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O
SAMBA,
NA
REALIDADE...
Utopia da ascensão
social do sambista
2017
Copyright© Edições Malungo.
Livros pra pensar Ltda. 2012.
Editor:
Rolf Malungo de Souza
Coeditora:
Cris Albuquerque
Revisora:
Rosiane Rodrigues
Capa e Designer:
Fabio da Silva
Lopes, Nei
L854s O Samba na realidade : a utopia da ascensão social do
sambista / Nei Lopes
Bibliografia
1. Escolas de samba – Aspectos sociais 2. Escolas de samba –
História I. Título II. Série
ISBN: 978-85-94296-00-9
Sumário
Prefácio da primeira edição
O samba na realidade .....................................................5
35 anos – Nei Lopes – Mensajero Ancestral ............. 7
Quesitos ......................................................................... 15
Vaga esperança ............................................................. 17
Introdução .................................................................... 19
Pedra do Sal e Cidade Nova ....................................... 23
Ameno e Deixa Falar ................................................... 29
De Paulo a Candeia ...................................................... 34
O samba-enredo ........................................................... 38
Evoluções e fantasias ................................................... 43
A ditadura dos “carnavalescos” ................................. 47
Passistas e vedetes ........................................................ 56
O papel da imprensa .................................................... 59
Papai estado .................................................................. 62
Samba, rádio e disco .................................................... 66
Estudo de caso ............................................................. 70
O samba na realidade .................................................. 74
Anexos ........................................................................... 79
Posfácio Desapontadíssimo........................................ 93
Bibliografia .................................................................... 95
3
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
O SAMBA NA REALIDADE
Sérgio Cabral
6
35 ANOS
NEI LOPES
MENSAJERO ANCESTRAL
9
Para Tia Zica e Maurício Theodoro da Silva,
que me mostraram o samba.
À memória de Candeia.
11
“Ora, eu sou um estudioso da cultura popular que se preo-
cupa em não ver misturada a cultura brasileira, autêntica, com
a cultura superposta que nos chega da importação de tecnologia
aplicada na área do lazer. Eu fui levado a uma posição radical
pela radicalização que vem de fora, que faz com que o brasileiro
seja minoria no Brasil (…)
(ISTO É, 9.8.78)
13
QUESITOS
(Wilson Moreira e Nei Lopes)
Iaiá, ioiô
Samba exige muito amor
Amizade e devoção.
Vamos empunhar nossa bandeira
Levantar essa poeira
Sem tirar os pés do chão.
15
VAGA ESPERANÇA
(Dauro do Sangueiro e Nei Lopes)
É a “evolução”
É o samba pagando seu alto tributo.
A cidade na festa e o morro de luto
Pois algo morreu e não se sabe o quê.
Só ficou a lembrança
21
PEDRA DO SAL E
CIDADE NOVA
A partir da segunda metade do século passado2,
formava-se no atual Morro da Conceição, no Rio,
uma verdadeira colônia de negros e mulatos baianos
emigrados. Ali, na localidade então conhecida como
Pedra do Sal, essa colônia — sob a liderança incontes-
te do músico, dançarino e carnavalesco Hilário Jovino
Ferreira (1855(?)-1933) — desenvolveu manifestações
trazidas da terra de origem, fundando afoxés e ran-
chos folclóricos, como o Dois de Ouros, para sair no
carnaval.
Pouco depois, o raio de atuação da colônia se des-
locava até a Cidade Nova, região que se estendia ao
longo da atual Avenida Presidente Vargas, no trecho
compreendido entre a Estação D. Pedro II (Central
do Brasil) e o trevo dos Pracinhas.
Sobre a colônia, lembrava João da Baiana:
“Tia Aciata era avó de Bucy Moreira e Tia Amélia, a
mãe de Donga. Eram todas baianas. Umas moravam
na Rua Senador Pompeu e outras na Rua da Alfânde-
ga e Rua dos Cajueiros3. Tia Aciata morou primeiro
na Rua da Alfândega, depois mudou-se para a Rua
São Diogo, que é a atual General Pedra4. Daí é que foi
para a Rua dos Cajueiros e posteriormente para a Rua
2
N.E.: Seculo XIX.
