Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Concepções Teóricas e Epistemológicas Da Socioeducação
Concepções Teóricas e Epistemológicas Da Socioeducação
ARTIGO
das medidas socioeducativas1
A medida socioeducativa (MSE) diz respeito à perspectiva de responsabilização para adolescentes e jovens a
quem se atribui a autoria de um ato infracional no Brasil a partir da década de 1990. No que se refere ao termo
socioeducação, percebe-se que este, ao ser utilizado no contexto das MSE, necessita de conceituações que possi-
bilitem construir e executar uma ação socioeducativa baseada em pressupostos teóricos consistentes. A discussão
apresentada neste artigo tem por objetivo caracterizar as concepções teóricas e as bases epistemológicas sobre
socioeducação no contexto das MSE com base na literatura sobre o tema. A partir da análise dos textos, pode-se
dizer que, no campo das MSE, a socioeducação se caracteriza como categoria teórica em construção, constituída
por concepções teórico-epistemológicas diferentes, com destaque para a educação social, justiça restaurativa e
políticas públicas, que disputam saberes relacionados à juventude a quem se atribui a autoria de atos infracionais.
Palavras-chave: Socioeducação. Concepções Teóricas. Medidas Socioeducativas. Juventude.
1
INTRODUÇÃO influenciados pela educação popular de Paulo
Freire, entendida como medida de responsabi-
A medida socioeducativa (MSE) diz res- lização atrelada a uma perspectiva pedagógica
peito à responsabilização para adolescentes e que estaria efetivamente comprometida com
jovens a quem se atribui a autoria de um ato os direitos humanos e com o fim das relações
infracional, vigente no Brasil a partir da dé- sociais de exploração fundamentadas no modo
cada de 1990 com a promulgação do Estatuto de produção capitalista (Moreira, 2013).
da Criança e do Adolescente (ECA) e em con- No que se refere ao termo socioeduca-
sonância com a Constituição Federal de 1988 ção, percebe-se que, ao ser utilizado no con-
(Brasil, 1990). Esta adentra as políticas des- texto das MSE, este necessita de conceituações
tinadas à população infanto-juvenil a partir que possibilitem construir e executar uma ação
das reivindicações dos movimentos sociais, socioeducativa baseada em pressupostos teóri-
cos consistentes, tendo em vista a elaboração
Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. 1-14, e022047, 2022
1
* Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Hu- de uma prática comum no cenário socioedu-
manas e Letras. Departamento de Psicologia (CCHLA-UFPB).
Cidade Universitária – CCHLA – Bloco Humanístico, Cam- cativo brasileiro (Bidarra, 2011; Guerra, 2017;
pus I – Castelo Branco I. Cep: 58051-900. João Pessoa – Pa- Oliveira et al., 2015; Rodrigues; Oliveira, 2016;
raíba – Brasil. erlayne.beatriz@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-3380-2881 Silva; Muller, 2011).
** Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Hu- Diante disso, o objetivo deste artigo é
manas e Letras. Departamento de Psicologia (CCHLA-UFPB).
Cidade Universitária – CCHLA – Bloco Humanístico, Cam- caracterizar as concepções teóricas e as bases
pus I – Castelo Branco I. Cep: 58051-900. João Pessoa – Pa-
raíba – Brasil. jfalberto89@gmail.com epistemológicas sobre socioeducação no con-
http://orcid.org/0000-0003-2515-9571
*** Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Hu-
texto das medidas socioeducativas, a partir da
manas e Letras. Departamento de Psicologia (CCHLA-UFPB). literatura sobre o tema. Parte-se do pressupos-
Cidade Universitária – CCHLA – Bloco Humanístico, Cam-
pus I – Castelo Branco I. Cep: 58051-900. João Pessoa – Pa- to de que a socioeducação como concepção
raíba – Brasil. cibele_sscosta@yahoo.com.br
http://orcid.org/0000-0002-7004-2818 teórica se configura como campo de disputas
1
Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de teórico-práticas no qual coexistem diferentes
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Códi-
go de Financiamento 001. perspectivas teóricas e epistemológicas desde
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v35i0.36268 1
SOCIOEDUCAÇÃO: concepções teóricas no contexto ...
