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‘SOK » Capitulo 2* Superacdo das visdes deformadas da ciéncia da tecnologia: Um requisito essencial para a renovacio da educacao cientifica ‘Temos dedicado o primeiro capitulo deste livro a expor as razbes que apoiam aideia de uma alfabetizacao cientifica para todos oscidadaos e cidadiis f temos analisado as reticéncias e barreiras sociais que se tém oposto (e conti- nua a opor-se) a uma educagéo cientifica generalizada, ccm argumentos que expressain implicitamente a oposigdo a ampliacio do perfodo de escolaridade obrigatéria para todos os cidadaos, a suposta incapacidade da maioria da po- pulacio para uma formagao cientifica, ete. ‘Aceducagao cientifica aparece assim como uma necessidade do desenvolvi- mento social e pessoal. Mas as expectativas postas na contrbuigdo das ciéncias nas humanidades modemas (Langevin, 1926) nao se tem cumprido, e assistimos * Este capita ets baseado no contetio dos seguintes artigos: GIL-PEREZ, D., FERNANDEZ, L CARRASCOSA, J, CACHAPUZ, A. @ PRAIA, J. 2001). Por uma imagem Bo deformada do trabalho centifio. C MAIZTECUI, A., ACEVEDO, J. A., CAAMANO, A, CACHAPUZ, A, CANAL, Py CAR VALHO, A. M. P, DEL CARMEN, L, DUMAS CARRE, A., GARRITZ, A., GIL-PEREZ, D., GONZALEZ, 3, GRASMARTI, A, GUISASOLA, },, LOPEZ-CEREZO J. A, MACEDO, B., MARTINIEZ-TORREGROSA, |, MORENO, A. PRAIA, J, RUEDA, C, TRICARICO, H, VALDES, Pe VILCHES, A, (2002). Papel dela teenologia en a educacin cientifca: una dimensi6n olvidade. de Educa, 28, 1294 nia & Educagdo, 7 (2), 125-153. vista Ihrem ‘aca a um fracasso generalizado e, o que é pior, a uma crescente recusa dos estudantes, Para a aprendizagem das ciéncias e incluso para a propria ciéncia. Esta preocupante distancia entre as expectativas postas na contribuigio da educacao cientifica na formagio de cidadios conscientes das repercussdes sociais da ciéncia —e susceptiveis de se incorporarem numa percentagem sig- nificativa, as stas tarefas — ea realidade de uma ampla recusa da ciéncia e da sua aprendizagem, tem terminado por dirigir a atencio para como se esté le- vando a cabo essa educagio cientifica, Eta analise do ensino das cignciao, em mostrado entre outras coisas, gra- ves discordancias da natureza da ciéncia que justficam, em grande medida, tanto ofracasso de um bom niimero de estudantes, como a sua recusa &ciéncia, Compreendeu-se, pois, como afirmam Guillert e Metoche (1993), que o melho- ramento da educacdo cientifica exige como requisito iniludivel, modificar a imagem da natureza da ciéncia que nds os professores temos transmitimos. Com efeito, numerosos estudos mostraram que o ensino transmite visdes da ciéncia que se afastam notoriamente da forma como se constiéem e evolucionam os conhecimentos cientificos (McComas, 1998; Feméndez, 2000; GiL-Pérez et al, 2001). Vises empobrecidas e distorcidas que criam o desinte- resse, quando nao a rejicdo, de muitos estudantes e se convertem nut obsti- culo para a aprendizagem. Isto esté relacionado como facto de que o ensino cientifico — ineluindo o universitério — reduziu-se basicamente & apresentaglo de conhecimentos jé claborados, sem dar ocasifo aos estudantes de se aproximarem das actividades caracteristicas do trabalho cientifico (Gil-Pérez et al., 1999), Deste modo, as con- cepades dos estudantes — incluindo as dos futuros docentes — nao se afastam daquilo a que se pode chamar uma imagem "folk", “naif” ou “popular” da cigncia, sociatmente aceite, associada a um suposto Método Cientifico, com smaiisculas, perfeitamente definido (Pernande ct al, 2002) Poder-se-ia argumentar que esta dissonéncia carece no fundo de impor- tncia jé que ndo impediui os docentes de cesempenharem a tarefa de transmis sores dos corhecimentos cientificos. No entanto, as imitagbes de uma educa so cientifica centrada numa mera transmissio de conhecimentos — linitacdes Postas em relevo por uma abundante literatura, recolhida em boa medida nos Handbooks jf publicados (Gabel, 1994; Fraser e Tobin, 1998; Perales e Catal, 2000), deram origem a investigagdes que evidenciam concepsées epistemolégi «as desadequadas e mesmo incorrectas como um dos principais obsticulos aos ‘movimentos de renovagao da Educagio Cientifica Anse roa bo ase oS AAS » Compreendew-se, asim, que se quisermas trocar 6 que os professores @ alunos fazem nas aulas cientificas, é preciso previamente modificar a epistemo- logia dos professores (Bell ¢ Pearson, 1992). E ainda que, possuir concepcdes vlidas sobre a ciéncia ndo garante que o comportamento docente seja coerente com ditas concepgSes, este constitu um requsilo sine qua nom (Hodson, 1993) Cestudo de ditas concepg6es tem-se convertido, por essa razo, numa potente linha de investigacio e tem proposto a necessidade de estabelecer no que se pode compreender como uma imagem basicamente correcta sobre a natureza da ciéncia eda actividade cientifca, cocrente coma epistemologia actual. Isto é ‘o que pretendemos abordar neste capitulo. Possiveis visGes deformadas da ciéncia e da tecnologia Somos conscientes da dificuldade que implica falar de uma “imagem correcta” da actividade cientifica, que parece sugerir a existéncia de um supos- tométodo universal, de um modelo nico de desenvolvimento cientfico. E pre- ciso, evtar qualquer interpretacio deste tipo, mas nao se consegue renuncian- do a falar das caracteristcas da actividade cientiica, mas sim com um esforgo consciente para evitar simplismos e deformagdes claramente contrarias a0 que se pode compreender, no sentido amplo, como "aproximagio cientifca do tra- tamento de problemas”. ‘Tratar-se-ia,om certo modo, de aprender por via negativa uma actividade compiexa que parece difcil de caracterizar postivamente, Temos propostoesta