolvimento geral das forgas produtivas, pode encontrar os caminhos adequados para fazer triunfar uma revolucao 166 socialista nesse pais, ainda que nao existam objetivamente ao seu nivel as contradigdes entre o desenvolvimento das forgas produtivas e as relagées de produgao, que tornariam imprescindivel ou possivel uma revolugao (numa analise do pais como um todo unico e isolado). Deixaremos por aqui esta primeira objegaéo. O segundo erro grave cometido por Bettelheim é a insisténcia em con- ferir @ estrutura juridica uma possibilidade de existéncia auténoma. Na sua analise, refere insistentemente a neces- sidade de ter em conta as relagdes de produgdo no esta- belecimento juridico da propriedade. J Pensar que a propriedade juridica, ou melhor, a superes- trutura de um determinado Estado, num dado momento, foi imposta contra as realidades das relagdes de produgao, é Pprecisamente negar o determinismo em que se baseava para afirmar que a consciéncia é um produto social. Natural- mente, em todos estes processos, que sao historicos, que nado se realizam em milésimos de segundo como processos fisico-quimicos, mas sim no longo curso da humanidade, ha toda uma série de aspectos das relagées juridicas que nao correspondem as relagdes de produgao que nesse momento caracterizam o pais; 0 que sé quer dizer que serao destrui- das com o tempo, quando as novas relagées se impuserem sobre as velhas, mas nao que inversamente seja possivel mudar a superestrutura sem previamente mudar. as relagdes de produgao. O companheiro Bettelheim insiste repetidamente em que a natureza das relagées de produgdo é determinada pelo grau de desenvolvimento das forgas produtivas e que a proprie- dade dos meios de produgao é a expresso juridica e abstrata de algumas relagoes de produgao, escapando-lhe 0 fato fun- damental de que isto, mesmo perfeitamente adaptado a uma situagéo geral (quer seja o sistema mundial ou o pafs), nao 167 permite estabelecer a mecanica microscdpica que ele pre- tende entre o nivel de desenvolvimento das forgas produti- vas em cada regiao ou situagdo e as relagées juridicas de propriedade. Ataca os economistas que pretendem ver na propriedade dos meios de producgdo por parte do povo uma expressao do socialismo, dizendo que estas relagdes juridicas nao so base de nada. De certo modo poderia ter razao em relagao ao termo base, mas o essencial é que as relagdes de pro- dugao e o desenvolvimento das forgas produtivas entram em choque num dado momento e que esse choque nao é me- canicamente determinado por uma acumulacéo de forgas econémicas, mas é sim uma soma quantitativa e qualitativa, por acumulacao de forgas conflituais do ponto de vista do de- senvolvimento econémico e por ultrapassagem de uma clas- se social por outra, do ponto de vista politico e historico. Quer dizer, nunca podemos separar a andlise econémica do fato histérico da luta de classes (até que se chegue a sociedade perfeita). Por esse motivo, para o homem, expres- s&o vivente da luta de classes, a base juridica que representa a superestrutura da sociedade em que vive tem caracteristi- Cas concretas e exprime uma verdade palpavel. As relagdes de produgao e o desenvolvimento das forcas produtivas sao fendmenos econémico-tecnolégicos que vao se acumulando no decurso da histéria. A propriedade social é uma expres- s&o palpavel destas relagdes, tal como a mercadoria concre- ta 6 a expressao das relagdes entre os homens. A merca- doria existe porque hé uma sociedade mercantil onde se produziu uma diviséo do trabalho na base da propriedade privada. O socialismo existe porque h4 uma sociedade de novo tipo, na qual os expropriadores foram expropriados e a propriedade social substituiu a antiga, individual, dos ca- pitalistas. 168 Esta é a linhe geral que o periodo de transigéo deve seguir; as relagdes detalha.as entre esta ou aquela esfera da sociedade so tem interesse para determinadas andlises concretas; a analise tedrica deve sim abranger todo o qua- dro das novas relagGes entre os homens, toda a sociedade em transigao para o socialismo Partindo destes dois erros conceptuais fundamentais, 0 companheiro Bettelheim defende a identificagao obrigatdria, exatamente encaixada, entre o desenvolvimento das forcas produtivas e as relagdes de produgdo, em cada momento dado e em cada regido dada, e, simultaneamente, transplan- ta estas mesmas relagdes para o caso da expressdo juridica. Para chegar onde? Vejamos o que diz Bettelheim: “Nes- tas condicées, o raciocinio que parte exclusivamente da no- Gao geral de “propriedade estatal" para designar as dife: rentes formas superiores de propriedade socialista, preten dendo reduzir esta a uma realidade unica, tropeca em difl culdades insuperdveis, sobretudo quando se trata de analisa! a circulagéo das mercadorias no interior do setor socialista do Estado, 0 comércio socialista, o papel da moeda, etc.”