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Copyright do texto e das ilustrações © 2017 by Cressida Cowell

Publicado originalmente na Grã-Bretanha, em 2017, pela Hodder Children’s Books. Os direitos morais
da autora foram assegurados.
TÍTULO ORIGINAL
The Wizards of Once
REVISÃO
Rayssa Galvão
Juliana Werneck
Cristiane Pacanowski – Pipa Agência de Conteúdos Infantojuvenis
ADAPTAÇÃO DE CAPA E LETTERING
ô de casa
ARTE ORIGINAL
Jennifer Stephenson
REVISÃO DE E-BOOK
Maíra Pereira
GERAÇÃO DE E-BOOK
Intrínseca
E-ISBN
978-85-510-0320-6
Edição digital: 2018

1a edição
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente,©T0c4, 99, 3o andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
SUMÁRIO
Folha de rosto
Dedicatória
Créditos
Mídias sociais
Epígrafe
Prólogo
Parte um: Desobediência
1. Uma armadilha para capturar uma bruxa
2. Uma guerreira chamada Desejo
3. A pena da bruxa começa a brilhar…
4. Alguma coisa cai na armadilha para bruxas
5. Quando inimigos se cruzam e mundos colidem…
6. Cuidado com o que você deseja
7. O acampamento dos Feiticeiros
8. A Competição de Feitiços
9. Encanzo, o Encantador
10. Quinze minutos antes, no quarto de Xar
11. Xar recebe mais do que desejou
Parte dois: Corrigindo erros
12. Fortaleza de Ferro dos guerreiros
13. O interrogatório da rainha
14. A rainha Sicórax fica decepcionada com a filha… de novo
15. Invadindo os calabouços da rainha Sicórax
16. Um péssimo momento para a rainha Sicórax aparecer
17. A câmara de remoção de Magia da rainha Sicórax
18. Ah, céus… a história toma um rumo inesperado
19. A Magia não pode ser destruída, apenas ocultada
20. A história fica ainda pior
21. Desejos
22. Corrigindo erros e pagando o preço
23. Quando a aventura termina, os problemas começam
24. O que eles não viram
25. Mãe e filha
26. Pai e filho
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
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“Se quiser que seus filhos sejam inteligentes, leia contos de fadas para eles. Se
quiser que sejam mais inteligentes, leia mais contos de fadas.” — ALBERT
EINSTEIN
Houve um tempo em que havia Magia. Foi há muitos e muitos anos, em Ilhas
Britânicas tão antigas que ainda nem sabiam que eram as Ilhas Britânicas, e a
Magia habitava as florestas negras.
Talvez você ache que sabe como é uma floresta negra.
Vou logo avisando que não sabe. Essas florestas eram mais escuras do que
você consideraria possível, mais escuras que manchas de tinta negra, mais
escuras que a meia-noite, mais escuras que o próprio espaço sideral. E não só
isso. Eram tão disformes e emaranhadas quanto o coração de uma bruxa. Essas
áreas formavam o que hoje conhecemos como florestas selvagens, que se
estendiam em todas as direções até onde a imaginação alcançava, parando
apenas quando encontravam o mar.
Muitos tipos de humanos viviam nas florestas selvagens.
Os feiticeiros, que eram mágicos.
E os guerreiros, que não eram.
Os feiticeiros viviam nas florestas havia tanto tempo quanto qualquer um
era capaz de lembrar, e pretendiam viver lá para sempre, junto com todos os
outros seres mágicos.
Até que os guerreiros chegaram. Eles vieram dos mares, e, apesar de não
possuírem Magia, possuíam uma nova arma, que chamavam de FERRO. E o
ferro era a única coisa em que a Magia não funcionava.
Os guerreiros tinham espadas de ferro, escudos de ferro e armaduras de ferro.
Até mesmo a terrível Magia das bruxas era inútil contra esse metal.
Primeiro os guerreiros lutaram contra as bruxas, que acabaram extintas
após uma longa e terrível batalha. Ninguém chorou pelas bruxas, porque a
Magia delas era ruim, do pior tipo: daquele que arrancava as asas das cotovias,
matava por prazer e podia acabar com o mundo e com todos que nele viviam.
Mas os guerreiros não pararam por aí. Eles achavam que só porque algumas
Magias eram ruins, TODA Magia era ruim.
Por isso, eles quiseram acabar com os feiticeiros também, e com os ogros e
com os lobisomens, e com a confusão briguenta e caótica de elfos bons e elfos
maus, que brilhavam feito pequenas estrelas na escuridão, jogando feitiços
travessos uns nos outros. E quiseram acabar com os gigantes, que se moviam
devagar e com muito cuidado, maiores que mamutes mas serenos como bebês.
Os guerreiros juraram só descansar quando tivessem destruído ATÉ O
ÚLTIMO RESTINHO DE MAGIA em toda a floresta negra, cujas árvores
eles estavam derrubando o mais rápido que podiam, com seus machados de
ferro, para erguer fortalezas, acampamentos e o novo mundo moderno.
Esta é a história de um menino feiticeiro e de uma menina guerreira que
desde o nascimento foram ensinados a detestar um ao outro.
Nossa história começa com a descoberta de UMA PENA
NEGRA ENORME.
Será que os feiticeiros e os guerreiros ficaram tão ocupados lutando uns
contra os outros que não perceberam o retorno de um antigo mal?
Poderia aquela pena ser realmente de uma bruxa?
Era uma noite quente para novembro, uma noite quente demais para bruxas…
ou pelo menos era o que as histórias contavam. As bruxas estavam extintas, é
claro, mas Xar tinha ouvido falar que elas fediam e achava que estava sentindo
esse fedor ali, no silêncio da floresta negra. Um fedor suave, mas
inconfundível: de cabelo queimado misturado com cheiro de ratos mortos e
um toque de veneno de víbora. Quem sentia aquele fedor nunca o esquecia.
Xar era um selvagem garoto humano que pertencia à tribo dos feiticeiros.
Ele estava montado em um gato-da-neve gigante, em uma parte da floresta tão
escura, deformada e emaranhada que era conhecida como Bosque Maligno.
Ele não deveria estar ali, porque o Bosque Maligno era território dos
guerreiros, e se os guerreiros o capturassem... bem, o que diziam era que Xar
seria morto na hora. Decapitado, como mandava o gentil costume dos
guerreiros.
Mas Xar não parecia nem um pouco preocupado.
Ele era um rapaz alegre e desgrenhado, com um topete espetado como se
tivesse entrado sem querer num furacão invisível.

Xar estava montando um gato-da-neve chamado Gato-Rei, uma criatura


enorme e elegante que parecia um lince. Era um ser distinto demais para seu
atrevido dono. Gato-Rei tinha patas reluzentes tão perfeitas que pareciam
irreais, um pelo tão espesso quanto uma camada de neve e uma cor cinza-
prateada tão intensa que era quase azul. O gato-da-neve avançava com rapidez
e graciosidade pela floresta, as orelhas de pontas negras tremendo enquanto
corria, pois estava com medo. Só que ele era orgulhoso e tentava disfarçar.
Naquela mesma manhã, o pai de Xar — Encanzo, o Encantador, rei dos
feiticeiros — tinha lembrado a todos os feiticeiros que era proibido colocar um
dedo do pé que fosse no Bosque Maligno.
Mas Xar era o menino mais desobediente do reino. Não surgia nenhum
outro mais desobediente que ele fazia mais ou menos quatro gerações, e a
proibição só servira para encorajá-lo.
Só na semana anterior, Xar tinha...
... amarrado as barbas de dois dos mais velhos e mais respeitados feiticeiros
enquanto eles dormiam, durante um banquete. Tinha também despejado uma poção do
amor na comida dos porcos, despertando neles uma paixão desenfreada e arrebatadora
pelo professor que Xar mais detestava e os porcos o ficaram seguindo para todo lado,
soltando guinchos e dando beijos barulhentos no ar.
E tinha sem querer tacado fogo nas árvores a oeste do acampamento dos feiticeiros.

A maioria dessas coisas não tinha sido de propósito, pelo menos não
totalmente. Xar apenas se deixava levar pelo calor do momento.
Apesar de tudo isso, nada chegava perto do que Xar estava fazendo agora.
Um grande corvo negro voava logo acima da cabeça do garoto.
— Isso é uma péssima ideia, Xar — disse o corvo.
A ave falante se chamava Calíbano. Ele seria um belo corvo, mas,
infelizmente, era responsável por manter Xar longe de encrenca, e o estresse
dessa missão impossível fazia suas penas caírem.
— Não é justo expor seus animais, seus elfos e seus jovens companheiros
feiticeiros a tamanho perigo…
Por ser filho do Rei Encantador e ter uma boa dose de carisma, Xar tinha
muitos companheiros. Uma matilha de cinco lobos, três gatos-da-neve, um
urso, oito elfos, um gigante enorme chamado Esmagador e um pequeno grupo
de jovens feiticeiros. Todos o seguiam como se hipnotizados, todos tremendo
e assustados mas fingindo que não.
— Ah, você se preocupa demais, Calíbano — retrucou Xar, fazendo
Gato-Rei parar e descendo de suas costas. — Veja só esse descampado tão
belo… Está vendo? PERFEITAMENTE seguro, como toda a floresta.
Xar olhou em volta, satisfeito e despreocupado, como se estivessem em
um aprazível vale repleto de coelhos e filhotes de cervo saltitantes, não em
uma clareira fria e estranha, com teixos que se inclinavam sobre eles de
maneira ameaçadora e viscos gotejando seiva como se fossem lágrimas.
Os outros feiticeiros empunharam as espadas, e os gatos-da-neve rosnaram,
eriçando os pelos até parecerem bolinhas peludas. Os lobos andavam com
desconfiança, inquietos, tentando formar um círculo de proteção em torno dos
humanos.
Apenas os elfos mais novos estavam empolgados como Xar, mas só porque
ainda não entendiam o perigo que corriam.

Não sei se você já viu um elfo, então vou descrevê-los.


Os cinco elfos adultos pareciam vagamente uma mistura de humano com
algum inseto feroz e elegante. Quando ficavam irritados ou entediados (o que
acontecia muito), piscavam como estrelas, e uma fumaça roxa saía de suas
orelhas. Eram tão transparentes que dava para ver o coração batendo dentro
deles.
E havia também três elfos mais jovens, que, por ainda não serem adultos,
eram conhecidos como “elfolinos”. O favorito de Xar era uma criaturinha
ávida e meio estúpida chamada Sedento.

— Ah, é linda! É linda! — gritou Sedento. — É a clareira mais incrivilhosa que já vi! E
que flor sensacionástica é essa? Já sei! É um lírio! É uma margarida! É uma azaleia! É uma couve-flor!
Ele voou até os galhos mais altos de uma árvore especialmente tenebrosa e
sinistra e se empoleirou na ponta de uma das exuberantes flores, que tinham
espinhos ameaçadores na extremidade das folhas e na verdade se chamava
armadilha devoradora de elfos. A flor se fechou com a rapidez de uma ratoeira,
prendendo Sedento.
Calíbano pousou no ombro de Xar e soltou um suspiro profundo.
— Não gosto de dizer “eu avisei” — começou ele —, mas estamos nesta
clareira perfeitamente segura no Bosque Maligno não faz nem um minuto e
você já perdeu um companheiro para uma planta carnívora.
— Bobagem! — retrucou Xar, bem-humorado. — Eu não perdi nada. É
isso que significa ser um líder. Sempre salvo meus companheiros quando eles
estão em perigo, porque é isso que um bom líder faz.
Xar subiu na árvore. Sessenta metros acima, equilibrando-se por pouco em
dois galhos que estalavam como se fossem gravetos, pegou seu punhal e abriu a
armadilha devoradora de elfos, libertando um pequeno e ofegante Sedento
bem no último minuto.
— Eu bem! — guinchou Sedento. — Eu BEM! Não sinto perna esquerda minha, mas eu
bem!
— Não se preocupe, Sedento! São só os sucos digestivos da flor, você vai
voltar a sentir sua perna daqui a pouco! — garantiu Xar, enquanto descia da
árvore. — Estão vendo? Sou um grande líder! Sigam-me e vão ficar bem.
Os jovens feiticeiros pareciam impressionados.
Naquele momento, o irmão mais velho de Xar, Pilhado, saiu das sombras
montado em um grande lobo cinza. Atrás dele vinha um séquito ainda maior
de elfos, animais e jovens feiticeiros.
Xar ficou tenso, porque detestava o irmão.
Pilhado era bem maior que Xar e quase tão alto quanto o pai. Um rapaz
brilhante em Magia, bonito, inteligente e que para completar, sabia muito bem
de todas as suas qualidades. Era o feiticeiro esnobe mais esnobe que se pode
imaginar. E ele vivia espionando Xar, só esperando um bom momento para
criar problemas para o irmão.
— O que você está fazendo aqui? — vociferou Xar, desconfiado.
— Ah, eu segui você só para ver que tipo de estupidez inútil meu
irmãozinho estava aprontando dessa vez — respondeu Pilhado, com a voz
arrastada.
— Grandes líderes como eu não fazem expedições inúteis! — retrucou
Xar, furioso. — Estamos aqui por uma RAZÃO. Não é da sua conta, mas…
Xar pensou em contar alguma mentira elaborada para explicar o que estava
fazendo ali, mas não resistiu à tentação de se exibir.
— … nós vamos capturar uma bruxa!
Ahhhhhhhh céus, ah céus, ah céus, ah céus.
Era a primeira vez que Xar anunciava para seus seguidores o propósito
daquela expedição, e era um propósito para lá de desagradável.
Uma bruxa!
O urso, os gatos-da-neve e os lobos ficaram imóveis por um segundo.
Depois, começaram a tremer. Até Ariel, a mais destemida dos elfos de Xar,
disparou para o alto e desapareceu de vista.
— Tenho certeza de que existem bruxas nesta parte do Bosque Maligno
— sussurrou Xar, animado, como se uma bruxa fosse um presente incrível que
ele estivesse oferecendo a todos.
Fez-se um longo silêncio, e em seguida Pilhado e seus companheiros
feiticeiros caíram na gargalhada.
Eles riram sem parar.
— Fala sério, Xar — zombou Pilhado quando conseguiu recuperar o
fôlego. — Até você deve saber que as bruxas estão extintas há séculos.
— Ah, sim — concordou Xar. — Mas e se algumas sobreviveram e
ficaram escondidas esse tempo todo? Veja o que encontrei aqui nesta clareira
ontem!
E tirou da bolsa uma pena negra gigante.
Era enorme. Parecia uma pena de corvo, só que muito, muito maior. De
um preto suave, desbotando na borda para um verde-escuro que brilhava,
como a cabeça de alguns patos.
— É uma pena de bruxa… — sussurrou Xar.
Pilhado abriu seu sorriso mais arrogante.
— Isso é de algum pássaro grande e velho — zombou. — Deve ser de um
corvo gigante… Um monte de bichos estranhos vive aqui, no Bosque
Maligno.
Xar guardou a pena no cinto.
— Nunca vi um pássaro tão grande assim — retrucou, aborrecido.
— Essa história de bruxas é uma besteira — disse Pilhado, sorrindo. — Só
um idiota sem cérebro como você não saberia disso. As bruxas foram extintas.
Calíbano desceu e pousou na cabeça de Xar.
— Extinto é uma palavra muito definitiva — observou o corvo.
— Está vendo? — disse Xar, triunfante. — Calíbano é uma ave de
presságios, que vê o futuro e o passado. Ele não acha que as bruxas estão
extintas!
— Eu só sei que, se por algum acaso as bruxas não estiverem extintas, você
não vai querer encontrar uma delas em um lugar como este — disse Calíbano,
tremendo. — Por que quer encontrar uma bruxa, Xar?
— Para roubar a Magia dela.
Outro momento de silêncio carregado de pavor.
— Irmãozinho, esse é o plano mais burro que já ouvi em toda a história dos
planos burros.
— Você só está com inveja porque a ideia não foi SUA.
— Tenho algumas perguntas para você — disse Pilhado. — Como
pretende capturar a bruxa, para início de conversa?
— Foi para isso que eu trouxe a rede — respondeu Xar, pegando-a da
bolsa para mostrá-la. Uma coisa era certa: o menino tinha disposição. — Um de
nós vai se oferecer para fazer um cortezinho de nada na mão, e aí o sangue vai
atrair a bruxa…
— Ah, que ótimo — zombou Pilhado, sorrindo. — Então agora você vai
ferir um dos seus pobres seguidores? Em uma floresta infestada de lobisomens
famintos e bafos-de-rogro farejadores-de-sangue? Fala sério, ficou doido de
vez… Esse plano é tão patético quanto você…
Xar o ignorou.
— Quando a bruxa atacar, vou jogar a rede, simples assim. Próxima
pergunta.
— Tudo bem. Lá vai: se nenhum feiticeiro vivo jamais viu uma bruxa,
como você vai saber quando a encontrar?
Xar abriu a bolsa novamente e tirou um livro do tamanho de um atlas,
intitulado Livro das Palavras Mágicas.
Todo feiticeiro ganhava um Livro das Palavras Mágicas ao nascer. O
exemplar de Xar era bem surrado. Uma parte estava invisível (tinha caído em
uma poção da invisibilidade); outra parte estava tão chamuscada que mal dava
para ler (foi quando Xar botou fogo no acampamento dos feiticeiros), e várias
páginas haviam se soltado (aventuras demais para contar aqui).
Xar abriu o livro no “sumário”, onde as vinte e seis letras do alfabeto
estavam escritas em uma grande caligrafia dourada. Tocando uma letra por
vez, ele buscou a palavra “bruxa”, e, vruuuuuum, as páginas do livro se viraram
sozinhas. Pareceu durar uma eternidade, os primeiros capítulos sumindo
enquanto o livro seguia para os capítulos seguintes, como um baralho
interminável, até que finalmente parou no lugar certo.
— Que estranho… aqui não diz nada sobre a aparência delas… mas as
bruxas são verdes… eu acho… — disse Xar.
Alguns acreditavam que as bruxas podiam ficar invisíveis e que seu sangue
era ácido. Outros achavam que elas esguichavam sangue pelos olhos.
— Tenho certeza de que vamos saber quando virmos uma — concluiu
Xar, fechando o Livro das Palavras Mágicas com impaciência. — Elas devem ser
bem horríveis, não é?
— Terrivelmente horríveis — respondeu Calíbano, muito sério. — As
criaturas mais aterrorizantes que já caminharam pela face da terra…
— Então, vamos imaginar que, por um milagre, você consiga capturar
uma bruxa… Como vai convencê-la a lhe dar sua Magia? — perguntou
Pilhado. — Acho que essas bruxas verdes invisíveis que esguicham sangue
ácido e que são as criaturas mais aterrorizantes que já caminharam pela face da
terra não vão simplesmente abrir mão da Magia se você pedir por favor…
— Aha! — exclamou Xar. — Eu já pensei nisso.
Com um grande floreio, ele calçou as luvas, enfiou a mão na bolsa e tirou
lá de dentro… uma panela pequena.
Silêncio.
— Você sabe que isso é uma panela, não sabe? — perguntou Pilhado.
— Não é uma panela qualquer — retrucou Xar, confiante. Ele respirou
fundo antes de fazer a chocante revelação: — Esta panela é de FERRO…
A maioria dos feiticeiros deu um passo para trás, horrorizada. Os elfos
soltaram gritinhos. O único que não ficou impressionado foi Pilhado.
Na verdade, ele riu. Riu tanto que Xar pensou que o irmão fosse cair de
cara no chão.
— Isso é bom demais… Você vai enfrentar uma bruxa com uma panela! —
zombou ele. — Você não é um “grande líder” coisíssima nenhuma, Xar, você
é um mentiroso e um inútil. Nosso pai tem vergonha de você, e agora eu
entendi por que quer tanto roubar a Magia de uma bruxa. Vai haver uma
Competição de Feitiços na Festa de Inverno esta noite, e você não consegue
lançar feitiços… XAR NÃO CONSEGUE USAR MAGIA — provocou
Pilhado.
Primeiro, Xar ficou vermelho de vergonha; depois, roxo de raiva.
O fato de ele ainda não conseguir lançar feitiços era uma daquelas feridas
secretas que não queremos que ninguém veja. Os feiticeiros não nasciam
mágicos; a Magia se manifestava por volta dos doze anos. Xar tinha treze, e isso
ainda não havia acontecido.
Ele já tinha tentado bastante. Passara horas e horas tentando. Coisas bem
simples, como mover objetos com a força da mente. Mas era como se aquilo
exigisse um músculo que ele não tinha. “Relaxe”, todos diziam. “Relaxe e vai
acontecer.” Era como tentar pegar algo sem ter braços.
E, nos últimos tempos, ele começara a se preocupar… E se NUNCA
acontecesse? Era uma calamidade improvável, mas que vergonha seria para
toda a família se um dos filhos do Rei Encantador NÃO TIVESSE MAGIA.
Pensar nisso deixou o garoto um pouco enjoado.

— Pobrezinho… — cantarolou Pilhado, com crueldade. — Acha que é


gente grande, mas não consegue fazer nem uma magiazinha para contar
história…
— A minha Magia VAI se manifestar, mas até lá, eu juro... — disse Xar,
furioso, os olhos quase fechados de raiva, mal conseguindo enxergar — ... eu
JURO que vou capturar uma bruxa e extrair tanta Magia dela, Pilhado, que
você vai se ARREPENDER do que disse…
— Ah, é? — disse Pilhado, sorrindo.
Ele enfiou a mão na bolsa e pegou seu cajado. O cajado de um feiticeiro
era mais ou menos do tamanho de uma bengala e tinha a função de canalizar a
Magia.

— Seus feitiços não vão funcionar em mim enquanto eu estiver segurando


FERRO! — rugiu Xar, avançando para acertar Pilhado com a panela.
Isso era verdade, mas, infelizmente, ao avançar na direção do irmão, Xar
tropeçou em um longo ramo de amoreira e a panela acabou escapulindo de
suas mãos enluvadas. O objeto saiu voando, passou por cima da cabeça de
Pilhado e caiu na vegetação rasteira.
Pilhado apontou o cajado para Xar e sussurrou um feitiço. O corpo de
Pilhado estremeceu quando a Magia o atravessou e saiu por sua mão, passando
para o cajado — um raio rápido, violento e quente explodiu da extremidade
do cajado, atingindo as pernas de Xar.
O garoto parou no meio do ataque, os pés presos ao chão.
— HA, HA, HA, HA, HA! — riram os seguidores de Pilhado.
— RETIRE O FEITIÇO! — gritou Xar, tentando erguer os pés, mas era
como se tivessem virado chumbo.
— Hum, acho que não vou retirar, não… — retrucou Pilhado, sorrindo.
Xar perdeu a paciência.
Estalou os dedos.
RIIAAAUUU!
Em um piscar de olhos, Gato-Rei se lançou sobre Pilhado arreganhando
sua boca enorme, uma máquina mortífera de quase quatrocentos quilos.
Gritando de medo, Pilhado ficou encurralado contra o tronco de uma árvore,
olhando apavorado para a cara aterrorizante de Gato-Rei, a centímetros da
sua. Os dentes do bicho, cravados no ombro do rapaz, pareciam quatro facas.
E já estava até saindo sangue da mordida.
Nenhum dos animais e elfos de Pilhado teve tempo de fazer alguma coisa
para protegê-lo.
— Mais um estalar de dedos — avisou Xar, cheio de raiva —, e o Gato-
Rei arranca a sua cabeça.
— Trapaceiro! — gritou o irmão mais velho. — Isso é jogo sujo! Você
não pode usar seus animais para atacar outro feiticeiro!
— RETIRE O FEITIÇO!
Pilhado estava com tanta raiva quanto o próprio Xar, mas o que poderia
fazer?
Ele apontou o cajado para o irmão e retirou o feitiço. Os pés de Xar
voltaram ao normal, então ele fez um sinal para que Gato-Rei soltasse Pilhado.
— Você é louco… seu maluco… — esbravejou o mais velho. Ele olhou
perplexo para os quatro furos em seu ombro. — Esse bicho me MORDEU…
Se você SE ATREVER a entrar na Competição de Feitiços, vou
ANIQUILAR você…
Pilhado se voltou para os seguidores de Xar e gritou:
— Quem quer voltar COMIGO, em vez de ficar aqui com esse maluco
estúpido e fazer uma armadilha ridícula para bruxas?
Um a um, os seguidores de Xar se afastaram dele e foram em direção a
Pilhado, montando em seus lobos e gatos-da-neve e murmurando coisas
como: “Sinto muito, Xar… isso é meio demais, até para você” e “Mesmo que
as bruxas não estejam extintas, elas são malignas, Xar… não deveríamos estar
aqui…”.
— Está vendo? — disse Pilhado, triunfante. — Um grande líder tem que
ter seguidores para liderar, e ninguém quer seguir um lunático sem Magia. Boa
sorte com sua bruxa, fracassado.
E então Pilhado partiu montado em seu lobo, seguido pela maioria dos
feiticeiros.
— Covardes! — rugiu Xar, quase chorando de tanta raiva.
Ele correu até os arbustos para recuperar a panela e sacudiu o punho para
as costas dos feiticeiros que iam embora.
— VAMOS MOSTRAR PARA VOCÊS! VAMOS CAPTURAR
UMA BRUXA, PEGAR A MAGIA DELA E FICAR TÃO MÁGICOS
QUE VAMOS VOAR SEM PRECISAR DE ASAS!
Com um suspiro, Xar se virou para o que restava de seus companheiros
desmazelados.
Por que Pilhado sempre tinha que estragar tudo?
Não restava quase ninguém do grupo de Xar, apenas três jovens feiticeiros
cuja Magia ainda não havia se manifestado: uma menina chamada Heliotrópia
e dois meninos, Afobado e Obtuso, este último um garoto grandalhão com
orelhas também imensas, que tinha chegado aos dezessete anos sem demonstrar
nem um único sinal de Magia e que ainda por cima era um pouco lento.
— Droga, só sobraram os fracassados — lamentou-se Xar.
— Ei, Xar, isso é um pouco injusto — protestou Afobado.
— Nós vamos mesmo voar sem asas? — quis saber Obtuso, agitando os
braços compridos como se fosse um pássaro.
— É claro que vamos — prometeu Xar, esfregando as mãos, animado,
pois nunca conseguia ficar desanimado por muito tempo. — Aqueles covardes
vão se arrepender tanto de terem nos abandonado…
Ele se voltou para os três companheiros restantes.
— Obtuso, você é o mais alto, então vai fazer a maior parte da escavação
— ordenou Xar. — Afobado, sinto muito, mas vamos ter que machucar você
um pouquinho para atrair a bruxa para a armadilha… E se alguma coisa der
errado…
— Você não disse que essa missão era totalmente segura? — lembrou
Afobado, desconfiado.
— Bem, nada é TOTALMENTE seguro… A vida é cheia de perigos, não
é? Afinal, podemos morrer subindo em uma árvore, como quase aconteceu
comigo agora há pouco.
— Não se trata apenas de subir em uma árvore! — disparou Calíbano, lá
de cima, conforme os três jovens feiticeiros começavam a obedecer a Xar. —
Isto é uma invasão intencional do território dos guerreiros na tentativa de
preparar uma armadilha para a criatura mais assustadora que já habitou estas
terras!
Calíbano suspirou.
Ninguém daria ouvidos a ele.
O corvo ficou rígido, empoleirado no galho da árvore, e meteu a cabeça
sob a asa. Como se, enquanto mantivesse a cabeça ali e não pudesse ver o
futuro, o futuro não aconteceria.
Mas é claro que o velho pássaro sabia que isso não ia funcionar.
Nesse meio-tempo, um robusto e aterrorizado pônei de guerra que levava dois
jovens guerreiros na garupa tinha saído em segredo da fortaleza dos guerreiros,
oculto pelo manto da escuridão.
Os guerreiros não podiam sair da fortaleza depois do cair da noite, porque
morriam de medo dos seres mágicos que viviam na floresta.
A Fortaleza de Ferro dos guerreiros era a maior construção que se pode
imaginar, cercada por sete grandes fossos cavados no entorno da colina e com
treze torres de vigilância. Como aqueles guerreiros deviam ter medo de tudo
que fosse mágico! Afinal, para terem construído uma fortaleza tão grandiosa,
branca como osso, com janelinhas estreitas que pareciam olhos de gato!
E mesmo assim aquele pônei de guerra tinha conseguido sair sem ser visto
pelas ávidas sentinelas das muralhas. E talvez, apenas talvez, aquelas sentinelas
estivessem certas em olhar com tanto temor para a interminável floresta verde
que os cercava e engolia a fortaleza; sempre vigiando, espreitando, atentos ao
que poderia haver lá fora.
Porque alguma coisa RUIM observava o pônei, do alto das árvores.
É cedo demais para contar o que era essa coisa.
Muitas criaturas ruins viviam no Bosque Maligno. Podia ser um
monstrogato. Podia ser um lobisomem. Podia ser um rogro (rogros são
parecidos com ogros, só que muito mais assustadores).
Só o tempo dirá o que era.
Mas não era surpresa que o pônei tivesse chamado a atenção daquela coisa.
Ele galopava ruidosamente pela vegetação rasteira, e, montados em suas
costas, estavam uma princesa guerreira magricela e seu guarda-costas assistente,
Magriço. Os dois usavam capa vermelha por cima da armadura, por isso se
destacavam como se fossem estrelas no meio da floresta verde-escura.
Só chamariam mais atenção se estivessem levando um grande alvo no alto
da cabeça ou uma placa dizendo ME COMAM, OH, MONSTROS
FAMINTOS DO BOSQUE MALIGNO.
A princesa tinha um nome muito longo e majestoso, mas todos a
chamavam de Desejo.
As princesas guerreiras, é claro, eram altas e muitíssimo assustadoras —
como a mãe de Desejo, a rainha Sicórax.
Mas Desejo não era nada disso.
Tinha um rosto curioso e interessado demais no mundo a sua volta e
cabelos finos e espetados demais, como se tivesse acabado de levar um choque.
Um tapa-olho preto cobria o olho esquerdo, e ela parecia estar procurando
algo com o outro.
— Não devemos vir aqui fora sozinhos durante o dia, muito menos à
noite! — avisou Magriço, o guarda-costas assistente, olhando de relance para
trás.
Magriço não era o guarda-costas costumeiro daquela princesinha esquisita.
O guarda-costas oficial estava doente, acometido por uma gripe terrível.
Mesmo tendo apenas treze anos, Magriço tinha conseguido o cobiçado
cargo de substituto de guarda-costas real porque era muito estudioso. Ficara
em primeiro lugar nas provas de Artes Avançadas em Guarda-Costismo.
No entanto, aquela era a primeira vez que ele de fato fazia o trabalho, e
estava achando um bocado mais difícil do que esperava.
Para começar, a princesa não obedecia a ninguém.
E, sinceramente, ainda que estudasse muito, Magriço não gostava muito de
lutar. A ideia de se ver em uma situação de violência real lhe dava mal-estar.
— Lá fora tem lobisomens, monstrogatos e gigantes — disse Magriço. —
E também ursos, jaguares, feiticeiros e bafos-de-rogro… e até os anões são
terríveis, quando estão caçando em bando.
— Ah, não seja tão pessimista, Magriço! — respondeu a princesa. —
Vamos voltar assim que encontrarmos meu bichinho de estimação. Além do
mais, é tudo culpa sua. Você o assustou quando disse que ia denunciá-lo para
minha mãe, então ele entrou em pânico e fugiu.
— Eu só estava tentando salvar você de mais encrenca! — retrucou
Magriço. — Você não pode ter bichos de estimação! É contra as leis dos
guerreiros!
Magriço realmente acreditava nas leis. Ele esperava subir na carreira,
passando de guarda-costas assistente para Defensor da Fortaleza, e não chegaria
LÁ burlando as leis.
— E você está especialmente proibida de ter esse tipo de bicho de
estimação…
— Ele deve estar apavorado — comentou Desejo, preocupada. — Não
podemos deixá-lo sozinho no meio dos terrores do Bosque Maligno. E ele
pode estar sendo perseguido por bocas-de-presa famintos ou algo pior…
AHA! — exclamou, com um alívio triunfante. — LÁ ESTÁ ELE!
Ela puxou as rédeas do pônei para fazê-lo parar e pegou um ser que corria
pela vegetação rasteira.
— Que alívio!
Ela acariciou o ser e fez sons tranquilizadores, como se dissesse: “Não se
preocupe, está tudo bem, você está seguro agora, está comigo”, o tipo de som
capaz de acalmar um cão, um gato ou um coelho petrificado que estivesse
correndo assustado e completamente sozinho pelo Bosque Maligno depois do
anoitecer.
Mas aquele animal não era um cachorro nem um gato, que dirá um
coelho.
— Seu bicho de estimação é uma COLHER! — objetou Magriço.
Era isso mesmo.
O animal de estimação da princesa era uma grande colher de ferro.

— Ah, é — disse Desejo, como se só então tivesse reparado, voltando a


montar no pônei e secando a colher na roupa.
— E a colher está VIVA, princesa, está viva! — exclamou Magriço,
sentindo um calafrio quando olhou para a colher. — O que significa que é um
objeto mágico proibido. Não viu os avisos por toda a fortaleza? Toda Magia é
terminantemente proibida! Objetos encantados são proibidos! Animais de
estimação também! Toda Magia deve ser informada a um superior, para que
sejam feitas análises e ela seja eliminada!
— Não sei se ele é mesmo um objeto mágico — disse Desejo,
esperançosa. — Só está um pouco torto…
— É claro que ele é mágico, princesa! — retrucou Magriço, perdendo a
paciência. — Colheres comuns não ficam pulando para cima e para baixo
pedindo carinho; colheres comuns ficam paradas e ajudam a comer o jantar!
Olhe só para esta! Está fazendo uma reverência para mim!
— É verdade — constatou Desejo, orgulhosa. — Ele não é inteligente?

Magriço suspirou alto.


— Isso não é nem um pouco inteligente. Estamos quebrando tantas regras
que é difícil saber por onde começar. Onde você encontrou essa colher?
— Ele apareceu no meu quarto um dia, como se fosse um ratinho
selvagem. Dei um pouco de leite, e ele ficou comigo desde então… Foi bom,
porque eu me sentia um pouco só antes de ele aparecer. Você nunca se sentiu
só, Magriço?
— Na verdade, sim. Desde que fui nomeado seu guarda-costas assistente,
todos os outros guarda-costas assistentes disseram que eu fiquei metido e
pararam de falar comigo e… Espere aí! Não é essa a questão! A questão é que
se um objeto encantado aparece do nada em uma fortaleza de guerreiros, você
tem que informar à sua mãe, a rainha Sicórax, imediatamente, para que ela
remova a Magia. É o que você deve fazer, e NÃO adotá-lo como seu animal
de estimação.
À menção do nome da rainha, a colher se sacudiu todinha, como se
estivesse aterrorizada, e pulou para dentro do colete de Desejo, escondendo-se
na armadura. Só a parte côncava que formava seu rosto ficou para fora,
emitindo uma estranha luz mágica.
— Está vendo? Você o assustou de novo! — ralhou Desejo. — A questão
é que parece que ele não quer ter sua Magia removida.
— É um processo perfeitamente indolor…
— Mas ele não quer.
— Tudo bem — retrucou Magriço, cruzando os braços com
determinação. — Nesse caso, você tem que devolvê-lo à natureza. O lugar
dele é aqui, nesta selva assustadora, com todos os outros monstros e seres
mágicos. São o povo dele. Não vou compactuar com isso, princesa. Você
definitivamente não pode levá-lo de volta para a Fortaleza de Ferro, não pode
ficar com essa colher como seu bichinho de estimação. É contra a lei. E se
alguém descobrir, vai ser a mais terrível de todas as encrencas.
Desejo fez uma cara muito triste.
— Mas eu meio que me identifico com a colher. Ele é como eu, não se
sente à vontade com as outras colheres…
— Ele não se sente à vontade com as outras colheres porque ele está vivo,
princesa, vivo! — interrompeu Magriço.
— E todos os outros guerreiros me ignoram — continuou Desejo. —
Você e esta colher são meus únicos amigos. Se eu me separar dele, só vai
sobrar você.
— Bem, tecnicamente, eu também não posso ser seu amigo, porque você é
uma princesa e eu sou um criado. Essa é a lei.
— Então, se eu abandonar a colher, vou perder meu único amigo!
— Vou ser bem sincero, Desejo. — Magriço estava tão chateado que se
esqueceu de chamá-la de “princesa”. Estava na hora de algumas palavras duras.
— Eu gosto de você, sei que tem boas intenções, mas vamos encarar a
realidade: você não tem amigos porque é um pouco esquisita, e esquisitice não
é algo muito bem-visto na fortaleza dos guerreiros. Você precisa tentar ser
mais normal. E o primeiro passo para a normalidade é se livrar dessa colher
mágica.
Desejo tentou um último e desesperado argumento:
— Mas minha mãe tem objetos encantados! O que me diz disso?
Para horror de Magriço, Desejo tirou da bainha uma grande espada
ornamentada.
Não era uma espada comum. Tinha um cabo muito antigo, e dava para
ver, por baixo da fuligem esverdeada, que era ornamentada, com desenhos de
folhagens entrelaçadas, viscos e folhas de outras árvores sagradas serpenteando
por toda a lâmina.
Em um dos lados estavam gravadas as seguintes palavras, em uma caligrafia
muito elegante e antiga:
Em outros tempos havia bruxas…
E quando Desejo virou a lâmina, do outro lado estava gravado:
… mas eu as matei.
— Onde você conseguiu essa espada?! — perguntou Magriço,
horrorizado.
— Bem, na verdade foi bem esquisito. Eu a encontrei jogada no pátio
central ontem à tarde, e não parecia ser de ninguém, então fiquei com ela.
— Você não ouviu o comunicado hoje, no café da manhã, sobre uma espada muito
valiosa que sumiu dos calabouços da sua mãe? — perguntou Magriço, quase sem
fôlego. — Não achou que poderia ser ESSA espada? Não pensou que pegar coisas que
não lhe pertencem poderia ser ROUBO?
— Sim — admitiu Desejo, alisando a espada, pensativa. — Mas eu só ia
ficar mais um pouquinho com ela, fingindo que era minha. Eu sou tão
comum, e ela é tão especial... Seria maravilhoso ter algo tão especial, não acha?
— Não, não acho! Achar coisas é PERIGOSO! Os Defensores da Fortaleza
Real estão revirando a fortaleza inteira procurando essa espada que você ROUBOU!
— Eu não roubei, só peguei emprestada. Já ia devolver, mas aí você
assustou a colher, e eu pensei que precisaríamos de algo especial para nos
defender, já que teríamos que entrar sozinhos no Bosque Maligno. Tenho
uma intuição muito forte de que essa espada talvez seja encantada — finalizou
Desejo, triunfante. — Se até minha mãe tem objetos encantados, eles não
devem ser ruins!
— Sua mãe assustadora não guarda a espada como um ANIMAL DE
ESTIMAÇÃO! — gritou Magriço, agitando os braços compridos e magricelas.
— Não dá para deixar animais de estimação em CALABOUÇOS! Ela a
trancou lá por segurança!
Desejo olhou para a espada com uma expressão ligeiramente preocupada,
como só então se desse conta disso.
— Ahhhh… siiiimmmm… agora que você falou, até que faz sentido.
Realmente não parece algo típico da minha mãe… ela não gosta de nada
mágico, não é?
— Onde você andou nos últimos treze anos? — esbravejou Magriço. —
Tem avisos enormes por toda a fortaleza, não é possível que você não tenha
visto! Sua mãe DETESTA Magia! Ela ODEIA Magia! Ela jurou nunca
descansar enquanto não livrar A FLORESTA INTEIRA DE QUALQUER
COISA MÁGICA PARA TODO O SEMPRE!
Desejo fechou a cara.
— Sim, e tenho que confessar que não entendo isso. Só porque
ALGUMAS Magias são ruins, não quer dizer que TODA Magia seja ruim,
sabe?
— Não é para entender! — guinchou Magriço. — Você é uma
GUERREIRA, não tem que ficar fazendo perguntas! É muito simples: você
só precisa obedecer às regras!
Desejo de repente pareceu muito desanimada.
A colher, que agora estava na sua cabeça, caiu.
— Maldição, você está certo — reconheceu ela, com tristeza. — Eu fiz
besteira de novo, não fiz?
— Pode apostar que sim. — E acrescentou, apressado: — Majestade.
Na empolgação do momento, acabou esquecendo as regras dos guerreiros
sobre “como se dirigir à realeza corretamente”.
Esse era o problema com Desejo.
Na companhia dela, qualquer um acabava quebrando as regras também,
sem nem se dar conta.
— Minha mãe vai ficar uma fera se descobrir, não vai? — perguntou
Desejo, ainda mais triste.
— Uma verdadeira fera — concordou Magriço, com um arrepio só de
imaginar.
— Eu queria ser NORMAL. O que eu posso fazer para mudar?
Magriço suspirou, aliviado, pois parecia que finalmente a princesa estava
criando juízo.
— Tudo bem, não fique triste, nem tudo está perdido — disse ele, dando
um tapinha nas costas dela. — Você não teve intenção de fazer nada errado. É
só libertar essa colher AGORA MESMO e levar a espada de volta para a
fortaleza. E tem que parar de fazer esse tipo de coisa e começar a se comportar
como uma princesa guerreira normal e… Ei, o que foi isso?
Os dois ouviram um ruído repentino logo acima, como um galho se
partindo sob o peso de alguma criatura.
Estavam tão ocupados discutindo que acabaram esquecendo que não
estavam na segurança da Fortaleza de Ferro, prestes a comer um jantar
esplêndido (os guerreiros apreciavam muito a comida).
Estavam sozinhos no Bosque Maligno, ao cair da noite.
E, pela primeira vez, perceberam que estavam sendo observados.
No começo deste capítulo eu mencionei que algo ruim estava observando
os dois, algo silencioso e perigoso, do alto das árvores, não mencionei?
Desejo sentiu um calafrio. Os cabelos da nuca ficaram eriçados como os
espinhos de um porco-espinho. Ela olhou em volta, examinando as árvores
escuras e os galhos retorcidos, deformados como os dedos nodosos de um
trasgo.
Olhou para cima, mas não viu nada, talvez apenas um vulto, um leve
brilho numa área mais densa, como se o ar ali tivesse sido envenenedo com
algo terrível — e realmente tinha. E o frio que irradiava do centro daquela
densidade brilhante era um frio que você nunca sentiu.
Mais frio que as profundezas mais frias do oceano ao norte, mais frio que
gelo, mais frio que as calotas polares, mais frio até mesmo que a própria morte.
A névoa congelante do passado longínquo da floresta selvagem se infiltrou
por baixo da armadura de Desejo e penetrou em seus ossos.
Seria a imaginação de Desejo, ou algo acima deles parecia SORRIR?
Ela baixou o visor do capacete.
A colher subiu mais uma vez na cabeça da menina e farejou o ar.
De repente, a colher ficou rígida, dando a impressão de que sentira a
presença de algo terrível… e mergulhou na armadura de Desejo, para se
esconder.
— Corra, pônei, corra! — gritou a princesa, e o poneizinho exausto
disparou em um galope trôpego e aterrorizado.
Caso alguém os visse naquele momento, teria pensado que os dois estavam
loucos, pois não havia nada os perseguindo.
No entanto, alguma coisa muito estranha estava acontecendo.
Desejo e Magriço viam, acima, apenas a escuridão do céu noturno, estrelas
e árvores, mas a maneira como os galhos se mexiam sugeria que havia uma
presença invisível no encalço deles.
O ar se movendo acima dos dois era tão frio que queimava a testa de
Desejo, e, conforme o pônei galopava cada vez mais rápido, o vento soprando
atrás deles começou a fazer um ruído estranho, como nenhum vento que
Desejo já tivesse ouvido antes.
— Viu, Magriço? Não está feliz por eu ter trazido a espada? Achei que
podíamos precisar — disse ela, ofegante, tentando não entrar em pânico.
— Feliz? Feliz? Podíamos estar sentados com o jantar bem na nossa frente,
na segurança da fortaleza dos guerreiros. E acho que hoje ia ser hambúrguer de
veado, o meu favorito… E esse pônei está indo na direção errada! — berrou
Magriço. — A fortaleza é para o outro lado!
Mas o que quer que os estava perseguindo não queria que os dois fossem
para a fortaleza, então os perseguia conduzindo-os para dentro do Bosque
Maligno.
— Alguém sabe que estamos aqui? — gritou Magriço, que tinha pegado
seu arco e atirava a esmo, desesperado, mesmo sendo um péssimo arqueiro e
não conseguindo ver o alvo. — Será que vão mandar equipes de busca?
— Acho que não — respondeu Desejo, tentando descobrir o que os
perseguia. — Pelo menos não até de manhã. Eu disse para minha mãe que ia
dormir cedo porque estava com dor de cabeça.
— Brilhante — retrucou Magriço. — Para falar a verdade, acho que quem
está sentindo um pouco de dor de cabeça sou eu… Não se preocupe,
princesa… Não precisa se preocupar… Estou aqui para protegê-la…
Desejo brandiu a colher na direção de seu perseguidor. Ela podia ser uma
princesa guerreira meio esquisita, mas tinha coragem.
— VOCÊ AÍ: É MELHOR NÃO NOS SEGUIR! — gritou ela para o
vazio estridente. — Porque NÓS temos uma COLHER ENCANTADA!
— A espada, princesa — murmurou Magriço por entre os lábios pálidos de
medo. — A espada soa mais assustadora…
— E UMA ESPADA! — gritou Desejo, empunhando a espada na mão
direita e a colher na esquerda. — Uma espada tão perigosa que estava
TRANCADA NOS CALABOUÇOS DA MINHA MÃE!
Se teve algum efeito, isso só pareceu encorajar o perseguidor, pois o vento
acima soltou um grito faminto e avançou atrás deles com ainda mais
ferocidade.
— Não tema, princesa! — gritou Magriço, embora ele próprio tremesse
tanto que mal conseguia colocar a flecha no arco. — A situação é ruim, mas eu
vou salvá-la, pois, como seu guarda-costas assistente pessoal, fui treinado nas
mais avançadas artes de guarda-costismo!
Infelizmente, naquele momento desesperador, Magriço descobriu que
tinha uma terrível desvantagem como guarda-costas em potencial.
Um problema de saúde que o fazia pegar no sono em situações de perigo
extremo.
Mal tinha dito as últimas palavras daquele corajoso discurso quando
desabou no ombro da princesa, roncando alto.
— Magriço! — gritou a princesa. — O que você está fazendo????
Ronc, ronc.
— Magriço! ACORDE!
O pobre guarda-costas acordou assustado, murmurando:
— Onde? O quê? Como?
— Bosque Maligno — disse a princesa, ofegante. — Perseguidos… algo
terrível… artes avançadas de guarda-costismo…
— Ah, sim! Fui treinado exatamente para esse tipo de emergência de vida
ou morte! — exclamou Magriço, colocando outra flecha no arco.
Infelizmente, ele acabou pegando no sono de novo no momento em que fazia
pontaria. O menino tombou para a frente e acabou acertando sem querer no
traseiro do pobre pônei.
O animal guinchou quando a flecha passou de raspão por seu flanco e
disparou pela escuridão absoluta da floresta.
O coração de Desejo batia rápido como o de um coelho, e ela nem notou
quando os galhos de espinheiro transformaram sua roupa em farrapos e
arranharam suas pernas, abrindo cortes longos.
O pônei chegou a um riacho gelado e abriu caminho por entre a
vegetação, entrando com tudo na água — embora o frio os queimasse como
fogo —, na esperança de despistar o perseguidor.
Então subiu com dificuldade na outra margem e continuou pela escuridão.
Ah, pelo visgo murmurante… pensou Desejo, em pânico. Eu não devia ter feito
isso. A Magia não foi proibida à toa. Guerreiros não devem sair depois de escurecer por
uma razão. A fortaleza dos guerreiros não foi construída dessa maneira à toa.
Ela sentia o coração batendo tão forte que o peito parecia prestes a
explodir.
— Mais rápido! Mais rápido! — pediu Desejo, tão engasgada com o
pânico que mal conseguia respirar.
O pônei chegou a uma clareira inesperada na floresta.
A lamúria do vento estranho tinha ficado mais intensa, como o penoso
raspar de giz na pedra; um som que ia ficando cada vez mais alto, como se
estivesse prestes a atacar.
Mais e mais alto…
SCRRIISHHH…!
… o ar parecia estar sendo rasgado, como um papel gigante.
Aterrorizada, Desejo ergueu o rosto para se defender do ataque com a
espada em punho…
Uma voz humana gritou de algum lugar atrás dela.
Daquele momento em diante, tudo aconteceu muito depressa.
— Xar, estou ficando entediado — reclamou Afobado, que estava deitado,
fingindo estar ferido, na frente da rede camuflada que era a armadilha para
bruxas. — Estamos aqui há horas.
— Grite por socorro de um jeito mais convincente — ordenou Xar,
autoritário, de seu esconderijo atrás de uma árvore próxima.
— Eu posso ferir Afobado se você quiser — disse Tempestade-de-
Desavenças, mostrando as pequenas presas. — Ele parece bem saboroso.
— Estou bem, obrigado — disse Afobado. — Aceite, Xar: talvez as bruxas
realmente tenham sido extintas, como todo mundo diz… E está ficando tarde.
Para ser sincero, eu tenho mais medo de guerreiros do que de bruxas.
— Não se preocupe — disse Xar, tranquilo. — ESMAGADOR NOS
DIRIA SE HOUVESSE ALGUM PROBLEMA, NÃO DIRIA,
ESMAGADOR?
O trabalho de Esmagador era puxar a corda com força para fechar a rede
quando a bruxa se aproximasse, além de ficar de vigia. O gigante estava no
alto, a uma boa distância, de forma que Xar teve que gritar para chamar sua
atenção.
Hum… — respondeu Esmagador, pensativo. — Na

