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NEI LOPES

O
SAMBA,
NA
REALIDADE...
Utopia da ascensão
social do sambista

Edição comemorativa de 35 anos

2017
Copyright© Edições Malungo.
Livros pra pensar Ltda. 2012.

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outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Editora.

Editor:
Rolf Malungo de Souza
Coeditora:
Cris Albuquerque
Revisora:
Rosiane Rodrigues
Capa e Designer:
Fabio da Silva

Lopes, Nei
L854s O Samba na realidade : a utopia da ascensão social do
sambista / Nei Lopes

Bibliografia
1. Escolas de samba – Aspectos sociais 2. Escolas de samba –
História I. Título II. Série

ISBN: 978-85-94296-00-9
Sumário
Prefácio da primeira edição
O samba na realidade .....................................................5
35 anos – Nei Lopes – Mensajero Ancestral ............. 7
Quesitos ......................................................................... 15
Vaga esperança ............................................................. 17
Introdução .................................................................... 19
Pedra do Sal e Cidade Nova ....................................... 23
Ameno e Deixa Falar ................................................... 29
De Paulo a Candeia ...................................................... 34
O samba-enredo ........................................................... 38
Evoluções e fantasias ................................................... 43
A ditadura dos “carnavalescos” ................................. 47
Passistas e vedetes ........................................................ 56
O papel da imprensa .................................................... 59
Papai estado .................................................................. 62
Samba, rádio e disco .................................................... 66
Estudo de caso ............................................................. 70
O samba na realidade .................................................. 74
Anexos ........................................................................... 79
Posfácio Desapontadíssimo........................................ 93
Bibliografia .................................................................... 95

3
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

O SAMBA NA REALIDADE

Se algum dia me fosse pedida a indicação de um


nome para escrever coisa que tivesse relação com a
música do povo do Rio de Janeiro, um dos primeiros a
me ocorrer seria, certamente, o de Nei Lopes. De ma-
neira que não fui surpreendido nem um pouco com a
realização deste trabalho. Me arrisco até a dizer que é
o primeiro de uma obra que vem por aí.
Nei é um desses suburbanos cariocas que — para
aplicar uma visão burguesa — deram certo. Ou seja:
criado nos subúrbios, estudou, formou-se em facul-
dade, tornou-se famoso compositor e é hoje um dos
nomes de destaque da nossa música popular. Ao con-
trário de muitos outros, porém, que também “deram
certo”, não virou as costas para o meio social e para
a cultura com os quais conviveu: colocou as informa-
ções adquiridas para a sua formação de intelectual e o
seu próprio talento a serviço do mundo que o cercava
na infância e na adolescência.
Assim, Nei Lopes não está falando neste trabalho
de uma atividade que o obrigou a realizar pesquisas 5
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

profundas, mas de um assunto no qual só agora apa-


rece como autor, pois sempre foi personagem. Quan-
do considera “ingênua” a afirmação do Sr. Hiram
Araújo (com as escolas de samba “houve a ascensão
social do sambista”), ele não está se baseando objeti-
vamente em qualquer teoria (que também poderia ser
usada), mas no que vê diariamente em suas atividades
na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro ou na
Quilombo, para citar duas grandes expressões da arte
popular carioca, das quais é figura de grande impor-
tância como compositor.
É claro que Nei é também um estudioso dos fe-
nômenos que aborda neste livro. Não se trata de um
depoimento de um personagem, mas de ensaio de um
pesquisador que leva sobre os demais a vantagem de
ter vivido e de viver integralmente o objetivo da pes-
quisa. Por isso, o livro assume muitas vezes um ca-
ráter extremamente polêmico, pois coloca em dúvida
algumas “verdades” que não são aceitas atualmente
em relação às escolas de samba e contesta a maio-
ria delas. Mas não se põe numa postura saudosista: a
sua irritação é contra as deformações que surgem sob
vários aspectos, dadas como irreversíveis. Ele procu-
ra mostrar que essas deformações partem de origens
pouco afeitas ao universo do samba e são, por isso,
deformações mesmo — e não evoluções.
Portanto, Nei Lopes não é apenas um dos com-
positores mais importantes da geração 70 da música
popular brasileira. Agora, ele é também um dos mais
profundos especialistas do samba carioca.

Sérgio Cabral
6
35 ANOS

NEI LOPES
MENSAJERO ANCESTRAL

Mi amigo Rolf Malungo, me sorprendió cuando me


comunico que el legendario Nei Lopes haría una nueva
edición de su libro clásico “O Samba Na Realidade”, y
me sorprendió porque me estaba dando una gran res-
ponsabilidad que es hacer unas notas de presentación
de este texto tan fundamental para entender el signifi-
cado histórico, social, político y cultural de la Samba.
A finales de la década de los noventa del siglo XX,
el profesor Rolf me regalo en Caracas, un libro de
Lopes titulado Diccionario Bantu, lo cual inmediata-
mente me conecta con este maravilloso autor, ya que
algunos años, atrás yo había culminado mi investiga-
ción sobre la Diaspora Bantu en las Américas y que
luego saldría publicado como La Diasporas de loS
Kongo en las Americas y el espacio Caribe (Funda-
cion Afroamerica-Conac-Unesco 1995).
He intentado desde entonces acercarme a la vida
de Lopes, a través de su prolífica obra como com-
positor, escritor y académico, para ubicarlo como un
investigador militante de su propia cultura, siendo 7
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

sujeto-objeto-sujeto de su propia investigación, sin


desechar su proceso de asunción de su conciencia
desde su antiguo Barrio Popular donde vivió cuando
niño y supo a través de un acto de resiliencia combatir
las barreras que una sociedad racista y discriminato-
ria imponía la desesperanza, que luego convirtió en
esperanza activa. Nei tomo los elementos vivos de su
propia cultura y se atrinchero en ella para irla molde-
ando como un instrumento de liberación, y para él la
Samba fue un factor decisivo para la comprensión de
la compleja sociedad brasileña
La Samba es un espacio musical, poético, danzario
que expresa nuestra ancestralidad africana que resistió
al paso de los tiempos para sobrevivir dignamente en
el contexto brasileño donde intentaron ahogar las ex-
presiones culturales no europeas. La Samba es a Brasil
como a Cuba es el son, el jazz a Estados Unidos o
el reggae es a Jamaica, es decir expresiones africanas
marginalizadas por las elites dominantes eurocentri-
cas, pero aun con todos los mecanismo represión de
esa elites, y en un acto de cimarronaje, la samba pudo
hacer valer sus diferentes modalidades al paso del
tiempo para convertirse en la expresión nacional mas
universal de Brasil.
Los viajes de Nei a Angola, en el año 1997, en
plena guerra civil, le permitió reecontrarse con el an-
cestro de origen donde pudo ver los ngomas (batu-
ques), el berimbao o la mpuita (Cuica) en su estado
original y ese mismo año asistir a Cuba donde trazo
línea con la rumba cubana, reafirmando la presencia
kongo-Angola en los diferentes géneros musicales de-
8 las Americas y del Caribe.
Nei Lopes

La Samba es el anclaje del autoreconocimien-


to afrobrasileiro con dignidad, lo cual le permitió a
los afrodescendientes tener una via de que el “otro”
brasileño (blanco, mestizo) le reconociera y se dejara
influenciar. La Samba fue la vía para combatir el ra-
cismo a que fue y ha sido sometido mas de ochenta
millones de afrobasileños y Nei con sus composicio-
nes y reflexiones fue” una nota” para contribuir a la
ecualización sonora y espiritual sociobrasileãna.

Jesus Chucho Garcia, embajador de la Republcia Bo-


livariana de Venezuela en Angola, Zambia, Santo
Tome y Principe. 19 de julio del 2012

9
Para Tia Zica e Maurício Theodoro da Silva,
que me mostraram o samba.

A todas as Escolas que morreram antes de


chegar ao fim da passarela.

À memória de Candeia.

11
“Ora, eu sou um estudioso da cultura popular que se preo-
cupa em não ver misturada a cultura brasileira, autêntica, com
a cultura superposta que nos chega da importação de tecnologia
aplicada na área do lazer. Eu fui levado a uma posição radical
pela radicalização que vem de fora, que faz com que o brasileiro
seja minoria no Brasil (…)

“Se eu sou um estudioso da cultura popular, consciente dessa


situação, tenho de ser radical, porque entendo que todo soldado
empenhado na luta de libertação nacional não pode transigir.”
José Ramos Tinhorão in Manchete, 23.6.79

“… defender a memória arquitetônica, artística, cultural


não é manifestação de elitismo, mas um ato político. A memó-
ria funciona como arma incomparável contra a opressão. Quem
desconhece o passado, aceita passivamente o presente.”

(ISTO É, 9.8.78)

13
QUESITOS
(Wilson Moreira e Nei Lopes)

Ao compasso desta melodia


Lembro o velho samba-enredo
Samba de mais harmonia
Samba de valentia, sem medo
Samba mistério e segredo

Depois que se apagou a gambiarra


Virou moda, virou farra
O que foi religião.
Hoje o samba está no alto
Sem ter os pés no chão.
Se a realidade é esta
Eu prefiro a fantasia.
Esta evolução não passa de ilusão
É bolha de sabão, é alegoria.

Iaiá, ioiô
Samba exige muito amor
Amizade e devoção.
Vamos empunhar nossa bandeira
Levantar essa poeira
Sem tirar os pés do chão.

15
VAGA ESPERANÇA
(Dauro do Sangueiro e Nei Lopes)

Salgueiro, Deus do Céu!, como eu te amo


E se te falo e reclamo
É com a voz do coração.
Salgueiro onde o Sabiá cantava
Onde Antenor gargalhava
E Geraldo flauteava uma canção.
Hoje realmente és diferente
Nem melhor que antigamente
Nem pior que outros tempos
Talvez que virão.
Ah! Meu belo amor adormecido
Só quem te ama “pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender”
Que é bem difícil a solução.

É a “evolução”
É o samba pagando seu alto tributo.
A cidade na festa e o morro de luto
Pois algo morreu e não se sabe o quê.
Só ficou a lembrança

E uma vaga esperança


Na velha baiana que roda, que dança
Que samba e não cansa,
Girando, girando, querendo viver.
Enquanto houver alma no seu tabuleiro
Existe meu samba e existe Salgueiro.
Salgueiro é samba
E o samba não pode, não deve morrer! 17
INTRODUÇÃO
Em fevereiro de 1976, o médico Hiram Araújo,
criador do Departamento Cultural da Escola de Sam-
ba Imperatriz Leopoldinense e responsável pelos úl-
timos carnavais da Portela até 78, declarava em entre-
vista ao reporter Carlos Jurandir:1
“Desde que o samba virou bem de consumo, uma mer-
cadoria como outra qualquer, gerou-se um processo ir-
reversível. Houve a ascensão social do sambista. Se a
escola de samba cobra ingresso e comercializa o samba,
nada mais justo que aquele que o produz seja remune-
rado.” (Grifo nosso.)

Ingênua a posição do Dr. Hiram. De fato, o pro-


cesso irreversível está aí. De fato, a sociedade brasi-
leira já chegou àquele estágio de desenvolvimento em
que tudo, inclusive a criação artística, é objeto de con-
sumo, é mercadoria. Mas daí, a acreditar que se possa
profissionalizar um contingente que só no Rio soma
hoje mais de 120 mil pessoas (escolas e blocos) e que
o samba já propiciou a ascensão social do sambista,
vai uma distância muito grande.
O que na verdade ocorreu foi um crescimento da
representatividade das escolas de samba dentro do
contexto da sociedade brasileira. De objeto de dis-
criminação, de coisa de “negros” e “marginais”, elas
passaram — enquanto instituições — a ser, primeiro,
aceitas, depois admiradas e paternalizadas e, agora, até
cortejadas.
O Globo, Rio de Janeiro, 26 fev. 1976.
1
19
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

A esse prestígio, entretanto, não correspondeu a


concretização do velho sonho do sambista e do negro
em especial. Fruto de uma mistura de manifestações
populares e reflexo de todo o dilema cultural brasilei-
ro, as escolas de samba sempre foram para a maioria
negra e pobre de seus componentes um sonhado veí-
culo de promoção e aceitação social. Por se incluírem,
de um modo geral, conforme teoriza o antropólogo
José Sávio Leopoldo (Leopoldi, 1978: 14) — em fun-
ção do nível de instrução, do tipo de ocupação que
exercem e da renda que auferem — nas camadas mais
baixas da sociedade, os sambistas sempre tiveram as
escolas de samba como algo que lhes fosse possibili-
tar, pelo menos, serem vistos; como algo que funcio-
nasse como uma abertura para outra condição social
que (face a seus níveis de renda e de instrução, à sua
ocupação e ao seu relacionamento) seria impossível
de outra maneira atingir.
Mas esse sonho, pelo menos até agora, nunca se
realizou. “Bem-vistas”, as escolas de samba se torna-
ram fator gerador de desagreagação. E — conforme
teoriza, ainda, J. S. Leopoldi (Idem: 133) — pela acei-
tação conseguida e pela corte que lhes fazem, hoje,
gente e instituições de esferas cada vez mais amplas,
elas chegaram à “dimensão de um verdadeiro símbolo
nacional”. Tudo isto, entretanto, fez com que os ver-
dadeiros sambistas, principalmente os veteranos e os
mais conscientes do processo, ficassem marginaliza-
dos na medida em que buscam nas escolas “significa-
dos sociais e culturais” que elas só ofereciam quando
eram realmente “expressão inconfundível do mundo
20 do samba”.
Nei Lopes

O ideal realmente seria que as escolas de samba, já


que se tornaram “símbolo nacional” e já que o “sam-
ba virou bem de consumo”, fossem o canal através
do qual os sambistas pudessem — decentemente pro-
fissionalizados, se possível — ascender social e eco-
nomicamente. Mas a profissionalização completa e
decente é por certo impossível dentro de um universo
de mais de 120 mil pessoas que não detêm as rédeas
do poder de suas escolas e nem são donas, digamos
assim, dos “meios de produção”. À representatividade
que as escolas adquiriram correspondeu uma infiltra-
ção — mais contundente nos setores de direção — de
gente de outra cultura, supostamente letrada, estranha
ao mundo do samba. E por força dessa infiltração foi
sendo tirada do verdadeiro sambista a possibilidade
de, enquanto sambista, orientar seu próprio destino
em direção a um crescimento dentro da sociedade.
Por tudo o que vem ocorrendo, o próprio prestígio
das escolas como manifestação artística está ameaça-
do: a cada carnaval — e cada vez mais — passistas, fi-
gurinos, sambas-enredo etc, pela repetição e pela imi-
tação servil, muitas vezes fora da realidade do samba,
vão ficando monótono e desvalorizados. E, em ter-
mos econômicos e sociais, os casos de ascensão que
elas por acaso propiciaram foram casos puramente
isolados, que não refletem a situação geral.

