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FILOSOFIA Colec&o dirigida pela Faculdade de Filosofia di Estudos Superiores da Companhia de Jesus. © Centro de Diretor: Marcelo Perine, S.J. Av. Cristiano Guimarées, 2127 (Planalto) 31710 — Belo Horizonte, MG Copidesque Marcos Marciomlo Edigdes Loyola Rua 1822 n. 347 04216 — Séo Paulo — SP Caixa Postal 423 04299 — Sao Paulo — SP Tel: (011) 914-1922 © EDICGOES LOYOLA, So Paulo, Brasil. 1988 Aut igitur negemus quidquam ratione confici, cum contra nihil sine ratione recte fieri possit aut, cum philosophia er rationum collatione constet, ab ea, si et boni et beati esse volumus, omnia adjumenta et auzilia petamus bene bea- teque vivendi. M.T. Cicero, Tusc. Disp. IV, 38. vés das formas literariamente estilizadas da sabedoria da vida que tal vocabuldrio nos é transmitido.** E através dos matizes desse vocabuldrio que iremos conhecer as conste- lagdes tipicas de valores que estruturam em formas diver- sas 0 ethos arcaico grego: um ethos aristocratico e guer- reiro (Homero, Teognis de Megara, Pindaro...) e um ethos popular e laborioso (sabedoria gnémica, Hesiodo nos Tra- balhos e Dias,...).** Um dos tragos importantes no ethos da sabedoria da vida é o fato de que essa sabedoria se apresente como expresséo da propria natureza e faca apelo, portanto, a uma vontade que se mantém no terreno da- quelas que se consideram exigéncias essenciais da vida, aci- ma das flutuagdes do arbitrio individual.** Assim, através da sabedoria da vida, manifesta-se essa analogia entre a regularidade da natureza e a constancia e regularidade do ethos, na qual a Etica como ciéncia do ethos ira encontrar seu ponto de partida e seu motivo fundamental. ** 2. NASCIMENTO DA CIENCIA DO ETHOS O aparecimento de uma ciéncia do ethos nas origens da cultura ocidental*’ constitui um dos aspectos mais no- taveis e de mais extraordindria significagéo dessa profunda transformacgéo do mundo grego que teve lugar nos séculos VII e VI a.C., e da qual procede o ciclo civilizatério no qual ainda hoje nos movemos. A ciéncia do ethos surge 23. Ver Ed. Schwartz, Ethik der Griechen, op. cit., pp. 19-40; 60-63. E ainda Max Pohlenz, L’xomo greco, op. cit., pp. 571-661. 24. Ver, por exemplo, W. Jaeger, Paideia, the Ideals of Greek culture, vol. I, c. 4 ec. 10; J, Lorite Mena, Du mythe @ Vontologie, op. cit., pp. 107-197 (sobre Hesiodo). 25. Segundo a conhecida distingdio de F. Ténnies entre a “von- tade essencial” (Wesenswille) vigente na “comunidade” (Gemein- schaft), contradistinta da “vontade de arbitrio” (Willkiirwille) domi- nante na “‘sociedade” (Gesellschaft). 26. A analogia que funda a “naturalidade” dos preceitos da “‘sa- bedoria da vida” é tanto mais nitida quanto mais universal é a for- mulacéo de tais preceitos, como acontece no caso da chamada “re- gra de ouro” (ver H. H.'Schrey, Hinfiihrung in die Ethik, op. cit., p. 127). Eis como essa regra é'enunciada por um autor medieval: «"..et legem illam naturalem qua nemini facere vult quid sibi fieri noluerit omnibusque facere vult inquantum potest quaecumque ab aliis sibi vult fieri”. (G. de Saint Thierry, Speculum fidei, § 77, Sour- ces Chrétiennes, n. 301, pp. 144-146.) 27. Ver infra, cap. VI. 43 NS no contexto mais vasto de uma mudanga radical no estatu- to social do discurso (logos) e que Marcel Détienne desig- nou como “laicizagio da palavra”.** Ela assinala a pas. sagem do logos mitico e sapiencial ao logos epistémico e dit inicio no ciclo histérico da ciéncia na cultura ocidental, A formaciio de um Jogos que busca exprimir a ordem do mundo na ordem das razées, que parte de um primeiro principio (arqué) @ que, portanto, é conduzido a elaborar a primeira nogio cientifica de “natureza” (physis),** re- percute também sobre os diversos tipos de ldgoi que falam da conduta da vida e do sentido da agio humana. Com efeito, como nao tentar transpor para o registro do inci- piente discurso demonstrativo a visio unitdria do mito que submete a uma tinica e suprema lei o universo, os deuses e os homens? Esse o propdsito que transparece no célebre fragmento 1 de Anaximandro.