verdade, TEM um probleminha — admitiu, mas Xar não
ouviu porque o gigante estava muito longe e falava muito, muuuuuito
devagar. (Os gigantes funcionam em uma escala temporal ligeiramente
diferente.)
Mas isso não era tão relevante, porque Xar não estava ouvindo, e o
problema sobre o qual Esmagador estava pensando era ligeiramente diferente
do que Xar considerava um problema.
Algumas pessoas acham que os gigantes são burros porque falam devagar,
mas não poderiam estar mais erradas. Gigantes são grandes e têm GRANDES
pensamentos, e Esmagador era um gigante Passolongo Andante das Alturas,
um dos maiores pensadores.
Então o problema, pensava Esmagador, é o seguinte: há um limite para a
expansão do universo, ou ele continuará a se expandir para sempre?
(Eu disse que era um GRANDE problema.)
Se o espaço é infinito, e as estrelas são infinitas, não deveria haver um número
infinito de Esmagadores por aí? Como isso é possível, e quais são as implicações?
Tudo isso era muito interessante, mas, infelizmente, significava que,
embora Esmagador estivesse segurando a corda com tranquilidade, sua mente
vagava entre as estrelas e, portanto, ele estava ignorando completamente
qualquer perigo que se aproximasse.
Um gigante Passolongo Andante das Alturas não é a sentinela ideal.
— Só mais um pouco, Afobado… — sussurrou Xar, os olhos brilhando.
— Tem bruxas aqui por perto, quase sinto o cheiro delas…
Xar fechou os olhos e farejou o ar. Por favor, pensou, por favor, deuses das
árvores e da água… Vocês não sabem como é difícil crescer sem Magia em um mundo
cheio de Magia. Todos riem de mim, sentem pena de mim… Permitam que seja mesmo
uma bruxa, porque eu preciso de Magia. Quero que meu pai tenha orgulho de mim.
Naquele exato momento, os elfos de Xar surgiram sibilando da escuridão e
começaram a rodar em torno da cabeça dele, criando um halo élfico cintilante,
os olhos se acendendo num vermelho fulgurante, zumbindo como um
enxame de vespas:
— Bruxassss… Bruxassss… Bruxassss…
— Eu sabia! — exclamou Xar, animado. — Peguem suas varinhas, elfos!
Preparem os arcos. Estamos prestes a ser atacados!
— Não estamos, não… — retrucou Heliotrópia, que àquela altura, já farta
de Xar e de seus planos malucos, só queria ir para casa. — As bruxas estão
extintas, todo mundo sabe disso…
Mas Afobado, deitado no chão, de repente sentiu o ar em volta ficar tão
frio que começou a tremer.
Xar tentou encorajá-lo:
— Não se mexa, Afobado! Você está se saindo muito bem… é uma vítima
perfeita… as bruxas vão cair direitinho.
— Esmagador! A postos!
Silêncio lá no alto.
— ESMAGADOR!!!!
— O que foi? Acho que fiz uma descoberta! — anunciou o gigante,
enfiando a cabeça pela copa das árvores. Ele se moveu com a lentidão de uma
lesma em termos humanos, mas surpreendentemente rápido em termos de
gigantes, porque estava animado.
— Estou quase convencido de que o espaço pode ser FINITO…
— Esmagador! Isso não importa agora! E falei para você não ficar
pensando nessas coisas profundas! — reclamou Xar.
O processo de raciocínio profundo fazia a cabeça de um gigante arder e
fumegar como um verdadeiro incêndio florestal, o que podia ser identificado a
uma distância considerável por, digamos, guerreiros inimigos, bafos-de-rogro
ou, naquele caso, bruxas.
— Estamos sendo atacados! — gritou Xar, exasperado.
— Ah! — Interrompendo seus devaneios, Esmagador lembrou onde estava
e segurou a corda com força.
Na empolgação do momento, ninguém reparou na grande pena negra
presa ao cinto de Xar.
Se alguém estivesse olhando para a pena naquele momento, teria visto que
ela começou a BRILHAR, e era um brilho fraco, mas bem sinistro,
destacando-se em meio à escuridão.
Com certeza tem alguma explicação razoável e científica para isso…
Mas uma pena de corvo não brilharia assim, por maior que fosse o corvo.
Eis o que aconteceu a partir daquele momento, do ponto de vista de Xar:
Ele estava atrás da árvore, a postos, tremendo de empolgação.
Os elfos murmuravam cada vez mais alto, voando em torno de sua cabeça,
guinchando.
— Bruxasbruxasbruxasbruxas!!!!!!!!!
Xar ouviu o bater de cascos, e alguma criatura entrou galopando na clareira
iluminada pelo luar, rápido demais para ser detido, uma criatura que, se Xar
estava vendo direito, tinha pernas de pônei, dois troncos humanos e uma
grande nuvem indistinta acima.
Que monstro estranho era aquele?
Afobado ficou paralisado de pavor, não conseguia se mexer, ia ser
pisoteado…
SCRIIISSHHHHHH!!!
A clareira foi tomada pelo ruído de algo se partindo, como se a atmosfera
estivesse sendo rasgada ao meio.
Os sentidos de Xar foram surpreendidos pelo pior cheiro que você poderia
imaginar: uma mistura de cadáver em decomposição, ovos podres e um
homem morto há seis semanas com chulé e cê-cê. Ao mesmo tempo, um
grito estridente como a agonia da morte de quinhentas raposas penetrou no
cérebro de Xar e reverberou na sua cabeça até ele achar que ia acabar ficando
louco.
O que está acontecendo?????, pensou Xar, com a minúscula parte de seu
cérebro que ainda conseguia pensar.
Afobado se encolheu como um pequeno porco-espinho, cobrindo a
cabeça com as mãos de um jeito bastante patético, como se aquilo fosse
protegê-lo da terrível criatura misteriosa que estava produzindo AQUELE
ruído e AQUELE fedor.
Xar deu o sinal para Esmagador.
E tudo aconteceu ao mesmo tempo.
A nuvem — ou o vento, quem poderia dizer? — uivou mais alto. Talvez
Xar estivesse certo e fosse mesmo uma bruxa… Mas aquilo disparou para
baixo, e, exatamente no mesmo momento, todos os sete elfos empunharam
suas varinhas, lançando feitiços na direção do centro da clareira. Eram bolas de
luz com um calor incandescente, como vaga-lumes velozes. Esmagador puxou
a rede com força, e houve uma explosão gigantesca…
BUUUUUUMMMM!
Xar se jogou para o lado.
Ouviu-se um ruído estridente altíssimo.
Algo ricocheteou pela clareira, algo incomumente grande, negro e coberto
de penas, e em seguida disparou para longe com um gemido terrível.
Nuvens de fumaça negra e verde encheram o descampado. Xar ficou de
pé, tossindo.
Suspensa no centro da clareira estava a armadilha para bruxas. Esmagador
segurava a outra extremidade da corda com toda a força.
Algo se contorcia loucamente lá dentro. Em torno da rede havia um
campo de força, vermelho como sangue, vermelho como uma chama ardente.
O que aconteceu aqui?, pensou Afobado, tossindo e ainda engasgando com
os vestígios daquele cheiro. Não conseguia acreditar que ainda estava vivo.
— Funcionou — sussurrou Xar, cambaleando, sem acreditar na própria
sorte. — Caramba… FUNCIONOU! Nós conseguimos, realmente
capturamos uma bruxa… Esse é o campo de força dela… Parem de atacar,
elfos, é inútil…
De fato, os feitiços dos elfos soltavam faíscas enquanto tentavam atravessar
o ar vermelho-vivo, cada vez mais vermelho e pontiagudo como espinhos
flamejantes.
Afobado olhou para a rede que se contorcia e engoliu em seco.
— Ah, pelo visgo e por todas as trepadeiras, talvez Xar realmente tenha
conseguido… talvez ele tenha mesmo capturado uma bruxa!!! Vamos sair
daqui…
Afobado ficou de pé, pulou nas costas de seu gato-da-neve e fugiu, assim
como Heliotrópia e Obtuso.
Eles achavam que Xar iria atrás.
Mas aquele era provavelmente o único menino do mundo louco o
bastante para ficar em uma clareira com uma bruxa de verdade.
— Você ser BRILHANÍFICO! Você ser FASCINÁSTICO! Você ser melhor líder do MUNDO!
Hum… O que vamos fazer agora, chefe? — perguntou Sedento, nervoso.
Até Xar estava aterrorizado, mas preferiria morrer a admitir isso para seus
elfos e animais.
— Cerquem a bruxa! — ordenou.
Mesmo resmungando, os elfos cercaram a rede em um círculo ardente, e
Xar se forçou a colocar um pé na frente do outro e se aproximar, as mãos tão
suadas por causa do medo que quase deixou cair a pequena panela.
O fedor na clareira era tão sufocante e tão repulsivo que era como nadar
em uma sopa de repolho.
Xar parou embaixo da rede, observando-a. A rede balançava lentamente,
para a frente e para trás, para a frente e para trás…
O que ele não esperava era ver as quatro patas inconfundíveis de um
CAVALO pendendo dos buracos na rede.
— Uau — sussurrou Xar. — Quem poderia imaginar? As bruxas não são
como pássaros, são mais parecidas com os centauros. — Então, tentando fazer
com que sua voz soasse assustadora e sacudindo a panela de maneira
ameaçadora com a mão trêmula, Xar gritou: — Bruxa, não tente fazer
nenhuma besteira! Você está cercada, e eu estou armado com um artefato de
FERRO!
Fez-se um breve silêncio, e em seguida uma voz fina e vacilante dentro da
rede disse:
— Eu não sou bruxa… As bruxas estão extintas, todo mundo sabe disso…
Por que está nos atacando? O que você quer?
— Rá! É claro que uma bruxa nunca vai ADMITIR que é uma bruxa! —
retrucou Xar. — Não tente me enganar!
— Eu não estou tentando enganar ninguém — disse a voz, agora menos
vacilante e mais indignada. — Meu nome é Desejo, e posso afirmar que NÃO
sou uma bruxa. Afinal, mesmo que as bruxas existissem, elas seriam verdes,
não? Com sangue ácido, penas e tudo mais…
Fez-se outra pausa, antes de Xar perguntar:
— Bem, então que tipo de monstro você é? Uma espécie de centauro?
— Não, não. Isso é só o meu pônei. Acho que ele desmaiou. Eu e meu
amigo Magriço estávamos na floresta quando alguma coisa de repente
começou a nos perseguir… SOLTE A GENTE!
Droga.
Não era uma bruxa. Tanto trabalho para nada! Seu irmão horrível e
metido estava certo o tempo todo, e aquela noite inteira tinha sido uma
grande perda de tempo.
— Coloque esse ser no chão, Esmagador — ordenou Xar com um suspiro,
arrasado por uma decepção pulverizante.
Esmagador baixou a rede devagar. O pônei não tinha desmaiado,
coitadinho; na verdade, fora atingido por um dos feitiços do sono de
Tempestade-de-Desavenças. Ao ser solto da rede, ficou caído no chão,
roncando alto.
Mas Xar viu que havia também humanos presos na rede: um deles usava
uma armadura dos pés à cabeça e saiu de cima do pônei empunhando uma
grande espada ornamentada; e, atrás dele, um outro um pouco maior, magro
que nem cabo de vassoura e também coberto por uma armadura, e que
cambaleava para ficar de pé, como se tivesse acabado de acordar.
Nós sabemos que esses dois humanos eram Desejo e Magriço.
Mas Xar nunca tinha visto um guerreiro.
E nunca poderia imaginar que Desejo e Magriço seriam os heróis desta
história, assim como ele.
O que Xar viu foram duas pessoas em armaduras de ferro carregando
espadas de ferro, o que significava que só podiam ser guerreiros. E Xar tinha
aprendido a detestar guerreiros, porque eles eram o inimigo.
Que maravilha.
Depois de seu coração dar guinadas de um lado para outro entre o medo, a
animação e a decepção, Xar estava louco por uma boa LUTA.
Se não conseguia capturar uma bruxa, podia ao menos matar um inimigo.
— GUERREIROS! — gritou ele, furioso, segurando a panela com força,
e pegando da mochila um pesado cajado de carvalho.
— Guerreirosss… Guerreirosss… Guerreirosss… — sibilaram os elfos,
emanando um brilho vermelho de raiva. — Matem todosss… matem
todosss… matem todosss…
— Um FEITICEIRO e suas criaturas! — gritou Magriço, alarmado,
apontando para Xar e pulando na frente de Desejo para protegê-la. — E eles
parecem agressivos!
Pareciam mesmo. Desejo olhou, petrificada, para os elfos cintilantes, que
ardiam de fúria, as chamas lambendo seus braços e pernas compridos, faíscas se
espalhando por toda parte. Olhou para os lobos, o urso e os gatos-da-neve,
que rosnavam, mostrando os dentes; e lá no alto, bem acima deles, para a
figura gigantesca do gigante.
Os dois estavam em desvantagem numérica, e gigantes supostamente
comiam humanos. Elfos podiam usar a Magia para provocar uma morte lenta,
e bastava uma olhada naqueles gatos-da-neve para saber que eram capazes de
fazer uma pessoa em pedacinhos. Desejo tinha uma Espada Encantada, mas
sabia que não era muito boa em manejá-la. E vamos encarar a realidade:
Magriço não tinha sido um guarda-costas exemplar até aquele momento.
Estavam perdidos.

— Não se preocupe, princesa! — gritou Magriço, cheio de bravura. — Eu


cuido deles!
O guarda-costas pegou a lança e empunhou a espada.
Ele avançou, com ar ameaçador.
Avistou o gigante.
Parou de repente em sua pose de guerreiro furioso.
Piscou duas vezes.
Então seus olhos se fecharam, a cabeça pendeu para a frente e ele desabou
leeeentamente, como uma árvore tombando, sem querer partindo a lança ao
meio na queda.
E ficou caído de boca aberta.
Xar olhou perplexo para Magriço. Seria um truque?
— Gatos-da-neve! Lobos! Me deem cobertura!
Com o pelo eriçado, os animais cercaram Xar, prontos para atacar.
— Urso! Cuidado com o sujeito no chão! Ele pode estar fingindo!
O urso colocou uma grande pata no peito de Magriço, imobilizando-o.
— Elfos! Deixem o outro comigo! Vou mostrar a esses guerreiros cruéis
que os feiticeiros também sabem lutar! — gritou Xar, e se lançou sobre Desejo
com a panela em uma das mãos e o cajado na outra.
Desejo aparou o golpe de Xar com a Espada Encantada, e a luta começou.
Ela logo descobriu que uma Espada Encantada tornava a luta muito mais
fácil. A Espada Encantada conseguia antecipar de onde vinha o golpe seguinte
da panela ou a investida seguinte com o cajado e se lançava por conta própria
na direção do golpe, arrastando Desejo.
A espada a puxava para um lado e para o outro, e Desejo a segurava com
ambas as mãos, com toda a força, como se estivesse se agarrando ao rabo de
um touro enfurecido.

Calíbano estava em um frenesi de preocupação, voando acima dos


combatentes e guinchando:
— A Espada Encantada! Tenha muito cuidado com isso! Não deixe que
ela toque em você! Tem alguma coisa errada!
— Uma Espada Encantada... — murmurou Xar. — É impossível!
Como um guerreiro podia estar lutando com uma Espada Encantada?
Guerreiros não usavam Magia.
A Espada Encantada se lançou para a frente, e seu golpe finalmente
desarmou Xar. O cajado rodopiou até os arbustos, seguido pela panela.
— Renda-se — ordenou Desejo, segurando a Espada Encantada acima da
cabeça de Xar.
— Eu me rendo — respondeu ele, por entre os dentes cerrados.
— Não confie nele! Feiticeiros são trapaceiros! — gritou Magriço, que
tinha despertado do desmaio, mas ainda estava preso pelo urso.
Ignorando o aviso, Desejo relaxou, deu um passo para trás e baixou a
espada.
O que foi um grande erro. Magriço estava certo: Xar não era confiável.
— Gato-Rei! Olho-da-Noite! Ataquem! — berrou ele assim que Desejo
baixou a espada.
Gato-Rei deu um salto e derrubou a menina no chão. Com a força do
golpe, a Espada Encantada voou da mão de Desejo, e assim que ela a soltou, o
encantamento cessou: a espada ficou inerte e tombou no chão da floresta, fria
e sem vida como uma espada comum.
Xar a pegou, e quatrocentos quilos de um lince gigante azul-claro na
forma de Gato-Rei se inclinaram sobre o peito de Desejo e partiram seu
capacete ao meio com as patas como um quebra-nozes.
As duas metades do capacete caíram no chão, e Xar se deparou com o
rosto de uma menina esquisita usando um tapa-olho.
— É uma garota! — exclamou Xar, surpreso.
Os elfos riram escandalosamente.
— Xar apanhou de uma garota…
Desejo tinha diante de si um gato-da-neve irritado e um garoto feiticeiro
que segurava a Espada Encantada sobre sua cabeça com determinação.
— Sua vez — disse o garoto feiticeiro. — Renda-se!
— Eu não me rendo de jeito nenhum! — retrucou Desejo. — Você
TRAPACEOU!
— Feiticeiros não seguem as regras dos guerreiros — argumentou Xar.
— Feiticeiro trapaceiro!
— Guerreira perversa!
— Lançador de maldições!
— Envenenadora da floresta!
— Devorador de criancinhas!

— Destruidora de Magia! Que você seja esmigalhada pelos dentes do


Grande Ogro Cinzento em pedacinhos tão pequenos quanto os olhos de um
piolho! — amaldiçoou Xar.
Tanto Xar quanto Desejo estavam com frio, cansados e tinham acabado de
passar por um susto terrível. O medo se transformou em raiva, como muitas
vezes acontece, e eles passaram a usar o tipo de insulto e linguajar desagradável
que feiticeiros e guerreiros dirigiam uns aos outros desde que os guerreiros
haviam chegado, atravessando o oceano, e os dois grupos se enfrentaram em
uma batalha na floresta, séculos antes.
O rosto de Xar estava vermelho de raiva, e ele segurava a espada sobre a
cabeça de Desejo com tanta determinação que Magriço gritou:
— NÃO A MATE! ELA É FILHA DA RAINHA SICÓRAX. SE
VOCÊ MATÁ-LA, A VINGANÇA DA RAINHA SERÁ TERRÍVEL!
Xar olhou surpreso para Desejo.
— Filha da rainha Sicórax…? Impossível!
A rainha Sicórax era uma lenda na floresta, conhecida por sua crueldade,
sua altura e sua força implacável. Como aquele fiapo de gente podia ser filha
da assustadora rainha Sicórax?
— Filha da rainha Sicórax! Matar… matar… matar… matar… — sibilaram
os elfos, avançando em pleno voo na direção de Desejo, os arcos armados com
seus feitiços mais mortais. Uma palavra de Xar, e eles os lançariam no ar.
Xar sempre se gabara de que, se um dia encontrasse um inimigo, o mataria
na hora.
Mas se gabar é uma coisa.
E de fato matar uma menina real e viva, da sua idade, que está bem na sua
frente e claramente aterrorizada, mesmo tentando disfarçar, e ainda por cima
com uma espada que você acabou de tirar dela trapaceando… bem… isso é
uma coisa completamente diferente, e Xar descobriu que não conseguia matá-
la.
Meus ancestrais seriam capazes, pensou ele, sentindo-se culpado. Pilhado não
teria hesitado.
Mas Xar ficou parado, indeciso.
Então, para sua surpresa, ele se viu sendo atacado pelo que parecia uma
colher, golpeando-o com ferocidade, dando pancadas com força em sua cabeça.
— Eu mando minha colher recuar se você mandar seu urso fazer o
mesmo… — disse Desejo, ofegante.
Para o desapontamento dos elfos, que zumbiam como vespas, Xar baixou a
Espada Encantada e fez um sinal para o urso, que libertou Magriço com um
rosnado. A Colher Encantada parou de bater na cabeça de Xar, fez uma
pequena reverência como pedido de desculpas e voltou para perto de Desejo.
O feiticeiro e os guerreiros olharam uns para os outros com espanto, ainda
hostis e desconfiados, mas também curiosos.
— Sou Desejo, filha de Sicórax, rainha dos guerreiros. E este é meu
guarda-costas assistente, Magriço. Quem é você?
— Eu sou Xar, o Magnífico, filho de Encanzo, rei dos feiticeiros. Estes são
meus companheiros. Meus lobos, meu urso e meus gatos-da-neve: Gato-Rei,
Olho-da-Noite e Coração-da-Floresta. Meu corvo, Calíbano. Meu gigante,
Esmagador. E meus elfos: Ariel, Mistura-de-Pensamentos, Tempestade-de-
Desavenças, Traiçoeiro e Tempo-Perdido.
Os elfos circulavam a cabeça dos guerreiros, irritados, faiscando e
queimando.
— Não esssqueça nóssss… — guinchou Sedento.
— Ah, sim, estes também são elfos, mas são tão novos que nós os
chamamos de elfos cabeludos — explicou Xar. — Abelhuda, o bebê e…
— Ssssedento — sussurrou Sedento no ouvido de Magriço.
O longo rastro de suas antenas fez com que arrepios percorressem todo o
couro cabeludo de Magriço, que tentava enxotá-lo, desesperado.
Desejo suspirou com inveja quando olhou para os companheiros de Xar,
especialmente os elfos.
Ela estendeu a mão para o elfo que o garoto chamava de Sedento, uma
coisinha engraçada e peluda como um zangão.
Sinto dizer que Sedento a mordeu.
— Ai! — exclamou Desejo, chupando o dedo. — Os elfos são mais
poderosos do que eu esperava. E são meio violentos… e não parecem gostar
muito de mim…
— É claro que eles não gostam de você, sua guerreira idiota — retrucou
Xar. — Sua mãe perversa captura nossos gigantes, anões e elfos com terríveis
armadilhas e nós NUNCA MAIS OS VEMOS DE NOVO.
— Mas minha mãe não mata os elfos capturados — disse Desejo. — Ela
tem uma Pedra Que Remove Magia nos calabouços. Ela só remove a Magia
deles, colocando-os na pedra…
A voz de Desejo falhou quando ela começou a se lembrar de que não
queria que a colher tivesse sua Magia removida.
— É um processo completamente indolor… — incentivou Magriço.
— E vocês acham que isssso não os mata? — indagou Tempestade-de-
Desavenças. — Por que não remover seu coração, de uma vez? Um elfo sem
Magia é um elfo sem alma…
Céus… Desejo não sabia o que pensar. Tudo aquilo parecia muito triste.
— Mas a Magia faz mal a eles — disse ela, vacilante. — Os elfos a usam
para jogar feitiços em nós… e os gigantes comem pessoas… É por isso que
minha mãe os aprisiona… Ela me explicou.
Xar e os elfos riram de tamanha ignorância.
— Gigantes não comem pessoas!
Desejo olhou para o gigante, pensativa.
Então, para horror de Magriço, o gigante se curvou e, muito gen-til-men-
te, pegou Desejo com seus dedos enormes. Deveria ter sido uma experiência
assustadora, mas o gigante se movia tão devagar, e os dedos em torno dela
eram tão confortavelmente enormes, que tudo que Desejo sentiu enquanto
subia, subia, SUBIA até o topo das árvores foi empolgação.
— Olhe em volta e olhe lá para baixo — disse o
gigante. — O que parece importante daqui de
cima?
Desejo olhou por cima dos dedos do gigante e ficou sem fôlego diante da
surpresa de ver o mundo de um ponto de vista completamente diferente. A
floresta se estendia por quilômetros em todas as direções, e o céu azulado
estava cravejado de estrelas até não ter mais fim. Lá embaixo, os humanos
eram tão pequenos quanto os elfos, e os elfos eram apenas grãos de poeira
cintilante. Um dos humanos, Magriço, estava gritando algo.
— COLOQUE-A NO CHÃO!
Mas Magriço estava tão distante que Desejo teve dificuldade de ouvi-lo, e,
daquele ponto de vista privilegiado, a angústia dele pareceu equivocada e sem
propósito algum.
— A floresta é importante — disse Desejo. — E as estrelas…
Correto — concordou o gigante, sorrindo. — Olhe nos

meus olhos. Eu tenho cara de quem come seres
humanos?
O rosto do gigante era coberto por uma rede de rugas e linhas de
expressão, como os caminhos errantes de um velho mapa. Seus olhos eram
bondosos e sábios.
— Não. Não tem.
—Correto de novo. Ao contrário dos ogros,
os gigantes são vegetarianos.
Esmagador riu e arrancou uma árvore pequena. Ele abriu um grande
sorriso para Desejo enquanto a árvore desaparecia por completo dentro de sua
enorme boca, mastigando galhos inteiros como se não passassem de gravetos.
— Me... lhor... para a diiiigestão... — disse ele,
pensativo.
As primeiras sementes de dúvida sobre tudo que ela já ouvira a respeito de
criaturas mágicas foram plantadas na mente de Desejo enquanto ela olhava para
o rosto gentil do gigante, que ria alto da própria piada sem graça.
— Esmagador não me parece um nome adequado para você — disse
Desejo.
— É abreviação de Esmagador-de-Problemas
— explicou ele.
— Desejo, você está bem? — gritou Magriço, tenso.
— É claro que estou bem! — respondeu a menina, enquanto o gigante a
colocava no chão. — Esse gigante NÃO é perigoso…
Seria possível que os guerreiros estivessem errados em sua visão da Magia
aquele tempo todo? Poderia haver um modo de vida diferente do deles?
A visão de mundo de Desejo estava sendo virada de cabeça para baixo, e
momentos assim são sempre difíceis.
— Não ouça o que eles dizem, princesa! — alertou Magriço. — Estão nos
enfeitiçando! Estão tentando nos fazer ver as coisas do ponto de vista deles!
Xar parecia igualmente pensativo.
— Os guerreiros querem destruir toda Magia — comentou, preocupado,
olhando para a Espada Encantada ainda em suas mãos. — Uma princesa
guerreira não deveria ter objetos mágicos, deveria?
— Não, não deveria — concordou Magriço. — Faz tempo que eu digo
isso.
— Tenha cuidado com essa Espada Encantada, Xar — pediu Calíbano. —
Tem alguma coisa errada com ela… Sinto isso nas minhas penas.
Ao examinar a lâmina, Xar de repente percebeu que Calíbano tinha razão:
de fato havia algo estranho naquela espada, algo tão estranho, incomum e
totalmente EXTRAORDINÁRIO que ele quase a deixou cair, de tanta
empolgação.
— Minha nossa, Calíbano! — exclamou Xar. — Eu não acredito! Isso é
inacreditável! Vou lhe dizer o que há de errado com essa espada! Ela é de
ferro! Assim como a Colher Encantada! Elas são ferro e Magia JUNTOS!
Inacreditável!
Inconcebível!
— Impossível! — afirmou Calíbano.
— Onde você encontrou essa espada? — murmurou Xar, virando-a de
um lado para outro nas mãos.
— No corredor. Mas é uma Espada Encantada, então acho que saiu por
conta própria dos calabouços da minha mãe — explicou Desejo, com o
coração apertado. — Essa espada não é sua, Xar. Ela pertence à rainha!
Devolva-a IMEDIATAMENTE!
Desejo tentou pegar a espada, mas Xar a afastou. Olho-da-Noite se
colocou entre eles e soltou um rosnado ameaçador, de modo que ela não
conseguiu se aproximar mais.
— Espere um segundo… — disse Xar. — O que é isso?
Ele notou, pela primeira vez, as palavras escritas na lâmina:
Em outros tempos havia bruxas…
Os cabelos em sua nuca se eriçaram.
Xar virou a espada e leu as palavras no outro lado:
… mas eu as matei.
Depois da palavra “matei”, havia uma seta que indicava a ponta da espada,
onde algo agora brilhava.
Uma gota de sangue verde.
Os três humanos olharam para a mancha verde, que fumegava
ligeiramente.
— Não toquem nisso! — exclamou Calíbano.
Os três jovens, o pássaro, os elfos e os animais olharam para a gota de sangue
verde com um medo crescente; no caso de Xar, era animação.
— Sangue de bruxa! — exclamou ele com alegria.
— Como assim “sangue de bruxa”? — protestou Magriço. — As bruxas
estão extintas!
Mas não soou tão convincente quanto teria sido se estivesse
confortavelmente acomodado atrás dos sete fossos da fortaleza dos guerreiros.
Havia alguma coisa no Bosque Maligno depois do anoitecer, quando o
musgo-de-gelo* brotava e crescia sobre a superfície de cada galho retorcido de
madeira morta, que fazia a pessoa temer que talvez, apenas talvez, as bruxas
não estivessem tão extintas assim, afinal…
— Esta é uma espada matadora de bruxas — disse Xar. — Veja! Está escrito
na lâmina. E ela conseguiu sair dos calabouços dos guerreiros porque sentiu
que as bruxas estavam despertando na floresta.
— Isso não é possível… — argumentou Magriço.
— Mas é verdade — retrucou Desejo, lentamente, tentando lembrar —
que pouco antes de Xar nos capturar, estávamos sendo atacados por alguma
coisa, e acho que feri essa coisa com a espada.
— Vocês estavam sendo atacados por uma bruxa, e isso é sangue de bruxa
— afirmou Xar, sorrindo de orelha a orelha.
— Não, não é! Vários seres têm sangue verde — retrucou Magriço. —
Monstrogatos! Bafos-de-rogro! Trasgos de dentes verdes! Ogros de dentes
verdes! Não pode ser uma bruxa, porque as bruxas estão extintas.
— Provavelmente extintas — corrigiu Calíbano.
— Definitivamente NÃO estão extintas — corrigiu Xar, apontando para o
centro da clareira.
Lá, bem ao lado da armadilha para bruxas que Xar montara, havia outra
pena negra. Uma pena parecida com a de um corvo, só que muito maior.
Xar a pegou.
Quando a aproximou da outra pena, que levava no cinto, ambas
começaram a brilhar, um tênue brilho esverdeado, um brilho de Magia
agourenta. E quando Xar aproximou a pena da ponta da espada, o sangue
também começou a brilhar, como a luminescência de um vaga-lume, mas de
um tom esverdeado mais sinistro.
— Bruxas! — exclamou Xar, sorrindo.
Fez-se um silêncio carregado de medo.
As bruxas estavam de volta ao Bosque Maligno.
As criaturas mais medonhas que já tinham caminhado sobre essas terras,
vivas mais uma vez.
Os dois grupos inimigos, animais e elfos, se aproximaram um pouco mais
uns dos outros, olhando para a floresta negra ao redor, unidos em um pavor
mútuo em relação ao que poderia haver por ali…
— Se isso FOR sangue de bruxa… o que, vejam bem, eu acho muito
difícil… mesmo uma única gota é muito, muito perigosa — avisou Calíbano,
trêmulo. — Limpe na casca daquela árvore, Xar, antes que machuque
alguém…
— Ah, não vou desperdiçar isso… — disse Xar. — Deve haver uma razão
para eu ter capturado uma menina chamada “Desejo” na minha armadilha para
bruxas… Quais são as chances de algo assim acontecer? Eu desejei ter Magia, e
o universo está tentando me dizer que atendeu ao meu pedido!
— O universo pode estar lhe dizendo outra coisa! Ele é muito
complicado! — alertou Calíbano. — Talvez seja um teste! Talvez seja um
alerta para que você não tenha desejos tão tolos quanto esse!
Mas Xar não estava ouvindo.
Aquilo era coisa do destino, mostrando a ele como conseguir a Magia de
uma bruxa.
— NÃO TOQUE NISSO, XAR! — gritou Calíbano, tão nervoso que
algumas de suas penas caíram como chuva negra.
— Não toque nisssso… Não toque nisssso… Não toque nisssso… —
sibilaram os elfos.
Mas Xar estendeu a mão e tocou a ponta da espada, onde a gota de sangue
cintilava.
Ele passou a mão uma, duas vezes, na forma da primeira letra de seu nome:
“X”.
E, daquele momento em diante, a história de Xar tomou um caminho
diferente, um caminho do qual seria muito difícil voltar.
— Nããããããããooooo!!!!!!! — implorou Calíbano.
Era tarde demais.
Tarde demais… tarde demais.
A ponta da Espada Encantada perfurou a mão de Xar…
… e ele gritou e se dobrou ao meio de tanta dor, a mão na barriga.
Calíbano baixou as asas, com as quais cobria os olhos.
— Ah, Xar… O que você fez????
O garoto se endireitou.
Seus olhos brilhavam de fascínio, embora a dor o fizesse tremer e sacudir a
mão como se a tivesse queimado.
— Tarde demais.
Xar sorriu, erguendo a mão. E, lá, no centro, estava o sangue da bruxa
misturado ao seu próprio sangue, na forma de um “X”.
Quando inimigos se cruzam… e mundos colidem… o “X” marca o local.

— Por que ele fez isso? — perguntou Desejo.