21
PEDRA DO SAL E
CIDADE NOVA
A partir da segunda metade do século passado2,
formava-se no atual Morro da Conceição, no Rio,
uma verdadeira colônia de negros e mulatos baianos
emigrados. Ali, na localidade então conhecida como
Pedra do Sal, essa colônia — sob a liderança incontes-
te do músico, dançarino e carnavalesco Hilário Jovino
Ferreira (1855(?)-1933) — desenvolveu manifestações
trazidas da terra de origem, fundando afoxés e ran-
chos folclóricos, como o Dois de Ouros, para sair no
carnaval.
Pouco depois, o raio de atuação da colônia se des-
locava até a Cidade Nova, região que se estendia ao
longo da atual Avenida Presidente Vargas, no trecho
compreendido entre a Estação D. Pedro II (Central
do Brasil) e o trevo dos Pracinhas.
Sobre a colônia, lembrava João da Baiana:
“Tia Aciata era avó de Bucy Moreira e Tia Amélia, a
mãe de Donga. Eram todas baianas. Umas moravam
na Rua Senador Pompeu e outras na Rua da Alfânde-
ga e Rua dos Cajueiros3. Tia Aciata morou primeiro
na Rua da Alfândega, depois mudou-se para a Rua
São Diogo, que é a atual General Pedra4. Daí é que foi
para a Rua dos Cajueiros e posteriormente para a Rua

2
N.E.: Seculo XIX.
3
Rua dos Cajueiros: confluência da Rua Senador Pompeu com a Rua
Barão de São Félix, próximo à Central do Brasil.
4
Rua General Pedra: rua próxima ao local onde se situa hoje o prédio
novo da RFFSA, quase no sopé do Morro da Favela. 23
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

Visconde de Itaúna5, esquina da Praça Onze. Tia


Bebiana morava no Largo de São Domingos6, que já
desapareceu. Tia Rosa Olé ficava na Saúde, da mesma
forma que a Tia Sadata, lá na Pedra do Sal. (…)

“Havia o candomblé e neste vinha o gege, nagô e Ango-


la. O samba era antes. O candomblé era no mesmo dia,
mas uma festa separada. A parte do ritual acontecia
depois do samba. Primeiro havia a seção recreativa de-
pois vinha a parte religiosa.” (MIS, 1970: 52)

Uma outra referência preciosa é dada pelo cronista


Francisco Guimarães, o Vagalume, também frequen-
tador da Pedra do Sal e da Cidade Nova:
“Outro samba afamado, era na casa da Tia Asseata,
que nestes últimos tempos foi, sem dúvida, a baiana de
maior nome na Baía… de Guanabara.

“No seu tempo de moça, deu dor de cabeça a muita gen-


te… Era de classe das negras cheirosas e que serviam
de figurino às demais baianas.

“Uma saia bordada a ouro ou seda, uma sandália


acompanhando o bordado da saia, quem quisesse ver do
que havia de mais rico, apreciasse em cima de Asseata!

“Vendeu doces toda a sua vida de moça e durante a


sua velhice. Trabalhou, trabalhou muito para ajudar
seu marido, o popularíssimo João Batista, da Imprensa
5
Rua Visconde de Itaúna: rua que seria hoje paralela à Avenida Presi-
dente Vargas, nas imediações do prédio novo da RFFSA.
6
Largo de São Domingos: logradouro que se localizaria hoje na conflu-
24 ência da Avenida Presidente Vargas com Avenida Passos.
Nei Lopes

Nacional, que, nos dias de samba, candomblé ou car-


naval, ficava doído e não contava com a esposa, porque,
se se tratava de candomblé, ela como ‘mãe de santo’ que
era, e das boas, ia ver arriar os orixás e então levava em
sua companhia as filhas: Isabel, Pequena e Mariquita;
se se tratava apenas de samba, ela estava dentro da
roda e quando era pelo carnaval esquecia tudo, por-
que como foliona de primeiríssima, transformava a sua
casa, quer na Rua da Alfândega, quer ultimamente na
Rua Visconde de Itaúna (onde faleceu) em verdadeira
Lapinha. Rancho que saísse e não fosse à casa de Asse-
ata — não era tomando em consideração, era o mesmo
que não ter saído.

“Os sambas na casa de Asseata eram importantíssi-


mos, porque, em geral quando eles nasciam no alto do
morro, na casa dela é que se tornavam conhecidos na
roda. Lá é que eles se popularizavam, lá é que eles
sofriam a crítica dos catedráticos, com a presença das su-
midades do violão, do cavaquinho, do pandeiro, do reco-
-reco e do ‘atabaque’.” (Guimarães, Funarte: 87).

João do Rio, outro cronista contemporâneo dos


baianos da Cidade Nova, oferece também uma refe-
rência, embora não tão lisonjeira:
“Esta é de força. Não tem navalha, finge ser mãe-de-
-santo e trabalha com três ogans falsos — João Ratão,
um moleque chamado Macário e certo cabra pernóstico,
o Germano. A Assiata mora na Rua da Alfânde-
ga 304. Ainda outro dia houve lá um escândalo dos
diabos porque a Assiata meteu na festa de yê-man-já 25
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

algumas yauô feitas por ela. Os pais-de-santo protesta-


ram, a negra danou, e teve que pagar a multa marcada
pelo santo. Essa é uma das feiticeiras de embromação.”
(Rio, 1951: 30).

Entretanto, mais que a visão “de compadre” do


negro Vagalume e a descrição etnocentrista de João
do Rio, vale transcrever, sobre o que era visual e so-
cialmente a Cidade Nova por volta de 1910 — Tia
Ciata morou lá de 1899 a 1924 (Vasconcellos, 1978)
—, um trecho do grande Lima Barreto. Depois de
afirmar, entre outras coisas, que, ao lado de uma po-
pulação negra “naturalmente numerosa”, o local abri-
gava à época uma “grande e forte população branca”
que, inclusive, impunha certas normas de conduta, o
velho Lima arremata:
“Como em todas as partes, em todas as épocas e em to-
dos os países, em todas as raças, embora se dê, às vezes,
o contrário, sendo mesmo condição vital à existência e
progresso das sociedades — os inferiores se apropriam
e imitam os ademanes, a linguagem, o vestuário, as con-
cepções de honra e família dos superiores. Toda invenção
social é criação de um indivíduo, ou grupo particular
propagado por imitação a outros indivíduos e grupos; e
quem disso (sic) não tem que se amofinar com os bailes
da Cidade Nova, ou fazer acreditar que são batuques
ou sambas, que lá os há como em todos os bairros. É
exceção.

“A cidade Nova dança à francesa ou à Americana e ao


26 som do piano.” (Lima Barreto, s/d).
Nei Lopes

Dessa apreciação do grande Lima Barreto pode-se


concluir que na Cidade Nova de 1910 predominava
uma cultura branca e importada. Apesar disso, entre-
tanto, os negros e mestiços de lá — a colônia baiana
à frente — se impuseram culturalmente e criaram o
que seria o carnaval das camadas populares do Rio.
Carnaval de tamborins, pandeiros e violões e cavaqui-
nhos. Carnaval africano (e índio) que já predominava
sobre a cultura pequeno-burguesa da Cidade Nova.
Carnaval de samba, enfim.
Na Cidade Nova, então, foi que ocorreu, entre os antigos
ranchos, o samba rural baiano e outras formas musicais,
a mistura que veio dar origem ao samba urbano cario-
ca. E esse samba só começou a adquirir os contornos da
forma atual ao chegar ao Estácio, a Oswaldo Cruz, aos
morros, para onde foi empurrada a população de bai-
xa renda quando o Rio começou a “civilizar-se”. Em
seu processo de transformação, ele foi, Segundo Vagalu-
me (Guimarães, 1978: 28), “raiado, com aquele som
e sotaque sertanejos”, depois “corrido já melhorando e
mais harmonioso e com a pronúncia da gente da capital
baiana”, e finalmente “chulado” que era, segundo ele, “o
samba civilizado, o samba desenvolvido, cheio de melodia,
exprimindo uma mágoa, um queixume, uma prece, uma
invocação, uma expressão de ternura, uma verdadeira
canção de amor, uma sátira, uma perfídia, um desafio,
um desabafo, ou mesmo um hino”!
E sobre esse samba, que daria origem à instituição
altamente polêmica das escolas — sonhado veículo de
aceitação e promoção social para a maioria negra de
seus componentes — Vagalume já concluía: 27
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

“O samba, depois de civilizado, depois de subir ao tro-


no levado por seu pranteado Rei (Sinhô), passou por
uma grande metamorfose: antigamente era repudiado,
debochado, ridicularizado.

“Somente a gente da chamada roda do samba o tratava


com carinho e amor!

“Hoje — ninguém quer saber nem fazer outra coisa.


O samba já é cogitação dos literatos, dos poetas, dos
escritores teatrais e até mesmo de alguns imortais da
Academia de Letras!” (…) (Id. ibid)

Mas, apesar do ufanismo do cronista, o samba,


saindo às ruas no carnaval e nas festas da Penha, con-
tinuou a ser malvisto e reprimido, já que o que se que-
ria era vê-lo (já que não era possível mantê-lo calado)
bem-comportado, no rádio e no disco. Daí o ideario
expresso na aceitação, pela gente do samba, de for-
mas carnavalescas completamente divorciadas da rea-
lidade cultural do grupo, meras imitações de criações
das camadas superiores da sociedade carioca de então,
como foram — cada um a seu tempo — primeiro, o
rancho Ameno Resedá e, depois, a escola de samba
Deixar Falar.

28
AMENO E DEIXA FALAR
O carnaval das camadas populares foi o caldeirão
onde se temperou o samba urbano do Rio. A prin-
cípio servindo como mera explosão de sentimentos
(entrudo, zé-pereira etc), esse carnaval passou, a par-
tir de determinado momento, a servir também como
veículo de manifestações artísticas no sentido amplo,
como espetáculo, enfim. E o rancho carnavalesco
Ameno Rosedá (1907-1941) foi quem primeiro le-
vou o carnaval-espetáculo às últimas consequências,
pois nasceu para representar “óperas ambulantes”,
inclusive com coro e orquestra, buscando para tanto
a contribuição da fina flor dos artistas e intelectuais da
época, por pretender deliberadamente (e numa clara
busca de ascensão social por parte da maioria de ne-
gros e mulatos que o compunham) uma ruptura com
as tradições populares.
Jota Efegê, o grande historiador do Ameno — ne-
gro ele próprio —, é bastante elucidativo a respeito:
“Fugindo do tradicionalismo que norteava outras agre-
miações congêneres, pretendendo sair do africanismo
ou luso-africanismo orientador dos cordões [o Ameno]
aceitou apenas, como básica, a forma processional dos
pastoris, da qual derivaram os ranchos. (…).

“Quis e conseguiu ser uma escola inovadora com a cria-


ção de um estilo novo, mais pomposo, bastante alegôrico
e, principalmente, de grande expressividade melódica.
Fugiu do rudimentarismo vigente ousando musicalidade
positiva que, sem arriscar a erudição afastando-a do 29
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

sentimento carnavalesco, permitisse cantar poemas es-


pontâneos e sugerir algo parecido com um concerto. Daí,
adveio-lhe a classificação de Teatro Lírico ambulante.”
(Jota Efegê, 1965: 109-110, Grifos nossos)

À época do apogeu do Ameno Resedá, como às


vezes ainda ocorre, qualquer manifestação “africa-
nista” era objeto de repressão policial. A abolição da
escravatura havia se consumado cerca de apenas 35
anos antes. E os negros recém-libertos tinham sido
preteridos no trabalho agrícola, como mão-de-obra
remunerada, em benefício de imigrantes europeus.
Perseguindo o seu antigo ideal de embranqueci-
mento7, a sociedade brasileira rechaçava os negros:
seus santuários eram invadidos e depredados, suas
formas de expressão eram reprimidas, seus pandeiros
eram quebrados pela polícia8.

