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Robert Sokolowski INTRODUCAO A FENOMENOLOGIA Titulo original: Introduction to Phenomenology © Robert Sokolowski 2000 Cambridge University Press, Cambridge ISBN 052166792-5 Preparacio: Carlos Alberto Barbaro Ducramacao: Miriam de Melo Francisco Revisio: Mauricio Balthazar Leal Edigées Loyola Rua 1822 n° 347 — Ipiranga 04216-000 Sao Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04218-970 — Sao Paulo, SP Gil) 6914-1922 @:(11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@ loyola.com.br Vendas: vendas@ loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma efou quaisquer meios (eletrdnico ou mecdnico, inctuindo {fotocépia e gravagao) ou arquivada em qualquer sistema ‘ou banco de dados sem permissdo escrita da Editora. ISBN: 85-15-02901-4 © EDICOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 2004 SUMARIO Agradecimentos ... 7 9 |. O que é intencionalidade, e por que é importante: 17 i. Percep¢ao de um cubo como um paradigma de uma experiéncia consciente 25 l._As trés estruturas formais na fenomenologia 31 Iv. Uma declaragao inicial do que é a fenomenologia.... 31 V. Percep¢ao, meméria e imaginacao. 75 vi. Palavras, retratos e simbolos 87 vil. Intengdes e objetos categoriais . 99 vu. A fenomenologia do si (self)... 123 x, Temporalidade .. 141 x. O mundo-da-vida e a intersubjetividade » 187 x1. Razio, verdade e evidéncia.. . 167 xi. Intuig&o eidética ... 189 xi, A fenomenologia circunscrita 197 xiv. A fenomenologia no contexto histérico presente ......----eceee-- 211 APENDICE: A fenomenologia nos tiltimos cem anos... 223 Bibliografia seleta..... 239 indice remissivo .. 243 AGRADECIMENTOS Tenho uma divida com o falecido Gian-Carlo Rota, por sugeriro tpico deste livro para mim, e por seu incentivo e sua ajuda a medida que o trabalho avangava. Na introdugao descrevo como 0 conceito do livro surgiu de uma conversa entre nds. fato de que eu nao possa compartilhar o trabalho com- pleto com ele é 6 uma das muitas dores causadas por seu recente e stibito falecimento. Muitos amigos e colegas comentaram os esbogos iniciais do manuscri- to, e em diversos lugares eu usei nao apenas suas idéias, mas também suas formulagdes. Sou muito grato a John Brough, Richard Cobb-Stevens, John Drummond, James Hart, Richard Hassing, Piet Hut, John Smolko, Robert Tragesser e Kevin White, John McCarthy foi particularmente generoso em suas observac6es. Usei uma verso preliminar deste trabalho como a base de um curso na The Catholic University of America, e agradego pelo retorno e pelas sugestdes dos estudantes que dele participaram. Algumas frases de Amy Singer foram especialmente titeis. Finalmente, meu muito obrigado a Fran- cis Slade por pensamentos e formulagdes que usei em todas as partes do livro, especialmente por suas idéias sobre modernidade, das quais me vali para o material do capitulo final. Este livro € dedicado ao irmao Owen J. Sadlier, O. S. F., cuja generosida- de e cujo discernimento filoséfico tem sido tao significativos para aqueles que sao afortunados por ser seus amigos. INTRODUCAO Origem e propésito do livro © projeto de escrever este livro comesou numa conversa que tive com Gian-Carlo Rota na primavera de 1996. Na ocasiao ele lecionava como profes- sor visitante de Matematica e Filosofia na The Catholic University of America. Rota chamava freqiientemente a atengao para a diferenga entre mate- maticos e filésofos. Matematicos, dizia ele, tendem a absorver os escritos de seus predecessores diretamente em seus trabalhos, Eles nao fazem comenta- rios sobre os escritos de matematicos anteriores, mesmo quando muito in- fluenciados poreles. Simplesmente fazem uso do material que encontraram em autores que leram. Quando avangos sao feitos na matemitica, pensado- res posteriores condensam 0 que foi encontrado e seguem adiante. Poucos matematicos estudam trabalhos de séculos passados; comparados coma ma- temdtica contemporanea, tais escritos antigos parecem a eles quase como que trabalhos de criangas. Em filosofia, por contraste, trabalhos classicos freqiientemente sao mais valorizados como objetos de exegese que como recursos a ser explorados. Filésofos, observava Rota, tendem a nao perguntar: “Para onde iremos da- qui?”