actividade a numerosas equipas de docentes,solicitando-lhes que expliquem, @ titulo de hipéteses, quais podem ser as concepgdes erréneas sobre a actividade cientifica a que o ensino das ciéncias deve prestar atencio, evitando a sua trans- missio explicta e implicit, Poderia penssi-ce que ests actividade deve ser escascamente produtiva que se esté pedindo aos professores, que temes por hébito cair nestas deforma- ‘gbes, que investiguem quais podem ser estas. No entanto, ao criar-se uma situa cio de investigacio (preferivelmente colectiva), nés, professores, podemos dis- tanciar-nos criticamente das nossas concepgies e praticas habituais, fruto de uma impregnagio ambiental, que ndo haviamos tido ocasiao de analisar e valorizar. resultado deste trabalho 6 que as deformagées conjecturadas so sem- pre as mesmas; ou melhor, no s6 se assinalam sistematicamente as mesmas deformagées, sendo que se observa uma notével coincidéncia na frequéncia com que cada uma 6 mencionada. rs Cleat LR © FSC CAML «ES Cabe assinalar, por outra parte, que se se realiza uma andlise bibliografia, procurando referéncias a possiveis erros e simplismos na forma em que o ensi- zo das ciéncias apresenta a natureza da ciéncia, os resultados de dita andlise so surpreendentemente coincidentes com as conjunturas das equipas de do- contes no que se referem as deformagées mencionadas, e em geral,incluindo a frequéncia com que o sio (Fernandez, 2000). Esta coincidéncia basica mostra a efectividade da reflexéo das equipas de docentes. Convém ponderar e discutir as deformagées conjecturadas (como vere- ‘mos, estreitamtente relacionadas entre si), que expressatn, no seu conjunto, uma imagem ingénua profundamente afastada do que supde a construgio dos co- rmhecimentos cientificos, mas que se foi consolidando até se converter num este- re6tipo socialmente aceite que, insistimos, a prépria educagio cientifica reforca por acgio ou omissao. 1. Uma visio descontextvalizads Decidimos comecar por uma deformacdo criticada por todas as equipas de docentes implicadas neste esforgo de clarificagao e por uma abundante lite- rratura: a transmissao de uma visio descontextualizada, socialmente neutra que esquece dimensées essenciais da actividade cientifica e tecnol6gica, como 0 seu impacto no meio natural e social, ou os interesses e influencias da sociedade no seu desenvolvimento (Hodson, 1994). Ignora-se, pois, as complexas relagées CTS, Cigncia-Tecnologia-Sociedade, ou melhor CTSA, agregando a A de Am- biente para chamar a atengao sobre os graves problemas de degradacio do meio que afectam a totalidade do planeta, Este tratamento descontextualizado com- porta, muito em particular, uma falta de clarificagao das relagbes entre a ciéncia ea tecnologia. Com efeito, habitualmente a tecnologia € considerada wa mera aplicagio dos conhecimentos cientfices. De facto, a tecnologia tem sido vista tradicionalmente ‘como uma actividade de menor status que a ciéncia “pura” (Acevedo, 1996; De Vries, 1996; Cajas, 1999 e 2001), por mais que isso tenha sido refutado por epistemélogos como Bunge (1976 e 1997). Até muito recentemente, 0 seu estu- do nao tem formado parte da educagdo geral dos cidadios (Gilbert, 1992 ¢ 1995), sendo que tem ficado relegado ao nivel do secundario, e & chamada formagao profissional, que estava orientada para estudantes com o pior rendimento esco- lar, frequentemnente vindos dos sectores sociais mais desfavorecidos (Rodriguez, 1998). Isto responde A tradicional primazia social do trabalho “intelectual” frente Anis Roa NO 5 RES a Ss actividades praticas “manuais’, proprias das técnicas (Medway, 1989; Lopez Cubino, 2001). E relativamente fécil, no ertanto, questionar esta visio simplista das rela- «bes ciéncia-tecnologia: basta reflectir brevemente sobre o desenvolvimento hristorico de ambas (Gardner, 1994) para compreender que a actividade técnica precedeu em milénios a ciéncia e que, por tanto, de modo algum pode conside- zrar-se como mera aplicagao de conhecimentos cientificos. A este respeito, cabe sublinhar que os dispositivos e instalacées, e em geral os inventos teenol6gicos, no podem ser considerados como meras aplicagdes de determinadas ideias cientificas. Em primeiro higar, porque eles tém uma pré-histéria que muitas vvezes 6 independente de ditas ideias como, muito em particular, necessidades humanas que tém vindo a evoluir, outras invengdes que Ihe precederam ou conhecimentos ¢ experiéncias préticas acumuladas de muitas diversas indoles. ‘Assim, 0 desvio de uma agulha magnética por uma corrente eléctrica (expe- rigncia de Oersted, efectuada em 1819), por si s6 ndo sugeria a sua utilizacio para a comunicagdo & distancia entre as pessoas. Advertiu-se essa possibilida- de, 86 porque comunicagao 4 distancia era uma necessidade crescente, ej se haviam deservolvido antes outras formas de “telegrafia” sonora e visual, nas {quais se empregavam determinados cédigos; também se tinham construfdo baterias de poténcia considerdvel, longos condutores e outros dispositivos que se tomavam imprescindveis para o invento da telegrafia, Isto permite comecar a romper com a ideia comum da tecnologia como subproduto da viéuia, como ‘um simples processo de aplicagio do conhecimento cientifico para a elaboracio de artefactos (o que reforga 0 suposto cardcter neutro, alheio a interesses e con- fitos sociais, do binémio ciéncia-tecnologia). Mas, 0 mais importante € clarificar 0 que a educacio cientifica dos cida- dios e cidadas perde com esta desvalorizagao da tecnologia. Isto obriga a per- guntar-nos, como faz: Cajas (1999), se hé algo caracterfstico da tecnologia que possa ser titi para a formagio cientifica dos cidados e que nds, os professores de ciéncias, nio estamos a