7
Segundo Tomas Skidmore — professor da Universidade de Wisconsin,
em artigo na revista Argumento, out. 1973 —, “a ideologia do ‘branque-
amento’ levou os brasileiros a promover (sic) o ‘melhoramento eugê-
nico’, através de ações governamentais como a promoção da imigração
branca e a supressão, de tempos em tempos, de resíduos culturais afri-
canos”. E diz mais o professor americano: “Em material de imigração, os
brasileiros muitas vezes chegaram ao ponto de tornarem lei sua prefe-
rência por brancos. Em 1890, depois da abolição final, um decreto enco-
rajando a imigração excluía especificamente ‘nativos da Ásia e da África’.
8
Sobre a repressão policial ao samba, veja este depoimento de “um
mulato-escuro, 87 anos, compositor e músico carioca”, a João Baptista
Borges Pereira em Cor, profissão e mobilidade — o negro e o rádio em
São Paulo. São Paulo, Pioneira, 1967, p. 215-6:
“Minha mãe sempre fazia festa para reunir os meus colegas e amigos de
origem. A festa durava às vezes dias e dias. Tinha comes e bebes e não
faltava o baile na sala de visitas, o samba-raiado na sala dos fundos e a
batucada no terreiro. Para fazer a festa, minha mãe ia buscar o alvará na
30 polícia: negro só se reunia para brigar, para fazer malandragem. Mesmo
Nei Lopes

Por suas próprias características sócio-econômi-


cas, a Deixa Falar certamente não podia contar com
uma orquestra nem com um corpo coral. Além disso,
e por isso, sua forma de expressão musical era uma
mistura dos rítmos da Cidade Nova (conjuntos de
“pau-e-corda”, piano de Sinhô e batuques baianos)
com um tipo de criação literomusical bem sua, como
os sambas de Ismael Silva e outros que passaram à
posteridade, já bem diferentes em ritmo e andamento
dos sambas amaxixados de Sinhô e do pessoal da casa
da Tia Ciata.
A essa época, e mesmo desde sua fundação, o
Ameno Resedá se intitulava “rancho-escola”. “Escola
— diz textualmente Jota Efegê — pelo que ensinava, pelo
que transmitia aos co-irmãos como lição. Escola pela jactân-
cia de constituir um conjunto de professores que trazia para
o carnaval carioca idéias audaciosas de trabalhos plásticos, de
vestiaria, onde o fausto, mesclando-se à profuão de cores e luz,
fazia positiva a força artística” (Jota Efegê, 1965: 20).
Evidente que os bambas do Estácio, como os de
toda a cidade, não poderiam ficar imunes a essa influ-
ência. Daí, resolveram suprir suas deficiências rebati-
zando sua recém-criada organização não como “ran-
cho escola” ou como “escola de rancho”, mas como
“escola de samba”. E com isso buscavam nada mais
nada menos que a aceitação das camadas da popula-
ção e, logicamente, o fim da repressão policial.

com autorização, a polícia não deixava a gente em paz. Ela aborrecia


sempre. Quando a polícia ‘apertava’ a gente num canto, a gente ia para o
outro. Nós fazíamos samba na planície. Quando a polícia vinha nós nos
escondíamos no morro. Lá era fácil esconder. É por isso que muita gente
pensa que samba nasceu no morro. (…)
31
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

Na edição de 12.2.70 do Jornal do Brasil, Franscisco


Duarte assim relembrava a Deixa Falar:
“No chão, o Bloco Carnavalesco Deixa Falar toma-
va a formação de um rancho, com origem nos sujos ou
embaixadas de então. Se os sujos eram a desordem e
a briga, e o rancho o máximo em dança e coreografia
disciplinada, o novo tipo de sociedade negra valeu-se de
três elementos intermediários para alterar esse quadro
de extremos: a dança espontânea, o canto das baianas e
a nova harmonia dos sambas criados no Estácio. Com
a dança espontânea e desinibida dos sambas de roda,
mistura da improvisação dos lundus e sambas de um-
bigada com os passos dos batuqueiros, eles se contrapu-
nham à coreografia rígida dos ranchos e davam mais
mobilidade ao desfile. O canto das baianas substituia o
coro das pastoras, sustentando os estribilhos dos sambas
de partido-alto enquanto os tiradores ou improvisadores
aguentavam no gogó o canto para a harmonia do desfile.
E, com o novo andamento dado ao samba por Rubem
Barcelos e seu irmão Bide, podiam cantar e andar sam-
bando, improvisando passos aqui e ali.”

E o mesmo jornalista, na edição de O Globo de


5.2.78, relatava o sonho de ascensão da escola pio-
neira:
“A Deixa Falar fez sucesso e escola. Sua organização
impressionou aos que não gostavam da marcha lenta do
“Um dia de maio de 1918 eu estava na Penha, participando da festa e
do samba. A polícia veio, acabou com a nossa festa e ainda quebrou o
meu pandeiro. A polícia sempre tomava os nossos instrumentos porque
ela achava que preto era briguento, fazia capoeira e o instrumento de
32 percussão servia como arma. Ignorância!”
Nei Lopes

rancho, do excesso de fantasias rebuscadas, das parti-


turas cantadas por ‘tenores’. Não precisava orquestra.
Era mais barato. Em 1929 marcou. Outros começa-
ram a imitar e, não querendo ser igual às demais, a
escola evoluiu. Por tendência imitativa — bonito era o
rancho — foi ser rancho. Havia criado a simplicidade
organizada e fugiam (sic) dela, por necessidade de ser
melhor. Acabou rancho pobre, em 1931. Havia ficado
o exemplo.”

Importante, então, lembrar que até mais ou menos


meados da década de 50 perdurava entre os sambistas
a mística de que a escola que ganhasse o concurso três
vezes seguidas “passava a rancho”.

33
De PAULO a CANDEIA
Sem sombra de dúvida, o objetivo inicial dos sam-
bistas era, tanto quanto divertimento, conseguir status
e aceitação social. Tanto que grande parte dos sam-
bistas masculino até os anos 50 desfilava de terno. E,
até bem pouco tempo, o traje completo mais bengala
e chapéu coco foram traços marcantes da indumenta-
ria carnavalesca dos sambistas tradicionais, principal-
mente nas “comissões de frente”.
Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Porte-
la, (1901-1949) era, ao que consta, e apesar de lus-
trador de profissão, um sambista que se esforçava
em vestir-se bem segundo os padrões burgueses
de sua época. E essa sua preocupação era o refle-
xo exterior de todo um pensamento que fez dele
o pioneiro, entre os sambistas pioneiros, da busca
de uma aceitação social para o sambista, como se
pode deduzir desta declaração de Alvaiade, velho
compositor da Portela:
“Ninguém podia se apresentar com chinelo charlotte
porque o Paulo não gostava. O pessoal do Estácio, por
exemplo — e isso não é querer falar mal, mas falar
a verdade —, apresentava-se muito bem, com ternos
caríssimos. Mas de chinelo no pé e lenço no pescoço. O
pessoal da Portela, não. A gente tinha que andar de sa-
pato e gravata. O Paulo dizia assim: ‘Quero todo mun-
do com o pé ocupado e pescoço também.’ Quer dizer:
sapato e gravata. Por sorte, a nossa rapaziada quase
não bebia. A gente era diferente das outras escolas.”
34 (Cabral, 1976).
Na opinião de seus contemporâneos, Paulo foi o
“professor” por excelência, aquele que procurou falar
a mesma linguagem da imprensa e das autoridades.
Compositor inspirado, Paulo não esqueceu as pre-
ocupações sociais num sentido mais amplo, haja vista,
pelo menos, a letra deste samba:

“OURO DESÇA DO SEU TRONO”


Ouro desça do seu trono
Venha ver o abandono
De milhões de almas aflitas
Como gritam
Sua majestade a prata
Mãe ingrata indiferente e fria
Sorri da nossa agonia
Diamante, safira e rubi
São pedras valiosas
Mas eu não troco por ti
Porque és mais preciosa.
De tanto ver o poder
Prevalecer na mão do mal
O homem deixa vender
A honra pelo vil metal.
Nesta terra sem paz
Com tanta guerra
A hipocrisia se venera
O dinheiro é quem impera
Sinto minha alma tristonha
De tanto ver falsidade
E muitos já sentem vergonha
Do amor e honestidade.
35
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

Atuante na luta contra a repressão policial aos sam-


bistas, ele assim se manifestava após um sério conflito
ocorrido em 1945 no Campo do Vasco entre gente do
samba e que motivara violentos ataques da imprensa:
“Nós, os sambistas de morro, não merecemos tantas
acusações. (…) Entretanto, somos atingidos agora pelos
piores adjetivos e pelas maiores humilhações. E tudo
isso não se justifica, mormente se considerarmos a exis-
tência útil das escolas de samba. (…) Que merecemos
um conceito melhor, prova-o o fato de contarmos, nós dos
morros, com a constante visita de pessoas ilustres que se
tornaram, com o passar do tempo, em ilustres amigos
nossos. (…) Se fôssemos tão desprezíveis, como muita
gente está querendo supor, ninguém subiria as nossas
ladeiras para nos apertar a mão.” (Cabral, 19760).

Além disso, organizando grupos de sambistas para


se apresentarem em festas e espetáculos fora dos pe-
ríodos de carnaval e para gravarem eles mesmos suas
próprias composições, Paulo foi um dos que primeiro
buscaram organizar o samba em direção a uma pro-
fissionalização justa e consciente. Por tudo isso, a atu-
ação de Paulo lembra, em muitos aspectos, o trabalho
posteriormente desenvolvido por Antônio Candeia
Filho, o Candeia (1935-1978).
Policial por contingência (ser policial é, ainda hoje,
além de emprego seguro, um dos poucos caminhos
que o negro pobre tem para merecer respeito e status
dentro de seu próprio grupo, daí a grande quantidade
de sambistas policiais), Candeia é baleado e fica preso
36 a uma cadeira de rodas. Aí deixa de ser apenas o inspi-
Nei Lopes

radíssimo compositor para ser, agora mais ainda, o lí-


der, o mentor, o organizador. Funda em dezembro de
1975 o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de
Samba Quilombo, antes de tudo um núcleo de resis-
tência dos verdadeiros sambistas contra a inflação das
escolas e do povo em geral contra a colonização cultu-
ral. Coloca em seus discos a clareza de suas posições.
Procura encaminhar os melhores ritmistas, cantores e
compositores do Quilombo à profissionalização das
gravadoras e dos espetáculos. Tudo como um novo
Paulo da Portela. Até que morre em fins de 1978, dei-
xando uma grande obra ainda por terminar.
A afinidade entre Paulo e Candeia fica bem clara
nesta declaração do ultimo9:
“Paulo realmente tinha uma preocupação muito maior
com as coisas de sua gente e do seu meio ambiente do
que com ele mesmo em termos de se identificar como
artista, mas acontece que fez letras maravilhosas.
(…) Há pouco tempo encontrei um recorte do Diário
Carioca dizendo que Paulo foi convidado para parti-
cipar do Partido Trabalhista Nacional e em seguida
tem uma entrevista dele com diversas reivindicações
que, por incrível que pareça, mesmo naquela época,
já tinham o sentido do trabalho do Quilombo. Paulo
pedia que se desse aos sambistas os meios sociais, a
urbanização da favela, educação para os seus filhos.
Ele tinha essa preocupação, não era simplesmente um
cara que cantava samba.”

9
Pasquim, Rio de Janeiro, 24 nov. 1978. 37
O SAMBA-ENREDO
Saindo à rua, organizado em escola para ser aceito
pelo Sistema, o samba veio incorporar, deglutir e ree-
laborar as manifestações carnavalescas então existen-
tes: a instrumentação, primeiro à base de cavaquinhos
e violões, tinha também elementos de percussão dos
cordões e dos zé-pereiras; a forma processional —
bem como as figuras do baliza e da porta-estandarte
(depois porta-bandeira) — veio dos ranchos que, por
sua vez, já as tinham ido buscar nos “ternos” nordes-
tinos; a denominação “pastora” veio evidentemente
dos “pastoris”, e por aí afora.
Informa Edison Carneiro:
“Os grupos tinham, naturalmente, no começo, uma uni-
dade precária — as mulheres preferiam fantasiar-se de
baianas, os homens trajavam pijamas de listras, maca-
cões ou camisas de malandro, o chapéu de palha caído
sobre um dos olhos, sem ordem nem lei …

“Todo mundo dentro da corda — uma lembrança


dos ranchos de Reis, ainda subsistentes.” (Carneiro,
1957: 57)
As indumentarias femininas eram, então, de um
modo geral, as vestes cotidianas das baianas pionei-
ras10 (embora muitos bambas se vestissem de “baiana”
10
As alas de baianas são uma das manifestações mais ancestrais dentro
das escolas de samba. Elas remontam ao início do século passado, como
se pode concluir deste trecho em que Manoel Antônio de Almeida —
Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro, MEC-INL, 1944,
p. 103-4. (Col. Biblioteca Popular Brasileira) — descreve uma procissão
38 católica no Rio, “no tempo do Rei”:
Nei Lopes

para poder esconder, dentro das saias, suas navalhas,


facas etc). E as alegorias — fato posterior — eram,
sem dúvida, uma tentativa de imitação dos préstitos
das chamadas “grandes sociedades”, um dos pontos
altos do carnaval “civilizado” de então.
Estranhas aos meios de divulgação de massa, as
músicas (pelo menos até o dia em que um cantor pro-
fissional foi pela primeira vez ao Estácio comprar um
samba) circulavam quase que exclusivamente dentro
do mundo do samba e se compunham geralmente de
uma primeira parte fixa, cantada em coro, seguida de
uma segunda livre, na qual se punha à prova a capa-
cidade de improvisação dos “mestres de canto” ou
mestres de harmonia”.
Interessante notar nesse tipo de samba, que até
hoje persiste sob a denominação genérica de partido-
-alto (partido-alto na Cidade Nova era música instru-
mental), sobreviências tipicamente rurais nas quadras
“Queremos falar de um grande rancho chamado rancho das Baianas,
que caminhava adiante da procissão, atraindo mais ou tanto como os
santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era
formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda
da província da Bahia, donde lhe vinha o nome; e que dançavam no
intervalo dos Deo-gratias uma dança lá a seu capricho. (…)
“As chamadas Baianas não usavam de vestidos; traziam somente umas
poucas de saias presas à cintura, e que chegavam pouco abaixo do meio
da perna, todas elas ornadas de magníficas rendas; da cintura para cima
apenas traziam uma finíssima camisa, cuja gola e mangas eram também
ornadas de renda; ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar
de corais, os mais pobres eram de missangas; ornavam a cabeça com
uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas, formado por
um grande lenço branco muito teso e engomado; calçavam umas chine-
linhas de salto alto, e tão pequenas, que apenas continham os dedos dos
pés, ficando de fora todo o calcanhar; e além de tudo isto envolviam-se
graciosamente em uma capa de pano preto, deixando de fora os braços
ornados de argolas de metal simulando pulseiras.”
39
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