. E logo, analisando a diviséo feita por Stalin em duas formas de propriedade, afirma: “Este ponto de partida juri- dico e as andlises que dele decorrem, levam a negagao do cardter necessariamente mercantil, no momento atual das trocas entre as empresas socialistas do Estado e tornam Incompreensiveis no plano teérico, a natureza das compras e vendas efetuadas entre empresas estatais, a natureza da moeda, dos pregos, da contabilidade econémica, da autono- mia financeira, etc, Estas categorias encontram-se assim privadas de todo o contetido social real. Surgem como for- mas abstratas ou processos técnicos mais ou menos arbl- trérios e néo como expressao destas leis econémicas obje- 169 tivas cuja necessidade era, por outro lado, apontada pelo proprio Stalin”. Para nos, 0 artigo do companheiro Bettelheim, apesar de tomar manifestamente partido contra as idéias que em algumas oportunidades expressamos, tem inegavel importan- cia, porque vem de um economista com profundos conheci- mentos e de um tedrico do marxismo. Partindo de uma si- tuagao de fato para fazer uma defesa, quanto a nos mal pensada, do uso das categorias inerentes ao capitalismo no periodo de transicao e da necessidade da propriedade indi- vidualizada dentro do setor socialista, ele revela que, se- guindo a linha marxista a que podemos chamar ortodoxa, a analise pormenorizada das relagdes de producao e da proprie- dade social 6 incompativel com a manutengdo dessas cate- gorias, e assinala que ai ha algo incompreensivel. Defendemos exatamente 0 mesmo, s6 que a nossa con- cluséo é diferente: achamos que a inconseqiiéncia dos de- fensores do Calculo Econémico resulta de que, seguindo a linha de anélise marxista, quando chegam a um determinado ponto tém que dar um salto (deixando pelo meio “o elo per- dido") para cairem numa nova posigao a partir da qual con- tinuam a sua linha de pensamento. Concretamente, os de- fensores do Calculo Econémico nunca explicaram correta- mente como se mantém na sua esséncia o conceito de mer- cadoria no setor estatal, ou como se faz uso “inteligente” da lei do valor no setor socialista, com mercados distorci- dos. Constatando a inconseqiiéncia, 0 companheiro Bette- Iheim retoma os termos, inicia a andlise por onde devia ter- minar — pelas atuais relagdes juridicas existentes nos pal- ses socialistas e pelas categorias que ai subsistem — cons- tata o fato real e certo de que existem estas categorlas Ju- ridicas e estas categorias mercantis, e conclui pragmatica-~ mente dai que se existem é porque sdo necessérlas; a partir 170 dessa base, caminha para tras de forma analitica para che- gar ao ponto onde se chocam a teoria e a pratica. Neste ponto, da uma nova interpretagao da teoria, sub- mete Marx e Lenin a andlise e extrai a sua propria inter- pretagdo, com as bases erroneas que apontamos, o que lhe permite formular um processo conseqiente de um extremo ao outro do artigo Esquece aqui, no entanto, que o periodo de transigao é historicamente jovem. No momento em que o homem alcan- Ga a plena compreensdo do fato econémico e o domina atra- vés do plano, esta sujeito a inevitaveis erros de apreciacao. Porqué pensar que o que “é" no perfodo de transi¢géo necessariamente “deve ser"? Porqué justificar que os gol- pes dados pela realidade em certas audacias sao produto exclusivo da auddcia e nao também, em parte ou no tod falhas técnicas de administragao? Pensamos que 6 atribuir demasiada importancia a pl ficagdo socialista, com todos os defeitos técnicos que pi ter, pretender, como o faz Bettelheim, que: “Daqui deri a impossibilidade de proceder de maneira satisfatéria, isto e, eficaz, a uma reparticao integral @ priori dos meios de pro- dugao e dos produtos em geral, e a necessidade do comér- cio socialista e dos organismos comerciais do Estado. De onde resulta também o papel da moeda no interior do pr6- prio setor socialista, o papel da lei do valor, e um sistema de precos que deve refletir nao s6 0 custo social dos dife- rentes produtos, mas deve também ser a expresso das rela- Ges entre a oferta e a procura destes produtos e assegurar eventualmente o equilibrio entre esta oferta e esta procura, quando o plano nao o tenha podido assegurar a priori e quando o uso de medidas administrativas para realizar este equilibrio comprometa o desenvolvimento das forgas produ- tivas”. 174 Considerando as nossas debilidades (em Cuba), aponta- vamos no entanto, a nossa intengao de definigao fundamen- tal: "Negamos a possibilidade do uso consciente da lei do valor, baseados na inexisténcia de um mercado livre que exprima automaticamente a contradicao entre produtores e consumidores; negamos a existéncia da categoria mercadoria na relagdo entre empresas estatais; e consideramos todos os estabelecimentos como parte da Unica grande empresa que é o Estado (apesar de, na pratica, tal nao acontecer ainda no nosso pafs). A lei do valor e o plano sao dois termos ligados por uma contradi¢aéo e sua solucao; podemos pois dizer que a planificag&o centralizada 6 o modo de existir da sociedade socialista, a sua categoria definitaria e 0 ponto em que a consciéncia do homem consegue, por fim, sinte- tizar e dirigir a economia para a sua meta, a plena liberta- gao do ser humano no quadro da sociedade comunista”. Relacionar a unidade de producéo (sujeito econémico para Bettelheim) com o grau fisico de integracao, é levar 0 mecanismo ao extremo e negar a possibilidade de fazermos © que tecnicamente os monopdlios norte-americanos ja pra- ticavam em muitos ramos da industria cubana. E descon- fiar demasiado das nossas forgas e capacidades. Assim, aquilo a que se pode chamar “unidade de pro- dugdo” (e que constitui um verdadeiro sujeito econémico) varia evidentemente segundo o nivel de desenvolvimento das forgas produtivas. Em certos ramos da produgdo, onde a integracdo das atividades estd suficientemente avangada, 0 préprio ramo pode constituir uma “unidade de produgao”. ‘Pode ser 0 caso, por exemplo, da industria elétrica, na base da interconexdo, porque isto permite uma direc4o Unica