*® Mas essa trans. posigio esbarra na nogao de destino (moira) que é essencial ao mito, mas € inassimildvel por um discurso sobre a agio humana que se pretenda racional. Anaximandro ponderou, sem diivida, essa dificuldade e dai seu intento de unir 0 cosmos, 0s deuses e os homens, em virtude de uma génese comum, a necessidade de uma mesma lei universal.*' A ana- logia entre a physis e o ethos serd, assim, 0 primeiro ter. reno sobre 0 qual comecard a edificar-se uma ciéncia do ethos, acompanhando o brilhante desenvolvimento da cién. cia da physis que marca os primeiros dois séculos do pen- samento grego. Tal analogia é estimulada pelo fato de que a formacéo do vocabuldrio ético, como foi observado,* obedece & lei da transposigéo metaforica das propriedades fisicas do individuo as suas qualidades morais, fazendo as. 28. M. Détienne, Les maitres de vérité dans la Gréce archaigque, Paris, Maspéro, 1967, pp. 81-193. 99. Ultrapassaria os limites previstos para estas paginas o apro- fundamento do complexo problema das origens do pensamento fi- los6fico-cientifico entre os gregos. Os grandes progressos recentes da historiografia filosdfica néo diminuem no entanto, a nosso ver, a importincia do inspirador capitulo de Werner Jaeger sobre a “des- coberta da ordem do mundo”, particularmente sugestivo para o nos- so tema. Ver Paideia, the Ideals of Greek culture, I, cap. 9, pp. 15l- -184, Ver ainda Max Pohlenz, L’uomo greco, VIII, pp. 305-361. 30. D-K, 12, B, 1. 31. Sobre o pensamento de Anaximandro ver E. Wolf, Griechi- sches Rechtsdenken, I, pp. 218-234 e a minuciosa discussfo de J. Lo- tite Mena, Du mythe ‘a Vontologie, op. cit., pp. 318-327. 32. Ver supra, cap, I, n. 1. 44 sim da analogia 0 esquema badsico do pensamento ético. De resto, a correspondéncia analégica entre physis e ethos atende ao objetivismo da ética grega,"* na qual a primazia do fim do agir ou da conduta implica uma primazia da ordem ou hierarquia das agées, 0 que permite pensar o mundo do ethos segundo 0 modelo do kosmos ou ordem da natureza, E sabido que o modelo césmico presidiu aos primeiros ensaios pré-socraticos de uma ciéncia do ethos como se in- fere do fragmento 1 de Anaximandro. Observou-se igual- mente que 0 esquema de ordenacaio do mundo e das almas subjacente ao mito da metempsicose é 0 fundamento da ética de Empédocles,** mas dificilmente tal tipo de pensa- mento poderia ser apresentado como um passo no caminho de uma ciéncia do ethos. Herdclito é, sem dtivida, o pri- meiro a fundamentar na unidade do logos a ordem do mun- do e a conduta da vida humana. ** Na verdade, a analogia entre phiysis e ethos, pressupon- do-se a physis como objeto por exceléncia do logos demons- trativo ou da ciéncia, traz consigo uma revolugdo concep- tual na idéia do ethos, cujas conseqiiéncias serao decisivas para oO aparecimento da Etica como ciéncia e se tornario patentes ao longo da querela que opée os Sofistas e S6- erates. O ethos verdadeiro deixa de ser a expressio do consenso ou da opiniéo da multidao e passa a ser o que esta de acordo com a razio (kata légon) e que é, enquanto tal, conhecido pelo Sdbio.** O problema que se colocara a partir de entao serd o da critica do ethos fundado sobre a opiniao e a justificagaéo do ethos segundo a razao: e 6 no contexto desse problema que Sdcrates pode ser considera- do, como quer Arist6teles, o verdadeiro iniciador da ciéncia do ethos. Com efeito, a introdugio explicita do argumento te- leolégico na concepgao socratica da virtude acaba favore- 33. Ver José Vives, S.J., Génesis y evolucién de la ética_platé- nica:estudio de las analogias'en que se expresa la ética de Platén, Madri, Gredos, 1970, pp. 7-35. 34. Ver J. Vives, op. cit., pp. 32-34, 35. Ver Jonathan Barnes, The presocratic Philosophers, Lon- dres, Routledge and Kegan Paul, 1979, pp. 122-126. 