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No Tempo Dos Feiticeiros - Cressida Cowell
No Tempo Dos Feiticeiros - Cressida Cowell
Publicado originalmente na Grã-Bretanha, em 2017, pela Hodder Children’s Books. Os direitos morais
da autora foram assegurados.
TÍTULO ORIGINAL
The Wizards of Once
REVISÃO
Rayssa Galvão
Juliana Werneck
Cristiane Pacanowski – Pipa Agência de Conteúdos Infantojuvenis
ADAPTAÇÃO DE CAPA E LETTERING
ô de casa
ARTE ORIGINAL
Jennifer Stephenson
REVISÃO DE E-BOOK
Maíra Pereira
GERAÇÃO DE E-BOOK
Intrínseca
E-ISBN
978-85-510-0320-6
Edição digital: 2018
1a edição
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente,©T0c4, 99, 3o andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
SUMÁRIO
Folha de rosto
Dedicatória
Créditos
Mídias sociais
Epígrafe
Prólogo
Parte um: Desobediência
1. Uma armadilha para capturar uma bruxa
2. Uma guerreira chamada Desejo
3. A pena da bruxa começa a brilhar…
4. Alguma coisa cai na armadilha para bruxas
5. Quando inimigos se cruzam e mundos colidem…
6. Cuidado com o que você deseja
7. O acampamento dos Feiticeiros
8. A Competição de Feitiços
9. Encanzo, o Encantador
10. Quinze minutos antes, no quarto de Xar
11. Xar recebe mais do que desejou
Parte dois: Corrigindo erros
12. Fortaleza de Ferro dos guerreiros
13. O interrogatório da rainha
14. A rainha Sicórax fica decepcionada com a filha… de novo
15. Invadindo os calabouços da rainha Sicórax
16. Um péssimo momento para a rainha Sicórax aparecer
17. A câmara de remoção de Magia da rainha Sicórax
18. Ah, céus… a história toma um rumo inesperado
19. A Magia não pode ser destruída, apenas ocultada
20. A história fica ainda pior
21. Desejos
22. Corrigindo erros e pagando o preço
23. Quando a aventura termina, os problemas começam
24. O que eles não viram
25. Mãe e filha
26. Pai e filho
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
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“Se quiser que seus filhos sejam inteligentes, leia contos de fadas para eles. Se
quiser que sejam mais inteligentes, leia mais contos de fadas.” — ALBERT
EINSTEIN
Houve um tempo em que havia Magia. Foi há muitos e muitos anos, em Ilhas
Britânicas tão antigas que ainda nem sabiam que eram as Ilhas Britânicas, e a
Magia habitava as florestas negras.
Talvez você ache que sabe como é uma floresta negra.
Vou logo avisando que não sabe. Essas florestas eram mais escuras do que
você consideraria possível, mais escuras que manchas de tinta negra, mais
escuras que a meia-noite, mais escuras que o próprio espaço sideral. E não só
isso. Eram tão disformes e emaranhadas quanto o coração de uma bruxa. Essas
áreas formavam o que hoje conhecemos como florestas selvagens, que se
estendiam em todas as direções até onde a imaginação alcançava, parando
apenas quando encontravam o mar.
Muitos tipos de humanos viviam nas florestas selvagens.
Os feiticeiros, que eram mágicos.
E os guerreiros, que não eram.
Os feiticeiros viviam nas florestas havia tanto tempo quanto qualquer um
era capaz de lembrar, e pretendiam viver lá para sempre, junto com todos os
outros seres mágicos.
Até que os guerreiros chegaram. Eles vieram dos mares, e, apesar de não
possuírem Magia, possuíam uma nova arma, que chamavam de FERRO. E o
ferro era a única coisa em que a Magia não funcionava.
Os guerreiros tinham espadas de ferro, escudos de ferro e armaduras de ferro.
Até mesmo a terrível Magia das bruxas era inútil contra esse metal.
Primeiro os guerreiros lutaram contra as bruxas, que acabaram extintas
após uma longa e terrível batalha. Ninguém chorou pelas bruxas, porque a
Magia delas era ruim, do pior tipo: daquele que arrancava as asas das cotovias,
matava por prazer e podia acabar com o mundo e com todos que nele viviam.
Mas os guerreiros não pararam por aí. Eles achavam que só porque algumas
Magias eram ruins, TODA Magia era ruim.
Por isso, eles quiseram acabar com os feiticeiros também, e com os ogros e
com os lobisomens, e com a confusão briguenta e caótica de elfos bons e elfos
maus, que brilhavam feito pequenas estrelas na escuridão, jogando feitiços
travessos uns nos outros. E quiseram acabar com os gigantes, que se moviam
devagar e com muito cuidado, maiores que mamutes mas serenos como bebês.
Os guerreiros juraram só descansar quando tivessem destruído ATÉ O
ÚLTIMO RESTINHO DE MAGIA em toda a floresta negra, cujas árvores
eles estavam derrubando o mais rápido que podiam, com seus machados de
ferro, para erguer fortalezas, acampamentos e o novo mundo moderno.
Esta é a história de um menino feiticeiro e de uma menina guerreira que
desde o nascimento foram ensinados a detestar um ao outro.
Nossa história começa com a descoberta de UMA PENA
NEGRA ENORME.
Será que os feiticeiros e os guerreiros ficaram tão ocupados lutando uns
contra os outros que não perceberam o retorno de um antigo mal?
Poderia aquela pena ser realmente de uma bruxa?
Era uma noite quente para novembro, uma noite quente demais para bruxas…
ou pelo menos era o que as histórias contavam. As bruxas estavam extintas, é
claro, mas Xar tinha ouvido falar que elas fediam e achava que estava sentindo
esse fedor ali, no silêncio da floresta negra. Um fedor suave, mas
inconfundível: de cabelo queimado misturado com cheiro de ratos mortos e
um toque de veneno de víbora. Quem sentia aquele fedor nunca o esquecia.
Xar era um selvagem garoto humano que pertencia à tribo dos feiticeiros.
Ele estava montado em um gato-da-neve gigante, em uma parte da floresta tão
escura, deformada e emaranhada que era conhecida como Bosque Maligno.
Ele não deveria estar ali, porque o Bosque Maligno era território dos
guerreiros, e se os guerreiros o capturassem... bem, o que diziam era que Xar
seria morto na hora. Decapitado, como mandava o gentil costume dos
guerreiros.
Mas Xar não parecia nem um pouco preocupado.
Ele era um rapaz alegre e desgrenhado, com um topete espetado como se
tivesse entrado sem querer num furacão invisível.
A maioria dessas coisas não tinha sido de propósito, pelo menos não
totalmente. Xar apenas se deixava levar pelo calor do momento.
Apesar de tudo isso, nada chegava perto do que Xar estava fazendo agora.
Um grande corvo negro voava logo acima da cabeça do garoto.
— Isso é uma péssima ideia, Xar — disse o corvo.
A ave falante se chamava Calíbano. Ele seria um belo corvo, mas,
infelizmente, era responsável por manter Xar longe de encrenca, e o estresse
dessa missão impossível fazia suas penas caírem.
— Não é justo expor seus animais, seus elfos e seus jovens companheiros
feiticeiros a tamanho perigo…
Por ser filho do Rei Encantador e ter uma boa dose de carisma, Xar tinha
muitos companheiros. Uma matilha de cinco lobos, três gatos-da-neve, um
urso, oito elfos, um gigante enorme chamado Esmagador e um pequeno grupo
de jovens feiticeiros. Todos o seguiam como se hipnotizados, todos tremendo
e assustados mas fingindo que não.
— Ah, você se preocupa demais, Calíbano — retrucou Xar, fazendo
Gato-Rei parar e descendo de suas costas. — Veja só esse descampado tão
belo… Está vendo? PERFEITAMENTE seguro, como toda a floresta.
Xar olhou em volta, satisfeito e despreocupado, como se estivessem em
um aprazível vale repleto de coelhos e filhotes de cervo saltitantes, não em
uma clareira fria e estranha, com teixos que se inclinavam sobre eles de
maneira ameaçadora e viscos gotejando seiva como se fossem lágrimas.
Os outros feiticeiros empunharam as espadas, e os gatos-da-neve rosnaram,
eriçando os pelos até parecerem bolinhas peludas. Os lobos andavam com
desconfiança, inquietos, tentando formar um círculo de proteção em torno dos
humanos.
Apenas os elfos mais novos estavam empolgados como Xar, mas só porque
ainda não entendiam o perigo que corriam.
— Ah, é linda! É linda! — gritou Sedento. — É a clareira mais incrivilhosa que já vi! E
que flor sensacionástica é essa? Já sei! É um lírio! É uma margarida! É uma azaleia! É uma couve-flor!
Ele voou até os galhos mais altos de uma árvore especialmente tenebrosa e
sinistra e se empoleirou na ponta de uma das exuberantes flores, que tinham
espinhos ameaçadores na extremidade das folhas e na verdade se chamava
armadilha devoradora de elfos. A flor se fechou com a rapidez de uma ratoeira,
prendendo Sedento.
Calíbano pousou no ombro de Xar e soltou um suspiro profundo.
— Não gosto de dizer “eu avisei” — começou ele —, mas estamos nesta
clareira perfeitamente segura no Bosque Maligno não faz nem um minuto e
você já perdeu um companheiro para uma planta carnívora.
— Bobagem! — retrucou Xar, bem-humorado. — Eu não perdi nada. É
isso que significa ser um líder. Sempre salvo meus companheiros quando eles
estão em perigo, porque é isso que um bom líder faz.
Xar subiu na árvore. Sessenta metros acima, equilibrando-se por pouco em
dois galhos que estalavam como se fossem gravetos, pegou seu punhal e abriu a
armadilha devoradora de elfos, libertando um pequeno e ofegante Sedento
bem no último minuto.
— Eu bem! — guinchou Sedento. — Eu BEM! Não sinto perna esquerda minha, mas eu
bem!
— Não se preocupe, Sedento! São só os sucos digestivos da flor, você vai
voltar a sentir sua perna daqui a pouco! — garantiu Xar, enquanto descia da
árvore. — Estão vendo? Sou um grande líder! Sigam-me e vão ficar bem.
Os jovens feiticeiros pareciam impressionados.
Naquele momento, o irmão mais velho de Xar, Pilhado, saiu das sombras
montado em um grande lobo cinza. Atrás dele vinha um séquito ainda maior
de elfos, animais e jovens feiticeiros.
Xar ficou tenso, porque detestava o irmão.
Pilhado era bem maior que Xar e quase tão alto quanto o pai. Um rapaz
brilhante em Magia, bonito, inteligente e que para completar, sabia muito bem
de todas as suas qualidades. Era o feiticeiro esnobe mais esnobe que se pode
imaginar. E ele vivia espionando Xar, só esperando um bom momento para
criar problemas para o irmão.
— O que você está fazendo aqui? — vociferou Xar, desconfiado.