3
Rua dos Cajueiros: confluência da Rua Senador Pompeu com a Rua
Barão de São Félix, próximo à Central do Brasil.
4
Rua General Pedra: rua próxima ao local onde se situa hoje o prédio
novo da RFFSA, quase no sopé do Morro da Favela. 23
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
28
AMENO E DEIXA FALAR
O carnaval das camadas populares foi o caldeirão
onde se temperou o samba urbano do Rio. A prin-
cípio servindo como mera explosão de sentimentos
(entrudo, zé-pereira etc), esse carnaval passou, a par-
tir de determinado momento, a servir também como
veículo de manifestações artísticas no sentido amplo,
como espetáculo, enfim. E o rancho carnavalesco
Ameno Rosedá (1907-1941) foi quem primeiro le-
vou o carnaval-espetáculo às últimas consequências,
pois nasceu para representar “óperas ambulantes”,
inclusive com coro e orquestra, buscando para tanto
a contribuição da fina flor dos artistas e intelectuais da
época, por pretender deliberadamente (e numa clara
busca de ascensão social por parte da maioria de ne-
gros e mulatos que o compunham) uma ruptura com
as tradições populares.
Jota Efegê, o grande historiador do Ameno — ne-
gro ele próprio —, é bastante elucidativo a respeito:
“Fugindo do tradicionalismo que norteava outras agre-
miações congêneres, pretendendo sair do africanismo
ou luso-africanismo orientador dos cordões [o Ameno]
aceitou apenas, como básica, a forma processional dos
pastoris, da qual derivaram os ranchos. (…).
7
Segundo Tomas Skidmore — professor da Universidade de Wisconsin,
em artigo na revista Argumento, out. 1973 —, “a ideologia do ‘branque-
amento’ levou os brasileiros a promover (sic) o ‘melhoramento eugê-
nico’, através de ações governamentais como a promoção da imigração
branca e a supressão, de tempos em tempos, de resíduos culturais afri-
canos”. E diz mais o professor americano: “Em material de imigração, os
brasileiros muitas vezes chegaram ao ponto de tornarem lei sua prefe-
rência por brancos. Em 1890, depois da abolição final, um decreto enco-
rajando a imigração excluía especificamente ‘nativos da Ásia e da África’.
8
Sobre a repressão policial ao samba, veja este depoimento de “um
mulato-escuro, 87 anos, compositor e músico carioca”, a João Baptista
Borges Pereira em Cor, profissão e mobilidade — o negro e o rádio em
São Paulo. São Paulo, Pioneira, 1967, p. 215-6:
“Minha mãe sempre fazia festa para reunir os meus colegas e amigos de
origem. A festa durava às vezes dias e dias. Tinha comes e bebes e não
faltava o baile na sala de visitas, o samba-raiado na sala dos fundos e a
batucada no terreiro. Para fazer a festa, minha mãe ia buscar o alvará na
30 polícia: negro só se reunia para brigar, para fazer malandragem. Mesmo
Nei Lopes
33
De PAULO a CANDEIA
Sem sombra de dúvida, o objetivo inicial dos sam-
bistas era, tanto quanto divertimento, conseguir status
e aceitação social. Tanto que grande parte dos sam-
bistas masculino até os anos 50 desfilava de terno. E,
até bem pouco tempo, o traje completo mais bengala
e chapéu coco foram traços marcantes da indumenta-
ria carnavalesca dos sambistas tradicionais, principal-
mente nas “comissões de frente”.
Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Porte-
la, (1901-1949) era, ao que consta, e apesar de lus-
trador de profissão, um sambista que se esforçava
em vestir-se bem segundo os padrões burgueses
de sua época. E essa sua preocupação era o refle-
xo exterior de todo um pensamento que fez dele
o pioneiro, entre os sambistas pioneiros, da busca
de uma aceitação social para o sambista, como se
pode deduzir desta declaração de Alvaiade, velho
compositor da Portela:
“Ninguém podia se apresentar com chinelo charlotte
porque o Paulo não gostava. O pessoal do Estácio, por
exemplo — e isso não é querer falar mal, mas falar
a verdade —, apresentava-se muito bem, com ternos
caríssimos. Mas de chinelo no pé e lenço no pescoço. O
pessoal da Portela, não. A gente tinha que andar de sa-
pato e gravata. O Paulo dizia assim: ‘Quero todo mun-
do com o pé ocupado e pescoço também.’ Quer dizer:
sapato e gravata. Por sorte, a nossa rapaziada quase
não bebia. A gente era diferente das outras escolas.”