ou sextilhas de respostas que, até hoje, transmitidas


pela tradição oral, repetem fórmulas bem baianas
como “vou-me embora, vou-me embora”, “da Bahia
me mandaram”, “que me dão para levar?” etc.
O traço mais marcante, entretanto, de toda essa
fase inicial das escolas era a solidariedade, o sentido
comunitário do grupo que, sem influências externas
diretas — a não ser a do seu desejo de ascensão pela
imitação dos valores já aceitos — criava ele mesmo as
músicas, cantava, fabricava e tocava os instrumentos,
costurava e bordava as fantasias, e confeccionava as
pinturas e esculturas apresentadas no carnaval — au-
têntica manifestação de arte popular.
A partir de um certo momento, porém, as es-
colas começam a ser objeto do dirigismo do Esta-
do, passam a ser material de imprensa e a motivar a
curiosidade das classes economicamente mais favo-
recidas. Em consequência, os sambistas começam a
vislumbrar uma possibilidade de profissionalização,
pois já são requisitados para espetáculos comerciais
e já começaram a penetrar no mundo encantado do
rádio e do disco. Em contrapartida, o acirramento
da competição entre as escolas vai determinando
concessões e aberturas: aceitam-se cada vez mais
elementos estranhos, inclusive patriarcas e patroci-
nadores em busca de um escudo para suas atividades
extra-samba, nem sempre incluídas entre as ocupa-
ções consideradas legais.
Em 1959, como um novo Ameno Resedá, a escola
de samba Acadêmicos do Salgueiro deflagra uma re-
volução: em busca de um melhor espetáculo, a escola
40 traz a contribuição de artistas e intelectuais de forma-
ção universitária. Com o sucesso desta escola, a influ-
ência começa a atingir até os redutos mais conserva-
dores, que passam a modificar radicalmente a forma
de suas apresentações.
Por essa época, o País vivia um momento político
sui generis: os intelectuais, e a classe média a seu rebo-
que, empreendiam uma explicável busca aos valores
autênticos do povo. Assim, as escolas começaram a
ver seus ensaios se constituírem num excelente e inu-
sitado programa para determinado tipo de público
que ia até lá não mais para assistir às evoluções das
pastoras no terreiro, mas para se misturar a elas, num
arremedo de samba, fazendo dos ensaios verdadeiros
bailes de carnaval.
Para chegar ainda mais perto desse público, que
garantia excelentes faturamentos, as escolas começa-
ram inclusive a sair de suas bases territoriais: Salgueiro
desce do morro para o Clube Maxwell, no Andaraí;
Império vem para o centro de Madureira; Mangueira
desce para a movimentada Rua Visconde de Niterói; e
Portela, embora continuando em Madureira e Oswal-
do Cruz, abre uma frente em Botafogo, no ginásio do
Mourisco.
Daí, então, chega-se à fase das “superquadras” (a
denominação de “quadra” em substituição a “terrei-
ro” é sintomática), dos “palácios do samba”, das sedes
monumentais — inclusive da Associação das Esco-
las — conseguidas à custa de resultados financeiros
milionários.
A participação de gente estranha ao mundo do
samba passa a ser cada vez maior, ditando normas,
modificando comportamentos, acirrando contradi-
41
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

ções e conflitos, e nunca propiciando ao verdadeiro


sambista a tão sonhada ascensão.
Leia-se, por exemplo, esta notícia11:
“A Ala dos Estudantes (da Portela) foi criada em
1968 e nos carnavais de 70 e 71 foi uma das grandes
atrações da escola. Nos dois anos (…) os elementos
da ala não só participaram da organização do enredo,
como trabalharam junto ao Departamento Cultural
da Escola, para sua elaboração.”
Essas “Alas de Estudantes”, formadas em geral
por universitários estranhos ao samba, poliferam hoje
em quase todas as escolas. A da Mangueira tem o su-
gestivo nome de “Ala dos Hippies”.

42 11
O Globo, Rio de Janeiro, 8 fev. 1975.
EVOLUÇÕES E FANTASIAS
Sempre se entendeu por evolução, em escola de
samba, a própria e espontânea coreografia das alas.
Caminhando em fila indiana, essas alas serpenteavam
e rodopiavam pela pista de desfile, com movimentos
uniformes de braços e pernas, formando desenhos
que corriam por conta da inventiva do “puxador”, do
chefe de ala. O fato de terem que desenvolver essa
coreografia sempre em sentido progressivo, para a
frente, é que parece ter dado à dança a denominação
que perdura até hoje — “evolução” — que, segundo
a definição oficial,12 significa “originalidade na core-
ografia, precisão, agilidade e beleza num movimento
sempre progressivo”.
Com a influência dos filmes musicais norte-ameri-
canos, alguns “puxadores” de ala começaram a sofisti-
car a coreografia de seus grupos, introduzindo passos
marcados em meio à evolução. E isto se deve ao fato
de grande parte das alas, nos anos 50, ser constituí-
da de exímios dançarinos, principalmente de suingue
(swing) — uma moda entre os crioulos cariocas da
época, assim como cabelo esticado, calça “boquinha”
e jaquetão “tipo saco”, tudo made in Harlem.
Os pioneiros desse fenômeno foram, ao que pare-
ce, os integrantes da “Ala dos Impossíveis”, da Porte-
la, que influenciaram toda uma geração de sambistas.
Isso, entretanto, nada tem a ver com a chamada “core-
ografia bastarda” introduzida por Mercedes Baptista
12
Conforme instruções elaboradas pela Riotur e publicadas no Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 24 fev. 1974. 43
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

no Salgueiro e que frutificou com a ainda atuante “Ala


Sente o Drama”, do Império Serrano, e seus imitado-
res. Esses assimilaram o balé institucionalizado sem
transformá-lo ou adaptá-lo (ao contrário dos “Impos-
síveis”, que criaram a partir de uma realidade sua, em-
bora colonizada), num arremedo que realmente nada
tem a ver com samba.
Mas o que veio realmente modificar a dança das
escolas foi a participação dos “brancos”, dos “sam-
beiros”: confundindo a dança das escolas com o “em-
balo” dos salões, esses adventícios, pelo próprio con-
tingente das alas — agora com cinquenta e até cem
elementos — trouxeram uma dança com caracterís-
ticas puramente individualistas, em blocos maçicos,
com as mãos levantadas para o alto, sem a mínima no-
ção do que já fora o importante quesito de julgamento
denominado “evolução”. Prova dessa subversão foi o
fato de a Portela, no desfile de 76, ter pretendido re-
viver a tradição, contando com a total desaprovação
da crítica desinformada, que viu nas “cobrinhas” que
as alas formavam uma “inovação” sem graça e estra-
nha. Outro fato, ainda, foi a “inovação” do Salgueiro
em 74, colocando os “destaques” em cima de grandes
carros alegóricos.
Importante também a observar no processo de
transformação das escolas é a adoção gradativa de trajes
cada vez mais uniformes e sumários, refletindo a estética
da classe média, como se pode observar desta notícia:13
“A fantasia escolhida este ano para a Ala dos Estu-
dantes lembra um pouco a utilizada no desfile de 1972

44 13
O Globo, Rio de Janeiro, 8 fev. 1975.
Nei Lopes

(…) Além das ráfias nas pernas e de tangas coloridas,


faz parte da fantasia uma alegoria de mão semelhante
às utilizadas em 1972.

Vale lembrar aqui as dificuldades enfrentadas por


Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues para encon-
trar sambistas que quisessem sair de índio ou de es-
cravo no Salgueiro dos anos 60. É que sair “nu” era
fato significativo de pobreza e sair de índio era papel
de alas especializadas (remanescentes talvez dos cabo-
clinhos e cucumbis e que perduraram nas escolas até
relativamente pouco tempo). Além disso, com a anti-
ga estrutura, baseada na cooperação econômica den-
tro dos grupos, as alas podiam sair no carnaval com
as fantasias pesadas e caras que os enredos pediam
(e esse tipo de fantasia era um símbolo de ascensão
social). Cada fantasia da Ala dos Significantes, do Sal-
gueiro, por exemplo, custou no carnaval de 1965 cerca
de Cr$ 160, só de material, ou seja, perto de quatro
vezes o salário mínimo da época. A ala era mantida
nos moldes tradicionais e esse preço foi pago através
das festas e rifas promovidas.
A propósito dessa antiga estrutura das alas, ouça-
mos Martinho da Vila em depoimento a Sérgio Ca-
bral:14
“Havia também um time de futebol que a gente jogava.
E com o pessoal do time a gente fez uma ala da escola
(Aprendizes da Boca do Mato). Naquele tempo havia
aquele negócio de música de ala. Foi aí que comecei a fa-
zer uns sambinhas que a gente cantava quando voltava
14
Cabral, Sérgio. Op. cit. fasc. 8. 45
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

do futebol e que ficavam mais ou menos como sambas


da nossa ala. Agora não tem mais música de ala, mas
antigamente tinha.” (Cabral, 1976).

Hoje, grande parte das alas são pequenas firmas


individuais nas quais os participantes compram as
fantasias das mãos de um dono, que quase nunca é
sambista tradicional. Esse dono escolhe os “riscos”
mais simples, de confecção mais fácil, menos imagi-
nativos, mandando confeccioná-los em escala quase
industrial (prática surgida no bloco carnavalesco Caci-
que de Ramos, onde todos os integrantes se fantasiam
uniformemente de índios), para lucrar às vezes mais
de 200%. Daí, também — e aí o aspecto mais delicado
de toda questão — a facilidade de penetração, num
grupo antes fechado, de cada vez mais gente estranha
ao samba (basta pagar a fantasia), determinando a de-
sagregação do grupo e a frustração das aspirações dos
verdadeiros sambistas.

46
A DITADURA DOS
“CARNAVALESCOS”
Os primeiros enredos das escolas eram de livre
criação: falavam da natureza, do próprio samba, da
realidade dos sambistas, enfim.
Com a oficialização dos concursos, à época do Es-
tado Novo, veio a obrigatoriedade de se exaltar ufa-
nisticamente o que se acreditava ser o único sumo da
nacionalidade brasileira: personagens e fatos históri-
cos. Os enredos, então, passaram a contar a História
oficial — “a historiografia da elite oligárquica, empenhada
na valorização dos heróis da raça branca e representada pelo
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838”
(Mota, 1978: 28) — abordando exaustiva, nostálgica
e subservientemente temas como “O último baile da
ilha Fiscal”, “Princesa Isabel”, “A epopéia dos Bandeirantes”,
“Riquezas do Brasil” etc.
Essa abordagem era fruto da própria visão política
do povo brasileiro, a quem a História sempre foi mos-
trada de um modo folhetinesco, maniqueísta e dirigi-
do. E a tentativa de mudança desse quadro (uma das
poucas contribuições positivas da intelectualidade ao
samba) só veio em 1959. Nesse ano, o Salgueiro trazia
para a Avenida, com “Debret”, negros falando de coi-
sas negras, pobres falando de coisas de pobres, o que
motivou uma sequência de enredos como “Quilombo
dos Palmares”, “Xica da Silva”, “Alejadinho”, “Chico
Rei” e “História da Liberdade no Brasil”, descom-
promissados, tanto quanto possível, com a História
oficial. 47
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

Mas, se o dirigismo estatal já não era tão forte —


pelo menos enquanto cerceamento da liberdade de
criação dos temas —, um outro tipo de ditadura co-
meçava a nascer: a dos artistas plásticos de formação
universitária, criadores desses enredos.
Embora se saiba que os ranchos já contavam
com a colaboração dos pintores Henrique Bernadelli
(1858-1936) e Rodolfo Amoedo (1857-1941) e que a
Portela já usava, nos anos 50, os serviços da decora-
dora francesa Ded Bourbonois,15 o grande marco da
participação dos artistas universitários nas escolas é
Fernando Pamplona. Figura mitológica e carismática
do samba, emérito vencedor de carnavais, Pamplona
começou a trabalhar para os Acadêmicos do Salguei-
ro nos preparativos do carnaval de 60, logo após ter
assistido, como jurado, ao desfile de 59 (“Debret”).
Ali, Pamplona viu, talvez a possibilidade de, partindo
daquela cultura original, criar a sua obra de arte. E,
assim sem querer, selou o destino das escolas.
Em 14 de abril de 76, Pamplona declarava à repor-
ter Marcia Guimarães, de Última Hora/Revista:
“Então, o Salgueiro passou linda, maravilhosa, sem alego-
ria, como que queria que fosse. E com Debret. Isso me entu-
siasmou porque antes era a importação de tudo. A inspiração
vinha do Valter Pinto que ia a Paris copiar o Folies Bergère,
Lido e o Pigalle, e do Carlos Machado que ia a Las Vegas. Aí
eu tive coragem de dar uma nota máxima para aquela escola
que trazia liteira. Era um tema todo nosso, figurinos pesquisa-
dos na Biblioteca Nacional, sem modismo. Essa foi a inovação
do Salgueiro naquele ano, trazendo os assuntos folclóricos. Eu
tinha saído da Belas Artes, e estava na Bienal de São Paulo e

48 15
Veja, Rio de Janeiro, 1º fev. 1978.
Nei Lopes

no Salão de Arte Moderna. Mas tudo que eu via era modismo


de fora. Então eu larguei o meu atelier, e fui ser cenógrafo. Essa
é uma arte que, quando fecha o pano, morre e vai pro lixo. É
isso que eu quero. Gozar o momento. Parei de fazer as coisas
que apreciam ser eternas e fui pro morro, aceitando o convite de
Nelson Andrade, que tinha apresentado o carnaval de Debret,
e que acreditava nas mesmas coisas que eu. Eu não acredito
em alegoria, ele também não. Eu fui e estudei os complexos, os
defeitos, as lutas do povo, comi muito gato em dia de domingo,
que é tão bom quanto qualquer coelho, fiz muita amizade, tive
amor, fiz inimizade. Mas dá um negócio maravilhoso a gente,
respeitar a verdade, a criatividade, a espontaneidade do povo, e
ajudar a criar.”

De Pamplona, então, que embora aplicando sua


estética de erudito, ainda procurava adaptar as con-
dições da Escola às suas criações, chegou-se a João
Jorge Trinta (o Joãozinho Trinta, seu sucessor no
Salgueiro e hoje figura popular da cidade pelos seus
campeonatos para a Beija-Flor de Nilópolis), cujos
delírios criativos sempre estiveram em primeiro pla-
no: os sambistas que “se virassem” para entender suas
proposições.
Um exemplo disto foi a exortação de Trinta aos
atônitos compositores salgueirenses na sinopse do
enredo de 75:
“Senhores compositores do Salgueiro: com este enredo
entrego uma grande missão. Na inspiração de suas le-
tras e melodias os senhores irão escrever uma nova pági-
na na História do Brasil. A mais importante. Com a
beleza de suas músicas ficará provado que os primeiros
descobridores do Brasil foram os Fenícios. Todos ficarão 49
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

sabendo que as lendárias terras de Ofir eram as terras


brasileiras onde estavam as Minas do Rei Salomão.
Sempre as composições eram escritas sobre histórias co-
nhecidas. Agora são os senhores mesmos que irão escre-
ver esta página que está faltando na História do Brasil,
fazendo o povo vibrar através da alegria e beleza de seus
sambas-enredos. Desejo a todos muita inspiração.” —
(João Jorge Trinta)

Não satisfeito, entretanto, com os quase vinte


sambas apresentados, João — auxiliado por um dos
diretores da Escola — fundia dois sambas concorren-
tes, criava algumas frases novas e obtinha o resultado
desejado, invadindo uma seara tida até bem pouco
tempo como um dos últimos redutos inexpugnáveis
do samba: o das alas de compositores. E essa intro-
missão parace que já vinha de antes. Senão vejamos:
nos preparativos para o carnaval de 1974, o bom com-
positor Zedi apresentava no concurso para escolha do
samba-enredo do Salgueiro esta letra:
“Não cantaram em vão
O poeta e o sabiá
As pretas velhas não mentem
Falam de assombrações que assustam a gente
Lendas se deram no Maranhão
Assombrando o mundo enriquecendo a nação.