— Vou usar o sangue de bruxa para ter Magia — disse Xar, confiante.
— Isso funciona? — quis saber ela.
— Ele não faz a menor ideia! — respondeu Calíbano. — Você acha que
Xar é o tipo de pessoa que pensa antes de agir?? Não sabemos o que é essa coisa
verde! É melhor você torcer para não ser sangue de bruxa, Xar, porque sangue
de bruxa é excepcionalmente perigoso! Você até pode usá-lo para lançar
feitiços, mas ele pode deixá-lo cruel… Você pode se tornar uma criatura das
bruxas… Seu pai perderia o reinado…
Calíbano estava ainda mais agitado que o normal.
— Mas tenho que admitir — concluiu, animando-se um pouquinho —
que é bem mais provável que não seja sangue de bruxa, no fim das contas. Há
muitos seres com sangue verde no Bosque Maligno… Pode ser sangue de
lobisomem. Nesse caso, você apenas viraria um lobisomem…

— Maldição — praguejou Xar, sacudindo a mão com um pouco mais de


incômodo. — Isso nem passou pela minha cabeça.
— … o que seria inconveniente — continuou Calíbano. — Toda aquela
coisa de não sair depois da meia-noite, de ficar uivando para a lua, o excesso
de pelos e tudo mais... porém, não seria o fim do mundo.
— Seria OTIMÍSSIMO! — guinchou Sedento. — Você ficar felpeludo igual EU! Ah,
porrrr favorrrr! Vire um lobisomem, Xar! Vire um lobisomem!
Mas Xar não parecia muito feliz com a ideia.
Desejo e Magriço deram um passo para trás, só por garantia. Calíbano
continuou:
— E pode ser só sangue de bafo-de-rogro… que não causa nada… até onde
sabemos… É, você está certo: vou ver as coisas pelo lado positivo. Vamos
torcer para que seja apenas sangue de bafo-de-rogro. Nesse caso, não
deveríamos ficar parados aqui, porque os bafos-de-rogro de fato tentam seguir
você quando são feridos, para pegar o sangue de volta.
— Como eles fazem isso? — perguntou Magriço, horrorizado.
— Você não vai querer saber — respondeu Calíbano. — Digamos apenas
que eles são apegados ao próprio sangue, então os métodos que usam para
recuperá-lo não são muito agradáveis.
— Bem, apesar de tudo, eu ainda estou torcendo para ser sangue de bruxa
— retrucou Xar, obstinado. — Mas mesmo que não seja, ainda tenho a
espada, não é?
Xar pendurou a espada no cinto.**
— Essa espada não é sua! — protestou Desejo. — Devolva a nossa espada!
— Espada? — indagou Xar, arregalando os olhos fingindo inocência. —
Que espada?
— A Espada Encantada que pertence à minha mãe e que agora está enfiada
no seu cinto.
— Ah, essa espada — disse Xar, montando em Gato-Rei. — Essa espada
foi dada a mim pelo próprio destino, que me escolheu para liderar meu povo
contra vocês, guerreiros. Não dá para discutir com o destino.
— Ela não foi dada a você pelo destino! — berrou Desejo. — Isso é
ROUBO! Devolva nossa espada, seu ladrão!
Xar a ignorou e se voltou para os outros, dizendo:
— Vamos embora, pessoal! Precisamos voltar para eu derrotar Pilhado na
Competição de Feitiços.
— Espere aí: e quanto a nós? — perguntou Desejo. — Nós não temos
como ir para casa! Os feitiços dos seus elfos fizeram meu pônei dormir.
De fato, o pônei ainda roncava tranquilamente no centro da clareira.
— Bem, vocês não deveriam mesmo ter entrado no Bosque Maligno
depois do anoitecer se não queriam que nada de ruim acontecesse… —
alertou Xar, com o mais puro e inacreditável atrevimento, o que era a cara
dele.
Naquele instante, ouviram-se ao longe cascos de cavalo e latidos de cães.
Os elfos sibilaram, alarmados:
— GUERREIROSSS!
Os guerreiros de ferro da rainha Sicórax tinham visto o gigante em seu
território (Xar estava certo sobre os pensamentos profundos e a fumaça) e
saíram galopando da Fortaleza de Ferro para investigar.
— Pronto, problema resolvido. Seu povo está vindo. Eles vão levar vocês
para casa.
— Mas vamos nos meter na maior encrenca, porque saímos escondidos da
fortaleza sem permissão! — explicou Desejo. — Por favor, podem nos ajudar a
voltar sem que nos vejam aqui?
— Não tenho tempo para fazer isso, pois a competição já vai começar —
disse Xar —, mas serei generoso e deixarei que venham comigo e passem a
noite no acampamento dos feiticeiros.
— Isso é ROUBO e SEQUESTRO! — exclamou Desejo, furiosa. —
Leve-nos de volta para a fortaleza dos guerreiros e me devolva minha espada,
seu feiticeiro horrível!
— Olha, eu realmente não vejo o que isso tem a ver comigo — retrucou
Xar, surpreso. — Por que eu deveria me preocupar com os problemas de dois
guerreiros inimigos? Estou fazendo o melhor que posso, mas você está sendo
bem difícil.
Se Desejo tinha dúvidas quanto aos feiticeiros serem mesmo tão ruins
quanto se dizia, ela mudou de ideia naquele mesmo instante.
— Minha mãe estava certa sobre vocês, seres-outrora-mágicos! —
enfureceu-se ela. — Vocês são trapaceiros, traiçoeiros, não têm nenhuma
moral, estão completamente fora de controle e…
— Ela está certa, Xar! — grasnou Calíbano. — Você recebe do universo
aquilo que oferece. E se você sequestrar essa garota e roubar a espada, pode
esperar em troca algo realmente terrível. Faça aos outros o bem que gostaria
que fizessem a você, ou você não vai terminar nada bem…
— Olha, o universo deveria ficar muito satisfeito por eu não deixar esses
dois aqui para serem atacados por bruxas. Não entendo por que vocês não
estão felizes por mim. — Xar fechou a cara. — É muito egoísta da parte de
vocês. EU SOU O GAROTO PREDESTINADO! EU SOU O
ESCOLHIDO!
Ele se voltou para seus animais e o gigante.
— Olho-da-Noite! Coração-da-Floresta! Esmagador! Tragam esses
guerreiros estúpidos e o pônei deles para a fortaleza!
— Eu também flutuvoar com os guerreiros! — gritou Sedento. — Eu vai e vai ficar de
olho nasss jagularesss delesss!!!
— Acho que não precisa, Sedento — disse Xar, bastante ofendido.
— Eu QUER! — cantarolou Sedento, ainda mais entusiasmado. — Eu gostanto
dela! Ela é um pouco engraçada… e ssssó tem um olho… mas tem mais cheiro de damasco do que um ser
humungulano… e eu gostanto do cabelo dela!
Sedento voou até o cabelo de Desejo e afofou a parte de trás, formando
um pequeno e desalinhado ninho no qual pudesse se esconder.
— Gosto não se discute. — Xar bufou, irritado. — Achei que você ia
querer andar com o garoto predestinado, mas se tem pena desses esquisitões, o
problema é seu, Sedento… — Xar se dirigiu ao restante de seus
companheiros: — Vamos, pessoal! Vamos apostar uma corrida até a fortaleza!
Gato-Rei saltou para a frente, um vulto cinza-esverdeado, e os animais o
seguiram em um bando selvagem e enlouquecido, os elfos disparando na
frente.
Voltar no tempo é impossível.
Provavelmente.
Mas…
SE Xar tivesse visto Desejo depois que a deixou na clareira…
SE tivesse visto o rosto dela quando a menina finalmente se deu conta de
que não poderia consertar as coisas devolvendo a espada e de que sua mãe
inevitavelmente descobriria sua desobediência daquela maneira misteriosa que
só as mães fazem…
SE ele soubesse que a mãe de Desejo não era o tipo de mãe que dava à
filha a impressão de que ia perdoá-la por seus erros…
SE ele tivesse visto Desejo chorando enquanto a colher que não falava
tentava consolá-la, e o guarda-costas assistente, também triste, dando tapinhas
em suas costas, e Sedento fazendo caretas e dando piruetas para tentar animá-
la…
SE tivesse visto tudo isso, será que Xar teria desejado voltar no tempo,
mesmo que fosse impossível?
Possivelmente.
Mas…
Ver a vida das pessoas quando elas não estão diante de nós também é
impossível…
Provavelmente.
Digo “provavelmente” porque voltar no tempo e ver a vida de outras
pessoas quando elas não estão bem diante de nós são coisas que exigem algo
que chamamos de “imaginação”. Xar ainda não tinha desenvolvido esse tipo
de Magia, assim como não conseguia mover objetos apenas com o poder da
mente ou voar sem asas.
Então, assim que Desejo ficou fora de vista, Xar imediatamente se
esqueceu dela e continuou com a tarefa muito mais importante de parabenizar
a si mesmo por ter sido tão esperto. E voltou para o acampamento dos
feiticeiros montado em Gato-Rei.
Enquanto isso, de volta na clareira, Desejo tinha parado de chorar, porque
era uma pessoa prática e chorar não ajudaria em nada.
— O que vamos fazer agora? — perguntou Magriço, com os olhos
arregalados, tomado pelo desânimo depois de tudo que tinha acontecido.
— Teremos que seguir aquele ladrão trapaceiro até o acampamento dos
feiticeiros e recuperar a Espada Encantada. Depois, podemos entrar na
fortaleza antes do amanhecer sem ser vistos — explicou Desejo. — Aquela
espada é Magia com ferro, e não podemos deixá-la cair nas mãos dos
feiticeiros.
— Ah, é só isso que temos que fazer? — perguntou Magriço, irônico. —
E eu aqui, pensando que tínhamos um problema…
— Pensando pelo lado bom, vamos poder andar nesses gatos-da-neve.
— Isso é um lado bom? — questionou Magriço, olhando horrorizado para
aquelas bestas selvagens gigantes, próximas DEMAIS deles. — Mas são animais
banidos! É contra as regras!

Timidamente, Desejo estendeu a mão e tocou a maciez inacreditável da


cabeça de Coração-da-Floresta. Estava morrendo de vontade de montar um
daqueles gatos-da-neve desde o momento em que pusera os olhos neles.
Com cuidado, Desejo montou em um deles.
— Você vai com a gente, Esmagador? — perguntou ela ao gigante.
Esmagador pareceu encantado por ter sido consultado.
— Sou um pouco mais leeeeento do que esses
gatos-da-neve... — explicou, abrindo um grande sorriso, como uma
abóbora rachada. — Mas estarei logo atrás de vocês.
Vou ficar bem. Sou um gigante!
É claro, o que ela estava pensando? Um gigante sabia cuidar de si mesmo.
Ele provavelmente era um combatente e tanto, ainda que vegetariano.
— Siga Xar, por favor, gato-da-neve — pediu Desejo.
Coração-da-Floresta se ergueu e se lançou para a frente com uma rapidez
aveludada. Eu estou andando em um gato-da-neve e isso não é um SONHO…
pensou Desejo, com um entusiasmo irreal, enquanto o animal avançava
suavemente por entre as árvores, o vento da noite soprando o cabelo de
Desejo para trás. Ela esqueceu o perigo do momento e gritou de alegria.
Pelo azevinho, pelo visco, pelas unhas do pé de uma bruxa e pelo bafo fedorento de
um trasgo-saltitante de olhos esbugalhados!, pensou Magriço, completamente
sozinho na clareira. Aquela princesinha era mais parecida com a mãe do que
aparentava. Teimosa! Inconsequente! Turrona! E o garoto feiticeiro era ainda pior!
Qual era o problema da realeza? Talvez toda aquela comida refinada subisse à cabeça.
Mas o que o pobre Magriço podia fazer? Não podia ficar ali sozinho,
naquele bosque possivelmente infestado de lobisomens, apreciando o ar fresco
da noite e brincando de Encontre o Bafo-de-Rogro.
Além disso, ele deveria proteger e controlar a princesinha incontrolável,
era esse o seu trabalho. Então, subiu com relutância nas costas do segundo
animal proibido, que com igual relutância o aceitou, e foi atrás de Desejo.
O gigante se abaixou e pegou com delicadeza o pônei adormecido, com
apenas uma de suas mãos gigantes. Ele alisou a crina do animal com seu dedo
gigantesco, como um humano acariciaria um camundongo, antes de colocá-lo
com cuidado no bolso e se deslocar mui...to len...ta e pesada...men...te atrás de
Magriço, Desejo e os gatos-da-neve.
— Não se preocupe! — gritou Desejo para Magriço, quando Olho-da-
Noite alcançou Coração-da-Floresta. — Vai dar tudo certo!
— Não me preocupar? — indagou Magriço, com sarcasmo. — Vai dar
tudo certo? Só esta noite, nós saímos escondidos da fortaleza dos guerreiros…
adotamos uma colher encantada como animal de estimação… roubamos a
espada valiosíssima e aparentemente perigosíssima da sua mãe… deixamos que
essa mesma espada caísse nas mãos de um feiticeiro, colocando em risco toda a
Guerra Contra a Magia… e AGORA estamos indo para o coração do
território inimigo, montados em um bando de animais proibidos, sequestrados
por um menino feiticeiro louco, que pode estar prestes a se transformar em
lobisomem… Por que eu iria me preocupar?
O estômago de Magriço roncou alto.
— E perdemos o jantar. Hambúrguer de veado... meu favorito.
Sedento disparou adiante como um pequeno relâmpago branco, gritando:
— Sou a sentinela! Sou a sentinela! AAAAAARGHHHH! Um jagular! Um jagular!… Ahhhh…
Não, desculpa. Me enganei. É só um tronco de árvore. DESCULPA, gente.

O silêncio caiu conforme eles seguiam Xar, penetrando mais e mais na


imensidão escura da floresta, no desconhecido, onde olhos estranhos pareciam
observar por trás das árvores e gritos assustadores de criaturas noturnas
ecoavam por toda parte. Criaturas que poderiam ser jaguares, lobisomens ou
algo pior…

Por sorte, Magriço não viu duas coisas que aconteceram depois que eles
deixaram a clareira, ou teria ficado ainda mais preocupado.
Primeiro, o gigante Esmagador foi capturado pelos guerreiros de ferro de
Sicórax.
Desejo tinha razão ao se preocupar com ele. Gigantes são grandes
pensadores, mas, infelizmente, o fato de operarem em uma zona temporal mais
lenta os coloca em séria desvantagem quando precisam enfrentar inimigos
“O
muito menores. Esmagador praticamente só teve tempo de pensar
QUEEE EEESTÁ ACOOONTEEE…” antes que
os guerreiros, em seus cavalos velozes, surgissem na clareira e amarrassem suas
pernas com correntes de ferro. Os guerreiros o alertaram de que matariam o
pônei se ele fizesse barulho, então o gigante foi arrastado dali em silêncio para
a Fortaleza de Ferro, balançando a copa das árvores enquanto tropeçava e
cambaleava atrás daqueles guerreiros irritados que mais pareciam formigas. (Por
que eles estavam tão MAL-HUMORADOS? Gigantes não entendiam o mau
humor. Era uma perda de tempo tão óbvia!)
Então tudo ficou silencioso. Mas o ar na clareira pareceu um pouco mais
frio que antes, e a neve se moveu e se avolumou, como um mar branco
ficando revolto. Será que havia mais alguém ali? Alguém que assistira a tudo
que acontecera? Que poderia estar procurando pela Espada Encantada?
Ah, sim, isso deixaria Magriço preocupado.
Mas se esse alguém fosse uma bruxa, por mais improvável que parecesse,
ele ia precisar de habilidades bem avançadas como guarda-costas…
Pés de bruxa não deixam pegadas.
Corpo de bruxa não faz sombra.
Mas deixam as árvores, a terra, o ar
Um pouco mais frios ao passar.

* Palavra dos elfos para os finos fios de gelo que se formam na madeira morta exposta a temperaturas
congelantes.
** Isso não é recomendado. Uma espada sempre deve ser guardada em segurança na bainha, mas Xar
não se preocupava muito com segurança.
Não estamos aqui, essa asa que você acha que viu é apenas uma folha entre mil
Aquela vaca já estava para morrer, então não se atreva a nos maldizer
A-irritar-os-elfos-e-censurar-sua-crueldade-e-fechar-sua-mão-em-um-punho-
de-verdade
Nada pode nos atingir, não somos coisa alguma, somos apenas bruma
E isso foi apenas o vento numa pluma.
Não temos eira nem beira, não ficamos de bobeira e nunca ousaríamos quebrar
aquela cadeira
Ou-deixá-la-parecendo-perfeita-e-esperar-que-alguém-grande-e-gordo-sente-
o-velho-traseiro-nela-e-PLUFT-PLOFT-HA-HA-HA-!-BAM!!!!!-a-
coisa-toda-se-parta-em-minúsculos-pedacinhos-e-depois-caia-no-chão-de-
pedra-e-quebre-a-mandíbula-e-faça-alarde-e-rosne-e-chore-até-não-
chorar-mais…
E isso não foi o sinistro riso de elfos enquanto ele chorava. E se disseram que
foi, é mentira.
Aquela criança já estava para morrer, então não se atreva a nos maldizer
A-irritar-os-elfos-e-censurar-sua-crueldade-e-fechar-sua-mão-em-um-punho-
de-verdade
Nada pode nos atingir.
Não somos coisa alguma.
Somos apenas bruma.
E isso foi apenas o vento numa pluma.
Os animais avançaram pelo labirinto da floresta negra pelo que pareceram
horas. Desejo, Xar e Magriço atravessaram o rio congelado e as ruínas da
Muralha Fantasma, que marcava o fim do território dos guerreiros e o começo
das terras dos feiticeiros, até chegarem a uma parte da floresta tão deformada e
emaranhada — cheia de galhos de roseira-brava, árvores caídas e videiras —
que era impossível continuar.
A lua apareceu por entre as nuvens, e Xar mandou que Ariel lançasse um
feitiço na parede espinhosa de vegetação cerrada à frente deles. Diante dos
olhos incrédulos de Desejo e Magriço, os arbustos e galhos se abriram,
desentrelaçando-se, como dedos invisíveis desatando um complicado nó em
uma linha de pesca. Com um ruído que lembrava joelhos de velho estalando,
as árvores se inclinaram e se curvaram para a esquerda e para a direita, e a
vegetação se achatou até uma clareira surgir diante deles.
Os cabelos na nuca de Desejo e Magriço se arrepiaram como as cerdas de
um porco-espinho quando os dois viram o que havia na clareira: um círculo
gigantesco de árvores muito antigas, a maioria gigantes. Teixo, bétula, sorveira,
amieiro, salgueiro, freixo, cerejeira, sabugueiro, macieira, choupo — todas as
espécies que se poderia imaginar, a mais importante delas sendo o carvalho, é
claro. Nenhum sinal de casas, apenas uma música e o aroma de fumaça das
chaminés.
Agora que estavam bem longe de casa e totalmente embrenhados em
território inimigo, Desejo começava a sentir muito, muito medo. E se Xar os
fizesse de reféns?
Xar tinha dito que os libertaria no dia seguinte, mas aquele garoto não
parecia lá muito confiável.
— Onde fica sua fortaleza? — perguntou Desejo, trêmula.
— No subterrâneo — respondeu Xar.
Imagine um acampamento que foi tragado para dentro da terra. Cada uma
daquelas árvores gigantescas era oca e levava luz para os aposentos, no subsolo.
Xar os levou até a árvore na qual ficava seu quarto, um grande e velho teixo,
tão retorcido em torno do próprio eixo que parecia um bloco de argila
moldado por um gigante. Eles subiram por uma série de escadas e plataformas
e entraram pela janela.
O coração de Desejo se apertou ainda mais. Agora não havia mais saída,
estavam presos ali, cercados por inimigos. E se Xar contasse aos outros
feiticeiros sobre ela? E se houvesse feiticeiros piores que Xar, que fizessem
feitiços e provocassem nela uma morte lenta?
Desejo sentiu o estômago embrulhar.
Não havia teto no quarto. Acima, via-se apenas o céu noturno estrelado.
O chão tinha rachaduras tão grandes que dava para ver o salão principal, doze
metros abaixo.
— Não se preocupem — disse Calíbano, tentando tranquilizar Magriço e
Desejo, que observavam, atônitos, enquanto Xar andava em círculos por um
piso que parecia feito em parte de ar. — O chão é sustentado por Magia.
Xar abriu a bolsa e pegou o Livro de Palavras Mágicas, buscando o feitiço
que transformava pessoas em vermes. Ficava bem ao lado da página que
ensinava a transformar pessoas em gatos (fácil) e o que ensinava a fazer gatos
voltarem a ser pessoas (mais complicado).
Primeiro, pensou Xar, puniria Pilhado, transformando-o em verme com a
Magia da bruxa. Então, em um clímax dramático, empunharia a espada e
mostraria a todos que podia usar Magia-que-atua-sobre-ferro. Obviamente,
todos começariam a bater palmas e incentivá-lo, gritando seu nome, e seu pai
se curvaria diante dele, dizendo: “Xar, sinto muito por ter duvidado de
você… Sempre soube que você era especial. Sei que tivemos nossos
desentendimentos, mas você é o herói que todos estávamos esperando.”
Seria TÃO maravilhoso!
Xar memorizou o feitiço e fechou o livro.
— Venham, elfos! A competição vai começar em alguns minutos, e
precisamos descer até lá para eu poder HUMILHAR Pilhado. Venham
comigo… menos vocês, Coração-da-Floresta, Olho-da-Noite, Gato-Rei, urso
e Sedento…
— Puxa vida por que eu ter que ficar pra trás? — reclamou Sedento.
— Porque você ADOROU os guerreiros — disse Xar, irritado, pois
estava com um pouco de ciúmes. — Então pode ficar aqui e vigiá-los.
— Não se preocupe, chefe… Sedento vai proteger os dois…
— Eu não disse PROTEGER, Sedento, eu disse VIGIAR. Eles são nossos
prisioneiros …
— Mas eu quer TANTO ver o chefe se transformar em lobisomem! — disse Sedento,
bastante desapontado.
— Já até consssigo ver pelosss a mais em ssseus braçossss — sibilou
Tempestade-de-Desavenças, os olhos brilhando de prazer sádico.
— Ora, calem a boca! — irritou-se Xar. — Eu não vou me transformar
em lobisomem! Isto é sangue de bruxa, e eu vou usá-lo para lançar feitiços!
— Mas você ainda não sabe se vai funcionar — observou Calíbano. —
Não seria melhor descobrir o que é essa mancha antes de aparecer para um
monte de gente, correndo o risco de se transformar em lobisomem diante dos
olhos de todos?
Xar o encarou como se ele fosse completamente maluco.
— Mas para isso eu precisaria ESPERAR. E a Competição de Feitiços está
acontecendo AGORA. Além do mais, mesmo que o sangue da bruxa não
funcione, sei que a espada funciona.
— É proibido levar espadas para Competições de Feitiços, Xar, muito
menos uma espada de FERRO — alertou Calíbano.
— E a espada é nossa! — protestou Desejo.
— Eu gostaria que você parasse de dizer isso. Esta é uma espada mágica —
retrucou Xar. — Portanto, ela pertence a mim. E quanto a toda essa ladainha
tenebrosa de que o universo nos dá o que oferecemos, Calíbano, bem, só
posso dizer que, ao trazer essa espada até mim, o universo claramente acha que
eu sou bastante especial…
— E o universo está CERTÓSSIMO! — gritou Sedento.
Não havia como argumentar com Xar quando ele estava com esse tipo de
humor.
— O universo na realidade está mandando uma chuva torrencial — disse
Calíbano, sombrio, sentindo grandes pingos de chuva caírem em suas penas.
Lá embaixo, no salão principal, dava para ouvir o som jubilante de gigantes
dançando e vozes felizes. Lá em cima, no pequeno aposento emaranhado por
cipós que balançavam ao vento como um barco à deriva no mar, uma chuva
forte começava a inundar o quarto de Xar.
— Por que alguém projetaria um quarto sem teto?! — perguntou-se
Magriço. — Não é nada prático.
— Tempestade-de-Desavenças! — clamou Xar —, faça um feitiço
climático antes que todos morramos afogados. E você vai ter que ficar aqui
para manter o feitiço, para que os prisioneiros não se molhem…
Tempestade-de-Desavenças bufou, contrariada.
— PorquesousempreEUquemtemquefazertudo? Eu queria ver a
Competição de Feitiços! — reclamou ela, antes de pegar, de má vontade, uma
varinha número 4 na bolsa.
Ela escolheu um feitiço e o lançou com a varinha. Um belo e pequeno
guarda-chuva de vento invisível brotou da extremidade do feitiço, pairando a
mais ou menos um metro acima deles. A chuva começou a escorrer pelas
beiradas, como uma cachoeira.
— Minha nossa, isso é incrível! — exclamou Desejo, admirada.
— Não se deixe impressionar, princesa! — retrucou Magriço. — Lembre-
se, a Magia pode ser atraente por fora, mas é sinônimo de perigo, caos…
— Mas você tem que admitir que é extremamente útil se não quiser se
molhar — disse Xar.
— Um teto também funciona muito bem — rebateu Magriço.
Xar saiu e trancou a porta.
— Ele levou a espada — lamentou Desejo, bastante desapontada. —
Vamos ter que esperar até Xar retornar para roubá-la de volta enquanto ele
estiver dormindo.
— Tudo bem, digamos que a gente consiga fazer isso — ponderou
Magriço. — Como vamos voltar para nossa fortaleza? Não podemos ir
ANDANDO, pois fica a quilômetros de distância.
— Ah, céus, Xar estava certo, somos prisioneiros! — disse Desejo,
olhando pela janela para a escuridão da noite. Era um longo caminho até a
base da torre, e não havia nenhum sinal do gigante ou do pônei. — E acho
que o pobre Esmagador foi capturado pelos guerreiros da minha mãe…
— Tadinho do Esmagador?! Ele é um GIGANTE, Desejo! — exclamou
Magriço, muito chocado. — De que lado você está?
Com um suspiro profundo, Desejo deu as costas para a janela e pegou o
Livro das Palavras Mágicas, que Xar havia deixado na mesa.
— Magriço, você PRECISA ver isto, é inacreditável! — disse Desejo,
esquecendo o medo e a ansiedade e quase deixando o livro cair de tanta
animação.
— Nós realmente não deveríamos mexer nessas coisas, Desejo — alertou
Magriço, angustiado. — É um livro mágico… não deveríamos estar
olhando… não deveríamos estar ouvindo… não deveríamos estar segurando
nada disso…
— Mas esse livro diz que tem seis milhões de páginas!
— Impossível — retrucou Magriço, não conseguindo se conter e olhando
por cima do ombro dela, pois amava livros, e um livro com seis milhões de
páginas era algo que ele precisava ver.
— Veja! — disse Desejo. — Está escrito aqui que é um guia completo
para absolutamente tudo que é preciso saber sobre o mundo mágico. Mapas,
receitas, toda espécie de criaturas mágicas, feiticeiros, bruxas, trasgos, anões,
elfos… E tem uma descrição de cada um… e tem uma seção sobre palavras
perdidas… isso parece interessante… línguas: dos anões, dos elfos, dos
gigantes, das portas… Como assim uma língua das portas? Eu não sabia que
portas falavam…
O livro era muito confuso de ler porque as páginas ficavam caindo, e
quando flutuavam de volta se encaixavam em uma parte diferente. Quem quer
que o tivesse escrito era muito desorganizado e não parava de dar voltas e mais
voltas que poderiam levar a algum lugar ou em becos sem saída.
— Os erros de ortografia são quase tão ruins quanto os meus — observou
Desejo, triunfante.
— Isso não é uma coisa boa, Desejo — observou Magriço. — Você sabe
que sua mãe diria que só tem UMA maneira de escrever as coisas, e é a
maneira CORRETA. Qualquer coisa diferente disso é caos… desordem…
anarquia…
Desejo não o estava ouvindo.
— Ah, minha nossa! Olhe! EU estou neste livro — disse ela, perplexa,
mostrando uma ilustração na parte que falava sobre os gigantes. — Tem
também o Esmagador! Como isso é possível?
Magriço espiou de novo.
— Bem, é só o desenho de uma menina, não é? Não é necessariamente
você…
— Tem uma colher na cabeça da menina!
— É verdade… — Magriço soltou um suspiro. — Acho que pode ser
você, porque esse livro é mágico… — Ele estremeceu: a ideia de que um livro
podia escrever sobre alguém sem que esse alguém soubesse disso era mesmo
sinistra. — E é por isso que REALMENTE, REALMENTE não deveríamos
estar lendo nada disso…
— Só estou folheando para ver se encontramos uma maneira de fugir
daqui.
Sedento, Tempestade-de-Desavenças e os gatos-da-neve não estavam
fazendo um trabalho muito bom em vigiar os prisioneiros. Tinha sido um dia
longo e cansativo, e todos haviam pegado no sono, então Magriço se animou
um pouco, pensando que talvez eles PUDESSEM escapar.
— Agora nos resta saber como Xar fez o livro funcionar — perguntou-se
Desejo, intrigada. — Ele tocou nas letras do índice e as páginas se viraram
magicamente até o local certo… Droga, eu não sei soletrar muito bem.
Magriço, será que você pode me ajudar?
Magriço olhou por cima do ombro de Desejo e tocou nas letras,
formando: “Como escapar de uma árvore mágica na fortaleza dos feiticeiros e
voltar para casa pelo Bosque Maligno sem corda, sem transporte, sem bússola e
sem nenhuma outra maneira de se localizar?”
Todas as respostas, porém, pareciam envolver algum tipo de equipamento
especializado, como tapetes voadores ou sapatos alados, e muitas delas
alertavam sobre os perigos do Bosque Maligno de forma terrivelmente realista e
com detalhes macabros, citando gatos gigantes, lobisomens e cogumelos com
dentes. Magriço não queria ser lembrado dessas coisas.
Os dois levaram um susto, nervosos, ao ouvir um barulho ensurdecedor
vindo de algum lugar abaixo do quarto — como vinte trovoadas soando ao
mesmo tempo. Era o som de alguns feiticeiros se enfrentando no salão
principal.
— Minha nossa, o que foi isso?! — exclamou Magriço.
Desejo espiou por entre as rachaduras nas paredes do quarto e conseguiu
ver o salão principal.
A Competição de Feitiços estava começando.
Era uma festa do FOGO, então fogueiras altas ardiam em todos os cantos do
salão principal, e um grande círculo de fogo crepitante marcava o ringue de
feitiçaria, bem no centro vibrante do barulhento banquete.
O salão estava lotado de feiticeiros de todas as idades e tamanhos, e
gigantes sonolentos e alegres dançavam ou cochilavam pesadamente nos cantos
do salão, sem falar nos lobos uivando, ursos se deslocando pesadamente, gatos-
da-neve observando tudo com atenção nas sombras dos galhos acima,
balançando o rabo. Violinos e cornetas dançavam no ar, tocando sozinhos e
com bastante independência, sem nenhum músico à vista.
Em um canto do salão, Encanzo, o Encantador, estava imerso em uma
discussão política com outros feiticeiros. Giradório, um feiticeiro de uma tribo
rival, argumentava que os feiticeiros precisavam lutar contra os guerreiros,
como seus ancestrais tinham feito no passado.
— Chegou a hora de uma BATALHA — dizia ele. — E de um novo
líder. EU, por exemplo. Eu poderia ser rei no seu lugar, Encanzo…
A Competição de Feitiços dos Jovens Feiticeiros estava acontecendo em
outro canto do salão. Pilhado havia derrotado todos os seus oponentes quando
Xar entrou, cheio de empáfia, seguido pelo urso e pelos lobos, os elfos voando
logo acima deles, roubando chapéus, apertando narizes e apenas se exibindo,
de modo geral. Em dois segundos, Ariel tinha:
... passado voando por baixo de todas as mesas do banquete, amarrado os cadarços
dos sapatos de todas as pessoas, de modo que, quando se levantassem, elas cairiam de
cara na mesa, com sorte dentro de alguma coisa molhada e quente, como um
ENSOPADO.
Tempo-Perdido transformou parte do chão em gelo.
E todos os outros elfos estavam causando pequenos incômodos igualmente
perversos…
— O que você está fazendo aqui, Xar? — perguntou Pilhado, com
desprezo. — Sua Magia ainda não se manifestou.
— Estou aqui para desafiar você — disse Xar, solenemente.
— Como é que é? — Pilhado riu. — Não vá me dizer que você capturou
a tal BRUXA, irmãozinho — continuou ele, despreocupado. Pilhado se virou
para seus amigos, que não paravam de rir, e apontou para Xar. — Esse
fracassado achou que ia capturar uma bruxa para roubar sua Magia…
— HA HA HA HA HA! — riram os jovens feiticeiros.
Xar não se deixou abalar.
— Talvez eu tenha capturado a bruxa, Pilhado. Por que não tenta jogar
algum de seus feitiços em mim, para vermos o que acontece? Ou será que
você está COM MEDO?
— Cuidado, Pilhado! — alertou Obtuso. — Ele realmente capturou
alguma coisa… Eu não sei o que foi…
— É óbvio que você não capturou uma bruxa — zombou Pilhado. — E
não consegue lançar feitiços, irmãozinho querido. Eu avisei que, se você
ousasse entrar nesta competição, seria ANIQUILADO. E é o que vou fazer…
Xar entrou no círculo de giz, e, quando pisou lá dentro, ouviu-se um
breve zumbido e um campo de força se ergueu sobre ele e Pilhado. Era um
domo fluido e invisível, e a energia que continha o fazia sibilar.
Todos ficaram em silêncio, o tipo de silêncio de quando você sabe que
algo importante vai acontecer. Tempo-Perdido pegou uma varinha; Abelhuda
fez o mesmo. Mas eles não podiam ajudar Xar dentro do domo.
Ele estava por conta própria.
Xar ergueu as mãos, estendendo-as na direção do irmão.
— Ah, então você vai fazer Magia sem um cajado, Xar? — zombou
Pilhado, e todos os seus amigos riram alto.
Usar Magia sem um cajado era um atributo avançado de feitiçaria, e apenas
Grandes Encantadores, como o pai de Xar, eram capazes de tal feito.
— Tenha medo, Pilhado, tenha muito medo — alertou Xar. — Porque
eu não tenho apenas a Magia de uma bruxa… minha Magia tem o poder de
atuar sobre ferro…
— HA, HA, HA, HA, HA, HA, HA! — riram todos os jovens feiticeiros.
— É mesmo? — disse Pilhado, sorrindo.
Ele ia se divertir taaaanto com aquilo...
— É — respondeu Xar. — Eu sou o garoto escolhido pelo destino.
Cheio de confiança, Xar ergueu a mão com a marca da bruxa.
Sinta o poder…, pensou. Sinta o poder…
“Imagine o poder em sua mente… Sinta-o em seus dedos…”, era o que os
professores sempre diziam.
Mas Xar foi ficando com o rosto cada vez mais vermelho, e cada vez mais
irritado, e foi como em todas as outras vezes que ele tentou fazer Magia e não
conseguiu…
Nada, nada aconteceu.
Pilhado se esgueirava com cautela pela borda do círculo, para o caso de seu
irmão lunático REALMENTE ter capturado alguma forma de vida extinta.
Embora fosse impossível, nunca se sabia quando se tratava de Xar. Ele era
especialista em fazer coisas impossíveis acontecerem.
Então os olhos de Pilhado se iluminaram.
— Ai, ai… — cantarolou ele, segurando alegremente o cajado. — Ai, ai…
Então, garoto predestinado, escolhido… onde está sua terrível Magia de
bruxa?
— O garoto predestinado! — riram os jovens feiticeiros fora do círculo.
— Eu não entendo — disse Xar, confuso e furioso. — Eu SOU o garoto
predestinado. Eu POSSO fazer isso… Sei que posso usar Magia…
Droga!, pensou Xar. Ele tinha tanta certeza, com aquela coisa de matar
bruxas escrito na espada e tudo mais, de que era tudo um sinal do destino! Mas
talvez tivesse se enganado… E se aquilo não era sangue de bruxa, então o que
era?
Por favor, por favor, não posso me transformar em lobisomem na frente de todo
mundo, pensou Xar. Seria uma vergonha.
Não foi a primeira vez que ele desejou ter seguido o conselho de
Calíbano. Sentia o corpo inteiro formigando, como se os pelos estivessem
prestes a se eriçar.
— Você não consegue lançar feitiços — disse Pilhado. — Mas eu consigo.
Vou mostrar a você como é que se faz. Só não sei ainda o que fazer primeiro...
Talvez eu deva fazer… isto!
Ele apontou o cajado para o irmão. Houve um lampejo de relâmpago
difuso, e o calor incandescente da Magia disparou do cajado, atingindo Xar no
peito com tanta força que o garoto foi jogado contra a parede do campo de
força mágico.
Maldição, pensou Xar, atordoado, enquanto se levantava. Isso não está saindo
de acordo com meus planos…
— Vou deixar você verde… — Pilhado sorriu, atirando explosões de
Magia em Xar, que ficou verde néon ao ser jogado do outro lado do círculo.
O menino tentava não gritar enquanto os golpes o atingiam como socos no
estômago. — E depois vermelho… amarelo… rosa…
Xar era atirado em todas as direções no ringue de feitiços, mudando de cor
sem parar, e foi ficando mais e mais enjoado. Estava se segurando para não
vomitar na frente de todo mundo.
— HA, HA, HA, HA, HA! — gargalhavam os puxa-sacos de Pilhado e as
crianças feiticeiras nas quais Xar já tinha pregado peças e às quais já dera
ordens.
— Você precisa aprender uma lição, Xar. E eu vou lhe ensinar uma lição
que você nunca, nunca vai esquecer.
Pilhado se aproximou do irmão, que estava dobrado de dor, gemendo.
— Você já é pequeno — disse Pilhado. — Mas vou deixá-lo ainda
menor…
Ele apontou o cajado para Xar e murmurou um feitiço:
— E-N-C-O-L-H-E-R… Encolher…
Ah, não… um feitiço de encolhimento, não, pensou Xar. É muito doloroso. E eu
já sou pequeno. É melhor eu usar a espada.
Mas ele não teve tempo para isso. A Magia saiu da ponta do cajado de
Pilhado, atingiu o corpo curvado de Xar e fez suas extremidades se
iluminarem como se ele fosse feito de pó de estrelas.
Xar sufocou um uivo de dor quando as estrelas o apertaram como um
punho maligno. A pressão começou na testa e se espalhou por todo o seu
corpo, o feitiço se intensificando, apertando-o e esmagando-o como se ele
estivesse usando uma armadura que encolhia mais e mais a cada segundo.
— Reconheça minha vitória! — gritou Pilhado, recuando para dar a Xar
um momento para se recuperar. — Renda-se!
Mesmo com a boca deformada por causa do encolhimento, Xar conseguiu
gritar:
— Não! Eu não me rendo!
As palavras saíram estranhamente esganiçadas pelo “O” encolhido e
contorcido de seus lábios.
— Ah, então quer ficar ainda menor… — disse Pilhado.
Dessa vez, Xar soltou um grito quando o feitiço o atingiu — era um
guinchar trêmulo de apertões e pressão encolhendo seus ossos. Droga. Aquilo
não estava lhe dando tempo para pegar a maldita espada.
— Você desiste? — perguntou Pilhado.
— É claro que não!!! — gritou Xar. — Agora você realmente me irritou,
Pilhado!
Por sorte, isso fez o irmão mais velho parar de usar Magia por um
segundo: estava rindo tanto que quase deixou o cajado cair.
— Ah, eu REALMENTE irritei você, foi? Estou com tanto medo, tanto
medo…
Enquanto Pilhado ria, Xar conseguiu pegar a espada. E no último instante
— se suas mãos tivessem ficado menores, ele não conseguiria empunhá-la.
Conseguiu fechar os dedos em torno do cabo e tirar a espada do cinto.
E foi um momento de triunfo.
Xar brandiu a Espada Encantada, fazendo aquele zunido agradável das
espadas, e, quando ouviram aquilo, os olhares de todos passaram do escárnio à
surpresa e ao horror, ao se darem conta do material do qual a espada era feita.
Ferro…
Pilhado deu um passo para trás.
— Você não pode entrar com uma ESPADA DE FERRO aqui… Onde
conseguiu isso, seu louco?
— Eu invadi a fortaleza dos guerreiros — mentiu Xar, gabando-se — e a
roubei bem debaixo do nariz empinado e melequento deles… E posso entrar
com ela aqui porque é uma espada mágica matadora de bruxas. Como você
vai ver, a minha Magia, que JÁ se manifestou, controla a espada…
Aflito, Pilhado atirou um raio de Magia no irmão, que se aproximava,
mas, com um golpe prazeroso da espada, Xar cortou o raio ao meio antes que
fizesse algum estrago.
— Outro feitiço de encolhimento, Pilhado? — zombou ele. — É melhor
tentar de novo, porque estou me aproximando…
Então a luta começou de verdade: Pilhado atirando feitiços rápidos e
quentes com o cajado e Xar os interceptando e partindo-os ao meio. Os
feitiços caíam no chão, inutilizados, tão rápido quanto Pilhado os atirava.
A espada parecia viva na mão de Xar, como um salmão recém-pescado, e
antecipava os movimentos de Pilhado.
Como Xar não era tão leve quanto Desejo, não ficava tão claro que era a
espada que estava lutando, e não o próprio Xar. Ele parecia apenas ter se
tornado, súbita e milagrosamente, o Melhor Espadachim do Mundo.
Os feiticeiros agora apontavam para ele com admiração em vez de
escárnio. Acompanhavam Xar correndo pelo ringue, cortando os feitiços de
Pilhado e gritando:
— O que tem a dizer sobre minha Magia AGORA, Pilhado?
E se exibindo, de maneira geral.
Está funcionando!, pensou Xar, satisfeito.

E era tão incrível quanto ele havia sonhado.