. Ao contrario, eles nos informam sobre as doutrinas dos maiores pen- sadores. Sao mais propensos a comentar os trabalhos antigos do que a parafraseé-los. Rota reconhecia o valor dos comentarios, mas pensava que os filosofos poderiam fazer mais. Além de oferecer exposisao, eles deveriam abreviar escritos antigos e abordar os assuntos diretamente, falando a partir de si mesmos e incorporando em seus proprios trabalhos o que seus prede- 9 INTRODUGAO A FENOMENOLOGIA cessores fizeram. Os filésofos deveriam extrair os conhecimentos tio bem quanto os anotam. Foi contra esse pano de fundo que Rota me disse, apds uma de nossas aulas, enquanto tomavamos um café na cafeteria da Escola de Direito da Universidade de Columbus: “Vocé deveria escrever uma introdugio a feno- menologia. Apenas escreva-a. No diga 0 que Husserl ou Heidegger pensa- ram, apenas diga as pessoas 0 que é a fenomenologia. Sem titulo pomposo; chame-a de uma introdugio a fenomenologia”. Isso me pareceu um conselho muito bom. Ha muitos livros e artigos que comentam Husserl; por que nao tentar imitar alguma introducao que ele mesmo teria escrito? Pareceu a coisa certa a Fazer, porque a fenomenologia pode continuara oferecer uma importante contribuicao paraa filosofia atual. Seu capital intelectual esta longe de ter sido esgotado, e sua energia filos6fi- ca permanece largamente inexplorada. A fenomenologia ¢ o estudo da experiéncia humana e dos modos como as coisas se apresentam elas mesmas para nés em e por meio dessa experién- cia. Tenta restabelecer 0 sentido da filosofia encontrado em Platao. 6, além disso, nio 36 uma revivificagio de antiquario, mas algo que confronta as questdes levantadas pelo pensamento moderno. Vai além dos antigos e mo- dernos, e se esforga por reativar a vida filosdfica em nossas circunstancias presentes. Este livro esta escrito, sobretudo, nao apenas para informar aos leitores sobre um movimento filosdfico especifico, mas para oferecer a pos- sibilidade do pensamento filoséfico em uma época em que tal pensar é seria- mente contestado ou largamente ignorado. Por ser este livro uma introducao a fenomenologia, utilizou-se nele 0 vocabulirio filoséfico desenvolvido por aquela tradicao. Empregaram-se palavras como “intencionalidade”, “evidéncia”, “constituigdo”, “intuicao ca- tegorial”, o “mundo-da-vida” e “intuigéo eidética”. Contudo, nao fago co- mentirios sobre esses termos como estranhos a nosso proprio pensamento. Apenas os utilizo. Julgo que nomeiam fendmenos importantes e os quero tornar acessiveis aos leitores deste livro. Nao apresento, neste livro, o modo como esses e outros termos se originaram nos escritos de Husserl e nos tra- balhos de Heidegger, Merleau-Ponty ¢ outros fenomendlogos; uso as pala- vras diretamente porque elas ainda tém vida nelas. £ legitimo, por exemplo, falar sobre evidéncia enquanto tal, e nao apenas sobre 0 que Husserl disse sobre evidéncia. Esses termos nao necessitam ser explicados somente pela demonstragao de como outras pessoas deles se utilizaram. Nés nao temos de pregé-los na parede para poder tirar proveito deles. 10 INTRODUGAO Havera uma cronologia da fenomenologia como apéndice deste livro. No momento, recordemos simplesmente que Edmund Husserl (1859-1938) foi o fundador da fenomenologia, e que seu trabalho Investigacies légicas pode, com justica, ser considerado 0 ponto inicial do movimento. O livro apareceu em duas partes, em 1900 e 1901, assim a fenomenologia comegou com 0 amanhecer do novo século. Portanto, do agora em que nos encontramos temos mais de uma centena de anos da histria do movimento. Martin Hei- degger (1889-1976), discipulo, colega e mais tarde rival de Husserl, foi outra das grandes figuras na fenomenologia alema. O movimento também flores- ceu na Franga, onde foi representado por autores tais como Emmanuel Lévi- nas (1906-1995), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1907- 1960) e Paul Ricoeur (1913-). Houve significativos desenvolvimentos na Russia pré-revoluciondria e na Bélgica, na Espanha, na Italia, na Polonia, na Ingla- terra enos Estados Unidos. A fenomenologia influenciou muitos outros mo- imentos filosdficos e culturais, tais como: hermenéutica, estrucuralismo, formalismo literdrio ¢ desconstrutivismo. Durante todo 0 século XX foi o maior componente daquilo que se denominou “filosofia continental”, em. oposigio a tradig&io “analitica” que tipificou a filosofia na Inglaterra ¢ nos Estados Unidos. A fenomenologia e a questo dos aparecimentos A fenomenologia é um movimento filoséfico significativo porque lida muito bem com o problema dos aparecimentos. A questao dos aparecimen- tos tem sido parte dos problemas humanos desde a origem da filosofia. Os sofistas manipularam os aparecimentos através da magia das palavras e Pla- to respondeu ao que eles disseram. Desde entio, os aparecimentos tém sido multiplicados eaumentados enormemente. Nés os geramos nao sé por pala~ vras faladas ou escritas de uma pessoa a outra, mas por microfones, telefones, filmes e televisio, bem como por computadores e pela