36. Ver J. Barnes, op. cit., pp, 127-135. 37. Ver. J. Vives, op. cit., pp. 40-41, 45 cendo a analogia com a competéncia técnica (téchne) tentativas de formulagéo da racionalidade da conduta: a idéia da virtude como téchne constituiraé o ponto de par- tida da reflexdo ética de Platéo.*° Uma das formas da ati- vidade cientifico-técnica que alcancara na Grécia notdvel desenvolvimento e prestigio, ou seja, a medicina, apresenta- -se como referéncia analdgica privilegiada para a ciéncia do ethos. Platéo estabelece explicitamente uma proporcaéo entre a “justica” ou ciéncia do bem-estar da alma e a me. dicina * e a Etica como ciéncia encontra na medicina, se. gundo Aristételes, um modelo para desenvolver 0 método adequado* ao seu objeto. Por outro lado, a analogia te. rapéutica pde em relevo essa caracteristica peculiar do agir humano que o mostra oscilando, no seu movimento, entre Os pdlos da razéo e do desejo e oferecendo, assim, um campo privilegiado para a formulagéo das nocgdes de me- dida e de cura dos excessos do desejo. * A partir da idade sofistica, os grandes temas sobre os quais se exerceria a reflexio ética estao definidos, e estao também delineados os modelos epistemolégicos que irao guiar a formacao de uma ciéncia do ethos. Segundo a enu- meracéo de Léon Robin no seu livro magistral sobre a mo. 28. Ver Terence Irwin, Plato’s moral theory: the early and mid- dle Dialogues, Oxford, Clarendon Press, 1977, pp. 71-72. 39. Ver J. Vivés, op. cit., cap. I, pp. 36-60. 40. Gérg, 464 a-465 a; ver Robert C. Cushman, Therapeia Pla- to’s Conception of Philosophy, University of North Carolina Press, 1958, 41. Ver W. Jaeger, Aristotlé’s use of Medicine as model of me- thod in his Ethics, ap. Scripta minora, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1960, pp, 491-509, Jaeger sublinha a diferenca entre o mo- delo terapéutico em Platéo e sua aplicagdo na ética aristotélica, que se define como uma ciéncia pratica. 42. Esse tipo de reflexao caracteriza primeiramente a sabedo- ria gnémica, tendo provavelmente como centro de difusio o templo de Apolo em Delfos. O ne quid nimis (medén dgan) é 0 mais célebre desses preceitos, que encaminham a reflexdo ética grega na linha de uma ciéncia da medida, Ver J. Frere, Les grecs et le désir de Pétre: des pré-platoniciens 4 Aristote, Paris, Belles Lettres, 1981, pp. 22-25. Fazer do desejo um desejo do saber — philosophia '— tal foi, como mostra o belo livro de Jean Frere, a prodigiosa invencao do génio grego que age decisivamente na formacio de uma ciéncia do ethos que seja, igualmente, uma sabedoria. Ver também as paginas cldssicas de A. J. Festugiére, Contemplation et vie contemplative se- Jon Platon, 2 ed., pp, 132-156. 46 ral antiga, ** trés grandes direcdes da reflexao unificam esses temas: 1) a lei e o Bem; 2) a virtude ou a existéncia se- gundo o Bem e a eudaimonia; 3) 0 sujeito da acao moral. Em torno desses temas, agucam-se os problemas que iraéo alimentar a reflexdo moral até nossos dias. Tais inter- rogagdes em torno do ethos supdem justamente que o século V a.C. tenha sido um tempo de profundo desconcerto mo- ral no mundo grego, tempo agitado por vivas querelas, nas quais era posto em questao tudo o que até entao se admi- tira a respeito da virtude, da justica e do bem. Um eco dessas querelas vamos encontra-lo nas Nuvens de Aristofa- nes, “* mas € sem dtivida nos textos sofisticos que elas se exprimem com maior veeméncia e, entre todas, a mais cé- lebre, aquela que opdée a natureza e a lei (physis e ndmos). Seu cardter dramatico vem do fato de que ela incide no proprio terreno da analogia entre physis e ethos, no qual se tentava encontrar o caminho para a justificaco racio- nal do ethos. Talvez nao se encontre expresséo mais elo- qiiente dessa oposic&o ** do que o longo fragmento atribui- do a Antifonte, o Sofista, e identificado