Ele ouviu Heliotrópia dizendo para Canção-da-Folhagem:
— Uau, lutar com espada é mais legal que lutar com cajado, não acha?
E Canção-da-Folhagem respondeu:
— Você acha que Xar é mesmo predestinado?
Eu sou especial!, pensou o garoto, exultante. Sempre soube que era especial! E
agora todo mundo vai saber também.
Mas então tudo deu errado.
Súbita e misteriosamente, a Espada Encantada começou a arrastar Xar com
violência para a esquerda e para a direita.
O que está acontecendo?, pensou ele.
Em um momento era como se Xar e a espada fossem um só, e ele estava
triunfante no controle. Então, no momento seguinte, parecia que a espada
estava tentando fugir. Isso era preocupante.
Xar precisou segurar a espada com ambas as mãos, até que um grande salto
o elevou um metro no ar, a espada se soltou de suas mãos e disparou para
cima, atravessando o domo mágico e fazendo-o explodir.
BUUUUUUUUUUMMMM!!
A força da explosão fez raios violentos de Magia ricochetearem pelo
grande salão, abrindo buracos no teto. Bolas de fogo do tamanho de abóboras
saíram voando para todo lado.
Depois de escapar do círculo mágico, a espada voou até as vigas do teto do
salão e desapareceu na direção do quarto de Xar…
Xar e Pilhado tinham sido jogados para trás. Quando a fumaça se
dispersou, estavam caídos no chão, tossindo muito.
Uma grande fenda se abrira aos pés de Xar, rachando o piso do salão de
ponta a ponta.
— O QUE ESTÁ ACONTECENDO
AQUI?
A voz do rei Encanzo soou fria como gelo.
O rei Encanzo era um homem alto, que a Magia fazia parecer ainda mais alto.
Era até incômodo olhar para ele, pois parecia estar sempre mudando
sutilmente de forma, os traços ficando borrados e em seguida nítidos de novo.
Mas, por baixo de seu rosto em constante mudança, onde a Magia ia e vinha
feito ondas na praia, ele era duro e inflexível como um penhasco.
O Encantador era um feiticeiro tão poderoso que chegava a ser um pouco
assustador, mesmo quando estava apenas parado e em silêncio. Ele tinha uma
unha preta na mão direita, e havia uma história mirabolante sobre como aquela
unha tinha ficado daquela cor, mas ninguém ousava perguntar a ele.
Dois gatos-da-neve muito grandes e muito velhos se instalaram ao lado do
Rei Encantador como se fossem estátuas emoldurando uma porta.
Xar e Pilhado se levantaram a muito custo, como dois espantalhos
chamuscados.
— Xar! — gritou o Encantador, irritado. — O que aconteceu aqui? E o
que você está fazendo participando da Competição de Feitiços? — A raiva
gélida deixou a voz do rei por um segundo quando ele perguntou: — Sua
Magia finalmente se manifestou?
O rei parecia ansioso ao perguntar isso. Ansioso demais, revelando quanto
ele queria que a Magia do filho se manifestasse.
— Sim — respondeu Xar.
— É mentira! — retrucou Pilhado.
— E então, Xar? — perguntou o rei Encanzo com severidade, e dessa vez
dava para notar seu desapontamento. — Sua Magia se manifestou ou não?
— Acho que não — admitiu Xar, amuado.
— Então por que está nesta competição… — começou o rei, mas Pilhado
estava tão irritado que interrompeu o pai, com grosseria:
— Ele trapaceou! Está completamente fora de controle! Foi até o Bosque
Maligno com um plano maluco de capturar uma bruxa e ficar com a Magia
dela, depois tentou me atacar com essa…
Pilhado ia contar ao pai sobre a espada, mas infelizmente o rei o puniu por
sua falta de educação: costurou sua boca com Magia antes que ele terminasse a
frase. Um leve movimento do dedo mindinho, e a mandíbula de Pilhado se
contraiu como se ele tivesse tétano.
Empolado, professor de Feitiçaria e Arte Avançada de Feitiços, se
aproximou deles. Era um homem muito pomposo, com um nariz que parecia
uma lagosta rica e vários queixos indignados e trêmulos. Seu ar de dignidade e
calma tinha sido perturbado pelo fato de que ele era seguido de perto não
apenas por elfos grandiosos e antigos, mas também por seis leitõezinhos, que
guinchavam carinhosamente para ele.
— Tentei falar a respeito disso em muitas, MUITAS ocasiões, Encantador!
— gritou Empolado. — Mas Sua Excelência preferiu não ouvir! Esta é apenas
a última em uma longa lista de desobediências! Na última semana, seu filho
escalou o mastro montado no gato-da-neve… removeu a bandeira da tribo
dos feiticeiros e a substituiu por um par de cuecas de Sua Excelência…
incendiou uma área do acampamento…
— Foi um acidente! — defendeu-se Xar, interrompendo-o. — Eu só
estava provocando os elfos da chaminé, mas eles não sabem brincar… Além
disso — acrescentou ele, apressado —, não fui eu e eu não estava lá…
Para a última reclamação, a voz de Empolado diminuiu para um tremor
eletrizante e furioso que fez seus queixos estremecerem e baterem uns nos
outros:
— E o pior de tudo: ele colocou a poção O Amor Nunca Mente na ração
dos porcos, e agora eles estão se comportando da maneira mais
REVOLTANTE…
Apesar da irritação intensa com o filho mais novo, os lábios do rei se
contorceram num riso de diversão. Ele se virou para os porcos, que encaravam
Empolado com olhares apaixonados.
— Ah, sim, eu estava justamente me perguntando por que você tinha
começado a ter porcos como seguidores, Empolado… Não é muito digno
para um feiticeiro experiente da sua posição, suponho…
— Os porcos — disse Empolado, irritado — não foram ideia minha! Seu
filho os colocou atrás de mim! E Sua Excelência não deveria achar isso
divertido. A desobediência e a ausência de Magia de Xar são motivo de
vergonha para toda a tribo.
— O que tem a dizer em sua defesa, Xar? — perguntou o rei.
— Você não tem nenhuma prova! — gritou Xar, dando socos furiosos no
ar. — Eu sou Xar, o Magnífico, e exijo um julgamento justo!
— É claro — disse Encanzo, o Magnífico. — Pode me mostrar o que tem
aí, Xar? — Ele apontou para um embrulho que estava à mostra em uma das
bolsinhas penduradas no cinto do filho.
Muito relutante, Xar tirou o embrulho da bolsinha e o abriu.
O embrulho revelou uma bandeira queimada da tribo dos feiticeiros,
enrolada em torno de uma garrafinha pela metade da poção O Amor Nunca
Mente.
Encanzo balançou a bandeira.
— Siiiim… Eu chamaria isto de prova, você não? E o declaro…
CULPADO.
— Nunca vi essa bandeira na vida! — declarou Xar.
Infelizmente, ele ainda estava segurando o frasco da poção.
E a poção tem duas propriedades. Uma delas é que, se você a cheira ou
ingere, se apaixona pela próxima pessoa ou animal que encontrar. A outra é
que ela passa do vermelho ao azul quando a pessoa que a está segurando conta
uma mentira.
Encanzo observou o líquido passar lentamente do castanho-avermelhado
para uma espécie de roxo esfumaçado.
— Alguém deve ter colocado essa bandeira e a poção no meu bolso,
porque elas com certeza não pertencem a MIM! — insistiu Xar, seguindo com
a mentira.
O índigo da poção ficou preto diante da magnitude daquela inverdade. O
frasco se encheu de fumaça e se sacudiu na mão de Xar. Até a rolha saiu, e o
garoto se apressou em colocá-la de volta. Mas não antes que uma pequena
névoa da poção envolvesse os porquinhos sentados em um círculo silencioso e
apaixonado em torno dos pés de Empolado, e essa nova dose fez com que eles
voltassem a ficar de pé e grunhissem feito loucos, fazendo ruídos cada vez mais
inconvenientes na tentativa de chamar a atenção de Empolado.
— AAAARGHH! — rugiu Empolado, enxotando os porquinhos. —
SAIAM DE PERTO DE MIM! XÔ! SUAS CRIATURAS INFERNAIS,
XÔ, XÔ!
Apenas Xar ousou rir daquela cena hilária, porque o rei Encanzo já tinha
parado de se divertir. Ele olhava para o filho mais novo com as sobrancelhas
franzidas e seus ferozes olhos de águia.
— Você não só é culpado de tudo que Empolado e Pilhado o acusaram,
meu filho, mas também é um mentiroso e um ladrão — disse o rei, com
severidade.
Maldito fosse seu pai! Por que ele sempre tinha que fazer Xar se sentir tão
pequeno?
— E agora você precisa parar com esses truquezinhos tolos e CRESCER
— continuou o rei. — Apesar de todas essas outras coisas serem apenas
estúpidas e infantis, tentar obter Magia de uma fonte maligna é um crime
grave, pelo qual feiticeiros já foram banidos…
— E ele DEVERIA ser banido! — disse Empolado, entusiasmado. — O
filho mais novo de Encanzo, o Magnífico, rei dos feiticeiros, não ter Magia! É
uma vergonha! É terrível! E SE A MAGIA DELE NUNCA SE
MANIFESTAR? Seríamos motivo de chacota por toda a floresta.
O estômago de Xar se contorceu.
— Você só vai se livrar de ser banido por causa da absoluta estupidez da
sua ideia, Xar — disse o rei Encanzo, com uma frieza assustadora. — Até
mesmo um garoto de treze anos deveria saber que as bruxas estão extintas. E se
houvesse uma bruxa à solta, só um louco tentaria encontrá-la.
Encanzo apontou o dedo para Xar. Ele não precisava de cajado para
concentrar a Magia. Seus feitiços saíam com uma intensidade tão pura que não
eram nem mesmo visíveis.
As roupas enegrecidas de Xar se apertaram em seu corpo com tanta força
que ele mal conseguia respirar.
Havia desenhos de cobras se contorcendo no chão de barro em volta de
Xar. As cobras começaram a se mover em torno umas das outras e em seguida
tomaram forma e se ergueram do chão, enroscando-se nas pernas do garoto.
As roupas o elevaram no ar como se ele estivesse pendurado nos galhos de
uma árvore, e as cobras sibilantes se transformaram em mercúrio líquido, que
o envolveu e se solidificou, transformando-se em correntes. Ele ficou
pendurado no ar, preso pelos grilhões.
— ME COLOQUE NO CHÃO! — gritou Xar, furioso.
— Você entrou no Bosque Maligno, contrariando minhas ordens — disse
o rei Encanzo. — Tentou obter Magia de uma fonte obscura e trazê-la para
esta fortaleza, para trapacear e vencer a Competição de Feitiços. Vou deixar
você aí até eu decidir qual será sua punição.
— Não entendo por que eu deveria ser punido! — Xar bufou, tentando se
livrar das correntes, chutando o ar. — Não é justo! Não sei por que você
sempre cisma comigo!
— Eu cismo com você porque é sempre você o culpado de tudo —
respondeu Encanzo, exasperado.
Calíbano abriu as asas e sussurrou no ouvido do rei:
— Eu sugiro paciência. É muito importante ser paciente com as crianças e
tentar ver as coisas do ponto de vista delas.
— Eu fui muito paciente com o menino — disse o Encantador, por entre os
dentes cerrados —, mas minha paciência está se esgotando. Ele precisa
aprender a me obedecer, e, se não o fizer, tem que ser punido.
— Quanto mais severa for a punição, mais ele vai se rebelar — alertou
Calíbano.
Dementor, o embaixador do Alto Comando Druida na Corte, cofiou a
barba e ergueu o dedo bem alto no ar.
— Um garoto sem Magia é um sinal de que os deuses estão descontentes!
— Isso é verdade! — concordou Giradório, um feiticeiro rival que estava
sempre tentando destronar Encanzo (essa é outra história que vou contar mais
tarde). — E talvez sua incapacidade de punir e controlar seu filho de maneira
eficaz seja um sinal de que você não é a pessoa certa para ser o comandante
desta tribo…
Ah, ser pai e rei é mais difícil do que parece.
Todos pensam que poderiam fazer melhor que o pai ou monarca em
questão.
— CALEM-SE! — berrou Encanzo. — Quando eu precisar dos seus
conselhos, eu pedirei. Xar só está sendo infantil e desobediente e querendo se
exibir na frente dos amigos, porque sua Magia ainda não se manifestou.
Xar perdeu a cabeça.
— Pelo menos eu estou tentando FAZER alguma coisa! — gritou. —
Pelo menos estou tentando AGIR! Enquanto você, pai, você não faz
absolutamente nada!
Todos os presentes no salão prenderam a respiração ao mesmo tempo. Os
contornos do Encantador zumbiram de fúria. Grandes faíscas dispararam dele;
acima, as nuvens que flutuavam pelo teto alto do salão ficaram cada vez mais
escuras, e o ronco de grandes trovões ecoou por todo o ambiente.
Calíbano cobriu os olhos com as asas. Será que Xar estava realmente
tentando ser banido?
— Por que não estamos lá fora enfrentando o exército dos guerreiros? —
gritou Xar.
— Era justamente isso que eu estava querendo dizer — ronronou
Giradório, os olhos brilhando de prazer. — Até o próprio filho de Encanzo acha
que o pai não está fazendo um bom trabalho como rei…
O homem parou de falar, porque o dedo do Encantador tinha feito um
movimento sutil, e o colar de metal torcido no pescoço de Giradório se
apertou inexplicavelmente. Ele levou um bom tempo para voltar a respirar.
— Confrontar os guerreiros só seria uma boa ideia se fosse uma luta que
pudéssemos vencer — explicou o rei Encanzo, tentando manter a paciência.
— Por que acha que não podemos vencer? — gritou Xar. — Talvez os
guerreiros já estejam nos vencendo de qualquer maneira enquanto ficamos
aqui escondidos em nossa floresta cada vez menor, girando os polegares,
tocando violino e fazendo nossos feitiços e poções do amor imbecis. Enquanto
isso, eles queimam nossa floresta, matam nossos gigantes e destroem todo o
nosso modo de vida!
Os olhos de Encanzo, o Encantador, faiscaram.
— Estamos nos escondendo dos guerreiros como covardes! — gritou Xar.
— Por que está nos ensinando a sermos tão covardes, pai? Talvez você seja um
covarde…
— Silêncio! — berrou o rei Encanzo. — Ou vou FAZER com que fique
em silêncio! Vou costurar seus lábios bem apertados com Magia!
— Vá em frente! — desafiou Xar. — Eu não me importo!
— Chega! Já decidi qual vai ser sua punição. Você, seus elfos e seus
animais vão ficar trancados em seu quarto por três dias.
— Isso não basta… — murmurou Empolado, furioso.
Xar pareceu chocado.
— Não! Pai!
— Você deveria ter pensado duas vezes antes de me desobedecer — disse
o Encantador, com sua voz mais severa. — Agora fique quieto!
— Fui eu que desobedeci! Não puna os OUTROS! Puna a MIM! —
pediu Xar, furioso.
— Três dias — disse o Encantador, com ainda mais frieza, lívido de raiva.
— E a cada palavra que você falar, vou acrescentar mais um dia.
Xar abriu a boca… mas voltou a fechá-la.
— Quatro dias. Não vai sair do seu quarto por quatro dias. E se não me
ouvir e me desobedecer mais uma vez, vou tirar seus animais e seus elfos de
você PARA SEMPRE!
Xar realmente se importava com isso. Minha nossa, como se importava.
Ele ficou em silêncio.
— Eu sou o rei aqui… — disse o Encantador. — TODOS vocês precisam
se lembrar disso. E Xar precisa se lembrar de quem somos…
O pai fez uma pausa e continuou:
— Você tem uma opinião muito elevada sobre si mesmo, Xar, mas a
verdade é que é presunçoso, desobediente e incrivelmente orgulhoso, e o fato
de ter tentado obter Magia maligna de uma bruxa mostra que não entende
nem o básico do que significa ser um feiticeiro, pois feiticeiros devem buscar
Magia boa, meu filho… Você tem uma última chance de ser bom — alertou o
Encantador. — Comporte-se, pois mais uma desobediência, e serei obrigado a
bani-lo e a tirar de você todos os seus animais e elfos.
— VOCÊ NÃO SE IMPORTA COMIGO! — gritou Xar, com toda a
força. — VOCÊ SÓ QUER UM FILHO QUE TENHA MAGIA!!
— SILÊNCIO!!! — rugiu o Encantador.
Ele moveu mais uma vez o braço, e por todo o salão, onde a explosão do
ringue de feitiços tinha reduzido colunas, pilares e escadas em milhares de
minúsculos pedaços, os pequenos fragmentos de poeira se ergueram do chão e
dançaram no ar, como nuvens de abelhas zumbindo.
O Encantador moveu os braços como se estivesse regendo uma orquestra
invisível, e a poeira seguiu suas instruções.
— É fácil destruir — disse ele. — Mas eu não sou como um guerreiro,
que se deixa impressionar pela destruição. É muito mais difícil criar, e criar é o
que os feiticeiros fazem melhor. Toquem, violinos, toquem!
Os violinos se elevaram no ar e começaram a tocar sozinhos, e os milhões
de minúsculos fragmentos foram ondulando pelo gigantesco salão em enormes
nuvens, como fumaça de um incêndio florestal, dançando no ritmo da música
com tanta energia e tão velozes que dava para sentir o calor emanando deles e
aquecendo o rosto dos feiticeiros admirados, que assistiam a tudo perplexos.
Foi uma demonstração impactante do poder do Encantador, porque a
invenção era uma Magia muito mais difícil do que a demolição, e só ELE
podia realizar uma Magia tão impressionante como aquela. Ele estava fazendo
aquilo para mostrar algo ao filho e para lembrar a Giradório e aos outros
feiticeiros reunidos ali o que deveriam defender.
E funcionou. Até Giradório ficou (embora relutantemente) boquiaberto de
admiração (enquanto xingava baixinho, não se engane).
— Crie, Xar, crie, pois só assim vai me impressionar — finalizou o
Encantador, seus braços se movimentando frenética e gloriosamente ao som da
música que tinha inspirado. — E, enquanto isso, vai ficar no seu quarto até eu
dizer que pode sair.
BUM!
Com uma explosão final de Magia, que parecia capaz de estourar os
tímpanos e que iluminou todo o salão como um raio, as milhões de
minúsculas partículas de poeira se juntaram e formaram colunas inteiras mais
uma vez. A rachadura no chão se fechou, e as roupas de Xar e as correntes de
cobras voadoras o levaram para cima, até seu quarto, onde a porta se abriu e as
correntes-serpentes o balançaram para a frente e para trás e o soltaram,
depositando-o no chão.
O Encantador fez um sinal para os animais e elfos de Xar, e todos saltaram
para fora do salão e subiram as escadas, com os elfos atrás, assim como
Calíbano, com um bater de asas lento e relutante.
A porta do quarto de Xar bateu com força depois que eles entraram.
— Não vai ser o bastante — lamentou Pilhado, cujos lábios tinham
finalmente se desgrudado. — Empolado estava certo, você deveria tê-lo
banido.
O Encantador rosnou para Pilhado — o que era incomum, pois Pilhado
era seu filho favorito. E quando eu digo que ele rosnou, quero dizer que abriu
a boca e soltou uma rajada de Magia furiosa, com tanta força que derrubou
Pilhado.
Em seguida, Encanzo saiu andando majestosamente, voltou a se sentar em
seu trono e apoiou a cabeça nas mãos, pensando: O que há de errado com Xar?
Por que sua Magia ainda não se manifestou? Eu dei a ele o melhor gigante que havia
em minhas terras, a melhor árvore, o conselheiro mais inteligente, que é Calíbano… Por
que não consigo controlá-lo?
O quarto estava muito diferente de como Xar o havia deixado, apenas quinze
minutos antes.
Coisas ruins haviam acontecido ali. Essas coisas ruins tinham acontecido
com Desejo e Magriço, e também com os elfos e os animais trancados no
quarto pelo próprio Xar, se você se lembra.
Coisas muito, muito ruins.
Para explicá-las, terei que voltar exatos quinze minutos no tempo.
Obviamente, na vida real é impossível voltar no tempo.
Acho que já mencionei isso.
Mas, contrariando o que afirmei, eu posso voltar no tempo, porque sou o
deus desta história, portanto tenho mais Magia do que talvez gostaria.
Imagine que você está no quarto de Xar quinze minutos antes.
A Competição de Feitiços estava acontecendo lá embaixo, e Desejo e
Magriço acompanhavam tudo pelas frestas do chão.
Você está naqueles exatos quinze minutos, e agora mesmo, exatamente
agora, no meio da floresta e debaixo da chuva torrencial, alguma coisa está
avançando sorrateiramente pelas muralhas da fortaleza a passos invisíveis,
indetectáveis.
Algo antigo, sombrio e muito, muito maligno.
Poderia ser um bafo-de-rogro tentando pegar seu sangue de volta.
Poderia ser um lobisomem querendo que Xar se juntasse a sua matilha.
Ou poderia ser…
Outra coisa.
Em geral, o acampamento dos feiticeiros era bem protegido por uma
barreira invisível de Magia que se erguia em torno da floresta.
Porém, no momento em que Xar entrara com a espada na fortaleza, o
ferro tinha feito um buraco na Magia. E o rastro do ferro levava diretamente
para a árvore e para o quarto de Xar.
Para piorar, o poder do ferro é tão grande que QUALQUER UM que
seguisse o caminho percorrido pelo ferro não seria detectado pela Magia…
Que azar, porque as duas penas no casaco que Xar tinha deixado em seu
quarto estavam, muito suavemente, muito discretamente, começando a brilhar
nas beiradas, emitindo uma estranha luz esverdeada.
Os gatos-da-neve, Tempestade-de-Desavenças, Sedento e o urso tinham
caído no sono profundo daqueles que passaram um belo e tradicional dia ao ar
livre construindo armadilhas para bruxas e correndo pelo Bosque Maligno.
Então uma mudança de atmosfera fez com que Magriço e Desejo,
ajoelhados no chão invisível do quarto de Xar, olhassem em volta, sentindo
calafrios. A Colher Encantada tremia de ansiedade na cabeça de Desejo.
Lá embaixo ainda acontecia a Competição de Feitiços.
Mas lá fora, na floresta, tudo parou de repente: a chuva, os raios, os
trovões e o vento, que balançava o quarto de Xar feito um louco ninando um
bebê no berço.
Os trovões cessaram, substituídos por uma quietude sinistra, um silêncio,
como se a floresta em torno deles estivesse se inclinando para observar algo
incomum e assustador preso em seu punho verde fechado.
O único som era o da água gotejando das bordas do feitiço invisível acima
deles… plic… plic… plic…
Através do feitiço, Desejo via o céu estrelado, os galhos das árvores
estranhamente imóveis, como se tivessem sido pintados no manto escuro do
céu.
O frio no ar era o mesmo que Desejo sentira quando eles estavam sendo
perseguidos pela floresta, naquela mesma noite — um frio que penetrava no
corpo.
E, para seu horror, Desejo viu as penas negras penduradas no casaco de
Xar se iluminarem. Era um brilho verde meio amarelado, nauseante e pálido
que pulsava a um ritmo constante, como se acompanhasse a respiração de
alguém.
O ar passava com tanta dificuldade pela garganta que Desejo achou que ia
sufocar.
E ela sentia como se formigas subissem por seu cabelo, o medo fazendo
todos os fios se eriçarem.
Acima deles, o feitiço era como vidro, a água da chuva riscando toda a
superfície.
Mas parecia haver mais alguma coisa, uma sombra se movendo como em
um sonho, um movimento nauseante, ondulante e pegajoso que apagava as
estrelas conforme avançava...
Ou seria apenas a nauseante sombra da imaginação de Desejo, uma criação
de seus olhos exaustos após um dia longo, cansativo e assustador?
Desejo tinha certeza de que havia uma silhueta escura se movendo pelo
vidro como se imersa em algo viscoso…
Pelo menos achava que tinha certeza…
O que era mesmo que diziam sobre as bruxas? Que elas eram invisíveis como
fantasmas, mas tinham que ficar visíveis quando atacavam? Caso contrário, suas mãos
passavam através do corpo como uma lufada de ar inofensiva?
E então, com o mais absoluto terror, ela soube que não era uma miragem.
Seus ouvidos concentrados definitivamente ouviram sussurros na
invisibilidade acima.
Plic… plic… plic… plic.
Sussurro… sussurro… sussurro.
— Atse iuqa… atse iuqa… atse iuqa… atse iuqa…*
— Acordem! — disse Desejo para os gatos-da-neve, Sedento e
Tempestade-de-Desavenças, em um sussurro estrangulado. — Acordem
AGORA MESMO, temos que sair daqui…
O vento voltou a soprar. Algumas rajadas levaram o cheiro quente e
nauseabundo de BRUXA para dentro do quarto, seguidas por uma lufada
pungente de rato envenenado e língua de víbora, impregnada de morte como
o remédio de um boticário.
O cheiro despertou os gatos-da-neve, deitados meio escondidos sob as
folhas. Como se fossem um só, eles abriram os olhos sonolentos, e todos
souberam no mesmo instante que precisavam ser silenciosos, como cervos que
farejam uma raposa.
Tempestade-de-Desavenças abriu os olhos, um, dois, viu as penas
cintilando, pulsando, e ficou tão paralisada quanto se tivesse sido empalhada.
Magriço tentou abrir a porta.
Mas Xar a trancara, é claro.
— Estamos presos! — exclamou Magriço, com um pânico aterrorizado. —
Não podemos sair daqui! — emendou, antes de desmaiar e cair duro, com os
dedos ainda na maçaneta.
— Magriço! — gritou Desejo. — ACORDE!
Magriço acordou sobressaltado, murmurando:
— Onde? O quê? Como?
— Quarto do Xar — explicou a princesa, ofegante. — Acampamento dos
guerreiros… Estamos sendo atacados por algo muito assustador…
— O que é isssso?????? — sussurrou Tempestade-de-Desavenças, olhando
para cima e agarrando sua varinha de espinheiro.
— A espada! Ah, pelos deuses das águas paradas e tranquilas… Precisamos
da Espada Encantada!!!!!!!!!!! — gritou Desejo.
Bem, você sabe, nada acontece por acidente.
Havia uma razão para a Espada Encantada ter deixado a mão de Xar
naquele momento exato e deveras inconveniente para ele, em plena
Competição de Feitiços.
Vamos encarar os fatos: naquele instante, Desejo precisava da espada por
razões muito mais sérias do que as de Xar.
COOOORRRRTAAAARRR!!!!!!
Com um grande e penetrante golpe que fez Desejo dar um salto e quase
morrer de susto e que acordou Magriço do desmaio — ele ainda estava
segurando a maçaneta da porta —, a Espada Encantada atravessou o teto do
salão principal e foi parar no chão encantado do quarto de Xar.
A espada se ergueu no ar, tremulando, apontando para a superfície vítrea
do feitiço acima, exatamente ao alcance de Desejo.
Ela só precisava estender a mão e pegá-la.
Ah, graças ao visco, à hera e a cada tipo de água parada…
Em outros tempos havia bruxas, sussurrou Desejo, lendo a inscrição na
lâmina… mas eu as mantei.
Ela estendeu a mão.
Pegou a espada.
Ouviu-se um grito vindo de cima, penetrante e sobrenatural, quando o-
que-quer-que-fosse mergulhou.
O vulto ondulante ficou ainda mais escuro e ganhou uma forma muito,
muito sólida.
E fez uma investida confusa…
Algo com uma força inacreditável SE CHOCOU contra o feitiço invisível
acima…
Ouviu-se outro grito agudo, como uma maldição…
… e três garras perfuraram o feitiço de vidro.
Três garras grandes e chocantes, que eram muito, muito reais, longas,
verde-amareladas, afiadas e curvadas como a lâmina de um sabre.
Desejo gritou.
Se não fosse pelo feitiço, ela certamente estaria morta, porque o-que-quer-
que-fosse tinha sido contido pelo feitiço ao se chocar com ele quando
mergulhou.
Linhas em ziguezague cortaram o feitiço em todas as direções, como um
bloco de gelo antes de se partir.
Desejo empunhou a espada extraordinária, que deu um impulso em suas
mãos. Ouviu-se outro grito quando o ferro da lâmina penetrou em algo
macio, atravessando o feitiço… e…
A grande sombra escura guinchou de novo e por fim ficou imóvel.
Desejo puxou a espada, que se soltou com um barulho nauseante idêntico
ao de passos na lama.
Por favor… implorou Desejo. Por favor, que ela tenha morrido…
Houve um momento de silêncio.
Será que aquela coisa estava realmente morta?
A espada tinha se cravado bem fundo…
Os gatos-da-neve rugiam, e Magriço repetia, horrorizado:
— Ai, meu pai... ai, meu pai...
Desejo estava atenta à forma escura caída na superfície vítrea do feitiço.
Estava inerte.
Eu a matei, pensou Desejo, com uma tristeza imensa. Eu a matei…

Tempestade-de-Desavenças olhou para a espada, boquiaberta.


— Não toque nela… — sussurrou.
A ponta da lâmina estava coberta com uma substância estranha, verde e
leitosa, que parecia fumegar.
Uma única gota tremulou, como se em câmera lenta, e caiu… bem na
direção da mão de Desejo.
Mas Sedento se antecipou:
— Cuidado, princesa, cuidado!!
… e, em sua determinação de proteger Desejo, ele se atirou entre a gota
da substância verde que caía e a mão da princesa. A criatura soltou um grito
quando a gosma verde chiou, e o pobre elfo sacudiu a mão, tentando se livrar
do sangue fumegante.
Sedento voou bem alto, gritando e sacudindo a mão, apavorado. Desejo
tentou pegá-lo para lhe fazer um carinho, acalmá-lo, enquanto Tempestade-
de-Desavenças gritava em um guinchar enlouquecido:
— Não toque! Não toque!
Mais rachaduras apareceram na superfície do feitiço.
— AFASTEM-SE DA CAMA! — gritou Desejo.
Os gatos-da-neve e os elfos se atiraram no canto do quarto no último
momento, pois no instante seguinte o feitiço rachado e partido se rompeu de
vez, lançando uma chuva de fragmentos por todo o cômodo. A água gelada da
chuva que tinha se acumulado ali jorrou sobre a cama, e a forma negra caiu
junto, levando a cama para baixo… para baixo… A gosma verde fumegante
começou a corroer o chão e a criatura continuou a afundar, cada vez mais, de
modo que no centro do quarto de Xar se abriu um buraco, como um ralo de
pia.
Um ralo de pia com dois metros de profundidade e o cadáver de uma
bruxa no fundo.
— Acho que ela está morta — sussurrou Desejo, espiando, trêmula, na
borda do buraco. — Não está se mexendo. Você está bem, Sedento?
— Eu NADA bem… — sussurrou Sedento, sacudindo a mão. — Eu NADA
bem… Aquilo Magia ruim… Magia muito ruim…
Enquanto dizia isso, o verde se espalhou por seu braço, seu coração e sua
cabeça, deixando-o rígido feito um galho de árvore. Ele tombou, tremendo e
se contorcendo como uma pedra prestes a rolar, e caiu duro.
Foi como eu disse.
Coisas ruins tinham acontecido no quarto de Xar.
Coisas muito, muito ruins.
E muita coisa pode acontecer em quinze minutos.
* As bruxas falam a mesma língua que nós, mas cada palavra é pronunciada de trás para a frente. Isso
significa: “Está aqui… está aqui… está aqui…”
Xar não notou nada de diferente em seu quarto logo que a Magia do
Encantador abriu a fechadura e as correntes voadoras o atiraram lá dentro, com
Calíbano voando atrás dele pouco antes de a porta bater magicamente.
E por que Xar esperaria algo diferente? Tinha saído daquele quarto apenas
quinze minutos antes.
Além do mais, ele estava muito ocupado gritando ofensas longas e
extremamente criativas para a porta fechada e chutando a madeira. Não deu
para notar a atmosfera estranha, silenciosa, tensa e, sinceramente, traumatizada
ali.
— Hum… Xar… — chamou Calíbano. — Acho que temos um
problema…
— Eu sei que temos um problema! — rosnou o garoto. — Meu pai e meu
irmão não veem que eu sou importante! Ninguém vê!
— Não, quero dizer um problema de verdade, Xar.
Ele se virou.
Seu queixo caiu.
Desejo estava de pé, aflita, segurando a Espada Encantada.
— VOCÊ pegou minha espada! — gritou Xar, descontrolado. — É tudo
culpa SUA, sua guerreira ladra infernal! Eu estava derrotando Pilhado até
VOCÊ me interromper! Como conseguiu fazer isso, sua traiçoeira?
Xar tentou pegar a espada, mas os elfos gritaram todos ao mesmo tempo:
— Não toque na essssssspada!!!!!
Só então Xar percebeu que as coisas tinham dado muito mais errado do
que ele imaginava.
Seu quarto estava sempre bagunçado, é claro.
Só que agora, bem no centro, onde antes ficava a cama, havia um buraco
enorme.
Desejo e Magriço estavam parados um de cada lado do buraco, abalados.
— O QUE VOCÊS FIZERAM NO MEU QUARTO??????? — gritou
Xar, ofegante. — Ah, céus, eu deixei vocês sozinhos por quinze minutos… O
que fizeram com o meu quarto???
Magriço apontou para o buraco.
— Uma bruxa nos atacou. Nós a matamos.
— Ah, pela hera e pelo visgo e pelas coisas verdes com longos bigodes
peludos! — exclamou Xar, com os olhos arregalados. — Têm certeza de que
era uma bruxa? Não era só um bafo-de-rogro querendo seu sangue de volta?
— Dê uma olhada — sugeriu Magriço.
Xar olhou dentro do buraco. Lá, bem no fundo, havia algo enorme,
escuro e morto, com longas asas cobertas de penas no lugar dos braços e um
nariz com formato de um bico. E, embora não estivesse se movendo, um
fedor tão forte de Magia negra emanava daquela coisa encolhida e coberta de
penas que fez Xar dar um passo para trás.
Sim.
Ele nunca tinha visto uma bruxa, mas aquilo era uma delas, com certeza.
Ah, pelos cabelos das narinas de um Resmungogro Horripilante
Medonho…
O que seu pai tinha acabado de dizer sobre obter Magia de uma fonte
negra?
A realidade de uma situação às vezes é um pouco diferente de como a
imaginamos, e a cena recente com seu pai fizera Xar perceber que talvez
Encanzo não fosse tão receptivo à ideia de bruxas e Magia negra.
E o que tinha sido aquela ameaça de lhe tirar todos os seus animais e elfos
queridos?
— Comporte-se… — disse Xar, pálido. — Meu pai acabou de mandar eu
me comportar… Acho que isso não seria se comportar, concorda?
Ele olhava para o buraco em uma espécie de transe.
— Veja… um buraco enorme do tamanho de um dólmen infernal, bem
no meio do meu QUARTO, com uma BRUXA dentro?
Xar sacudiu os braços, agitado.
— Como vamos nos LIVRAR disso??? Temos que tirar essa coisa daqui!
Meu pai disse que mais uma desobediência e vou ser banido. Acho que isso
conta mais ou menos como umas CINQUENTA desobediências, não acham?
— Você não pode tocar nela! — gritaram Tempestade-de-Desavenças e
Ariel. — Não se aproxime dela!
— Como vamos nos livrar de uma coisa que não podemos nem tocar??????
— indagou Xar. — Vamos ter que cobri-la, mas com o quê?
Ele começou a chutar folhas para dentro do buraco, desesperadamente,
mas era como tentar cobrir um vulcão com flocos de neve, colocando-os um a
um.
— E isso nem é a pior parte — disse Desejo, engolindo em seco.
Com cuidado, ela baixou a espada e abriu um retalho de pano que
segurava na outra mão.
Dentro estava Sedento, tremendo descontroladamente.
Tudo bem, logo quando Xar pensou que as coisas não podiam piorar, elas
pioraram.
— O que aconteceu com Sedento? — perguntou Xar.
— Caiu sangue de bruxa nele — explicou Desejo, nervosa. — Eu sinto
muito, Xar.
— É muito grave? O que isso quer dizer? O que há de errado com ele?
Sedento estava verde-jade, e suas asas haviam se fechado como se tivessem
sido esmagadas por um soco. De tempos em tempos, a tremedeira parava e ele
ficava rígido por um segundo, como se congelado, mas logo voltava a tremer.
— Eu vigiei princesa… — disse Sedento. — Mas eu bem. Muito bem…
Dava para ver nos olhos amedrontados de Sedento que ele estava
terrivelmente assustado.
Calíbano disse, com tristeza:
— Elfos são criaturas muito menores que você, Xar. O sangue de bruxa os
afeta muito mais. Você colocou esse elfo em um risco muito, muito grande.
— Vou levá-lo até meu pai — disse o garoto, por entre lábios pálidos e
dormentes. — Meu pai pode fazer qualquer coisa.
— Acho que nem seu pai pode curar Sedento, Xar — disse Calíbano.
Era hora de algumas verdades muito duras.
— Porque logo esse elfo ou vai morrer ou vai entrar em coma —
continuou Calíbano. — E quando acordar, ele vai ter passado para o lado
negro. Vai se tornar uma criatura das trevas e vai procurar bruxas para servir.
Fez-se um silêncio terrível.
— E isso significa que a mancha na sua mão É sangue de bruxa. Eu tentei
avisar. Você queria ter Magia, e agora tem o tipo errado de Magia…
Xar virou a mão.
Lá estava a mancha verde brilhante. Não havia como cobri-la, assim como
ele não conseguia cobrir aquele buraco no meio do quarto.
Xar tentou limpar a mancha na capa, mas não saiu.
— Eu nem ao menos consigo fazer Magia com o sangue de bruxa… —
disse Xar, triste.
— Se seu pai descobrir que isso na sua mão é sangue de bruxa — disse
Calíbano —, vai mandar você para um reformatório. Talvez a Magia negra
ainda não tenha atingido seu cérebro e você possa ser salvo de passar para o
lado negro também. Mas, nesse caso, o rei seria forçado a bani-lo do mundo
dos feiticeiros para sempre.
— Não! — gritou Xar. — Não!
— O que você esperava que seu pai fizesse, Xar? — perguntou Calíbano.
— Os outros feiticeiros estão exigindo que você seja banido só por TENTAR
obter Magia negra. E você conseguiu, Xar… Você foi até o Bosque Maligno,
o que é proibido. Você trouxe ferro para o acampamento, o que é proibido. E
você está usando Magia negra, o que é proibido. Além disso, você atraiu uma
bruxa para cá, o que é muito proibido.
— NÃO!
— Nem mesmo seu pai pode fazer o tempo voltar, Xar — disse Calíbano.
— Ninguém pode fazer isso. É impossível.
— Mas é esse o objetivo da Magia, não é? — perguntou Xar. — Fazer
coisas impossíveis?
Fez-se um longo silêncio.
— Algumas coisas não podem ser desfeitas — disse Calíbano.
Ah, “Faça aos outros o bem que gostaria que fizessem a você, ou você não
vai terminar nada bem…” é uma lei realmente dura.
— Seus guerreiros estúpidos — esbravejou Xar. — É tudo culpa de vocês!
Essa espada estúpida é de vocês, e essa bruxa estúpida também. Eu nunca
deveria ter deixado Sedento com vocês, se não sabiam cuidar dele.
Desejo e Magriço desviaram o olhar, porque Xar, o menino que nunca
chorava, estava chorando.
Xar sabia, no fundo de seu coração, que não podia culpar Desejo e
Magriço por aquilo. Sentiu o peso da culpa, pegajoso e triste. Aquilo tudo era
culpa sua e de mais ninguém. Sedento tinha confiado nele. Nunca se perdoaria
se não conseguisse salvar seu amigo…
— Sinto muito, Sedento — disse Xar, arrasado. — Eu nunca quis que isso
acontecesse… Deve haver alguma maneira de eu consertar as coisas e fazer
tudo voltar a ser como antes.
— Eu confiar em você, mestre — respondeu Sedento, com os lábios verdes
trêmulos, olhando para Xar com adoração. — Você ser meu líder e vai me sssalvar,
porque é isssso que um líder faz.
Xar colocou Sedento com cuidado no bolso da frente do colete, então
cobriu o rosto com o braço.
— Eu DESEJO nunca ter desejado Magia — anunciou, com ardor. — Eu
DESEJO poder abrir mão de tudo para que Sedento fique bem. Eu DESEJO
nunca ter armado aquela armadilha para bruxas, para começar, eu DESEJO, eu
DESEJO, eu DESEJO…
Mas, por mais que desejasse, Xar não podia fazer o tempo voltar.
Todos queriam que ele aprendesse uma lição, mas aquela era uma lição
muito, muito pior do que qualquer um tinha imaginado, e era terrível vê-lo
chorando. Parecia tão pequeno, encolhido e triste, tão diferente do que
costumava ser. Até seu topete tinha caído.
Xar chorou, e Desejo deu tapinhas em suas costas, e os animais e os elfos
fingiram não notar que Xar estava chorando.

De tempos em tempos, Xar explodia, irritado:


— Eu NÃO estou chorando, e vou MATAR quem disser que estou!
E os elfos fingiam estar morrendo de medo, para que ele se sentisse
melhor.
Lá embaixo, no salão, a música parou de repente e foi substituída por
vozes.
Xar tirou o braço da frente do rosto, subitamente alerta.
— Ouçam… — sussurrou Tempestade-de-Desavenças. — Alguém deve
ter descoberto a brecha na Magia que protege a fortaleza e deve estar contando
ao rei Encanzo…
Magriço, Desejo e Xar olharam uns para os outros, depois para o elfo
moribundo e para o ralo de pia no centro do quarto, com o cadáver de uma
bruxa dentro.
— Eles vão sssaber que tem algo a ver com você, Xar… vão vir até aqui…
até este quarto…
Aquilo era ruim.
Não havia dúvida.
Era muito, muito ruim.
Desejo olhou para o rosto de Xar, desprovido de sua costumeira insolência
e tomado pelo sofrimento e pela culpa diante do destino do elfo.
E esqueceu que Xar era um inimigo, que tinha roubado a espada e
sequestrado ela e Magriço.
Então estendeu a mão e tocou o ombro de Xar.
— Não se desespere, Xar — disse Desejo. — Não é tarde demais… nunca
é tarde demais. Tenho um plano para salvarmos Sedento.

Magriço sentiu os primeiros tremores de inquietação.