Internet, pela propa- ganda e pela publicidade. Os modos de apresentagao e representagao prolife- ram e questées fascinantes afloram: Como diferenciar uma mensagem de e- mail, de uma chamada telef6nica e de uma carta? Quem se dirige ands quando lemos uma pagina da web? De que modo sao modificados os falantes, os ou- vintes e a conversacao pela maneira como nos comunicamos agora? Um dos perigos com 0 qual nos deparamos é que com a expansao tec- noldgica de imagens e palavras tudo parece se reduzir a meras aparéncias. " INTRODUGAO A FENOMENOLOGIA Nés podemos formular este problema em termos de trés temas: de partes e todos, identidade em multiplicidades e presenga e auséncia: parece que esta- mos agora inundados por fragmentos sem quaisquer totalidades, por mul- tiplicidades carentes de identidades, e por miiltiplas auséncias sem nenhu- ma presenga duradoura real. Nés temos bricolage e nada mais, e pensamos que podemos até inventar a nés mesmos ao acaso juntando convenientes e agradaveis, mas passageiras, identidades a partir dos bits e pedacos que en- contramos ao nosso redor. Nés recolhemos fragmentos para nos susten- tar contra nossa ruina. Em contraste com esta compreensao pés-moderna de aparéncia, a feno- menologia, em sua forma classica, insiste em que as partes sao somente com- preendidas contra 0 fundo dos todos apropriados, que multiplicidades de aparéncias aportam identidades, e que auséncias nao fazem sentido exceto como jogadas contra as presengas que podem ser alcancadas por meio delas. A fenomenologia insiste que a identidade e a inteligibilidade esto disponi- veis nas coisas, e que nés mesmos somos definidos como aqueles para os quais estas identidades ¢ inteligibilidades sio dadas. Nés podemos tornar evidente 0 modo como as coisas sio; quando fazemos assim descobrimos objetos, mas também descobrimos ands mesmos, precisamente como dativos de revelagao, como aqueles para os quais as coisas aparecem. Nao somente podemos pensar as coisas dadas para nés na experiéncia, mas podemos com- preender também a nés mesmos enquanto as pensamos. A fenomenologia 6 precisamente este tipo de compreensao: ¢ fenomenologia é a autodescoberta da razéo na presenca de objetos inteligiveis. As andlises neste livro sao apresentadas para o leitor como uma clarificacao do que significa para nds deixar as coisas aparecerem e ser dativos para seu aparecimento. Muitos fildsofos reivindica- ram que nés podemos aprender a viver sem “verdade” e “racionalidade”, mas este livro tenta mostrar que podemos e devemos exercitar a responsabilidade ea veracidade se almejamos ser humanos. Esbo¢o do livro Este Introducao a fenomenologia geralmente usa a terminologia formula- da por Husserl, que se tornou padrao no movimento. O capitulo | discute a intencionalidade, o tema central na fenomenologia, e explica por que é um importante topico em nossa filosofia e em nossa situagao cultural atual. O capitulo IT desenvolve um exemplo simples do tipo de andlise que a fenome- 12 INTRODUGAO nologia proporciona, para dar ao leitor uma amostra de seu estilo de pensa- mento. O capitulo III examina trés principais temas da fenomenologia: par- tes ¢ todos, identidade em multiplicidades e presenga e auséncia. Estas trés estruturas formais pervadem a fenomenologia, e se estamos alertados de sua presenga, 0 ponto de muitas quest6es pode ser mais facilmente captado. Po- deriamos também reivindicar que enquanto os temas de partes ¢ todos e identidade em multiplicidades (um em muitos) so encontrados em quase todas as escolas filoséficas, o estudo explicito e sustentado de presenga e auséncia ¢ original na fenomenologia. Neste ponto do livro, apés havermos apresentado um numero de and- lises fenomenologicas, torna-se possivel voltar atras e explicar 0 que é a fenomenologia como uma filosofia e mostrar como sua forma de pensar difere da experiéncia pré-filos6fica. Esta definigao inicial de fenomenolo- gia é dada no capitulo IV, no qual “a atitude fenomenolégica” é distinguida da “atitude natural”. Os préximos trés capitulos desenvolvem investigacées fenomenolégi- cas coneretas em diferentes areas da experiéncia humana. O capitulo V exa- mina a percepgao e suas duas variances, meméria ¢ imaginagio. Examina o que chamariamos de transformagio “interna” de nossas percepgdes; além de ver e ouvir coisas, nés também nos recordamos, antecipamos e fantasiamos, e assim fazendo vivemos uma vida consciente particular, e até secreta. O ca- pitulo VI passa a uma transformagio mais ptiblica de nossas percepgdes para palavras, imagens e simbolos. Aqui estamos conscientes das coisas externas que nao sio meramente percebidas, mas