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ANDERSON DOS ANJOS PEREIRA PENA

CULTURA DE CONSUMO E RELAÇÃO DE GÊNERO NO


PAGODE BAIANO

Dissertação apresentada ao programa de


Mestrado Multidisciplinar em Cultura,
Memória e Desenvolvimento Regional da
Universidade do Estado da Bahia – UNEB -
como requisito para obtenção do grau de
Mestre.

Orientadora: Professora Doutora Rocío


Castro Kustner.

Santo Antônio de Jesus

2010
Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
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P397 Pena, Anderson dos Anjos Pereira.


Cultura de Consumo e Relações de Gênero no Pagode Baiano. /
Anderson dos Anjos Pereira Pena - 2010.
119 f.: il

Orientador: Prof. Dra. Rocío Castro Kustner.

Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa


de pós-graduação em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional, 2010.

1. Música Popular - Bahia. I. Kustner, Rocío Castro. II. Universidade


do Estado da Bahia, programa de pós-graduação em Cultura Memória e
Desenvolvimento Regional.

CDD: 781.638142

Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB


Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
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ANDERSON DOS ANJOS PEREIRA PENA

CULTURA DE CONSUMO E RELAÇÕES DE GÊNERO NO PAGODE


BAIANO

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

PROGRAMA DE MESTRADO MULTIDISCIPLINAR EM CULTURA,


MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Dissertação de mestrado defendida e aprovada em ____/____/______.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

Profa. Dra. Rocío Castro Kustner

(Orientadora)

___________________________________________

Prof. Dr. Paulo de Assis de Almeida Guerreiro

____________________________________________

Profa. Dra. Ana Katia Alves dos Santos


4

Aos meus pais, Iraildes dos Anjos Pereira Pena


e Marivaldo Pereira Pena.

À minha avó Ovídia Borges dos Anjos


(in memorian).

Ao meu filho Guilherme Alexandre Melo Pena.

À Celene Maria de Oliveira Santos.


5

AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Rocío Castro Kustner, minha paciente orientadora, que, com
tamanha dedicação me fez ampliar o olhar sobre gênero e cultura, sendo não só
uma colaboradora significativa, mas também fonte de inspiração a essa produção.

À Caroline Silva, minha amada companheira que tanto me incentivou e teve


paciência diante das minhas ausências para realização dessa pesquisa.

Ao Professor Doutor Paulo Guerreiro, por me possibilitar um “olhar semiótico” sobre


as coisas do mundo.

À Professora Doutora Ana Katia Alves, pelas indicações e créditos à minha


pesquisa.

Aos seguidores/as e figuras emblemáticas do pagode que contribuíram para a


realização dessa pesquisa.

A Professora Doutora Paula Arco-Verde, pelas dicas e incentivos.

Aos parceiros do mestrado, especialmente Cláudia Silva e Derval Gramacho, pela


formação de redes de solidariedade, principalmente nos momentos de dificuldade e
desânimo, pelas palavras afetivas e amigáveis.

À Fundação para o Desenvolvimento da Pesquisa na Bahia – FAPESB -, por ter


financiado essa pesquisa através de bolsa de mestrado.

À Julinara, secretária acadêmica do mestrado, pela responsabilidade,


comprometimento e atenção conosco.

Ao Prof. Ary Blasquez Olmedo, grande amigo, pelo exemplo de cidadão e


pesquisador que me inspirou em vários momentos da pesquisa.

Ao Prof. José Carlos Melo, grande amigo e incentivador.

Aos meus queridos primos-irmãos Jackson, Jadson e Jailson Oliveira, por todos os
incentivos e pela preciosa e sincera amizade.

Às amigas Aline Lima e Eliane Leite, pelas sugestões e apoio solidário.


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La transformación de las relaciones


de producción y la eliminación de las
estructuras de poder son
inimaginables sin una transformación
revolucionaria de la vida cotidiana y
viceversa.

(HELLER, 1998, p. 30).