2
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva, Maria de Fatima Pereira
Alberto, Cibele Soares da Silva Costa
É importante destacar que, apesar das re- presença educativa, que diz respeito a “uma
ferências dos autores à educação social de Pau- presença intencional, deliberada. Tem a inten-
lo Freire, este autor não utilizou o termo socio- ção de exercer sobre o outro uma influência
educação em suas obras. Lima e Carloto (2009), construtiva” (Costa, 2001, p. 29).
ao discutirem sobre ações socioeducativas no Na tentativa de refletir sobre as concep-
contexto das políticas de assistência social, ções e pressupostos teóricos que possam sub-
também associam o termo às ideais de educa- sidiar a prática profissional junto as medidas
ção como prática para liberdade de Paulo Frei- socioeducativas, Bidarra (2011), também ali-
re, mas assinalam que o educador não o usou nhada com a educação social, apresenta uma
diretamente em sua obra. As autoras também noção de socioeducação como processo educa-
apontam que, apesar do termo “socioeducati- tivo que deve contemplar a produção e repro-
vo(a)” se aproximar das concepções pedagógi- dução dos bens histórica e coletivamente pro-
cas de Paulo Freire, existe ainda uma ausência duzidos pela sociedade de forma intencional
de definição teórica em relação ao conceito no e particular para cada sujeito que participa do
campo das políticas sociais, mas assinalam que processo socioeducativo.
este se direciona a ações que se baseiam em Com isso, observa-se que uma boa parte
práticas dialógicas e participativas. da literatura vem considerando a socioeduca-
Diante disto, Alberto et al. (2016), ao ção a partir de uma perspectiva voltada para a
discutirem o significado da ação socioeduca- noção de educação social que tem Paulo Freire
tiva no contexto das políticas sociais de assis- como principal influenciador. Tal aspecto se re-
tência social, com ênfase no Programa de Erra- laciona com o movimento de base política e so-
dicação ao Trabalho Infantil, apontam que este cial vivenciado pelo Brasil nas décadas de 1980
termo pode apresentar diferentes significados e 1990 que culminou na promulgação da Cons-
conforme a área que está sendo empregado e tituição Federativa de 1988 e no ECA em 1990.
que tal diversidade se expressa numa multi- Essa concepção de socioeducação pode ser
plicidade de ações que não necessariamente considerada como um avanço para política de
contemplam os aspectos da autonomia e cida- atendimento à infância e juventude brasileira,
dania propostos por Paulo Freire. principalmente, no que diz respeito aos adoles-
Partindo da perspectiva da socioeduca- centes e jovens a quem se atribui a autoria de
ção proposta pelo ECA, enquanto prática de atos infracionais, pois busca no processo de res-
educação social voltada para as medidas socio- ponsabilização destes construir ações educati-
educativas, Brito e Almeida (2014) assinalam vas que visem o pleno desenvolvimento pessoal
que a socioeducação se configura, então, como e social destes sujeitos (Moreira, 2013).
uma prática educativa direcionada para o con- A educação social é situada por Diaz Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. 1-14, e022047, 2022
vívio social e o exercício da cidadania. A par- (2006) como aquela que se dá em todos os con-
tir disso, reafirmam a necessidade de práticas textos de convivência dos indivíduos, engloba
pedagógicas que tenham por base a Pedagogia espaços formais e não-formais de educação e
da Presença de Gomes da Costa, a qual enfa- tem como objetivo principal a preparação dos
tiza a necessidade de uma aproximação dos sujeitos para a vida em comunidade, ou seja,
profissionais que compõem o sistema socioe- para o convívio social. Ainda segundo este au-
ducativo dos socioeducandos no cotidiano do tor, a educação social surge na Alemanha no
acompanhamento desses jovens, exigindo dos fim do século XIX e início do século XX de-
profissionais uma postura de abertura, reci- vido a necessidade por parte da educação de
procidade e compromisso com o processo edu- construir uma pedagogia que apresentasse res-
cativo do jovem. Segundo Costa, a pedagogia postas e soluções para as necessidades indivi-
da presença se materializa por meio de uma duais e sociais advindas do contexto histórico
3
SOCIOEDUCAÇÃO: concepções teóricas no contexto ...