num dos papiros de Oxirrinco. *° Na passagem do século V para o século IV, o relati- vismo moral na sua forma mais abrupta faz parte do fundo comum das idéias que circulam através do ensinamento dos Sofistas. Assim o atestam esses curiosos Dissoi Légoi (discursos duplos), transmitidos entre os escritos de Sesto Empirico ** e onde vemos dissolver-se, no jogo l6gico dos opostos, alguns dos conceitos fundamentais do ethos grego: o bem, o belo, o justo, o verdadeiro, a sabedoria, a virtude. Tal o contexto social e cultural no qual uma ciéncia do ethos se tornava imperativa como resposta & questao 43. Léon Robin, La Morale antique, 2% ed., Paris, PUF, 1947. Robin divide sua exposicio em trés grandes capitulos que tratam res. pectivamente do bem moral, da virtude e da felicidade e da acio mo- ral nas suas condigdes psicolégicas. 44. As Nuvens, 1240-1244. 45, Ver a bibliografia indicada infra, cap. VI, n. 8. 46. D-K., 87, B, 44; ver o sugestivo’comentétio de J. Barnes, The presocratic Philosophers, pp. 508-516 e também W. C. Greene, Moira: Fate, Good and Evil in Greek Thought, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1948, pp. 232-240. 47. D-K., 90, 1-8; ver 0 comentario de J. Barnes, op. cit., pp. 516-522. Os Dissoi Logoi foram igualmente denominados Antiléxeis; escritos em didlético dérico provavelmente nos fins do século V aC. 47 ja solugdo pendia a sobrevivéncia do proprio ethos e & Snundo de cuntura do qual ele era a expressao mais genuina, Deste ponto de vista, soa como um paradoxo a critica heideggeriana & constitui¢éo da Etica como ciéncia, tornada possivel a partir do esquecimento do ethos origi- nal, assim como a Metafisica se constitui a partir do es- quecimento do ser.** Nada permite supor que uma Etica origindria no sentido heideggeriano se apresentasse como alternativa vidvel & crise do ethos no século V. a.C., amea- gado pelo poder dissolvente do logos sofistico. Convém, de resto, perguntar-se se esse “declinio do pensar” em face do advento da filosofia como ciéncia, de que fala Hei- degger,* € um fato histérico perceptivel na literatura fi losdfica do século V a.C., ou traduz apenas a leitura hei- deggeriana daqueles textos fragmentarios. Na verdade, con- siderado @ luz das evidéncias textuais, o movimento do pen. samento grego nos tempos imediatamente anteriores a S6- crates e nos tempos socraticos aponta inequivocamente na diregao de uma ciéncia do ethos como unica resposta historicamente vidvel & critica destrutiva dos Sofistas. Os primeiros passos em diregio & ciéncia do ethos se- rao dados no campo da reflexéo sobre a lei. A propria evolugao do vocabuldrio é caracteristica da indicacio de um caminho que leve a uma fundamentacio racional do agir humano, como €¢ facil observar a propdsito dos vocd- bulos thémis e dike.* Mas s&o, sem duivida, as transfor- magées sociopoliticas, das quais emerge a polis como esta- do democratico, que impdem a necessidade de uma explici- taco do ethos como lei, segundo os predicados da igual- dade (isonomia) e da correspondéncia com a ordem das 48. Ver supra, cap. I, nota 10. Sobre o problema da relagio entre humanismo e ética na Carta sobre 0 Humarismo e apreciacio da bibliografia a respeito, ver Robert H. Cousineau, Humanism and Ethics: an introduction to the Letter on Humanism, Paris-Louvain, Nauwelaerts, 1972. 40. Brief ilber den Humanismus, ed. bilinglie Munier, p, 138. 