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RESUMO

Esta dissertação visa analisar as influências do pagode baiano nos comportamentos


de consumo e na ressignificação das identidades de gênero em quatro bairros
populares de Salvador. Buscaremos aqui compreender até que ponto as letras e o
ritmo das músicas, bem como o estilo de vida das figuras emblemáticas do pagode,
recriam os estereótipos machistas sobre o que significa ser homem ou mulher, assim
como também observar como estes estereótipos são incorporados pelo público do
pagode e, em definitivo, analisar o papel da música do pagode na construção de
significados na vida cotidiana. A pesquisa se baseará tanto na análise semiótica das
representações de gênero e condutas de consumo nas letras das músicas, onde a
semiótica servirá para analisar as representações de gênero e do consumismo nas
letras do pagode baiano - para tanto buscamos seguir a método delineado por
Peirce, descrito na vasta obra de Santaella (2004; 2008) Nöth (2003) e Santaella e
Nöth (2003; 2004; 2009) -; quanto nos grupos focais e entrevistas semi-estruturadas
de figuras emblemáticas do pagode baiano e de seguidores/as dessa espécie
musical. A observação participante foi igualmente útil a esse estudo, pois, os locais
de sociabilidade dos/as seguidores/as do pagode foram frequentados com o intuito
de perceber, na perspectiva etnográfica proposta por Geertz (2008), as teias de
significados produzidas por esses sujeitos sociais.
Palavras-chave: pagode baiano, sociedade de consumo, identidade de gênero.
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ABSTRACT

This thesis aims to analyze the influences of the pagoda Bahia consumer behavior
and reframing of gender identities in four neighborhoods of Salvador. We seek here
to understand the extent to which the lyrics and rhythm of the music and the lifestyle
of celebrities from the pagoda, recreated the sexist stereotypes about what it means
to be male or female, as well as observe how these stereotypes are embodied by the
public of the pagoda and, ultimately, examine the role of music in the pagoda
construction of meaning in everyday life. The research will be based in both the
semiotic analysis of gender representations and practices of consumption of the
lyrics, where semiotics serve to analyze the representations of gender and
consumerism in the lyrics of Bahia pagoda - both seek to follow the method outlined
by Peirce, described the extensive work of Santaella (2004, 2008) Nöth (2003) and
Santaella and Nöth (2003, 2004, 2009) - as the focus groups and semi-structured
interviews of emblematic figures of the pagoda and followers Bahia / as this species
Music. Participant observation was also useful to this study, therefore, places of
sociability of / the followers / of the pagoda were attended in order to realize, in the
ethnographic approach proposed by Geertz (2008), the webs of meaning produced
by these subjects social.

Keywords: pagoda Bahia, consumer society, gender identity.


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LISTA DE SIGLAS

ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição;


IPN – Interested Parties Number (Código internacional de registro de compositores,
autores e editores);
ISWC - International Standard Musical Work Code (Código Musical Padrão
Internacional da Obra);
MPB – Música popular brasileira;
TIC – Tecnologias da informação e comunicação.
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LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1 – Chapada do Rio Vermelho;

Fotografia 2 – Nordeste de Amaralina (ao lado do litoral), vale das perinhas (região
intermediária) e Santa Cruz (parte inicial da foto);

Fotografia 3 – Vale das Pedrinhas;

Fotografia 4 – Visão geral dos quatro bairros e seus limites com os bairros do Horto
Florestal (área verde à esquerda) e Itaigara - incluindo o parque da cidade (área
verde à direita).

Fotografia 5 – Propaganda da Cerveja Brahma


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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Refrões sexistas do pagode baiano


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LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Bairros onde a pesquisa foi desenvolvida.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................. 14

1 INDÚSTRIA CULTURAL E SOCIEDADE DE CONSUMO.........................24

2 CONTEXTUALIZANDO O PAGODE BAIANO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA,


CONSUMO E PERSPECTIVAS.....................................................................39
2.1 DO “SEGURE O TCHAN” AO “ME DÁ PATINHA, SUA CACHORRINHA”:
BANDAS, LETRAS, ARTISTAS, SEXISMO E EFEMERIDADE CONSUMISTA
NO PAGODE BAIANO............................................................................................ 51

3 IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO...............................60

4 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E


CONSUMO NAS LETRAS DO PAGODE BAIANO.......................................73

5 A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E AS FALAS DAS


FIGURAS EMBLEMÁTICAS E DOS SEGUIDORES DO PAGODE.............88

6 VIOLÊNCIA NO PAGODE BAIANO...........................................................99

CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................111

REFERÊNCIAS..............................................................................................116
14

INTRODUÇÃO

Na década de 1990 nasceu na Bahia um novo estilo musical, uma espécie do


samba, e que brevemente tomou conta da preferência musical de boa parte dos
baianos, chegando a se espalhar pelo país. Especialistas e pessoas que não gostam
do pagode até profetizaram que seria uma “onda passageira”, como outras que
surgem como uma febre e logo caem no desgosto popular. Como veremos, muitas
músicas caíram no desuso, mas, contrariamente às previsões, o pagode baiano
sobrevive até os dias atuais.