34 (Cabral, 1976).
Na opinião de seus contemporâneos, Paulo foi o
“professor” por excelência, aquele que procurou falar
a mesma linguagem da imprensa e das autoridades.
Compositor inspirado, Paulo não esqueceu as pre-
ocupações sociais num sentido mais amplo, haja vista,
pelo menos, a letra deste samba:
9
Pasquim, Rio de Janeiro, 24 nov. 1978. 37
O SAMBA-ENREDO
Saindo à rua, organizado em escola para ser aceito
pelo Sistema, o samba veio incorporar, deglutir e ree-
laborar as manifestações carnavalescas então existen-
tes: a instrumentação, primeiro à base de cavaquinhos
e violões, tinha também elementos de percussão dos
cordões e dos zé-pereiras; a forma processional —
bem como as figuras do baliza e da porta-estandarte
(depois porta-bandeira) — veio dos ranchos que, por
sua vez, já as tinham ido buscar nos “ternos” nordes-
tinos; a denominação “pastora” veio evidentemente
dos “pastoris”, e por aí afora.
Informa Edison Carneiro:
“Os grupos tinham, naturalmente, no começo, uma uni-
dade precária — as mulheres preferiam fantasiar-se de
baianas, os homens trajavam pijamas de listras, maca-
cões ou camisas de malandro, o chapéu de palha caído
sobre um dos olhos, sem ordem nem lei …
42 11
O Globo, Rio de Janeiro, 8 fev. 1975.
EVOLUÇÕES E FANTASIAS
Sempre se entendeu por evolução, em escola de
samba, a própria e espontânea coreografia das alas.
Caminhando em fila indiana, essas alas serpenteavam
e rodopiavam pela pista de desfile, com movimentos
uniformes de braços e pernas, formando desenhos
que corriam por conta da inventiva do “puxador”, do
chefe de ala. O fato de terem que desenvolver essa
coreografia sempre em sentido progressivo, para a
frente, é que parece ter dado à dança a denominação
que perdura até hoje — “evolução” — que, segundo
a definição oficial,12 significa “originalidade na core-
ografia, precisão, agilidade e beleza num movimento
sempre progressivo”.
Com a influência dos filmes musicais norte-ameri-
canos, alguns “puxadores” de ala começaram a sofisti-
car a coreografia de seus grupos, introduzindo passos
marcados em meio à evolução. E isto se deve ao fato
de grande parte das alas, nos anos 50, ser constituí-
da de exímios dançarinos, principalmente de suingue
(swing) — uma moda entre os crioulos cariocas da
época, assim como cabelo esticado, calça “boquinha”
e jaquetão “tipo saco”, tudo made in Harlem.
Os pioneiros desse fenômeno foram, ao que pare-
ce, os integrantes da “Ala dos Impossíveis”, da Porte-
la, que influenciaram toda uma geração de sambistas.
Isso, entretanto, nada tem a ver com a chamada “core-
ografia bastarda” introduzida por Mercedes Baptista
12
Conforme instruções elaboradas pela Riotur e publicadas no Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 24 fev. 1974. 43
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
44 13
O Globo, Rio de Janeiro, 8 fev. 1975.
Nei Lopes
46
A DITADURA DOS
“CARNAVALESCOS”
Os primeiros enredos das escolas eram de livre
criação: falavam da natureza, do próprio samba, da
realidade dos sambistas, enfim.
Com a oficialização dos concursos, à época do Es-
tado Novo, veio a obrigatoriedade de se exaltar ufa-
nisticamente o que se acreditava ser o único sumo da
nacionalidade brasileira: personagens e fatos históri-
cos. Os enredos, então, passaram a contar a História
oficial — “a historiografia da elite oligárquica, empenhada
na valorização dos heróis da raça branca e representada pelo
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838”
(Mota, 1978: 28) — abordando exaustiva, nostálgica
e subservientemente temas como “O último baile da
ilha Fiscal”, “Princesa Isabel”, “A epopéia dos Bandeirantes”,
“Riquezas do Brasil” etc.