tomar em consideracéo. Ninguém pretendehoje, evidentemente, tracar uma separagao entrea cién~ cia e a tecnologia: desde a revolucio Industrial os técnicos incorporaram de ‘uma forma crescente as estratégias da investigacio cientifica para produzir e ‘melhorar os seus produtos. A interdependéncia da ciéncia e da tecnologia con- tinua crescendo devido a sua incorpora¢ao nas actividades industriais e produ- tivas, e isco torna hoje diffi, eao mesmo tempo, desinteressante classificar wm. trabalho como puramente cientifico ou puramente tecnol6gico. @ (ACU LPL SUA ECA aT «S| Interessa destacar, pelo contrério, alguns aspectos das relagGes ciéncia tec- nologia, com 0 objectivo de evitar visdes deformadas que empobrecem a edu- cago cientifica e tecnolégica. O objectivo dos téenicos tem sido e vai sendo, fundamentalmente, produzir e melhorar os artefactos, sistemas e procedimen- tos que satisfacam necessidades e desejos humanos, mais do que contribuir & compreensio teérica, ou seja, 2 construgao de corpos coerentes de conhecimen- tos (Mitcham, 1989; Gardner, 1994). Isto néo significa que nao utilizem ou cons- truam conhecimentos, sendo que os constroem para sifuagtes especficas reais (Cajas 1999) e logo, complexa, em que nao é possivel deixar de um lado toda uma série de aspectos que numa investigacio cientifica podem ser obviados comonio relevantes, mas que é preciso contemplar no desenho e manuseamento de produtos tecnolégicos que devem funcionar na vida real Deste modo, o estudo resulta ao mesmo tempo mais limitado (interessa resolver uma questio especifica, nao construir um corpo de conhecimentos) ¢ mais complexo (nao é possivel trabalhar em condigies “ideais”,fruto de andli- ses capazes de eliminat influéncias “espririas”). Assim “como” converte-se na pergunta central, por cima do “porqué”. Um “como” ao qual, geralmente, no se pode responder unicamente a partir de prineipios cientificos: ao passar dos desenhos a realizagao de protétipos e destes a optimizacio dos processos para a sua producio real, séo inumeraveis — e, com frequéncia inesperados — os problemas que devem resolver-se. O resultado final tem que ser o funciona- mento correcto, em situagdes requeridas, dos produtos desenhados (Moreno, 1988) Esta complexa interaccdo de compreensao e acco em situacdes especifi- cas mas reais, ndo “puras”, 60 que caracteriza o trabalho tecnolégico (Hill, 1998; Cajas, 1999). Como vemos, de modo algum pode conceber-se a tecnologia como mera aplicago dos conhecimentos cientificos. Nao devemos pois, ignorar nem desvalorizar os processos de desenho necessédrios para converter em realidade (08 objectos e sistemas teenoldgicas « para compreender 0 seu funcionamento. A apresentacao destes produtos como simples aplicagao de algum principio cien- tifico $6 ¢ possivel na medida em que ndo se presta a atencio real 4 tecnologia. Perde-se assim wma ocasido privilegiada para conectar com a vida ditria dos estudan- tes, para os familiarizar com 0 que supde a concepcao e realizacao prética de artefactos e o seu manuseamento real, superando os habituais tratamentos pu- ramente livrescos e verbalistas. Estes planeamentos afectam também, em geral, as propostas de incorpo- ragdo da dimenséo CTSA que se tém centrado em promover a absolutamente necesséria contextualizacio da actividade cientifica, discutindo a relevancia dos neces asco ta i NCHS s problemas abordados, estudando as suas aplicagdes e possiveis repercussoes (pondo énfase na tomada de decisées), mas afastando outros aspectos chave do que supée a tecnologia: a andlise meios-fins, o desenho e a realizacdo de prots- tipos (coma resolucao de intimeros problemas praticos) a optimizacao dos pro cessos de producio, a andlise rsco-custo-benefico, a introducao de methoras sugeridas pelo uso, ou seja, tudo 0 que supe a realizacio pratica e 0 manuseamento real dos produtos tecnolégicos de que depende a nossa vida iia. De facto, as referéncias mais frequentes das relagBes CTSA que incluem a maioria dos textos escolares de ciéncias reduzem-se a enumeracao de algumas aplicagdes dos conhecimentos cientificos (Solbes e Vilches, 1997), caindo assim numa exaltacio simplista da ciéncia como factor absoluto de progress. Frente a esta ingénua visio de raiz positivista comega a alargar-se uma tendéncia a descarregar sobre a ciéncia e a tecnologia a responsabilidade da situagdo actual de deterioracao crescente do planeta, 0 que nao deixa de ser uma nova simplificagao maniquefsta em que resulta facil cair e que chega a afectar, inclusive, alguns livros de texto (olbes e Vilches, 1998). Nao podemos ignorar, a este respeito, que sio os cientificos quem estudam os problemas que hoje enfrenta a humanidade, advertem dos riscos e encontram solugbes (Sénchez Ron, 1994). Evidentemente, ndo s6 os cientistas, nem todos os cientistas. E certo que sio também cientistas e técnicos quem tém produzido, por exemplo, os compostos que estio destruindo a camada de oz6nio, mas em conjuunto com eco. nomistas, politicos, emprestrios ¢ trabalhadores. As criticas e as chamadas & respon- sabilidade devem estender-se a fodos, incluindo os “simples” consumidores de produtos nocivos, Esquecer a tecnologia é expressiio de vis0es puramente operativistas que ignoram completamente a contextualidade da actividade cientifica, como se a cigncia fosse um produto elaborado em torres de marfim, 4 margem das contin- géncias da vida ordindria, Irata-se de uma visao que se conecta com a que con- templa aos cientistas como seres especiais, génios solitérios, que falam uma linguagem abstracta, de dificil acesso. A visdo descontextualizada vé-se refor- cada, pois, pelas concepcées individualistas e elitistas da ciéncia. . 