— Ah, eu segui você só para ver que tipo de estupidez inútil meu
irmãozinho estava aprontando dessa vez — respondeu Pilhado, com a voz
arrastada.
— Grandes líderes como eu não fazem expedições inúteis! — retrucou
Xar, furioso. — Estamos aqui por uma RAZÃO. Não é da sua conta, mas…
Xar pensou em contar alguma mentira elaborada para explicar o que estava
fazendo ali, mas não resistiu à tentação de se exibir.
— … nós vamos capturar uma bruxa!
Ahhhhhhhh céus, ah céus, ah céus, ah céus.
Era a primeira vez que Xar anunciava para seus seguidores o propósito
daquela expedição, e era um propósito para lá de desagradável.
Uma bruxa!
O urso, os gatos-da-neve e os lobos ficaram imóveis por um segundo.
Depois, começaram a tremer. Até Ariel, a mais destemida dos elfos de Xar,
disparou para o alto e desapareceu de vista.
— Tenho certeza de que existem bruxas nesta parte do Bosque Maligno
— sussurrou Xar, animado, como se uma bruxa fosse um presente incrível que
ele estivesse oferecendo a todos.
Fez-se um longo silêncio, e em seguida Pilhado e seus companheiros
feiticeiros caíram na gargalhada.
Eles riram sem parar.
— Fala sério, Xar — zombou Pilhado quando conseguiu recuperar o
fôlego. — Até você deve saber que as bruxas estão extintas há séculos.
— Ah, sim — concordou Xar. — Mas e se algumas sobreviveram e
ficaram escondidas esse tempo todo? Veja o que encontrei aqui nesta clareira
ontem!
E tirou da bolsa uma pena negra gigante.
Era enorme. Parecia uma pena de corvo, só que muito, muito maior. De
um preto suave, desbotando na borda para um verde-escuro que brilhava,
como a cabeça de alguns patos.
— É uma pena de bruxa… — sussurrou Xar.
Pilhado abriu seu sorriso mais arrogante.
— Isso é de algum pássaro grande e velho — zombou. — Deve ser de um
corvo gigante… Um monte de bichos estranhos vive aqui, no Bosque
Maligno.
Xar guardou a pena no cinto.
— Nunca vi um pássaro tão grande assim — retrucou, aborrecido.
— Essa história de bruxas é uma besteira — disse Pilhado, sorrindo. — Só
um idiota sem cérebro como você não saberia disso. As bruxas foram extintas.
Calíbano desceu e pousou na cabeça de Xar.
— Extinto é uma palavra muito definitiva — observou o corvo.
— Está vendo? — disse Xar, triunfante. — Calíbano é uma ave de
presságios, que vê o futuro e o passado. Ele não acha que as bruxas estão
extintas!
— Eu só sei que, se por algum acaso as bruxas não estiverem extintas, você
não vai querer encontrar uma delas em um lugar como este — disse Calíbano,
tremendo. — Por que quer encontrar uma bruxa, Xar?
— Para roubar a Magia dela.
Outro momento de silêncio carregado de pavor.
— Irmãozinho, esse é o plano mais burro que já ouvi em toda a história dos
planos burros.
— Você só está com inveja porque a ideia não foi SUA.
— Tenho algumas perguntas para você — disse Pilhado. — Como
pretende capturar a bruxa, para início de conversa?
— Foi para isso que eu trouxe a rede — respondeu Xar, pegando-a da
bolsa para mostrá-la. Uma coisa era certa: o menino tinha disposição. — Um de
nós vai se oferecer para fazer um cortezinho de nada na mão, e aí o sangue vai
atrair a bruxa…
— Ah, que ótimo — zombou Pilhado, sorrindo. — Então agora você vai
ferir um dos seus pobres seguidores? Em uma floresta infestada de lobisomens
famintos e bafos-de-rogro farejadores-de-sangue? Fala sério, ficou doido de
vez… Esse plano é tão patético quanto você…
Xar o ignorou.
— Quando a bruxa atacar, vou jogar a rede, simples assim. Próxima
pergunta.
— Tudo bem. Lá vai: se nenhum feiticeiro vivo jamais viu uma bruxa,
como você vai saber quando a encontrar?
Xar abriu a bolsa novamente e tirou um livro do tamanho de um atlas,
intitulado Livro das Palavras Mágicas.
Todo feiticeiro ganhava um Livro das Palavras Mágicas ao nascer. O
exemplar de Xar era bem surrado. Uma parte estava invisível (tinha caído em
uma poção da invisibilidade); outra parte estava tão chamuscada que mal dava
para ler (foi quando Xar botou fogo no acampamento dos feiticeiros), e várias
páginas haviam se soltado (aventuras demais para contar aqui).
Xar abriu o livro no “sumário”, onde as vinte e seis letras do alfabeto
estavam escritas em uma grande caligrafia dourada. Tocando uma letra por
vez, ele buscou a palavra “bruxa”, e, vruuuuuum, as páginas do livro se viraram
sozinhas. Pareceu durar uma eternidade, os primeiros capítulos sumindo
enquanto o livro seguia para os capítulos seguintes, como um baralho
interminável, até que finalmente parou no lugar certo.
— Que estranho… aqui não diz nada sobre a aparência delas… mas as
bruxas são verdes… eu acho… — disse Xar.
Alguns acreditavam que as bruxas podiam ficar invisíveis e que seu sangue
era ácido. Outros achavam que elas esguichavam sangue pelos olhos.
— Tenho certeza de que vamos saber quando virmos uma — concluiu
Xar, fechando o Livro das Palavras Mágicas com impaciência. — Elas devem ser
bem horríveis, não é?
— Terrivelmente horríveis — respondeu Calíbano, muito sério. — As
criaturas mais aterrorizantes que já caminharam pela face da terra…
— Então, vamos imaginar que, por um milagre, você consiga capturar
uma bruxa… Como vai convencê-la a lhe dar sua Magia? — perguntou
Pilhado. — Acho que essas bruxas verdes invisíveis que esguicham sangue
ácido e que são as criaturas mais aterrorizantes que já caminharam pela face da
terra não vão simplesmente abrir mão da Magia se você pedir por favor…
— Aha! — exclamou Xar. — Eu já pensei nisso.
Com um grande floreio, ele calçou as luvas, enfiou a mão na bolsa e tirou
lá de dentro… uma panela pequena.
Silêncio.
— Você sabe que isso é uma panela, não sabe? — perguntou Pilhado.
— Não é uma panela qualquer — retrucou Xar, confiante. Ele respirou
fundo antes de fazer a chocante revelação: — Esta panela é de FERRO…
A maioria dos feiticeiros deu um passo para trás, horrorizada. Os elfos
soltaram gritinhos. O único que não ficou impressionado foi Pilhado.
Na verdade, ele riu. Riu tanto que Xar pensou que o irmão fosse cair de
cara no chão.
— Isso é bom demais… Você vai enfrentar uma bruxa com uma panela! —
zombou ele. — Você não é um “grande líder” coisíssima nenhuma, Xar, você
é um mentiroso e um inútil. Nosso pai tem vergonha de você, e agora eu
entendi por que quer tanto roubar a Magia de uma bruxa. Vai haver uma
Competição de Feitiços na Festa de Inverno esta noite, e você não consegue
lançar feitiços… XAR NÃO CONSEGUE USAR MAGIA — provocou
Pilhado.
Primeiro, Xar ficou vermelho de vergonha; depois, roxo de raiva.
O fato de ele ainda não conseguir lançar feitiços era uma daquelas feridas
secretas que não queremos que ninguém veja. Os feiticeiros não nasciam
mágicos; a Magia se manifestava por volta dos doze anos. Xar tinha treze, e isso
ainda não havia acontecido.
Ele já tinha tentado bastante. Passara horas e horas tentando. Coisas bem
simples, como mover objetos com a força da mente. Mas era como se aquilo
exigisse um músculo que ele não tinha. “Relaxe”, todos diziam. “Relaxe e vai
acontecer.” Era como tentar pegar algo sem ter braços.
E, nos últimos tempos, ele começara a se preocupar… E se NUNCA
acontecesse? Era uma calamidade improvável, mas que vergonha seria para
toda a família se um dos filhos do Rei Encantador NÃO TIVESSE MAGIA.
Pensar nisso deixou o garoto um pouco enjoado.
Por sorte, Magriço não viu duas coisas que aconteceram depois que eles
deixaram a clareira, ou teria ficado ainda mais preocupado.
Primeiro, o gigante Esmagador foi capturado pelos guerreiros de ferro de
Sicórax.
Desejo tinha razão ao se preocupar com ele. Gigantes são grandes
pensadores, mas, infelizmente, o fato de operarem em uma zona temporal mais
lenta os coloca em séria desvantagem quando precisam enfrentar inimigos
“O
muito menores. Esmagador praticamente só teve tempo de pensar
QUEEE EEESTÁ ACOOONTEEE…” antes que
os guerreiros, em seus cavalos velozes, surgissem na clareira e amarrassem suas
pernas com correntes de ferro. Os guerreiros o alertaram de que matariam o
pônei se ele fizesse barulho, então o gigante foi arrastado dali em silêncio para
a Fortaleza de Ferro, balançando a copa das árvores enquanto tropeçava e
cambaleava atrás daqueles guerreiros irritados que mais pareciam formigas. (Por
que eles estavam tão MAL-HUMORADOS? Gigantes não entendiam o mau
humor. Era uma perda de tempo tão óbvia!)
Então tudo ficou silencioso. Mas o ar na clareira pareceu um pouco mais
frio que antes, e a neve se moveu e se avolumou, como um mar branco
ficando revolto. Será que havia mais alguém ali? Alguém que assistira a tudo
que acontecera? Que poderia estar procurando pela Espada Encantada?
Ah, sim, isso deixaria Magriço preocupado.
Mas se esse alguém fosse uma bruxa, por mais improvável que parecesse,
ele ia precisar de habilidades bem avançadas como guarda-costas…
Pés de bruxa não deixam pegadas.
Corpo de bruxa não faz sombra.
Mas deixam as árvores, a terra, o ar
Um pouco mais frios ao passar.
* Palavra dos elfos para os finos fios de gelo que se formam na madeira morta exposta a temperaturas
congelantes.
** Isso não é recomendado. Uma espada sempre deve ser guardada em segurança na bainha, mas Xar
não se preocupava muito com segurança.
Não estamos aqui, essa asa que você acha que viu é apenas uma folha entre mil
Aquela vaca já estava para morrer, então não se atreva a nos maldizer
A-irritar-os-elfos-e-censurar-sua-crueldade-e-fechar-sua-mão-em-um-punho-
de-verdade
Nada pode nos atingir, não somos coisa alguma, somos apenas bruma
E isso foi apenas o vento numa pluma.