50. Themis, “ordenagdo”, no vocabulario homérico remete a apli- cacao da justiga sob a égide de Zeus; Dike, “‘justica”, prdprio do vocabulério hesiddico, personalizada numa deusa todo-poderosa, ex- prime através do conceito de igualdade a racionalidade do direito. Ver W. Jaeger, Praise of Law: the origin of law philosophy and the Greeks, apud Scripta minora, II, pp. 319-351; ver igualmente o capitulo de Erik Wolf, Griechisches ‘Rechtsdenken 1, Vorsokratiker und frithe Dichter, Frankfurt aM, V. Klostermann, 1950, pp. 22-45. coisas (eunomia). Na poesia politica de Solon, 0 grande legislador ateniense, contemporaneo dos primeiros fildso- fos, a celebragéo da Dike e da Eunomia (que Solon figura igualmente sob a forma de uma deusa),“ oferecenos o primeiro nticleo conceptual sistemdtico do que serd uma ciéncia do ethos. Na lirica de Solon, com efeito, Dike ou a Justiga apresenta-se como imanente ao tempo (identifi- cada, alids, ao prdprio tempo, Cronos). Assim, pela pri- meira vez na histéria do pensamento politico grego, a Jus- tiga emerge como uma forga histdrica no horizonte do destino politico da pdlis. A Dike é a fonte da legitimi- dade da lei (ndmos) e, a partir dela, 0 justo (dikaion) pode ser igualmente definido como predicado da acaio do verda- deiro cidadao. Seus opostos sio manifestagdes de uma mesma desmesura fundamental (hybris), que & ambicgdo do poder (pleonexia), do ter (philargyria) e do aparecer (hyperephania). A hybris traga, desta sorte, o perfil do homem injusto (anér ddikos), que se mostra como o ho- mem insensato e destifuido de razio. A ele se contrapée o homem justo (anér dikaios), que se situa sob a égide da “medida” (métron).“ Com a idéia de “medida” aplica- da ao agir, e essencial @ idéia de lei, esté posto o funda- mento racional sobre 0 qual serd possivel edificar uma ciéncia do ethos, Alguns textos célebres irdéo construir sobre esse fun- damento a grandiosa analogia entre 0 ethos e a ordem uni- versal que encontraré uma expresséo grave e solene no Gorgias de Platéo, no momento decisivo da discusséo com Célicles.°* Essa analogia esta subjacente as celebracdes da SL. Ver W. Jaeger, Praise of Law, art. cit., p. 327, n, 3. A gran- de elegia 3 € dedicada & Eunomia e termina com a celebracio dos seus peneficios. Ver Liricos griegos I (ed. Adrados), Barcelona; Alma Mater, 1956, pp. (188)-(190). 52. O belo e celebrado ensaio de W. Jaeger, Solons Eunomie, (Scripta minora I, pp. 314-337) apresenta-se aqui como referéncia obri- gatoria. E igualmente o seu capitulo sobre Solon como criador da cultura politica ateniense em Paideia, the Ideals of Greek culture, I, c. 8 (pp. 136-149). Ver igualmente E. Wolf, Griechisches Rechis- denken, I, ¢. 9 (pp. 187-219) e Eric Voegelin, Order and History, 11 The World of Polis, pp. 194-199. 53, Ver E, Wolf, op. cit., I, pp. 194-195. 54. Ver. E. Wolf, op. cit., I, pp. 207-210, O dito medén dgan 6 atribuido a Solon (D-K. 10, 3, B, 1). 55. Ver Gérg 507 e508 a: “Os sdbios, 6 Célicles, afirmam que © céu e a terra, os deuses e os homens conservam a comunidade e 49 soca tépos cléssico nos trégicos, nog Se an polttion +s @ na reflexao filosdfica so. al o exemplo mais célebre nos é trans. s da cultura atrj. lei que se torn Iricos, * na oral bre a cultura, da qui 3 mitido por Plato no mito sobre as origen: bufdo a Protdgoras. " %, de resto, no dominio da filosofia da cultura e da filosofia politica que a transcrigéo do ethos no logos epis- témico alcanga uma amplitude e uma profundidade inigua- ladas, e tal se dé na obra de Platéo, na qual o nticleo da reflexio racional sobre a prazis ainda nao se dividiu na. quelas que serao as classificagdes aristotélicas e 0 pensa- mento ético é, ao mesmo tempo, filosofia e pratica cultu- ral e politica. & na obra de Plat&éo, como observa justa- mente W. Jaeger, ** que 0 problema da justiga e da lei se articula ao problema da natureza da realidade enquanto a amizade, a boa ordem, a sabedoria e a justica e por isso, compa- nheiro, chamam a esse ‘universo de ordem (kdsmos), e néo de de- sordem e desregramento. Mas tu, sendo sfbio, pareces nfo aplicar tua mente a estas coisas e, ao invés, te esqueces de que a igualdade geométrica pode muito entre os deuses e entre os homens, Pensas que 6 preciso esforcar-se para se poder sempre mais. H que te des- cuidas da geometria”. Sobre a ética platénica no Gérgias ver o ex- celente capitulo de J. Vivés, op. cit., pp. 94125, 56. Assim no final das Euménidas na Orestiada de Esquilo (Eum. 681-710) e no coro em louvor do homem na Antigona de S6focles (Ant, 332-373). 