2. Uma concepgéo individual eelta Esta 6, junto a visto descontextualizada que acabamos de analisar —e & qual esté estreitamente ligada — outra das deformag&es mais frequentemente assinaladas pelas equipas de docentes e também mais tratadas na literatura. Os conhecimentos cientificos aparecem como obra de génios isolados, ignorando- seo papel do trabalho colectivo, dos intercambios entre equipas, essenciais para favorecer a criatividade necesséria para abordar situacées abertas, nao familia- res (Solomon, 1987; Linn, 1987). Em particular, deixa-se acreditar que os resul- tados obtidos, por um s6 cientista ou equipa podem bastar para verificar ou falsear uma hipétese ou inclusive toda uma teoria, Frequentemente insiste-se, explicitamente, em que o trabalho cientifico € um dominio reservado a minorias especialmente dotadas, transmitindo expec- tativas negativas para a maioria dos alunos, e muito em particular, das alunas, com claras descriminagdes de natureza social e sexual: a ciéncia é apresentada como uma actividade eminentemente “masculina”. Contribui-se, além disso, a este elitismo escondendo o significado dos co- mhecimentos por detrs de apresentacées exclusivamente operativistas. Nao se realiza um esforco para tornar a ciéncia acessivel (comecando com tratamentos qualitativos, significativos), nem por mostrar 0 seu carécter de construgio hu- ‘mana, na que nao faltam confusdes nem err0s, como os dos préprios alunos, Em algumas ocasiées encontramo-nos com uma deformacio de sinal ‘oposto que contempla a actividade cientifica como algo simples, préximo do sentido comum, esquecendo que a construcdo cientifica parte, precisamente, do questionamento sistemético do dbvio (Bachelard, 1938), mas em geral, a concepcao dominante é a que contempla a ciéncia como uma actividade de génios isolados. [A falta de atencio a tecnologia contribui a esta visio individualista e eli- tista: por uma parte, obvia-se a complexidade do trabalho cientifico-tecnol6gi- co que exige, como jé temos assinalado a integragdo de diferentes classes de comhecimentos, dificilmente assumices por uma tinica pessoa; por outra parte, -menospreza-se a contribuicio de técnicos, mestres de oficina, etc., que com frequéncia tém tido um papel essencial no desenvolvimento cientfico-tecnols- gico. O ponto de partida da Revolugao Industrial, por exemplo, foi a maquina de Newcomen, que era fundidor e ferreiro. Como afirma Bybee (2000), "Ao revisar a investigacio cientifica contempordinea, nao se pode escapar & realida- de de que a maioria dos avangos cientificos esto baseados na tecnologia”. Isto {questiona a visio elitista, socialmente assumida, de um trabalho cientifico-inte- Jectual por cima de um trabalho téenico. A imagem individualista e elitisla do cientista traduz-se em iconografias «que representam o homem da bata branca no seu inacessivel laborat6rio, repleto A rasan eo Wo ws 9 ES 6 de estranhos instrumentos. Desta forma constatamos uma terceira e grave de- formaco: a que associa o trabalho cientifico, quase exclusivamente, com esse trabalho no laboratorio, onde o cientista experimenta e observa, procurando 0 feliz “descobrimento”. Transmite-se assim uma visio empiro-inductivista da actividade cientifica, que abordaremos seguidamente. 3. Ua concepséo empiroinductistae atedrca Talvez tenha sido a concepgio empiro-inductivista a deformacao que foi estudada em primeiro lugar, ea mais amplamente assinalada na literatura. Uma concepcéo que defende 0 papel da observacéo e da experimentagdo “neutra” (no contaminadas por ideias aprioritistas), esquecendo o papel essencial das hipéteses como focalizadoras da investigagao e dos corpos ccerentes de conhe- cimentos (teorias) disponiveis, que orientam todo o process ‘Numerosos estudos tém mostrado as discrepancias entra a imagem da cigncia, proporcionada pela epistemologia contemporanea, e certas concepgses docentes, amplamente estendidas, marcadas por um empirismo extremo (Giordan, 1978; Hodson, 1985; Nussbaum, 1989; Cleminson, 1990; King, 1991; Stinner, 1992; Désauteles et al., 1993; Lakin e Wellington, 19%; Hewson, Kerby Cook, 1995; Jiménez Aleixandre, 1995; Thomazeetal., 1996; Izquierdo, Sanmarti ¢ Espinet, 1999..). Deve-se insistir a este respeito, na rejeigao generalizada do que Piaget (1970) denomina “o mito da origem sensorial dos conhecimentos cientificos”, ou seja, na rejeigdo de um empirismo que concebe os conhecimen- tos como resultado da inferéncia indutiva a partir de “dados puros”. Esses da- dos nao tém sentido por si mesmos, sendo que requerem ser interpretados de acordo com um sistema teérico. Assim, por exemplo, quando se utiliza um amperimelzo nao se observa a intensidade da corrente, mas sim o simples des- vio da agulha (Bunge, 1980). Insiste-se, por isso, em que toda investigacio, ea ‘mesma procura de dados, vém marcadas por paradigmas teéricos, ou seja, por visées coerentes, aticuladas que orientam a dita investigagao. E preciso, insistir na importancia dos paradigmas conceptuais, das teo- rias, no desenvolvimento do trabalho cientifico (Bunge, 1976), num processo completo, nao reduzido a um modelo definido de mudanca cientifica (Estany, 1990), que inclui eventuais roturas, mudangas revolucionérias (Kuhn, 1971), do paradigma vigente num determinado dominio e surgimento de novos paradig- mas te6ricos. E preciso também insistir em que os problemas cientificos consti~ tuem inicialmente “situagées problematicas” confusas: 0 prozlema nao é dado, « OUR». + PSSM DERM «Pa CHES 6 necessério formula-lo da maneira precisa, modelizando a situaglo, fazendo determinadas op¢des para simplifica-lo mais ou menos com o fim de poder aborda-lo, clarificando o objectivo, etc. E tudo isto partindo do corpus de conhe- cimentos que se tem no