Não temos eira nem beira, não ficamos de bobeira e nunca ousaríamos quebrar
aquela cadeira
Ou-deixá-la-parecendo-perfeita-e-esperar-que-alguém-grande-e-gordo-sente-
o-velho-traseiro-nela-e-PLUFT-PLOFT-HA-HA-HA-!-BAM!!!!!-a-
coisa-toda-se-parta-em-minúsculos-pedacinhos-e-depois-caia-no-chão-de-
pedra-e-quebre-a-mandíbula-e-faça-alarde-e-rosne-e-chore-até-não-
chorar-mais…
E isso não foi o sinistro riso de elfos enquanto ele chorava. E se disseram que
foi, é mentira.
Aquela criança já estava para morrer, então não se atreva a nos maldizer
A-irritar-os-elfos-e-censurar-sua-crueldade-e-fechar-sua-mão-em-um-punho-
de-verdade
Nada pode nos atingir.
Não somos coisa alguma.
Somos apenas bruma.
E isso foi apenas o vento numa pluma.
Os animais avançaram pelo labirinto da floresta negra pelo que pareceram
horas. Desejo, Xar e Magriço atravessaram o rio congelado e as ruínas da
Muralha Fantasma, que marcava o fim do território dos guerreiros e o começo
das terras dos feiticeiros, até chegarem a uma parte da floresta tão deformada e
emaranhada — cheia de galhos de roseira-brava, árvores caídas e videiras —
que era impossível continuar.
A lua apareceu por entre as nuvens, e Xar mandou que Ariel lançasse um
feitiço na parede espinhosa de vegetação cerrada à frente deles. Diante dos
olhos incrédulos de Desejo e Magriço, os arbustos e galhos se abriram,
desentrelaçando-se, como dedos invisíveis desatando um complicado nó em
uma linha de pesca. Com um ruído que lembrava joelhos de velho estalando,
as árvores se inclinaram e se curvaram para a esquerda e para a direita, e a
vegetação se achatou até uma clareira surgir diante deles.
Os cabelos na nuca de Desejo e Magriço se arrepiaram como as cerdas de
um porco-espinho quando os dois viram o que havia na clareira: um círculo
gigantesco de árvores muito antigas, a maioria gigantes. Teixo, bétula, sorveira,
amieiro, salgueiro, freixo, cerejeira, sabugueiro, macieira, choupo — todas as
espécies que se poderia imaginar, a mais importante delas sendo o carvalho, é
claro. Nenhum sinal de casas, apenas uma música e o aroma de fumaça das
chaminés.
Agora que estavam bem longe de casa e totalmente embrenhados em
território inimigo, Desejo começava a sentir muito, muito medo. E se Xar os
fizesse de reféns?
Xar tinha dito que os libertaria no dia seguinte, mas aquele garoto não
parecia lá muito confiável.
— Onde fica sua fortaleza? — perguntou Desejo, trêmula.
— No subterrâneo — respondeu Xar.
Imagine um acampamento que foi tragado para dentro da terra. Cada uma
daquelas árvores gigantescas era oca e levava luz para os aposentos, no subsolo.
Xar os levou até a árvore na qual ficava seu quarto, um grande e velho teixo,
tão retorcido em torno do próprio eixo que parecia um bloco de argila
moldado por um gigante. Eles subiram por uma série de escadas e plataformas
e entraram pela janela.
O coração de Desejo se apertou ainda mais. Agora não havia mais saída,
estavam presos ali, cercados por inimigos. E se Xar contasse aos outros
feiticeiros sobre ela? E se houvesse feiticeiros piores que Xar, que fizessem
feitiços e provocassem nela uma morte lenta?
Desejo sentiu o estômago embrulhar.
Não havia teto no quarto. Acima, via-se apenas o céu noturno estrelado.
O chão tinha rachaduras tão grandes que dava para ver o salão principal, doze
metros abaixo.
— Não se preocupem — disse Calíbano, tentando tranquilizar Magriço e
Desejo, que observavam, atônitos, enquanto Xar andava em círculos por um
piso que parecia feito em parte de ar. — O chão é sustentado por Magia.
Xar abriu a bolsa e pegou o Livro de Palavras Mágicas, buscando o feitiço
que transformava pessoas em vermes. Ficava bem ao lado da página que
ensinava a transformar pessoas em gatos (fácil) e o que ensinava a fazer gatos
voltarem a ser pessoas (mais complicado).
Primeiro, pensou Xar, puniria Pilhado, transformando-o em verme com a
Magia da bruxa. Então, em um clímax dramático, empunharia a espada e
mostraria a todos que podia usar Magia-que-atua-sobre-ferro. Obviamente,
todos começariam a bater palmas e incentivá-lo, gritando seu nome, e seu pai
se curvaria diante dele, dizendo: “Xar, sinto muito por ter duvidado de
você… Sempre soube que você era especial. Sei que tivemos nossos
desentendimentos, mas você é o herói que todos estávamos esperando.”
Seria TÃO maravilhoso!
Xar memorizou o feitiço e fechou o livro.
— Venham, elfos! A competição vai começar em alguns minutos, e
precisamos descer até lá para eu poder HUMILHAR Pilhado. Venham
comigo… menos vocês, Coração-da-Floresta, Olho-da-Noite, Gato-Rei, urso
e Sedento…
— Puxa vida por que eu ter que ficar pra trás? — reclamou Sedento.
— Porque você ADOROU os guerreiros — disse Xar, irritado, pois
estava com um pouco de ciúmes. — Então pode ficar aqui e vigiá-los.
— Não se preocupe, chefe… Sedento vai proteger os dois…
— Eu não disse PROTEGER, Sedento, eu disse VIGIAR. Eles são nossos
prisioneiros …
— Mas eu quer TANTO ver o chefe se transformar em lobisomem! — disse Sedento,
bastante desapontado.
— Já até consssigo ver pelosss a mais em ssseus braçossss — sibilou
Tempestade-de-Desavenças, os olhos brilhando de prazer sádico.
— Ora, calem a boca! — irritou-se Xar. — Eu não vou me transformar
em lobisomem! Isto é sangue de bruxa, e eu vou usá-lo para lançar feitiços!
— Mas você ainda não sabe se vai funcionar — observou Calíbano. —
Não seria melhor descobrir o que é essa mancha antes de aparecer para um
monte de gente, correndo o risco de se transformar em lobisomem diante dos
olhos de todos?
Xar o encarou como se ele fosse completamente maluco.
— Mas para isso eu precisaria ESPERAR. E a Competição de Feitiços está
acontecendo AGORA. Além do mais, mesmo que o sangue da bruxa não
funcione, sei que a espada funciona.
— É proibido levar espadas para Competições de Feitiços, Xar, muito
menos uma espada de FERRO — alertou Calíbano.
— E a espada é nossa! — protestou Desejo.
— Eu gostaria que você parasse de dizer isso. Esta é uma espada mágica —
retrucou Xar. — Portanto, ela pertence a mim. E quanto a toda essa ladainha
tenebrosa de que o universo nos dá o que oferecemos, Calíbano, bem, só
posso dizer que, ao trazer essa espada até mim, o universo claramente acha que
eu sou bastante especial…
— E o universo está CERTÓSSIMO! — gritou Sedento.
Não havia como argumentar com Xar quando ele estava com esse tipo de
humor.
— O universo na realidade está mandando uma chuva torrencial — disse
Calíbano, sombrio, sentindo grandes pingos de chuva caírem em suas penas.
Lá embaixo, no salão principal, dava para ouvir o som jubilante de gigantes
dançando e vozes felizes. Lá em cima, no pequeno aposento emaranhado por
cipós que balançavam ao vento como um barco à deriva no mar, uma chuva
forte começava a inundar o quarto de Xar.
— Por que alguém projetaria um quarto sem teto?! — perguntou-se
Magriço. — Não é nada prático.
— Tempestade-de-Desavenças! — clamou Xar —, faça um feitiço
climático antes que todos morramos afogados. E você vai ter que ficar aqui
para manter o feitiço, para que os prisioneiros não se molhem…
Tempestade-de-Desavenças bufou, contrariada.
— PorquesousempreEUquemtemquefazertudo? Eu queria ver a
Competição de Feitiços! — reclamou ela, antes de pegar, de má vontade, uma
varinha número 4 na bolsa.
Ela escolheu um feitiço e o lançou com a varinha. Um belo e pequeno
guarda-chuva de vento invisível brotou da extremidade do feitiço, pairando a
mais ou menos um metro acima deles. A chuva começou a escorrer pelas
beiradas, como uma cachoeira.
— Minha nossa, isso é incrível! — exclamou Desejo, admirada.
— Não se deixe impressionar, princesa! — retrucou Magriço. — Lembre-
se, a Magia pode ser atraente por fora, mas é sinônimo de perigo, caos…
— Mas você tem que admitir que é extremamente útil se não quiser se
molhar — disse Xar.
— Um teto também funciona muito bem — rebateu Magriço.
Xar saiu e trancou a porta.
— Ele levou a espada — lamentou Desejo, bastante desapontada. —
Vamos ter que esperar até Xar retornar para roubá-la de volta enquanto ele
estiver dormindo.
— Tudo bem, digamos que a gente consiga fazer isso — ponderou
Magriço. — Como vamos voltar para nossa fortaleza? Não podemos ir
ANDANDO, pois fica a quilômetros de distância.
— Ah, céus, Xar estava certo, somos prisioneiros! — disse Desejo,
olhando pela janela para a escuridão da noite. Era um longo caminho até a
base da torre, e não havia nenhum sinal do gigante ou do pônei. — E acho
que o pobre Esmagador foi capturado pelos guerreiros da minha mãe…
— Tadinho do Esmagador?! Ele é um GIGANTE, Desejo! — exclamou
Magriço, muito chocado. — De que lado você está?
Com um suspiro profundo, Desejo deu as costas para a janela e pegou o
Livro das Palavras Mágicas, que Xar havia deixado na mesa.
— Magriço, você PRECISA ver isto, é inacreditável! — disse Desejo,
esquecendo o medo e a ansiedade e quase deixando o livro cair de tanta
animação.
— Nós realmente não deveríamos mexer nessas coisas, Desejo — alertou
Magriço, angustiado. — É um livro mágico… não deveríamos estar
olhando… não deveríamos estar ouvindo… não deveríamos estar segurando
nada disso…
— Mas esse livro diz que tem seis milhões de páginas!
— Impossível — retrucou Magriço, não conseguindo se conter e olhando
por cima do ombro dela, pois amava livros, e um livro com seis milhões de
páginas era algo que ele precisava ver.
— Veja! — disse Desejo. — Está escrito aqui que é um guia completo
para absolutamente tudo que é preciso saber sobre o mundo mágico. Mapas,
receitas, toda espécie de criaturas mágicas, feiticeiros, bruxas, trasgos, anões,
elfos… E tem uma descrição de cada um… e tem uma seção sobre palavras
perdidas… isso parece interessante… línguas: dos anões, dos elfos, dos
gigantes, das portas… Como assim uma língua das portas? Eu não sabia que
portas falavam…
O livro era muito confuso de ler porque as páginas ficavam caindo, e
quando flutuavam de volta se encaixavam em uma parte diferente. Quem quer
que o tivesse escrito era muito desorganizado e não parava de dar voltas e mais
voltas que poderiam levar a algum lugar ou em becos sem saída.