interpretadas como imagens ou palavras ou outros tipos de representagées. Finalmente, o capitulo VII intro- duzo tema do pensamento categorial, no qual nao apenas percebemos coi- sas, mas as enunciamos, manifestando nao apenas objetos simples, mas ar- ranjos e estados de coisas. No pensamento categorial nos movemos da expe- rigncia de objetos simples para a apresentacao de objetos inteligiveis. Este capitulo também contém um tratamento importante de significados, senti- dos e proposisées. Esforga-se para responder por “conceitos” e “pensamen- tos” como sendo mais pablicos do que eles freqiientemente sio tomados. Tenta mostrar que os sentidos e proposicées nao sao entidades psicolégicas, mentais ou conceituais. Compreender proposi¢6es e sentidos no modo cor- recto é de uma importancia crucial na discussao da natureza da verdade, espe- cialmente no clima filoséfico gerado pela filosofia moderna. Do capitulo V ao VII, entao, oferecemos uma descricao fenomenoldgica de trés dominios da experiéncia: O campo “interno” da memoria e imaginagao, 0 campo “exter 13 INTRODUGAO A FENOMENOLOGIA no” de objetos percebidos, palavras, imagens e simbolos, e o campo “intelec- tual” de objetos categoriais. © capitulo VIII examina o si ou 0 ego como a identidade estabelecida dentro de todas as intencionalidades previamente descritas. O si é descrito como o agente responsivel pela verdade. Ele é identificado dentro das me- morias e antecipagdes bem como na experiéncia intersubjetiva, e executa os atos cognitivos pelos quais os objetos intelectuais mais elevados, tais como estados de coisas e grupos, so apresentados. O si é quem toma a responsa- bilidade pelos reclamos que faz. A questo do si direciona logicamente, no capitulo IX, ao tépico do tempo e ao tempo interno da consciéncia, 0 qual sudjaz a identidade do si. A temporalidade & a condigio para percepsdes, meméOrias, antecipagoes e para o si que viva nelas. Finalmente, o capitulo X examina o mundo habitado pelo si, o “mundo-da-vida”, dentro do qual ex- perienciamos imediatamente as coisas 4 nossa volta. Este mundo é a funda- Gao sobre a qual estio baseadas as ciéncias naturais modernas. As ciéncias nao provéem uma alternativa para o mundo no qual vivemos, mas surgem e devem ser integradas dentro dele. Este capitulo também discute, muito bre- vemente, o tema da intersubjetividade. © capitulo XI volta-se para aquilo que poderiamos chamar de fenome- nologia da razao. Examina nao sé as varias intencionalidades que exercemos, mas especificamente aquela que se dirige para a verdade das coisas, aquilo a que se poderia chamar “evidéncias”. E especialmente neste capitulo que vere- mos como a fenomenologia considera a mente humana e a razio humana como constituidas para a verdade. O capitulo Xi discutea intuigao eidética, 0 tipo de intencionalidade que descobre caracteristicas essenciais das coisas, caracteristicas sem as quais as coisas nao poderiam ser. A evidencia eidética alcanga nao apenas a verdade factual, mas a verdade essencial. Este capitulo é um desenvolvimento adicional da fenomenologia da razao. Os dois capitulos finais do livro retornam a questao do que éa fenome- nologia. Inicialmente descrita no capitulo IV, pode-se agora dar uma descri- sao mais completa dela. O capitulo XIII destaca a natureza do pensamento filos6fico pelo estabelecimento da distingao entre a reflexto fenomenolégi- cae aquilo a que chamamos reflexao proposicional (um dos temas do capi- tulo VII). Aqui demonstro que a filosofia ou a fenomenologia nao é apenas um esclarecimento do sentido, mas algo que vai mais fundo. As distingdes estudadas neste capiculo destacam mais claramente ambos: que é filosofia e que sio conceitos, sentidos e proposigdes. 14 INTRODUGAO Finalmente, no capitulo XIV, tentamos descrever a fenomenologia por contraste com a modernidade e a pés-modernidade, e acrescentamos uma breve nota sobre como pode ser distinta da filosofia tomista. Definimos a fenomenologia localizando-a na nossa sittiacao histérica presente. A filoso- fia moderna tem dois elementos principais, filosofia politica e epistemolo- gia, e a fenomenologia esta explicitamente enderecada somente ao tiltimo. Contudo, porque concebe a razao humana como orientada para a evidéncia © para a verdade, a fenomenologia pode também se reportar, de um modo indireto, 8s questdes modernas da teoria politica. Se os seres humanos esto especificados pela habilidade de poderem ser verdadeiros, entao a politica e a cidadania tomam um sentido distinto. Considerando a razao como teleologicamente orientada em dire¢ao a verdade, a fenomenologia se assemelha a filosofia tomista, a qual representa