— Tem? — disse Xar, erguendo a cabeça.
— Lembra quando eu comentei, bem no começo, que minha mãe tem
uma Pedra Que Remove Magia, que ela guarda nos calabouços? Podemos
levar você conosco para a fortaleza dos guerreiros, entrar escondidos nos
calabouços da rainha e fazer Sedento tocar a pedra. Isso vai remover toda a
Magia ruim da bruxa e salvar a vida dele.
— Será que funcionaria? — perguntou Xar, voltando-se ansioso para
Calíbano.
— Sim… Não… Eu não sei! — respondeu o corvo. — Acho que, na
teoria, é isso que a pedra faz: remove Magia… mas algo me diz que essa é uma
péssima ideia.
— Bem, em geral seria uma péssima ideia tocar uma Pedra Que Remove
Magia — disse Xar, cada vez mais animado —, mas neste caso temos uma
porção de Magia da qual queremos nos livrar. Porque eu também poderia
tocar a pedra e me livrar desse sangue de bruxa na minha mão, que meu pai
não ia apreciar e que nem sequer funciona…

— Também me pergunto o que aconteceu com Esmagador — comentou


Desejo, pensativa. — Ele ainda não voltou, certo? Estou com medo de que os
guerreiros de minha mãe o tenham capturado.
— Você acha que eles fizeram isso? — perguntou Xar, subitamente
preocupado, porque, em sua maneira Xar de ser, tinha esquecido
completamente o gigante. — Você quer dizer… que eu posso ter colocado
Esmagador em perigo TAMBÉM? Uau… Foi um dia realmente ruim até para
mim…
Xar parecia abatido de novo, então Desejo se apressou em dizer que,
enquanto Esmagador estivesse nos calabouços de Sicórax, se é que ele estava
lá, poderiam libertá-lo.
— Esse plano é brilhante e resolve tudo de uma vez só! — exclamou Xar,
aliviado. — Para uma inimiga, e uma inimiga bem esquisita, se quer saber,
você teve uma grande ideia! O que estamos esperando? Vamos nessa!
— Esperem! — interveio Magriço. — Isso não é nem um pouco
brilhante, princesa! Não vou aceitar uma coisa dessas! Você não pode levar
esse louco para a fortaleza dos guerreiros conosco!
— Tenho que concordar com Magriço — disse Calíbano. — Se a rainha
Sicórax pegar Xar, vai jogá-lo nos calabouços para sempre, e ainda vai tirar a
Magia de todos os outros elfos…
— Minha mãe não é tão má assim! — protestou Desejo. — Ela é
encantadora!
— Bem, eu não diria encantadora — retrucou Magriço, em um tom
sombrio. — ASSUSTADORA. É isso que ela é. ASSUSTADORA. Ela é
uma mãe assustadora.
— Ela é rainha e mãe, e é papel da mãe ser assustadora — argumentou
Desejo.
— Bem, ela cumpre muito bem esse papel — concluiu o guarda-costas,
estremecendo.
— Mas temos que entrar nos calabouços de qualquer maneira, para
devolver a espada, e não podemos deixar o pobre do Sedento morrer, não é
mesmo? — argumentou Desejo. — Também temos parte da culpa pelo que
aconteceu, e ele voou ao nosso lado… Olhe só para ele!
Xar sentiu Magriço fraquejar quando olhou para o corpo tragicamente
rígido do elfo acomodado no bolso da frente do colete de Xar, tremendo de
dor e de medo.
— Pobre Sedento… — Xar suspirou. — Vai ficar tão infeliz preso em um
estado de coma… Ele adorava dançar, sabe? Voar entre as árvores ao sabor do
vento… e agora seus pés vão ficar paralisados, e sua voz, que cantava para os
rouxinóis, vai ficar presa na garganta, petrificada…
— PARE COM ISSO! — protestou Magriço, tapando os ouvidos.
— E tem também Xar… — completou Desejo. — Ele é metido e cheio
de si, além de um pouco irritante…
— Eu sou, não sou? — disse Xar, orgulhoso.
— Mas não podemos deixar que ele seja banido de sua tribo. Xar cometeu
alguns erros… mas merece uma segunda chance, não acha? Todos merecemos
uma segunda chance.
Magriço suspirou.
— Tudo bem. É uma ideia maluca… mas tudo bem, vamos ajudá-los. Só
tem que me prometer, Desejo, que depois que tudo isso acabar, vai começar a
se comportar como uma princesa guerreira normal…
— Eu prometo.
Os três apertaram as mãos para selar o acordo.
— Quem iria imaginar? — devaneou Xar. — Feiticeiros e guerreiros,
unidos no mesmo plano…
As vozes e os passos apressados estavam se aproximando.
— Tudo bem — disse Xar, com urgência. — Lobos e urso, vocês ficam
aqui. Calíbano, gatos-da-neve, elfos, vocês vêm conosco. Mas temos que ser
rápidos, então precisaremos ir de porta… Tempestade-de-Desavenças! Lance o
feitiço!
— PorquesousempreEUquemtemquefazertudo? — grunhiu Tempestade-
de-Desavenças, pegando uma varinha número 6 de sua aljava e lançando um
de seus feitiços na porta do quarto.
— Como assim ir de porta? — perguntou Magriço, inquieto.
Como se para responder à pergunta, a porta do quarto de Xar se contorceu
na moldura e, com um cre-e-e-que enorme, arrancou a si mesma das
dobradiças e bamboleou até o centro do quarto, antes de cair — BAM! — de
cara no chão e se erguer cerca de trinta centímetros, em uma nuvem de
poeira.
Xar subiu na porta e gritou:
— Vamos, pessoal! Rápido! Rápido!
— Ahhh não… — resmungou Magriço, balançando a cabeça, histérico. —
Os gatos-da-neve já foram ruins o suficiente, e agora vocês esperam mesmo
que eu seja levado por uma PORTA, como um tapete voador em uma
história infantil?
— É perfeitamente seguro — garantiu Xar, ajudando Desejo a subir. —
Quer dizer, mais ou menos… E os gatos-da-neve podem correr muito mais
rápido se não estivermos montados neles. RÁPIDO!
— Vamos lá, Magriço! — chamou Desejo, animada.
Os gatos-da-neve já tinham pulado pela janela do quarto e estavam
descendo as escadas e as plataformas, de maneira que era tarde demais para
montar em um deles.
Até a Colher Encantada tinha embarcado, entusiasmada, ao lado de Xar e
Desejo, e parecia estar olhando para Magriço com expectativa, como se tivesse
confiança de que ele podia ser o tipo de pessoa que encararia voar em cima de
uma porta como uma oportunidade empolgante, em vez de um ato suicida.
Ah, céus, vou ter que fazer isso… Não posso ser menos corajoso do que uma
COLHER… Mas… O que estou fazendo????, pensou Magriço, enquanto subia
na porta, acomodando-se ao lado de Desejo e Xar. Não era nem ao menos
uma porta completa — a porta do quarto de Xar tivera uma vida difícil, então
havia grandes rachaduras e vãos ao longo da madeira.
— Sustentada por Magia… sustentada por Magia… — repetia Magriço,
tentando se tranquilizar, enquanto Xar girava a chave para a direita na
fechadura.
Magriço se agarrou à porta no exato momento em que, com uma guinada,
ela saiu voando noite adentro, passando pelo teto não existente.
Durante os primeiros cinco minutos, Magriço ficou tão aterrorizado que
nem sequer abriu os olhos; concentrou-se apenas em não cair, não desmaiar e
não vomitar com os movimentos bruscos da porta voadora. E, quando
finalmente abriu os olhos, se arrependeu. Estavam desviando loucamente das
árvores e, pelas rachaduras na porta, dava para ver lá embaixo os gatos-da-neve
correndo junto do piscar dos elfos voando.
Magriço soltou um gemido de medo.
Os olhos de Desejo eram como estrelas, ela estava se divertindo tanto! Ela
e Xar gritavam, animados, a cada guinada.
É preciso registrar que Xar era um excelente condutor de portas voadoras,
ainda que inconsequente. A porta se inclinava e planava como um falcão-
peregrino enquanto Xar girava a chave com a suavidade e a destreza exatas
para avançar com cuidado por entre as árvores.
— Nós vamos bater… nós vamos bater… — gemia Magriço.
— Nós NÃO vamos bater — corrigiu Desejo, exultante, sobrevoando as
árvores. — Estamos voando como PÁSSAROS! E vamos estar de volta antes
do amanhecer, vamos curar Sedento, libertar Esmagador e nos livrar da Magia
ruim do Xar…
— Nós vamos bater. E, se sua mãe assustadora nos pegar invadindo aqueles
calabouços assustadores, vamos estar numa encrenca tão grande que é melhor
nem pensar — tagarelou Magriço, lívido.
— Então não pense — aconselhou Desejo. — Talvez ela não nos pegue,
Magriço… E AINDA não batemos! Então relaxe e aproveite, porque não é
todo dia que você voa em cima de uma porta. Entre no clima.
E, conforme eles planavam, gloriosos e inconsequentes, por entre as
árvores, em cima de uma porta voadora quebrada, o vento da noite soprando
seus cabelos para trás, Magriço descobriu, para sua surpresa, que, se relaxasse e
se deixasse levar pelo movimento, podia gritar animado junto com os outros.
O pai de Magriço ficaria admirado (e não muito satisfeito) se o visse
naquele momento. Esse é o problema com as aventuras: elas despertam em nós
partes que nem sabíamos que existiam.
Xar, os gatos-da-neve, os elfos, Desejo e Magriço estavam deitados na
vegetação rasteira em frente à Fortaleza de Ferro dos guerreiros.
Eles tinham um problema.
SAIR escondido de uma fortaleza fortemente protegida por sete fossos e
treze torres de vigilância já era difícil, mas ENTRAR escondido era
praticamente impossível.
E fica ainda mais difícil na companhia de um feiticeiro com uma marca de
bruxa e um bando de gatos-da-neve e elfos.
Eles viam as sentinelas nas ameias, andando para um lado e para o outro,
para um lado e para o outro, o tempo todo tentando enxergar o que estava lá
fora, na floresta.
Tinham deixado a porta escondida na mata, porque uma porta voadora é
algo que chama bastante atenção. Feito isso, Desejo os levou até a entrada dos
estábulos, o lugar por onde ela saíra. As portas ali estavam sempre se abrindo e
se fechando para os grupos de caçadores que iam e voltavam.
Xar mandou que os elfos os cobrissem com feitiços climáticos e de
invisibilidade.
— Issso sssó vai funcionar até entrarmos na fortaleza. A Magia de
Tempestade-de-Desavenças não funciona lá dentro — alertou Ariel. — Tem
ferro demaisss…
— Fiquem tranquilos — disse Xar, confiante. — Eu já invadi mais
fortalezas do que vocês comeram jantares quentes.
Levou um tempo para que o pequeno grupo se colocasse em posição,
debaixo da ponte levadiça.
O plano funcionou lindamente… no começo.
Xar, Desejo, Magriço e os gatos-da-neve entraram invisíveis, graças aos
feitiços de Ariel e de Tempestade-de-Desavenças.
Só quando já tinham avançado bastante pelo pátio dos estábulos é que
ficou claro que os feitiços estavam sendo afetados pela grande quantidade de
ferro que havia em volta. Para o horror de Xar, ele podia ver seus pés ficando
l-e-n-t-a-m-e-n-t-e visíveis.
Desejo e Magriço estavam ainda mais visíveis, embora Magriço estivesse se
materializando de cima para baixo — por um segundo ele foi apenas um
bizarro torso flutuante.
Se a gente conseguisse chegar à próxima construção, pensou Xar, em pânico,
talvez desse para se esconder nas sombras…
— Corram! — sussurrou ele. — Corram!
Tarde demais.
Uma sentinela tinha se virado e visto a metade de baixo de um gato-da-
neve atravessar o pátio dos estábulos da rainha Sicórax.
— MAGIA! — berrou a sentinela.
Tinham sido descobertos.
Desejo teve que bolar um plano totalmente novo na hora, de improviso.
— SOCORRO! — gritou, já inteiramente visível. — SOCORRO!
SOCORRO! SOCORRO!!!!! AQUI! ATAQUE DE FEITICEIROS!
Os guardas se viraram.
E lá estava a pequena e esquisita filha de Sicórax apontando para um
feiticeiro, três gatos-da-neve furiosos e uma nuvem de elfos zumbindo.
— ATAQUE DE FEITICEIROS! — gritaram os guardas. — Soem o
alarme!
Os feiticeiros quase nunca atacavam os guerreiros, por razões óbvias.
Mas mesmo assim os guerreiros estavam sempre prontos para qualquer tipo
de ataque.
Prontos de uma maneira que poderíamos quase chamar de exagerada.
De todas as partes vieram os sons ensurdecedores do estrépito das
armaduras, do retinir das espadas e de pés cobertos de ferro batendo
violentamente no chão conforme os soldados da rainha Sicórax entravam em
ação.
— O ATAQUE É NO TERCEIRO QUADRANTE! PRECISAMOS
DE REFORÇOS! — gritavam os guardas, que já tinham cercado o grupo
com espadas e lanças a postos. — LANCEM OS APANHADORES-DE-
ELFOS! RÁPIDO, TRAGAM AS ARMADILHAS PARA GATOS-DA-
NEVE! ALERTEM O ESQUADRÃO ANTIMAGIA!
Os gritos ficaram mais altos, e os guerreiros Defensores da Fortaleza
surgiram de todas as direções.
Ah, pelos olhos esbugalhados do trasgo-de-barba-e-dentes-verdes, pensou Xar. São
muitos… Nunca imaginei que houvesse tantos guerreiros NO MUNDO.
— Gato-Rei! Olho-da-Noite! Não ousem se mover! — ordenou Xar,
pois sabia que os gatos-da-neve estavam doidos para se atirar contra o inimigo
e via, nos olhos dos guerreiros, que se os animais fizessem um movimento que
fosse, seriam mortos na hora.
Xar levou a mão ao cinto para pegar a Espada Encantada…
… mas ela não estava lá.
Ele ergueu a cabeça. Desejo estava a uns dez metros de distância, nos
braços de um enorme guerreiro.
— A princesa está a salvo! — gritou o guerreiro que a levava, e os olhos
culpados da menina disseram a Xar tudo que ele precisava saber.
Ele ficou furioso.
Deslealdade! Traição!
Desejo tinha surrupiado sua espada.
Xar caíra na armadilha de confiar no inimigo, e justo quando relaxou e
baixou a guarda, acreditando que os dois estavam do mesmo lado, a guerreira
teve a audácia de roubar a espada quando ele não estava olhando.
(Xar só esqueceu, convenientemente, que tinha feito a mesmíssima coisa
apenas algumas horas antes.)
Feiticeiros eram muito bons em amaldiçoar.
Um hábito adquirido com os druidas, que usavam as maldições como uma
forma de atacar o inimigo.
Então Xar amaldiçoou, maldições longas e sonoras:
— Sua guerreira LADRA de meia-tigela, mais traiçoeira que uma cobra!
Meu pai estava certo! Vocês não passam de TRAIDORES e
MENTIROSOS. E você, Desejo, é tão PERVERSA quanto sua mãe
repulsiva, odiadora de Magia, assassina e demoníaca!
— Ele insultou a rainha e está tentando brandir uma arma! — gritou o
chefe da guarda. — Arqueiros! Eliminar inimigo!
Os arqueiros, atrás das fileiras de guerreiros, ergueram os arcos, todos ao
mesmo tempo, com uma precisão refinada. Eram tão bem treinados que teria
sido um prazer admirar a sincronia — se não estivessem prestes a matá-los.
— NÃO! — gritou Desejo, dos braços do guerreiro que a estava
carregando. — ELE NÃO ESTÁ ARMADO! NÃO OUSEM MATAR
NENHUM DELES, OU EU CONTO TUDO PARA MINHA MÃE!
Bem, guerreiros não tinham escrúpulos em matar um feiticeiro desarmado.
Pelo contrário: faziam isso com bastante frequência quando Sicórax não estava
olhando. Mas eles tinham um medo paralisante da rainha; por isso, relutantes,
os braços dos arqueiros hesitaram. Não desarmaram as flechas, mas baixaram os
arcos, desapontados.
— PRENDAM OS INVASORES! — gritou o chefe da guarda. —
CONTENHAM A REBELIÃO! LANCEM OS APANHADORES DE
ELFOS! E DEPOIS…
O chefe da guarda suspirou e engoliu em seco.
— É melhor alguém informar Sua Majestade.
O tenente da guarda deu um passo à frente.
— É… Temos mesmo que fazer isso?
— É claro que temos! — rosnou o chefe da guarda. — Na verdade, já que
teve o atrevimento de questionar minhas ordens, eu nomeio você o sortudo
que vai ter que ir até lá e contar tudo a ela!
Fiiiiiiiiuuuuuuuu!!!
Os guerreiros dispararam arcos que lançavam no ar redes com pequenos
pesos de ferro presos a elas na direção dos elfos.
Nas florestas, os elfos podiam voar tão rápido quanto flechas, desviando e
se esquivando com tanta agilidade que viravam apenas um borrão de energia e
luz.
Mas ali o ferro os atrapalhava. Os pobrezinhos se moviam desajeitados,
lentos e confusos, guinchando sem parar, tentando ficar longe do ferro, mas
despencavam e eram capturados pelas redes, arquejando e lutando para
respirar, como peixes fora d’água.
Todos foram capturados, menos Abelhuda, que se escondeu no bolso de
Desejo assim que o desastre começou.
Os guardas avançaram, e Xar foi preso com correntes tão apertadas que
ficou só com a cabeça de fora. Os gatos-da-neve também foram acorrentados,
assim como os lobos.
— NABOS ENLATADOS! — berrou Xar, vermelho de raiva.
E foi assim que Sicórax o viu, quando chegou ao pátio dos estábulos,
pouco tempo depois. Ela se deparou com um emaranhado de correntes em
que só se via a cabeça de um pequeno feiticeiro, berrando insultos para suas
tropas.
Quando a rainha Sicórax chegou ao pátio, os guerreiros se curvaram tanto que
quase tocaram a testa no chão.
Sicórax era assustadora.
Mas também era uma grande rainha, e, como Desejo dissera, talvez
grandes rainhas TENHAM que ser assustadoras.
Havia quem dissesse que uma mulher era muito frágil para governar uma
tribo de guerreiros de ferro, mas diziam isso bem, bem baixinho, para que a
rainha Sicórax não ouvisse.
Ela era realmente encantadora…
... se com o termo “encantadora” você quisesse dizer “bonita”.
Com cabelos dourados que cascateavam pelas costas e corpo esguio feito
uma vela, a rainha tinha um metro e oitenta de altura e músculos torneados,
características muito úteis para uma rainha guerreira que queria causar uma boa
impressão.
Agora, se sua personalidade era encantadora… bem, isso é uma questão
totalmente diferente, e vamos ter que esperar para ver.
Ela estava vestida de branco, com uma única pérola negra em uma das
orelhas.
A rainha Sicórax falava muito, muito baixinho, com uma voz doce e tão
inofensiva quanto a picada de uma víbora. Ela não precisava falar alto, pois
todos se inclinavam para ouvi-la. Além disso, daria para escutar um alfinete
caindo, no silêncio aterrorizado que a acompanhava como uma longa capa.
Até Xar parou de xingar.
— Então… — disse a rainha Sicórax, com aquela voz suave e gentil, tão
adoravelmente pura quanto a punhalada de uma estaca de gelo. — Onde está
acontecendo esse ataque de feiticeiros que me acordou de forma tão brusca
antes do amanhecer?
Petrificado, o chefe da guarda deu um passo à frente e, com um gesto da
mão coberta pela armadura, indicou Xar, os elfos e os gatos-da-neve.
— Nós contivemos o ataque, Majestade — informou ele prontamente.
— Simmmm — concordou a rainha Sicórax, analisando o cenário. — Não
foi um ataque muito grande, foi? Nada que justificasse acordar uma rainha tão
cedo pela manhã. Achei que tivesse as melhores sentinelas da tribo dos
guerreiros; no entanto, um pequeno feiticeiro conseguiu entrar na minha
fortaleza sem ser detectado… Como isso aconteceu?
— QUE SE APRESENTEM AS SENTINELAS QUE PERMITIRAM
ESSE ATAQUE DOS FEITICEIROS! — rugiu o chefe da guarda.
As sentinelas na mesma hora deram um passo à frente.
— As sentinelas que estavam encarregadas da vigilância devem ser presas
na cela número 308. E eu o considero responsável, chefe da guarda, pois era o
oficial encarregado no momento do ataque, portanto trate de prender a si
mesmo também e jogar a chave pelas grades — ordenou a rainha Sicórax. —
Não tolero falhas nesta fortaleza.
— Sim, Majestade — disse o chefe da guarda, curvando-se.
Em seguida, ele e suas sentinelas marcharam em direção à cela número
308.
— Quem capturou o feiticeiro e seus companheiros mágicos?
— Sua filha, Majestade — disse um guarda, indicando Desejo.
A rainha Sicórax ergueu uma sobrancelha.
— Sério? — indagou, surpresa. — Que coisa… incomum. — Em seguida,
ordenou: — Libertem o prisioneiro.
— Mas, Majestade, será que isso é sensato? — interveio o tenente da
guarda. — Afinal, ele é um feiticeiro…
A rainha limitou-se a olhar para ele.
O tenente da guarda desacorrentou Xar.
Os guerreiros e os cidadãos da fortaleza, que tinham chegado para ver a
cena, deram um passo para trás, porque os feiticeiros eram considerados
extremamente perigosos.
A rainha Sicórax deu uma volta em torno de Xar, examinando-o como se
ele fosse um tipo incomum de inseto que ela via pela primeira vez.
— Quem é você e o que faz na minha fortaleza?
— Eu sou Xar, filho de Encanzo, o Grande Rei Encantador — respondeu
Xar, orgulhoso. — E as florestas pertencem a NÓS, FEITICEIROS, e não a
vocês, invasores estúpidos, sem coração e sem Magia.
A rainha Sicórax suspirou.
— A ignorância desses pobres feiticeiros não tem limites — disse ela. —
Nós somos a civilização. Somos o progresso. Olhe para nós. Olhe para nossas
armas, nossas roupas, nossas tapeçarias, nossos móveis. Vocês, feiticeiros, em
comparação, são pouco melhores que animais…
A fortaleza de fato tinha uma decoração deslumbrante, e a rainha Sicórax
era obcecada por limpeza e organização, de modo que cada armadura e cada
espada eram polidas até brilharem como prata. Até as cabeças de gigantes
penduradas no salão principal, por mais que estivessem mortinhas da silva,
tinham a barba escovada todos os dias. O aspecto geral era mesmo espetacular,
e Xar estava realmente impressionado com a sofisticação das armas dos
guerreiros e o esplendor de suas roupas e sua fortaleza.
Ele nem soube o que dizer.
— As coisas dos guerreiros são perigosas… são sedutoras… — alertou
Calíbano.
— E por que alguém precisaria de toda essa tranqueira dos guerreiros —
sibilou Ariel — quando se tem a lua sob a qual dançar e um violino para tocar
uma melodia? Essas coisas todas valem sua liberdade e seu espírito?
— É verdade! — gritou Xar. — Vocês, guerreiros, vieram para cá e
roubaram nossa floresta. Um dia, quando eu crescer e for o líder da minha
tribo, prometo que vou MATAR TODOS VOCÊS!
A rainha Sicórax o encarou.
— Vai mesmo? Ora, ora, ora… Isso é interessante. Eu poderia garantir que
você nunca cresça, não é verdade? Ou talvez Encanzo esteja disposto a pagar
para ter o filho de volta… Ou então podemos ficar com você em troca do
bom comportamento dele…
Xar olhou bem nos olhos da rainha.
Uma das principais características de Xar era que ele não se deixava
intimidar facilmente.
— Você, rainha Sicórax, é a rainha guerreira impiedosa MAIS MOLE que
eu já vi! — provocou ele.
Sicórax estremeceu.
Todos os presentes prenderam a respiração.
Os olhos da rainha se estreitaram.
— O que você disse?
— Destruidora de florestas! — gritou Xar. — Que você seja pulverizada
pelos dentes de um bafo-de-rogro até virar pedacinhos minúsculos de poeira
menores que as pulgas de um elfo-comichão!
— Seja educado, Xar — implorou Calíbano, nervoso.
— Perversidade sobre duas pernas! Orelhas pontudas! Cabelo feito o
traseiro de um urso! Nariz de batata bicuda!
Quando começava a xingar, Xar se dedicava de corpo e alma. Tinha sido
um dia difícil, depois de ser humilhado pelo irmão e repreendido pelo pai, e
Xar colocou todo o medo e toda a fúria em um xingamento longo e
elaborado dirigido à rainha dos guerreiros.
— Ah, Xar… — gemeu Calíbano, tampando os olhos com as asas. —
Dessa vez você está pedindo para ser morto, está mesmo…
— Pode me xingar quanto quiser, Xar, filho de Encanzo — sussurrou a
rainha Sicórax. Seus olhos eram duas flechas impiedosas. — Não vai conseguir
o que quer. Aliás... o que você quer?
Xar de repente se lembrou do que queria.
Queria salvar Sedento.
Ele parou no meio dos xingamentos, ofegante.
— Exijo que coloque meu elfo e minha mão na Pedra Que Remove
Magia o mais rápido possível!
Sicórax ficou surpresa.
Estava acostumada a prisioneiros que imploravam, rezavam, suplicavam e
rogavam para nunca serem levados até aquela pedra terrível, por favor, por favor,
por favor, rainha Sicórax, fazemos tudo que quiser, mas não nos leve para a Pedra Que
Remove Magia.
Era novidade um prisioneiro que exigia ser levado até lá imediatamente,
logo depois de despejar todos aqueles insultos em cima dela.
Aquele feiticeiro era cheio de truques.
Mas Sicórax estava acostumada com artimanhas.
E também tinha as suas.
— Leve-me até a pedra! — exigiu Xar. — O mais rápido que seus grandes
guerreiros estúpidos conseguirem se mover nessas armaduras de ferro idiotas. É
uma emergência!
Ele tirou Sedento do bolso do colete com as mãos trêmulas.
Ah, aquilo era terrível. Com um baque no coração, Xar viu que Sedento
parecia pior do que nunca. Estava verde feito uma esmeralda, o corpo inteiro
tremendo como se estivesse gripado, oscilando entre a consciência e a
inconsciência, rígido em um momento, ardendo em febre no momento
seguinte. Por um segundo, os olhos vidrados e confusos do pequeno elfo se
focaram como se soubesse onde estava, e ele estendeu os braços trêmulos e
febris em súplica para Xar e as outras Pessoas Grandes.