— Os erros de ortografia são quase tão ruins quanto os meus — observou
Desejo, triunfante.
— Isso não é uma coisa boa, Desejo — observou Magriço. — Você sabe
que sua mãe diria que só tem UMA maneira de escrever as coisas, e é a
maneira CORRETA. Qualquer coisa diferente disso é caos… desordem…
anarquia…
Desejo não o estava ouvindo.
— Ah, minha nossa! Olhe! EU estou neste livro — disse ela, perplexa,
mostrando uma ilustração na parte que falava sobre os gigantes. — Tem
também o Esmagador! Como isso é possível?
Magriço espiou de novo.
— Bem, é só o desenho de uma menina, não é? Não é necessariamente
você…
— Tem uma colher na cabeça da menina!
— É verdade… — Magriço soltou um suspiro. — Acho que pode ser
você, porque esse livro é mágico… — Ele estremeceu: a ideia de que um livro
podia escrever sobre alguém sem que esse alguém soubesse disso era mesmo
sinistra. — E é por isso que REALMENTE, REALMENTE não deveríamos
estar lendo nada disso…
— Só estou folheando para ver se encontramos uma maneira de fugir
daqui.
Sedento, Tempestade-de-Desavenças e os gatos-da-neve não estavam
fazendo um trabalho muito bom em vigiar os prisioneiros. Tinha sido um dia
longo e cansativo, e todos haviam pegado no sono, então Magriço se animou
um pouco, pensando que talvez eles PUDESSEM escapar.
— Agora nos resta saber como Xar fez o livro funcionar — perguntou-se
Desejo, intrigada. — Ele tocou nas letras do índice e as páginas se viraram
magicamente até o local certo… Droga, eu não sei soletrar muito bem.
Magriço, será que você pode me ajudar?
Magriço olhou por cima do ombro de Desejo e tocou nas letras,
formando: “Como escapar de uma árvore mágica na fortaleza dos feiticeiros e
voltar para casa pelo Bosque Maligno sem corda, sem transporte, sem bússola e
sem nenhuma outra maneira de se localizar?”
Todas as respostas, porém, pareciam envolver algum tipo de equipamento
especializado, como tapetes voadores ou sapatos alados, e muitas delas
alertavam sobre os perigos do Bosque Maligno de forma terrivelmente realista e
com detalhes macabros, citando gatos gigantes, lobisomens e cogumelos com
dentes. Magriço não queria ser lembrado dessas coisas.
Os dois levaram um susto, nervosos, ao ouvir um barulho ensurdecedor
vindo de algum lugar abaixo do quarto — como vinte trovoadas soando ao
mesmo tempo. Era o som de alguns feiticeiros se enfrentando no salão
principal.
— Minha nossa, o que foi isso?! — exclamou Magriço.
Desejo espiou por entre as rachaduras nas paredes do quarto e conseguiu
ver o salão principal.
A Competição de Feitiços estava começando.
Era uma festa do FOGO, então fogueiras altas ardiam em todos os cantos do
salão principal, e um grande círculo de fogo crepitante marcava o ringue de
feitiçaria, bem no centro vibrante do barulhento banquete.
O salão estava lotado de feiticeiros de todas as idades e tamanhos, e
gigantes sonolentos e alegres dançavam ou cochilavam pesadamente nos cantos
do salão, sem falar nos lobos uivando, ursos se deslocando pesadamente, gatos-
da-neve observando tudo com atenção nas sombras dos galhos acima,
balançando o rabo. Violinos e cornetas dançavam no ar, tocando sozinhos e
com bastante independência, sem nenhum músico à vista.
Em um canto do salão, Encanzo, o Encantador, estava imerso em uma
discussão política com outros feiticeiros. Giradório, um feiticeiro de uma tribo
rival, argumentava que os feiticeiros precisavam lutar contra os guerreiros,
como seus ancestrais tinham feito no passado.
— Chegou a hora de uma BATALHA — dizia ele. — E de um novo
líder. EU, por exemplo. Eu poderia ser rei no seu lugar, Encanzo…
A Competição de Feitiços dos Jovens Feiticeiros estava acontecendo em
outro canto do salão. Pilhado havia derrotado todos os seus oponentes quando
Xar entrou, cheio de empáfia, seguido pelo urso e pelos lobos, os elfos voando
logo acima deles, roubando chapéus, apertando narizes e apenas se exibindo,
de modo geral. Em dois segundos, Ariel tinha:
... passado voando por baixo de todas as mesas do banquete, amarrado os cadarços
dos sapatos de todas as pessoas, de modo que, quando se levantassem, elas cairiam de
cara na mesa, com sorte dentro de alguma coisa molhada e quente, como um
ENSOPADO.
Tempo-Perdido transformou parte do chão em gelo.
E todos os outros elfos estavam causando pequenos incômodos igualmente
perversos…
— O que você está fazendo aqui, Xar? — perguntou Pilhado, com
desprezo. — Sua Magia ainda não se manifestou.
— Estou aqui para desafiar você — disse Xar, solenemente.
— Como é que é? — Pilhado riu. — Não vá me dizer que você capturou
a tal BRUXA, irmãozinho — continuou ele, despreocupado. Pilhado se virou
para seus amigos, que não paravam de rir, e apontou para Xar. — Esse
fracassado achou que ia capturar uma bruxa para roubar sua Magia…
— HA HA HA HA HA! — riram os jovens feiticeiros.
Xar não se deixou abalar.
— Talvez eu tenha capturado a bruxa, Pilhado. Por que não tenta jogar
algum de seus feitiços em mim, para vermos o que acontece? Ou será que
você está COM MEDO?
— Cuidado, Pilhado! — alertou Obtuso. — Ele realmente capturou
alguma coisa… Eu não sei o que foi…
— É óbvio que você não capturou uma bruxa — zombou Pilhado. — E
não consegue lançar feitiços, irmãozinho querido. Eu avisei que, se você
ousasse entrar nesta competição, seria ANIQUILADO. E é o que vou fazer…
Xar entrou no círculo de giz, e, quando pisou lá dentro, ouviu-se um
breve zumbido e um campo de força se ergueu sobre ele e Pilhado. Era um
domo fluido e invisível, e a energia que continha o fazia sibilar.
Todos ficaram em silêncio, o tipo de silêncio de quando você sabe que
algo importante vai acontecer. Tempo-Perdido pegou uma varinha; Abelhuda
fez o mesmo. Mas eles não podiam ajudar Xar dentro do domo.
Ele estava por conta própria.
Xar ergueu as mãos, estendendo-as na direção do irmão.
— Ah, então você vai fazer Magia sem um cajado, Xar? — zombou
Pilhado, e todos os seus amigos riram alto.
Usar Magia sem um cajado era um atributo avançado de feitiçaria, e apenas
Grandes Encantadores, como o pai de Xar, eram capazes de tal feito.
— Tenha medo, Pilhado, tenha muito medo — alertou Xar. — Porque
eu não tenho apenas a Magia de uma bruxa… minha Magia tem o poder de
atuar sobre ferro…
— HA, HA, HA, HA, HA, HA, HA! — riram todos os jovens feiticeiros.
— É mesmo? — disse Pilhado, sorrindo.
Ele ia se divertir taaaanto com aquilo...
— É — respondeu Xar. — Eu sou o garoto escolhido pelo destino.
Cheio de confiança, Xar ergueu a mão com a marca da bruxa.
Sinta o poder…, pensou. Sinta o poder…
“Imagine o poder em sua mente… Sinta-o em seus dedos…”, era o que os
professores sempre diziam.
Mas Xar foi ficando com o rosto cada vez mais vermelho, e cada vez mais
irritado, e foi como em todas as outras vezes que ele tentou fazer Magia e não
conseguiu…
Nada, nada aconteceu.
Pilhado se esgueirava com cautela pela borda do círculo, para o caso de seu
irmão lunático REALMENTE ter capturado alguma forma de vida extinta.
Embora fosse impossível, nunca se sabia quando se tratava de Xar. Ele era
especialista em fazer coisas impossíveis acontecerem.
Então os olhos de Pilhado se iluminaram.
— Ai, ai… — cantarolou ele, segurando alegremente o cajado. — Ai, ai…
Então, garoto predestinado, escolhido… onde está sua terrível Magia de
bruxa?
— O garoto predestinado! — riram os jovens feiticeiros fora do círculo.
— Eu não entendo — disse Xar, confuso e furioso. — Eu SOU o garoto
predestinado. Eu POSSO fazer isso… Sei que posso usar Magia…
Droga!, pensou Xar. Ele tinha tanta certeza, com aquela coisa de matar
bruxas escrito na espada e tudo mais, de que era tudo um sinal do destino! Mas
talvez tivesse se enganado… E se aquilo não era sangue de bruxa, então o que
era?
Por favor, por favor, não posso me transformar em lobisomem na frente de todo
mundo, pensou Xar. Seria uma vergonha.
Não foi a primeira vez que ele desejou ter seguido o conselho de
Calíbano. Sentia o corpo inteiro formigando, como se os pelos estivessem
prestes a se eriçar.
— Você não consegue lançar feitiços — disse Pilhado. — Mas eu consigo.
Vou mostrar a você como é que se faz. Só não sei ainda o que fazer primeiro...
Talvez eu deva fazer… isto!
Ele apontou o cajado para o irmão. Houve um lampejo de relâmpago
difuso, e o calor incandescente da Magia disparou do cajado, atingindo Xar no
peito com tanta força que o garoto foi jogado contra a parede do campo de
força mágico.
Maldição, pensou Xar, atordoado, enquanto se levantava. Isso não está saindo
de acordo com meus planos…
— Vou deixar você verde… — Pilhado sorriu, atirando explosões de
Magia em Xar, que ficou verde néon ao ser jogado do outro lado do círculo.
O menino tentava não gritar enquanto os golpes o atingiam como socos no
estômago. — E depois vermelho… amarelo… rosa…
Xar era atirado em todas as direções no ringue de feitiços, mudando de cor
sem parar, e foi ficando mais e mais enjoado. Estava se segurando para não
vomitar na frente de todo mundo.
— HA, HA, HA, HA, HA! — gargalhavam os puxa-sacos de Pilhado e as
crianças feiticeiras nas quais Xar já tinha pregado peças e às quais já dera
ordens.
— Você precisa aprender uma lição, Xar. E eu vou lhe ensinar uma lição
que você nunca, nunca vai esquecer.
Pilhado se aproximou do irmão, que estava dobrado de dor, gemendo.
— Você já é pequeno — disse Pilhado. — Mas vou deixá-lo ainda
menor…
Ele apontou o cajado para Xar e murmurou um feitiço:
— E-N-C-O-L-H-E-R… Encolher…
Ah, não… um feitiço de encolhimento, não, pensou Xar. É muito doloroso. E eu
já sou pequeno. É melhor eu usar a espada.