Essa abordagem era fruto da própria visão política
do povo brasileiro, a quem a História sempre foi mos-
trada de um modo folhetinesco, maniqueísta e dirigi-
do. E a tentativa de mudança desse quadro (uma das
poucas contribuições positivas da intelectualidade ao
samba) só veio em 1959. Nesse ano, o Salgueiro trazia
para a Avenida, com “Debret”, negros falando de coi-
sas negras, pobres falando de coisas de pobres, o que
motivou uma sequência de enredos como “Quilombo
dos Palmares”, “Xica da Silva”, “Alejadinho”, “Chico
Rei” e “História da Liberdade no Brasil”, descom-
promissados, tanto quanto possível, com a História
oficial. 47
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
48 15
Veja, Rio de Janeiro, 1º fev. 1978.
Nei Lopes
Refrão:
Eh credo em cruz eh eh ave maria,
As pretas velhas se benzem
Me arrepia
50 Ôôôôô
Nei Lopes
2.a Parte
O rei menino Luiz XIII assistiu
Quando Maria de Medici se decidiu
Fazer novo reino de França e que pretendia
O reizinho ficou encantado com o que ouvia
Das matas fez o salão dos espelhos
Dos candelabros imensos palmeirais
Da prata do ouro ele fez o tronco imperial
De gente índia emplumada a nobreza real
Na imaginação do rei mimado
Viu sua mãe uma deusa do reino encantado
Refrão
3.a Parte:
Na praia dos lençóis na areia assombração
Um touro negro coroado é Dom Sebastião
É meia-noite na carruagem
Nhá Jança inicia sua viagem
Os azulejos que cobrem a cidade
São jóias que ela usou na mocidade
E a carruagem que maravilha
É a serpente de prata que rodeia a ilha
Refrão.”
16
O Globo, Rio de Janeiro, 4 mar. 1979. 53
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
17
D. A. Benjamim Baptista/Escola de Medicina e Cirurgia da Fefieg. O
samba saúda o povo e pede passagem. Rio de Janeiro, 1974. Mimeogr. 55
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
PASSISTAS E VEDETES
Até bem pouco tempo, a atuação das mulheres nas
escolas era muito importante em termos de harmonia
(segundo a definição oficial, “componentes da escola
diante do ritmo, do canto e da evolução”). A elas cabia
a maior participação no canto e na dança, quer nas
alas de baianas, quer nas simples alas femininas. Tanto
que, até hoje, respeitando-se um velho costume, dan-
çar no terreiro (quadra) das escolas menos infiltradas
é privilégio e obrigação das pastoras, das mulheres
enfim, numa interessante sobrevivência da tradição
africana observada também no candomblé.
Vestidas geralmente de “dama antiga” — como os
enredos propiciavam — as pastoras davam, até bem
pouco tempo, um toque realmente característico ao
visual das escolas.
Quanto aos homens, durante certa época, papel
destacado no espetáculo coube apenas aos mestres-
-sala e aos “passistas”, aos que solavam “brincando
no pé”, alguns deles, tendo inclusive chegado à pro-
fissionalização (embora mal remunerados) através de
shows como os de Carlos Machado e Silveira Sam-
paio, ou através de grupos formados por Ruço do
Pandeiro, Herivelto Martins, Ataulfo Alves, e outros.
Antes disso, o rádio e a indústria do disco já davam
oportunidade de trabalho a alguns músicos de Esco-
la, como Bide, Maçal, Raul Marques, Bucy Moreira,
e outros. A consciência desse canal de ascensão fez
aparecerem, então, os conjuntos de passistas-ritmis-
tas-cantores-malabaristas (que, embora revivendo o
56 estereótipo do “negro-careteiro” criado pelo teatro e
difundido pela televisão), dos quais um dos poucos
bem sucedidos, em termos comerciais, foi o “Origi-
nais do Samba”.