construída a partir da prática social e voltada ações individuais nas relações com os demais
para ela. Segundo esse autor, a educação social sujeitos que constituem a sociedade.
pode ser compreendida como dialeticamente No enfoque da Justiça Restaurativa, bus-
relacionada à pedagogia social, pois a primeira ca-se compreender o jovem não apenas por
volta-se para a prática social, enquanto a se- meio do ato infracional que lhe foi atribuído,
gunda diz respeito aos embasamentos teóricos mas a partir das relações deste com a dinâmica
metodológicos, de modo que o desenvolvimen- da sociedade, tendo em vista uma responsabi-
to de uma implica na transformação da outra. lização que seja construída e dialogada junta-
Assim, a educação social, bem como a pedago- mente com o jovem. Um aspecto de destaque
gia social são consideradas como pertencentes acerca da Justiça Restaurativa para a socioe-
ao campo da pedagogia da práxis, a qual numa ducação é a noção de Janela da Disciplina So-
perspectiva de base marxiana enfatiza os con- cial, que está relacionada com a utilização da
flitos de classe inerentes à sociedade nos pro- disciplina nas ações de responsabilização dos
4
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva, Maria de Fatima Pereira
Alberto, Cibele Soares da Silva Costa
5
SOCIOEDUCAÇÃO: concepções teóricas no contexto ...
ticas específicas” (Oliveira et al., 2015, p. 582). to; Amorim, 2017; Costa; Alberto; Silva, 2022;
Nessa perspectiva, destaca-se a responsabi- Medeiros et al., 2014; Teixeira, 2015).
lidade do Estado em garantir um sistema de A presença dos elementos punitivistas
atendimento ao jovem que possa proporcionar são considerados graves entraves para a polí-
uma responsabilização comprometida com os tica pública de atendimento socioeducativo,
direitos sociais desse grupo. tendo em vista que estão associados com prá-
Contudo, essa responsabilidade do Esta- ticas menoristas vigentes antes do ECA. Nesse
do não tem sido concretizada de forma efetiva, sentido, defende-se a luta pela efetivação de
tendo em vista que o Estado, numa socieda- políticas que garantam os direitos da popula-
de capitalista, situa-se a partir do conflito de ção infantojuvenil a quem se atribui a autoria
interesses entre o desenvolvimento do capital de atos infracionais, promovendo a concretiza-
e a garantia de direitos da população, sendo ção de ações e práticas educativas que possibi-
esta última frequentemente negligenciada em litem a desvinculação com o ato infracional e a
6
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva, Maria de Fatima Pereira
Alberto, Cibele Soares da Silva Costa
construção de projetos de vida dignos e alicer- ca, entretanto, ambos estão interrelacionados
çados nos direitos humanos. (Minayo, 2014).
Diante do exposto, observa-se que a li- Um aspecto importante na teoria críti-
teratura apresenta diferentes concepções para co-dialética é a relação entre a base material
a socioeducação no contexto das MSE, como a e o processo de consciência dos sujeitos, pois
educação social, a justiça restaurativa e as po- compreende-se que o modo de produção, as
líticas públicas. Nota-se que a socioeducação estruturas de classes e o modo de pensar dos
se apresenta como conceito em construção, sujeitos estão correlacionados (Minayo, 2014).
que ora apresenta concepções teóricas, em sua Isto é, entende-se que os sujeitos são produtos
maioria embasadas na perspectiva de garantia das relações estabelecidas dentro deste modo
de direitos, ora apresenta elementos relacio- de produção e sociabilidade, o qual se baseia
nados à aplicação prática das MSE, principal- principalmente na exploração da força de tra-
mente discussões sobre a construção de uma balho de uns sujeitos sobre outros e no con-
ação pedagógica efetiva. Tais elementos nos flito de classes. Assim, de um lado tem-se os
levam a entender que este conceito ainda se exploradores, capitalistas, que formam a clas-
apresenta em construção, a partir de diferentes se dominante, e do outro a população pobre e
concepções teórico-práticas que disputam sa- explorada que constituem a classe dominada,
beres no campo socioeducativo. o proletariado (Tonet, 2006).