57. Como no célebre fragmento de Pindaro sobre 0 némos basi- leus citado por Platéo, Gérg. 484 b. Ver E. des Places, Pindare et Platon, Paris, Beauchesne, 1949, pp. 171-175; Guthrie, A history of Greek Philosophy, II, pp. 131-134; J. de Romilly, La loi dans la pen- sée grecque, pp. 63-71, A significagio do fragmento de Pindaro discutida, mas é impossivel nao enumeré-lo entre os textos celebra- térios da lei. 58, Ver a oracdo fiinebre pronunciada por Péricles sobre os mortos de Atenas, Tucidides, Hist. II, 35-46. 59. Plato, Prot. 320 c-322 d, Sobre a interpretagio dessa pas- sagem famosa ver W. Jaeger, Praise of Law, art. cit., pp. 335-338. Platao provavelmente utiliza e'refunde livremente uma obra de Pro- tagoras “Sobre o estado do homem no principio” (peri tes en arché Katastdseos) mencionada por Didgenes Laércio (D-K., 80, B, 8 ») e que coloca no centro da cultura a instituicéo da ordem politica através das virtudes da reveréncia e da justica (aidds e dike). Ver W. K. C, Guthrie, A history of Greek Philosophy, I, pp, 63-68. TO- do o magistral capitulo de Guthrie sobre a antitese némos-physis na moral e na politica (ibidem, pp. 55-134) deve ser lido na perspec- tiva da constituicio da ciéncia do ethos a partir da idéia de lei. 60, Ver In Praise of Law, art. cit., p. 341. 50 tal. Platao edifica a ciéncia do ethos como ciéncia da jus- tiga e do bem e, conseqtientemente, como ciéncia da acao justa e boa que é a agéo segundo a virtude (areté), sobre o fundamento de uma ciéncia absolutamente primeira, de uma Ontologia. A concepcéo platénica do ethos repousa sobre essa relacao origindria e originante entre o homem e o ser, que se exprime no logos do ser (Ontologia). Nesse sentido, é permitido dizer que ela se constitui, por sua vez, como principio (arqué) da Etica ocidental, além do qual nao é possivel remontar. Observe-se, alids, que 0 ca- minho do pensamento platénico, da Repiblica as Leis, an- tecipa e€ como que descreve de antemao aquele que seré o percurso conceptual cldssico da reflexao ética na histéria da filosofia ocidental. O ponto de partida é oferecido pela ontologia do Bem na Repiiblica, & qual corresponde a pai- defa filoséfica e a ciéncia do Bem, operando a perfeita in- teriorizagéo da lei na alma e tornando supérflua a lei es- crita; * 0 ponto de chegada é alcancado com o vasto pai- nel legislativo das Leis. A legislacéo das Leis poderia ser argiiida de casuismo ou de autoritarismo legiferante se néo fosse justamente o instrumento adequado para a prdatica da ciéncia do Bem e para o exercicio da justiga.** Assim, a ciéncia do ethos é dotada de uma estrutura fundamental nessa dialética que se estabelece entre a norma paradigmé- tica e a acao reta, pela mediacio da lei adaptada As cir- cunstancias concretas.** Ela se constitui, na obra de Pla- 61. Rep. IV, 423 e; cf, 425 a-e; Plato esclarece que uma boa educacao e instrugéo (paideia kat trophé) tornam inutil a legisla- c&o minuciosa sobre pequenos pormenores da vida de cada dia. Ver igualmente depreciagdo da lei escrita no Politico (292 d-297 b) em favor da arte suprema de governar. Ver Romilly, La loi dans la pensée grecque, pp. 188-194, 62. Ver Leis, IV, 713 e-714 a. E, W. Jaeger, Paideia, the Ideals of Greek culture, III, pp. 217-230; Praise of Law, art. cit., p. 345. A. J, Fes- tugiére insiste fortemente na fundamentagao tedrica do némos nas Leis: Contemplation et vie contemplative selon Platon, pp. 425-447; sobre as Leis ver ainda, na perspectiva que aqui nos interessa, J. Vivés, Génesis y evolucién de 1a ética platonica, pp. 289-309; E. Voegelin, Order and History III, Plato and Aristotle, pp. 215-223. 63. Ver J. de Romilly, La loi dans la pensée grecque, p. 195; ver ainda a bela celebracio da lei como fonte de civilizacio em A. J. Festugiére, Liberté et civilisation chez les grecs, Paris, Revue des Jeunes, 1947, pp. 81-91. 