Refrão:
Eh credo em cruz eh eh ave maria,
As pretas velhas se benzem
Me arrepia
50 Ôôôôô
Nei Lopes

As pretas velhas não mentem não senhor.

2.a Parte
O rei menino Luiz XIII assistiu
Quando Maria de Medici se decidiu
Fazer novo reino de França e que pretendia
O reizinho ficou encantado com o que ouvia
Das matas fez o salão dos espelhos
Dos candelabros imensos palmeirais
Da prata do ouro ele fez o tronco imperial
De gente índia emplumada a nobreza real
Na imaginação do rei mimado
Viu sua mãe uma deusa do reino encantado

Refrão
3.a Parte:
Na praia dos lençóis na areia assombração
Um touro negro coroado é Dom Sebastião
É meia-noite na carruagem
Nhá Jança inicia sua viagem
Os azulejos que cobrem a cidade
São jóias que ela usou na mocidade
E a carruagem que maravilha
É a serpente de prata que rodeia a ilha
Refrão.”

Ao final do concurso Zedi venceu. Com um sam-


ba bonito, diga-se de passagem. Só que a letra não era
mais esta. Segundo voz corrente, na época, ela teria
sido copidescada e encurtada por determinação de
João Trinta, para que Zedi ganhasse o concurso. E
ficou assim: 51
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

“Não cantaram em vão


O poeta e o sabiá
Na fonte do ribeirão
Lenda e assombração
Contam que o rei criança
Viu o Reino de França no Maranhão
Das matas fez o salão dos espelhos
Dos candelabros palmeiras
Da gente índia a corte real
De ouro e prata um mundo ideal
Na imaginação do rei mimado
A rainha era a deusa
Do Reino Encantado
Na praia dos Lençóis
Areia assombração
O touro negro coroado é D. Sabastião
É meia-noite. Nhá Jança vem
Desce do além
Na carruagem
Do fogo vivo, luz da nobreza
Saem azulejos, sua riqueza
E a escrava, que maravilha
É a serpente de prata que rodeia a ilha
In credo in cruz ê ê
Virgem Maria
As pretas velhas se benzem
Me arrepia
Ôôôô
As pretas velhas não mentem não senhor.”

Outro aspecto interessante a observar é a progres-


52 siva descaracterização das alas iniciadas por João Trin-
Nei Lopes

ta e outros carnavalescos por volta 1977. Em termos


de desfile, elas acabaram (politicamente já haviam sido
instituídas as “Alas Reunidas”, um tipo de confedera-
ção criada pelas diretorias das escolas para restringir
a autonomia das alas individualmente; e grande parte
das alas de compositores já tinham sido transforma-
das em “departamento musical”, totalmente subor-
dinado à direção da agremiação) fundindo-se, geral-
mente contra a vontade de seus componentes, para
que a escola desfile em blocos, o que, na nossa opi-
nião, tornou o espetáculo visualmente monótono.
Na Mangueira e nas escolas menores, entretanto,
há uma maior flexibilidade na criação e na confec-
ção das fantasias: o “carnavalesco” impõe menos; ou
melhor, os componentes, através das alas, se impõem
mais, costurando ao seu jeito, adaptando o “risco” ao
seu gosto.
Sintomática, a esse respeito, é esta declaração de
Viriato Ferreira, “carnavalesco” da Portela em 79, so-
bre as vestimentas da Escola antes de sua chegada.16
“Cometiam um erro que também cometi quando co-
mecei: entregar o figurino simplesmente. Para desenhar
uma roupa, é preciso saber fazê-la. Este ano, tive o
cuidado de, além das explicações, entregar a cada ala
um molde do figurino.

É exatamente por isto (porque nelas o carnavales-


co compartilha do gosto comum, e porque nelas as
alas podem se impor) que, em geral, as fantasias das

16
O Globo, Rio de Janeiro, 4 mar. 1979. 53
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

escolas menores e da tradicional Mangueira — apesar


da uniformização já estar chegando até elas — ainda
causam um certo choque no senso estético da classe
média.
Um outro dado importante a observar é a impor-
tância dada hoje às alegorias em detrimento de coisas
tradicionais como, por exemplo, mestre-sala e porta-
-bandeira, quesito agora sem valor no concurso. O
impacto visual hoje prevalence sobre tudo (causa e
consequência da supervalorização dos “carnavales-
cos”, que agora já não respeitam nem mesmo as cores
das agremiações). As escolas vão para a avenida como
um desfile de luxuosos carros alegóricos apenas sus-
tentado pela música da gente do povo. Aos sambistas
resta aparecer como uma massa enorme e difusa, fi-
cando as glórias e as compensações financeiras para
os todo-poderosos “carnavalescos”.
Tudo isto, então, serve para mostrar uma coisa: até
o fim dos anos 50, mais ou menos, os temas, quais-
quer que fossem, eram escolhidos e trabalhados pelo
grupo. Vejam-se, por exemplo estes depoimentos de
Xangô da Mangueira e de Batatinha, da Velha Guarda
da Portela:
“Naquela época quem fazia o carnaval eram os
próprios componentes, eu dava um tanto, outro vinha
e dava outro tanto, hoje não, do que nós fazemos na
portaria, nas bebidas que vendemos nos ensaios, é que
compramos o material.

“O carnaval da Portela era feito na seguinte base: a


diretoria mandava imprimir os cartões e o companheiro
54 falecido Pedro Jibóia saia nas casas, catando donativos
Nei Lopes

— era duzentos réis de um, quatrocentos réis de outro.


Então, vinha essa quantia em mãos da diretoria e aí
comprava-se o material, o companheiro Lino, que era
o chefe do barracão, era quem desengomava, e aparecia
aquele carnaval bonito. Tudo era feito com dinheiro da
vizinhança. Aqui na Portela nunca teve o direito de
quem dá mais ouve mais, tudo é igual. A diretoria con-
vocava os componentes para tantas horas na porta da
sede, dali se conduzia a Oswaldo Cruz, e lá já tinha
a condução na hora marcada e a diretoria contava os
componentes que passavam na roleta, para depois então
pagar a passagem.” 17

Se alguma glória então houvesse no trabalho apre-


sentado pela escola, essa glória cabia aos artistas hu-
mildes do povo que certamente — e independente do
tradicional amor às suas cores — vislumbravam nela
um canal de ascensão. Mas isto nunca se deu: a com-
petição acirrada entre as escolas, cada uma em busca
do melhor espetáculo, criou a profissão de “carnava-
lesco”; e esses são hoje artistas formados pelas escolas
de Belas Artes, saídos do show-business, e nunca gen-
te nascida ou criada no mundo do samba.

17
D. A. Benjamim Baptista/Escola de Medicina e Cirurgia da Fefieg. O
samba saúda o povo e pede passagem. Rio de Janeiro, 1974. Mimeogr. 55
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

PASSISTAS E VEDETES
Até bem pouco tempo, a atuação das mulheres nas
escolas era muito importante em termos de harmonia
(segundo a definição oficial, “componentes da escola
diante do ritmo, do canto e da evolução”). A elas cabia
a maior participação no canto e na dança, quer nas
alas de baianas, quer nas simples alas femininas. Tanto
que, até hoje, respeitando-se um velho costume, dan-
çar no terreiro (quadra) das escolas menos infiltradas
é privilégio e obrigação das pastoras, das mulheres
enfim, numa interessante sobrevivência da tradição
africana observada também no candomblé.
Vestidas geralmente de “dama antiga” — como os
enredos propiciavam — as pastoras davam, até bem
pouco tempo, um toque realmente característico ao
visual das escolas.
Quanto aos homens, durante certa época, papel
destacado no espetáculo coube apenas aos mestres-
-sala e aos “passistas”, aos que solavam “brincando
no pé”, alguns deles, tendo inclusive chegado à pro-
fissionalização (embora mal remunerados) através de
shows como os de Carlos Machado e Silveira Sam-
paio, ou através de grupos formados por Ruço do
Pandeiro, Herivelto Martins, Ataulfo Alves, e outros.
Antes disso, o rádio e a indústria do disco já davam
oportunidade de trabalho a alguns músicos de Esco-
la, como Bide, Maçal, Raul Marques, Bucy Moreira,
e outros. A consciência desse canal de ascensão fez
aparecerem, então, os conjuntos de passistas-ritmis-
tas-cantores-malabaristas (que, embora revivendo o
56 estereótipo do “negro-careteiro” criado pelo teatro e
difundido pela televisão), dos quais um dos poucos
bem sucedidos, em termos comerciais, foi o “Origi-
nais do Samba”.
Saturada, entretanto, essa fórmula, os donos do
show-business passaram a apelar mais para o elemento
feminino, a visar mais a plástica que o talento no dan-
çar. A tudo isso veio juntar-se a televisão e o advento
paulatino de uma nova moral sexual. Aí, então, o que
se viu foi o seguinte: as “damas antigas” deram lugar
às “vedetes”, com plumas, apetês, tangas e pernas de
fora; o pé foi relegado a segundo plano (mesmo pela
impossibilidade de se sambar com saltos altíssimos,
de plataforma, num arremedo dos tempos gloriosos
do teatro de revista), face à importância do rebolado,
do “bole-bole”, muito mais sensual e sugestivo.
Um grande exemplo disto pôde ser visto no desfile
do Salgueiro em 75: Paula, a grande sambista — uma
das pioneiras entre as passistas-solistas — que des-
lumbrava o público com seus passos à moda antiga
e baiana, cheios de “muidinhos”, “machucadinhos”,
“bolimbolachos”, requebros (e não rebolados), negaças
e criatividade, passou despercebida aos fotógrafos e
às cameras de TV. Os responsáveis pela arrumação
da Escola certamente não sabiam onde colocar aquela
matrona de saias compridas que desfilou, então, em
meio ao tumulto de uma ala de “estudantes”, enquan-
to que as “vedetes” vinham em posição bem desta-
cada.
Outro fato nessa crescente participação de vedetes
ou pretensas vedetes foi a inovação trazida ao desfile
pela Imperatriz Leopoldinense: há alguns anos, essa
escola resolveu mostrar uma comissão de frente (nor- 57
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

malmente integrados por velhos beneméritos ou ho-


noráveis da escola) composta de mulheres em trajes
sumários. A inovação fez sucesso aos olhos de um
público que não entendia ou tinha perdido o significa-
do tradicional das comissões de frente. E certamente
abriu amplos caminhos para todas as negras, sam-
bistas ou não, que hoje, em busca de uma duvidosa
ascensão social, lutam ardentemente por ser “mulata
que não está no mapa” — numa exaltação duvidosa
de sua condição feminina e num aviltamento de sua
circunstância racial. Aliás, comentado o show “Saravá,
Iemanjá”, produzido e apresentado por Oswaldo Sar-
gentelli, na Boate Oba-Oba, no Rio, a jornalista Maria
Helana Dutra, na revista Veja de 18.12.74 constatava:
“Quase todo o tempo, Oswaldo Sargentelli saúda e ba-
jula as companhias de turismo que tiveram coragem de
levar lá seus comandados. E, ao se referir às mulatas
do elenco, trata-as como mercadorias postas à venda ou
para alugar, ressalvando porém que elas são cheirosas, e
iguais só na África.”

58
O PAPEL DA IMPRENSA
A figura do “cronista carnavalesco” é coisa bem an-
tiga. E, desde os tempos do Ameno Resedá, a imprensa,
como não poderia deixar de ser, representa uma parcela
bastante ponderável no processo de transformação por
que passaram as agremiações de carnaval e seus com-
ponentes na sua busca de status e aceitação.
Acontece, entretanto, que os chamados “cronistas
carnavalescos” era, de um modo geral, profissionais
perfeitamente identificados com a vida das socieda-
des, dos ranchos e das primitivas escolas. Assim, nos
parece que não foram estes os que mais contribuíram
para as transformações, e sim a imprensa mais geral.
De fato, a primeira tendência da imprensa não-es-
pecializada foi, atendendo ao consenso geral, conside-
rar o samba como “caso de polícia”. Esta tendência,
que veio até quase os nossos dias, pode ser atestada
por este trecho de uma reportagem de O Radical logo
depois do carnaval de 1945, a propósito de um con-
flito envolvendo sambistas ocorrido no Campo do
Vasco (ressalte-se que O Radical foi na ocasião o único
jornal a vir em defesa do pessoal do samba):
“Aquilo que aconteceu domingo último no estádio do
C.R. Vasco da Gama foi um acontecimento banal na
vida da cidade. Mas como os seus personagens vieram lá
de cima do alto dos morros cariocas, com as suas cuícas,
os seus tamborins, as suas pastoras e sua bossa, o fato
cresceu em proporções e deu margem aos mais desairosos
comentários contra essa gente boa e simples, cuja maior
desgraça é ser pobre. Tudo se disse, então, de mau e pe-
59
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

jorativo objetivando deprimir os companheiros de ideal


daquele infortunado Matinadas que caiu para sempre,
vítima de cruel fatalidade. E para quantos nunca se de-
ram ao trabalho de subir um Salgueiro ou de Percorrer
a Mangueira, ou de passar algumas horas na Portela,
ou de travar conhecimento com um Paulo da Portela,
um Cartola, um Antenor Gargalhada ou um Pedro
Palheta, a gente do morro — essa gente que fez samba
com a alma e que conta com o coração ávido de felicida-
de — é apenas um caso de polícia.” (Cabral: 1976)
Os sambistas, entretanto — e muito malandra-
mente — nunca hesitaram em cortejar o “quarto po-
der”. Paulo da Portela, mesmo, afirmava:
“Todas as minhas conquistas, eu digo sem pejo de errar,
devo-as à imprensa, esse poder inconfundível que honra
e dignifica a nossa nacionalidade. Porque só os imbecis
se levantam contra aqueles que, até com risco da própria
vida, não recuam quando na defesa da justa causa.”
(Cabral: 1974).