Mas ele não teve tempo para isso. A Magia saiu da ponta do cajado de
Pilhado, atingiu o corpo curvado de Xar e fez suas extremidades se
iluminarem como se ele fosse feito de pó de estrelas.
Xar sufocou um uivo de dor quando as estrelas o apertaram como um
punho maligno. A pressão começou na testa e se espalhou por todo o seu
corpo, o feitiço se intensificando, apertando-o e esmagando-o como se ele
estivesse usando uma armadura que encolhia mais e mais a cada segundo.
— Reconheça minha vitória! — gritou Pilhado, recuando para dar a Xar
um momento para se recuperar. — Renda-se!
Mesmo com a boca deformada por causa do encolhimento, Xar conseguiu
gritar:
— Não! Eu não me rendo!
As palavras saíram estranhamente esganiçadas pelo “O” encolhido e
contorcido de seus lábios.
— Ah, então quer ficar ainda menor… — disse Pilhado.
Dessa vez, Xar soltou um grito quando o feitiço o atingiu — era um
guinchar trêmulo de apertões e pressão encolhendo seus ossos. Droga. Aquilo
não estava lhe dando tempo para pegar a maldita espada.
— Você desiste? — perguntou Pilhado.
— É claro que não!!! — gritou Xar. — Agora você realmente me irritou,
Pilhado!
Por sorte, isso fez o irmão mais velho parar de usar Magia por um
segundo: estava rindo tanto que quase deixou o cajado cair.
— Ah, eu REALMENTE irritei você, foi? Estou com tanto medo, tanto
medo…
Enquanto Pilhado ria, Xar conseguiu pegar a espada. E no último instante
— se suas mãos tivessem ficado menores, ele não conseguiria empunhá-la.
Conseguiu fechar os dedos em torno do cabo e tirar a espada do cinto.
E foi um momento de triunfo.
Xar brandiu a Espada Encantada, fazendo aquele zunido agradável das
espadas, e, quando ouviram aquilo, os olhares de todos passaram do escárnio à
surpresa e ao horror, ao se darem conta do material do qual a espada era feita.
Ferro…
Pilhado deu um passo para trás.
— Você não pode entrar com uma ESPADA DE FERRO aqui… Onde
conseguiu isso, seu louco?
— Eu invadi a fortaleza dos guerreiros — mentiu Xar, gabando-se — e a
roubei bem debaixo do nariz empinado e melequento deles… E posso entrar
com ela aqui porque é uma espada mágica matadora de bruxas. Como você
vai ver, a minha Magia, que JÁ se manifestou, controla a espada…
Aflito, Pilhado atirou um raio de Magia no irmão, que se aproximava,
mas, com um golpe prazeroso da espada, Xar cortou o raio ao meio antes que
fizesse algum estrago.
— Outro feitiço de encolhimento, Pilhado? — zombou ele. — É melhor
tentar de novo, porque estou me aproximando…
Então a luta começou de verdade: Pilhado atirando feitiços rápidos e
quentes com o cajado e Xar os interceptando e partindo-os ao meio. Os
feitiços caíam no chão, inutilizados, tão rápido quanto Pilhado os atirava.
A espada parecia viva na mão de Xar, como um salmão recém-pescado, e
antecipava os movimentos de Pilhado.
Como Xar não era tão leve quanto Desejo, não ficava tão claro que era a
espada que estava lutando, e não o próprio Xar. Ele parecia apenas ter se
tornado, súbita e milagrosamente, o Melhor Espadachim do Mundo.
Os feiticeiros agora apontavam para ele com admiração em vez de
escárnio. Acompanhavam Xar correndo pelo ringue, cortando os feitiços de
Pilhado e gritando:
— O que tem a dizer sobre minha Magia AGORA, Pilhado?
E se exibindo, de maneira geral.
Está funcionando!, pensou Xar, satisfeito.
Elfos não são como humanos. As florestas são tão perigosas que eles teriam
desaparecido anos antes se não se recuperassem rápido de doenças. Sedento,
cheio de bravura, ergueu a cabeça, abriu as asas trêmulas e se lançou no ar,
mesmo fraco.
— Ele ainda consegue voar! — gritou Xar. — EU CONSEGUI! VAI
FICAR TUDO BEM! Está vendo, Calíbano? Apesar de todo o seu discurso
sombrio de o-que-está-feito-não-pode-ser-desfeito, foi exatamente como eu
disse: nada é impossível! E foi na hora certa! Eu sou TÃO INTELIGENTE,
ah, tão brilhante! Foi uma ideia tão boa que eu tive, essa de deixar nele Magia
suficiente para voar…
— Rápido, Xar! — chamou Magriço. — Coloque sua mão na pedra para
se livrar do sangue de bruxa… aí vamos poder ir embora deste lugar horrível.
Xar suspirou.
— Ande logo — apressou Calíbano. — Você sabe que essa é a segunda
parte da nossa missão. E deve ter aprendido alguma coisa hoje. Todas essas
coisas ruins só aconteceram porque você tentou obter a Magia ruim de uma
bruxa.
— Eu sei, eu sei — admitiu Xar, com certa tristeza. — Mas você não faz
ideia de como é difícil crescer em um mundo mágico sem ter Magia.
— É difícil, mas você viu o que o sangue da bruxa fez com Sedento. Essa
Magia que você tem na sua mão é ruim, e Magia ruim sempre termina mal.
— Tudo bem, tudo bem… — Xar soltou outro suspiro. — Eu vou fazer
isso.
Milagre dos milagres, parecia que o garoto realmente tinha aprendido algo
naqueles dois dias.
Ele se ajoelhou e pousou a mão com a marca da bruxa na pedra.
Foi uma sensação bizarra, mas não durou muito.
Foi como um choque elétrico na palma da mão, que se grudou à pedra
como se tivesse sido atraída magneticamente. No minuto seguinte, Xar sentiu
algo sendo arrancado dele, e em seguida a força desapareceu. Quando ele
ergueu a mão, não havia mais a mancha verde.
Xar não conseguiu evitar o desânimo quando olhou para a mão. Por um
momento ele tinha sido especial, mesmo que especial da maneira errada.
Agora era apenas o velho Xar sem graça de novo, velho demais para que sua
Magia ainda não tivesse se manifestado.
Calíbano pousou em seu ombro e disse, com compaixão:
— Você fez o certo, Xar. Estou orgulhoso de você. Foi a coisa sábia e
madura a fazer. Sei que foi difícil, mas você tem que ter paciência e esperar
que sua Magia se manifeste. Não se precipite e não tente conseguir as coisas de
imediato.
— Sim, eu sei, mas é tão difícil — disse Xar, entristecido. — Pelo menos
Sedento está curado.
— CURADO — confirmou Sedento, sonolento, no bolso de Xar. — Mas por
que ainda esssstamos nessses calabouços sssinistrentos?
— Boa pergunta — disse Xar. — Vamos dar o fora daqui!
Desejo estava ajoelhada ao lado da pedra, no caminho de Xar, tentando
não entrar em pânico.
— Desejo? A gente precisa ir embora!
Ela não respondeu de imediato. Engoliu em seco e disse:
— Não consigo tirar as mãos da pedra.
Fez-se um silêncio terrível.
— Como assim não consegue tirar as mãos da pedra? — perguntou Xar.
— Elas estão grudadas… minhas mãos estão grudadas na pedra…
— Como isso é possível???! — exclamou Magriço, horrorizado.
O que aconteceu foi o seguinte:
Desejo estava ajoelhada, ajudando Xar a colocar Sedento na pedra.
Quando foi se levantar, ela tropeçou, desastrada como sempre, e se apoiou na
pedra para não cair.
E não conseguiu mais se soltar.
Confusa, até tentou se afastar, porém quanto mais puxava, mais as mãos
grudavam.
Agora estava ajoelhada de novo, com as mãos na pedra, a testa apoiada na
superfície cinza e gelada. Suas mãos pareciam coladas.
Ela tentou mexer o dedo mindinho, mas não conseguiu. Sentia uma
quentura quase agradável nas mãos, e estava ficando um pouco enjoada. Era
uma sensação muito estranha: uma força de atração dentro da pedra parecia
sugar suas vísceras, esvaziando-a, como se Desejo fosse uma garrafa de vinho.
— O que está acontecendo? — perguntou Magriço. — Por que ela não
consegue tirar as mãos da pedra? Aconteceu alguma coisa? O que significa isso?
— Isso é estranho… muito estranho… — comentou Calíbano, bem
confuso.
Xar e Magriço tentaram ajudar Desejo a se soltar da pedra, mas foi em vão.
As tentativas dos dois de puxar e tentar descolar os dedos de Desejo só os fez
sangrar, e ela berrou, pedindo que parassem. Os elfos não podiam usar feitiços
nos calabouços de ferro da rainha Sicórax. Então se limitaram a zumbir em
volta dela, repetindo:
— Ouça as históriassss… ouça os contos de fadassss… não toque na
pedra…
O que não era muito útil, francamente, já que Desejo JÁ TINHA tocado a
pedra, então era um pouco tarde para dizer a ela o que não fazer.
— Ah, céus… ah, céus… ah, céus… O que está acontecendo? —
perguntou Magriço, inquieto. — Tem alguma coisa estranha acontecendo, eu
sei que tem… Queria que nunca tivéssemos vindo até aqui. Você está bem,
princesa? Não dói?
— Não, não dói. Estou um pouco enjoada, mas não dói.
Desejo estava nauseada, confusa e morta de medo.
Ficar preso em uma caverna horrível em um calabouço a cem metros de
profundidade, com as mãos presas a uma enorme pedra cinza lhe dava uma
sensação terrível de claustrofobia. A imaginação de Desejo começou a lhe
pregar peças.
E se ficasse presa ali para sempre? Aquele era o problema com objetos
mágicos. Por isso que era preciso ter tanto cuidado ao tocá-los. Nunca se sabia
ao certo quais eram as regras.
E se essa fosse a moral dos contos de fadas? Que se você coloca as mãos na
pedra e é o tipo errado de pessoa, como um guerreiro, não um ser mágico,
você nunca mais consegue se soltar?
Sete minutos se passaram.
Oito minutos se passaram.
— O que está acontecendo? — ela não parava de repetir.
— Nove minutos… dez minutos… O que está acontecendo? — indagou
Calíbano, muito confuso.
Estava tão quente na sala que o suor escorria pelo rosto de Xar, e sua
camisa estava ensopada.
O que era ainda mais estranho era que o calor parecia estar afetando a
Colher Encantada. Ele se inclinou no ombro da princesa, tentando confortá-
la, mas quase se dobrou ao meio, pobrezinho, como se, por compadecer-se de
sua situação, a vida estivesse sendo sugada dele também.
Os gatos-da-neve e os elfos pressentiram o perigo e fizeram um círculo de
proteção ao redor de Xar, os elfos erguendo os braços e tentando, sem sucesso,
lançar feitiços e maldições, com tanta força que o ar crepitava de Magia
frustrada.