cen- tralizada de todo o ramo. Ao desenvolvermos pragmaticamente o nosso sistema, deparamos com certos problemas que ja tinham sido exa- 172 minados e tratamos de resolvé-los do modo mais coerente possivel, na medida em que a nossa preparacao o permite, com as grandes idéias expressas por Marx e Lenin. Isso nos levou a procurar a solugdo para as contradi- goes existentes na economia politica marxista no periodo de transigao. Ao tentar superar essas contradigdes, que so- mente podem ser travdes transitdrios ao desenvolvimento do socialismo, porque a sociedade socialista existe de fato, investigamos os métodos organizativos mais adequados a pratica e a teoria, que nos permitirao impulsionar ao maxi- mo a nova sociedade, mediante o desenvolvimento da cons- ciéncia e da produgao; esse é 0 campo em que estamos hoje embrenhados, Em conclusao: 1) Achamos que Bettelheim comete dois erros grossei- ros no método de analise a) Transpor mecanicamente 0 conceito da neces sdria correspondéncia entre relagées de produ cao e desenvolvimento das forgas produtivas, de validade global, para o microcosmos das re- lagdes de produgao em aspectos concretos de um dado pais durante o periodo de transicao, e extrai assim conclusdes apologéticas tingidas de pragmatismo, sobre 0 chamado Calculo Eco- némico. b) Fazer a mesma andlise mecdnica em relacao ao conceito de propriedade. 2) Portanto, néo estamos de acordo com a sua opiniao de que a autogestao financeira ou a autonomla con- tabilistica “estado ligadas a um dado estado das for- Gas produtivas", conseqiiéncia do seu método de analise. 173 174 3) 4) 5) 6) 7) Negamos o seu conceito de direcdo centralizada na base da centralizagao fisica da produgdo (dé o exem- plo de uma rede elétrica interligada) e o aplicamos a uma centralizagéo das decisdes econédmicas prin- cipais. Nao nos parece correta a explicagéo da razao da necessaria vigéncia sem restricdes da lei do valor e de outras categorias mercantis durante o periodo de transicaéo, ainda que nado neguemos a possibili- dade de usar elementos desta lei para fins compa- rativos (custo, rentabilidade expressa em dinheiro aritmético). Para nos, “a planificagdo centralizada é 0 modo de existir da sociedade socialista”, etc., e portanto, atribuimos-lhe muito maior poder de decisao cons- ciente do que Bettelheim. Consideramos de muita importancia tedrica o exa- me das incoeréncias entre o método tedrico de ané- lise marxista e a subsisténcia de categorias mer- cantis no setor socialista, questao que deve ser mais aprofundada. A propésito deste artigo, aos defensores do “Calculo Econémico” aplica-se a frase: "Deus me guarde dos meus amigos, que dos meus inimigos me guarda- rei eu”. A CLASSE OPERARIA E A INDUSTRIALIZAGAO DE CUBA Uma revolugdo como a nossa, uma revolugao feita por vontade do povo e para o povo, nado pode progredir se as medidas tomadas nao forem assumidas por todo o povo. Para assumir estas medidas com entusiasmo, é preciso co- nhecer o processo revolucionario; 6 preciso sentir a sua ne- cessidade e assumi-las conscientemente. Se nos sacrifica- mos, temos de saber porqué. A via da industrializagao, que conduz ao bem-estar coletivo, é dificil Por outro lado, 4 medida que as contradigées no Mundo se acentuam e que os movimentos populares das regides subdesenvolvidas substituem o agressivo imperialismo eco- némico dos Estados Unidos, a agressividade norte-americana redobra de intensidade no seu “mare nostrum”, as Caraibas. Por outras palavras, o grande despertar a que por todo o lado se assiste, implica uma ameaga para Cuba. Daqui em diante, é necessdrio que estejamos conscientes do fato de que somos em parte responsaveis por todos estes aconte- cimentos, Ha um evidente despertar nos paises subdesenvolvidos, e@ 0 exemplo cubano em certa medida contribulu para Isso. (7) Discurso felto em 18 de, Junho de 1960. 175 E inutil dizer que o nosso exemplo teve mais forga na Amé- rica Latina do que no Japao. No entanto, fizemos a demons- tracao de que as poténcias coloniais nao sao tao fortes como outrora se imaginava. Este serd um aspecto positivo para a solidariedade internacional que se desenvolverd contra qualquer agressao que venhamos a sofrer. Quando falo de agressao, quero dizer agressao real fisi- ca, e nao simples agressdo econémica, como a que tera lugar em breve na Camara dos Representantes dos Estados Unidos, a proposito das nossas quotas de acucar. Temos um caminho dificil a percorrer. A nossa forga reside na unidade dos operarios e camponeses, de todas as classes necessitadas, que devem marchar para o futuro. A minha conferéncia se destina diretamente aos opera- trios, e nao aos camponeses. E isto por duas razdes. Primei- ro, OS Camponeses cumpriram integralmente a sua primeira tarefa histérica; combateram com energia para conquistar o direito @ terra e j4 estado a recolher os frutos da vitoria. O nosso campesinato esta inteiramente na esteira da revo- lugdo. A classe operaria, pelo contrario, nao colheu ainda os frutos da industrializagao. Ha uma resposta clara para isso: precisavamos criar primeiro uma base para a industrializa- Gao, e esta base exigia uma alteracdo da estrutura agrdria. A reforma agraria criou a base da industrializagao. Estamos agora no caminho da industrializagao. O papel da classe operaria tornou-se muito importante. Os operdrios devem compreender todas as tarefas que lhes cabem e a importancia do momento que vivemos, sem o que no con- seguiremos criar uma sociedade