De uma fase, então, em que ela própria se ocupou


do samba como material policial, a imprensa (essa
eterna fabricante/destruidora de mitos) passou a mi-
tificar samba e sambista. E mais: com a instituição dos
segundos cadernos, os cronistas carnavalescos deram
lugar aos especialistas, aos analistas, aos críticos e a
alguns “donos” da cultura popular.
Fazendo do samba agora “objeto de ciência”, esses
“especialistas” — exceção feita a alguns estudiosos re-
almente sérios — passaram a ganhar status entre seus
60 pares na medida em que frequentassem a “casa da
Nei Lopes

Neuma”, fossem “íntimos” de Cartola ou já tivessem


tomado “umas canas” com o Nélson Cavaquinho.
Embora se possa levar em conta os serviços pres-
tados por esse tipo de imprensa, inclusive na redesco-
berta e consequente valorização de sambistas como o
próprio Cartola, observe-se que grande parte desses
jornalistas se beneficiou da situação. Muitos deles in-
gressaram, graças a isto, numa outra área profissional,
que é a de produtor de discos — espaço que, em se
tratando de samba, seria certamente muito mais bem
preenchido se o fosse por sambistas (e não são pou-
cos) já tarimbados nas manhas dos estúdios.
A par disso (sem falar nos titulares de colunas sobre
samba que fazem o jogo dos “cartolas” e que, ao que
consta, recebem propina para veicular certas informa-
ções; sem falar dos colunistas sociais que usam escola
de samba até para lançar livros sobre etiqueta) temos a
cobertura de revistas semanais tipo Manchete e O Cru-
zeiro. Aqui, o samba — principalmente nos desfiles de
carnaval — é despojado de sua verdadeira essência de
arte eminentemente sofrida e sentida, porque popular,
para ser apresentado como algo bonito, colorido mas
vazio; e a inversão de valores vai se procedendo na me-
dida em que os mal-orientados fotógrafos dessas pu-
blicações (salvo exceções raríssimas) procuram apenas
fixar o espetaculoso, os malabarismos, as “mulatas” e as
“personalidades” do rádio e da televisão.
Os sambistas — coitados! — esses só aparecem
mesmo quando (veja-se a Comissão de Frente da
Mangueira em 78) já não é mais possível escondê-los.
Porque, de um modo geral, esteticamente não rendem
uma boa capa de revista nem um bom plano na TV. 61
PAPAI ESTADO
Nem sempre a mola que moveu a existência das
escolas de samba foi a competição. Ao que tudo in-
dica, quem deu a elas esse sentido de que “existir é
competir” foi a imprensa. Tanto que o primeiro con-
curso de que se tem notícia foi o promovido em 9 de
fevereiro de 1932 pelo jornal O Mundo Sportivo.
Dois anos após esse primeiro desfile competitivo,
o Prefeito Pedro Ernesto (homenageado em 1955 no
enredo “Epopéia do Samba”, dos Acadêmicos do
Salgueiro)19 certamente sensibilizado pela representa-
tividade das escolas e das outras agremiações carnava-
lescas, “naquele tempo — conforme José Ramos Tinho-
rão — as únicas organizações capazes de congregar as massas
populares da cidade” (Tinhorão: 1974), resolve oficializar
e patrocinar o concurso. E a exemplo do que ocorreu
quando o Sistema não pôde mais ignorar a religião
afro-brasileira, a condição imposta às escolas para
participarem da competição oficial foi registrarem-se
na polícia.
De fato, o único meio de se controlar essa força
que eram negros e mestiços menos de 50 anos após a
abolição, e num momento em que a sociedade brasi-
leira ainda era submetida a um processo de embran-
quecimento, era oficializar seu carnaval. O desfile de
19
Epopéia do samba (Duduca, Bala e Juca). Exaltando/ A vitória do samba
em nosso Brasil/ Recordamos/ O passado de infortúnio quando o qual
surgiu/ Porque não queriam chegar à razão/ Queriam eliminar/ Um pro-
duto genuine da nossa Nação/ Foi para a felicidade do sambista/ Que se
interessou por nosso samba/ O eminente Doutor Pedro Ernesto Batista/
Que hoje se encontra no reino da glória/ Mas deixou na terra/ Portas
62 abertas para o caminho da vitória/ etc.
Nei Lopes

1935, então, foi realizado sob o patrocínio do Con-


selho de Turismo da PDF e organizado pelo jornal
A Nação com a ajuda direta do próprio subdiretor de
Turismo.
E além de procurar controlar as massas populares
através do samba, a ditadura, em namoro com o na-
zismo, se utilizava desse samba para conseguir seus
objetivos: no dia 30 de janeiro de 1936 no programa
de rádio “A Hora do Brasil” era feito, diretamente do
morro da Mangueira, segundo informações de Sérgio
Cabral (Cabral: 1974), uma transmissão especial, para
a Alemanha.
Mas essa proteção, esse paternalismo do Estado
interessava aos primeiros sambistas. Evidente que
uma agremiação aceita oficialmente, legalizada enfim,
conferia um outro status a seus componentes, dava di-
reito a ajuda financeira e a outras prerrogativas (como
ocorre hoje com a concessão de títulos de “utilida-
de pública”), e era um degrau a mais alcançado pelas
associações negras e mestiças em busca de ascensão
social. Só que o Estado cobrava caro essa concessão.
Com a oficialização do concurso, os regulamentos
passaram a ser elaborados pelos órgãos do Governo.
Então, veio a obrigatoriedade já referida de exaltar a
História oficial. E em meio a ainda uma ou outra es-
caramuça com a polícia, o samba ia deixando de ser
manifestação de arte popular para ser promoção tu-
rística e faturar para o Estado. No carnaval de 1959,
por exemplo, o autor deste trabalho se deslumbrava,
da calçada, com a presença no palanque oficial da atriz
norte-americana Jayne Mansfield, convidada pelo De-
partamento de Turismo para assistir à festa carioca. 63
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

Em 1962 os órgãos de turismo fechavam parte


da Avenida Rio Branco, instalavam arquibancadas
em frente à Biblioteca Nacional e cobravam ingres-
sos. Depois, em 1970, a pretexto de acabar com os
atrasos, esses órgãos limitavam o tempo de desfile de
cada escola (nesse ano, a televisão, que antes tomava
apenas algumas cenas do desfile, passava a transmiti-
-lo integralmente).
Por volta de 1965, a Secretaria de Turismo organi-
zava, além do concurso das escolas, outras competi-
ções como a escolha do “Cidadão Samba”, da “Em-
baixatriz do Samba”, do “Pandeiro de Ouro” etc. Por
essa época, também, toda a avenida dos desfiles era
fechada, só sendo permitido o ingresso de público
pagante. Aí então o acontecimento deixava definiti-
vamente de ser manfestação de arte popular para ser
promoção oficial.
Tudo culminou, entretanto, em novembro de
1975. E culminou com a assinatura de um contrato de
prestação de serviços, com vigência de quatro anos,
que obriga as 44 escolas de samba cariocas a participa-
rem de todas as atividades programadas pela Riotur,
mediante a remuneração global (a ser dividida entre
as participantes) de 28% da renda do espetáculo, ca-
bendo 12% para a Associação das Escolas de Samba
e 60% para a Riotur.
Essa remuneração, entretanto, não é paga às esco-
las diretamente e sim através da Associação (escolas
do 1.º grupo — 15%; escolas do 2.º — 8%; escolas
do 3.º — 5%). E como esse pagamento só é liberado
às vésperas do carnaval, a Associação criou o meca-
64 nismo da “carta de crédito”, que é aceita, para com-
Nei Lopes

pras a serem feitas pelas escolas, por certos fornece-


dores que têm convênio com o órgão representativo
dos sambistas. Esse documento, segundo dizem, tem
dado margem a uma série de desmandos por parte
das cúpulas.
Veja-se, então, que a profissionalização atingiu ape-
nas as escolas como um todo. E um todo onde as par-
tes (à exceção de certas cúpulas dirigentes) permane-
cem tão amadoras como nos tempos da “Deixa Falar”.

65
SAMBA, RÁDIO E DISCO
A criação musical foi um dos poucos caminhos
através do qual alguns sambistas conseguiram real-
mente uma expressiva mudança de status econômico e
social. Mas muito embora já na década de 20, compo-
sitores de escola de samba tenham conseguido pene-
trar no mundo do rádio e do disco — principalmente
vendendo seus sambas ou dando parceria a autores e
intérpretes consagrados — isto é fato novo.
Parece certo que a primeira gravação comercial de
um samba-enredo foi feita em 1946. De fato, nesse
ano, o cantor Gilberto Alves gravava em selo Odeon
o samba “Natureza Bela do Meu Brasil”, de Henrique
Mesquita e (no disco) Felisberto Martins, que servira
de tema aos Unidos da Tijuca dez anos antes (Tinho-
rão, 1974: 173).
Em 1949, o Império Serrano desfilava com
“Exaltação a Tiradentes”, de Mano Décio, Pentea-
do e Estanislau Silva, samba que, gravado, tornou-
-se um verdadeiro clássico dos sambas-enredo, não
tanto pela qualidade (Cartola e Carlos Cachaça, por
exemplo, já tinham feito o “Vale do São Francisco”,
em 1948), mas principalmente pelo “exotismo primi-
tivo” tão ao gosto das classes emergentes em todos
os tempos.
Em 1956, o Salgueiro gravava pela Todamérica o
primeiro LP com sambas compostos e interpretados
por compositores, ritmistas e cantores de uma esco-
la de samba. E algum tempo depois Emilinha Borba
gravava o samba-enredo salgueirense de 1959, “Brasil
66 Fonte das Artes”, de Djalma Sabiá.
Nei Lopes

Com a popularização dos desfiles, passou até a dar


um certo status aos novos espectadores aprender os
sambas nas arquibancadas e exibir, em certos grupos,
intimidade com as coisas das escolas (por essa épo-
ca havia uma distinção nítida entre sambas de escola
— coisa de iniciados — e sambas “de rádio”). Daí
a indústria de discos ter tido a idéia de logo após os
desfiles lançar um LP contendo as gravações. A ini-
ciativa coube à gravadora Top-Tape, que logo após
o carnaval de 1968 lançava um disco gravado ao vivo
nos ensaios e tratado em estúdio, contendo não só os
sambas, como pequenas faixas com o ritmo caracte-
rístico de cada escola.
Nesse ponto, a sociedade brasileira já havia chega-
do àquele estágio de desenvolvimento capitalista onde
tudo, inclusive a criação artística, é objeto de consu-
mo, é mercadoria. Assim, a sofreguidão com que a
classe média passava a influir no destino das escolas
e a querer consumir cada vez mais as coisas a elas li-
gadas fez com que a gravadora invertesse o processo:
percebendo que era um grande negócio lançar os dis-
cos antes do carnaval, numa campanha promocional
que abrangia o período de festas de fim de ano e cul-
minava (às vezes até ultrapassava) no desfile, ela pôs
mãos à obra.
Esse foi o fato que deu margem a quase todas as
grandes distorções subsequentes: a disputa interna
pelo samba-enredo passou a ganhar dimensões bem
maiores e diferentes (à glória de ser campeão, que se
restringia ao âmbito das escolas, somavam-se agora
as possibilidades de sucesso comercial); a corrupção
e as “armações” começaram a se tornar quesitos im- 67
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

portantes na escolha do samba; a gravadora Top-Tape


e suas editoras de músicas passaram a influir na deci-
são e a manter compositores e escolas, em geral com
a intermediação de dirigentes, atrelados a contratos
leoninos que — ao que consta — são manipulados
dentro do mesmo mecanismo das “cartas de crédito”.
E tudo isto porque o sambas-enredo já eram cantados
também nos salões, durante o carnaval, reduzindo ao
mínmo a execução das marchinhas e dos sambas de
compositores do meio radiofônico.
Em 1971, o compositor Zuzuca com o seu “Festa
para um Rei Negro (Pega no Ganzé)”, samba-enredo
do Salgueiro naquele ano, se tornava o grande ven-
cedor do carnaval, arrecadando pela execução de sua
música direitos autorais que somavam algumas cente-
nas de milhares de cruzeiros. Esse feito seria repetido
no ano seguinte com o samba “Minha Madrinha Que-
rida, Mangueira (Tengo, Tengo)” apesar de — por sua
estrutura, pela divulgação maciça que teve, e por ser
cantado “atravessando” por toda arquibancada duran-
te o desfile — ter sido esse samba o responsável pelo
grande fiasco do Salgueiro naquele ano. E Zuzuca
continua até hoje, quase que só com essas duas músi-
cas, recebendo bons dreitos a cada carnaval.
Paralelamene a tudo isso, ocorria a partir de 1973
uma verdadeira explosão comercial do samba. E tudo
começara em 1967, num dos festivais de música da
TV Record de São Paulo, quando, a pretexto de mos-
trar o “exotismo primitivo” dos sambistas cariocas,
incluiu-se entre as músicas classificadas um samba
estilo partido-alto, de autoria do pioneiro Martinho
68 da Vila. Só que aí o sistema se deu mal. Cinco anos
depois do festival e na esteira de Martinho, essa ex-
plosão colocou o samba de meio de ano, e não apenas
o samba-enredo, nas paradas de sucesso, divulgou o
partido-alto, fez surgirem e ressurgirem novos e anti-
gos valores oriundos das escolas.
Nessa onda, surgiram também os shows-bailes, inde-
vidamente chamados de “rodas de samba”, que, ape-
sar de terem servido durante algum tempo como um
veículo de divulgação para os compositores de samba
(o grande sucesso carnavalesco “Ninguém Tasca” de
Martinho da Muda, por exemplo, “nasceu” nas “rodas
de samba” do Renascença Clube e do Cordão da Bola
Preta), caíram no perigoso terreno da exploração de-
senfreada dos talentos de uns poucos compositores e
no “lançamento” de outros absolutamente medíocres.