acompreensio pré-moderna do ser e do espirito, mas difere do tomismo por nao abordar a filosofia a partir da revelagdo biblica. Ambos, a fenomenologia © 0 tomismo, sao alternativas para o projeto moderno, mas em modos dife- rentes, ¢ contrastando uma com 0 outro adicionamos clareza a fenomenologia como uma forma de filosofia. Este livro introduz o leitor a terminologia eas idéias de um dos princi- pais desenvolvimentos em filosofia no século XX. Este desenvolvimento, a fenomenologia, nao pertence somente ao passado. Ele pode ajudar-nos a lem- brar a nés mesmos, no comego de um novo século e um novo milénio, de coisas das quais nunca podemos nos esquecer inteiramente. Este livro come- cow a partir de uma conversa entre a matematica e a filosofia — possa isto ajudar-nos a cultivar a vida da razio expressa nessas duas aventuras humanas. 15 O QUE E INTENCIONALIDADE, E POR QUE E IMPORTANTE? Ocermo mais proximamente associado com fenomenologia é “intencio- nalidade”. A doutrina nuclear em fenomenologia é 0 ensinamento de que cada ato de consciéncia que nés realizamos, cada experiéncia que nés temos, éintencional: é essencialmente “consciéncia de” ou uma “experiéncia de” algo ou de outrem. Toda nossa consciéncia esta direcionada a objetos. Se nds ve- mos, vemos algum objeto visual, tal como uma 4rvore ou um lago; se nds imaginamos, nossa imaginacao apresenta-nos um objeto imaginario, talcomo um carro que visualizamos descendo a estrada; se nds estamos envolvidos em uma recordacao, recordamos um objeto passado; se nds tomamos parte num julgamento, projetamos uma situacdo ou um fato. Cada ato de cons- ciéncia, cada experiéncia é correlata com um objeto. Cada intengao tem seu objeto intencionado. Podemos notar que este sentido de “intencionar” ou “intengao” nao pode ser confundido com “intengdo” como o propésito que temos em mente quan- do agimos (“ele comprou madeira com a intengao de fazer um abrigo”; “Ela tinha a intengao de terminar a faculdade de direito um ano mais tarde”). O conceito fenomenolégico de intencionalidade aplica-se primariamente a teo- tia do conhecimento, nao a teoria da agao humana. O uso fenomenoldgico da palavra é um pouco desajeitado porque vai contra o uso comum, 0 qual tende a usar “intengao” no sentido pratico; 0 uso fenomenoldgico quase sempre colocara em discussao 0 sentido da intengao pratica como uma implicacao. Contudo, “intencionalidade” e seus cognatos se tornaram termos técnicos em fenomenologia, e nao ha meio de evité-los num debate dessa tradigao filosé- 7 INTRODUGAO A FENOMENOLOGIA fica, Nés temos que fazer o ajuste e entender a palavra para significar princi- palmente intengdes mentais ou cognitivas, e ndo praticas. Na fenomenologia, “intenc&o” significa a relagio de consciéncia que nés temos com um objeto. O predicamento egocéntrico A doutrina da intencionalidade, entio, estarui que cada ato de consci- éncia esta direcionado de algum modo a um objeto de algum tipo. A cons- ciéncia é essencialmente consciéncia “de” algo ou de outrem. Agora, quando somos apresentados a esse ensinamento, e quando dizemos que essa doutri- na é0 nucleo da fenomenologia, podemos bem reagir com um sentimento dedesapontamento. O que é tao importante nessa idéia? Por que a fenomeno- logia faria tal rebulicgo com a intencionalidade? Nao é completamente ébvio a qualquer um que a consciéncia é consciéncia de algo, que a experiencia é experiencia de um objeto de alguma classificagao? Necessitam tais crivialida~ des ser estabelecidas? Elas precisam ser afirmadas, porque na filosofia das trés ou quatro til- timas centenas de anos passados a consciéncia e a experiéncia humanas fo- ram compreendidas de um modo muito diferente. Nas tradig6es cartesiana, hobbesiana e lockiana, que dominaram nossa cultura, nos foi ensinado que quando estamos conscientes estamos principalmente conscientes de nés proprios ou de nossas préprias idéias. A consciéncia é tomada por ser como uma ilusio ow um gabinere fechado; a mente vem em uma caixa. Impressdes e conceitos ocorrem nesse espaco fechado, nesse circulo de idéias e experién- cias, e nossa consciéncia é direcionada a eles, nao direcionada diretamente as coisas “fora”. Nés tentamos alcancar o “fora” fazendo inferéncias: podemos raciocinar que nossas idéias devem ter sido causadas por algo fora de nds, e podemos construir hipéteses ou modelos do que e como as coisas devem ser, mas nao temos nenhum contato direto com elas. Alcangamos as coisas so- mente raciocinando a partir de nossas impressdes mentais, no porque as temos presentes paranés. Nossa consciéncia, primeiramente, e acima de tudo, nao é “de” qualquer coisa mesmo. Ao