industrial. Queria que isto ficasse claro, nao ha necessidade de rodelos quando se fala a revoluciondrios. & bom que se Co- nhegam todas as nossas fraquezas e que se procure supe ré-las. N&o se pode dissimular o fato de que o movimento 176 revolucionario teve a sua base primeiro entre os campone- ses e so em seguida na classe operaria. E isso aconteceu por um certo numero de razdes. Primeiro, foi nas regiées camponesas que se produziu 0 movimento insurrecional mais forte. O dirigente insurrecional com mais prestigio, Fidel Castro, estava numa regiaéo camponesa. Mas ha também razdes sdcio-econémicas de grande importancia: Cuba, como qualquer pais subdesenvolvido, nao tinha um proletariado forte. Em certas industrias, essencialmente nas Industrias novas ligadas ao capital monopolista, os operdrios eram por vezes individuos privilegiados. O operario do agucar tinha de suar horas e horas ao sol durante trés meses, para passar fome nos restantes nove, enquanto outros trabalhadores tl- nham um emprego todo o ano e ganhavam sels vezes mals. Isso constitui uma grande diferenga que provoca divisées no seio da classe operdéria. De fato, 6 Isso exatamente o ee) as poténclas coloniais favorecem; procuram dividir a class) Operaéria concedendo privilégios a uma minorla que passar @ querer preservar o “status quo", Dizem ao operério qué se pode elevar pessoalmente gracas ao esforco préprio 6 nao pela acao coletiva. Deste modo, quebram a solldarle- dade do proletarlado. E por isso que, depois da revolugéo ter conquistado o poder, travamos duros combates contra os representantes de Mujal,") que bloqueavam o desenvolvimento do movl- mento sindical. Nao podemos hoje dizer que estes represen- tantes do passado tenham sido totalmente aniquilados, mas brevemente estarao destrufdos, Subsiste entretanto na classe operdria um pouco do esta- do de espirito que leva a encarar os problemas em fungado (1) Eusébio Mujal era dirlgente sindical durante « ditadura de Batista. Conclulu um acorda com Bat 08 trabalhadores poderlam ver aumentado 177 da oposi¢ao patraéo-empregados, andlise muito simplista da realidade. Assim, quando atualmente iniciamos o nosso processo de industrializagaéo e damos um papel de primeiro plano ao Estado, vemos que numerosos empregados consi- deram o Estado como um empregador qualquer. O nosso Estado é precisamente o oposto de um Estado-patrao; con- seqiientemente, para acentuar bem isso, temos tido longas cOnversas com os trabalhadores. Os operdrios estao a mu- dar de atitude, mas houve uma altura em que travaram o desenvolvimento. Poderia citar alguns exemplos, mas nao ha necessidade de discutir casos individuais nem de apontar ninguém, por- que estou convencido de que, na maioria dos casos, 0 pro- blema nado vem da ma intengdo, mas de uma mentalidade velha que deve ser destruida. Os operdrios nao querem pre- judicar a Revolugao. Deve ficar bem claro para todos o que dizia recente- mente Fidel: “O melhor dirigente sindical nao é aquele que procura assegurar aos operarios 0 pao quotidiano. O melhor dirigente sindical é aquele que combate pelo pao quotidiano de cada um, que abarca perfeitamente o processo revolucio- nario e que, analisando-o e compreendendo-o em profundi- dade, defende o Governo e convence os seus camaradas explicando-Ihes as razdes de certas medidas revoluciona- rias. ‘Mas, isso nao significa que um dirigente sindical se deva transformar num papagaio, que repita pura e simples- mente tudo o que disser 0 Ministério do Trabalho ou outro 6rgao da administragaéo”. & evidente que o Governo cometeré erros e que o diri- gente sindical deverd estar atento a esses erros. Se os erros se repetirem, o dirigente sindical deveré prestar-lhes ainda (2) Estado-patréo: no. origine tado:patrko’ designe um Estedo que possul 08 molos de producbo e que no escuta os trabalhadores 178 mais atengao. € simplesmente um problema de procedimen- to. No Governo ha representantes do povo; eles querem servir 0 povo e est4o prontos a corrigir todos os erros que se possam cometer, Sem excegao. — natural que um grupo de pessoas jovens, sem expe- riéncia anterior, que tomaram a seu cargo um processo ace- lerado de desenvolvimento, enfrentando a maior poténcia econémica e militar do continente e do chamado “mundo ocidental”, cometam erros. A tarefa do dirigente sindical é mostrar Os erros aos representantes do povo, se necessario Persuadi-los, e continuar a fazé-lo até que sejam tomadas medidas para corrigir esses erros. O dirigente sindical deve mostrar aos seus camaradas os erros cometidos e como é necessario combaté-los, como as coisas devem ser mudadas; mas isso deve ser feito pela discussao. E inadmissivel, e significaria 0 principio do nosso fim, que os operdrios entrem em greve porque o Estado que os emprega (e falo aqui do processo de industrializagéo, onde € maior a participacdo do Estado) tenha adotado uma po- sigéo intransigente e absurda que lhes dé pretextos para isso. No dia em que tal acontecer, sera o principio do fim do governo popular. Isso seria a negagéo de tudo o que temos apregoado. Por vezes, o Governo tera que pedir sa- crificios a certos setores da classe operéria. JA por duas Ocasides, os operdrios do acucar fizeram grandes sacrifi- cios; eles representam — e digo-o com toda a sinceridade — 0 setor mais combativo da classe operdria e 0 que tem mais consciéncia de classe. Eles estao muito conscientes das suas obrigagdes revolucionérias. No futuro, teremos todos