51 ST tio," como um ktema eis aei,** uma aquisigéo da civiliza- ao do Ocidente que permanece para sempre. Se a ciéncia do ethos nao pode ser estritamente homo. loga & ciéncia da physis, conquanto ambas se edifiquem no mesmo espaco do logos epistémico, é que a prazis humana nao se pode conceber racionalmente como movida pela vis a tergo de uma necessidade exterior. A constituigio de uma ciéncia do ethos s6 se tornaria possivel com uma crj. tica radical da nog&o de destino, com a interiorizacao da necessidade no sujeito agente através da descoberta de um novo campo de racionalidade que teré como pdlos: de um lado, o fim da ago como 0 bem (agathdn) ou perfeicio do agente; de outro, o exercicio da acgéo que une o agente a seu fim e manifesta, deste modo, sua perfeigao imanente ou sua virtude (areté), Entrelagando inteligéncia e liber. dade no vinculo do Bem,“ a virtude torna 0 homem eudai- mé6n, vem a ser, excelente em humanidade e auto-realizan. do-se nessa exceléncia. *7 A segunda linha conceptual da ciéncia do ethos se tra. ga, pois, acompanhando o finalismo do Bem. Ela prolonga a reflexdo sobre a lei apontando para o pdlo objetivo da praxis, que designa ao homem seu lugar na ordem univer. 64. Nao € justo, pois, opor o “idealismo” da Remiblica ao “realismo” das Leis. A terminologia de “Estado ideal” aplicada 4 Repiiblica & imprépria, Como é impréprio falar de “utopia politi- ca” de Platéo (nem o termo nem a idéia pertencem & Grécia clis- sica). Eis como se exprime Victor Goldschmidt: “On ne parlera pas d'utepie a propos des Anciens ou, en tout cas, des Grecs. La question trés précise qu'ils se sont posés était celle, non pas méme de I'Stat idéal, mais de la meilleure constitution. Cette question n’a rien d’utopique” (Platonisme et pensée contemporaine, Paris, Au- bier, 1970, p. 165). Sobre a unidade da ética e da politica em Platéo ver ‘ainda R. Maurer, Platons “Staat” und die Demokratie, Berlim, De Gruyter, 1970, pp. 111-116; E. Voegelin, Order and History II The World of Polis, p. 187. 65. Tucidides, Hist. I, 22. 66. © Bem, com efeito, é 0 que liga (td kat agathon déon, Fed. 99 c, ver Pol. 284 e), Ver Robin, La Morale antique, p. 36. 67. A realizagéo mais alta do ethos na perspectiva da ética aristocratica antiga é 0 kalos kai agathds; enquanto é tal o individuo 6 dristos e, portanto, eudaimén. A transposicio espiritual da eudai- monia é a exceléncia segundo a virtude, fundada na “razao reta” (orthds l6gos), A traducio de eudaimén por “feliz” no sentido do sentimento moderno da felicidade nao exprime a riqueza semantica do termo grego, Ver ©. Schwartz, Ethik der Griechen, op. cit., pp. 63-65 e Max Pohlenz, L’uomo greco, op. cit., pp. 577-579. 52 sal. O ponto mais alto atingido por essa linha — a expres- sfo mais audaz da ciéncia do ethos — serd justamente a ontologia platénica do Bem. Mas um longo caminho teve de ser percorrido, até que se alcangasse aquela “maravilho- sa supereminéncia” do Bem, que provoca a exclamacao admirada de Glauco na Repiiblica.** Ele se estende desde a experiéncia da fragilidade e do desamparo do homem em face da inveja e do capricho dos deuses, e do seu abandono a dura necessidade do destino, até a descoberta socratica do “homem interior”,*® que encontra na ciéncia do bem e da justica a razfo e a necessidade (toda interior) de ser bom e justo.” A idéia do Bem como fim absoluto e transcendente da vida humana torna-se, assim, 0 aper conceptual, o princi- pio absoluto ou “anipotético”*! da ciéncia do ethos. Ela permite fundamentar a racionalidade da prazis, mostrando que a sua primazia mensurante com relag&o ao objeto, se- gundo o principio de Protagoras, refere-se, por sua vez, & primazia de uma medida absoluta e perfeita.’? Desta sorte, fica compreendida no logos da ciéncia a identidade entre ethos e cultura,** que Platéo expord magnificamente no programa educativo da Repiblica e no imenso mural re- ligioso-politico das Leis.