contrario, estamos tratando do que tem sido chamado um “predicamento egocéntrico”; tudo de que podemos estar realmente certos de inicio é da existéncia de nossa propria consciéncia e dos estados dessa consciéncia. Essa compreensao da consciéncia humana é reforcada pelo que sabe- mos do cérebro e do sistema nervoso. Parece inquestionivel que cudo que é 18 (© QUE € INTENCIONALIDADE E POR QUE E IMPORTANTE? cognitivo deve acontecer “dentro da cabega”, e que tudo o que seria possivel contatar diretamente sao nossos proprios estados cerebrais. Uma vez ouvi- mos um famoso cientista especialista em cérebro dizer numa aula, quase em pranto, que apés tantos anos de estudo do cérebro ele ainda nao poderia explicar como “aquele 6rgio abacate-colorido dentro de nossos crinios” podia chegar além de si mesmo e alcancar 0 mundo. Poderiamos nos aventurar a dizer que quase todos os que freqiientaram o colégioe tiveram aulas de fisio- logia, neurologia ou psicologia teriam a mesma dificuldade. Esses entendimentos filos6fico ¢ cientifico da consciéncia tornaram-se bastante difundidos em nossa cultura, e 0 predicamento egocéntrico forsa~ nos para dentro deles e causa-nos grande desconforto. Sabemos instintiva- mente que nao estamos presos em nossa propria subjetividade, estamos cer- tos de que vamos além de nossos estados cerebrais e mentais internos, mas nao sabemos como justificar essa convicgio. Nao sabemos como mostrar que nosso contato com 0 “mundo real” nao é uma ilusdo, nio é uma mera projesao subjetiva. A maioria de nés nao tem idéia de como conseguimos sait de nés mesmos, ¢ provavelmente tratamos esse assunto simplesmente ignorando-oc esperando que ninguém nos pergunte sobre ele. Quando renta- mos pensar sobre a consciéncia humana, comesamos coma premissa de que estamos inteiramente “dentro”, ¢ ficamos enormemente surpresos de como podemos sempre alcangar 0 “fora” Se estamos privados da intencionalidade, se nao temos um mundo em comum, entio nao entramos na vida da razao, da evidéncia e da verdade. Cada um de nés volta-se para seu proprio mundo privado, e na ordem pré- tica fazemos nossas proprias coisas: a verdade nao nos faz nenhuma deman- da. Novamente, sabemos que esse relativismo nao pode ser a histéria final. Nés argitimos com outrem sobre 0 que poderia ser feito e sobre o que so os. fatos, mas filos6fica e culturalmente encontramos dificuldade para ratificar nossa aceitagao ingénua de um mundo comum e de nossa habilidade para descobrir e comunicar o que ele é. A negacio da intencionalidade tem como sua correlata a negacio da orientagao da mente para a verdade. Uma expressao vivida do predicamento egocéntrico pode ser encontra- da no romance Murphy, de Samuel Beckett! Passado um tergo do livro, no capitulo 6, Beckett interrompe sua narrativa para providenciar “uma justifi- cago para a expresso: ‘a mente de Murphy”. Ele diz que nao tentara descre~ ver “esse aparato como ele realmente era”, mas 6 “o que sentia e imaginava 1. New York, Grove Weidenfeld, 1957. Reproduzido com permissao da editora. 19 INTRODUGAO A FENOMENOLOGIA ser em si mesmo”. A imagem que ele apresenta é aquela que julgamos ser co- mum também a todos: “a mente de Murphy é imaginada em si mesma como uma grande esfera oca, hermeticamente fechada ao universo exterior”. Aqui a mente, com seu “mundo intramental”, | 0 fora, o “mundo extramental”, um. isolado do outro. Entretanto, a mente nao é empobrecida por ser tao confina- da; mais exatamente, tudo no universo exterior pode ser representado no inte- rior, eas representacdes sao, de acordo com Beckett, cada uma “virtual, ou real, ou virtual nascendo do real, ou real caindo no virtual”. Essas partes da mente sao diferenciadas umas das outras: “a mente sence sua parte real acima e bri- Ihante, sua parte virtual abaixo e desvanecendo na escuridao”. A mente nao esta somente colocada acima de e contra 0 universo ou 0 mundo real; esté também colocada acima de e contra 0 corpo que é outra parte de Murphy: “Assim, Murphy percebe-se dividido em dois, um corpo e uma mente”. De uma maneira ou de outra, 0 corpo e a mente interagem: “eles tém intercurso, aparentemente, caso contrario ele nao teria sabido que eles tinham algo em comum. Mas ele sente sua mente ser uma substancia- fechada e nio compreende por meio de que canal 0 intercurso era efetuado nem como as duas experiéncias vieram a se sobrepor”. O isolamento da mente do corpo vincula um isolamento da mente do mundo: “Ele estava dividido, uma parte dele nunca deixa essa camera mental, que imagina a si propria como uma esfera cheia de luz tendendo a escuridao, porque nao ha saida”. Como 0 corpo poderia influenciar a mente, ou