que cumprir os nossos deveres revolucionarios e que renun- clar temporariamente a certos privilégios e direitos em be- neficio da coletividade. Essa 6 uma outra tarefa do dirigen- te sindical: deve assinalar 0 momento em que o sacrifici seré necessério, deve analisé-lo e assegurar-se de que o sacriffcio dos operérios seja o mais pequeno possivel; mas deve ao mesmo tempo convencer os seus camaradas da ne- cessidade do sacrificio. E preciso que os operdrios se con- vengam da justeza do que !hes é pedido; é preciso que o dirigente sindical 0 explique e que se assegure de que to- dos estéo convencidos. Um governo revolucionario nao pode pedir sacrificios a partir de cima; os sacrificios devem ser produto da vontade de cada um A industrializagaéo constrdi-se sobre o sacrificio, Nao se pode entrar num processo acelerado de industrializagao co- mo se se fosse para uma festa. No futuro, isto ficaré muito claro. Durante este tempo as companhias monopolistas j4 deram um golpe (ou melhor, mostraram as garras, porque n&o nos conseguiram atingir) na questao do petrdleo. Ten- taram privar-nos de petréleo, Ha alguns anos, 0 nosso go- verno revoluciondrio teria sucumbido a esse golpe. Fellz- mente, hoje ha poténcias que tém petréleo e que o vendem ‘com toda a Independéncla; por outro lado, tém a possibili- dade de nos entregar esse petréleo sem se Importarem com quem se possa opor & transagao. A atual divisdo mun- dial de forgas permitiu que Cuba escapasse ao colonlalismo e tomasse o controle dos seus recursos. O nosso subsolo nao teré valor enquanto nao souber- mos se contém petréleo. Para o saber, é preciso fazer a Prospecgéo, e isso 6 muito caro. Entretanto, tivemos que encontrar energia suficiente para as nossas industrias tra- balharem. Sabeis que quase 90% da energia do nosso pals depende da eletricidade, e que mais de 90% da nossa ele- tricidade depende do petréleo. O petrdleo desempenha um papel estratégico na nossa economia; por isso, desenrolou-se a volta dele uma grande batalha. Sabiamos que o desenca- deamento desta batalha era s6 uma questo de tempo. Diri- 180 gimo-nos as companhias estrangeiras pelas vias legais; elas responderam com a sua arrogancia de monopolistas, procu- rando nos causar problemas Existe hoje uma poténcia que tem petréleo; possui na- vios para entregar este petrdleo e a forca necesséria para 0 trazer aqui. Se nao tivessemos tido esta fonte de petré- leo, estariamos presentemente perante uma penosa alterna- tiva: permitir que a revolugdo fosse destruida, ou regressar a um estado primitivo, com uma ligeira vantagem — nada mais — porque teriamos hoje cavalos e mulas, coisa que Os nossos ancestrais aborigenes nao tinham. Isto teria sig- nificado a completa paralizagao das nossas indtstrias. A si- tuagao teria sido naturalmente muito dificil. Felizmente ha uma terceira via, e devemos continuar a progredir. Tal nao significa que tenhamos alcangado uma vitéria definitiva e que esteja afastado todo o perigo. Néo 6 sem motivo que a maioria de nds usa hoje uniformes da milicia. A vigilancia e 0 treino sao agora mais necessdrios que nunca, Talvez muitos de nés venham a morrer em defesa da revolugdo. Mas, o mais importante 6 trabalhar, sabendo sempre que esta ocasiéo pode chegar, prevenindo sempre mas trabalhar como se essa ocasiao nunca chegasse, pen- sando sempre na construgdo da paz no nosso pais. E pre- ciso pensar também, é a solucdo ideal, que nds temos esse direito. Se nos atacarem, defender-nos-emos. Se as bombas inimigas destruirem o que construimos, pouco importa, re- Cconstrui-lo-emos apds a vitéria. Presentemente, é preciso somente pensar em construir. Isto nos conduz & andlise do que alcangamos até hoje nos planos politico e econdmico. Hoje temos, sem diivida alguma, um governo revoluciondrio. Penso que ninguém poe isto em causa; 6 um governo popular, cujo fim é elevar o 181 zt were nivei de vida da populagao e criar as condicgdes que tornem possivel a felicidade do nosso povo. Uma outra coisa que fizemos foi destruir as forcas armadas tradicionais € essencial para 0 povo ter um governo popular. Pre- sentemente, temos um governo do povo. Mas um governo tem infelizmente necessidade de se apoiar sobre as forgas armadas. E necessario ter um exército, mas devemos evitar fazer dele uma instituigao parasitaria. O nosso tem esca- pado a isso. Se nao tivessemos destruido o exército tra- dicional, estariamos hoje na prisdo, senédo mortos. E por isso que o Exército rebelde é tao importante atualmente O nosso governo revoluciondrio apoia-se sobre o Exército rebelde. Eles sao uma e a mesma coisa Temos também uma boa situagao geografica, e uma natureza luxuriante que nos permite um desenvolvimento econémico extraordindrio. Temos recursos minerais insus- peitados. Somo o segundo produtor de niquel do mundo — ou, pelo menos — o segundo do mundo ocidental. O niquel utiliza-se para as cabegas dos misseis e dos foguetes. Uti- liza-se também para a blindagem de todos os carros e, até haé pouco tempo, para soldaduras delicadas na industria aerondutica. E um mineral estratégico que serd ainda mais empregado no futuro. E sabido que temos ferro, de dificil tratamento, mas temos. Nao temos carvéo, mas arranjare- mos maneira de o obter. Por outro lado, temos a cana do agucar, fonte extraordindria de abundantes riquezas. Eis 0 nosso ativo; mas temos também um passivo. Para comegar, 0 nosso desenvolvimento é desigual. Somos um monoprodutor, como todos os paises