Nesse sentido, na teoria crítico-dialética
só é possível uma sociedade justa e igualitária
BASES EPISTEMOLÓGICAS DA com a superação do modo de produção capi-
SOCIOEDUCAÇÃO NO CONTEX- talista, sendo essa condição fundamental para
TO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCA- o pleno desenvolvimento humano (Saviani,
TIVAS 2019). Ademais, como elementos essenciais
no processo de rompimento com o sistema ca-
Partindo das concepções de socioedu- pitalista, essa perspectiva destaca a educação
cação descritas acima, foi possível identifi- como estratégia de contribuição na construção
car que os autores que estudam essa temática da consciência de classe por meio da apropria-
estão pautados em perspectivas teóricas e/ou ção do desenvolvimento historicamente acu-
pedagógicas que embasam suas análises sobre mulado pela humanidade e a organização da
o campo das medidas socioeducativas. Desse classe trabalhadora (Saviani, 2015).
modo, faz-se necessário compreender quais as Assim, reitera-se a perspectiva crítico-
bases epistemológicas norteadoras das concep- -dialética como a base epistemológica da edu-
ções encontradas. cação social, tendo em vista que ela tem como Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. 1-14, e022047, 2022
7
SOCIOEDUCAÇÃO: concepções teóricas no contexto ...
concepção que compreenda as situações de de trabalho, não só dos que estão formalmente
opressão, as quais são submetidas a infância e inseridos no mercado, mas como daqueles que
juventude, e busque a superação delas em to- também não foram inseridos, sendo que para es-
das as instâncias, inclusive no aspecto de res- tes predomina a lógica da violência e do encar-
ponsabilização da juventude a quem se atribui ceramento, evidenciando a chamada Face Penal
a autoria de atos infracionais. Entretanto, na do Estado para os pobres, que recairá principal-
aplicação das MSE, por vezes, se utiliza des- mente sobre a juventude (Behring, 2018).
ta concepção em paralelo com outras opostas, No que diz respeito à Justiça Restaura-
tendo em vista que as instituições e o próprio tiva, apesar de ser entendida pela literatura
sistema de justiça predominantemente se ba- como uma teoria ainda em construção, perce-
seiam em perspectivas não críticas como o po- be-se que ela se aproxima da perspectiva feno-
sitivismo e neoliberalismo. menológica, que se destacou principalmente
O positivismo, historicamente, tem se após a Segunda Guerra Mundial, juntamente
constituído como a corrente filosófica predo- com o marxismo, como uma das teorias crí-
minante na área das ciências humanas e so- ticas aos modos de produção e relação cres-
ciais e tem como principal fundamento a con- centes nos países capitalistas daquela época
cepção de que a sociedade humana é regulada (Minayo, 2014). Nessa perspectiva, o conhe-
por leis naturais que influenciam todo o fun- cimento é entendido como relativo e produto
cionamento da vida social, política, econômica da vivência que cada sujeito experiencia, exige
e cultural dos indivíduos. Com isso, para esta uma postura descritiva e compreensiva dos fe-
perspectiva, o lugar que os indivíduos ocupam nômenos, na qual os indivíduos fazem parte
socialmente é resultante da natureza da orga- do processo que necessita ser compreendido
nização social que tem suas leis permanentes, (Behring; Boschetti, 2011).