Saturada, entretanto, essa fórmula, os donos do
show-business passaram a apelar mais para o elemento
feminino, a visar mais a plástica que o talento no dan-
çar. A tudo isso veio juntar-se a televisão e o advento
paulatino de uma nova moral sexual. Aí, então, o que
se viu foi o seguinte: as “damas antigas” deram lugar
às “vedetes”, com plumas, apetês, tangas e pernas de
fora; o pé foi relegado a segundo plano (mesmo pela
impossibilidade de se sambar com saltos altíssimos,
de plataforma, num arremedo dos tempos gloriosos
do teatro de revista), face à importância do rebolado,
do “bole-bole”, muito mais sensual e sugestivo.
Um grande exemplo disto pôde ser visto no desfile
do Salgueiro em 75: Paula, a grande sambista — uma
das pioneiras entre as passistas-solistas — que des-
lumbrava o público com seus passos à moda antiga
e baiana, cheios de “muidinhos”, “machucadinhos”,
“bolimbolachos”, requebros (e não rebolados), negaças
e criatividade, passou despercebida aos fotógrafos e
às cameras de TV. Os responsáveis pela arrumação
da Escola certamente não sabiam onde colocar aquela
matrona de saias compridas que desfilou, então, em
meio ao tumulto de uma ala de “estudantes”, enquan-
to que as “vedetes” vinham em posição bem desta-
cada.
Outro fato nessa crescente participação de vedetes
ou pretensas vedetes foi a inovação trazida ao desfile
pela Imperatriz Leopoldinense: há alguns anos, essa
escola resolveu mostrar uma comissão de frente (nor- 57
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
58
O PAPEL DA IMPRENSA
A figura do “cronista carnavalesco” é coisa bem an-
tiga. E, desde os tempos do Ameno Resedá, a imprensa,
como não poderia deixar de ser, representa uma parcela
bastante ponderável no processo de transformação por
que passaram as agremiações de carnaval e seus com-
ponentes na sua busca de status e aceitação.
Acontece, entretanto, que os chamados “cronistas
carnavalescos” era, de um modo geral, profissionais
perfeitamente identificados com a vida das socieda-
des, dos ranchos e das primitivas escolas. Assim, nos
parece que não foram estes os que mais contribuíram
para as transformações, e sim a imprensa mais geral.
De fato, a primeira tendência da imprensa não-es-
pecializada foi, atendendo ao consenso geral, conside-
rar o samba como “caso de polícia”. Esta tendência,
que veio até quase os nossos dias, pode ser atestada
por este trecho de uma reportagem de O Radical logo
depois do carnaval de 1945, a propósito de um con-
flito envolvendo sambistas ocorrido no Campo do
Vasco (ressalte-se que O Radical foi na ocasião o único
jornal a vir em defesa do pessoal do samba):
“Aquilo que aconteceu domingo último no estádio do
C.R. Vasco da Gama foi um acontecimento banal na
vida da cidade. Mas como os seus personagens vieram lá
de cima do alto dos morros cariocas, com as suas cuícas,
os seus tamborins, as suas pastoras e sua bossa, o fato
cresceu em proporções e deu margem aos mais desairosos
comentários contra essa gente boa e simples, cuja maior
desgraça é ser pobre. Tudo se disse, então, de mau e pe-
59
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
65
SAMBA, RÁDIO E DISCO
A criação musical foi um dos poucos caminhos
através do qual alguns sambistas conseguiram real-
mente uma expressiva mudança de status econômico e
social. Mas muito embora já na década de 20, compo-
sitores de escola de samba tenham conseguido pene-
trar no mundo do rádio e do disco — principalmente
vendendo seus sambas ou dando parceria a autores e
intérpretes consagrados — isto é fato novo.
Parece certo que a primeira gravação comercial de
um samba-enredo foi feita em 1946. De fato, nesse
ano, o cantor Gilberto Alves gravava em selo Odeon
o samba “Natureza Bela do Meu Brasil”, de Henrique
Mesquita e (no disco) Felisberto Martins, que servira
de tema aos Unidos da Tijuca dez anos antes (Tinho-
rão, 1974: 173).