— Ajudem eu — sussurrou Sedento. — Ajudem eu…


Xar se voltou para a rainha Sicórax.
— Eu quero salvar meu elfo — explicou, desesperado.
A rainha estremeceu ao olhar para Sedento.
— O que aconteceu com ele? — perguntou, numa voz sombria.
— Foi contaminado por sangue de bruxa — respondeu Xar.
Os soldados e cidadãos guerreiros ofegaram, horrorizados, e se afastaram
ainda mais do feiticeiro.
Por ser uma grande rainha guerreira, Sicórax nunca demonstrava medo,
mas, naquele momento, seu rosto ficou duro como diamante.
— Uma bruxa, foi o que você disse? — perguntou a rainha.
— Mas as bruxas estão extintas… — argumentou o tenente da guarda.
— Mentiroso! — gritou um guerreiro da multidão. — Todos os feiticeiros
são mentirosos!
— Eu mesmo vi a bruxa morta — disse Xar. — Era definitivamente uma
bruxa. E ela me deu isso…
Ele ergueu a mão para mostrar a mancha verde.
— Uma marca de bruxa! — gritou a multidão, afastando-se ainda mais.
— Covardes! — disse a rainha Sicórax. — De acordo com a lenda, o
sangue das bruxas só é perigoso quando se mistura com o SEU sangue!
Mostre-me sua mão, garoto!
Xar estendeu a mão novamente.
A rainha Sicórax examinou a marca verde. E também deu uma boa olhada
em Sedento, pegando a pequena trouxa na qual ele estava enrolado e
analisando-o de todos os ângulos.
Em seguida, ela se voltou para a multidão.
— É como eu suspeitava — disse a rainha Sicórax, erguendo o pobre elfo
envenenado para que todos pudessem vê-lo, e passando de seu tom de voz
gentil para uma dureza retumbante. — AS BRUXAS NÃO ESTÃO
EXTINTAS E VOLTARAM A HABITAR A FLORESTA!
A multidão se encolheu, aterrorizada.
— EU ESTAVA CERTA EM NOS ARMAR! — gritou ela. — Estava
certa em aumentar o número de sentinelas e construir mais torres de
vigilância.
Para Xar, ela disse:
— Agora entendo por que você quer visitar a Pedra Que Remove Magia
com urgência, Xar, filho de Encanzo. É uma emergência, como você diz,
pois, a menos que seu elfo toque a pedra para remover a Magia de bruxa nas
próximas vinte e quatro horas, ele morrerá.
Sicórax era uma pessoa observadora, e certamente notou as lágrimas nos
olhos de Xar quando pronunciou essas palavras.
— Não — sussurrou Xar. — Não, ele não pode morrer! Ele não vai
morrer! Não pode! Eu não vou deixar! Não se preocupe, Sedento, confie em
mim, eu não vou deixar isso acontecer — garantiu ele, pois o elfo, ainda
encolhido e tremendo nas mãos da rainha, tinha soltado um gemido ao ouvir
o diagnóstico sombrio.
Sicórax deu um suspiro carregado de compaixão.
— Uma rainha guerreira deve ser, além de forte, piedosa. Por isso vou
levar você e seu elfo até a pedra, e espero sinceramente, pelo bem de vocês
dois, que não seja tarde demais.
Sicórax entregou a trouxinha com Sedento para o tenente da guarda, que
o segurou o mais distante que pôde, tremendo, pois não queria segurar um
elfo envenenado por uma bruxa.
— Mas, antes de levá-los até lá — disse a rainha, gentilmente —, tenho
algumas perguntas importantes a fazer…
— Ah, não… — sussurrou Calíbano. — Tome cuidado, tome muito
cuidado, Xar, com o interrogatório de uma rainha…
— Você disse que viu uma bruxa morta — começou Sicórax. — Isso me
interessa bastante, porque, de acordo com a lenda, bruxas são seres difíceis de
matar. Então… quem matou essa bruxa? E com que arma?
Silêncio.
De pé atrás da rainha Sicórax, Desejo acenava freneticamente para chamar
a atenção de Xar.
O menino via o cabo da Espada Encantada à mostra por baixo da capa da
princesa.
E Desejo estava articulando em silêncio com os lábios algo que parecia
muito “Eu estou do seu lado…”.
Será que estava mesmo? Ele não sabia.
Mas, naquele momento, Xar se deu conta de que talvez Desejo tivesse
roubado a espada não porque fosse uma traidora, traiçoeira e trapaceira, mas
para evitar que a arma fosse capturada junto com ele.
— Eu matei a bruxa — respondeu, por fim. — Com uma flecha.
— É mesmo? — indagou a rainha Sicórax, erguendo as sobrancelhas. —
Porque, pela mais pura coincidência, ontem mesmo eu perdi uma grande e
antiga espada matadora de bruxas que ficava guardada num dos meus
calabouços. Desapareceu e virou fumaça: PUF! Simples assim. Desde então,
meus defensores da fortaleza estão virando este lugar de cabeça para baixo
procurando pela espada. Sabe alguma coisa a respeito disso, Xar, filho de
Encanzo?
— Não.
— Uma espada grande e antiga, com as seguintes palavras gravadas na
lâmina: “Em outros tempos havia bruxas… mas eu as matei.”
— Nunca vi uma espada assim na vida — mentiu Xar.
— E por acaso sabe onde ela está agora? — questionou Sicórax, cética.
— Não. Como poderia saber se nunca nem a vi?
— Mentira! — disse a rainha, ágil como uma víbora.
— Não estou mentindo!
— Ah, eu acho que está, sim.
Eu disse que a rainha Sicórax era uma pessoa observadora.
Seus aguçados e impiedosos olhos tinham visto algo saindo do bolso de
Xar — um frasco com a poção O Amor Nunca Mente já pela metade.
— Sei que você está mentindo — explicou a rainha Sicórax — porque isso
aí é um dos seus estranhos encantamentos de feiticeiros. O líquido muda de
cor quando a pessoa que o segura conta uma mentira.
Ela apontou para o frasco, e o líquido dentro era uma espiral índigo, o
roxo que indicava mentira.
Maldita seja!, pensou Xar. Ela é tão ruim quanto meu pai… É a segunda vez só
hoje que sou desmascarado por causa dessa porcaria de poção do amor. Preciso me
lembrar de não carregar uma das drogas da verdade por aí. Elas acabam com a minha
reputação.
Mas como uma rainha guerreira sabia a respeito da poção O Amor Nunca
Morre e sobre o que o líquido é capaz de fazer?
— Conheça seus inimigos — disse Sicórax, como se Xar tivesse falado em
voz alta. — É extremamente importante estudar nossos inimigos com muito
cuidado. Eu sei muitas coisas sobre vocês, feiticeiros, seus feitiços, seu
conhecimento das plantas e suas poções causadoras de problemas, e esse
conhecimento muitas vezes se mostra útil.
A rainha Sicórax se inclinou para a frente, tirou o frasco da poção O Amor
Nunca Mente do bolso de Xar e o sacudiu, observando atentamente o líquido
negro que voltava a ficar vermelho.
— E o fato de que você estava MENTINDO me diz que você viu minha
espada, sabe onde ela está e, se quisesse, poderia me dizer o paradeiro dela
agora mesmo… Revistem o feiticeiro!
Os guardas guerreiros revistaram Xar com relutância, porque realmente
não queriam se aproximar de um feiticeiro com uma marca de bruxa, mas
tinham muito medo da rainha Sicórax para desobedecer suas ordens.
Eles encontraram muitas coisas interessantes nos bolsos de Xar.
Maldições, feitiços, poções e ervas de todos os tipos.
Mas nenhuma espada.
— Hum… O que será que você fez com ela? Onde está minha espada,
Xar, filho de Encanzo? — insistiu a rainha Sicórax.
— Eu me recuso a responder! — declarou Xar, cruzando os braços.
— Muito bem — continuou a rainha, com toda a calma —, que tal um
acordo? Eu TINHA a intenção de pedir um resgate por você. Eu IA mandar
uma mensagem para seu pai, dizendo que se ele quisesse ver novamente o
ladrãozinho mal-educado que ele chama de filho, deveria se entregar a mim.
Remover a Magia do grande feiticeiro Encanzo seria um golpe do qual os
feiticeiros teriam muita dificuldade de se recuperar.
Xar estremeceu de horror.
— Mas… — ponderou Sicórax — se as bruxas voltaram para a floresta,
realmente vou precisar daquela espada matadora de bruxas. Então, vou ser
muito razoável. Se você me devolver a espada, eu o levo, junto com seu elfo,
até a Pedra Que Remove Magia e não o farei refém. Vou deixar você, seus
elfos e seus animais irem embora. O que acha dessa oferta?
— Você jura? — perguntou Xar.
— É claro! — respondeu Sicórax, irritada. — Está duvidando da palavra
de uma rainha?
Era uma oferta tentadora.
Xar ponderou.
Estava em um beco sem saída. Nunca conseguiria derrotar os muitos
guerreiros que o seguravam, e aquilo pelo menos curaria Sedento…
Então ele olhou para Desejo.
A menina fazia movimentos angustiados com os olhos na direção da poção
O Amor Nunca Mente nas mãos da rainha Sicórax.
O líquido tinha ficado quase preto de tão azul.
— Você está mentindo! — exclamou Xar, apontando para a poção. —
Está mentindo, e eu recuso sua oferta!
A rainha Sicórax arregalou os olhos para o frasco.
— Ora, ora… — disse ela, bem-humorada — que descuido! E você foi
muito perspicaz, Xar, filho de Encanzo. Gosto de inimigos inteligentes; eles
me mantêm afiada. Você tem razão, estou mentindo — admitiu. — Eu
realmente tenho a intenção de pedir um resgate ao seu pai para libertá-lo
depois que o levar até a Pedra Que Remove Magia, não importa o que você
faça ou diga.
Desejo não se conteve:
— Mas… é a Regra Número 13! Um guerreiro nunca deve mentir!
A rainha Sicórax olhou para a filha como se ela fosse uma lesma.
— Emenda da Regra Número 13: a rainha pode quebrar as regras —
anunciou Sicórax —, se for pelo bem maior.
Então de que adianta ter regras?, pensou Desejo.
Mas guardou esse pensamento para si.
A rainha Sicórax colocou a poção de volta no bolso de Xar.
— Você é um garoto muito desobediente, e está claro que não foi tratado
com o rigor necessário — disse ela. — Mas vai descobrir que eu sou muito
rigorosa. Você precisa aprender uma lição, Xar, filho de Encanzo, e é para isso
que servem as prisões…
Xar suspirou.
Por que todos queriam lhe ensinar uma lição? Empolado, seu pai,
Calíbano e, agora, aquela rainha horrorosa.
Era muito cansativo.
— Vou trancafiá-lo na minha prisão — avisou a rainha Sicórax. — E não
vou levar você nem seu elfo até a pedra ATÉ me contar onde escondeu a
espada. Devolva o elfo ao garoto!
Aliviado, o tenente da guarda devolveu Sedento.
— Se não me disser onde a espada está, vai ter que ver seu elfo morrer
bem na sua frente. Assim que me contar, eu levo os dois até a pedra. E, em
seguida, farei de você meu refém. Se seu pai for fraco o bastante para amar um
filho desobediente e mal-educado como você, virá até aqui para salvá-lo, e eu
removerei a Magia de Encanzo também.
Ela sorriu para Xar. Um sorriso bonito. Sempre que ela sorria para Desejo,
o que não acontecia com frequência, o mundo inteiro da menina se iluminava.
Mas Xar não gostou daquele sorriso.
— Você, seu pai e seus elfos perderão sua Magia, não importa o que
aconteça — disse a rainha, com aquela voz suave como uma flecha
envenenada. — Mas, se me disser onde está a espada, pode ao menos salvar a
vida do seu elfo. E você ama essa criatura, não ama? O amor é sempre uma
fraqueza. Então sei que você vai tomar a decisão certa.
Xar estava encurralado. O que poderia fazer? Estava tudo saindo de seu
controle. Sedento corria o risco de morrer, e era tudo culpa dele. Seu pai
corria o risco de perder a Magia, e era tudo culpa dele também.
— RAINHA MALIGNA! CORAÇÃO DE GELO! LÍDER COVARDE
DE UM BANDO DE MEDROSOS! — gritou Xar, fora de si, tamanha era
sua raiva e seu medo.
A rainha Sicórax ficou vermelha de irritação. Não havia muitas coisas que
a tiravam do sério; ela não se deixava abalar por ameaças, trapaças e nem
mesmo violência. Mas ninguém nunca tinha ousado falar com ela com o
atrevimento de Xar.
Os guerreiros admiraram secretamente a bravura daquele pequeno
feiticeiro, que estava completamente à mercê da soberana mais implacável da
floresta, mas ainda assim a insultava com a maior naturalidade.
— Levem esse feiticeirozinho malcriado e seus elfos e animais para a cela
445! — ordenou a rainha Sicórax, irritada.
Xar mantinha a pose de corajoso e audacioso, mas por dentro estava no
mais completo desespero e desamparo.
Ele resistiu um pouco, mas estava em grande desvantagem, então os
guardas o arrastaram dali, junto com os gatos-da-neve e os elfos. O garoto
ainda amaldiçoava a rainha Sicórax, aos berros.
— VOCÊ É MAIS FRÁGIL QUE UM COELHINHO! É MAIS MOLE
QUE A ÁGUA! É MAIS FOFA QUE O MAIS FOFO DOS FILHOTES
DE ESQUILO, E MINHA AVÓ DARIA UMA SURRA EM VOCÊ COM
UMA DAS MÃOS AMARRADA NAS COSTAS!
A rainha Sicórax aguardou que Xar fosse levado embora, arrastado para a
escuridão dos calabouços.
— Que garoto mal-educado — comentou, em reprovação. — Era esperar
demais que Encanzo, o Grande Encantador, desse bons modos ao filho?
Ela se voltou para Desejo.
— Espero sinceramente que, se um dia você for capturada por um
inimigo, mantenha a dignidade e seja civilizada. Principalmente se estiverem
ameaçando matá-la. A falta de modos dificilmente vai dissuadi-los.
Desejo estava tão confusa que não sabia o que pensar ou o que sentir. Por
um lado, estava morrendo de medo por Sedento; por outro, sabia que sua
brilhante, esplêndida e inteligente mãe nunca faria nada errado…
Ou faria?
A rainha não deixaria Sedento morrer, deixaria?
— Mãe, você não vai deixar nada de ruim acontecer com o elfo do Xar,
né? — perguntou ela. — Vai levá-los até a pedra a tempo, para que ele possa
ser curado, não vai?
— Isso não é da sua conta.
— Mas não foi culpa do elfo o sangue da bruxa ter caído nele… Você viu
como ele estava com medo, pobrezinho…
— Elfos e feiticeiros são seres mágicos, e Magia é ruim, então não importa
se esse elfo estava com medo. Você não deve ficar se preocupando com o
destino dele — disse a rainha Sicórax, irritada. — Por que está se solidarizando
com o inimigo? E como ousa questionar minhas decisões? Vou fazer
exatamente o que acho certo.
Desejo se sentia culpada e ansiosa. A rainha Sicórax a olhou com
desconfiança. Por que aquela tolinha parecia tão angustiada e com a
consciência tão pesada? Será que estava escondendo alguma coisa?
— Os guardas me disseram que foi você quem capturou aquele
feiticeirozinho malcriado, Desejo — disse a rainha. — Você???
A rainha Sicórax sempre fazia um esforço para ser razoavelmente bondosa
ao falar com a filha irritantemente inútil, mas algo na maneira como ela
pronunciava o nome “Desejo” sempre sugeria insatisfação, como se a palavra
lembrasse à rainha de que ela desejava que Desejo fosse uma pessoa
completamente diferente.
O que era pura verdade.
Sim, Desejo era uma grande decepção para a rainha Sicórax, que esperava
uma filha alta e maravilhosa como ela, não uma menina pequena, desmazelada,
esquisita e manca, com cabelos arrepiados e usando tapa-olho.
— Então, Desejo, você enfrentou esse jovem feiticeiro e seu séquito de
animais e elfos e os derrotou com suas excepcionais habilidades de guerreira?
— perguntou a rainha, incrédula.
Olhando com adoração para o rosto esplendoroso da mãe, Desejo ansiou
poder dizer que tinha sido isso mesmo. Como seria maravilhoso ver a
expressão de Sicórax mudar, vê-la olhar para Desejo com admiração, com
respeito, com amor!
Mas sua astuta mãe nunca acreditaria nela, e mentir naquele momento
poderia deixá-la tão desconfiada que talvez a rainha resolvesse investigar mais a
fundo, e então ela encontraria a espada, e Xar ficaria em apuros…
— Não, mãe — admitiu Desejo. — Eu ouvi um barulho e percebi que era
um feiticeiro. Eu ia lutar com ele, mas tropecei e caí e gritei por socorro.
A suspeita se dissipou dos olhos da rainha, que agora parecia apenas
descontente. Aquela versão era perfeitamente crível.
— Eu não chamaria isso de “capturar” o feiticeiro — disse a rainha. —
Você tropeçou, caiu e gritou por socorro! Tropeçar e cair não são consideradas
habilidades tradicionais de guerreiros, Desejo…
Ao dizer isso, Sicórax olhou para o tapa-olho de Desejo e para sua perna
manca como se a menina tivesse perdido o uso daquelas partes do corpo em
um ato de desorganização proposital.
— Por que você não pode ser mais parecida com suas irmãs?
Desejo mordeu o lábio para conter as lágrimas. Chorar era mais uma das
coisas que a rainha Sicórax considerava uma fraqueza.
— Você poderia seguir o exemplo de sua irmã Drama — continuou
Sicórax. — Ela teceu uma manta com as barbas dos anões que abateu com um
arco e flecha, de uma distância considerável. Eu condeno a violência, é claro,
mas esse tipo de ímpeto adolescente é, afinal, o estilo dos guerreiros. Eu, na
sua idade, já tinha caçado e matado meu primeiro gigante sozinha… Você
decidiu, por conta própria, ir em uma direção completamente diferente! É
inexplicável! Não sei por que você acha que é uma boa ideia ser tão
ESTRANHA… tão desengonçada… tão…
O peso da decepção de Sicórax era tão deprimente que Desejo se sentia
afundando como se seus pés fossem de chumbo.
Seja piedosa, pensava Sicórax enquanto Desejo murchava em sofrimento
diante dela. Imagino que a criança não consiga EVITAR parecer um graveto pisoteado
acidentalmente. Imagino que ela não consiga EVITAR andar por aí como um coelho
desequilibrado. Uma rainha precisa ser tão MISERICORDIOSA quanto severa e
incorruptivelmente justa… Uma rainha precisa ser tão INDULGENTE quanto
inflexível e inabalavelmente rígida…
Sicórax fez um grande esforço para se controlar.
— Imagino — disse ela, rangendo os dentes — que você tenha feito seu
melhor, por mais inferior que esse melhor possa ser. Aliás, como está a dor de
cabeça, já que estamos falando da sua saúde?
— A dor de cabeça? — perguntou Desejo, confusa, e só então lembrou
que tinha dito à mãe que ia dormir cedo porque estava com dor de cabeça,
mas na verdade saíra escondida para procurar a colher. — Ah, sim, estou
muito melhor, mãe, obrigada.
— E o que está achando de aprender a ser uma guerreira?
— É bem difícil, mãe…
A rainha Sicórax deu um suspiro exasperado.
— Madame Tranças Pavorosas disse que sua ortografia está particularmente
ruim. Ler e escrever são sinais de como nós, guerreiros, somos superiores e
civilizados, mas você já sabe disso, Desejo.
— Sim, mas o problema com a ortografia é que as letras não ficam paradas
— explicou a menina. — Ela ficam dançando pela minha mente, e eu esqueço
em que ordem estavam. Algumas pessoas — sugeriu Desejo, corajosamente —
acreditam que talvez a ortografia não seja tão importante quanto você está
dizendo…
— Bem, essas pessoas são INSANAS — retrucou a rainha Sicórax. — Só
lhe resta se esforçar um pouco mais, não acha? A começar pela sua aparência…
Desejo estava ainda mais desmazelada do que de costume: a capa do lado
avesso e de trás para a frente; as roupas rasgadas; o corpo coberto de gravetos; e
os cabelos emaranhados em nós enlouquecidos onde Sedento tinha feito um
ninho.
— Até mesmo uma guerreira abaixo da média como você precisa estar
sempre apresentável, Desejo — disse a rainha, afastando-se. — Cada fio de
cabelo no lugar. Cada arma afiada. Cada unha brilhando. Lembre-se disso.
Enquanto a rainha Sicórax se afastava, em um farfalhar de longas e
elegantes vestes brancas, um determinado nó que prendia uma pequena chave
de ferro ao seu cinto se desfez, como uma cobra se desenrolando, e a chave
caiu no chão.
Era uma chave minúscula, de modo que quando caiu na laje de pedra fez
um ruído minúsculo, que a rainha não ouviu. Ela foi embora sem saber que a
havia perdido.
Ping!
Desejo, olhando melancolicamente para a mãe, ouviu o barulho.
E pegou a chave.
Abriu a boca para dizer: “Mãe, você deixou cair sua chave!”
Mas voltou a fechá-la.
A chave era pequena, escura e fria.
Os cabelos na nuca de Desejo se arrepiaram quando ela se deu conta de
que era a chave que abria não apenas todos os cômodos da fortaleza dos
guerreiros, mas também os calabouços de sua mãe.
Como era estranho que a rainha Sicórax a tivesse perdido naquele exato
momento.
Será que a chave tinha caído mesmo ou teria pulado?
Se você fosse uma pessoa imaginativa, teria dito que foi quase como se a
chave estivesse indo até Desejo e quisesse que ela a usasse.
Mas isso seria ridículo, pois não somos pessoas imaginativas.
Desejo, Magriço e Abelhuda tentaram entrar escondido nos calabouços de
Sicórax durante o dia, mas foi impossível. Havia pessoas demais por perto.
— Vamos ter que esperar até todos irem dormir — disse a princesa
Desejo. — Mas como vamos passar pela sentinela que guarda a entrada dos
calabouços?
— Eu tenho um feitiço bomderoso do sono, posso colocar o guerreiro para dormir! —
guinchou Abelhuda.
— Acho que seus feitiços não vão funcionar aqui, Abelhuda — retrucou
Desejo.
Magriço parecia culpado.
— Ainda acho que isso é uma péssima ideia, mas, caso esteja determinada a
ir adiante com esse plano, eu coloquei um pouco de sonífero no ensopado de
javali do guarda quando servi seu jantar. Seres-outrora-mágicos não são os
únicos que têm conhecimentos sobre ervas…
— Ah, Magriço, OBRIGADA! — disse Desejo, extasiada.
— Não me agradeça — respondeu ele, melancólico. — Meu pai ficaria
muito decepcionado comigo. Só estou com pena do pobrezinho do Sedento.
Mas eu deveria conseguir superar uma mera fraqueza pessoal e fazer a coisa
certa… Não sei o que está acontecendo comigo.
Então, tarde da noite, Desejo e Magriço se esgueiraram até a grande porta
que dava para os calabouços da rainha Sicórax.
A sentinela que deveria estar vigiando a porta tinha mesmo pegado no
sono. Os dois passaram pelo guerreiro na ponta dos pés, abriram a porta com a
chave de Sicórax e entraram, sorrateiros como as sombras.
Quando a porta se fechou, Magriço sentiu um pânico sufocante.
Os calabouços de Sicórax costumavam ter esse efeito nas pessoas.
— Você fica aqui, Abelhuda — ordenou Desejo. — Para poder nos avisar
se minha mãe ou outra pessoa vier atrás de nós.
— Tudo bem! — guinchou Abelhuda.
Os elfos mais novos sempre ficavam extremamente satisfeitos quando
recebiam uma tarefa. E Abelhuda estava aliviada por não ter que ir adiante.
Pois no centro do salão onde eles estavam ficava a verdadeira entrada para
os calabouços. Um grande poço, com uma plataforma móvel.
Magriço espiou o poço.
— Vamos ter que descer até lá, não é? — perguntou, esperando
pateticamente que Desejo dissesse que não.
— Sim — respondeu Desejo, subindo na plataforma.
— Tchau — sussurrou Abelhuda. — Boa sssorte… foi bom conhecer vocêsss… para
Pessssoas Grandes, vocêsss são menossss fedidos do que a maioria…
— Obrigado — disse Magriço.
Mesmo tremendo, ele subiu na plataforma. Desejo desamarrou a corda,
soltando-a aos poucos, e lá foram eles…
DESCENDO…
DESCENDO…
DESCENDO…
A temperatura caía veloz feito uma pedra, junto com o coração de
Magriço, conforme a plataforma afundava cada vez mais na prisão subterrânea.
O coração de Desejo também se apertava, porque ir até lá embaixo lhe
dava a sensação de ser não apenas uma traição, mas também uma violação.
Sicórax devia ter segredos ali…
Porque…
Uma rainha deve ter seus segredos…
E Sicórax DE FATO tinha segredos…
Todos os segredos de Sicórax ficavam escondidos ali embaixo.
Desejo sabia disso, e também sabia que não queria, de jeito nenhum,
descobrir que segredos eram esses.
Mas não tinha escolha.
DESCENDO…
DESCENDO…
DESCENDO…
Cada vez mais fundo, mais fundo, mais fundo.
Quando a plataforma finalmente tocou o chão, o que pareceu muito
tempo depois, eles desembarcaram no mundo secreto e noturno das prisões da
rainha Sicórax, debaixo de cem metros de rocha e terra, bem abaixo da
fortaleza dos guerreiros na colina.
Desejo e Magriço desceram da plataforma e se viram em uma pequena
câmara sombria com grandes goteiras no teto, iluminada pela tênue e vacilante
luz de uma tocha.
Havia nada menos do que sete corredores partindo da câmara.
Os calabouços de Sicórax ficavam no lugar em que, em tempos ancestrais,
havia uma mina, de modo que eram assombrados não apenas pelos prisioneiros
do presente, mas também pelos gigantes, anões e mineiros do passado. A mina
tinha se transformado em prisão, e os calabouços eram agora um grande
labirinto que se estendia como a teia de uma aranha gigante, com corredores
que serpenteavam e se cruzavam numa confusão traiçoeira, tal como o
labirinto torturante que era a mente da rainha Sicórax.
Esses corredores levavam a pequenas câmaras intermináveis, algumas com
prisioneiros, outras com… com outras coisas. Como Magriço e Desejo
saberiam que direção seguir?
— E o que é esse BARULHO? — sussurrou Magriço.
Os calabouços de Sicórax, como já mencionei, estavam sempre repletos de
barulho.
Uma melodia férrea de desespero e doçura misturados, pois a nostalgia tem
sua doçura, e coisas belas podem surgir da dor.
Os seres-outrora-mágicos aprisionados ali não podiam mais fazer Magia,
não podiam lançar seus feitiços; os elfos não podiam voar, os gigantes
encolhiam bem leeeentameeente. E isso tudo porque em uma das celas
secretas, na câmara mais profunda, ficava a Pedra Que Remove Magia, e todos
tinham sido levados até ela e a tocado, perdendo assim a Magia que fazia deles
o que eram. Em seguida, haviam sido levados de volta para suas celas e
mantidos lá até se adaptarem à vida sem Magia.
Nenhum deles tinha se acostumado ainda, então os seres-outrora-mágicos
ali embaixo enchiam os calabouços de ruídos. Sons de apatia, sons de revolta,
sons de pesar. O ruído dos pés dos ogros andando devagar em círculos tristes.
O uivo dos lobisomens e as canções dos elfos, que entoavam com vozes altas e
fantasmagóricas sobre os luminosos tempos antigos.
Era a única coisa que podiam fazer agora. Tinham perdido as asas, os
feitiços, a esperança. Tinham perdido a visão e a luz, pois, quando a Magia era
retirada dos elfos, suas cores desbotavam. A luz interior que queimava neles
com intensidade bruxuleava e morria.
Mas eles ainda faziam barulho.
Recebiam colheres de ferro e pratos de ferro com os quais comer;
agarravam o ferro com seus punhos e patas não-mais-mágicos e produziam
uma batida melancólica que ecoava pela prisão como a dor de um amor há
muito perdido.
Quando entraram nos calabouços, Desejo e Magriço ouviram a canção de
um elfo chamado Outrorelfo, instalado no ombro de Esmagador. Desejo
estava certa: o gigante aprisionado havia sido capturado pelos guerreiros
quando Xar o deixou para trás na floresta.
E agora ali estava ele, numa cela dos calabouços da rainha Sicórax, os olhos
fechados, pensando grandes pensamentos e esperando, mesmo sem esperança,
que Xar aparecesse para resgatá-lo.
Enquanto isso, em seu ombro, Outrorelfo cantava sobre um dia de verão
muito azul e muito iluminado quando ele voou alto e adormeceu durante o
voo como um andorinhão, deixando que as correntes de ar fossem sua cama,
tão alto que a última coisa que viu ao adormecer foram as muitas ilhas de
Albion lá embaixo, as florestas se estendendo de um mar ao outro.
E ele cantava tão lindamente que todos os habitantes daquela câmara
subterrânea sentiam como se pudessem ver também a paisagem descrita, e se
juntavam ao coro da “Canção da Magia Perdida”, batendo os pés, batendo no
ferro no compasso do grande coração do gigante, como se estivessem bem alto
no céu, em vez de enterrados nas profundezas, perdidos e esquecidos,
trancafiados para sempre. Pobre Sedento. Seria aquele seu destino?
Depois de ouvir a “Canção da Magia Perdida”, era impossível esquecer as
vozes dos seres-outrora-mágicos ecoando pelos corredores, repetindo e
ricocheteando no emaranhado de paredes. Ou ainda a mistura de emoções —
desespero, esperança, pesar — combinada com a minuciosa recriação do
mundo mágico e com a evocação da perda da Magia, criando um labirinto de
sons, sentimentos e escolhas morais que era tão desorientador e opressivo
quanto o próprio labirinto dos calabouços.
— Teremos agido certo? Teremos agido errado? — dizia a canção. — O que nós
perdemos? E que escolha teremos?
E essa canção se encontrava com outras; canções que evocavam a beleza da
floresta à meia-noite, quando apenas os olhos dos seres mágicos podiam
enxergar na escuridão; canções sobre a formação da lã-de-gelo nos galhos dos
amieiros quando a primeira geada do inverno caía na floresta; os brotos de
cíclame, de um violeta intenso e sem folhas, crescendo entre o manto de folhas
outonais caídas das árvores, silenciosas demais para os embotados olhos
humanos, mas claros como água para os olhos dos seres mágicos.
E nem se distinguia quais eram as canções dos vivos e quais eram as
canções dos espíritos havia muito falecidos, aprisionados naquele labirinto
tempos antes, cujas vozes tinham penetrado naquelas paredes apenas para
ecoarem de volta à vida com o golpe cortante daquelas canções, como se os
espíritos dos trasgos, dos elfos e das anãs das minas ainda estivessem lá,
extraindo os sons das paredes com seus machados encantados e libertando mais
uma vez as canções. Estavam vivos novamente nos ouvidos de Magriço e
Desejo.
Ah, sim, era um lugar assombrado e estranho, aquela prisão subterrânea
onde a Magia e o ferro, o passado e o presente, o bem e o mal se uniam de
uma maneira muito mais complicada e contraditória do que se poderia esperar
da segura fortaleza de ferro de Sicórax, que se erguia, orgulhosa, acima deles.
— Não temos um mapa — disse Magriço, cobrindo as orelhas, porque o
som era tão desnorteante que ficava difícil pensar e mais difícil ainda tomar
uma decisão. Ele já tinha explorado um dos corredores e descobrira que se
bifurcava. — Como vamos saber onde está Xar? Nunca vamos encontrá-lo em
um labirinto tão grande quanto este.
Um labirinto pode ser tão eficiente quanto cofres e cadeados quando se
quer esconder alguma coisa.
Desejo e Magriço caminharam pela câmara sem nenhuma direção definida,
até que a Colher Encantada notou algo bem no fim de um dos longos e
escuros corredores.
Um minúsculo ponto de luz, piscando sem parar, como uma estrela
distante.
A colher deu uma batidinha na cabeça de Desejo, para chamar sua atenção,
e seguiu pelo corredor para mostrar o pequeno foco de luz.
A princesa foi atrás da colher. Magriço ficou se perguntando aonde ela
estava indo, antes de segui-la com relutância.
Quando chegou até as distantes partículas de luz, ela viu outra mancha,
bem longe, chamando-a como se fosse um farol.
— Pó élfico! Xar deve ter espalhado pó élfico pelo caminho, para
podermos encontrá-lo! Que esperto! — disse Desejo, com admiração.
Eles continuaram em frente, tateando na direção dos pontos distantes de
luz, penetrando nos corredores tortuosos dos calabouços de Sicórax.
— Eles devem estar em algum lugar por aqui — disse Magriço quando os
dois chegaram a um longo corredor que devia ter pelo menos vinte e cinco
celas. — Vamos ter que olhar em todas as câmaras.
— Precisamos mesmo? — perguntou Desejo. — É fácil para você falar, a
mãe não é SUA. É estranho descobrir coisas que eu REALMENTE NÃO
QUERO SABER sobre ela.
Com relutância, Desejo pegou a chave e destrancou a porta mais próxima,
que se abriu com um rangido tenebroso.
— Você pode olhar, Magriço? — pediu ela, tapando o olho com uma das
mãos.
Magriço espiou pela porta…
… e desmaiou.
Desejo fechou a porta às pressas.
— O que havia lá dentro???? — perguntou a princesa quando Magriço
voltou a si.
— Você NÃO VAI querer saber, NÃO VAI MESMO.
Naquele momento, Desejo descobriu que era pior não saber, porque assim
ela imaginaria as piores coisas. Decidiu que da vez seguinte ia olhar.
Magriço abriu uma segunda porta e a fechou imediatamente, soltando um
“EEEEECAAAAA!!!”.
— O que havia lá dentro?? — perguntou Desejo.
— Cabeças.
— Ah, até parece — retrucou ela, tirando-o do caminho. — Você só está
convencido de que minha mãe é uma pessoa má…
Ela entrou na cela.
Eram cabeças.
— EEEEEECAAAA!!! — gritou Desejo.
E fechou a porta bem rápido.
— Tenho certeza de que há uma explicação razoável para isso. Minha mãe
se interessa muito por anatomia.
— Ah, é?
Em outras câmaras havia coisas menos nojentas.
Uma coleção inteira de Livros das Palavras Mágicas, por exemplo. Uma
biblioteca, com os tomos perfeitamente arrumados em fileiras e etiquetados,
pois Sicórax era uma mulher muito organizada.
Uma sala cheia de poções.
Muitas e muitas coleções de objetos mágicos banidos.
Mas, depois de muito tempo procurando, ainda não tinham encontrado
Xar.
Enquanto isso, na cela número 445, Xar estava se deixando abater pelo
desânimo, prestes a perder as esperanças, pois as horas passavam sem nenhum
sinal de Desejo e de Magriço. Obviamente, os calabouços de Sicórax tinham
sido projetados para acabar com o ânimo dos prisioneiros. Isso faz parte do
PROPÓSITO de um calabouço, afinal de contas. Eles não são planejados para
ser um ambiente alegre e arejado, com uma bela vista e assentos confortáveis.
Durante o dia, Sicórax o visitara de tempos em tempos, para perguntar se
Xar tinha mudado de ideia e decidido contar onde estava a espada. Nesses
momentos, os elfos e o garoto tinham a oportunidade de gritar com ela e fazer
comentários grosseiros sobre seu nariz. Isso os animava um pouco, mas quando
ela ia embora, a umidade e o ar frio da prisão escura penetravam em seus ossos,
e a Canção da Magia Perdida os deprimia ainda mais.
— Ela não vai vir, aquela Desejo… — sibilou Tempestade-de-Desavenças,
cuja luz se apagava depressa. — Aquela guerreira esssstúpida... por que você
confiou nela?
— Ela protegeu a espada e me alertou sobre a poção O Amor Nunca
Morre — respondeu Xar, melancólico, pois temia o mesmo.
— Eles são burros demais para seguir o pó élfico… São covardes demais
para vir até aqui… Eles odeiam você… Não têm como abrir as portas…
Os elfos, deprimidos, mantinham um fluxo constante de comentários
desanimadores, pois estavam numa infelicidade terrível.
— Você os sssequestrou, roubou a essspada deles, os enganou — disse
Ariel. — Por que aqueles nabossss enlatadossss arrissscariam a vida por você,
um inimigo?
— Ariel tem razão — disse Calíbano, com tristeza.
Será que Xar tinha sido estúpido ao colocar sua vida nas mãos de dois
guerreiros?
— Eles gostam do Sedento — argumentou Xar. — Sei que gostam.
O garoto olhou para o elfo, agora tão escuro que parecia quase preto. Seu
coraçãozinho mal batia.
Além das convulsões, Sedento sofria tremores e delírios, irreconhecível.
Naquele momento, tinha recobrado a consciência por um segundo.
— O que essstá acontecendo com eu? — sussurrou ele, e dava para ver o medo em
seus olhos. — Eu passssando para o lado negro?
— É claro que não — respondeu Xar.
E, justo quando Sedento estava prestes a entrar em coma outra vez, ele
sussurrou tão baixinho que Xar quase não ouviu:
— Xar vai sssalvar eu…
E colocou sua pequenina mão na forma de garra no peito do garoto.
Xar deveria ter dado a Sicórax o que ela queria…
Pelo menos Sedento sobreviveria…
Mas ele estaria colocando em risco a Magia do pai…
Xar não era de se desesperar, mas até ele estava começando a perder as
esperanças. Foi quando ouviu passos e sussurros no corredor.
— Você olha desta vez, Magriço, eu não consigo… — disse a voz de
Desejo.
— Eles estão aqui! — gritou a voz de Magriço, e seu rosto apareceu entre
as grades.
Ouviu-se um clique, clique, clique, seguido por um CREEEEC, e a pesada
porta da cela número 445 se abriu.
Xar nunca poderia imaginar que ficaria tão incrivelmente feliz e aliviado
por ver dois guerreiros, um alto e magricela e outro pequeno e manco. Até os
elfos ficaram felizes, encontrando energia para zumbir, animados, embora mal
tivessem forças para voar e planassem cada vez mais baixo no ar, como se
houvesse chumbo em seus sapatos.
— Vocês vieram! — exclamou Xar, tão animado que até os abraçou.
Quem poderia imaginar que Xar abraçaria um guerreiro?
— É claro que viemos — disse Desejo, resoluta. — Eu falei que viria, não
foi? Não deixaria um amigo em apuros…
Xar concordou que ela era uma excelente amiga, além de ter demonstrado
uma iniciativa que ele não esperava em uma guerreira.
— Como conseguiram entrar e como estão abrindo as portas? —
perguntou Xar.
— Magriço deu sonífero para a sentinela — explicou Desejo. — E minha
mãe deixou cair a chave dos calabouços. Como está Sedento?
Ela viu o pequeno elfo tremendo dentro do colete do feiticeiro.
— Acho que ele não está muito bem… — disse Xar, enquanto Desejo
desacorrentava os gatos-da-neve com a chave da rainha Sicórax e eles
pulavam, agradecidos. — Temos que levá-lo até a pedra o mais rápido
possível.
Mas, quando estavam prontos para sair da cela, Abelhuda entrou voando
como um relâmpago minúsculo e veloz, passando pelas grades da porta em
pânico. Ela estava sem fôlego porque tinha voado da entrada dos calabouços,
onde havia ficado de vigia, até lá.
— A rainha Sicórax!!!!! — gritou Abelhuda. — Ela está vindo!!!!
— A rainha Sicórax está vindo? — repetiu Magriço, quase desmaiando outra
vez.
— Ela não pode me ver aqui!! — gritou Desejo, petrificada.
Uma coisa era decidir que queria ser amiga de um feiticeiro; outra bem
diferente era ser pega pela mãe não apenas confraternizando com o inimigo, mas
o ajudando a escapar.
— Não se preocupe — disse Xar. — Escondam-se, eu cuido dela… Vou
ser educado dessa vez, prometo. Me dê a espada e tranque a porta da cela
quando sair.
— Seja gentil com ela, Xar! — alertou Desejo, jogando a Espada
Encantada para o garoto.
— Confie em mim — disse o pequeno feiticeiro, com um sorriso.
Magriço e Desejo saíram da cela e se esconderam num corredor próximo
com uma pressa desesperadora, pois, pelo som dos passos, a rainha Sicórax
estava quase chegando.
Ela pretendia oferecer a Xar uma última chance de cair em si e aceitar sua
proposta, para que ela levasse o elfo até a Pedra Que Remove Magia a tempo
de salvar sua vida. Certamente, nem mesmo um garoto feiticeiro sem um
pingo de consciência ia querer que seu elfo morresse. Se bem que Xar estava
se provando inesperadamente teimoso.
Ela ficou preocupada ao descobrir que perdera a chave (por sorte, tinha
uma cópia), e furiosa por encontrar na porta dos calabouços uma sentinela
dormindo como uma pedra. E, assim que entrou ali, soube que havia alguma
coisa errada.
A rainha Sicórax conhecia cada som que se ouvia em seu lar subterrâneo.
Cada goteira, cada gemido abafado dos prisioneiros, cada passo dos guardas,
cada bruxulear de vela, cada verso de canção fantasmagórica ou élfica.
Havia algo errado, ela sabia. Apertou o passo de seu deslizar habitual para
uma CORRIDA nada costumeira, fazendo estardalhaço naqueles corredores
cheios de eco.
Se Abelhuda não tivesse alertado Xar, Sicórax teria pegado a filha no
flagra.
Magriço e Desejo tinham escapado no último minuto, trancando a porta
ao sair.
Então, quando a rainha Sicórax destrancou a porta da cela 445 e entrou,
com o farfalhar majestoso de sua elegante capa vermelha, Xar estava no meio
da cela como se nada tivesse acontecido, a Espada Encantada escondida atrás
de si.
— O que está acontecendo? — perguntou a rainha Sicórax, ofegante.
— Nada — respondeu Xar.
— Hum… — fez ela, observando o garoto com suspeita, porque não
confiava nele nem por um segundo. — Esta é sua última chance, filho de
Encanzo — avisou a rainha Sicórax, irritada. — Não voltarei mais hoje, e pela
manhã seu elfo estará morto. Onde está minha espada?
— Seria esta? — disse Xar, posando de pensativo, revelando a espada.
A rainha Sicórax ficou rígida de choque.
Um rosnado baixo atrás dela, e três imensos gatos-da-neve com dentes
afiados como facas surgiram lentamente das sombras.
— Quem os desacorrentou? — perguntou a rainha, tão branca quanto seu
vestido. — Quem lhe deu minha chave? E onde encontrou minha espada?
— Não importa. Mas não se mexa, rainha Sicórax, ou a mato com esta
espada!
Aquele garoto infernal!
Ela deveria ter levado alguns guardas… mas Xar tinha sido revistado por
completo, então ela achou que seria perfeitamente seguro fazer uma visita a
um garotinho desarmado e alguns elfos trancafiados na cela de segurança
máxima. A mão da rainha se moveu lentamente para a própria espada, na
cintura.
— Eu disse “não se mexa”! — repetiu Xar, e havia um brilho em seus
olhos que fez a rainha Sicórax se conter.
Os feiticeiros eram um povo pacífico, mas Xar não era como a maioria dos
feiticeiros que Sicórax tinha conhecido.
— Então, Xar, filho de Encanzo, o que vai fazer agora que roubou minha
espada? — disse a rainha, furiosa ao perceber que o jogo tinha virado.
— Vou levar meu elfo até a Pedra Que Remove Magia. Depois, vou
libertar os gigantes e todos os outros prisioneiros mágicos que você trancafiou
aqui, para escaparmos desta fortaleza estúpida cheia de cabeças-de-nabo
adoradores do ferro e voltar para o acampamento dos feiticeiros, que é nosso
lugar.
— Você vai ser detido assim que sair destes calabouços — avisou a rainha
Sicórax. — Os gigantes chamam bastante atenção, e esta fortaleza está repleta
de guardas.
— Você é uma rainha perversa e traiçoeira cheia de segredos — disse Xar
—, então aposto que há uma saída secreta destes calabouços, e uma senha
também.
— Talvez — disse a rainha, seca —, mas é muito improvável que eu lhe
conte sobre ambas, nas atuais circunstâncias.
— E se eu propuser uma troca, como você fez comigo? — sugeriu Xar,
ardiloso. — Se me disser o caminho até a câmara de remoção de Magia e até a
saída secreta, além da senha, eu lhe entrego a espada.
A rainha Sicórax ficou satisfeita, embora não tenha demonstrado. Ela
queria muito, muito mesmo, aquela espada, ainda mais agora que as bruxas
tinham voltado para a floresta. O garoto se achava tão esperto, mas
obviamente não se dava conta da importância daquela Espada Encantada para
oferecê-la daquele jeito, com tanta facilidade…
— Aceito sua oferta. O caminho para a câmara de remoção de Magia é…
— Ahhh não… — interrompeu Xar. — Não, não, não, por favor, pode
parar, rainha Sicórax.
Ele enfiou a mão no colete e pegou um pequeno frasco.
— Pelo visto, as rainhas podem mentir… em nome do bem maior, é
claro… Então, você será obrigada a me dar a resposta segurando a poção O
Amor Nunca Mente, para eu saber se está dizendo a verdade.
A rainha Sicórax olhou para ele com a mais pura antipatia.
Xar entregou a poção.
— Você deve virar à direita, seguir pelo corredor, e entrar na sétima porta
quando chegar a uma grande caverna. De lá, você pode chegar à saída secreta
virando à ESQUERDA em cada bifurcação, e a senha é CONTROLE —
explicou a rainha Sicórax.
Xar a obrigou a repetir as instruções duas vezes, para conferir se a poção
não estava mudando de cor, mas o líquido permaneceu vermelho, então ela
devia estar dizendo a verdade.
Ele pegou a poção de volta.
— E agora vou deixar a espada para você — disse Xar, segurando o frasco
com a poção bem à vista, de modo que a rainha Sicórax visse claramente.
E assim que pronunciou essas palavras, o líquido no frasco ficou preto
como breu.
— Oooops — disse Xar, alegremente. — Ora, ora… Que confusão! Parece
que eu estava mentindo! É tão difícil acompanhar, não é?
A RAINHA TINHA SIDO ENGANADA!
Aquele feiticeirozinho horrível havia enganado Sicórax para que ela lhe
revelasse a senha, e agora ia embora com a espada!
Era bem irritante, para uma pessoa tão astuta quanto a rainha Sicórax,
encontrar alguém ainda mais astuto que ela.
Então ela perdeu a cabeça. Isso era muito incomum, mas tinha sido um dia
difícil.
— Seu garoto malcriado, mentiroso, desobediente e trapaceiro! — gritou
ela.
— Não, não — disse Xar, com impaciência. — Seja educada, rainha
Sicórax. Insultos não vão levar a nada. Será que você poderia, por gentileza,
me emprestar suas chaves e sua capa também? Acho que vai ser útil quando eu
tiver que me disfarçar de você para que os guardas nos deixem ir sem criar
problemas. Muito obrigado.
Com os dentes cerrados, a rainha entregou as chaves de todas as celas e sua
capa vermelha característica, forrada com uma confortável e majestosa pele
preta e branca.
— Você tem que admitir — continuou Xar, vestindo a magnífica capa —
que um garoto escolhido pelo destino como eu precisa de uma arma realmente
incrível, que seja de Magia misturada com ferro… Não me surpreende que
você seja tão apegada a essa espada. É mesmo um objeto extraordinário.
Sicórax abriu um sorriso gélido.
— Sinto muito, mas terei que trancá-la em sua própria cela — disse Xar.
— Não é exatamente adequada para a realeza, mas você é uma rainha muito
perversa, por ter tirado a Magia do meu povo e nos feito prisioneiros, além de
ter ameaçado matar meu elfo. Você precisa aprender uma lição, e é para isso
que servem as prisões.
— Posso arrumar o cabelo dela, Xar? — implorou Abelhuda. — Por favor, posso
arrumar o cabelo dela? Ela foi tão malvada com o pobre Sedento…
— Ah, tudo bem — disse Xar. — Mas seja gentil.
Abelhuda voou para o cabelo da rainha, e no tempo de duas batidas de asas
de uma joaninha, ela o havia transformado em um ninho de ratos emaranhado
muito criativo e complexo. Sicórax ficou completamente imóvel, pálida e
inerte como osso, de tanta raiva.
Abelhuda se afastou voando para avaliar sua obra, muito satisfeita.
Acima do rosto severo e congelado de raiva de Sicórax, sempre tão
contida, tão majestosa, tão arrumada, tão furiosa, sua linda e pura cascata de
madeixas douradas estava arrepiada, como se ela tivesse levado um choque, e
caótica como uma bola de pelos tendo um ataque de fúria.
— Aaahhhh… ficou bom, muito bom — sibilou Tempestade-de-
Desavenças, com um contentamento malicioso, e os elfos quase caíram no
chão de tanta risada.
— Vou levar semanas para desembaraçar esses nós élficos — reclamou a
rainha.
— E, enquanto estiver tentando desembaraçá-los, vai se lembrar de deixar
em paz a nós, seres-outrora-mágicos — garantiu Xar.
— E eu o aconselho — disse a rainha Sicórax, irritada, cada palavra uma
flecha gelada — a nunca mais pôr os pés no meu território. Ou, pelos deuses
das árvores e das águas, eu juro que vou fazê-lo se arrepender…
— Vai ter que me capturar primeiro! — retrucou Xar, sorrindo. —Adeus,
rainha Sicórax.
E fez uma reverência profunda antes de sair, junto com os gatos-da-neve e
os elfos, acompanhado do tão agradável farfalhar da capa de Sicórax.
Quando estava prestes a deixar a cela, ele se lembrou de uma coisa e se
virou.
— Hum… a propósito… eu não estava falando sério quando disse que
você era mole. Na verdade, você é tão dura quanto uma rainha guerreira deve
ser.

Xar saiu correndo, e Magriço, que esperava escondido junto à porta,


trancou a cela pelo lado de fora depois que ele passou.
Deixaram a rainha Sicórax sozinha na cela número 445, ajustando
minuciosamente sua armadura.
Ela teria muito em que pensar.
— Você foi muito malvado com a minha mãe! — repreendeu Desejo,
quando a rainha não podia mais ouvi-los.
— Eu fui muito educado! — protestou Xar. — Disse coisas gentis sobre
como ela é dura!
— Você disse que ela era uma rainha muito perversa! E Abelhuda destruiu
o CABELO dela! — exclamou Desejo, horrorizada. — Ela vai ficar uma fera,
não vai, Magriço?
— Uma fera — confirmou o menino, sofrendo só de imaginar.
— Eu fui muito misericordioso… — retrucou Xar. — Se ela não fosse sua
mãe, eu a teria matado. Agora, o que foi mesmo que ela disse sobre o caminho
para a câmara de remoção de Magia?
— Temos que virar à direita neste corredor, depois é a sétima porta na
grande caverna — respondeu Magriço, na mesma hora.
Eles estavam montados nos gatos-da-neve, avançando por corredores que
penetravam cada vez mais fundo no subterrâneo, tão fundo que o ar havia
ficado arrepiantemente frio. Uma Desejo trêmula se acomodava cada vez mais
nos pelos espessos de Coração-da-Floresta.
Xar sentia Sedento rígido dentro do embrulho no bolso acima de seu
coração. Se não o levassem até a pedra bem rápido, iam perdê-lo.
O corredor finalmente se abriu em uma grande caverna, iluminada pela luz
bruxuleante de tochas.
Tempestade-de-Desavenças sibilou, horrorizada, e se escondeu atrás de
Xar.
— É ali… — anunciou.
Havia sete portas na caverna. Acima da última, uma placa desbotada dizia:
“Câmara de Remoção de Magia”.
A entrada era torta e não tão grande quanto esperavam. Se um gigante
quisesse ter sua Magia removida, teria que se deitar na caverna e enfiar o braço
pela porta.
Uma estranha força magnética parecia atrair Xar para a porta torta, como
se um vento gélido o arrastasse, até que ele se deu conta de que era a espada
em seu cinto que se contorcia e apontava para a porta como um dedo de ferro.
Todos os instintos de Xar lhe diziam: “Fuja… Não se aproxime mais…
Pare onde está…”
Olho-da-Noite, Coração-da-Floresta e Gato-Rei andavam em círculos; os
três estavam ansiosos, rosnavam, bufavam e uivavam.
— NãoENTRE nãoENTRE nãoENTRE nãoENTRE — sibilavam os
elfos.
— Mas nós temos que entrar — disse Desejo, descendo das costas de
Coração-da-Floresta.
— Pelo bem do Sedento — concordou Xar, desmontando de Gato-Rei.
Desejo girou a chave na fechadura e a porta da câmara de remoção de
Magia de Sicórax se abriu.
A câmara de remoção de Magia tinha um teto muito alto e era perfeitamente
redonda.
A única coisa que havia lá dentro era uma pedra.
A pedra era escura e cinza.
Era uma pedra comum, porém imensa.
Áspera nas bordas, como lava solidificada.
— ESTA é a Pedra Que Remove Magia? — perguntou Xar, incrédulo,
pois não parecia haver nada de assustador nela.
Mas os elfos e os animais eram mais sensíveis à estranha atmosfera da sala, e
os elfos estavam tão ansiosos que zumbiam como vespas enquanto os gatos-da-
neve andavam inquietos pela sala circular, com todos os pelos eriçados.
Xar pegou Sedento, que estava duro igual a uma pedra preciosa verde-
escura, sua respiração saindo qual pequenos pingentes de gelo verdes retinindo
rigidamente em seu corpo paralisado. Sua luz estava desvanecendo, sumindo,
quase inexistente, cada vez mais fraca, como sua respiração.
— Agora você tem que colocá-lo na pedra — explicou Desejo.
— Não faça isssso, Xar — sibilou Ariel, erguendo os braços finos. — Você
tem que dar ouvidos às hissstórias das fadas, hissstórias do nosso passado… Os
contosss de fadas carregam sabedoria…
Mistura-de-Pensamentos terminou a frase de Ariel:
— … e todos os contos de fadas dizem: NÃO TOQUE NA PEDRA.
— O pai do pai do meu pai me contou uma história que diz para
NUNCA tocarmos nessa pedra, Xar… — disse Tempestade-de-Desavenças.
Os outros elfos fizeram coro:
— O meu também!
— O meu também!
E as paredes da câmara ecoaram as palavras que poderiam ser daqueles elfos
ou dos elfos que tinham estado ali um dia e se viram diante das mesmas
escolhas: O meu também, o meu também, o meu também…
— Os elfos têm razão — disse Calíbano, nervoso. — Você precisa
acreditar nas histórias, porque elas sempre têm uma mensagem. O que me
preocupa é: QUAL mensagem é essa?
Agora que eles estavam ali, diante da pedra, confrontados com a realidade
de tocá-la, Xar se descobriu dividido, sem saber o que fazer.
A voz de Outrorelfo soava límpida e pura como um rouxinol, em algum
lugar na escuridão acima deles — ele cantava uma canção sobre como sofria
por ter perdido sua Magia, sobre como suas asas, que costumavam tocar as
estrelas em uma noite fria de inverno, estavam agora paralisadas —, e a
melancolia dolorosa daquela canção lembrou a todos exatamente quão
importante era aquela decisão.
Xar sempre sabia o que fazer.
Mas, pela primeira vez na vida… não tinha certeza.
— O que eu devo fazer? — perguntou ele, em uma agonia de indecisão.
— Talvez Sedento prefira passar para o lado negro em vez de ter que abrir mão
da Magia. Talvez ele ache melhor morrer se não vai mais voar!
— Esta é nossa única chance de salvar a vida dele — disse Desejo. — Que
tal você colocar Sedento na pedra por apenas um ou dois segundos, para
remover a Magia do sangue de bruxa, e tirá-lo bem rápido, para sobrar alguma
Magia?
— Será que funcionaria? — perguntou Xar a Calíbano.
— Bem, não posso garantir nada. Nunca mexi com sangue de bruxa.
— Mas nós precisamos ter esperança — incentivou Desejo. — Não
podemos simplesmente deixar que ele morra. Precisamos ter esperança de que
vai funcionar e de que algo bom pode acontecer aqui, neste lugar sombrio.
— Me ajude — pediu Xar para Desejo. — Não consigo fazer isso sozinho.
Os cinco elfos e os elfos menores formaram um halo brilhante sobre a
cabeça de Desejo e Xar, alarmados e desconfiados, Ariel cuspindo palavras de
proteção como CCVRBXTLT e DJERKLTITOCOLX, e as letras brilhantes e
angulosas tremulavam de medo e ansiedade no ar antes de se desfazerem.
Xar e Desejo respiraram fundo e se ajoelharam junto da pedra, segurando
Sedento com delicadeza e inclinando-o apenas o suficiente para que a marca
da bruxa em seu peito tocasse a superfície da pedra.
Xar virou o rosto.
Então…
Nada aconteceu.
O pobre elfolino se contorceu um pouco e em seguida ficou imóvel.
— Será que é tarde demais? — sussurrou Xar, pois a luz de Sedento tinha
se apagado por completo e por um segundo ele ficou caído na pedra como um
ramo endurecido de hera.
E então, justo quando Xar perdeu a esperança, o cintilar muito fraco de
uma luz bruxuleou no peito de Sedento e foi ficando mais intenso… e mais
intenso…
O verde foi sumindo aos poucos das pernas do pequeno elfo… dos
braços… e, finalmente, do peito, até que, com um súbito arfar, ele inspirou
fundo, seus olhos se abriram e ele bateu as asas de leve.
— Ele está vivo… — disse Desejo, com um alívio intenso. Sedento
zumbia suavemente de volta à vida.
— Rápido, tire-o da pedra! — disse Xar.
Os dois humanos o tiraram com cuidado de lá. O pequeno elfo ficou
sentado na mão de Xar, piscando, confuso, como se estivesse despertando de
um coma.
— Ele está vivo! — gritou Xar, comemorando, enquanto Sedento
respirava muito, muito baixinho e sussurrava:
— Eu vivo! Eu vivo! Eu vivo!
— Ele está VIVO! Acham que ele ainda pode voar? — perguntou Xar.
— É cedo para dizer — opinou Calíbano. — Ele vai precisar de um
tempo para se recuperar.