cabendo à ciência legitimá-los por meio de ide- Além disso, ressalta-se nessa teoria a ne-
ologias sociais desiguais e conservadoras (Mi- cessidade de investigar os fenômenos a partir
nayo, 2014). de sua essência, isto é, o sentido atribuído ao
Esse tipo de pensamento produz uma fenômeno por aquele que o percebe ou viven-
sociedade baseada no individualismo, na cia, utilizando-se o método intuitivo (Goto;
competitividade e na desigualdade como me- Moraes, 2016). Somado a isso, valoriza a subje-
diadores das relações sociais, nas quais pro- tividade e as experiências dos sujeitos em um
pagam-se a ideia do “mérito de cada um em determinado momento, compreende que os
potenciar suas capacidades supostamente na- indivíduos estão num processo de constante
turais” (Behring; Boschetti, 2011, p. 60). Isso transformações, as quais se dão principalmen-
Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. 1-14, e022047, 2022
8
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva, Maria de Fatima Pereira
Alberto, Cibele Soares da Silva Costa
ticado e as relações sociais afetadas por este. instrumentos de controle e ajustamento social
Com isso, volta-se também para o futuro des- para manutenção da sociedade capitalista e
sas relações sociais, no sentido da reparação desigual (Behring, 2015; Ferraz, 2014).
dos danos causados, diferentemente da justi- As políticas públicas a partir da pers-
ça comum que foca apenas na punição do in- pectiva crítico-dialética são compreendidas
divíduo pelo ato cometido ao invés das suas enquanto políticas resultantes da luta entre
implicações (Prudente; Sabadell, 2008). Nesse classe trabalhadora e capital, tendo o Estado
sentido, a vítima ganha papel de destaque no como mediador entre a garantia de condições
processo de resolução do conflito ou dano cau- de sobrevivência dos trabalhadores e o desen-
sado por meio da promoção do diálogo entre as volvimento do capital. Entende-se ainda nessa
partes, a qual deve ser baseada na voluntarie- perspectiva que as políticas sociais, apesar de
dade entre ambos (Macedo, 2013). serem consideradas enquanto uma conquista
9
SOCIOEDUCAÇÃO: concepções teóricas no contexto ...
da classe trabalhadora e sua defesa seja neces- de e repercutem no modo de organização e con-
sária e importante, elas não são consideradas dução das práticas no contexto das MSE. Nesse
como a via de solução para a desigualdade sentido, as perspectivas não críticas embasadas
social inerente à sociedade que vivemos, ali- no positivismo e no liberalismo perpetuarão
cerçada sob o modo de produção capitalista concepções que compreendem os sujeitos como
(Mendonça, 2012). os únicos responsáveis pelo ato infracional,
Na perspectiva positivista, as políticas sem considerar os aspectos sociais, políticos e
sociais são pensadas principalmente a partir econômicos que perpassam a realidades desses
dos vieses econômicos e políticos. No primeiro sujeitos, bem como reproduzirão concepções e
são entendidas como possibilidade de redução práticas de encarceramento e criminalização da
dos custos da reprodução da força de trabalho, juventude pobre, principalmente por meio de
tendo em vista que o Estado assume uma par- medidas de privação de liberdade.
cela desses gastos, e no segundo são tidas como Em contraposição, as perspectivas críti-
ferramentas de cooptação e legitimação do sis- cas, buscam construir conhecimentos e práxis
tema capitalista na medida em que os indivídu- que compreendam os sujeitos na dinâmica das
os passam a ser controlados como trabalhado- relações sociais de produção, tendo em vista a
res que dependem da venda da sua força de tra- eliminação das situações de opressão as quais
balho (Behring; Boschetti, 2011; Ferraz, 2014). a população pobre enfrenta no seu cotidiano.
Com isso, ao compreender a socioedu- Ademais, acrescenta-se as perspectivas feno-
cação a partir de uma perspectiva crítica das menológicas, que podem parecer um avanço
políticas sociais, entende-se a socioeducação em relação ao positivismo e liberalismo, po-
como espaço de disputa numa sociedade ca- rém ainda apresentam limitações por enfatizar
pitalista pela garantia de direitos dos jovens processos de responsabilização individuais, ou
das classes pobres que enfrentam as conse- que não consideram devidamente as questões
quências da desigualdade social por meio da estruturais políticas, econômicas e sociais.