campo especifico em que se desenvolve o programa de investigacdo (Lakatos, 1989). Estas concepg6es empiro-inductivistas da ciéncia afectamn mesmos os cien- tistas — pois como explica Mosterin (1990) seria ingénuo pensar que estes “so sempre explicitamente conscientes dos métodos que usam na sua investiga- gio” — assim coma, logicamente, mesmas ans eshidantes (Gaskell, 1992; Pomeroy, 1993; Roth e Roychondhury, 1994; Solomon, Duveen e Scott 1994; Abrams e Wanderse, 1995; Traver, 1996; Roth e lucas, 1997; Désautels e Larochelle, 1998). Convém assinalar que esta ideia, que atribui a esséncia da actividade cientifica a experimentacao, coincide com a de “descobrimento” cien- tifico, transmitida, por exemplo pelas bandas desenhadas, pelo cinema e, em geral, pelos meios de comunicagao (Lakin e Wellington, 1994). Dito de outra ‘maneira, parece que a visio dos professores — ou a que proporcionam os livros de texto (Selley, 1989; Stinner, 1992) —nao é muito diferente, no que respeita a0 ‘papel atribuido as experiéncias do que temos denominado de imagem “ingénua” da ciéncia, socialmente difundida e aceite. Cabe assinalar que mesmo se esta parece ser a deformacio mais estudada e criticada na literatura, so poucas as equipas de docentes que se referem a esta possivel deformacao. Isto pode interpretar-se como indice do peso que con- tinua a ter esta concepglo empiro-inductivista nos professores de ciéncias. £ preciso ter em conta a este respeito que apesar da importancia dada (verbal- mente) & observacio e experimentagaio, em geral,oensino 6 puramente libresco, de simples transmissio de conhecimentos, sem trabalho experimental real (mais além de algumas “receitas de cozinha”). A experimentacdo conserva, assim, para professores ¢ estudantes 0 atractivo de uma “revolugao pendente”, como temos podido perceber em entrevistas realizadas a professores no activo (Fernandez, 2000) Esta falta de trabalho experimental tem como uma das causas, a escassa familiarizacao dos professores com a dimensio tecnoligica e vem por sua vez reforcar as visdes simplistas sobre as relacdes ciéncia-tecnologia as quais ja fize ‘mos referéncia. Em efeito, 0 trabalho experimental pode ajudar a compreender que mesmo se a tecnologia se desenvolveu durante milénios sem a contribui- sao da ciéncia, inexistente até muito recentemente (Niiniluoto, 1997; Quintanilla e Sanchez Ron, 1997), a construcio do conhecimento cientifico sempre tem sido e continua a ser devedora da tecnologia: basta recordar que para submeter & Anca Row 9 Os EK o prova as hipéteses que focalizam uma investigagéo estamos obrigados a cons- truir desenhos experimentais; e falar de desenhos 6 jé utilizar uma linguagem tecnol6gica. E certo que, como jé assinalava Bunge (1976), os desenhos experimentais sio devedores do corpo de conhecimentos (A construcio, por exemplo, de um amperimetro sé tem sentido luz de uma boa compreensio da corrente eléctrica), ‘mas a sua realizagdo concreta exige resolver problemas préticos num proceso complexo com todas as caracteristicas do trabalho tecnol6gico. E precisamente este 0 aentido que deve dar se ao que manifesta Hacking (1983) quando — pa- rafraseando a conhecida frase “A Observacio esté carregada de teoria” (Hanson 1958) —afirma que “a observagao e a experimentacko cientifica estao carrega- das de uma competéncia pratica prévia’” Quando por exemplo, Galileo concebe a ideia de “debilitar”, a caida dos corpos mediante o uso de um plano inclinado de fricgéo desprez4vel, com 0 objectivo de stbmeter a prova a hipétese de que a queda dos graves constitui um movimento de aceleracdo constante, a proposta resulta conceptualmente simples: se a queda livre tem lugar com aceleracio constante, o movimento de ‘um corpo que desliza por um plano inclinado com ricco desprezavel também teré uma aceleracio constante, mas tanto mais pequena quanto menor seja 0 Angulo do plaro, o que facilita a medida dos tempos e a prova da relagao espe- rada entre as distancias percorridas e os tempos empregados. No entanto, a realizacao pratica deste desenho comporta resolver toda uma variedade de pro- blemas: preparagio de uma superficie suficientemente plana e polida, por onde possa rolar uta pequena esfera, como forma de reduzir a fricgéo; construco de uma caleira para evitar que a esfera se desvie e caia do plano inclinado; estabelecer a forma de soltar a pequena esfera e de determinar o instante de chegada, ete. Tata-se sem diivida alguma, de um trabalho teenol6gico destina- do a lograr um objectivo conereto, a resolver uma situagdo especifica, o que ‘exige uma mutiplicidade de habilidades e conhecimentos. E 0 mesmo se pode dizer de qualquer desertho experimental, inclusive os mais simples. Nao se trata, pois de assinalar como as vezes se faz, que “alguns” desen- volvimentos tecnolégicos tém sido imprescindiveis para fazer possiveis “cer- tos” avangos cientificos (come, por exemplo, 0 papel das lentes na investigac’o astrondmica):a tecnologia esté sempre no coracao da actividade cientifica; a ex- ptessao deseno experimental é perfeitamente ilustrativa a este respeito. Infelizmente, as escassas préticas escolares de laboratérios escamoteiam aos estudantes (incluindo na Universidade!) toda a riqueza do trabalho experi- a ‘cin E+ SU URN» FA LS mental, dado que apresenta montagens jé elaboradas, para seu simples manuseamento seguindo guias de tipo ” receita de cozinha’, Deste modo, o ensino centrado na simples transmissio de conhecimentos ja elaborados nao s6 impede compreender o papel essencial que a tecnologia, joga no desenvolvimento cientifico, sendo que, contraditoriamente, favorece a manutencdo das concepg6es empiro-inductivas que consagram um trabalho experimental, ao qual nunca se tem acesso real, como elemerto central de um suposto “Método Cientifico”... o que se vincula com outras duas graves defor- mages que abordaremos brevemente. 