As bandas que se destacaram no nascimento do pagode foram: “É o Tchan”,


“Companhia do Pagode”, “Harmonia do Samba”, “Cafuné” e “Gang do Samba”. No
curso histórico, outras bandas também adquiriram fama, como “Dig now”,
“Pagodart”, “Nossa Juventude”, “No Styllo”, “Parangolé”, “Fantasmão”, entre muitas
outras. Algumas dessas ainda existem, sendo que passam por mudanças
constantes, desde a troca de músicos à incorporação de novos ritmos. Atualmente,
estão no auge as bandas “Psirico”, “Black Style”, “O Troco”, “Assombra”, “A
Fórmulla”, “A Bronkka”, “O Báck”, “Assombra”, “Ed City”, “Bonde dos Neuróticos”, “É
Xeke”, “Parangolé”, “Leva Nóis” e algumas outras, que se alternam no estrelato.

Como salienta Faour (2008), inicialmente essas bandas eram compostas por
cantores, músicos, dançarinos/as, que se popularizaram rapidamente, sempre se
caracterizando com sensualidade. Mini-short, minissaias e um vestuário com roupas
que quase sempre colavam no corpo, compunham a indumentária que impulsionava
as coreografias sensuais, ritmizadas por músicas como “Segure o tchan”, “Na
boquinha da garrafa”, “Agachadinho”, “Pirulito”, e tantas outras que movimentaram
os carnavais de Salvador e as festas em bairros diversos da cidade, como também
foram disseminadas para o interior do estado com fluidez. No decorrer do tempo, o
trabalho coreográfico foi assumido pelos próprios cantores, quando, Xandy, do grupo
“Harmonia do Samba”, interpretava e dançava sensualmente as letras. Atualmente,
percebemos que raras bandas convidam dançarinos para permanecer, quando
acontecem, essas contratações costumam são temporárias, apenas para
coreografar umas poucas canções, como, por exemplo, a banda “Black Style”, com a
“Mulher perereca” e “O Troco” com “A Professora”. É interessante notarmos que, a
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sensualidade sempre esteve presente em todo esse histórico, sendo estimulada


pelas letras, ritmos e danças.

Percebemos que desde seu início, o pagode lançava moda, especialmente


para os bairros mais pobres e, logo eram consumidas por uma significativa parte dos
seus moradores. Não só as letras da música estimulavam esse consumo, mas as
roupas, cortes de cabelo, brincos, percings, e outros adornos utilizados pelas figuras
emblemáticas do pagode. A efemeridade marca essas propagações de consumo,
pois uma moda dura até o surgimento de uma nova, quando ocorre o descarte.

As condutas consumistas estão inseridas dentro de um contexto cultural, que


é fundamentalmente patriarcal. Assim, virão a ser estimulados diferentes tipos de
consumo em função dos sexos. Um exemplo disso é apresentado nos estudos de
Strearns (2007) sobre o impacto da chegada de televisão em 1995, no consumo nas
ilhas Fiji. Desde então, as jovens foram expostas apenas a filmes americanos,
britânicos e australianos de grande audiência. Assistiam a Melrose Place, ER e
Xena, a princesa guerreira. Segundo esse autor (ibidem, p. 240), “uma cultura que
tradicionalmente promovia a boa mesa e via a perda de peso com preocupação”,
passou a se deparar com um número significativo de mulheres empenhadas em ficar
magras. Em três anos, houve um aumento de 500% das ocorrências de bulimia, com
garotas no final da adolescência impondo o vômito para perder peso.

Enquanto que nas propagandas consumistas dirigidas ao público masculino, a


mulher é usada como objeto mais a ser consumido, um exemplo disso pode ser
percebido na propaganda do veículo Siena, da marca FIAT, onde o modelo 2010 é
comparado com veículos de outras marcas, sendo que uma mulher representa uma
das marcas e para cada acessório que a concorrente não tem é necessário que tire
uma peça de sua roupa, daí ela fica somente com a peça íntima inferior. A
associação entre consumo masculino e mulher como objeto é antiga na propaganda
de carros e cervejas no Brasil. Atualmente, essa “venda” da imagem feminina como
objeto, vai além da propaganda e está fortemente presente nas letras de muitas
músicas, como veremos no caso do pagode baiano.