subdesen- volvidos. Produzimos principalmente agticar; todo 0 nosso desenvolvimento gravitou em volta deste produto. S6 desen- volv2inos as nossas refinarias, e um grupo de importadores comprava produtos manufaturados com o dinheiro tirado das 182 refinarias. A isto, é preciso acrescentar que os nossos anti- gos governos nunca fizeram muitas tentativas para vender © agucar de maneira apropriada; em vez disso, renderam-se a um sistema econdmico colonialista dominado pelos Esta- dos Unidos. Nunca tentaram criar novos mercados. Apesar de numerosos paises consumirem menos agtcar do que po- periam, apesar de uma grande parte do mundo ter visto aumentar o seu poder de compra e estar disposto a com- Prar acucar, 0 nosso pais nao procurou novos mercados. Fe- chavam os olhos a realidade Tinhamos um sistema de quotas. Este sistema permitia aos proprietarios de terras ter mais terra do qué a que necessitavam. Em conseqiéncia, 0 nosso desenvolvimento agricola estagnava, Um pais com a riqueza de Cuba tinha uma tecnologia agricola primitiva. A terra estava abando- nada, ceifava-se uma vez por ano. Os campos entravam em rotagado em média de sete em sete anos. E por isso que Cuba tinha colheitas muito pobres. Ha um outro problema. Todos o conhecemos — e falo com moderagao. A 90 milhas do nosso territério encontra-se uma base aérea, uma base cheia de criminosos de guerra, uma base potencial de agressdo. Eles tém tudo, desde a agressao di- plomatica aqui, até aos assassinos assalariados noutros pai- ses. Hoje, a agressdo contra Cuba atinge niveis elevados. Estamos no coragdo estratégico das Caraibas. Temos no nosso territério uma base inimiga que é uma fonte constan- te de friccdes conosco. Eles querem provocar uma guerra. Acima de tudo, temos a perigosa honra de sermos um “mau exemplo” para a América Latina. Eisenhower, como sabemos desembarca na América Latina e acaba por chorar sob o efei- to dos gases lacrimogéneos. Por outras palavras, a situagado do pobre presidente é muito critica. 183 © nosso préprio presidente foi & América Latina. Os funciondrios governamentais trataram-no com frieza, mas re- cebeu o apoio caloroso do povo. O nosso exemplo é uma honra e também uma ameaca. E por isso que os colonia- listas procuram nos isolar; mas é impossivel nos isolar do povo. Eles procuram nos isolar gradualmente. Tentam pri- meiro isolar o ditador da Republica Dominicana; depois pre- tenderao que ha na América Latina um outro ditador que deveria ser isolado. Como disse Fidel, procurarao cercar- nos, depois cometerao uma agressao. Essa 6 a ameaca exterior a que estamos expostos. Entre- tanto, devemos continuar a avangar. Os perigos politicos nado contam. Temos que medir as nossas possibilidades eco- némicas e em seguida progredir gradualmente até que te- nhamos conseguido a nossa industrializagao. Devemos fixar certas metas, Quais so os nossos objetivos principals? As nossas metas mais importantes? Do ponto de vista politi- co, queremos primeiro ser senhores do nosso préprio des- tino, queremos ser uma nagao independente. Queremos encontrar 0 nosso sistema de desenvolvimento sem inge- réncia estrangeira. Queremos comerciar livremente com 0 mundo. Queremos também melhorar 0 nivel de vida do povo. Nao devemos nos preocupar por causa do problema po- litico. Temos 0 apoio do povo, e ninguém pode vergar-nos por causa de um problema politico. O nosso desenvolvi- mento, no entanto, ndo deve custar ao povo mais do que 0 necessario. Sabemos que ha quem sinta a falta de nume- rosos bens de consumo. O colonialismo levou-nos precisa- mente a utilizar certos artigos. Levaram-nos a consumir chi- cletes; agora como elas nao existem, ha pessoas que sé interrogam sobre se este governo vai realmente elevar 0 nivel de vida do povo. 184 Deve ficar claro que nés podemos cometer erros; mas é preciso também compreender que ha muitos artigos dos quais nao temos necessidade —: eles nao sao essenciais. Temos hoje 300000 desempregados. E isso significa fome, miséria e doenga. Nao podemos — e dizemo-lo com toda a franqueza — importar chicletes ou péssegos, e outros arti- gos, e criar ao mesmo tempo empregos para os desempre- gados e para os que estao subempregados. Isso é tarefa muito pesada Hoje, a nossa forga de trabalho eleva-se a 2300000 pessoas. A nossa forca de trabalho é constituida por um terco da nossa populagao, 13% da forga de trabalho esté no desemprego, ou seja, 300 000 pessoas, e os subempregados constituem também 13%. Os trabalhadores do agicar, que so quase 300000 e so trabalham trés meses por ano, for- necem um exemplo tragico de subemprego. Em matéria econédmica, 0 dever essencial do governo revoluciondério é prestar primeiro atengéo aos desempre- gados, e em seguida aos subempregados. £& por isso que muitos de nds se bateram duramente contra os aumentos de salérios. Um aumento de saldrios significa novos desem- pregados. Os capitais desta nagao nao so ilimitados; nao podemos crid-los com uma maquina. Quanto mais dinheiro fabricarmos, menos valor ele terd. E necessdrio que nos desenvolvamos com os capitais que temos. Devemos pla- nificar com cuidado, de modo que as indUstrias que criamos oferecam o maximo possivel de empregos. E nosso dever velar acima de tudo para que cada um ganhe o seu pao quotidiano. A nossa primeira meta é conseguir que ninguém tenha fome, velar pois para que todas as pessoas comam todos os dias. Apés o que sera necessario assegurar a cada um condigées de vida decentes. Isto sera seguido dos cuj- dados médicos e do ensino gratuito. 