criminalização da pobreza e consequentemen- Diante do exposto, defende-se neste ar-
te de suas existências. Somado a isso, por ser tigo, que apesar da socioeducação no contexto
considerada enquanto espaço de disputa en- das MSE ainda se apresentar como conceito em
tre os interesses de classes sociais distintas, construção, esta deve ser pensada e alicerçada
essas políticas podem se apresentar de forma sob os princípios dos direitos humanos e da
contraditória, ora contendo aspectos de uma garantia de direitos dos jovens, conforme de-
perspectiva, ora de outra, a depender do jogo terminado pela Constituição Federal de 1988,
de forças desenvolvido pela sociedade civil, pelo ECA e Sinase. Nesse sentido, a concepção
Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. 1-14, e022047, 2022
Estado e capital. Isso se dá, pois, apesar dos mais adequada para pensar a base teórica da
esforços empreendidos pela sociedade civil na socioeducação é a Educação Social, que tem
implementação de práticas sociais mais justas por base epistemológica a perspectiva crítico-
e emancipatórias, estamos inseridos numa so- -dialética, tendo em vista que esta compreende
ciedade fundamentada no modo de produção os sujeitos a partir das contradições vivencia-
capitalista, no qual a necessidade de controle das na sociedade capitalista tendo como finali-
social das classes pobres se constitui como fer- dade o fim das relações de opressão e explora-
ramenta essencial para manutenção do siste- ção que a população pobre enfrenta nesse sis-
ma vigente (Behring, 2015). tema. Compreende-se também que a aplicação
Portanto, observa-se que as concepções dessa concepção nas políticas públicas se faz
de socioeducação apresentam bases epistemo- a partir de diversos entraves provenientes da
lógicas diferentes, críticas e não críticas que re- luta de classes, mas reafirma-se que é a par-
fletem perspectivas de compreender a socieda- tir da garantia dos direitos e da luta pelo fim
10
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva, Maria de Fatima Pereira
Alberto, Cibele Soares da Silva Costa
das desigualdades sociais e econômicas que a social impulsiona a garantia de direitos da po-
socioeducação, enquanto teoria e prática, en- pulação infanto-juvenil, e por outro lado, a ló-
tendida como unidade dialética indissociável, gica do capital busca o controle e ajustamento
deve se constituir. social por meio de ações repressivas que cri-
minalizam aqueles mais afetados pelas expres-
sões da desigualdade social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Compreende-se que discutir sobre as
concepções e bases epistemológicas constru-
Considerando o objetivo deste artigo de ídas pela literatura podem contribuir com a
caracterizar as concepções teóricas e as bases produção do conhecimento no campo da so-
epistemológicas sobre socioeducação no con- cioeducação, tendo em vista que esse concei-
texto das medidas socioeducativas a partir da to necessita de definições teóricas mais apro-
literatura, pode-se dizer que no campo das fundadas. No entanto, considera-se como uma
MSE, a socioeducação caracteriza-se enquan- limitação o fato de a discussão empreendida
to categoria teórica em construção constitu- contemplar apenas o contexto brasileiro, suge-
ída por concepções teórico-epistemológicas re-se que novos estudos possam refletir sobre a
diferentes que disputam saberes relacionados construção da socioeducação enquanto catego-
aos adolescentes e jovens a quem se atribui a ria teórica em diálogo com contextos interna-
autoria de atos infracionais. A disputa de pers- cionais que apresentam realidade semelhante
pectivas sobre a socioeducação pode ser con- ao Brasil, como o contexto da América Latina.
siderada uma limitação para esse campo como
política pública que visa a responsabilização
Recebido para publicação em 7 de abril de 2020
atrelada à garantia de direitos da população Aceito em 30 de novembro de 2022
atendida, pois apresenta contradições entre
seus pressupostos.
Essas contradições são expressas a partir REFERÊNCIAS
de tentativas de junção de perspectivas críticas
e não-críticas (liberais, positivistas), por meio ABRANTES, A. A.; BULHÕES, L. Idade adulta e o
desenvolvimento psíquico na sociedade de classes:
de práticas que se pretendem participativas, juventude e trabalho. In: MARTINS, L. M.; ABRANTES, A.