“ A inflexao aristotélica dessa linha de pensamento que se elevara até a transcendéncia supereminente da idéia do Bem, supde justamente que sé depois de conquistado esse alto cimo € possivel retornar a relatividade dos bens hu- manos, nao para recair no relativismo sofistico, mas para estabelecer, como referéncia ao primum analogatum que é 68. daimonias yperbolé, Rep. VI, 509 c. 69. 0 entds dnthropos, Rep. 1X, 589 a-b. 70. Esse caminho é descrito magistralmente por Léon Robin no cap. 1° de La Morale antique (pp. 1-70), 71, Principio ao qual se eleva a dialética usando a inteligéncia (noesis) na quarta secao da comparacao da linha: “Avancando até © principio do todo que dispensa hipsteses” (ina méchri tou anypo- thétou epi tén tou pantds arquén ién, Rep. VI, 511 b), 72. A contingéncia e relatividade da prazis na sua condicio cmpirica exigem sua suprassuncio numa medida absoluta, segundo © principio formulado por Plato: “Nada de imperfeito pode ser me- dida do que quer que seja” (atelés gir oudén oudends métron, Rep. VI, 504 c), Trata-se, no contexto, da formacéio dos Guardiaes da cidade que deverd elevd-los até a contemplac&o da idéia do Bem. 73. Ver supra II, 1. 74. Ver L. Robin, La Morale antique, pp. 38-43. 53 0 Soberano Bem, a hierarquia analogica dos bens. A dis, cussio dos primeiros capftulos do livro I da Etica de Nj. ‘cdmaco sobre a eudaimonia mostra, com efeito, que a on. tologia platénica do Bem operou historicamente a aberturg de um novo espago de inteligibilidade, no interior do quay tornase possivel a critica aristotélica do Bem separado e sua dialética da beatitude (eudaimonia) fundada sobre a analogicidade da nogio de bem," que Sto. Tomas de Aqui. no retomaré e transfundirg em novos modelos conceptuais nas célebres questOes 1 a 5 da Prima Secundae. * igualmente no campo conceptual da idéia do que 0 temeroso e abissal problema do mal e do esting é transposto do registro do mito para a ordem da Taziig que rege a ciéncia do ethos, A oposicéo absoluta entre 9 bem e 0 mal que permanece como poderosa seduciio- de todos os dualismos ontoldgicos e éticos, é Telativizada com 8 dessubstancializagio do mal, ou seja, com a “desrealizacao” na forma de “privagio” (stéresis) do bem ou de simples amissio boni (Plotino e Sto. Agostinho), 7s Um dos mais obscuros enigmas da existéncia ética do ho. mem incorpora'se, assim, & ciéncia do ethos e comeca g ser penetrado pela luz da razio. Se o Bem constitui 0 pélo objetivo unificante da Drazis, a virtude (areté) € 0 seu pdlo subjetivo: entre os dois se estabelece 0 campo de racionalidade do ethos. A Taiz se. mintica do termo areté, para o qual o nosso termo “vir. %B.« Et. a Nic. I, cl-12. Sobre a significagio da experiéngi, al de Aristételes no caminho que o leva do Bem ranvosesienn de Plato & multiplicidade analégica dos bens na Ktica, ver as belas paginas de Ed. Schwartz, Ethik der Griechen, pp. 126-133. 16. Eem outros textos. Ver H. C. de Lima Vaz, Tomds de Aquino @ 0 n0ss0 tempo: 0 problema do fim do homem, apud Escritos de Filosofia: Problemas de fronteira, pp. 37-70 (aqui p. 49). m1. E, exemplarmente, em todas as formas de “gnosticismo” que acompanham o pensamento antigo desde o chamado “orfismo” até os sistemas propriamente gndsticos que florescem do século II dC, ao fim da Antiguidade. Sobre a significagao do gnosticismo ver H.C, Puech, Phénoménologie de la gnose, apud. En quéte de la Gnose, Paris, Gallimard, 1978, I, pp. 185-213. 8. Este problema esté intimamente ligado ao problema do destino, e ambos emergem para a claridade de um tratamento racio- nal & luz da idéia do Bem. E o que mostra o magistral estudo so- bre o problema do mal em Platéo de W. C. Greene na sua obra Moira: Fate, Good and Evil in Greek Thought, op. cit., pp. 293-316; sobre Plotino e Sto. Agostinho, ver pp. 376-388,

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