Em 1949, o Império Serrano desfilava com
“Exaltação a Tiradentes”, de Mano Décio, Pentea-
do e Estanislau Silva, samba que, gravado, tornou-
-se um verdadeiro clássico dos sambas-enredo, não
tanto pela qualidade (Cartola e Carlos Cachaça, por
exemplo, já tinham feito o “Vale do São Francisco”,
em 1948), mas principalmente pelo “exotismo primi-
tivo” tão ao gosto das classes emergentes em todos
os tempos.
Em 1956, o Salgueiro gravava pela Todamérica o
primeiro LP com sambas compostos e interpretados
por compositores, ritmistas e cantores de uma esco-
la de samba. E algum tempo depois Emilinha Borba
gravava o samba-enredo salgueirense de 1959, “Brasil
66 Fonte das Artes”, de Djalma Sabiá.
Nei Lopes
69
ESTUDO DE CASO
F. nasceu em 1942 num subúrbio carioca, dentro
de uma família negra e operária. Seu pai era artífice da
seção de obras de uma repartição federal e sua mãe,
dona-de-casa.
Caçula dessa família de doze filhos, F. cresceu num
ambiente absolutamente musical. Mas a música que se
fazia em sua casa era basicamente choro, já que sam-
ba ainda era, segundo a ótica de sua família, coisa de
“gente de morro”.
Uma primeira união de seu pai deu-lhe, entretanto,
uma “tia” que era compositora da escola de samba
Paz e Amor (de Bento Ribeiro) e, depois, da Porte-
la. Essa “tia” ministrou-lhe as primeiras “lições” de
samba, criando um bloco infantil onde F. era baliza
(hoje mestre-sala) e cuja bateria era composta de ins-
trumentos feitos, pelas próprias crianças, de latas de
manteiga (de 10 e 20 kg) “encouradas” com camadas
de papel de cimento.
Com dez anos de idade, F. viu pela primeira vez
uma escola de samba em desfile. Era a Portela de
sua “tia”, cantando um samba-enredo do hoje famo-
so Manacéa (Manassés de Andrade, ilustre autor de
“Quantas Lágrimas”, sucesso da cantora Cristina).
Esse desfile se incorporou às mais fortes impressões
de F. e permaneceu sempre em sua lembrança. Tanto
que, daí, ele resolveu que um dia ingressaria numa
escola de samba, resolução que durante muito tempo
contou com a total desaprovação de sua família.
Em 1953, F, iniciou seu curso ginasial, concluído
70 (era o primeiro da família a atingir tão “alto” grau) em
Nei Lopes
73
O SAMBA NA REALIDADE
Hoje, o samba na realidade, é um símbolo nacio-
nal. Ja vai longe, felizmente, o tempo em que sambista
era sinônimo de vagabundo, desclassificado, marginal.
Para isto contribuíram diversos fatores, como a ine-
guável criatividade da maioria dos produtores desse
tipo de arte e o estágio econômico a que chegou a so-
ciedade brasileira, onde o samba é um produto como
outro qualquer.
Só que a cultura negra no Brasil ainda é matéria-
-prima (ao contrário, por exemplo, da cultura oriental
cujos jiu-jitsu, judô, karatê, macrobiótica, igreja mes-
siânica, etc., já chegam aqui na condição de produ-
tos perfeitamente industrializados e embalados para
o consumo redendo frutos consideráveis aos seus
produtos). Assim, sua exploração e seu consumo têm
sido feitos de maneira absolutamente predatória. Haja
visto o que vem ocorrendo com os cultos religiosos, a
culinária, por exemplo, e o samba de um modo geral.
Produto tipicamente brasileiro mas com fortes
componentes negro-africanos, o samba já é, em al-
guns casos, consumido industrialmente. É, de certa
forma, quase tão populr no mundo, pelo menos em
tese, quanto o café e quanto Pelé. Mas daí, a pensar-se
que o sambista ascendeu socialmente vai uma distân-
cia muito grande.