4, Uma vséorigida,algrtmic, inal Esta é uma concepcio amplamente difundida entre o professorado de cién- cias, como se tem podido constatar utilizando diversos desenhos (Fernandez, 2000). Assim, em entrevistas realizadas com professores, uma majoria refere-se a0 “Método Cientifico” como uma sequéncia de etapas definidas, em que as “observagdes" e as “experiéncias rigorosas” desempenham um papel destaca- do contribuindo a “exactidao e objectividade” dos resultados obtidos. Face a isto é preciso ressaltar o papel desempenhado na investigacio pelo pensamento divergente, que se concretiza em aspectos funcamentais e err0- neamente relegados nos tracados empiro-inductivistas, como sto, a invengio de hipsteses e modelos, ou o proprio desenho de experiéncias, Nao se raciocina fem termos de certezas, mais ou menos baseadas em “evidércias", senéo em termos de hipéteses, que se apoiam, & certo, nos conhecimentos adquiridos mas que sio contempladas como “tentativas de resposta” que devem ser postas & prova 0 mais rigorosamente possivel, o que da lugar a um processo complexo, fem que no existem principios normativos de aplicago universal, para a acei- taco ou a rejeicdo de hipéteses ou, mais em geral, para explinar as troras mu ddangas nos conhecimentos cientificos (Giere, 1988). E preciso reconhecer, pelo contrério, que esse cardcter “tentativo" se traduz em ckividas sistemiticas, em redefinigbes, procura de novas vias, etc., que mostram o papel essencial da in- vestigagio e da criatividade, contra toda a ideia de método rigido, algoritmico E, se bem que a obtencéo de dados experimentais em condigdes definidas e controladas (nas que a dimensio tecnolégica joga um papel essencial) ocupa ‘um lugar central na investigacéo cientifica, é preciso relativisar o dito papel, que s6 faz. sentido, insistimos, com relacio as hip6teses a contrastar e aos dese- rnhos concebidos para tal efeito. Em palavras de Hempel (1976), “Ao conheci- Acs rag wo SNE OCS « ‘mento cientifico nao se chega aplicando um procedimento indutive deinferéncia a partir de dados recolhidos anteriormente, sendo mediante o chamado método das hipoteses a titulo de tentativas de respostas a um problema em estudo ¢ depois submetendo estas & contrastacdo empirica”. Sio as hipéteses, pois, as que orientam a procura de dados. Umas hipéteses que, por sua vez, nos reme- tem a0 paradigma conceptual de partida, pondo de novo em evidencia o erro das propostas empiricas A concepgdo algoritmica, como a empiro-inductivista, em que se apoia, pode manter-se na mesma medida em que 0 conhecimento cientifico se trans- mite de forma acabada para a sua simples recepso, sem que os estudantes, nem 0s professores tentham ocasio de constatar praticamente as limitagdes dese suposto "Método Cientifico”. Pela mesma razo incorre-se com facilidade numa visio aproblematica e ahistérica da actividade cientifica 4 que nos referiremos ‘em seguida. 5, Uma vio aproblematica e ahistrica (ergo acabada e dogmética) Como jé referimos, o facto de transmitir conhecimentos jé elaborados, con- uz muito frequentemente a ignorar quais foram os problemas que se preten- diam resolver, qual tem sido a evolucio de ditos conhecimentos, as dificulda- des encontradas etc,,e mais ainda, a nao ter em conta as limitagées do conheci- ‘mento cientifico actual ou as perspectivas abertas. Ao apresentar uns conhecimentos jé elaborados, sem sequer se referir aos problemas que esto na sua origem, perde-se de vista que, como afirma Bachelard (1938), “todo o conhecimento € a resposta a uma questo”, a um problema, Este esquecimento dificulta captar a racionalidade do processo cien- tifico e faz com que os conhecimentos aparegam como construgées arbitré- ras, Por outra parte, ao ndo completar a evolucao dos conhecimentos. ou seja a0 nao ter em conta a historia das ciéncias, desconhece-se quais foram as dif culdades, os obstéculos epistemolégicos que foram preciso superar, o que re- sulta fundamental para compreender as dificuldades dos alunos (Saltiel e Viennot, 1985). Devemos insistr, uma vez mais, na estreita relacdo existente entre as de- formagées contempladas até aqui. Esta visio aproblematica e ahistérica, por exemplo, tora possivel as concepgées simplistas sobre as relagdes ciéncia-tec- nologia. Pensemos que se toda a investigacéo responde a problemas, com frequéncia esses problemas tém uma vinculagdo directa com necessidades hu- i Pa «POA EARL «A CES manas e, portanto, com a procura de solugdes adequadas para problemas tec- nol6gicos prévios, De facto, o esquecimento da dimensdo tecnolégica na educacao cientifica impregna a visio distorcida da ciéncia socialmente aceite que evidenciamos aqui. Precisamente por isto, escolhemos dar 0 nome de “Possiveis visées defor- ‘madas da ciéncia e da tecnologia’, tratando assim de superar um esquecimento que historicamente tem a sua origem na distinta valorizagéo do trabalho inte- Tectual e manual, e que afecta gravemente a necessétia alfabetizacao cientifica e tecnol6gica do conjunto da cidadania (Maiztegui et al, 2002) [A visdo distorcida e empobrecida da natureza da ciéncia e da construcéo do conhecimento cientifico, em que o ensino das ciéncias incorre por acglo ou ‘omissdo, inclui outras visdes deformadas, que tém em comum esquecer a di ‘mensio da ciéncia como construgdo de corpos coerentes de conhecimentos. 