Desejo estava fraca agora e tentando a todo custo não entrar em pânico.
— Eu não vou ficar presa aqui para sempre, vou, Calíbano?
— Não, não — respondeu Calíbano, na tentativa de tranquilizá-la —, não,
não, para sempre não… Sempre é uma palavra muito forte. Tenho certeza de
que é apenas um pequeno percalço… Um pequeno mal-entendido, e a
qualquer momento você vai se soltar…
A testa de Desejo estava muito próxima da pedra.
Era sua imaginação ou a rocha diante dela estava ficando mais clara? E
estava ficando também transparente, como se a superfície cinza fosse apenas
uma membrana e desse para ver lá dentro.
Ah, pelo visco e pelo carvalho e por todas as coisas doces e venenosas!
Enquanto Desejo olhava, fascinada, hipnotizada, pensou ter visto um olho
se abrir em algum ponto no centro da pedra…
E uma horrível voz rouca sussurrou:
— Oláááá… Eu estava esperando você…
Xar assistia à cena boquiaberto.
— A pedra está falando!
— Não é a pedra! — exclamou Desejo. — Tem alguma coisa lá dentro…
Por um momento houve um brilho de uma cor intensa, e quando os olhos
de Desejo se ajustaram…
… ela se deparou com os olhos de uma enorme bruxa, toda encolhida na
pedra, as pernas dobradas sob o corpo como um grande gafanhoto negro.
Encanzo, o Encantador, sempre repetia um ditado que Sicórax deveria
lembrar:
“A Magia não pode ser destruída, apenas ocultada.”
Como esse ditado era verdadeiro!
Pois esse era o segredo da Pedra Que Remove Magia.
Ela removia a Magia por uma razão.
— O que… é… isso? — sussurrou Desejo, horrorizada.
— Eu sou o Rei Bruxo… — disse a voz rouca, horrível e apavorante
— Ah, pelo olho da salamandra e pelo dedo do pé do sapo frito! —
amaldiçoou Calíbano. — O destino nos enganou! É o tipo errado de
predestinação! É o universo em um dos seus humores mais desleais! É a sorte
tendo um DIA MUITO, MUITO RUIM!
Era, de fato, o Rei Bruxo.
E parecia que o destino estava jogando um jogo traiçoeiro com eles.
Veja bem, os feiticeiros tinham a tradição de nunca registrar nada por
escrito.
O problema é que, quando a verdade é passada de boca em boca por
muitos séculos, ela pode se deformar e se fragmentar ao longo desse tempo.
Aparentemente, os elfos estavam certos ao dizer NÃO TOQUE NA
PEDRA.
Parecia que os contos de fada tinham mesmo razão.
Como Calíbano disse, o problema com as histórias é que você precisa saber
quais mensagens elas querem passar.
E agora o verdadeiro segredo da pedra tinha sido revelado.
Eis a verdade a respeito dela:
Muitos séculos antes, o Rei Bruxo fora derrotado, na última Guerra das
Bruxas, e acabara aprisionado naquela pedra. Ele passou centenas de anos se
alimentando da Magia que vinha de fora, esperando e esperando.
A rainha Sicórax pensava que estava levando os seres-outrora-mágicos para
a pedra por sua livre e espontânea vontade. Como ela poderia imaginar que
estava respondendo à vontade do Bruxo Dentro da Pedra? Que, no coração de
sua fortaleza de ferro, em silêncio dentro da rocha acinzentada, havia outro
coração, outra vontade atraindo, arquitetando, esperando e desejando com
uma força maligna invisível, como uma aranha de pernas compridas no meio
de uma grande teia cinza?
— Éumabruxaéumabruxaéumabruxa! — guinchavam os elfos e os
elfolinos, subindo no ar de medo, espalhando pequenas nuvens negras de
fumaça-de-terror.
— Me dê sua Magia… — sussurrava o Rei Bruxo. — Me dê sua Magia…
ME DÊ SUA MAGIA…
— Deve haver algum engano — implorou Desejo, forçando-se a olhar
para aquele terror dentro da pedra. — Eu não tenho nenhuma Magia para
dar… Não sou uma feiticeira… Sou apenas uma princesa guerreira, e bem
comum. Por favor, me solte…
— Ah, mas você tem Magia — respondeu o Rei Bruxo. — Acredite em
mim, eu reconheço Magia quando a sinto. E sua Magia não é nem um pouco
comum. É um tipo muito especial, uma Magia pela qual estou esperando há
muito, muito tempo. Magia-que-atua-sobre-ferro…
Ah.
Meu.
Deus.
— ME SOLTEM! — gritou Desejo, com todas as forças.
E um pandemônio teve início na câmara de remoção de Magia.
Magriço e Xar agarraram os dedos de Desejo, mas as mãos dela não saíam
do lugar.
— Não pode ser verdade — choramingou a princesa. — Eu sou uma
guerreira! Guerreiros não têm Magia! É impossível!
Mas nada é impossível. Apenas improvável.
E no momento em que o Rei Bruxo disse aquelas palavras, todos os
presentes na sala souberam que era verdade.
Isso explicava tudo.
Explicava por que Desejo vinha se sentindo um pouco diferente e
estranha. Nos últimos meses, várias coisas esquisitas estavam acontecendo com
ela. Agulhas ganhando vida em suas mãos, tapetes se movendo
inexplicavelmente sob seus pés ou se curvando nas pontas.
Objetos escorrendo por suas mãos como água ou formigando de
eletricidade quando ela os tocava… coisas que ela achava que tinha colocado
em um lugar aparecendo inesperadamente em outro… o cabelo se arrepiando
quando ela se encontrava com determinadas pessoas, ou entrava em
determinados cômodos, e se enroscando sozinho… roupas se rasgando…
sapatos saindo dos pés… chaves sendo perdidas…
Ela havia pensado que era apenas por ser esquecida, desastrada, distraída e
ainda mais inútil do que o normal. Mas…
Desejo tinha treze anos, e era nessa idade que a Magia se manifestava.
— A colher… — murmurou Magriço.
Uma guerreira que possuía Magia!
Inconcebível.
Mas seria possível que a colher de ferro tivesse ganhado vida pela estranha
Magia-que-atua-sobre-ferro de Desejo?
Magriço se deu conta de que a personalidade da colher, debruçada no
ombro de Desejo, era muito parecida com a da própria Desejo.
Ele era bondoso e leal.
Um pouco inconsequente.
Um pouco estranho.
Como Desejo poderia encantar um objeto sem nem saber que estava
fazendo isso?
A Magia é difícil de controlar, ainda mais quando a pessoa nem sabe que a
tem.
E isso também era típico. É claro que, se Desejo possuía Magia, era a cara
dela ter uma Magia completamente diferente.
— Ah céus, ah céus, ah céus… — repetia Calíbano. — Eu sabia que não
estávamos fazendo as perguntas certas! As perguntas que deveríamos estar
fazendo eram: por que as bruxas estão despertando AGORA? Por que aqui?
Por que nós? E a resposta é que elas estão despertando porque a Magia de
Desejo está se manifestando…
Calíbano estava certo. Não era uma mera coincidência… As bruxas
haviam passado séculos adormecidas, e escolheram aquele momento específico
para acordar porque sentiam que a Magia de Desejo tinha se manifestado, e era
algo de que elas precisavam.
— Me dê a Magia… — dizia o Rei Bruxo, de dentro da pedra, na mesma
horrenda voz chiada. — Me dê a Magia-que-atua-sobre-ferro…
— POR QUE ele a quer? — choramingou Desejo, já sabendo que não
queria ouvir a resposta.
Calíbano já tinha entendido.
— Ele está tentando obter Magia para sair da pedra!!!! — gritou o corvo. —
TEMOS que tirar Desejo daqui!
— ME TIREM DESTA PEDRA IMEDIATAMENTE!!!! — berrou
Desejo mais uma vez.
— Tempestade-de-Desavenças, tente tirá-la da pedra com um feitiço! —
ordenou Xar. — Vou tentar puxá-la mais uma vez!
Tempestade-de-Desavenças sibilou, furiosa, bufando de raiva e irritação.
— SSSSSSSsssss!!!! Garota humana fedida e desajeitada!! Ficou maluco,
mestre!? O que precisamos fazer AGORA é dar o fora daqui!!!!! As coisas
estão prestes a ficar muito feias…
— Obedeça — disse Xar com severidade.
Os elfos vasculharam desesperadamente suas bolsinhas de feitiços.
Invisibilidade, poções do amor, maldições, feitiços para voar, todo tipo de
Magia simples, útil para situações cotidianas, mas não para enfrentar um mal
grande e sombrio como uma bruxa. Eles tentaram todas as varinhas: as
condutoras, as varinhas número 4, as varinhas número 5… mas, obviamente, a
Magia deles jamais funcionaria em uma prisão cheia de ferro.
A horrível voz rouca do Rei Bruxo foi crescendo e crescendo, enchendo a
câmara de terror.
— ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA
MAGIA… — entoava ele, e quanto mais alto falava, mais nervosa Desejo
ficava.
— Como posso usar essa Magia para sair daqui? — perguntou Desejo.
— ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA
…
— Você tem que QUERER muito, muito mesmo uma coisa… Faça um
DESEJO! FALE O QUE QUER, COMO SE LANÇASSE UM FEITIÇO!
— respondeu Xar. — E depois o CANALIZE com as mãos!
— Eu não consigo! — disse Desejo, já tão enjoada que queria desistir e
morrer ali mesmo. — Minhas mãos estão grudadas na pedra! Por que não
consigo tirá-las? Foi tão fácil tirar Sedento!
— O Rei Bruxo deve ter deixado você tirar Sedento — explicou Calíbano,
planando aterrorizado acima da pedra. — Mas não vai deixar que você se
liberte…
Com as mãos presas, ela não poderia fazer Magia mesmo se soubesse como
fazer. Qualquer pensamento independente estava sendo sugado pela pedra:
Desejo sentia o efeito entorpecedor dos pensamentos do bruxo se entrelaçando
aos seus próprios, como se estivesse sendo devorada por um animal grande e
assumindo o ponto de vista dele durante o processo de digestão.
Afinal, os guerreiros juraram destruir toda a Magia, então é perfeitamente razoável
que as bruxas lutem contra isso…, diziam seus pensamentos, e ela não sabia mais
se eram os próprios ou os do bruxo.
— ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA
…
Desejo enxergava dentro do corpo do Rei Bruxo, onde seus dois corações
negros batiam, cada pequena artéria iluminada como uma rede de trilhas
verdes ou as nervuras de uma folha. Mas também havia outras trilhas: trilhas de
Magia se cruzando com as artérias verdes do Rei Bruxo, minúsculas trilhas que
se entremeavam por uma floresta branca.
As mãos do Rei Bruxo tocavam a pedra por dentro, junto às de Desejo, e
ela sentia a Magia fluindo para o Rei Bruxo em pulsações ritmadas e
constantes que acompanhavam as batidas de seu coração.