Elfos não são como humanos. As florestas são tão perigosas que eles teriam
desaparecido anos antes se não se recuperassem rápido de doenças. Sedento,
cheio de bravura, ergueu a cabeça, abriu as asas trêmulas e se lançou no ar,
mesmo fraco.
— Ele ainda consegue voar! — gritou Xar. — EU CONSEGUI! VAI
FICAR TUDO BEM! Está vendo, Calíbano? Apesar de todo o seu discurso
sombrio de o-que-está-feito-não-pode-ser-desfeito, foi exatamente como eu
disse: nada é impossível! E foi na hora certa! Eu sou TÃO INTELIGENTE,
ah, tão brilhante! Foi uma ideia tão boa que eu tive, essa de deixar nele Magia
suficiente para voar…
— Rápido, Xar! — chamou Magriço. — Coloque sua mão na pedra para
se livrar do sangue de bruxa… aí vamos poder ir embora deste lugar horrível.
Xar suspirou.
— Ande logo — apressou Calíbano. — Você sabe que essa é a segunda
parte da nossa missão. E deve ter aprendido alguma coisa hoje. Todas essas
coisas ruins só aconteceram porque você tentou obter a Magia ruim de uma
bruxa.
— Eu sei, eu sei — admitiu Xar, com certa tristeza. — Mas você não faz
ideia de como é difícil crescer em um mundo mágico sem ter Magia.
— É difícil, mas você viu o que o sangue da bruxa fez com Sedento. Essa
Magia que você tem na sua mão é ruim, e Magia ruim sempre termina mal.
— Tudo bem, tudo bem… — Xar soltou outro suspiro. — Eu vou fazer
isso.
Milagre dos milagres, parecia que o garoto realmente tinha aprendido algo
naqueles dois dias.
Ele se ajoelhou e pousou a mão com a marca da bruxa na pedra.
Foi uma sensação bizarra, mas não durou muito.
Foi como um choque elétrico na palma da mão, que se grudou à pedra
como se tivesse sido atraída magneticamente. No minuto seguinte, Xar sentiu
algo sendo arrancado dele, e em seguida a força desapareceu. Quando ele
ergueu a mão, não havia mais a mancha verde.
Xar não conseguiu evitar o desânimo quando olhou para a mão. Por um
momento ele tinha sido especial, mesmo que especial da maneira errada.
Agora era apenas o velho Xar sem graça de novo, velho demais para que sua
Magia ainda não tivesse se manifestado.
Calíbano pousou em seu ombro e disse, com compaixão:
— Você fez o certo, Xar. Estou orgulhoso de você. Foi a coisa sábia e
madura a fazer. Sei que foi difícil, mas você tem que ter paciência e esperar
que sua Magia se manifeste. Não se precipite e não tente conseguir as coisas de
imediato.
— Sim, eu sei, mas é tão difícil — disse Xar, entristecido. — Pelo menos
Sedento está curado.
— CURADO — confirmou Sedento, sonolento, no bolso de Xar. — Mas por
que ainda esssstamos nessses calabouços sssinistrentos?
— Boa pergunta — disse Xar. — Vamos dar o fora daqui!
Desejo estava ajoelhada ao lado da pedra, no caminho de Xar, tentando
não entrar em pânico.
— Desejo? A gente precisa ir embora!
Ela não respondeu de imediato. Engoliu em seco e disse:
— Não consigo tirar as mãos da pedra.
Fez-se um silêncio terrível.
— Como assim não consegue tirar as mãos da pedra? — perguntou Xar.
— Elas estão grudadas… minhas mãos estão grudadas na pedra…
— Como isso é possível???! — exclamou Magriço, horrorizado.
O que aconteceu foi o seguinte:
Desejo estava ajoelhada, ajudando Xar a colocar Sedento na pedra.
Quando foi se levantar, ela tropeçou, desastrada como sempre, e se apoiou na
pedra para não cair.
E não conseguiu mais se soltar.
Confusa, até tentou se afastar, porém quanto mais puxava, mais as mãos
grudavam.
Agora estava ajoelhada de novo, com as mãos na pedra, a testa apoiada na
superfície cinza e gelada. Suas mãos pareciam coladas.
Ela tentou mexer o dedo mindinho, mas não conseguiu. Sentia uma
quentura quase agradável nas mãos, e estava ficando um pouco enjoada. Era
uma sensação muito estranha: uma força de atração dentro da pedra parecia
sugar suas vísceras, esvaziando-a, como se Desejo fosse uma garrafa de vinho.
— O que está acontecendo? — perguntou Magriço. — Por que ela não
consegue tirar as mãos da pedra? Aconteceu alguma coisa? O que significa isso?
— Isso é estranho… muito estranho… — comentou Calíbano, bem
confuso.
Xar e Magriço tentaram ajudar Desejo a se soltar da pedra, mas foi em vão.
As tentativas dos dois de puxar e tentar descolar os dedos de Desejo só os fez
sangrar, e ela berrou, pedindo que parassem. Os elfos não podiam usar feitiços
nos calabouços de ferro da rainha Sicórax. Então se limitaram a zumbir em
volta dela, repetindo:
— Ouça as históriassss… ouça os contos de fadassss… não toque na
pedra…
O que não era muito útil, francamente, já que Desejo JÁ TINHA tocado a
pedra, então era um pouco tarde para dizer a ela o que não fazer.
— Ah, céus… ah, céus… ah, céus… O que está acontecendo? —
perguntou Magriço, inquieto. — Tem alguma coisa estranha acontecendo, eu
sei que tem… Queria que nunca tivéssemos vindo até aqui. Você está bem,
princesa? Não dói?
— Não, não dói. Estou um pouco enjoada, mas não dói.
Desejo estava nauseada, confusa e morta de medo.
Ficar preso em uma caverna horrível em um calabouço a cem metros de
profundidade, com as mãos presas a uma enorme pedra cinza lhe dava uma
sensação terrível de claustrofobia. A imaginação de Desejo começou a lhe
pregar peças.
E se ficasse presa ali para sempre? Aquele era o problema com objetos
mágicos. Por isso que era preciso ter tanto cuidado ao tocá-los. Nunca se sabia
ao certo quais eram as regras.
E se essa fosse a moral dos contos de fadas? Que se você coloca as mãos na
pedra e é o tipo errado de pessoa, como um guerreiro, não um ser mágico,
você nunca mais consegue se soltar?
Sete minutos se passaram.
Oito minutos se passaram.
— O que está acontecendo? — ela não parava de repetir.
— Nove minutos… dez minutos… O que está acontecendo? — indagou
Calíbano, muito confuso.
Estava tão quente na sala que o suor escorria pelo rosto de Xar, e sua
camisa estava ensopada.
O que era ainda mais estranho era que o calor parecia estar afetando a
Colher Encantada. Ele se inclinou no ombro da princesa, tentando confortá-
la, mas quase se dobrou ao meio, pobrezinho, como se, por compadecer-se de
sua situação, a vida estivesse sendo sugada dele também.
Os gatos-da-neve e os elfos pressentiram o perigo e fizeram um círculo de
proteção ao redor de Xar, os elfos erguendo os braços e tentando, sem sucesso,
lançar feitiços e maldições, com tanta força que o ar crepitava de Magia
frustrada.
Desejo estava fraca agora e tentando a todo custo não entrar em pânico.
— Eu não vou ficar presa aqui para sempre, vou, Calíbano?
— Não, não — respondeu Calíbano, na tentativa de tranquilizá-la —, não,
não, para sempre não… Sempre é uma palavra muito forte. Tenho certeza de
que é apenas um pequeno percalço… Um pequeno mal-entendido, e a
qualquer momento você vai se soltar…
A testa de Desejo estava muito próxima da pedra.
Era sua imaginação ou a rocha diante dela estava ficando mais clara? E
estava ficando também transparente, como se a superfície cinza fosse apenas
uma membrana e desse para ver lá dentro.
Ah, pelo visco e pelo carvalho e por todas as coisas doces e venenosas!
Enquanto Desejo olhava, fascinada, hipnotizada, pensou ter visto um olho
se abrir em algum ponto no centro da pedra…
E uma horrível voz rouca sussurrou:
— Oláááá… Eu estava esperando você…
Xar assistia à cena boquiaberto.
— A pedra está falando!
— Não é a pedra! — exclamou Desejo. — Tem alguma coisa lá dentro…
Por um momento houve um brilho de uma cor intensa, e quando os olhos
de Desejo se ajustaram…
… ela se deparou com os olhos de uma enorme bruxa, toda encolhida na
pedra, as pernas dobradas sob o corpo como um grande gafanhoto negro.
Encanzo, o Encantador, sempre repetia um ditado que Sicórax deveria
lembrar:
“A Magia não pode ser destruída, apenas ocultada.”
Como esse ditado era verdadeiro!
Pois esse era o segredo da Pedra Que Remove Magia.
Ela removia a Magia por uma razão.
— O que… é… isso? — sussurrou Desejo, horrorizada.
— Eu sou o Rei Bruxo… — disse a voz rouca, horrível e apavorante
— Ah, pelo olho da salamandra e pelo dedo do pé do sapo frito! —
amaldiçoou Calíbano. — O destino nos enganou! É o tipo errado de
predestinação! É o universo em um dos seus humores mais desleais! É a sorte
tendo um DIA MUITO, MUITO RUIM!
Era, de fato, o Rei Bruxo.
E parecia que o destino estava jogando um jogo traiçoeiro com eles.
Veja bem, os feiticeiros tinham a tradição de nunca registrar nada por
escrito.
O problema é que, quando a verdade é passada de boca em boca por
muitos séculos, ela pode se deformar e se fragmentar ao longo desse tempo.
Aparentemente, os elfos estavam certos ao dizer NÃO TOQUE NA
PEDRA.
Parecia que os contos de fada tinham mesmo razão.
Como Calíbano disse, o problema com as histórias é que você precisa saber
quais mensagens elas querem passar.
E agora o verdadeiro segredo da pedra tinha sido revelado.
Eis a verdade a respeito dela:
Muitos séculos antes, o Rei Bruxo fora derrotado, na última Guerra das
Bruxas, e acabara aprisionado naquela pedra. Ele passou centenas de anos se
alimentando da Magia que vinha de fora, esperando e esperando.
A rainha Sicórax pensava que estava levando os seres-outrora-mágicos para
a pedra por sua livre e espontânea vontade. Como ela poderia imaginar que
estava respondendo à vontade do Bruxo Dentro da Pedra? Que, no coração de
sua fortaleza de ferro, em silêncio dentro da rocha acinzentada, havia outro
coração, outra vontade atraindo, arquitetando, esperando e desejando com
uma força maligna invisível, como uma aranha de pernas compridas no meio
de uma grande teia cinza?
— Éumabruxaéumabruxaéumabruxa! — guinchavam os elfos e os
elfolinos, subindo no ar de medo, espalhando pequenas nuvens negras de
fumaça-de-terror.
— Me dê sua Magia… — sussurrava o Rei Bruxo. — Me dê sua Magia…
ME DÊ SUA MAGIA…
— Deve haver algum engano — implorou Desejo, forçando-se a olhar
para aquele terror dentro da pedra. — Eu não tenho nenhuma Magia para
dar… Não sou uma feiticeira… Sou apenas uma princesa guerreira, e bem
comum. Por favor, me solte…
— Ah, mas você tem Magia — respondeu o Rei Bruxo. — Acredite em
mim, eu reconheço Magia quando a sinto. E sua Magia não é nem um pouco
comum. É um tipo muito especial, uma Magia pela qual estou esperando há
muito, muito tempo. Magia-que-atua-sobre-ferro…
Ah.
Meu.
Deus.
— ME SOLTEM! — gritou Desejo, com todas as forças.
E um pandemônio teve início na câmara de remoção de Magia.
Magriço e Xar agarraram os dedos de Desejo, mas as mãos dela não saíam
do lugar.
— Não pode ser verdade — choramingou a princesa. — Eu sou uma
guerreira! Guerreiros não têm Magia! É impossível!
Mas nada é impossível. Apenas improvável.
E no momento em que o Rei Bruxo disse aquelas palavras, todos os
presentes na sala souberam que era verdade.
Isso explicava tudo.
Explicava por que Desejo vinha se sentindo um pouco diferente e
estranha. Nos últimos meses, várias coisas esquisitas estavam acontecendo com
ela. Agulhas ganhando vida em suas mãos, tapetes se movendo
inexplicavelmente sob seus pés ou se curvando nas pontas.
Objetos escorrendo por suas mãos como água ou formigando de
eletricidade quando ela os tocava… coisas que ela achava que tinha colocado
em um lugar aparecendo inesperadamente em outro… o cabelo se arrepiando
quando ela se encontrava com determinadas pessoas, ou entrava em
determinados cômodos, e se enroscando sozinho… roupas se rasgando…
sapatos saindo dos pés… chaves sendo perdidas…
Ela havia pensado que era apenas por ser esquecida, desastrada, distraída e
ainda mais inútil do que o normal. Mas…
Desejo tinha treze anos, e era nessa idade que a Magia se manifestava.
— A colher… — murmurou Magriço.
Uma guerreira que possuía Magia!
Inconcebível.
Mas seria possível que a colher de ferro tivesse ganhado vida pela estranha
Magia-que-atua-sobre-ferro de Desejo?
Magriço se deu conta de que a personalidade da colher, debruçada no
ombro de Desejo, era muito parecida com a da própria Desejo.
Ele era bondoso e leal.
Um pouco inconsequente.
Um pouco estranho.
Como Desejo poderia encantar um objeto sem nem saber que estava
fazendo isso?
A Magia é difícil de controlar, ainda mais quando a pessoa nem sabe que a
tem.
E isso também era típico. É claro que, se Desejo possuía Magia, era a cara
dela ter uma Magia completamente diferente.
— Ah céus, ah céus, ah céus… — repetia Calíbano. — Eu sabia que não
estávamos fazendo as perguntas certas! As perguntas que deveríamos estar
fazendo eram: por que as bruxas estão despertando AGORA? Por que aqui?
Por que nós? E a resposta é que elas estão despertando porque a Magia de
Desejo está se manifestando…
Calíbano estava certo. Não era uma mera coincidência… As bruxas
haviam passado séculos adormecidas, e escolheram aquele momento específico
para acordar porque sentiam que a Magia de Desejo tinha se manifestado, e era
algo de que elas precisavam.
— Me dê a Magia… — dizia o Rei Bruxo, de dentro da pedra, na mesma
horrenda voz chiada. — Me dê a Magia-que-atua-sobre-ferro…
— POR QUE ele a quer? — choramingou Desejo, já sabendo que não
queria ouvir a resposta.
Calíbano já tinha entendido.
— Ele está tentando obter Magia para sair da pedra!!!! — gritou o corvo. —
TEMOS que tirar Desejo daqui!
— ME TIREM DESTA PEDRA IMEDIATAMENTE!!!! — berrou
Desejo mais uma vez.
— Tempestade-de-Desavenças, tente tirá-la da pedra com um feitiço! —
ordenou Xar. — Vou tentar puxá-la mais uma vez!
Tempestade-de-Desavenças sibilou, furiosa, bufando de raiva e irritação.
— SSSSSSSsssss!!!! Garota humana fedida e desajeitada!! Ficou maluco,
mestre!? O que precisamos fazer AGORA é dar o fora daqui!!!!! As coisas
estão prestes a ficar muito feias…
— Obedeça — disse Xar com severidade.
Os elfos vasculharam desesperadamente suas bolsinhas de feitiços.
Invisibilidade, poções do amor, maldições, feitiços para voar, todo tipo de
Magia simples, útil para situações cotidianas, mas não para enfrentar um mal
grande e sombrio como uma bruxa. Eles tentaram todas as varinhas: as
condutoras, as varinhas número 4, as varinhas número 5… mas, obviamente, a
Magia deles jamais funcionaria em uma prisão cheia de ferro.
A horrível voz rouca do Rei Bruxo foi crescendo e crescendo, enchendo a
câmara de terror.
— ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA
MAGIA… — entoava ele, e quanto mais alto falava, mais nervosa Desejo
ficava.
— Como posso usar essa Magia para sair daqui? — perguntou Desejo.
— ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA

— Você tem que QUERER muito, muito mesmo uma coisa… Faça um
DESEJO! FALE O QUE QUER, COMO SE LANÇASSE UM FEITIÇO!
— respondeu Xar. — E depois o CANALIZE com as mãos!
— Eu não consigo! — disse Desejo, já tão enjoada que queria desistir e
morrer ali mesmo. — Minhas mãos estão grudadas na pedra! Por que não
consigo tirá-las? Foi tão fácil tirar Sedento!
— O Rei Bruxo deve ter deixado você tirar Sedento — explicou Calíbano,
planando aterrorizado acima da pedra. — Mas não vai deixar que você se
liberte…
Com as mãos presas, ela não poderia fazer Magia mesmo se soubesse como
fazer. Qualquer pensamento independente estava sendo sugado pela pedra:
Desejo sentia o efeito entorpecedor dos pensamentos do bruxo se entrelaçando
aos seus próprios, como se estivesse sendo devorada por um animal grande e
assumindo o ponto de vista dele durante o processo de digestão.
Afinal, os guerreiros juraram destruir toda a Magia, então é perfeitamente razoável
que as bruxas lutem contra isso…, diziam seus pensamentos, e ela não sabia mais
se eram os próprios ou os do bruxo.
— ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA ME DÊ SUA MAGIA

Desejo enxergava dentro do corpo do Rei Bruxo, onde seus dois corações
negros batiam, cada pequena artéria iluminada como uma rede de trilhas
verdes ou as nervuras de uma folha. Mas também havia outras trilhas: trilhas de
Magia se cruzando com as artérias verdes do Rei Bruxo, minúsculas trilhas que
se entremeavam por uma floresta branca.
As mãos do Rei Bruxo tocavam a pedra por dentro, junto às de Desejo, e
ela sentia a Magia fluindo para o Rei Bruxo em pulsações ritmadas e
constantes que acompanhavam as batidas de seu coração.
Eu desejo me libertar… Eu desejo… Eu desejo… Eu desejo…, desejou Desejo.
Foi o caos na câmara de remoção de Magia: a entoação hipnótica do
bruxo foi ficando ensurdecedoramente mais forte, os elfos começaram a atirar
feitiços a esmo e os gatos-da-neve começaram a uivar e rosnar.
— RESISTA! — gritou Calíbano. — TENTE COM TODAS AS SUAS
FORÇAS! SEJA DESOBEDIENTE! Pense em Xar desafiando o pai! Fique
com raiva, Desejo, e lute! Amaldiçoe esse bruxo! Não abra mão de sua Magia
só porque acha que é o que um guerreiro deve fazer!
Desejo se lembrou de Xar mais cedo gritando com o pai, e, ao fazer isso,
viu o fluxo de Magia que ia dela para o bruxo diminuindo.
— É tarde demais… — disse Magriço. — A pedra está se movendo…
A pedra tinha começado a se mover, sutilmente no começo, depois cada
vez mais descontrolada, mais rápido, mais descontrolada, mais rápido.
Ah, pelos bigodes de bruxa e pelo visgo murmurante e pelas unhas do pé amarelas
dos mais aparvalhados ogros-do-lodo do lodaçal, pensou Magriço. O Rei Bruxo deve
ter finalmente sugado Magia suficiente para sair da pedra!
— Fugir! Fugir! Fugir! — gritavam os elfos, brilhando como meteoros.
Mas eles não podiam deixar Desejo ali sozinha. Nem Magriço, nem Xar,
nem Calíbano, nem os gatos-da-neve, nem mesmo os elfos.
Elfos tinham uma péssima reputação. As pessoas dizem que eles são
criaturas traiçoeiras e frívolas, que não sabem o significado do amor e da
lealdade.
Mas tudo que eu posso dizer é: aqueles elfos, apesar do terror diante da
pedra que se movia, do bruxo prestes a emergir, do medo da própria morte,
ficaram ao lado de seu mestre. Eles sibilavam e cuspiam como fogueiras, mas
mesmo assim não fugiram.
Sem pensar, Xar brandiu a Espada Encantada.
A lâmina brilhava.
Em outros tempos havia bruxas…
… mas eu as matei.
Ele ergueu a espada acima da cabeça, deu um grito bem alto e golpeou a
pedra com toda a sua força.
Obviamente, isso deveria ser impossível. Uma espada de ferro penetrar
uma pedra?
Mas a espada mágica se cravou na pedra até o cabo, como se Xar a
estivesse enfiando na terra.
BUUUUUMMMMM!
Cada fio do cabelo de Desejo se arrepiou e brilhou como fogo. O cheiro
de cabelo queimado se misturou à fumaça na sala. A porta explodiu, soltando-
se das dobradiças, e foi bater na parede oposta. Raios foram disparados da
superfície da pedra, e Desejo foi catapultada para longe. A menina voou para
trás e caiu com um baque terrível.
Linhas finas apareceram na superfície da rocha, iguais às rachaduras que
aparecem no ovo antes de um pintinho nascer.
— A pedra está se partindo! — gritou Tempestade-de-Desavenças. — A
pedra está se partindo!
A pedra rachou de uma ponta a outra.
Uma grande fenda irregular ziguezagueava por toda a superfície cinza.
E alguma coisa começou a sair da fenda.
No início, parecia uma manchinha de óleo negro vazando da pedra, como a
gema saindo de uma casca de ovo quebrada.
Não podia ser o Rei Bruxo, podia? Como aquela coisa que eles tinham
visto lá dentro poderia sair por uma fenda que devia ter três centímetros de
largura?
Aquele bruxo não deveria ter morrido depois que uma grande espada
mágica matadora de bruxas tinha sido cravada bem no meio da pedra onde ele
estava aprisionado?
Aquilo só podia ser sangue de bruxa.
Mas, diante dos olhos de todos, a poça negra foi crescendo.
Então o líquido se solidificou e se transformou em um ser de carne e osso,
um corpo real e vivo que se movia.
Uma espécie de espantalho coberto de penas e ensopado, pingando água.
Às vezes as pessoas tentam se convencer de que as bruxas não podem ter
sido tão ruins quanto os contos de fadas dizem que eram, mas bastava olhar
uma vez para o Rei Bruxo para saber que elas eram exatamente tão ruins
quanto as histórias diziam, talvez ainda piores.
Acredita-se que apenas olhar para uma bruxa pode matar uma pessoa de
medo. Elas podem, é claro, assumir muitas formas, algumas bastante
agradáveis, mas na maior parte do tempo consideram útil assumir a forma mais
assustadora possível.
A Coisa tinha um nariz em formato de faca, tão afiado e pontudo que
parecia possível cortar cebolas com ele. Havia apenas dois buracos negros no
lugar dos olhos, como poços profundos com algo cruel e viscoso como
mercúrio brilhando lá no fundo. Na boca, uma saliva repulsiva escorria das
presas. As mandíbulas poderiam engolir um cervo de uma bocada só. O corpo
era uma mistura de humano com pantera e tinha asas cobertas de penas negras.
De modo geral, o Rei Bruxo não era uma visão agradável.
Aquela coisa pegajosa emanava poder ao len-ta-men-te abrir as asas negras
e molhadas em toda a sua extensão. Gotas negras e fumegantes pingaram no
chão quando o ser ergueu o bico e olhou para Xar e Magriço.
E desapareceu.
— Para onde ele foi? Para onde ele foi? — perguntou Xar, olhando para
todos os lados.
Os animais uivaram de medo, e os elfos abriram a boca cheia de presas e
guincharam de medo, pois há poucas coisas mais assustadoras do que um
inimigo que não se pode ver.
Do outro lado da sala, Desejo se levantou, tremendo.
— Nada de pânico… — disse Calíbano, em pânico. — Onde ele está?
Alguém consegue ver?
Os três se viraram em todas as direções, tentando enxergar o bruxo
invisível.
Mas não havia nada lá.
— Ele vai atacar Desejo! — disse Xar.
Ele sabia disso, embora não soubesse explicar como.
E de fato o ar acima de Desejo pareceu se adensar e escurecer.
Bravamente, a Colher Encantada, em cima da cabeça de Desejo, virou-se
para encarar a escuridão.
Mas uma colher encantada é o tipo de coisa que você poderia querer ao
seu lado quando está fazendo sobremesa, não quando está diante de uma das
formas de vida mais assustadoras que já caminhou pela face da Terra.
Xar tentou tirar a espada da pedra, mas ela estava bem presa, como se
tivesse permanecido enraizada ali todo aquele tempo. Por mais forte que ele
puxasse, a arma não se movia um centímetro sequer.
Então, com outro grito horripilante, completamente desarmado, Xar, o
garoto que não se importava com ninguém além de si mesmo, lançou-se sobre
o bruxo.
Quando o bruxo guinchou, avançando sobre Desejo, era porque estava se
tornando visível ao atacar, e se tornar visível não é fácil nem indolor como
acender uma vela. Parecia, na verdade, que a atmosfera estava sendo rasgada ao
meio como uma cortina: primeiro apareceu a cabeça, derretendo nas
extremidades com faíscas e fumaça negra, e em seguida, com um cheiro
horrendo de penas queimadas, o bruxo em si, gritando como um falcão.
Desejo se abaixou por instinto.
O bruxo estava mirando em sua cabeça, pois tinha a intenção de arrancá-
la. (Que criaturas adoráveis são as bruxas, não é mesmo?)
Xar e os gatos-da-neve deram os maiores saltos de toda a Saltolândia e
pegaram o bruxo pela cauda.
Então, em vez de arrancar a cabeça, o Rei Bruxo arranhou o rosto da
menina, arrancando seu tapa-olho com as garras. Quando ele se ergueu mais
uma vez no ar, Desejo gritou e colocou as mãos no rosto enquanto caía no
chão.
Com um grito furioso, o bruxo se desvencilhou de Xar e dos gatos-da-
neve, contorcendo-se violentamente, e se virou para atacar o garoto humano
insignificante e irritante que tinha enfiado a espada na pedra e frustrado seu
último ataque.
Ele sorriu, e, ah!, pelo visco e por todas as coisas doces, suculentas e
venenosas, o sorriso de uma bruxa é uma coisa terrível. Ele abriu as
mandíbulas para engolir Xar de uma bocada só.
O bafo quente do bruxo tinha um cheiro tão repugnante de ovos podres e
morte que Xar quase desmaiou.

Pelo menos terei uma morte gloriosa, pensou Xar em meio ao pavor, não como
um zero à esquerda. Vou ser a primeira pessoa a ser morta por uma bruxa em centenas
e centenas de anos…
Era típico de Xar pensar em fama e glória mesmo à beira da morte…
O bruxo atacou. Dessa vez, não ia errar.
— Não! — gritou Magriço.
Ele viu Desejo, do outro lado da sala, tirar as mãos do rosto.
Ela ergueu a cabeça e também gritou:
— NÃO!!
O Rei Bruxo tinha arrancado seu tapa-olho, que estava caído no chão.
O olho que normalmente ficava coberto estava fechado e com um corte
profundo. Era ligeiramente maior que o olho direito, e em volta havia um
hematoma bem roxo, como se a pobre pele humana considerasse a força
abrasadora dele difícil de suportar.
Quando gritou, Desejo abriu apenas uma minúscula, ínfima fresta da
pálpebra, e a cor daquele seu olho era bem incomum. Era uma cor que
ninguém nunca tinha visto, uma cor até então inimaginada. Só consigo
descrevê-la comparando-a a outras coisas. Era uma cor ao mesmo tempo
quente e fria, uma cor que lembrava vulcões, tempestades, eletricidade,
PODER.
Desejo sentia o poder dentro de si, e era verdadeiramente aterrorizante:
raiva e desordem, uma tempestade em sua cabeça, tão violenta que fez seu
crânio doer como se ali dentro houvesse trasgos martelando-o. Todos os seus
fios de cabelo se eriçaram.
Um vento nauseante e desorientador soprou na sala, fazendo os elfos, as
penas e a poeira rolarem no ar, e o chão se inclinou e estremeceu como se
fosse um mar agitado.
Nas profundezas daquele olho extraordinário se formaram nuvens — era o
começo, a construção de ideias. Ouviu-se um minúsculo estalido, e…
… a Magia jorrou do olho de Desejo com tanta violência que dava para
ver sua cor impossível avançando, na forma de uma estrela retorcida, atingindo
o bruxo no exato momento em que ele esticou o dedo com garra para lançar
um raio penetrante de Magia translúcida em Desejo.
E então…
BUM!!!!!
O Rei Bruxo explodiu, virando uma massa de carvão e penas negras.
Magriço, Xar e os gatos-da-neve foram atirados longe.
O pó e as penas do bruxo jorravam como chuva negra.
As paredes e o chão pararam de tremer loucamente e voltaram a ficar imóveis.
Foi tudo tão de repente que algumas pedras grandes caíram do vão da porta.
— Minha nossa… Não acredito… Eu consegui! — exclamou Xar, surpreso
e alegre, apoiando-se em um dos cotovelos, tossindo e cuspindo, cambaleando
até ficar de pé em meio às nuvens de pó, tentando pegar as penas flutuantes da
bruxa. — Eu matei o Rei Bruxo! Acorde, guarda-costas assistente, acorde!
Xar cutucou com o pé o corpo inclinado de Magriço, pois, com o
choque, ele havia desmaiado mais uma vez.
— EU MATEI O BRUXO! EU CONSEGUI!
— O bruxo essstá morto! O bruxo essstá morto! O bruxo essstá morto! —
cantarolavam os elfos, dando piruetas de alegria no ar.
Atordoado, Magriço despertou, esfregando a cabeça.
— O que aconteceu?
— Ele EXPLODIU! — explicou Xar, animado, porque adorava uma
explosão. — Ele realmente EXPLODIU! Foi magnífico! A explosão mais
barulhenta que já ouvi! Não acredito que você perdeu!
Xar gritava de alegria enquanto estendia a mão para ajudar Magriço a se
levantar.
— Explodiu? — perguntou Magriço, um pouco confuso, pegando uma
das penas que ainda caíam.
— Veja! — disse Xar, apontando para todas aquelas penas ao redor. — Isso
foi tudo que restou do bruxo… A Magia de Desejo o explodiu… mas foi o
MEU golpe brilhante com a espada que o deixou fraco e permitiu que a
explosão funcionasse.
Ele deu um soco de vitória no ar.
— EU SOU O GAROTO PREDESTINADO, SINTA MEU
PODER!!!
— Ah, minha nossa, nós conseguimos! — gritou Magriço quando se deu
conta da grandeza do que tinham realizado. — Matamos o Rei Bruxo!
Feiticeiros e guerreiros unindo forças!
Xar e Magriço se abraçaram enquanto os gatos-da-neve davam saltos de
alegria pelo chão coberto de destroços, uivando de felicidade.
— É, tenho que admitir, Desejo, você ajudou um pouco com aquela coisa
esquisita que fez com o olho. O que foi AQUILO?
Xar se virou para Desejo…
… mas ela não estava lá.
Só então se deram conta de como a sala estava quieta.
As paredes não tremiam e o chão revirado estava completamente imóvel.
E não eram somente penas que caíam flutuando silenciosamente por toda a
câmara até pousarem no chão. Também havia flocos parecidos com flocos de
neve, só que com uma cor muito incomum.
Silêncio, a não ser pela queda suave das penas negras, a neve de cor
incomum e a poeira.

— CADÊ a Desejo? — indagou Magriço, observando a sala e a abertura


da porta que fora arrancada na explosão. — Vocês viram para onde ela foi?
— Veja! A porta se soltou das dobradiças! — disse Xar. — Talvez ela
tenha saído para buscar ajuda…
Então ele reparou na colher, completamente imóvel no centro da sala.
Xar se ajoelhou e a pegou.
Estava rígida e fria, agora que o encantamento a havia deixado.
Uma colher de ferro absolutamente comum.
Com cuidado, Xar a deixou no chão.
O silêncio tomou a câmara de remoção de Magia.
Calíbano voou até o ombro de Xar, batendo as asas de maneira lenta e
relutante, e se empoleirou lá, arrasado.
— Eu sinto muito, Xar… — disse o corvo. — Acho que, na confusão,
você não notou uma segunda explosão quase ao mesmo tempo que a primeira.
Desejo foi pega de surpresa… ela estava em choque e baixou a guarda… o Rei
Bruxo lançou um raio final de Magia que a atingiu em cheio…
— Ela explodiu junto com o Rei Bruxo? — perguntou Xar, incrédulo,
pois não tinha visto com os próprios olhos.
Impossível.
Inconcebível.
Volte, Desejo!, pensou Xar, com força… VOLTE!
— EU DESEJO! EU DESEJO! EU DESEJO QUE VOCÊ VOLTE!
Mas ele não era capaz de devolver a vida àqueles fragmentos, por mais que
quisesse.
— RESPIRE! VIVA DE NOVO! MEXA-SE!
Mas a poeira de cor estranha que um dia fora Desejo permaneceu fria e
inerte, e nenhum dos desejos de Xar era capaz de fazê-la se mexer. Nem
mesmo o maior feiticeiro do mundo poderia fazer algo assim.
As ações têm consequências, e é preciso pagar o preço por nossos erros.
Algumas coisas que acontecem não podem ser desfeitas.
O garoto feiticeiro chorou.
Ele e Magriço se ajoelharam e choraram juntos, de cabeça baixa, enquanto
as penas e a poeira de cor estranha jaziam em um círculo silencioso e imóvel
ao redor dos dois.

Até os elfos choraram, e olha que elfos não choram.


É uma de suas características. Eles nunca choram.
Mas suas lágrimas caíram sobre as penas e a poeira.
Então…
Então…
Então, em meio às lágrimas, Xar pensou ter visto a pontinha da colher se
mexer.
Ele piscou.
Talvez fosse uma ilusão.
Mas não: lá estava de novo, um movimento inegável no contorno da
colher.
— O que está acontecendo? — sussurrou Magriço, com os olhos
esbugalhados.
— O que esssstá acontecendo… — sussurraram os elfos, agarrando suas
varinhas com força.
Os cabelos de todos se eriçaram com a energia que brotava. A Magia fez a
sala crepitar mais uma vez.

Os pequenos flocos de cores incomuns que eram Desejo se ergueram do


chão, uma grande nuvem de fragmentos cantando como pássaros,
embaralhando-se e arrumando-se como se tivessem memória do lugar exato
em que deveriam ficar no quebra-cabeça infinitamente complicado que é o
corpo humano.
Não se chocavam, aqueles milhões e milhões de floquinhos, voando em
um turbilhão rodopiante de movimento, até pousarem aos poucos, no chão,
formando o nariz, os olhos, as orelhas, a boca, as pernas de Desejo, como se
estivessem esculpindo o nada, construindo a própria VIDA diante dos olhos de
Xar e Magriço.
Por um segundo, a escultura perfeita ficou imóvel, morta — perfeita, mas
inerte, apenas o contorno do que um dia fora Desejo.
Mas, acima da cabeça de Xar e Magriço, os últimos fragmentos se
juntavam na forma de um coração humano, suspenso no ar.
— Veja! — disse Tempestade-de-Desavenças, indicando um ponto acima
deles.
Xar prendeu a respiração.
É impossível…, pensou. Não posso estar vendo isso… um coração que voa!
O pequeno coração marrom desceu bastante rápido e mergulhou
suavemente no peito de Desejo, que jazia no chão…
E Desejo se sentou na mesma hora, como um fantoche, e inspirou fundo,
arfou, como se estivesse sorvendo a própria vida, e foi da morte à vida em um
momento trêmulo, crepitante e nojento de saliva e muco.
— O que… o que aconteceu?
— ELA ESTÁ VIVA!!!
— ELA ESTÁ VIVA! ELA ESTÁ VIVA! ELA ESTÁ VIVA!
Eles dançaram por toda a sala com ainda mais júbilo, a Colher Encantada
fazendo piruetas incríveis.
— Ah, minhas penas, meu bico e minha cauda… — sussurrou Calíbano.
— Obrigado! Por um terrível momento pensei que tudo ia dar horrivelmente
errado e que o destino e o universo tinham nos presenteado com o pior dia de
todos… mas Desejo está viva!
Cambaleando, a menina ficou de pé em meio às nuvens de poeira.
— Eu estou bem — disse a princesa, trêmula. — Estou bem…
Com o cabelo espetado em todas as direções, em um grande rufo de
eletricidade, ela parecia um ouriço-do-mar pirata.
— Rápido! Coloque seu tapa-olho! — disse Magriço, pegando-o do chão
e entregando-o apressadamente a Desejo, pois seu Olho Mágico estava
fazendo as paredes tremerem de novo.
Assim que Desejo recolocou o tapa-olho, o chão parou de tremer e as
paredes se aquietaram.
— O que… aconteceu…? — perguntou ela, com dificuldade para manter
o equilíbrio.
— Foi incrível! — gritou Xar.
Inacreditável.
Impossível.
Inconcebível.
— O que acabamos de testemunhar — disse Calíbano, com um tom
imponente — foi uma das coisas mais extraordinárias de todo o universo: um
Grande Encantador se regenerando.
— Do que você está falando? — perguntou Desejo.
— Você está viva! — gritou Magriço. — Você morreu, mas é uma
Grande Encantadora, então tem mais de uma vida…
— Isso é a coisa mais ridícula que já ouvi — disse Desejo. — Eu não
MORRI… Só apaguei por um momento.
— Você estava EM PEDAÇOS! — retrucou Xar, alegremente. —
Minúsculos pedaços espalhados por toda a sala… e aí você se recompôs! Foi a
coisa mais incrível que eu já vi!
— Bobagem — disse Desejo, agora um pouco mais incerta, porque,
depois de tudo que tinha acontecido, estava se sentindo um pouco
desconjuntada, como ficaria alguém que tivesse acabado de se desfazer e se
reconstituir com certa rapidez. — Isso é impossível… O que estão dizendo?
Isso quer dizer que eu posso morrer e voltar à vida?
— Sim, mas tem um porém — disse Calíbano. — Mesmo os Grandes
Encantadores são feitos de carne e osso, e isso se desgasta depois de um tempo.
Então você precisa ser cuidadosa com suas vidas, Desejo, porque não sabe
quantas vai ter.
— Tudo bem… — disse ela, achando tudo aquilo um pouco difícil de
digerir. — E meu olho?
— Deve ser um Olho Mágico — explicou Calíbano. — Extremamente
raro. Muito poderoso. Antes de você, só vi isso duas vezes em todas as minhas
vidas. E nunca dessa cor. Essa deve ser a cor da Magia-que-atua-sobre-ferro.
— Espere um segundo — disse Xar, irritado. — A pessoa que tem Magia-
que-atua-sobre-ferro é o garoto predestinado, e Desejo não pode ser o garoto
predestinado! A começar por ela ser garota!
— Ninguém disse que a pessoa predestinada tem que ser um garoto, Xar
— retrucou Calíbano. — Não estamos na Idade das Trevas, sabia?
(Bem, na verdade eles estavam, mas ninguém nunca acha que está na Idade
das Trevas.)
— Eu não entendo — insistiu Desejo. — Já tirei meu tapa-olho milhões
de vezes e, acreditem, jamais aconteceu nada parecido com isso.
— Sim, bem, você fez treze anos, então sua Magia deve ter acabado de se
manifestar — disse Calíbano.
— Então eu não apenas sou mágica — disse Desejo, muito, muito
contrariada —, mas tenho um tipo bizarro de Magia, e é minha culpa que essas
bruxas estejam despertando?
— Bem, não é exatamente sua culpa — explicou Calíbano. — Mas se as
bruxas conseguirem colocar as mãos na Magia-que-atua-sobre-ferro, podem
ter esperança de se reerguer. Elas sabem, depois de séculos de guerra sangrenta,
que, sem esse poder, não são capazes de derrotar os guerreiros. Isso era tudo
que elas estavam esperando, todos esses anos.
DROOOOOOGAAAAAA.
Aquilo era ruim, muito ruim.
Não é muito agradável pensar que as criaturas mais terríveis das terras estão
atrás de VOCÊ.
Desejo estava em um tremendo conflito por causa de tudo aquilo.
Por um lado, era obviamente um desastre para uma guerreira descobrir
que tem Magia.
Por outro…
No passado, ela sempre tinha sido Desejo, uma palavra que, quando
pronunciada, era acompanhada de um suspiro de decepção; a sétima e bastante
comum filha de Sicórax, um pouco desastrada e caolha, que estava sempre
tentando ser uma guerreira como suas irmãs, mas sempre fracassava. Agora
tinha descoberto que era DESEJO, um tipo de palavra bem diferente, uma
palavra que era outro nome para a própria Magia, e essa nova DESEJO era um
indivíduo consideravelmente especial, que podia parecer comum por fora, mas
que por dentro tinha um segredo glorioso (apesar de muito perigoso).
— Podemos pensar nessas coisas mais tarde. Por enquanto, deu tudo certo!
— disse Xar, satisfeito. — Salvamos Sedento! Desejo está viva! Matamos o Rei
Bruxo! Eu destruí aquela pedra horrível e resolvi todos os problemas! Um final
feliz! Eu sabia que ia dar tudo certo no final. — Ele se virou para Calíbano,
triunfante. — Está vendo? Não foi tão difícil.
— Ah, Xar… — disse Calíbano, balançando a cabeça. — Você vai acabar
me matando um dia desses. Essas suas aventuras fazem muito, muito mal para
meu coração.
Magriço olhava perplexo para todos eles. Nos últimos cinco minutos, tinha
oscilado tão violentamente, do pavor ao desespero ou à alegria retumbante,
que se sentia como se um Grande Ogro Cinza o estivesse sacudindo dentro de
um balde.
— Quer dizer — sussurrou ele, admirado — que você passa por incidentes
como esse regularmente?
— O tempo todo. — Calíbano suspirou. — Mas esse foi pior que o
normal, tenho que admitir…
Magriço olhou para a sala devastada.
A preciosa câmara de remoção de Magia estava arruinada: o chão era um
monte de destroços, a pedra tinha explodido, a porta fora arrancada das
dobradiças, os arranhões das garras do bruxo marcavam a moldura da porta.
Uma ameaça antiga — as bruxas, mortas havia séculos — tinha despertado
e voltado para o mundo…
— O que você quis dizer com “deu tudo certo”? — perguntou Magriço.
— Eu não diria que está “tudo certo” aqui! Está um desastre! Um desastre
completo! As bruxas estão à solta, e é tudo nossa culpa! Eu nunca devia ter
deixado a princesa sair da fortaleza… Devia ter contado aos adultos…
Desejo deu tapinhas no ombro dele.
— Calma, Magriço. Você está sendo muito duro consigo mesmo. Não foi
tudo nossa culpa. As bruxas já estavam à solta… Sempre estiveram, nós só não
víamos. Temos que olhar as coisas pelo lado positivo. E perceber quanto
aprendemos com essa aventura! Guerreiros e feiticeiros lutaram contra o Rei
Bruxo lado a lado e o derrotaram! Isso só pode ser um bom sinal para o futuro.
Eles deixaram a espada na pedra, pois ela não se moveu, nem mesmo
quando Desejo a puxou. O destino parecia acreditar que nenhum deles estava
pronto para empunhar aquela arma.
— Eu não entendo — disse Xar. — Precisamos daquela espada mais do
que nunca, agora que as bruxas voltaram.
— Mas a espada está um pouco… rebelde, não? — concluiu Calíbano. —
E nós não entendemos os segredos dela ainda. Então talvez esse seja o lugar
certo para ela, por enquanto.
Calíbano devia estar certo, pois nenhum deles saberia onde guardar em
segurança e aprisionar uma Espada Encantada que parecia ter vontade própria,
que queria matar bruxas, que podia abrir fechaduras e atravessar chãos e tetos e
que nem mesmo a rainha Sicórax, uma especialista em prisões, conseguira
encontrar um jeito de conter… Então, a pedra provavelmente era o lugar mais
seguro para a espada naquele momento.
Eles deixaram um bilhete para Sicórax ao lado da espada na pedra. A
própria Desejo o escreveu, então a ortografia era um pouco errática.
Não foi difícil encontrar os seres-outrora-mágicos que Sicórax havia
aprisionado. Bastava seguir os sons. Assim que eles entraram nos calabouços, a
música cessou e os prisioneiros olharam para eles, incapazes de acreditar que
estavam ali.
Esmagador ergueu a cabeça desgrenhada.
— Xar! — rugiu ele. — Você veio me salvar! Eu sabia!
— É claro que vim! — disse Xar, esquecendo, convenientemente, que se
Desejo não tivesse dito nada, ele nem teria notado que Esmagador havia
desaparecido. — Porque é isso que um líder faz!
Bastou olhar para o rosto bondoso e inocente do gigante se enrugando de
alegria quando Xar abraçou seu tornozelo, e tudo valeu a pena para Desejo.
Aprisionar os seres-outrora-mágicos era errado, ela sabia.
Sua mãe estava enganada.
A rainha não era perversa como Xar dissera, claro que não, mas estava
enganada mesmo assim.
— Vamos dar o fora daqui! — berrou Xar, erguendo os braços.
Para sua surpresa, os seres-outrora-mágicos não estavam tão entusiasmados
para sair dali quanto ele imaginava. Eles ficaram parados, até o mais barulhento
dos duendes bastante silencioso e deprimido, como se o ar tivesse escapado de
um balão, e os pobres elfos que tinham perdido a capacidade de voar ficaram
tão mortificados que fugiram, escondendo-se feito ratos no chão.
— Eles estão com vergonha, Xar — explicou Calíbano. — Afinal, o que é
um gigante sem seu tamanho? O que é um elfo sem suas asas?
Aqueles pobres seres eram como guerreiros voltando de uma batalha,
terrivelmente feridos, e não sabiam mais como se encaixariam no mundo da
Magia.
Mas Xar os persuadiu.
Ele subiu em uma pedra no centro dos calabouços e discursou:
— Não tenha vergonha, pessoal! Eu sou Xar, o garoto predestinado, e até
agora, devido a um estranho lapso divino que não compreendo, nem eu tenho
Magia ainda! Vim resgatar vocês e vou levá-los de volta para meu pai,
Encanzo, o maior encantador que já existiu, e tenho certeza de que ele vai
conseguir restaurar a Magia de vocês.
— Acho que você não devia prometer isso, Xar — alertou Calíbano. —
Não sei se isso é possível…
Mas a promessa deu esperança àqueles seres. A ideia de sua Magia sendo
devolvida trouxe um brilho até mesmo para o mais apagado e abatido bicho-
papão ou olho-de-fogo-fátuo.
Esmagador pegou os pequenos elfos que não podiam mais voar e,
gentilmente, ofereceu-lhes uma carona em seus bolsos, ou eles se acomodaram
como pequenas lêndeas em seu cabelo. O grupo cada vez maior galopou,
saltou e correu pelos corredores, de volta para a câmara de remoção de Magia
— porque era de lá que podiam retomar o caminho para a saída secreta.
Na câmara de remoção de Magia, o grupo parou.
— É aqui que nos despedimos — disse Magriço.
— Venha conosco, Desejo — sugeriu Xar. — Venha para nosso
acampamento, você pode usar sua Magia lá…
Xar e Desejo tinham se conhecido por acaso, numa encruzilhada na
floresta, apenas vinte e quatro horas antes. Ali, nas profundezas da prisão
subterrânea, havia outra encruzilhada, e Desejo tinha que decidir qual
caminho tomar.
De um lado, a trilha luminosa de pó élfico a levava de volta pelo labirinto
dos calabouços até a fortaleza de Sicórax.
Do outro, um longo corredor escuro levava na direção da saída secreta e
da floresta, e era para lá que Xar e as criaturas mágicas estavam indo.
Era extremamente tentador tomar o segundo caminho, pois parecia o
caminho da animação, da aventura, da Magia e dos gatos-da-neve.
Mas…
— Não posso deixar minha casa para trás — disse Desejo. — Tenho só
treze anos. Aqui é meu lar… e minha mãe não é tão ruim quanto você acha.
— Sua mãe é uma pessoa muito perigosa! — disse Xar.
Por mais que Magriço quisesse que Desejo voltasse para a fortaleza com
ele, com toda a sinceridade, tinha que concordar com Xar.
— Lembre-se das cabeças naquela câmara, das pilhas de Livros das Palavras
Mágicas nas celas… A rainha Sicórax está tentando se tornar uma feiticeira,
Desejo.
— Pelo visco murmurante, você acha mesmo isso?! — exclamou Desejo.
— Mas como ela seria capaz, se está sempre falando que Magia é ruim e que
precisamos combatê-la?
Sim, Sicórax tinha muitos segredos, e Desejo havia descoberto muito mais
do que gostaria a respeito da mãe.
— Mas ela está tentando fazer a coisa certa, eu sei que está, e minha mãe
merece uma segunda chance — afirmou Desejo, teimosa. — Todos merecemos
uma segunda chance, não é?
— Desejo está certa, ela deve ficar aqui — disse Calíbano, pensando não
tanto em dar uma segunda chance a Sicórax, mas nas muitas pessoas ruins,
feiticeiros e coisa pior, que poderiam querer colocar as mãos na Magia-que-
atua-sobre-ferro. — A Magia de Desejo é tão poderosa que, pelo menos por
enquanto, é melhor para ela contar com a proteção da fortaleza dos guerreiros.
Na verdade, agora que estou pensando melhor no assunto, os guerreiros
devem ficar com o Livro das Palavras Mágicas de Xar, apenas por precaução.
— Ah, é muita generosidade de sua parte, Calíbano — falou Desejo. —
Mas não vou precisar dele. — Ela sentiu um arrepio. — Não pretendo fazer
mais nenhuma Magia. Pelo menos não até convencer todo mundo na tribo
dos guerreiros de que a Magia não é tão ruim quanto eles pensam.
— Não mesmo… — concordou Magriço, embora estivesse louco para ver
novamente as figuras, histórias, receitas, feitiços e todo o maravilhoso mundo
da Magia que havia naquele livro. — Não, Desejo não deve ter coisas
mágicas… Vejam só toda a confusão em que aquela colher infernal e a Espada
Encantada nos meteram! Desejo é uma princesa guerreira e por isso precisa
abrir mão de toda a Magia…
Calíbano olhou para ele com afeição.
— Ah… A Magia pode ser camuflada… a Magia pode ser ocultada, mas
abrir mão da Magia… é realmente muito difícil. Veja só o que aconteceu bem
aqui, nesta fortaleza! Entretanto, o tipo de Magia que Desejo tem é tão perigosa
e especial que provavelmente é melhor escondê-la. Ninguém pode descobrir,
senão Desejo vai correr um perigo terrível. Há muitas vantagens na vida
tranquila e comum de uma princesa guerreira. Ela tem muita sorte de ter você,
Magriço, como seu anjo da guarda.
O menino corou.
— Não sei do que você está falando. O que é um anjo? É tipo um elfo?