185 j [ | | i | Atualmente, o nosso problema principal é o desemprego. € nisso que devemos pensar. Economizar as divisas nao é um passatempo, é uma necessidade imperiosa. Cada cénti- mo economizado servird para criar emprego. Mas voltemos ao nosso tema, que é de nos interrogarmos como alcangar 0 nosso desenvolvimento econdmico. Para nos desenvolvermos, podemos tomar duas vias. Uma é 0 sistema da livre empresa, a que se chama também “laissez-faire”, 0 que quer dizer que se permite que todas as forg¢as econémicas hajam livremente. Estas forgas econd- micas sé0 supostamente iguais e em concorréncia livre umas com as outras para desenvolver o pais. Tivemos este sistema em Cuba no passado e nao nos conduziu a lugar nenhum. Tenho insistido, em muitas ocasides, nos exemplos que mos- tram como o nosso povo foi reduzido & escravatura pelos meios econémicos, sem mesmo se aperceber disso. Havia nessa época uma ditadura, mas isso podia ter acontecido sem a ditadura. Existe por exemplo uma com- panhia — agora controlada pelo Estado — chamada Cubani- tro. Esta companhia vale 20 milhdes de pesos e deveremos aumenté-la. & uma companhia valiosa. Antes era proprie- dade de um grupo de acionistas que tinham investido nela 400 000 pesos. Este grupo tinha obtido um empréstimo ban- cario de 400 000 pesos e, de um dia para o outro, um homem que tinha tido uma idéia e um pouco de iniciativa tornou-se milionario. Ha outros casos onde nao foi feito nenhum investimento na fabrica, na produgdo, Se um homem dispondo de 20 mi- Ihdes de pesos criava empregos e desenvolvia a industria nacional, isto ndo parece muito mau. Ha casos em que 0S 20 milhdes de pesos nao foram investidos na industria; em vez disso, metade foi dispensada para a compra de maqui- nas e a diferenga foi embolsada. Eles nao tinham nenhum 186 desejo de criar um plano industrial. Podia ir tudo ao sabor da corrente, nao queriam saber disso. Um exemplo classico disso é a “Técnica Cubana", uma fabrica de papel fundada unicamente para roubar dinheiro tomado de empréstimo. Eis portanto dois casos em que oO Estado emprestou dinheiro a livre empresa. E certo que esse nao é o retrato de todas as empresas industriais mas, a0 adquirirem importancia, a maior parte das empresas faziam acordos com os militares ou os politicos que na altura con- trolavam o poder. Asseguravam-se assim de maiores van- tagens. Um outro bom exemplo do sistema da livre empresa é a carta da Radio-Cremata que Fidel uma vez leu, e onde esta falava claramente dos servicos que prestava a “Compa- nhia Cubana de Eletricidade”,) enquanto era representante do povo cubano. £ um outro exemplo do sistema da livre empresa. Outro aspecto deste desejo de roubar que animava os proprietdrios, é o triste caso de tantas fdbricas fechada: Porqué? Por duas razées. Primeiro, estas pequenas fabricg na posse de pequenos capitalistas cubanos, estavam subrl tidas & concorréncia de grandes empresas monopolistas qu quando tinham um concorrente, baixavam os pregos, 0 qu eliminava este concorrente. A escala mundial — e é assim que funcionam estas grandes sociedades — custa-lhes muito Pouco essa baixa de precos. Mas uma pequena empresa vai & faléncia em seis meses. Esta anarquia que se encontra no sistema de livre em- Presa tem uma outra razao. Quando um produtor langa um neg6cios e triunfa, outros trés produtores se langam na mes- ma atividade, mesmo que o potencial do mercado nao per- (3) Cuban Electrle Company, de propriedade norte-smericana. 187 mita mais que um sé produtor. Sao por conseqiiéncla ell- minados. Uma outra conseqiiéncia do sistema da livre empresa, € o fato de o operdrio ter que se vender a si prdéprio como uma mercadoria que trabalha, por causa do desemprego e da luta entre as forgas econémicas. Para encontrar um emprego, os operdrios tém que entrar em concorréncia uns com os outros. Como nao querem passar fome, vendem-se E inutil dizer que o capitalista compra o operario mais ba- rato, Ha, por vezes trabalhadores que, porque tém fome, se vendem ainda mais barato, e dessa forma estao a trair os interesses da classe operdria. Isto 6, aquele que obtém © emprego forca os outros a imita-lo e a aceitarem as mes- mas condigées. E outro resultado do sistema. Por vezes se produz o contraério. A empresa estrangeira concede salérios mais elevados que a empresa capitalista nacional ou o Estado, e transforma os seus operérios em privilegiados. O operdrio experimenta um certo sentimento de lealdade em relagdo a esta “boa” companhia, enquanto a empresa exporta todos os anos enormes lucros. A conta das companhias petroliferas, por exemplo, safam anualmen- te de Cuba 30 milhdes de délares. Eu lamentava agora mes- mo o fato de um cubano ter embolsado 20 milhdes de pe- sos, mas o lucro anual das companhias petroliferas era de 34 milhdes. Isto aplica-se a todas as grandes empresas internacionais — a Companhia dos Telefones, a Companhia Elétrica. Elas aperfeicoaram um sistema: entregaram altos saldrios e apanham grandes lucros. Sistema gracas ao qual dividem a classe operéria. E dizem também aos seus ope- rarios que eles sdo pessoas privilegiadas porque trabalham para companhias estrangeiras. Eles tém o seu préprio clube; os Negros nao sao autorizados a trabalhar nela. S4o utili- zados toda uma série de instrumentos de diviséo. Estes sao 188 exemplos visiveis em Cuba, porque este sistema funclonou aqui durante muito tempo, Agora dizem-nos