Eu desejo me libertar… Eu desejo… Eu desejo… Eu desejo…, desejou Desejo.
Foi o caos na câmara de remoção de Magia: a entoação hipnótica do
bruxo foi ficando ensurdecedoramente mais forte, os elfos começaram a atirar
feitiços a esmo e os gatos-da-neve começaram a uivar e rosnar.
— RESISTA! — gritou Calíbano. — TENTE COM TODAS AS SUAS
FORÇAS! SEJA DESOBEDIENTE! Pense em Xar desafiando o pai! Fique
com raiva, Desejo, e lute! Amaldiçoe esse bruxo! Não abra mão de sua Magia
só porque acha que é o que um guerreiro deve fazer!
Desejo se lembrou de Xar mais cedo gritando com o pai, e, ao fazer isso,
viu o fluxo de Magia que ia dela para o bruxo diminuindo.
— É tarde demais… — disse Magriço. — A pedra está se movendo…
A pedra tinha começado a se mover, sutilmente no começo, depois cada
vez mais descontrolada, mais rápido, mais descontrolada, mais rápido.
Ah, pelos bigodes de bruxa e pelo visgo murmurante e pelas unhas do pé amarelas
dos mais aparvalhados ogros-do-lodo do lodaçal, pensou Magriço. O Rei Bruxo deve
ter finalmente sugado Magia suficiente para sair da pedra!
— Fugir! Fugir! Fugir! — gritavam os elfos, brilhando como meteoros.
Mas eles não podiam deixar Desejo ali sozinha. Nem Magriço, nem Xar,
nem Calíbano, nem os gatos-da-neve, nem mesmo os elfos.
Elfos tinham uma péssima reputação. As pessoas dizem que eles são
criaturas traiçoeiras e frívolas, que não sabem o significado do amor e da
lealdade.
Mas tudo que eu posso dizer é: aqueles elfos, apesar do terror diante da
pedra que se movia, do bruxo prestes a emergir, do medo da própria morte,
ficaram ao lado de seu mestre. Eles sibilavam e cuspiam como fogueiras, mas
mesmo assim não fugiram.
Sem pensar, Xar brandiu a Espada Encantada.
A lâmina brilhava.
Em outros tempos havia bruxas…
… mas eu as matei.
Ele ergueu a espada acima da cabeça, deu um grito bem alto e golpeou a
pedra com toda a sua força.
Obviamente, isso deveria ser impossível. Uma espada de ferro penetrar
uma pedra?
Mas a espada mágica se cravou na pedra até o cabo, como se Xar a
estivesse enfiando na terra.
BUUUUUMMMMM!
Cada fio do cabelo de Desejo se arrepiou e brilhou como fogo. O cheiro
de cabelo queimado se misturou à fumaça na sala. A porta explodiu, soltando-
se das dobradiças, e foi bater na parede oposta. Raios foram disparados da
superfície da pedra, e Desejo foi catapultada para longe. A menina voou para
trás e caiu com um baque terrível.
Linhas finas apareceram na superfície da rocha, iguais às rachaduras que
aparecem no ovo antes de um pintinho nascer.
— A pedra está se partindo! — gritou Tempestade-de-Desavenças. — A
pedra está se partindo!
A pedra rachou de uma ponta a outra.
Uma grande fenda irregular ziguezagueava por toda a superfície cinza.
E alguma coisa começou a sair da fenda.
No início, parecia uma manchinha de óleo negro vazando da pedra, como a
gema saindo de uma casca de ovo quebrada.
Não podia ser o Rei Bruxo, podia? Como aquela coisa que eles tinham
visto lá dentro poderia sair por uma fenda que devia ter três centímetros de
largura?
Aquele bruxo não deveria ter morrido depois que uma grande espada
mágica matadora de bruxas tinha sido cravada bem no meio da pedra onde ele
estava aprisionado?
Aquilo só podia ser sangue de bruxa.
Mas, diante dos olhos de todos, a poça negra foi crescendo.
Então o líquido se solidificou e se transformou em um ser de carne e osso,
um corpo real e vivo que se movia.
Uma espécie de espantalho coberto de penas e ensopado, pingando água.
Às vezes as pessoas tentam se convencer de que as bruxas não podem ter
sido tão ruins quanto os contos de fadas dizem que eram, mas bastava olhar
uma vez para o Rei Bruxo para saber que elas eram exatamente tão ruins
quanto as histórias diziam, talvez ainda piores.
Acredita-se que apenas olhar para uma bruxa pode matar uma pessoa de
medo. Elas podem, é claro, assumir muitas formas, algumas bastante
agradáveis, mas na maior parte do tempo consideram útil assumir a forma mais
assustadora possível.
A Coisa tinha um nariz em formato de faca, tão afiado e pontudo que
parecia possível cortar cebolas com ele. Havia apenas dois buracos negros no
lugar dos olhos, como poços profundos com algo cruel e viscoso como
mercúrio brilhando lá no fundo. Na boca, uma saliva repulsiva escorria das
presas. As mandíbulas poderiam engolir um cervo de uma bocada só. O corpo
era uma mistura de humano com pantera e tinha asas cobertas de penas negras.
De modo geral, o Rei Bruxo não era uma visão agradável.
Aquela coisa pegajosa emanava poder ao len-ta-men-te abrir as asas negras
e molhadas em toda a sua extensão. Gotas negras e fumegantes pingaram no
chão quando o ser ergueu o bico e olhou para Xar e Magriço.
E desapareceu.
— Para onde ele foi? Para onde ele foi? — perguntou Xar, olhando para
todos os lados.
Os animais uivaram de medo, e os elfos abriram a boca cheia de presas e
guincharam de medo, pois há poucas coisas mais assustadoras do que um
inimigo que não se pode ver.
Do outro lado da sala, Desejo se levantou, tremendo.
— Nada de pânico… — disse Calíbano, em pânico. — Onde ele está?
Alguém consegue ver?
Os três se viraram em todas as direções, tentando enxergar o bruxo
invisível.
Mas não havia nada lá.
— Ele vai atacar Desejo! — disse Xar.
Ele sabia disso, embora não soubesse explicar como.
E de fato o ar acima de Desejo pareceu se adensar e escurecer.
Bravamente, a Colher Encantada, em cima da cabeça de Desejo, virou-se
para encarar a escuridão.
Mas uma colher encantada é o tipo de coisa que você poderia querer ao
seu lado quando está fazendo sobremesa, não quando está diante de uma das
formas de vida mais assustadoras que já caminhou pela face da Terra.
Xar tentou tirar a espada da pedra, mas ela estava bem presa, como se
tivesse permanecido enraizada ali todo aquele tempo. Por mais forte que ele
puxasse, a arma não se movia um centímetro sequer.
Então, com outro grito horripilante, completamente desarmado, Xar, o
garoto que não se importava com ninguém além de si mesmo, lançou-se sobre
o bruxo.
Quando o bruxo guinchou, avançando sobre Desejo, era porque estava se
tornando visível ao atacar, e se tornar visível não é fácil nem indolor como
acender uma vela. Parecia, na verdade, que a atmosfera estava sendo rasgada ao
meio como uma cortina: primeiro apareceu a cabeça, derretendo nas
extremidades com faíscas e fumaça negra, e em seguida, com um cheiro
horrendo de penas queimadas, o bruxo em si, gritando como um falcão.
Desejo se abaixou por instinto.
O bruxo estava mirando em sua cabeça, pois tinha a intenção de arrancá-
la. (Que criaturas adoráveis são as bruxas, não é mesmo?)
Xar e os gatos-da-neve deram os maiores saltos de toda a Saltolândia e
pegaram o bruxo pela cauda.
Então, em vez de arrancar a cabeça, o Rei Bruxo arranhou o rosto da
menina, arrancando seu tapa-olho com as garras. Quando ele se ergueu mais
uma vez no ar, Desejo gritou e colocou as mãos no rosto enquanto caía no
chão.
Com um grito furioso, o bruxo se desvencilhou de Xar e dos gatos-da-
neve, contorcendo-se violentamente, e se virou para atacar o garoto humano
insignificante e irritante que tinha enfiado a espada na pedra e frustrado seu
último ataque.
Ele sorriu, e, ah!, pelo visco e por todas as coisas doces, suculentas e
venenosas, o sorriso de uma bruxa é uma coisa terrível. Ele abriu as
mandíbulas para engolir Xar de uma bocada só.
O bafo quente do bruxo tinha um cheiro tão repugnante de ovos podres e
morte que Xar quase desmaiou.
Pelo menos terei uma morte gloriosa, pensou Xar em meio ao pavor, não como
um zero à esquerda. Vou ser a primeira pessoa a ser morta por uma bruxa em centenas
e centenas de anos…
Era típico de Xar pensar em fama e glória mesmo à beira da morte…
O bruxo atacou. Dessa vez, não ia errar.
— Não! — gritou Magriço.
Ele viu Desejo, do outro lado da sala, tirar as mãos do rosto.
Ela ergueu a cabeça e também gritou:
— NÃO!!
O Rei Bruxo tinha arrancado seu tapa-olho, que estava caído no chão.
O olho que normalmente ficava coberto estava fechado e com um corte
profundo. Era ligeiramente maior que o olho direito, e em volta havia um
hematoma bem roxo, como se a pobre pele humana considerasse a força
abrasadora dele difícil de suportar.
Quando gritou, Desejo abriu apenas uma minúscula, ínfima fresta da
pálpebra, e a cor daquele seu olho era bem incomum. Era uma cor que
ninguém nunca tinha visto, uma cor até então inimaginada. Só consigo
descrevê-la comparando-a a outras coisas. Era uma cor ao mesmo tempo
quente e fria, uma cor que lembrava vulcões, tempestades, eletricidade,
PODER.
Desejo sentia o poder dentro de si, e era verdadeiramente aterrorizante:
raiva e desordem, uma tempestade em sua cabeça, tão violenta que fez seu
crânio doer como se ali dentro houvesse trasgos martelando-o. Todos os seus
fios de cabelo se eriçaram.
Um vento nauseante e desorientador soprou na sala, fazendo os elfos, as
penas e a poeira rolarem no ar, e o chão se inclinou e estremeceu como se
fosse um mar agitado.
Nas profundezas daquele olho extraordinário se formaram nuvens — era o
começo, a construção de ideias. Ouviu-se um minúsculo estalido, e…
… a Magia jorrou do olho de Desejo com tanta violência que dava para
ver sua cor impossível avançando, na forma de uma estrela retorcida, atingindo
o bruxo no exato momento em que ele esticou o dedo com garra para lançar
um raio penetrante de Magia translúcida em Desejo.
E então…
BUM!!!!!
O Rei Bruxo explodiu, virando uma massa de carvão e penas negras.
Magriço, Xar e os gatos-da-neve foram atirados longe.
O pó e as penas do bruxo jorravam como chuva negra.
As paredes e o chão pararam de tremer loucamente e voltaram a ficar imóveis.
Foi tudo tão de repente que algumas pedras grandes caíram do vão da porta.