69
ESTUDO DE CASO
F. nasceu em 1942 num subúrbio carioca, dentro
de uma família negra e operária. Seu pai era artífice da
seção de obras de uma repartição federal e sua mãe,
dona-de-casa.
Caçula dessa família de doze filhos, F. cresceu num
ambiente absolutamente musical. Mas a música que se
fazia em sua casa era basicamente choro, já que sam-
ba ainda era, segundo a ótica de sua família, coisa de
“gente de morro”.
Uma primeira união de seu pai deu-lhe, entretanto,
uma “tia” que era compositora da escola de samba
Paz e Amor (de Bento Ribeiro) e, depois, da Porte-
la. Essa “tia” ministrou-lhe as primeiras “lições” de
samba, criando um bloco infantil onde F. era baliza
(hoje mestre-sala) e cuja bateria era composta de ins-
trumentos feitos, pelas próprias crianças, de latas de
manteiga (de 10 e 20 kg) “encouradas” com camadas
de papel de cimento.
Com dez anos de idade, F. viu pela primeira vez
uma escola de samba em desfile. Era a Portela de
sua “tia”, cantando um samba-enredo do hoje famo-
so Manacéa (Manassés de Andrade, ilustre autor de
“Quantas Lágrimas”, sucesso da cantora Cristina).
Esse desfile se incorporou às mais fortes impressões
de F. e permaneceu sempre em sua lembrança. Tanto
que, daí, ele resolveu que um dia ingressaria numa
escola de samba, resolução que durante muito tempo
contou com a total desaprovação de sua família.
Em 1953, F, iniciou seu curso ginasial, concluído
70 (era o primeiro da família a atingir tão “alto” grau) em
Nei Lopes

1957. E no ginásio (uma escola profissionalizante in-


clusive com internato) travou conhecimento com ra-
pazes e meninos ligados a diversas escolas de samba.
Nessa escola, então, seu recreio era pontilhado de ba-
tucadas e rodas de pernada que motivavam, às vezes,
até algumas punições disciplinares.
Mas, no ginásio também, estudando inglês e vendo
seu universo se alargar, F. não podia deixar de receber
outras influências. Assim, namorou a música norte-ame-
ricana (ele que já tinha nascido embalado também por
boleros, mambos, rumbas e guarachas), dançou e cantou
rock, fez “mímica” em palcos de clubes suburbanos. E
começou, depois, a tirar seus primeiros acordes ao violão
sob a égide da bossa-nova, renegando as baixarias (mes-
mo porque era mais difícil tocar à antiga) dos violões de
seu pai, de seus tios e de seus irmãos mais velhos.
Entretanto, o velho sonho de sair numa escola
de samba persistia. Principalmente porque escola de
samba para ele ainda era algo assim meio “de seita”,
aberto apenas a uns poucos iniciados.
Suas perspectivas, porém, tomaram outro caminho
quando assistiu aos carnavais da “Escola X” no limiar
dos anos 60. É que a “Escola X” já era bem diferente
das outras escolas: quase não tinha mais as alegorias
“toscas”, os “bonecos tortos”, as fantasias de “mau
gusto”, que a gente do morro fazia. E F. já começava
a ter a sua cabeça “feita” pelos valores da classe mé-
dia; já começava a ser seduzido por uma estética que
não era a da sua classe de origem. Daí, poucos anos
depois, já universitário, ele ingressava na “Escola X”
como componente, passando, depois de algum tempo
para a ala de compositores. 71
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

Mas — Segundo F. — a realidade interna das


escolas de samba, já no final da década de 60, era
algo meio assustador. E ele nos conta: bicho, mar-
ginais e samba não se separavam; e com a explosão
ocorrida nos anos 60/70 o samba passava a movi-
mentar quase tanto dinheiro quanto outro qualquer
bom negócio. O superfaturamento nas quadras, a in-
dústria do disco, o comércio das “rodas de samba”
e a “profissão” de dono de ala tinham feito surgir
novos milionários e novos interesses. Os homens
fortes da contravenção, já organizados empresarial-
mente, passavam a considerar as escolas exatamente
como o negócio que são, pois, além de lucro, elas já
davam prestígio social e até político, abrindo portas
e sorrisos tão sonhados quanto difíceis para certos
dirigentes, embora quase nunca para os verdadeiros
sambistas.
Como reflexo do desequilíbrio social — prossegue
F. em seu depoimento — que a ostentação e a cor-
rupção das escolas trouxeram às suas comunidades
(cujos integrantes, de um modo geral, só têm acesso
às festividades “com a carteira social e com a mensa-
lidade em dia”, isto é, pagando), a figura do sambista
deu lugar à do garotão queimado de praia que vai ao
samba em busca do sexo e do tóxico; a inspiração do
poeta cedeu ao canto de sereia do sucesso comercial
fácil; o músico amador virou remunerado (porém
mal-remunerado); o patriarca passou de “coronel” a
mafioso. Então entraram em cena: o pivete de tambo-
rim na mão e olhos na bolsa dos turistas, o pistoleiro
assalariado tocando repinique, o marcador de surdo
72 cobrando proteção e virando capanga, guarda-costas.
Porque esses foram os canais que lhes restaram para a
tão sonhada ascensão econômica.
Aí, F., já compreendendo a pureza e a verdade de
seus padrões culturais de infância, já percebendo que
essa nova “ideologia” das escolas de samba “não tinha
nada a ver” – segundo suas próprias palavras – e ten-
do ascendido socialmente através de outros caminhos
que não o samba – resolveu parar um pouco e refletir.

73
O SAMBA NA REALIDADE
Hoje, o samba na realidade, é um símbolo nacio-
nal. Ja vai longe, felizmente, o tempo em que sambista
era sinônimo de vagabundo, desclassificado, marginal.
Para isto contribuíram diversos fatores, como a ine-
guável criatividade da maioria dos produtores desse
tipo de arte e o estágio econômico a que chegou a so-
ciedade brasileira, onde o samba é um produto como
outro qualquer.
Só que a cultura negra no Brasil ainda é matéria-
-prima (ao contrário, por exemplo, da cultura oriental
cujos jiu-jitsu, judô, karatê, macrobiótica, igreja mes-
siânica, etc., já chegam aqui na condição de produ-
tos perfeitamente industrializados e embalados para
o consumo redendo frutos consideráveis aos seus
produtos). Assim, sua exploração e seu consumo têm
sido feitos de maneira absolutamente predatória. Haja
visto o que vem ocorrendo com os cultos religiosos, a
culinária, por exemplo, e o samba de um modo geral.
Produto tipicamente brasileiro mas com fortes
componentes negro-africanos, o samba já é, em al-
guns casos, consumido industrialmente. É, de certa
forma, quase tão populr no mundo, pelo menos em
tese, quanto o café e quanto Pelé. Mas daí, a pensar-se
que o sambista ascendeu socialmente vai uma distân-
cia muito grande.
Na realidade, o samba já propiciou melhores con-
dições de vida a alguns sambistas, geralmente compo-
sitores, instrumentistas e cantores. Mas uma ascensão
global das comunidades que produzem samba (en-
74 quanto manifestação de arte popular ou enquanto es-
Nei Lopes

petáculo) não ocorreu. Cartola, por exemplo, ganha-


va, em 1968, do Ministro da Indústria e do Comércio,
Edmundo de Macedo Soares, uma casa, por seu talen-
to de compositor e seu “comportamento exemplar”
como funcionário do Ministério.20 Outros sambistas,
antes até favelados, hoje têm boa casa e automóvel.
Mas considerar isto regra geral dentro do samba é
muita ingenuidade.
Na realidade, o samba cresceu. Mas cresceu em
prejuízo dos verdadeiros sambistas, que perderam
o comando. Neuma Gonçalves, a Dona Neuma da
Mangueira, por exemplo, é bastante clara:
“A Mangueira cresceu de tal forma que não é qualquer
um que pode ser Diretor. Por exemplo, o Departamento
de Finanças. Eu me lembro que eu descia com um papel
almaço (…) subia o Buraco Quente com um papel al-
maço, um lápis, eu apanhava o Marcelinho:

“Vamos lá! Vamos fazer uma Diretoria! Vamos fazer


uma Junta Governativa! (…)

“Agora não! Agora não pode mais ser assim! Nós te-
mos um quadro social de mais de cinco mil sócios!”
(Goldwasser, 1975: 134).
E o depoimento de um compositor, também da
Mangueira, é mais elucidativo ainda:
“Mas a sociedade está se aproximando tanto, que sair
numa Escola de Samba como as grandes Escolas de
Samba — eu não quero unicamente citar Manguei-
20
O Globo, Rio de Janeiro 1º out. 1968. 75
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

ra — dá uma promoção… Porque, quem tem muito


dinheiro, só quer promoção, porque não precisa de mais
nada. Dá uma promoção tamanha que, daqui a alguns
anos, poucos negros poderão sair no destaque; haverá
assim: quem tiver mais dinheiro é que vai sair. E isso é
bom. Sinceramente, isso é bom. É bom porque tem esse
detalhe de dar oportunidade a muita gente de arranjar
emprego, mudar de emprego, casa da Cohab, diga-se
de passagem assim, dá oportunidade para melhor dá
a oportunidade de arranjar o emprego, eu digo, o em-
prego melhorado e o mais, está dando cultura ao povo.”
(Idem:134).

De fato, grande parte dos sambistas vê a presen-


ça do elemento estranho, principalmente “de anel no
dedo”, como um canal para sua ascensão social. E a
maioria dos analistas vê esse fato como mais um dado
positivo e democrático. Mas a experiência comprova
que a presença do elemento de fora no mundo do
samba tem sido, na grande maioria dos casos, preda-
tória. E os fatos estão aí para confirmar: Em 1967,
por exemplo, o figurinista Evandro de Castro Lima
desfilava no Império Serrano, cujo enredo era “São
Paulo, Chapadão de Glórias”, com a mesma fantasia
de “Gengis-Khan” (!) com que se exibira dias antes
num dos concursos carnavalescos. Ainda neste mes-
mo ano, a Bradil–Cia. Brasileira de Divulgação do Li-
vro tentava impingir ao Império da Tijuca o enredo
“Vovô Felício” para promover sua coleção de livros
infantis de autoria do escritor Vicente Guimarães.
Não podemos afirmar se conseguiu, mas o fato é que
76 o enredo apresentado foi nada mais nada menos que
“O Reino Encantado de Vicente Guimarães”, com
que a escola se classificou em oitavo lugar no primei-
ro grupo. E na edição de 2.3.74 da revista Manchete,
o carnavalesco e desfilante Clovis Bornay declarava:
“Quem disse que escola de samba pertence aos negros?
Os melhores sambistas são brancos! Ora! Não exis-
te uma invasão de brancos, o acontece é que o samba
está recebendo mais cultura. A minha participação nas
escolas não é para quebrar origens, mas para ensinar
aos velhos sambistas como devem ser feitos os enredos
e fantasias. Eu acho válido, muito válido. Afinal, a
contribuição do branco é necessaria porque a cultura
branca é superior. A cultura negra é típica. E Deus me
livre de ser racista, isso nem existe aqui no Brasil. E
uma prova dessa integração é que meu tipo predileto é
o mulato, é uma raça maravilhosa, nova é... vibrante,
muito vibrante!”
Tudo isso vem afirmar o seguinte: a presença do
elemento estranho, mais a oficialização dos concur-
sos, mais a atuação de certo tipo de imprensa e das
multinacionais do disco, aliados ao sonho de uma
profissionalização que nunca ocorreu verdadeira e
globalmente, veio destruir o espirito de comunidade
que caracterizou as escolas até uma certa época. O
samba hoje proporciona renda ao Estado, enseja trá-
fico de influências e dá prestígio aos dirigentes. Mas,
em contrapartida, as escolas deixaram de ser fator de
aglutinação comunitária para serem deturpadas so-
ciedades comerciais onde o lucro é o objetivo. Esse
lucro, entretanto, beneficia a outros que não o verda-
deiro sambista, o qual quase sempre alijado do centro 77
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

das decisões, assiste perplexo às coisas se transforma-


rem e, em geral, quando quer ganhar alguma dinheiro
com o samba (a não que entre para certas cúpulas di-
rigentes ou escolha a profissão de “dono” de ala), tem
é que continuar dentro ou fora da quadra vendendo
churrasquinho, vendendo para o patrão chapeuzinhos
e lembranças, pobre e anonimo como sempre.

78
ANEXOS
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

1
CARTA ENVIADA À ALA DOS
COMPOSITORES DOS ACADEMICOS
DO SALGUEIRO

Rio de Janeiro, maio de 1974.


Ilmo. Sr.
Presidente da
Ala dos compositores do
GRES Acadêmicos do Salgueiro

Nesta

Caro Presidente:

Primeiro, meus parabéns - embora meio atrasa-


dos – pela eleição correta, livre e democratica, cujo
resultado realmente expressou a vontade da maioria.
Depois, algumas considerações, a título de sugestão,
de colaboração bem intencionada.
Corre no meio do “novo” samba carioca – e, in-
felizmente, dentro do próprio Salgueiro – uma im-
pressão que deve urgentemente ser desfeita: a de que
nossa ala, salvo rarissimas exceções, não teria bons
compositores.
V. Sa mesmo já deve ter ouvido isso por aí.
Quem, entretanto, conhece das coisas do samba,
quem realmente não se impressiona com o sucesso
80 facil, sabe que não é nada disso.
No meu entender, o que acontece é apenas fruto
da desarticulação entre a alta direção da Escola e seus
componentes; do desconhecimento – até mesmo his-
tórico – do que se tem dentro da própria casa.
Para se corrigir essa imagem distorcida, acho que
poderíamos fazer principalmente o seguinte:
1. Promover um maior convívio entre os compo-
sitores, através de reuniões festivas, num bar ou num
clube — não sei —, onde cada um pudesse conhecer
melhor o outro, onde cada um pudesse mostrar seus
“pagodes”, falar de suas coisas etc.

2. Promover festivais internos (sem julgamentos, já


que obra de arte, estado de espírito não se julga) em que
a massa da Escola ficasse a par de cada lançamento de
cada um de nós. Para isso, seriam necessárias providen-
cias junto à Diretoria para, principalmente, se melhorar
o “som” da quadra, que nos tem prejudicado bastante.