a mente 0 corpo, permanecia um mistério absoluto para Murphy: “O desenvolvimento do que viu como conspiracao entre esses estranhos absolutos permanecia para Murphy tao ininteligivel como a telecinese ou 0 Jarro de Leyden, e de pouco interesse”. © predicamento cartesiano que Beckett descreve, com a mente tomada como essa grande esfera oca, cheia-de-luz, mas matizando-se rumo a escuri- dao, fechada para ambos, 0 corpo eo mundo, éa situagao desafortunada na qual a filosofia encontra a si mesma em nosso tempo. E a situagSo cultural, a aurocompreensio humana, na qual a filosofia deve comecar. Muitos de nés nao sabemos como evitar que a nossa propria compreensao da mente seja do modo como o Murphy de Beckett compreende a dele. Esse dilema epistemol6gico é 0 alvo da doutrina da intencionalidade. A publicidade da mente Nao € de todo ocioso, contudo, trazer a intencionalidade ao primeiro plano e fazer dela o centro da reflexio filos6fica. Nao é trivial dizer que a 20 (© QUE € INTENCIONALIDADE E POR QUE E IMPORTANTE? consciéncia é “consciéncia de” objetos; ao contrario, essa declarasaio vai con- tra muitas crengas comuns. Uma das grandes contribuicdes da fenomenolo- gia foi ter rompido com o predicamento egocéntrico, ter dado um xeque- mate na doutrina cartesiana. A fenomenologia mostra que a mente é uma coisa ptiblica, que age e manifesta a si mesma publicamente, nao apenas dentro de seus préprios limites. Tudo é externo. As nogdes mesmas de um “mundo intramental” e um “mundo extramental” sio incoerentes; elas si0 exemplos do que Ezra Pound chamou de “codgulos-de-idéia” (idea-clots). A mente e o mundo sao correlatos entre si. Coisas aparecem para nés, coisas verdadeiramente descobertas, enés, de nossa parte, revelamos, para nds mes- mos e para os outros, o modo como as coisas sao. Dada a configuragao cul- tural na qual a fenomenologia nasceu, e na qual continuamos a viver, um foco na intencionalidade nao é desprovido de grande valor filos6fico. Discu- tindo a intencionalidade, a fenomenologia ajuda-nos a reivindicar um senti- do ptiblico do pensamento, do raciocinio e da percepgao. Ajuda-nos a reas- sumir nossa condigo humana como agentes da verdade. Além de chamar nossa atengio para a intencionalidade da consciéncia, a fenomenologia também descobre e descreve varias estruturas diferentes na intencionalidade. Quando a mente é tomada no modo cartesiano ou lockiano, como uma esfera fechada com seu circulo de idéias, o termo “consciéncia” é usualmente considerado ser simplesmente univoco. Nao ha estruturas dife- rentes dentro da consciéncia; ha apenas consciéncia, pura e simples. Nota- mos quaisquer impressdes nascidas em nés, ¢ entio as arranjamos dencro de juizos ou proposicdes que tentam nomear o que esta “ld fora”. Mas para a fenomenologia a intencionalidade é altamente diferenciada. Ha tipos dife- rentes de intencionalidades, correlacionados com tipos diferentes de obje- tos. Por exemplo, nds executamos intencionalidades perceptuais quando vemos um objeto material ordinario, mas devemos intencionar pictorialmente quando vemos uma fotografia ou uma pintura. Devemos mudar nossa in- tencionalidade; tomar algo como uma fotografia é diferente de tomar algo como um simples objeto. Fotografias sio correlatas com intencionalidade pictorial, objetos perceptuais sao correlatos com intencionalidade perceptual. Ainda outro tipo de intencionalidade esta agindo quando tomamos algo por ser uma palavra, outro quando recordamos algo, e outros novamente quan- do fazemos juizos ou classificamos coisas em grupos. Esses e muitos outros tipos de intencionalidade necessitam ser descritos e diferenciados uns dos outros. Além disso, as formas de intencionalidade podem ser entrelacadas: ver algo como uma forografia envolve, como um fundamento, que também 21 INTRODUGAO A FENOMENOLOGIA a tenhamos como uma coisa percebida. A consciéncia pictorial est assenta- da sobre a perceptual, como a fotografia que vemos assentada sobre um te- cido ou um pedago de papel, que poderia também ser visto simplesmente como uma coisa colorida. Outras intencionalidades ainda podem ser distinguidas, tais como os tipos que ocorrem quando pensamos sobre o passado. Que classe de intencio- nalidade é exercida quando, digamos, arquedlogos encontram potes, cinzas e trapos de roupas e comecam a falar sobre pessoas que viveram num dado lugar sete séculos atras? Como esses objetos, esses potes e essas cinzas apre- sentam para nos os seres humanos? Como devemos “toma-los”, de forma que eles se enquadrarao naquele modo? Que classes de intengoes sao corre- latas com descobrir e interpretar algo como um fossil? Que classes de