— Minha nossa… Não acredito… Eu consegui! — exclamou Xar, surpreso
e alegre, apoiando-se em um dos cotovelos, tossindo e cuspindo, cambaleando
até ficar de pé em meio às nuvens de pó, tentando pegar as penas flutuantes da
bruxa. — Eu matei o Rei Bruxo! Acorde, guarda-costas assistente, acorde!
Xar cutucou com o pé o corpo inclinado de Magriço, pois, com o
choque, ele havia desmaiado mais uma vez.
— EU MATEI O BRUXO! EU CONSEGUI!
— O bruxo essstá morto! O bruxo essstá morto! O bruxo essstá morto! —
cantarolavam os elfos, dando piruetas de alegria no ar.
Atordoado, Magriço despertou, esfregando a cabeça.
— O que aconteceu?
— Ele EXPLODIU! — explicou Xar, animado, porque adorava uma
explosão. — Ele realmente EXPLODIU! Foi magnífico! A explosão mais
barulhenta que já ouvi! Não acredito que você perdeu!
Xar gritava de alegria enquanto estendia a mão para ajudar Magriço a se
levantar.
— Explodiu? — perguntou Magriço, um pouco confuso, pegando uma
das penas que ainda caíam.
— Veja! — disse Xar, apontando para todas aquelas penas ao redor. — Isso
foi tudo que restou do bruxo… A Magia de Desejo o explodiu… mas foi o
MEU golpe brilhante com a espada que o deixou fraco e permitiu que a
explosão funcionasse.
Ele deu um soco de vitória no ar.
— EU SOU O GAROTO PREDESTINADO, SINTA MEU
PODER!!!
— Ah, minha nossa, nós conseguimos! — gritou Magriço quando se deu
conta da grandeza do que tinham realizado. — Matamos o Rei Bruxo!
Feiticeiros e guerreiros unindo forças!
Xar e Magriço se abraçaram enquanto os gatos-da-neve davam saltos de
alegria pelo chão coberto de destroços, uivando de felicidade.
— É, tenho que admitir, Desejo, você ajudou um pouco com aquela coisa
esquisita que fez com o olho. O que foi AQUILO?
Xar se virou para Desejo…
… mas ela não estava lá.
Só então se deram conta de como a sala estava quieta.
As paredes não tremiam e o chão revirado estava completamente imóvel.
E não eram somente penas que caíam flutuando silenciosamente por toda a
câmara até pousarem no chão. Também havia flocos parecidos com flocos de
neve, só que com uma cor muito incomum.
Silêncio, a não ser pela queda suave das penas negras, a neve de cor
incomum e a poeira.
Mas Xar já tinha saído correndo, para não perder nenhuma das celebrações
pelo Fato de a Magia de Xar Não Ter Se Manifestado.
Enquanto isso, os elfos se juntaram, entusiasmados, às festividades e
estavam zumbindo por toda parte enquanto aprontavam das suas, como:
Tempestade-de-Desavenças se divertia pra valer jogando feitiços na comida das
pessoas, de modo que quando elas pegavam algo delicioso como uma bela fatia de torta
de maçã, ao colocarem a fatia na boca ela havia se tornado algo nojento, como uma
lesma gigante.
Sedento lançava feitiços de fedor (embora tipicamente ele errasse, e em vez de cheiro
de ovo podre, o feitiço cheirasse a deliciosos limões).
E Xar se exibia para todas as garotas mais bonitas, sem se preocupar com
nada…
Enquanto isso, o pobre e velho Calíbano estava sentado no galho de uma
árvore, preocupado, tentando consolar a si mesmo.
— Como o Rei Bruxo foi morto — dizia o pássaro para si mesmo —,
talvez as bruxas voltem a hibernar. Mesmo que despertem em nosso tempo de
vida, talvez não encontrem a garota, porque ela não vai ser tola de se aventurar
fora da fortaleza de ferro mais uma vez, porque talvez seja um daqueles raros
seres humanos que aprendem com seus erros. Talvez…
Então, como é costume entre os que se preocupam, depois de se sentir
melhor em relação a uma preocupação, ele logo em seguida começou a se
preocupar com outra.
— Xar desejou Magia e conseguiu, mas é uma Magia realmente ruim… se
o pai dele descobrir, Xar vai estar mais encrencado que nunca… — refletiu
Calíbano. — E, embora estejam satisfeitos com ele AGORA, não vai demorar
muito para que se lembrem de seu passado de desobediência: ele fez a fama,
então…
O velho corvo inclinou a cabeça para o outro lado, como se considerasse
as alternativas.
— Mas talvez Xar aprenda a controlar essa Magia antes de seu pai descobrir.
Há bondade em Xar, e essa aventura também trouxe isso à tona. A bondade em
Xar vai compensar a maldade em seu sangue… Talvez… Talvez.
— Calíbano! — gritou Xar, lá de baixo. — Pare de ficar aí todo
melancólico e preocupado!
O garoto olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Então apontou a mão com a marca da bruxa para o galho da árvore.
Xar devia ter tentado fazer Magia umas mil vezes antes, e nunca
funcionara.
Mas dessa vez foi diferente.
Dessa vez ele sentiu um formigamento extraordinário, como se todo o seu
braço estivesse dormente. Era como se um músculo estranho que ele nunca
sentira tivesse acordado e se alongado.
E, para a alegria de Xar, ele sentiu a Magia saindo das pontas de seus
dedos.
BUM!
Ela explodiu o galho no qual Calíbano estava pousado, e, com um gemido
estrangulado, o velho pássaro caiu do céu em uma confusão de penas e bateu
as asas em protesto diante do rosto sorridente de Xar.
— FUNCIONOU! — gritou o garoto, olhando para a própria mão
completamente extasiado. — TUDO VALEU A PENA! EU CONSEGUI A
MAGIA, NO FIM DAS CONTAS!
Calíbano soltou um suspiro muito, muito profundo.
A moral da aventura tinha dado completamente errado.
E levaria um pouco mais de tempo para que Xar aprendesse a ser bom.
Enquanto isso…
— Preocupe-se amanhã! — Xar abriu um sorriso enorme. — Hoje vamos
DANÇAR!
O feiticeiro o pegou pelas asas, e o velho Calíbano esqueceu as
preocupações e se sentiu um pássaro jovem de novo enquanto Xar o girava
sem parar, dançando no frio das estrelas da meia-noite.
Essa foi a história de Xar e Desejo, e de como seus caminhos se cruzaram em
uma noite escura há muito, muito tempo, em um passado remoto.
Em ilhas britânicas que ainda não eram conhecidas como Ilhas Britânicas,
quando seres mágicos ainda habitavam as florestas negras.
E, assim como Calíbano, continuo tentando descobrir a moral dessa
história.
Precisamos ouvir as histórias, porque elas sempre têm uma mensagem.
Mas o que me preocupa é… QUAL mensagem é essa?
Essa é a história de como Xar conseguiu Magia, de como Desejo descobriu
que era especial e de como o Rei Bruxo escapou da pedra.
Então todos conseguiram o que desejavam, mas não exatamente da maneira
que esperavam.
Porque — e acho que já mencionei isso uma ou duas vezes — precisamos
ter cuidado com o que desejamos.
Nossos desejos podem se tornar realidade.
Bem no começo dessa história, eu revelei que ela estava sendo contada por
um dos personagens.
Você conseguiu adivinhar quem sou?
Eu poderia ser qualquer um deles, não é?
Xar, Desejo, Magriço, o guarda-costas assistente que sonhava ser herói,
Sicórax, Encanzo, um dos elfos ou o velho e empoeirado pássaro Calíbano, o
corvo-que-já-viveu-muitas-vidas.
Posso ser qualquer um deles, seja bom, ruim ou uma mistura dos dois.
Não vou contar quem sou ainda.
Você vai ter que continuar tentando adivinhar.
Porque ainda não chegamos ao fim da história. Não estamos nem perto.
O Rei Bruxo escapou da pedra, como um gênio saído da lâmpada.
Ele vai atrás de Desejo, porque ela tem a Magia-que-atua-sobre-ferro.
E Xar tem uma Magia ruim, mas ainda não sabemos como isso vai se
desenrolar.
***
Sob o travesseiro de Desejo, o Livro das Palavras Mágicas está adormecido, mas
pode acordar a qualquer momento. Vamos torcer para que Calíbano esteja
certo e que o exemplar a ajude a lutar contra as pessoas perversas com Magia
poderosa e coração negro que podem querer se apropriar dos poderes dela…
POIS ONDE HÁ UMA BRUXA, HAVERÁ OUTRAS…
Continue torcendo.
Continue pensando.
Continue sonhando…
Assinado:
Circulando sem parar
Por estradas celestes e caminhos no mar
E naquelas horas eternas de um tempo perdido
Ainda havia poder nas palavras sem sentido.
Portas ainda voavam, pássaros ainda falavam;
Bruxas riam e gigantes caminhavam.
Tínhamos varinhas mágicas e asas invisíveis
E perdíamos nosso coração por coisas impossíveis.
Pensamentos inacreditáveis! Finais derradeiros!
Pois pode haver amizade entre feiticeiros e guerreiros.
Em um mundo onde coisas impossíveis podem acontecer
Não sei por que esquecemos os feitiços pela estrada
Quando perdemos o rumo, a floresta foi devastada.
Mas agora, velhos, também podemos desaparecer.
E vejo mais uma vez a trilha invisível da reviravolta
Que vai nos conduzir para casa e nos levar de volta…
Então peguem suas varinhas e abram suas asas imperceptíveis,
Pois vou cantar nosso amor pelas coisas impossíveis.
E quando você tomar minha mão desaparecida,
Vamos voltar para aquela terra mágica esquecida
Onde deixamos nosso coração
Muitas vidas atrás…
No tempo dos feiticeiros.
AGRADECIMENTOS:
Um time inteiro de pessoas me ajudou a escrever este livro.
Obrigada a minha maravilhosa editora, Anne McNeil, e a minha magnífica
agente, Caroline Walsh.
Um grande e especial obrigada a Jennifer Stephenson, Polly Lyall Grant e
Rebecca Logan.
Agradeço a todo mundo do Hachette Children’s Group: Hilary Murray Hill,
Andrew Sharp, Valentina Fazio, Lucy Upton, Louise Grieve, Kelly Llewellyn,
Katherine Fox, Alison Padley, Naomi Greenwood e Rebecca Livingstone.
Obrigada a todos da Little, Brown: Megan Tingley, Jackie Engel, Lisa
Yoskowitz, Kristina Pisciotta e Jessica Shoffel.
E os mais importantes de todos: muito obrigada a Maisie, Clemmie e Xanny.
E a SIMON, por seus excelentes conselhos a respeito de simplesmente tudo.
Eu não teria conseguido sem vocês.
SOBRE A AUTORA
João e Maria
Neil Gaiman e Lorenzo Mattotti
Vovó vigarista
David Walliams
Vovô deu no pé
David Walliams
Dentista sinistra
David Walliams