que é 0 unico melo que permite o desenvolvimento democratico de um pais, Atualmente, 6 0 que nos procuram vender. Mas existe um outro sistema. Segundo o nosso sistema, nds somos revolucionarios e 0 nosso governo revolucionario representa 0 povo. Para quem devemos nos construir indus- trias? A quem devemos nés favorecer? Devemos favorecer © povo. Somos representantes do povo, e é por isso que a industrializagdo do pais deve ser dirigida pelo governo. Des- ta maneira, ndo haverd anarquia. Se temos necessidade de uma fabrica de parafusos, haverd uma; se temos necessida- de, por outro lado, de uma fabrica de facas, construlremos uma. Nao haverd caos, e o capital da nagdo seraé econo- mizado. Se sentirmos necessidade de uma industria de base, mesmo que tenha que funclonar com prejuizo, ela sera cons- trufda, porque criaré os alicerces da nossa Industrializagao. Por outro lado, néo teremos nunca que rebentar uma greve Ou uma manifestagdo operdria com astticla e manobras, N&o dividiremos a classe operaria. Nao teremos que pagar mais que um saldrio Justo ao operdrio ou ao especialista com o fim de nos assegurar uma vantagem ou de destrulr alguém, porque isso néo so métodos revolucionérios. Procuraremos, contudo, dar ao trabalhador o salario mais alto possivel em todas as industrias, tendo sempre presente que o nosso obje- tivo essencial 6 garantir emprego a todos — primeiro, empre- gos para os desempregados, e em seguida, empregos para Os subempregados. Ha grandes diferencas entre o desenvolvimento através da livre empresa e o desenvolvimento revolucionério. Num, a riqueza concentra-se nas maos de um punhado de pessoas, amigos do geverno, intriguistas dos mais habeis; no outro, 189 | a riqueza da nagao pertence a todos. Cada empresa funciona ao servico do conjunto da nagaéo. Gragas ao desenvolvimen- to revoluciondrio, a nossa riqueza nao sera controlada pelos monopdlios estrangeiros. O desenvolvimento revolucionério nos permitira inclusive recuperar progressivamente a nossa riqueza nacional roubada pelos monopdlios estrangeiros. Eis as diferengas fundamentais entre os dois sistemas. O nosso povo escolheu o caminho do desenvolvimento revo- lucionério. As nossas empresas, como disse Fidel, se cha- marao “Companhia Popular”. ‘Se analisarem o que fizemos até agora, verao que te- mos seguido este tipo de desenvolvimento, Come¢gamos co- mo estavamos destinados a comegar, com as leis mais mo- destas que pudessem efetivamente beneficiar 0 povo. AS tarifas de eletricidade diminuiram, os aluguéis baixaram, a administragao publica foi saneada. Depois, veio a lei que marcou a viragem do nosso caminho, porque até entao, uando baixavamos as tarifas da eletricidade e do telefone os aluguéis, quando saneavamos a administragao, faziamos que os prdprios defensores do sistema da livre empresa sropunham. Certas pessoas que possuiam iméveis de aluguel nao estavam nada contentes. A companhia elétrica e a com- panhia dos telefones nao gostaram das nossas medidas. Mas 0s grandes monopélios apoiaram as nossas iniciativas. Era 0 que eles queriam, um governo de boa reputacdo que me- lhorasse um pouco 0 nivel de vida do povo. Para eles esse era 0 governo perfeito. O ideal era ter um governo que incarnasse a democracla ocidental, como o de Figueres;') Pouco importa que se trate, entre outras colsas, de um grande proprletério de terras. Depols, velo a reforma agré- ria e as coisas se complicaram. Hé, primelro que tudo, @ um dos dirigentes da (4) José Figueres wo e igo dos Estados Unidos. ‘esquerde democratica’ Rica (1953-1958), Era um grande o "da 190 “United Fruit Company” que, como todos sabem, esta dire- tamente relacionada com o Departamento de Estado dos Estados Unidos. Neste momento tornou-se evidente que o governo revo- luciondrio ia fazer reformas e nao apenas falar delas dema- gogicamente. Pouco a pouco a nossa riqueza nacional aumen- tava, e com ela a nossa capacidade de agir. Distribuimos a terra aos camponeses; as nossas cooperativas acucareiras fundaram refinarias, no ambito da reforma agra Estava- mos criando as condigdes necessarias para a incorporagao do povo no processo revoluciondrio, de maneira a que pu- dessemos todos acertar o passo. Aumentamos a nossa forga gragas a pequenas coisas, tais como a confiscagao dos bens dos criminosos de guerra e dos vigaristas. Entao comecou a agressaéo. Fomos atacados por peque- nos avides. Havana foi bombardeada. Respondemos a agres- sao com novas leis revolucionarias: a lei sobre o petréleo, a lei sobre as minas. Continuamos avangando nesta via. Os Estados Unidos ameagaram cortar-nos as quotas do agucar e nds assinamos um acordo com a Unido Soviética. Corta- ram-nos os créditos nos seus bancos e nés assinamos acor- dos mais vantajosos com os paises comunistas e 0 Japao. Diversificamos 0 nosso comércio externo e esperamos o golpe, porque quem sabe como essas pessoas operam deve saber que atacam mais cedo ou mais tarde. Os monopélios nao fazem nunca um jogo leal. Quando percebem que desa- Pareceram as suas possibilidades de obter lucros num pajs, atacam-no. Por vezes, 0 seu ataque é direto, como na época da “diplomacia do cacete"; por vezes, o ataque 6 econdémi- co. Eo que se passa agora com as quotas do agticar. Tinha- mos previsto o problema e estamos perante um dilema: ou bem que se faz o que se impée fazer e se enfrenta a agres- 40, ou bem que nos tornamos os “Figueres” mals represen- 191

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