A.; FACCI, M. G. D. (org.). Periodização histórico-cultural
dialógicas e democráticas com ferramentas de do desenvolvimento psíquico – do nascimento à velhice.
Campinas: Autores Associados, 2016. p. 241-265.
ajustamento e controle, como a privação de li-
AGUINSKY, B.; CAPITÃO, L. Violência e socioeducação:
berdade, o uso da disciplina, a necessidade de Uma interpelação ética a partir de contribuições da Justiça
Restaurativa. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 11, n. 2,
enquadramento numa lógica social e a respon-
Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. 1-14, e022047, 2022
p. 257-264, 2008.
sabilização individual do sujeito sem conside- ALBERTO, M. F. P.; AMORIM, T. R. S. Diálogos inconclusos:
rar os aspectos sociais e econômicos nos quais juventude, socioeducação e extensão. In: ALBERTO, M. F.
P. et al. (org.). Diálogos em prol de uma justiça juvenil. João
ele está inserido. Pessoa: Editora da UFPB, 2017. p. 19-31.
No entanto, compreende-se que a jun- ALBERTO, M. F. P. et al. Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil: concepções de educandos e famílias.
ção de perspectivas opostas reflete o sistema Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 36, n. 2,
p. 458-470, 2016.
econômico e político no qual a sociedade se
AMORIM, T. R. S. A justiça restaurativa na política de
baseia, segundo o qual as políticas sociais socioeducação: concepções, crítica e possibilidades.
são construídas no embate de forças entre as 2018. 176 p. Tese (Doutorado em Psicologia Social) –
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2018.
pressões dos trabalhadores e a manutenção do BEHRING, E. R. Política social no capitalismo tardio. 6. ed.
modo de produção capitalista. Sendo assim, São Paulo: Cortez, 2015.
entende-se que a socioeducação enquanto po- BEHRING, E. R. Estado no capitalismo: notas para uma
leitura crítica do Brasil recente. In: BOSCHETTI, I.;
lítica social se constitui dentro desta disputa BEHRING, E. R.; LIMA, R. L. (org.). Marxismo, política
social e direitos. São Paulo: Cortez, 2018. p. 39-72.
de interesses, na qual, de um lado, a pressão
11
SOCIOEDUCAÇÃO: concepções teóricas no contexto ...
12
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva, Maria de Fatima Pereira
Alberto, Cibele Soares da Silva Costa
SILVA, J. C.; GIOVINAZZO JR., C. A. Socioeducação e TONET, I. Educação e formação humana. Ideação, Foz do
juventude: as ações das Ongs na cidade de São Paulo. Iguaçu, v. 8, n. 9, p. 9-21, 2006.
Impulso, Piracicaba, v. 26, n. 66, p. 67-85, 2016.
VALENTE, F. P. R.; OLIVEIRA, M. C. S. L. Para além da
SILVA, S. C. Socioeducação e juventude: reflexões sobre punição: (re)construindo o conceito de responsabilização
a educação de adolescentes e jovens para a vida em socioeducativa. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de
liberdade. Serviço Social em Revista, v. 14, n. 2, p. 96-118, Janeiro, v. 15, n. 3, p. 853-870, 2015.
2012.
TEIXEIRA, J. D. Sistema socioeducativo em questão: as
tensas relações entre o punitivo e o educativo. Revista
Brasileira Adolescência e Conflitualidade, São Paulo, n. 12,
p. 223-254, 2015.
13
SOCIOEDUCAÇÃO: concepções teóricas no contexto ...
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva
Maria de Fatima Pereira Alberto Maria de Fatima Pereira Alberto
Cibele Soares da Silva Costa Cibele Soares da Silva Costa
Erlayne Beatriz Félix de Lima Silva – Doutora e mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal
da Paraíba (UFPB). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre o Desenvolvimento da Infância
Caderno CRH, Salvador, v. 35, p. 1-14, e022047, 2022
14