6, Visio exclsivamente analtca Referimo-nos em primeiro lugar, ao que temos denominado visdo “exclu- sivamente analitica”, que esté associada a uma incorrecta apreciagao do papel da andlise no processo cientifico. ‘Assinalemos, para iniciar, que uma caracteristica essencial de uma apro- ximagio cientifica é a vontade explicita de simplificagéo e de controlo rigoroso fem condigoes pré-estabelecidas, 0 que introduz elementos de artificialidade indubitéveis, que nao devem ser ignoracos nem ocultados: os cientistas deci- dem abordar problemas resohiveis e comegam ignorando consciente e volunta- riamente muitas das caracteristicas das situagdes estudadas, 0 que evidente- mente 0s “afasta” da realidade; e continuam afastando-se mediante o que, sem diivida, hé que considerar a esséncia do trabalho cientifico: A invengio de hip6- teses e modelos. O trabalho cientifico exige, pois, tratamentos analiticos, simplificatérios, artificiais. Mas isto ndo supde, como as vezes se critica, incorrer necessariamen- te em visdes parcializadas e simplistas: na medida em que se trata de anélises e simplificagSes conscientes, tem-se presente a necessidade de sfntese e de estu- dos de complexidade crescente. Pensemos, por exemplo, que 0 estabelecimento da unidade da matéria — que constitui um claro apoio a uma visio global, no parcializada — 6 uma das maiores conquistas do desenvolvimento cientifico dos iiltimos séculos: os principios de conservacio ¢ transformacio da matéria e da energia foram estabelecidos, respectivamente, nos séculos XVIII e XIX, ¢ foi Asa aio bas ENS “ 6 nos finais do século XIX quando se produziu a fusio de trés dominios apa- rentemente autGnomos — electricidade, éptica e magnetismo — na teoria electromagnética, que se abriu um enorme campo de aplicagdes que seguem revolucionando a nossa vida de cada dia, E no ha que esquecer que 0s proces- sos de unificagao exigiram, com frequéncia, atitudes criticas nada cmodas que tiveram que vencer fortes resistencias ideol6gicas e inclusive perseguigées e condenagées, como nos casos, bem conhecidos, do heliocentrismo ou do evolu- cionismo. A historia do pensamento cientifico & uma constante confirmagao de que os avancos tém lugar profundizando o conhecimento da realidade em car- pos definicos; 6 esta profundizagao inicial a que permite chegar posteriormen- te a estabelecer lacos entre campos aparentemente desligados (Gil-Pérez et al, 1991). 7. Visio acumulativa, de crescimento lineal Uma deformagio a que também no fazem referencia as equipas de do- centes, e que é a segunda menos mencionada na literatura —trés a visio exclu- sivamente analitica —consiste em apresentar o desenvolvimento cientifico como fruto de um crescimento lineal, puramente acumulativo (Izquierdo, Sanmarti e Espinet, 1999), ignorando as crises e as remodelagées profundas, fruto de pro- cessos complexos que no se deixam ajustar por nenhum modelo definido de desenvolvimento cientifico (Giere, 1988; Estany, 1990). Esta deformacio é com- plementar, em certo modo, do que temos denominado visao rigida algoritmica, ainda que devam ser diferenciadas: enquanto a visio rigida ou algoritmica se refere como se concebe a relizagio de uma investigagio dada, a visao acumuilativa 6 uma interpretacao simplista da evoluco dos conhecimentos cientificos ao longo do tempo, como fruto do conjunto de investigagbes realizadas em deter- minado campo, Fsta é uma visdo simplista & qual o ensino costuma contribuir, 20 apresentar as teorias hoje aceites sem mostrar 0 processo do seu estabeleci- ‘mento, nem ao se referir as frequentes confrontagées entre teorias rivais, nem 0s complexos processos de mudanga que inchuem autenticas “revolugées cien- tificas” (Kuhn, 1971). 8 Relaées entre dlstntas visSes deformadas da actvdade cientfica e tenolégica Estas sto, em sintese, as sete deformagdes que temos visto tratadas na Titeratura e que sdo mencionadas como fruto da reflexio (auto)eritca das equi- ® CAA GLARE FSO ALD PAE ES pas de docentes. Trata-se também das deformagées que temos visto reflectidas na docéncia habitual, num estudo realizado em que foram utilizados cerca de 20 desenhos experimentais (Fernéndez etal, 2002). Mas estas deformagdes no intos e aut6nomos: pelo constituem uma espécie de “sete pecados capitais” contrério, como foi mostrado no caso das pré-concepgbes cos estudantes num determinado dominio formam um esquema conceptual relativamente integra- do (Driver e Oldham, 1986) Podemos recordar que uma visio individualista e elitista da cigncia, por exemplo, apoia implicitamente a ideia empitista de “descobrimento” e contri- bbui, além disso a uma leitura descontextualizada, socialmente neutra da activi- dade cientifica (realizada por “génios solitrios’). Do mesmo modo, para citar outro exemplo, uma visio rigida, algoritmica, exacta da ciéncia reforga uma interpretacio acumulativa, linear, do desenvolvimento cientifico, ignorando as crises e as revolugées cientifcas. ‘Assim, estas concepedes aparecerem associadas entre si, como expresso de uma imagem ingénua da ciéncia que se tem ido desencantando, pasando a ser socialmente aceite. De facto essa imagem tpica da ciéncia parece ter sido assumida por numerosos autores do campo da educaggo, que criticam como caracteristicas da ciéncia 0 que nao so sendo visves deformadas da mesma ‘Assim por exemplo, Kemmis e Me Taggert (Hodson, 1992) atribuem a investi- gag académica deformacées e reduces que os autores dao por assente que correspondem a0 “método centifico” utilizado por “as ciéncias naturais",tais como, seu carécter “neutral, sua preocupagio exclusiva por “acumular conhe- cimentos” (sem atengao “ao melhoramento da prética”), sua limitagdo a “um ‘mero procedimento de resolugio de problemas” (esquecendo o delineamento os mesmos) etc, etc Inclusive, entre alguns investigadores em didéctica da ciéncia, parece acei- tar-se que a ciéncia cléssica seria puramente analitica, “neutra”, etc. Ja néo se trata de que