inten- g6es operam quando falamos sobre protons, néutrons e quarks? Elas nao sao do tipo que operam quando vemos retratos ou bandeiras, nem do tipo de quando vemos algo como uma planta ou um animal; alguns dos dilemas associados 8 fisica de particulas surgem porque nés assumimos que inten- cionamos entidades subatémicas da mesma forma que intencionames bolas de bilhar. Separar e diferenciar todas essas intencionalidades, como também 08 tipos especificos de objetos correlatos com elas, é o que é feito pelo que a filosofia chamou fenomenologia. Descrigdes como estas ajudam-nos a en- tender o conhecimento humano em todas as suas formas, e também nos ajudam a entender os muitos modos em que nds podemos estar relaciona- dos ao mundo em que vivemos. O termo “fenomenologia” é uma combinacao das palavras gregas phainomenon e logos. Significa a atividade de dar conta, fornecendo um logos, de varios fendmenos, dos varios modos em que as coisas podem aparecer. Por fendmenos (phenomena) nds queremos dizer, por exemplo, retratos em vez de simples objetos, eventos lembrados em vez de antecipados, objetos imaginados em vez de percebidos, objetos matemiticos como triangulos e formas em vez de seres vivos, palavras em vez de fosseis, outras pessoas em vez de animais nao-humanos, realidade politica em vez da econémica. To- dos esses fendmenos podem ser explorados quando percebemos que aque- la consciéncia é consciéncia “de” algo, que nao esta bloqueada dentro de seu proprio gabinete. Em contraste com a prisio espasmédica do cartesia- nismo, do hobbesianismo e da filosofia do conhecimento lockiana, a feno- menologia liberta. Ela nos leva para fora e restaura o mundo que estava perdido pelas filosofias que nos aprisionavam dentro de nosso predicamen- to egocéntrico. 22 (© QUE € INTENCIONALIDADE E POR QUE E IMPORTANTE? A fenomenologia reconhece a realidade e a verdade dos fendmenos, as coisas que aparecem. Nao é 0 caso, como a tradigao cartesiana nos teria feito crer, que “serum retrato” ou “ser um objeto percebido” ou “ser um simbolo” esta s6 na mente. Eles sio modos nos quais as coisas podem ser. O modo como as coisas aparecem é parte do ser das coisas; as coisas aparecem como elas so, ¢ elas sio como elas aparecem. As coisas ndo apenas existem; elas também manifestam a si mesmas como 0 que elas sao. Os animais tém um modo de se manifestar diferente do das plantas, porque animais sao diferen- tes de plantas em seu ser. Os retratos tém um modo de se manifestar dife- rente do dos objetos lembrados, porque seu modo de ser é diferente. Um retrato esta 14 fora na tela ou no painel de madeira; um saudar esta nos bra- gos se agitando ld fora entre a pessoa que satida ea pessoa saudada. Um fato é onde os ingredientes do fato estao localizados: 0 fato de que a grama esta molhada existe na grama molhada, nao em minha mente quando digo as palavras. Minha mente em ago € 0 apresentar, para nés mesmos e para ou- tros, da grama como estando molhada. Quando fazemos juizos nés enuncia- mos a apresentagio de partes do mundo; nés nao organizamos simplesmen- te idéias ou conceitos em nossas mentes. Alguém poderia objetar: “O que dizer de alucinagdes e enganos? As ve- zes as coisas no sio como elas parecem. Podemos achar que vemos um ho- mem, mas damos a volta e é s6 um arbusto; podemos achar que vemos um punhal, mas nada esta ld. Obviamente, o homem eo punhal esto apenas em nossa mente; nao isto que mostra que tudo esta na mente?” De modo al- gum; o ponto é simplesmente que aquelas coisas podem parecer com outras coisas, e as vezes pode parecer que estamos percebendo quando realmente nao estamos. Uma noite, alguns anos atras, no inverno, eu dirigia em diregio a minha garagem evi uns poucos “pedacos de vidro” na calgada. Julguei que alguém deveria ter quebrado uma garrafa l4. Estacionei meu carro perto na estrada, pretendendo voltar na manhi seguinte para limpar a calgada. Quan- do retornei no dia seguinte, achei s6 algumas pogas da agua e pedacos peque- nos de gelo; 0 que eu havia visto como vidro era de fato sé gelo. Nessa expe- riéncia, minha visdo inicial e minha corregao posterior nao foram elaboradas dentro do gabinete de minha mente; nao era o caso de que meramente em- baralhei minhas impressdes e conceitos, ou que compus uma nova hipdotese para explicar as idéias que tive. Ao contrario, eu me relacionava ao mundo em modos diferentes, e essas relagdes eram baseadas no fato de que, sob al- gumas circunstancias, gelo pode parecer com vidro. Tudo, inclusive 0 “vi- dro” e o gelo, é ptiblico. Os enganos sao algo ptiblico, e assim também o sao 23

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