— Mais ou menos — respondeu Calíbano. — Lembrem-se, não posso ser


mais incisivo: ninguém pode descobrir que Desejo tem Magia. É por isso que vocês
precisam do livro. Há muitos e muitos capítulos úteis sobre como camuflar e
esconder a Magia das pessoas… e se, por algum azar, pessoas perigosas
começarem a vir atrás de você, pessoas com corações perversos, feitiços
violentos e Magia poderosa, bem, então este livro poderá salvar sua vida.
Desejo aceitou o livro. Estava em condições terríveis, queimado e
manchado, com páginas caindo como confete.
— Pode escrever nele também — disse Calíbano. — Escrever sua própria
história. Isso sempre ajuda quando estamos tentando guardar um segredo.
Pegue uma pena nas minhas costas, tem uma que está prestes a cair, e leve-a
com você o tempo todo.
Desejo pegou a pena que estava caindo das costas de Calíbano e a colocou
com cuidado dentro do Livro das Palavras Mágicas, que guardou em um bolso
da capa.
— Adeus, Sedento — despediu-se Desejo, enquanto o elfo voava
contrariado diante dela. — Espero que fique bem logo… e que voe tão bem
quanto antes…
— Não sei por que você não quer voltar para o acampamento dos feiticeiros conossssco… Mas
não me importo… — grunhiu Sedento, irritado, embaraçando os cabelos dela,
apertando seu nariz e lhe dando pequenas mordidas que eram como
minúsculas picadas de urtiga. — Seu rosto parece o de um javali africano… e você fede mais
que cocô de vaca…
— Ah, você está me xingando, Sedento, isso é maravilhoso! Deve estar se
sentindo melhor! — disse Desejo, satisfeita.
Sedento olhou nos olhos dela com tristeza.
— Mas por que você vai ficar? Venha com a gente… Não me deixe TRISTE…
— Sinto muito, Sedento…
— Tudo bem — sibilou Ariel, os olhos faiscando de sarcasmo. — Vamos
sentir sua falta, mas vamos superar, não vamos, Mistura-de-Pensamentos? Eles
podem ficar aqui PARA SEMPRE nessa enorme fortaleza de tédio.

Ariel abanou os braços espinhosos e cuspiu algumas palavras que soaram


como XPCTELRBURTIBUT e CCRVMLBCXTT. Não pareciam nem um pouco
amigáveis.
— Adeus, Xar — disse Desejo.
— Adeus — respondeu Xar, assoviando, com as mãos no bolso, pois não
queria que ninguém achasse que estava triste.
Então os grupos se separaram.
Xar e suas criaturas mágicas correram e voaram pelo caminho, os elfos
formando lindas cobrinhas de luz que formavam no ar palavras como “adeus”,
“não voltem mais”, “cuidado” e “até que enfim”. Desejo e Magriço
observaram enquanto eles desapareciam na escuridão, cantando canções que,
depois de um tempo, a distância já não permitia mais ouvir.
Então, tristes, Desejo e Magriço foram na outra direção, para a entrada dos
calabouços, onde o guarda ainda dormia, depois voltaram na ponta dos pés
pela fortaleza, tomando o cuidado de evitar as sentinelas noturnas.
Enquanto isso, Xar e seus seres-outrora-mágicos tomaram todas as
segundas viradas à esquerda até chegarem à saída secreta de Sicórax, uma
enorme porta que devia ter sido construída pelas mãos sagazes e rápidas dos
elfos, pois era não apenas enorme, mas inclinada para dentro, acompanhando a
encosta da colina lá fora.
Era inacreditável que pudesse ser secreta, já que um gigante poderia passar
pela porta apenas abaixando um pouco a cabeça.
Quando chegaram lá, foi muito mais fácil sair escondido da fortaleza do
que tinha sido entrar.
Xar imitou a rainha Sicórax, gritando:
— ABRA LOGO! A senha é CONTROLE!
E CRREEEC!
Um guarda lá fora abriu a porta, que era de madeira de um lado e coberta
de grama do outro, e o grupo todo saiu. Xar estava usando a indefectível capa
vermelha da realeza, então o guarda supôs que o que se parecia com a rainha
Sicórax por fora também era a rainha Sicórax por dentro.
O guarda não pareceu surpreso ao ver sua rainha sair da fortaleza na
companhia de um gigante e um bando de seres-outrora-mágicos. Ele se
limitou a fazer um sinal com as mãos para que as sentinelas nas ameias não
atirassem.
— Nada de correr… — sussurrou Xar, pois sentia os gatos-da-neve
inquietos a seu lado. — Não podemos demonstrar medo… senão, vão
suspeitar de nós.
Tudo que as sentinelas viram foi alguém usando a capa vermelha de
Sicórax no meio do grupo, enquanto os passos suaves dos felinos deixavam
pegadas na neve, e Xar e suas criaturas mágicas se afastavam sem fazer barulho
e adentravam a floresta, os elfos se apagando como velas abafadas assim que
chegaram ao céu.
Xar só relaxou quando estavam no meio das árvores. O garoto olhou para
a fortaleza dos guerreiros, que ficara para trás. A porta se fechara, e ninguém
diria que havia uma porta ali.
E as figuras das sentinelas nas ameias, minúsculas como formigas, não
pareciam nem de longe alarmadas.
Era quase como se a rainha Sicórax tivesse o costume de entrar e sair
sorrateiramente pela entrada secreta com toda sorte de seres-outrora-mágicos e
criaturas estranhas sem que os cidadãos da fortaleza soubessem.
Apesar de a Magia estar estritamente proibida, por ordem dela mesma.
Ah, uma mulher interessante, aquela rainha Sicórax.
Mas traiçoeira.
Muuuuito traiçoeira.
Não foram apenas Xar e as criaturas mágicas que escaparam para a escuridão da
floresta.
Assim que Xar, Desejo e Magriço deixaram a câmara de remoção de
Magia, o silêncio tomou conta por um segundo.
Então um estranho vento penetrou na sala, embora fosse impossível que
um vento soprasse naqueles calabouços.
As penas pretas e os fragmentos do Rei Bruxo, espalhados por toda parte,
começaram a ser soprados.
Porque, você sabe, para toda luz há uma escuridão.
O dia só existe com a noite.
Desejo morreu e voltou à vida, não foi? Pois, no fim das contas, ela era
uma Grande Encantadora, e Grandes Encantadores têm mais de uma vida.
Mas havia mais de um Grande Encantador naquela sala.
E se Desejo podia reviver…
O Rei Bruxo também podia.
Lentamente, beeeem lentamente, os milhões e milhões de fragmentos do
Rei Bruxo se ergueram no ar, fazendo um zumbido estranho e suave, e os
minúsculos pedaços individuais começaram a circular a uma enorme
velocidade, como um enxame de abelhas, embaralhando-se e misturando-se,
assim como tinha acontecido com Desejo, como se soubessem onde deveriam
ficar…
E um estranho canto encheu a sala, doce e maligno ao mesmo tempo.
Quantas vezes a vida desse bruxo…?
Quantas vezes terá que ser morto…?
Quantas vidas ainda lhe restam…?
Arriscar tudo…
Arriscar tudo…
Arriscar tudo…
Nem mesmo um Grande Encantador sabe exatamente quantas vidas tem,
então é sempre perigoso arriscar uma delas, pois pode ser a última.
Mas parecia que o Rei Bruxo ainda tinha pelo menos uma vida.
Para o alto, alto, alto, os fragmentos e as penas se elevaram e, conforme se
elevavam, juntavam-se de novo na negra e perigosa forma do Rei Bruxo.
Uma de suas asas estava fraturada e pendia inerte, mas ele estava muito
vivo.
— … sà sezev é osicerp redrep amu alhatab arap recnev a arreug… —
sibilou o Rei Bruxo.
O que quer dizer: “Às vezes é preciso perder uma batalha para vencer a
guerra.”
Ele soltou um guincho ininteligível e ficou invisível de novo, misturando-
se ao ar como fumaça.
E saiu voando pelo vão da porta quebrada.
Estava muito, muito fraco depois da batalha, depois de ficar preso em uma
pedra por séculos e ser ferido pela espada matadora de bruxas. Precisava sair
dali e descansar antes de atacar de novo. Então ele espreitou, como um
morcego invisível, voando por cima da cabeça de todos enquanto Xar e suas
criaturas mágicas dispararam pelos corredores. Quando escaparam pela porta
secreta de Sicórax, o bruxo invisível também escapou.
E o Rei Bruxo voou para o mundo lá fora, voltando a ficar visível quando
alcançou as árvores.
Magriço e Desejo se despediram na porta da casa dela, que ficava no centro da
fortaleza. (Desejo morava numa casa só dela, pois as princesas eram tão
importantes que tinham esse luxo — era um pouco solitário, mas evidenciava
seu status.)
Magriço se sentia melancólico, porque, agora que tudo tinha terminado,
não era mais um herói, apenas um guarda-costas assistente comum. Tinha sido
um dia incomum, vinte e quatro horas gloriosas, durante as quais ele pudera
cavalgar e lutar ao lado de uma princesa, como se fossem iguais, como se ele
fosse um verdadeiro guerreiro.
— Agora podemos voltar a nossa vida normal, princesa — disse Magriço,
tentando soar mais animado do que se sentia. — Me dê a colher, vou levá-la
para a cozinha, onde ela poderá ser uma colher de sopa comum… Está na hora
de abrir mão dos objetos mágicos, como me prometeu…
— Si-si-sim — disse Desejo, pensativa. — Mas eu ainda estou com o Livro
das Palavras Mágicas, lembra? Posso abrir mão da colher amanhã…
— Tudo bem — concordou ele. — Promete que vai fazer isso amanhã?
— Prometo.
— Boa noite, Desejo. Boa noite, colher.
— Boa noite — respondeu Desejo, apertando timidamente a mão de
Magriço.
— Hum, princesa... — disse Magriço, porque algo o vinha incomodando.
— Aquela coisa do desmaio que aconteceu algumas vezes esta noite… Você
não acha que vai ser um problema na minha carreira de guarda-costas, acha?
— Você se interessa por alguma outra profissão? — perguntou Desejo,
com cautela.
— Bem, sim, para falar a verdade, eu sempre quis ser um bardo, sou muito
bom em contar histórias e… Mas não é essa a questão! A questão é que todos na
minha família são guarda-costas, então é meu destino. Mas será que vou ser
um bom guarda-costas com esse detalhe dos desmaios?
— Tenho certeza de que você vai superar isso — disse Desejo. —
Amanhã, talvez… mas, enquanto isso, veja como você foi um guarda-costas
incrível hoje! Você é um grande herói e um bom amigo.
— Não sou um herói, sou um guarda-costas assistente — disse Magriço,
muito aliviado —, e é para isso que serve um guarda-costas assistente: para
guardar a princesa.
Mas ele não negou que era amigo de Desejo.
E então os dois foram para suas camas.
A princesa, para sua cama real, de penas de ganso.
O guarda-costas assistente, para sua cama de palha, embaixo da mesa da
cozinha.
Os dois dormiram pesado, pois tinha sido uma noite cansativa,
considerando tudo que acontecera.
Mas as coisas não poderiam voltar a ser como antes, é claro.
Depois que um guarda-costas assistente vive uma aventura como aquela, a
vida dele muda para sempre.
Assim como a Colher Encantada, ele tinha sido queimado pelo fogo de
uma bruxa e chamuscado pelo hálito dos elfos. Tinha aberto os olhos no
acampamento dos feiticeiros, tinha dado ouvidos ao discurso de corvos, e eles
tinham feito com que visse as coisas de seu ponto de vista.
Posso já ter dito isto, mas…
Talvez seja esse o problema com as aventuras, o motivo pelo qual o pai de
Magriço era tão, tão contrário a elas.
Enquanto isso, Sicórax teve uma longa noite, sozinha na escuridão, com
tempo de sobra para pensar.
Talvez ela tenha até aprendido uma ou duas lições.Quem sabe?
É para isso, afinal, que serve um calabouço.
E, quando o guarda por fim acordou e destrancou a porta da cela na qual
ela estava presa, a rainha Sicórax saiu correndo e foi direto para a câmara de
remoção de Magia, pois ouvira a comoção na noite anterior e tinha imaginado
todo tipo de coisas terríveis.
Viu a pedra, a espada, leu o bilhete, e aquela rainha gélida ficou ainda mais
fria.
A rainha Sicórax não era boba. O bilhete era assinado por Xar, mas a
caligrafia — a ortografia — era obviamente de Desejo.
Ela correu (sem nem ao menos disfarçar dessa vez) para a plataforma, até a
superfície, pelas ruas da fortaleza, diante dos olhares dos cidadãos, seus belos
cabelos dourados o mais absoluto ninho de choque de horror elétrico que
levaria uma semana para desfazer os nós (e ela teve sorte por poder penteá-lo:
às vezes, os elfos embaraçam o cabelo de tal forma que a única solução é raspar
tudo).
Ela correu direto para a casa de Desejo. A rainha Sicórax não ia até lá com
muita frequência, pois rainhas são muito ocupadas e nem sempre têm tempo
de visitar os filhos, como as pessoas normais.
Ao entrar no quarto de Desejo, Sicórax encontrou a filha dormindo
pesado, roncando na cama, e soltou um suspiro de alívio.
O alívio logo se transformou em raiva, como tantas vezes acontece.
Ela sacudiu de leve a filha para acordá-la.
Desejo abriu um olho sonolento e despertou, elétrica e instantaneamente,
quando viu a mãe de pé diante dela como um iceberg furioso.
Ah, céus.
— Bom dia, mãe — disse Desejo, hesitante, engolindo em seco.
— O menino feiticeiro fugiu — anunciou a rainha Sicórax, com uma fúria
gélida, notando os arranhões no rosto da filha e os cabelos desgrenhados, que,
como os dela próprios, ainda estavam emaranhados em uma confusão de
mechas por causa dos elfos, que o tinham usado como ninho. — Escapou com
todas as outras criaturas mágicas. Caos! Desordem! Anarquia! A Pedra Que
Remove Magia está destruída! E eu perdi a espada! — vociferou Sicórax. —
Está presa na pedra, no momento em que mais precisamos dela, pois as bruxas
voltaram para a floresta. É um completo desastre. Alguém deve ter roubado a
minha chave… Alguém deve ter ajudado aquele feiticeiro infernal a escapar…
Alguém deve ter dado a espada a ele… e a pessoa que fez isso é uma
TRAIDORA da própria família e de toda a tribo dos guerreiros…
Desejo evitou o olhar irado da mãe e olhou pensativa para um ponto
distante.
— Acabei de ter um sonho muito estranho — disse a princesa. — Sonhei
que tinha um Rei Bruxo preso na Pedra Que Remove Magia.
Sicórax olhou perplexa para a filha.
Sua raiva evaporou e se transformou em um nervosismo inquieto.
— Um Rei Bruxo preso na pedra?! — exclamou a rainha. — Que bobagem
é essa? É impossível… certamente isso é impossível…
Mas…
Se as bruxas não estavam extintas, isso queria dizer que as lendas sobre o
Rei Bruxo também podiam ser verdadeiras. Em todos os contos de fadas
antigos, o Rei Bruxo era o líder das bruxas, o cérebro que controlava todas
elas.
— No meu sonho, o Rei Bruxo tinha ficado preso dentro da pedra por
muitos e muitos anos. Quem sabe? Talvez alguém o tenha aprisionado lá
muito tempo atrás, para tornar o mundo um lugar mais seguro — sugeriu
Desejo. — Os contos de fadas sobre a pedra sempre dizem para não a
tocarmos, não é? Mas não sabemos POR QUE não devemos tocá-la. Por
séculos e séculos, aquele Rei Bruxo deve ter atraído seres até a pedra, para
roubar sua Magia e se libertar. E deve ter atraído você também, mãe, eu, Xar,
todos nós. No meu sonho, o Rei Bruxo escapou…
— Nãããããoooo… — sussurrou Sicórax, com olhos ferozes e brilhantes.
Mas ela estava pensando muito.
Desejo sentia a mãe fraquejando, então continuou, falando cuidadosa e
inocentemente, encarando a parede com um ar sonhador.
— Outra coisa estranha no meu sonho — continuou Desejo — foi que
nos calabouços havia uma sala cheia de cabeças. Mas não eram apenas cabeças
velhas quaisquer. Eram cabeças que eu reconheci, de pessoas que vieram à
corte e falaram em sua defesa, mãe, ou disseram coisas boas sobre a senhora
quando estava fora… Não sei se íamos querer que os cidadãos da fortaleza dos
guerreiros ficassem sabendo sobre essas cabeças.
— Sonhos são coisas estranhas — disse Sicórax, olhando para Desejo
muito, muito atentamente.
Mãe e filha olharam uma para a outra; seus rostos eram máscaras idênticas.
Por trás das máscaras, elas estavam pensando: O que você sabe?
Pela primeira vez, elas estavam surpreendentemente parecidas: o cabelo em
ridículas cascatas verticais, os rostos cuidadosamente arranjados para não revelar
nada, os olhos atentos.
— É complicado — disse a rainha Sicórax, por fim.
— Sim, é. — Desejo tocou a mão gelada da mãe. — Deve ser difícil ser
rainha.
— Sim, é. O que aconteceu com o Bruxo Dentro da Pedra? Onde ele está
agora? — perguntou a rainha Sicórax.
— Não o matamos com a espada — respondeu Desejo. — No sonho, é
claro.
— Hummmmmmmm… — disse a rainha Sicórax. — Vocês tiveram
muita sorte.
Ela tocou o rosto da filha, coberto de arranhões.
A rainha Sicórax olhou para Desejo, e por uma fração de segundo sua
máscara caiu e não havia desapontamento em seus olhos, mas respeito, suspeita
e medo.
A rainha Sicórax nunca mais subestimaria a filha.
Seu rosto congelado se derreteu em um vislumbre de sorriso, como o sol
aparecendo por entre as nuvens sobre uma geleira.
— Muito bem, Desejo — disse a rainha Sicórax. — Deve ter sido um
sonho muito assustador, um pesadelo, na verdade, e me parece que você lidou
com tudo de uma maneira muito… guerreira.
Desejo ficou tão aliviada que abriu um grande sorriso para ela.
Minha mãe sorriu para mim!
O sorriso da rainha Sicórax desapareceu, e ela voltou a ser a mesma pessoa
dura e serena de sempre.
Ela ajustou o tapa-olho de Desejo, que tinha saído um pouco do lugar.
— Posso ter cometido um erro no que diz respeito à pedra — admitiu
Sicórax. — Até as rainhas cometem erros às vezes. Então, nessas circunstâncias
muito especiais, estou disposta a fazer vista grossa para o que quer que tenha
acontecido na noite passada.
Então sua voz ficou dura como um diamante.
— Mas, no futuro, você precisa me obedecer. Não quero que tenha
contato com absolutamente nada mágico: nada de feiticeiros, nada de criaturas
mágicas, nem mesmo o menor dos elfos-comichão. Estamos entendidas,
Desejo?
— Sim, mãe.
— E se você vir aquele infeliz e trapaceiro, filho de Encanzo, deve me
contar imediatamente, entendeu?
— Sim, mãe.
Mas posso afirmar que, sob os lençóis, ela estava cruzando os dedos.
— Daqui em diante, Desejo, você precisa se esforçar para ser uma princesa
guerreira normal. Pode começar usando esse tapa-olho o tempo todo, do jeito
certo. — A rainha se levantou e disse com severidade: — Lembre-se de que
somos guerreiras.
Ela ergueu o dedo.
— E uma guerreira deve estar sempre bem-apresentada. Cada fio de cabelo
no lugar. Cada arma afiada. Cada unha brilhando. Lembre-se disso.
E saiu da casa de Desejo. Uma multidão tinha se reunido à porta dela,
observando em um silêncio confuso enquanto Sicórax — o longo vestido
branco rasgado e sujo e os cabelos embaraçados — atravessava o pátio, com
tanta dignidade e seriedade como se estivesse na própria coroação. Guardas
correram até ela para oferecer suas capas, mas, em um gesto de soberba, ela os
dispensou.
Uma rainha até o último fio de cabelo.
Alguém começou a aplaudir, ansioso. Ninguém sabia ao certo a razão, e os
outros guerreiros acompanharam, embora não soubessem para quê estavam
batendo palmas. O que havia acontecido? Quem ousara atacá-la? Pelo amor dos
deuses verdes, o que tinha acontecido com o cabelo dela?

Então a rainha se virou, na entrada de seus aposentos.


A multidão se calou.
Eles se inclinaram para ouvir o que ela ia dizer, esperando que lhes
contasse a história do que realmente tinha acontecido nos calabouços.
— Não quero que ninguém mencione isso, NUNCA mais — disse a
rainha Sicórax, em sua voz tranquila e inalterada.
E eles não mencionaram.
Enquanto isso, Encanzo, o Encantador, estava andando de um lado para outro
no grande salão, tomado pelo medo, pois, embora tivesse mandado diversas
equipes de busca, Xar ainda não tinha sido encontrado.
No dia anterior, quando Encanzo, o Encantador, e seus feiticeiros
entraram no quarto de Xar, o encontraram vazio e com um grande buraco no
chão.
E quando Encanzo se ajoelhou na borda do buraco e viu a bruxa morta e
não encontrou o filho, bem…
— O que foi que eu fiz? — perguntou-se, imaginando, por um momento
terrível, que a bruxa havia matado seu filho, mas logo depois se deu conta,
para seu infinito alívio, de que não; inacreditavelmente, tinha sido o contrário.
Pilhado espiou por cima do ombro do pai e ficou um pouco pálido.
— O que é isso, pai?
— Isso — respondeu Encanzo, sombrio — era uma bruxa.
Pelo visco, pelos húmus de folhas e pelas costeletas ruivas do Grande Ogro
Sombrio.
As bruxas não estavam extintas, afinal!
E a prova estava bem ali, bem no meio do quarto de Xar.
Levou um tempo para que os feiticeiros, aglomerando-se nas ruínas do
quarto destruído, compreendessem tudo aquilo.
— Viu? — disse Empolado, triunfante, pois mesmo quando alguma coisa
realmente terrível acontece, sempre há a satisfação em ter estado certo o
tempo todo. — Eu avisei que aquele garoto ia acabar fazendo algo realmente
terrível! E ele fez! As bruxas não estão extintas, e, depois de séculos de paz,
Xar trouxe uma delas direto para cá, para o acampamento dos feiticeiros!
Era típico que tivesse sido Xar o responsável por encontrar uma bruxa.
— Como Xar a matou? — perguntou o Rei Encantador, com uma
espécie de admiração relutante. — Bruxas são praticamente impossíveis de
matar…
— Bem — admitiu Pilhado, lentamente —, ele de fato trapaceou naquela
Competição de Feitiços, quando levou aquela espada de ferro que disse ter
roubado dos guerreiros…
— Era uma espada de poder? — sussurrou Encanzo.
— Parecia bem velha — respondeu Pilhado. — E acho que ele
mencionou algo sobre ser uma espada mágica matadora de bruxas… mas você
sabe como é Xar, ele mente descaradamente o tempo todo.
— Por que não me contou nada disso? — berrou o rei Encanzo, virando-se
para Pilhado, os trovões de sua fúria crepitando pela devastação do quarto.
Então agora, vinte e quatro horas depois, Encanzo estava andando de um
lado para outro, de um lado para outro, torcendo para que Xar fosse
encontrado.
Pilhado não estava gostando de ver todos desnorteados por causa de Xar.
Até Empolado estava suspirando e dizendo coisas como: “Ele era um bom
garoto, apesar de tudo… Espevitado, é claro, muito levado… mas tinha boas
intenções…”
— Isso é tudo culpa do Xar — disse Pilhado, mal-humorado. — Ele
trouxe a bruxa para cá. Ele mereceu.
Mas o rei Encanzo estava se culpando.
O que o garoto disse para mim pouco antes de eu o mandar para o quarto?, pensou
o rei.
“Você não se importa COMIGO… só quer um filho que TENHA
MAGIA…”
Encanzo queria poder dizer ao filho que aquilo não era verdade.
Mas era tarde demais.
Xar não estava lá.
Encanzo tinha passado a noite em claro, assumindo a forma de um falcão-
peregrino, voando baixo junto à copa das árvores, quilômetro após
quilômetro, procurando o filho. Mas Xar era especialista em encobrir os
próprios rastros, então nem mesmo os olhos vermelhos e brilhantes do falcão,
perscrutando as profundezas da escuridão folhosa, podiam enxergar um sinal
do menino, por mais que procurassem.
Encanzo tinha consultado seus mapas estelares tão intensamente e por
tanto tempo que os raios que saíam de seus olhos perfuraram os papéis, mas
Xar estava escondido em uma fortaleza de ferro, então por mais que o
Encantador procurasse, tampouco havia sinais do menino lá.
Era como se ele tivesse desaparecido da face da Terra.
Então o rei Encanzo começou a pensar no impensável.
Ninguém sabia muito sobre bruxas.
E se, antes de morrer, a bruxa tivesse dado fim ao garoto e desaparecido
com o corpo de Xar de alguma maneira desconhecida?
O Rei Encantador tinha mandado Xar para o quarto no intuito de lhe
ensinar uma lição.
Mas, como parece acontecer com frequência, quem estava aprendendo
uma lição era o próprio Encanzo.
Eu DESEJO não ter gritado com o menino! Eu DESEJO ter ouvido o que ele
tinha a dizer, em vez de ter ameaçado bani-lo! Eu DESEJO que ele não tenha
morrido sem saber que eu o amo!, pensou Encanzo, o Grande Encantador.
Mas nem mesmo um Encantador realmente Grande é capaz de fazer o
tempo voltar.
Ouviu-se um grito na porta.
O Encantador, nervoso, virou-se de imediato.
Era ele! Era Xar!
Lá estava ele, desmontando de Olho-da-Noite, seu gato-da-neve,
parecendo um pouco culpado, sem saber ao certo como seria recebido, mas
ainda tão atrevido, incontrolável e cheio de si como sempre.
Talvez ainda mais.
Os Encantadores todo-poderosos são, no fundo, apenas pais como todos os
outros.
Encanzo, o Grande Encantador, correu até o filho com as pernas trêmulas,
e, com ansiedade e alívio tremendos, pegou Xar nos braços.
— XAR! VOCÊ ESTÁ VIVO! E VOLTOU PARA CASA! — gritou
Encanzo, o Encantador.
— Sim — respondeu Xar, sorrindo de orelha a orelha com a surpresa, pois
estava esperando banimento, na pior das hipóteses, e na melhor, algumas
perguntas constrangedoras, que era o que costumava acontecer quando ele
voltava de uma aventura. — É… desculpe pela bruxa morta, pai… e pelo meu
quarto… e por ter perdido meu Livro das Palavras Mágicas de novo… mas
veja!
Xar fez sinal para que os gigantes, feiticeiros, anões e elfos que tinha
resgatado dos calabouços de Sicórax se aproximassem.
A multidão reunida no acampamento dos feiticeiros ficou sem fôlego ao
reconhecer membros da família, amigos e colegas que eles achavam que nunca
mais veriam de novo.
Todos correram para abraçar seus parentes com gritos de alegria.
— Eu queria dar um jeito nas coisas — disse Xar, orgulhoso. — Tentei
roubar a Magia de uma bruxa e roubei a espada que a trouxe até nós, então
levei a espada de volta para os calabouços de Sicórax e, enquanto estava lá,
descobri que ela estava fazendo nosso povo prisioneiro, então os libertei.
Bem, depois de atos completamente malucos, mas corajosos, eles estariam
todos preparados para perdoar Xar mesmo que ele tivesse levado TROPAS de
bruxas para o acampamento. (Contanto que matasse todas elas, é claro.)
Era raro Encanzo ficar satisfeito com o filho.
Mas lá estava Xar fazendo alguma coisa certa, para variar!
A “coisa certa” mais importante de todas era: tinha voltado para casa
VIVO.
Pela primeira vez, Encanzo, o Encantador, apertou a mão do filho como se
os dois fossem iguais.
Xar nunca se sentira tão feliz na vida.
Ver o pai olhando para ele, Xar, com tanto orgulho, tanto amor, tanta
admiração.
Ver todos no acampamento comemorando e o aplaudindo.
O rei Encanzo se voltou para a multidão.
— Talvez deva haver lugar no mundo dos feiticeiros para aqueles que não
têm Magia! — gritou Encanzo. — Pois vejam! Esses bravos feiticeiros,
gigantes e elfos estão voltando para nós com sua Magia removida. Precisamos
encontrar um lugar para eles em nossa sociedade, não acham?
— Sim! Sim! — gritou a multidão em resposta.
— Eu queria propor três vivas para meu filho Xar! — disse o Encantador.
— Que enfrentou os terrores dos calabouços da rainha Sicórax para trazer esses
velhos amigos de volta para nós, colocando a si mesmo, seus animais e elfos
em grande risco.
— Xar! Xar! Xar! — gritaram os feiticeiros.
— Por que Xar tem que ser TÃO IRRITANTE? — berrou Pilhado,
cerrando os punhos.
— Meu filho voltou para mim, e voltou uma pessoa melhor. Xar
aprendeu uma lição… — O rei Encanzo sorriu. — A lição de que é muito,
muito mais sábio esperar que sua Magia se manifeste do que tentar obtê-la de
uma fonte sombria…
Ele se voltou para o filho.
— E Xar também ME ensinou uma lição. É muito, muito melhor ter um
filho sem Magia do que não ter filho nenhum… Seja bem-vindo de volta,
Xar.
O Encantador abraçou o filho.
E, em seguida, se voltou mais uma vez para a multidão.
— Então, declaro o dia de hoje um dia de agradecimentos e celebração…
Vejamos, como vamos chamá-lo? — disse o rei Encanzo e, se não fosse um
Encantador tão Grande, aquilo poderia ter sido uma piscadela no cinza
sombrio de seu olho. — Vamos chamá-lo de… CELEBRAÇÃO PELO
FATO DE A MAGIA DE XAR NÃO TER SE MANIFESTADO! Que
comecem as festividades!
Bem, os feiticeiros nunca precisaram de um motivo para dar uma festa.
Os corredores ficaram enlouquecidos, com violinos tocando magicamente
por conta própria, com o brilho ziguezagueante de elfos zumbindo por toda
parte, e feiticeiros, gatos-da-neve, gigantes, anões e animais de todos os
tamanhos e formas dançando, cantando e uivando para o céu escuro de
inverno.
— Estamos livres agora, mestre? — perguntou Ariel, voando até o rei
Encanzo, querendo abordá-lo enquanto estava em um raro momento de bom
humor. — Não se esqueça do que prometeu a Calíbano e a mim: nossa
liberdade quando o garoto crescesse e não precisasse mais de nós. Somos seres
mágicos corajosos demais para um menino como Xar…
— Eu não esqueci — respondeu o Encantador, a benevolência
desaparecendo —, mas vamos encarar os fatos: Xar ainda vai precisar de vocês
por um tempo. Não vou libertar você nem Calíbano até que o garoto se torne
um adulto sábio e sensato.
— Isso pode nunca acontecer — retrucou o corvo.
— Nesse caso, vocês nunca vão ganhar a liberdade — avisou Encanzo,
num tom sombrio. — Por falar nisso… Calíbano?
— Hã… Sim, Encantador — disse Calíbano, sobressaltando-se, cheio de
culpa.
— Em algum momento vou querer um relatório completo do que
exatamente aconteceu nas últimas vinte e quatro horas. Agora é hora de
celebrar, porém mais tarde você deve me contar toda a verdade, e nada além
da verdade, Calíbano.
E o rei Encanzo se afastou, com o ruído enervante de trovão de sua capa,
para participar da comemoração.
— Prefiro que você não conte a ele TODA a verdade… — comentou
Xar, com um sorriso.
— Si-i-i-im — disse Calíbano. — Acho que vou deixar de fora o fato de
ser uma espada mágica feita de FERRO. E de Sedento ter sido envenenado. E
de termos libertado o Bruxo de Dentro da Pedra. E de Desejo ser a garota
predestinada… Pensando bem, não há muitas partes da história que eu possa
contar.
— Definitivamente não conte ISSO a ele, então — disse Xar, com um
brilho travesso nos olhos, abrindo a mão.
Lá estava a pálida marca verde-clara do sangue da bruxa desbotada.
Calíbano deu um guincho de absoluto pavor.
— A mancha da bruxa! O que aconteceu? Achei que tivesse se livrado
dela!
— Eu também. — Xar sorriu, voltando a fechar o punho. — Mas devo ter
tirado a mão da pedra rápido demais. E sabe qual é a melhor coisa de tudo
isso?
Agora Xar não conseguia mais conter a animação.
— Acho que está começando a funcionar!
— Mas… mas… mas… Xar! — gaguejou o pobre Calíbano. — Isso é
Magia ruim! De uma fonte sombria! Acabamos de passar por TUDO ISSO e
achei que você tivesse aprendido uma lição e voltado uma pessoa melhor,
como seu pai disse! Qual foi a moral de toda essa aventura?

Mas Xar já tinha saído correndo, para não perder nenhuma das celebrações
pelo Fato de a Magia de Xar Não Ter Se Manifestado.
Enquanto isso, os elfos se juntaram, entusiasmados, às festividades e
estavam zumbindo por toda parte enquanto aprontavam das suas, como:
Tempestade-de-Desavenças se divertia pra valer jogando feitiços na comida das
pessoas, de modo que quando elas pegavam algo delicioso como uma bela fatia de torta
de maçã, ao colocarem a fatia na boca ela havia se tornado algo nojento, como uma
lesma gigante.
Sedento lançava feitiços de fedor (embora tipicamente ele errasse, e em vez de cheiro
de ovo podre, o feitiço cheirasse a deliciosos limões).
E Xar se exibia para todas as garotas mais bonitas, sem se preocupar com
nada…
Enquanto isso, o pobre e velho Calíbano estava sentado no galho de uma
árvore, preocupado, tentando consolar a si mesmo.
— Como o Rei Bruxo foi morto — dizia o pássaro para si mesmo —,
talvez as bruxas voltem a hibernar. Mesmo que despertem em nosso tempo de
vida, talvez não encontrem a garota, porque ela não vai ser tola de se aventurar
fora da fortaleza de ferro mais uma vez, porque talvez seja um daqueles raros
seres humanos que aprendem com seus erros. Talvez…
Então, como é costume entre os que se preocupam, depois de se sentir
melhor em relação a uma preocupação, ele logo em seguida começou a se
preocupar com outra.
— Xar desejou Magia e conseguiu, mas é uma Magia realmente ruim… se
o pai dele descobrir, Xar vai estar mais encrencado que nunca… — refletiu
Calíbano. — E, embora estejam satisfeitos com ele AGORA, não vai demorar
muito para que se lembrem de seu passado de desobediência: ele fez a fama,
então…
O velho corvo inclinou a cabeça para o outro lado, como se considerasse
as alternativas.
— Mas talvez Xar aprenda a controlar essa Magia antes de seu pai descobrir.
Há bondade em Xar, e essa aventura também trouxe isso à tona. A bondade em
Xar vai compensar a maldade em seu sangue… Talvez… Talvez.
— Calíbano! — gritou Xar, lá de baixo. — Pare de ficar aí todo
melancólico e preocupado!
O garoto olhou em volta para se certificar de que ninguém estava olhando.
Então apontou a mão com a marca da bruxa para o galho da árvore.
Xar devia ter tentado fazer Magia umas mil vezes antes, e nunca
funcionara.
Mas dessa vez foi diferente.
Dessa vez ele sentiu um formigamento extraordinário, como se todo o seu
braço estivesse dormente. Era como se um músculo estranho que ele nunca
sentira tivesse acordado e se alongado.
E, para a alegria de Xar, ele sentiu a Magia saindo das pontas de seus
dedos.
BUM!
Ela explodiu o galho no qual Calíbano estava pousado, e, com um gemido
estrangulado, o velho pássaro caiu do céu em uma confusão de penas e bateu
as asas em protesto diante do rosto sorridente de Xar.
— FUNCIONOU! — gritou o garoto, olhando para a própria mão
completamente extasiado. — TUDO VALEU A PENA! EU CONSEGUI A
MAGIA, NO FIM DAS CONTAS!
Calíbano soltou um suspiro muito, muito profundo.
A moral da aventura tinha dado completamente errado.
E levaria um pouco mais de tempo para que Xar aprendesse a ser bom.
Enquanto isso…
— Preocupe-se amanhã! — Xar abriu um sorriso enorme. — Hoje vamos
DANÇAR!
O feiticeiro o pegou pelas asas, e o velho Calíbano esqueceu as
preocupações e se sentiu um pássaro jovem de novo enquanto Xar o girava
sem parar, dançando no frio das estrelas da meia-noite.
Essa foi a história de Xar e Desejo, e de como seus caminhos se cruzaram em
uma noite escura há muito, muito tempo, em um passado remoto.
Em ilhas britânicas que ainda não eram conhecidas como Ilhas Britânicas,
quando seres mágicos ainda habitavam as florestas negras.
E, assim como Calíbano, continuo tentando descobrir a moral dessa
história.
Precisamos ouvir as histórias, porque elas sempre têm uma mensagem.
Mas o que me preocupa é… QUAL mensagem é essa?
Essa é a história de como Xar conseguiu Magia, de como Desejo descobriu
que era especial e de como o Rei Bruxo escapou da pedra.
Então todos conseguiram o que desejavam, mas não exatamente da maneira
que esperavam.
Porque — e acho que já mencionei isso uma ou duas vezes — precisamos
ter cuidado com o que desejamos.
Nossos desejos podem se tornar realidade.
Bem no começo dessa história, eu revelei que ela estava sendo contada por
um dos personagens.
Você conseguiu adivinhar quem sou?
Eu poderia ser qualquer um deles, não é?
Xar, Desejo, Magriço, o guarda-costas assistente que sonhava ser herói,
Sicórax, Encanzo, um dos elfos ou o velho e empoeirado pássaro Calíbano, o
corvo-que-já-viveu-muitas-vidas.
Posso ser qualquer um deles, seja bom, ruim ou uma mistura dos dois.
Não vou contar quem sou ainda.
Você vai ter que continuar tentando adivinhar.
Porque ainda não chegamos ao fim da história. Não estamos nem perto.
O Rei Bruxo escapou da pedra, como um gênio saído da lâmpada.
Ele vai atrás de Desejo, porque ela tem a Magia-que-atua-sobre-ferro.
E Xar tem uma Magia ruim, mas ainda não sabemos como isso vai se
desenrolar.
***
Sob o travesseiro de Desejo, o Livro das Palavras Mágicas está adormecido, mas
pode acordar a qualquer momento. Vamos torcer para que Calíbano esteja
certo e que o exemplar a ajude a lutar contra as pessoas perversas com Magia
poderosa e coração negro que podem querer se apropriar dos poderes dela…
POIS ONDE HÁ UMA BRUXA, HAVERÁ OUTRAS…
Continue torcendo.
Continue pensando.
Continue sonhando…
Assinado:
Circulando sem parar
Por estradas celestes e caminhos no mar
E naquelas horas eternas de um tempo perdido
Ainda havia poder nas palavras sem sentido.
Portas ainda voavam, pássaros ainda falavam;
Bruxas riam e gigantes caminhavam.
Tínhamos varinhas mágicas e asas invisíveis
E perdíamos nosso coração por coisas impossíveis.
Pensamentos inacreditáveis! Finais derradeiros!
Pois pode haver amizade entre feiticeiros e guerreiros.
Em um mundo onde coisas impossíveis podem acontecer
Não sei por que esquecemos os feitiços pela estrada
Quando perdemos o rumo, a floresta foi devastada.
Mas agora, velhos, também podemos desaparecer.
E vejo mais uma vez a trilha invisível da reviravolta
Que vai nos conduzir para casa e nos levar de volta…
Então peguem suas varinhas e abram suas asas imperceptíveis,
Pois vou cantar nosso amor pelas coisas impossíveis.
E quando você tomar minha mão desaparecida,
Vamos voltar para aquela terra mágica esquecida
Onde deixamos nosso coração
Muitas vidas atrás…
No tempo dos feiticeiros.
AGRADECIMENTOS:
Um time inteiro de pessoas me ajudou a escrever este livro.
Obrigada a minha maravilhosa editora, Anne McNeil, e a minha magnífica
agente, Caroline Walsh.
Um grande e especial obrigada a Jennifer Stephenson, Polly Lyall Grant e
Rebecca Logan.
Agradeço a todo mundo do Hachette Children’s Group: Hilary Murray Hill,
Andrew Sharp, Valentina Fazio, Lucy Upton, Louise Grieve, Kelly Llewellyn,
Katherine Fox, Alison Padley, Naomi Greenwood e Rebecca Livingstone.
Obrigada a todos da Little, Brown: Megan Tingley, Jackie Engel, Lisa
Yoskowitz, Kristina Pisciotta e Jessica Shoffel.
E os mais importantes de todos: muito obrigada a Maisie, Clemmie e Xanny.
E a SIMON, por seus excelentes conselhos a respeito de simplesmente tudo.
Eu não teria conseguido sem vocês.
SOBRE A AUTORA

© Debra Hurford Brown

CRESSIDA COWELL é autora e ilustradora da série Como Treinar o Seu


Dragão que foi adaptada para o cinema pela DreamWorks e para a televisão
com a animação Dragões: Pilotos de Berk. Viveu entre Londres e uma ilhazinha
pouco habitada no oeste da Escócia e atualmente mora nos arredores de
Londres com o marido, os três filhos e um cachorro chamado Pigeon
cressidacowell.com
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