o ensino tenha transmitido essas concepcdes reducionistas, empobrecedoras, senio que loda a ciéncia cissica teria esses defeitos. Mas, como se pode afirmar que a ciéncia cléssica é — como se costuma dizer — puramente analitca, se 0 seu primeiro edificio te6rico significou a integracdo dos univer- ‘0s considerados essencialmente distintos, derrubando a suposta barreira entre 6 mundo celeste e 0 sublunar? Uma integracio que implicava desafiar dogmas, tomar partido pela liberdade de pensamento, e correr riscos de ser condenada. E ndo € s6 a mecinica: toda a ciéncia clissica pode interpretar-se como a superagio de supostas barreiras, a integracdo de dominios separados (pelo sen- tido comum e pelos dogmas). Pensemos na teoria da evolugdo das espécies; na | cst rego oo ss ws aS » sintese orgénica (nos séculos XIX ainda se sustentava a existéncia de um “elan vital” € negava-se a possibilidade de sintetizar compostos organicos); no electromagnetismo, que mostrou os vinculos entre a electricidade, magnetismo © ptica; nos principios de conservagio e transformaclo da massa e da energia, aplicdveis a qualquer processo (Gil-Pérez et al, 1991). Onde esta o carécter pu- ramente analitico? Onde esté o carécter neutto, asséptico, dessa ciéncia? Hé que reconhecer que, pelo menos, nem toda a ciéncia cléssica tem sido assim. Parece mais apropriado, pois, falar de visbes fou, em todo 0 caso, tendéncias) deformadas da ciéncia, do que atribuiressas caractersticas a toda a ciéncia clés- ‘As concepcdes docentes sobre a natureza da ciéncia e a construgio do co- nihecimento cienttico seriam, pois, expressées dessa visdo comum, que nés 0s professores de cigncias aceitariamos implicitamente devido & falta de reflexo critica ea uma educacao cientifca que se limita, com frequéncia, a uma simples transmissao de conhecimentos jé elaborados. Isto nao 56 deixa na sombra as caracteristicas essenciais da actividade cientifca e tecnol6gica, senfo que con- tribui a reforgar algumas deformacées, como o suposto carécter “exacto” (ergo dogmatico) da ciéncia, ou da visio aproblemitica. Deste modo, a imagem da ciéncia que adquirimos os docentes nao se diferenciaria significativamente da que pode expressar qualquer cidaddo, e resulta muito afastada das concepcbes actuais sobre a natureza da ciéncia e da construgio do conhecimento cientifico. © trabalho realizado até aqui tem-nos fermitido evidenciar, a titulo de hipéteses, possiveis visbes deformadas da ciéncia que o ensino poderia estar contribuindo a transmitir por acc2o ou omissio. As numerosas investigagdes recolhidas na literatura confirmam a extensia desta imagem distorcida e em- pobrecida da ciéncia e da tecnologia, assim como a necessidade de superala para fazer possivel uma educagio cientifica susceptivel de interessar aos estu- antes e facilitar a sua imersio numa cultura cientifica. Com tal propésito, de- dlicaremos o seguinte capitulo a apoiar o questionamento destas deformagbes. Analises da presenca das vis6es deformadas da ciéncia e da tecnologia no ensino Tal como temos indicado, dedicaremos este capitulo a analisar em que medida o ensino das ciéncias transmite as visdes deformadas que acabamos de discutir. Sao possiveis, naturalmente, numerosos desenhos para levar a cabo dita anélise, como se detalha em alguns trabalhos citados (Fernandez, 2000; Feméndez et al., 2002). Por exemplo, é possivel analisar 0 que nos textos, livros, artigos, etc, se assinala em torno da natureza do trabalho cientifico, ow o que reflectem os diagramas de um proceso de investigacao que incluem alguns textos ¢ livros praticos. Pode-se recolher, mediante questionérios e entrevistas, o que para os professores significa um processo de investigacao, etc. Ou pode- se proceder a observacoes directas de como se orienta um trabalho na aula ete., etc. No entanto, a nossa intencio nao é, fundamentalmente, por em relevancia a incidéncia de uma imagem deformada e empobrecida da ciéncia no ensino (posta em evidéncia por uma abundante investigagao da qual temos vindo a fazer referéncia), sem utilizar este trabalho de andlises para aprofundar na compreen- so do que representam estas visbes distorcidas da actividade cientifica e afir- ar onecessério distanciamento critico com respeito as ditas deformagées. Pas- samos a descrever alguns dos deserihos utilizados para favorecer este distan- ciamento critico. Recorremos, por exemplo, a proporcionar um desenho, elaborado por um professor em formacéo como representagdo de actividad cientifica (ver Qua- drol), solicitando, em primeiro lugar, que se assinalem as visées deformadas que se detectem por accao ou omissao em dito desenho e, seguidamente, que procedam a modifica-lo até enfrentar as visGes deformadas da ciéncia que ago- ra transmite por acco ou omissio. Que: descoberta ra ss Le chasis Repeat 1. Representacéo distorcda da actvidade cientfica snes retin 90 8 8 Nao resulta dificil constatar que este desenho “tipico” incide claramente em todo 0 conjunto de visses deformadas: * Individualistae elitista (representa um nico investigador, Homem...) * Descontertualizada (nao se disse nada sobre o possivel interesse e rele- vancia da investigacao, suas possiveis repercussdes..e 0 local do traba~ tho parece uma auténtica torre de marfim absolutamente isolada... nem sequer se desenha uma janela') ‘+ Aproblemética (nao se indica que se esteja investigando algum pro- blema). + Empiro-inductoista (a sua actividade parece reduzir-se & observacio e experimentagdo na busca do descobrimento feliz. ndo se representa nem um livro que petmita pensar no corpo de conhecimentos). Pouco mais se pode dizer do que aparece no deseniho, mas sim das ausén-

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