Na realidade, o samba já propiciou melhores con-
dições de vida a alguns sambistas, geralmente compo-
sitores, instrumentistas e cantores. Mas uma ascensão
global das comunidades que produzem samba (en-
74 quanto manifestação de arte popular ou enquanto es-
Nei Lopes
“Agora não! Agora não pode mais ser assim! Nós te-
mos um quadro social de mais de cinco mil sócios!”
(Goldwasser, 1975: 134).
E o depoimento de um compositor, também da
Mangueira, é mais elucidativo ainda:
“Mas a sociedade está se aproximando tanto, que sair
numa Escola de Samba como as grandes Escolas de
Samba — eu não quero unicamente citar Manguei-
20
O Globo, Rio de Janeiro 1º out. 1968. 75
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
78
ANEXOS
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista
1
CARTA ENVIADA À ALA DOS
COMPOSITORES DOS ACADEMICOS
DO SALGUEIRO
Nesta
Caro Presidente:
Cordialmente,
Nei Lopes
82
2
ANTEPROJETO DE REGIMENTO INTERNO
DA ALA DE COMPOSITORES
ANTÔNIO CANDEIA FILHO
DO G.R.A.N. ESCOLA DE SAMBA QUILOMBO
86
3
PRINCÍPIOS BÁSICOS DO QUILOMBO
(para serem observados nos próximos desfiles)
88
G.R.A.N. ESCOLA DE SAMBA QUILOMBO
CARNAVAL DE 1978
“AO POVO EM FORMA DE ARTE”
(Wilson Moreira e Nei Lopes)
Quilombo
Pesquisou suas raízes
E os momentos mais felizes
De uma raça singular
E veio
Pra mostrar esta pesquisa
Na ocasião precisa
Em forma de arte popular
Há mais
De quarenta mil anos atrás
A arte negra já resplandecia
Mais tarde a Etiópia milenar
Sua cultura até o Egito estendia
Daí o legendário mundo grego
A todo negro de “etíope” chamou
Depois vieram reinos suntuosos
De nível cultural superior
Que hoje são lembranças de um passado
Que a força da ambição exterminou. (bis)
90
G.R.A.N ESCOLA DE SAMBA QUILOMBO
“NOVENTA ANOS DE ABOLIÇÃO”
(Wilson Moreira e Nei Lopes)
Reverenciamos a memória
Desses Bravos que fizeram nossa história:
92
POSFÁCIO DESAPONTADÍSSIMO
Lidas agora, três décadas depois de sua publicação,
as inquietações formuladas neste livro podem até ser
vistas como um exercício de futurismo. Em todos os
aspectos abordados, o samba das escolas afastou-se
tanto de seus propósitos iniciais, inclusive dos princí-
pios consignados na “Carta do Samba” (documento
que, já em 1962, propunha uma espécie de choque
de ordem), que na atualidade já configuram um outro
tipo de manifestação.
Não mais arte popular e sim arte de massa; não
mais expressão da cultura afro-brasileira e sim item
mercadológico da cultura globalizada, o carnaval das
escolas de samba tanto ganhou em beleza e ousadia
quanto perdeu em essência; e o cotidiano das agre-
miações, voltado apenas para a competição carnava-
lesca, perdeu a alegria e o brilho de outrora.
As transformações foram, a nosso juízo, acima de
tudo empobrecedoras. Prova disso é que, depois de
Jamelão, falecido em 2008, e Dona Ivone Lara, com
90 anos à época deste texto, nenhum outro cantor ou
compositor projetado artisticamente a partir de uma
escola de samba carioca alcançou protagonismo no
diversificado universo da música popular brasileira.
93
BIBLIOGRAFIA
As Vozes desassombradas do museu. Rio de Janeiro,
SEC – Museu da Imagem e do Som. 1970.
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba. Rio de Janei-
ro, Fontana, 1974.
CABRAL, Sérgio. História das escolas de samba. Rio
de Janeiro, Rio Gráfica e Ed. fasc. 2. 1976.
CARNEIRO, Edson. A sabedoria popular. Rio de Ja-
neiro, MEC-INL, 1957, p. 117.
D. A. Benjamim Baptista/Escola de Medicina e Ci-
rurgia da Fefieg. O samba saúda o povo e pede
passagem. Rio de Janeiro, 1974. Mimeogr.
GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de
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