3. Ter permanentemente um membro da ala junto


à Diretoria, defendendo nossos interesses e nos infor-
mando sobre as decisões.

4. Manter um fichário com endereços de todos os


compositores, para comunicação mais rápida e mais
eficiente.

5. Executar um plano de relações públicas junto


às outras alas de compositores, junto à imprensa, jun-
to às gravadoras, produtores e empresários, para que
nossa obra receba a divulgação que merece.
81
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

6. Criar um movimento entre a “Velha-Guarda”,


para que as novas gerações de salgueirenses conhe-
çam e não percam de vista um dos mais importantes
conjuntos de obra musical do samba carioca; para que
se redivulgue a obra de gente como “Cachinê”, por
exemplo.

7. Incentivar a maior participação do compositor


nas decisões da ala (as fantasias, por exemplo, acho
que deveriam ser sempre submetidas à aprovação do
grupo, para que se unisse o útil ao agradável, com rou-
pas aproveitáveis, depois, para shows etc; com trajes
que a exemplo das baianas expressassem também uma
tradição num dos últimos e mais importantes redutos
na defesa do samba, que é a ala de compositores).

8. Conscientizar, enfim, o compositor de que ele


é uma das peças fundamentais na organização da Es-
cola, e que só com a união se poderá evitar que ela,
a Escola, seja um veículo para promoções pessoais,
para a expressão de talentos artísticos e intelectualida-
des muitas vezes discutíveis.

Por enquanto é só. Porque o mais é me colocar à


disposição da ala para que esteja ao meu alcance e de-
sejar a V.Sa. e à nova diretoria uma gestão felicíssima,
para benefício dos compositores, do Salgueiro e do
samba carioca.

Cordialmente,
Nei Lopes

82
2
ANTEPROJETO DE REGIMENTO INTERNO
DA ALA DE COMPOSITORES
ANTÔNIO CANDEIA FILHO
DO G.R.A.N. ESCOLA DE SAMBA QUILOMBO

1. A “Ala de Compositores Antônio Candeia Fi-


lho” é a reunião de compositores de samba filiados ao
Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba
Quilombo, sem distinção de qualquer espécie, nem
mesmo a vinculação a outra agremiação do gênero.
2. Integram a Ala: compositores efetivos (em nú-
mero de quarenta) e honorários; três cantores e um
pequeno conjunto instrumental composto de cava-
quinho, pandeiro e violão.
3. São considerados membros efetivos os compo-
nentes que tenham participado, na condição de com-
positores, de um dos dois últimos desfiles carnavales-
cos do Quilombo e cuja relação integra o presente.
4. São membros honorários, com direito a voto nas
reuniões da Ala mas sem poder disputar os concursos
musicais internos, outros compositores de samba que
tenham participado na condição de diretores ou cola-
boradores, de desfiles do Quilombo anteriores a este
Regimento.
5. A Ala será administrada por uma Diretoria,
eleita de dois em dois anos, composta de Presidente,
Vice-Presidente, Primeiro e Segundo Secretários, Pri-
meiro e Segundo Tesoureiros e um Diretor de Rela-
ções Públicas, com as seguintes atribuições: 83
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

a) Ao Presidente cabe: convocar e presidir as reu-


niões de diretoria; assinar todos os documentos e co-
municados da Ala; representar a Ala junto à Diretoria
do Quilombo e em contatos externos.
b) Ao Vice-Presidente cabe substituir o Presidente
em suas ausências e impedimentos.
c) Ao Primeiro Secretário cabe: secretariar as reu-
niões da Ala, redigindo as respectivas atas e assinan-
do-as com o Presidente; manter um fichário atualiza-
do dos compositores com os respectivos endereços;
redigir as comunicações internas e externas.
d) Ao Segundo Secretário cabe auxiliar e substituir
o Primeiro em suas ausências e impedimentos.
e) Ao Primeiro Tesoureiro cabe administrar as fi-
nanças da Ala, apresentando mensalmente os balance-
tes de receita e despesa.
f) Ao Segundo Tesoureiro cabe substituir o Pri-
meiro em seus impedimentos e ausências.
g) Ao Diretor de Relações Públicas cabe dar publi-
cidade às atividades da Ala, mantendo, para tanto, os
necessários contatos com os veículos de divulgação.
6. A Ala se reunirá ordinariamente no primeiro do-
mingo de cada mês, às 10 horas da manhã, e extraor-
dinariamente sempre que necessário, por convocação
de qualquer um de seus componentes.
7. Às reuniões da Ala, depois de discutida a Or-
dem do Dia e os Assuntos Gerais, seguir-se-ão sem-
pre momentos de convívio informal, para integração
social e musical dos compositores.
8. É obrigação de todos os compositores divulga-
rem e participarem das promoções e festividades da
84 Ala e do Quilombo.
Nei Lopes

9. A Diretoria da Ala elaborará uma escala para


comparecimento dos compositores efetivos às pro-
moções do Quilombo, de modo a assegurar a presen-
ça de no mínimo dez compositores a cada promoção.
10. Os efetivos que, escalados para comparecer às
promoções e festividades, faltarem sem motivo justo,
serão passíveis de punição, a critério da Diretoria da Ala.
11. A exclusão ou inclusão de qualquer membro
sera discutida por toda a Ala em reunião especialmen-
te convocada para esse fim.
12. Os compositores efetivos se obrigam a parti-
cipar dos concursos musicais internos do Quilombo,
sendo que, com relação espeficamente aos concursos
de samba-enredo, o compositor ou compositores que
vencerem dois anos consecutivos não poderão parti-
cipar do concurso do ano seguinte.
13. Todos os compositores, efetivos e honorários,
e notamente os já profissionais, deverão desenvolver
esforços no sentido de divulgar a obra musical dos
demais membros da Ala.
14. Dos pagamentos de cachês provenientes de
espetáculos, exibições e gravações feitos em nome da
Ala, ressalvados os direitos autorais, reverterão 30%
(trinta por cento) para a Caixa da Ala.
15. A Diretoria da Ala se obriga, quando do car-
naval, a providenciar e a submeter à aprovação de to-
dos os compositores o figurino do desfile, que deverá
obedecer à tradição das alas de compositores, com
chapéu e outros adereços usuais.
16. As indumentarias deverão ser confeccionadas
de preferência por costureiro ou costureira ligados ao
mundo do samba e especialmente ao Quilombo. 85
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

17. Para efeito de custear, no todo ou em parte, a


indumentaria dos compositores no carnaval, a Dire-
toria da Ala se obriga a promover um mínimo de três
festividades por ano.
18. Os compositores que notoriamente não cola-
borarem para o sucesso das festividades da Ala não
farão jus à ajuda para a indumentária.
19. Para complementar o número de componentes
efetivos previsto no Item 2 deste Regimento, serão
admitidos na Ala os primeiros colocados no 1.º Con-
curso de Sambas de Terreiro do Quilombo, a ser rea-
lizado com vistas ao carnaval de 1980, podendo cada
membro apresentar um concorrente convidado;
20. Este Regimento entrará em vigor, na data de
sua aprovação pela Diretoria do G.R.A.N.E.S. Qui-
lombo, revogada as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, junho de 1979


Nei Lopes

OBS.: Este Regimento foi aprovado, com emendas, pela


diretoria do G.R.A.N.E.S. Quilombo em junho de 1979.

86
3
PRINCÍPIOS BÁSICOS DO QUILOMBO
(para serem observados nos próximos desfiles)

Obs.: — Princípios elaborados pelos fundadores,


para servirem de orientação aos Diretores, aos chefes
de alas, coordenadores, e a todos os sócios e partici-
pantes do G.R.A.N. Escola de Samba Quilombo.

1.º – Não desenvolver alegorias, que na realidade


são cópias, (alias de péssima qualidade) do carnaval
europeu, anterior ao próprio descobrimento do Bra-
sil, não tendo portanto nenhuma ligação com o nosso
samba.
2.º – Não promover falsos destaques. Cada partici-
pante poderá se tornar destaque, dentro de um desfile
da escola, em função da sua própria capacidade de
sambar ou tocar bem um instrumento de ritmo.
3.º – Não permitir fantasias de alto luxo nos desfi-
les, evitando-se assim o “destaque do supérfluo”, que
chega a humilhar as verdadeiras passistas, que, sem
condições financeiras para acompanhar a “rica evolu-
ção do luxo”, acabam por não desfilar.
4.º – Não desenvolver coreografia ensaiadas em
grupo, pois isto nunca houve no samba. As coreogra-
fias que vemos nas atuais escolas de samba são cópias,
(aliás péssimas), das inúmeras coreografias do can-can
francês surgido no início do século vinte. Samba mes-
mo é no passo curto, é no drible de corpo, é “no faz que vai, 87
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

mas não vai”, é no passo largo cheio de ginga, é no balan-


çar dos braços, é no girar constante da cabeça, mostrando
um sorriso contagiante, uma combinação improvisada de
movimentos que ninguém do mundo consegue fazer
igual ao brasileiro.

Obs.: Carros alegóricos e fantasias ricas, vários países do


mundo fazem bem melhor do que nós no Brasil, sem compa-
ração.
Ginga?... só os brasileiros.

88
G.R.A.N. ESCOLA DE SAMBA QUILOMBO
CARNAVAL DE 1978
“AO POVO EM FORMA DE ARTE”
(Wilson Moreira e Nei Lopes)

Quilombo
Pesquisou suas raízes
E os momentos mais felizes
De uma raça singular
E veio
Pra mostrar esta pesquisa
Na ocasião precisa
Em forma de arte popular

Há mais
De quarenta mil anos atrás
A arte negra já resplandecia
Mais tarde a Etiópia milenar
Sua cultura até o Egito estendia
Daí o legendário mundo grego
A todo negro de “etíope” chamou
Depois vieram reinos suntuosos
De nível cultural superior
Que hoje são lembranças de um passado
Que a força da ambição exterminou. (bis)

Em toda a cultura nacional


Na arte e até mesmo na ciência 89
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

O modo africano de viver


Exerceu grande influência
E o negro brasileiro
Apesar de tempos infelizes
Lutou, viveu, morreu e se integrou
Sem abandonar suas raízes

Por isto o Quilombo desfila


Devolvendo em seu estandarte
A história de suas origens
Ao povo, em forma de arte.

90
G.R.A.N ESCOLA DE SAMBA QUILOMBO
“NOVENTA ANOS DE ABOLIÇÃO”
(Wilson Moreira e Nei Lopes)

Hoje a festa é nossa


Não temos muito para oferecer
Mas os atabaques vão dobrando
Com toda a alegria de viver.
Festa no Quilombo
Noventa anos de abolição
Todo mundo unido pelo amor
Não importa a cor
Vale o coração
Nossa festa hoje é homenagem
À luta contra as injustiças raciais
Que vem de séculos passados
E chega até os dias atuais (bis)

Reverenciamos a memória
Desses Bravos que fizeram nossa história:

Zumbi, Licutan e Alumá,


Zundu, Luís Sanin e Dandará,
E os Quilombolas de hoje em dia
São Candeia que nos alumia.
E hoje nesta festa
Noventa anos de abolição
Quilombo vem mostrar que a igualdade
91
O samba, na realidade: Utopia da ascensão social do sambista

O negro vai moldar


Com a própria mão
E, em luta pelo seu lugar ao sol,
Não é só bom de samba
E futebol.

92
POSFÁCIO DESAPONTADÍSSIMO
Lidas agora, três décadas depois de sua publicação,
as inquietações formuladas neste livro podem até ser
vistas como um exercício de futurismo. Em todos os
aspectos abordados, o samba das escolas afastou-se
tanto de seus propósitos iniciais, inclusive dos princí-
pios consignados na “Carta do Samba” (documento
que, já em 1962, propunha uma espécie de choque
de ordem), que na atualidade já configuram um outro
tipo de manifestação.
Não mais arte popular e sim arte de massa; não
mais expressão da cultura afro-brasileira e sim item
mercadológico da cultura globalizada, o carnaval das
escolas de samba tanto ganhou em beleza e ousadia
quanto perdeu em essência; e o cotidiano das agre-
miações, voltado apenas para a competição carnava-
lesca, perdeu a alegria e o brilho de outrora.
As transformações foram, a nosso juízo, acima de
tudo empobrecedoras. Prova disso é que, depois de
Jamelão, falecido em 2008, e Dona Ivone Lara, com
90 anos à época deste texto, nenhum outro cantor ou
compositor projetado artisticamente a partir de uma
escola de samba carioca alcançou protagonismo no
diversificado universo da música popular brasileira.

Nei Lopes - junho, 2012.

93
BIBLIOGRAFIA
As Vozes desassombradas do museu. Rio de Janeiro,
SEC – Museu da Imagem e do Som. 1970.
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba. Rio de Janei-
ro, Fontana, 1974.
CABRAL, Sérgio. História das escolas de samba. Rio
de Janeiro, Rio Gráfica e Ed. fasc. 2. 1976.
CARNEIRO, Edson. A sabedoria popular. Rio de Ja-
neiro, MEC-INL, 1957, p. 117.
D. A. Benjamim Baptista/Escola de Medicina e Ci-
rurgia da Fefieg. O samba saúda o povo e pede
passagem. Rio de Janeiro, 1974. Mimeogr.
GUIMARÃES, Francisco. Na roda do samba. Rio de
Janeiro, MEC – Funarte, 1978.
Jota Efegê, Ameno Resedá, o rancho que foi escola.
Rio de Janeiro, Ed. Letras e Artes, 1965.
LEOPOLDI, José Sávio. Escola de samba, ritual e so-
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Lima Barreto, Afonso Henriques de. Numa e a ninfa.
Rio de Janeiro, Gráfica Editora Brasileira, s.d.
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leira. 4. Ed. São Paulo, Ática, 1978.
RIO, João do. As religiões no Rio. Rio de Janeiro, Si-
mões. 1951.
SANTOS, Lygia. Ernesto dos Santos — Donga, Rio
de Janeiro, 1969. Mimeo.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da músi-
ca popular. Petróplois, Vozes, 1974.
VASCONCELLOS Ary, Panorama da música popu-
lar brasileira na Belle Epoque. Rio de Janeiro, Li-
vraria Sant’Anna. 1978. 95

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