Os incentivos às práticas consumistas estão imbricados no âmago do pagode.


Atualmente, além dos adornos e indumentárias, essa espécie do samba influencia
os acessórios e a estética dos automóveis, aponta para os programas televisivos
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que devem ser assistidos e, assim, amplia os potenciais das práticas de consumo.
Através destas práticas de consumo, o pagode baiano dissemina e “vende” os
estereótipos masculinos e femininos, bem como sua interferência nas identidades e
nas relações de gênero. Daí, formulamos a pergunta que sintetiza o problema da
nossa pesquisa: como o pagode baiano influencia comportamentos de consumo e
ressignifica as identidades de gênero reforçando a cultura patriarcal em Salvador?

Para responder a essa pergunta, estudaremos como o pagode se inseriu em


quatro bairros populares de Salvador, analisando, através da sua música, tanto as
representações sobre as relações de gênero quanto as modas, linguagens, e
influências que o pagode exerce sobre seus seguidores. É uma pesquisa
eminentemente qualitativa, que se serviu de várias estratégias metodológicas
resultando no que é definido por Kincholoe & Berry (2007) como bricolagem. Para
atender às premissas básicas da bricolagem, estivemos comprometidos com o
“ecletismo metodológico da pesquisa” e simultaneamente se dedica a “genealogia e
arqueologia das disciplinas” (ibidem, p. 17). Desse modo, a partir do momento em
que tivemos contato com a pesquisa de campo, as categorias metodológicas foram
se desenhando a ponto de optarmos por quatro técnicas intrínsecas à pesquisa
qualitativa e elementares à coleta e interpretação dos dados.

Primeiramente, a observação participante foi realizada em shows, festas de


pagode, encontros em bares e postos de combustíveis. A observação participante é
técnica qualitativa, usada pela etnografia, através da qual foi observado “e de
maneira prolongada situações e comportamentos pelos quais se interessa”
(POUPART, 2008, p. 255). As finalidades dessa observação, ainda de acordo com
Poupart, é descrever a cultura e determinadas situações sociais das populações,
para então extrair tipologias. Para isso é preciso seguir um percurso organizador
dessa técnica e esse autor apresenta cinco etapas, sendo a primeira a descrição do
lugar, dos objetos, do ambiente; a segunda, a descrição dos participantes (seu
nome, sua função, suas características); a terceira, a descrição das finalidades e dos
objetivos (as razões formais ou oficiais de sua presença nesse local, os outros
motivos, etc.); a quarta, a descrição da ação (os gestos, os discursos, as interações,
etc.); e por último, a verificação do que se repete e desde quando, perfazendo a
descrição da duração e da frequência (história do grupo, frequência da ação, etc).
(POUPART, ibidem). Essas observações, de cunho etnográfico, possibilitaram a
17

compreensão de parte relevante das “teias de significados” (GEERTZ, 2008)


construídas culturalmente pelos/as seguidores/as do pagode baiano.

A segunda técnica utilizada foi a dos grupos focais com seguidores do


pagode, totalizando quatro: dois de homens e dois de mulheres. Os grupos focais
consistem em uma abordagem coletiva para que os sujeitos sociais sejam
estimulados a falar sobre determinado assunto. De acordo com Barbour (2009) e
Flick (2009), os grupos focais consistem em uma discussão coletiva sobre
determinados tópicos específicos, requerendo uma dinamicidade do pesquisador
para estimular os participantes do grupo a falar. Ela não necessariamente segue um
roteiro semi-estruturado, podendo se basear também na discussão a partir das
interpretações coletivas de imagens, textos, músicas, reportagens, vídeos, etc., a
través das quais as pessoas expressam suas opiniões e sentimentos, que podem
ser semelhantes ou antagônicos (BARBOUR, 2009).

A técnica das entrevistas semi-estruturadas com figuras emblemáticas do


pagode foi utilizada por duas vezes, sendo uma individual e a outra coletiva. A
entrevista semi-estruturada é aquela composta por perguntas fechadas e abertas,
previamente delimitadas, que tem por finalidade extrair um volume de informações
relevantes para o tema em questão (POUPART, 2008; FLICK, 2009). Além disso, de
acordo com Selltiz (1987) é possível a utilização de recursos que ativem a memória
dos entrevistados para que comentem com mais precisão determinado assunto.
Desse modo, o entrevistador pode fazer uso de fotografias, vídeos, imagens, textos
ou músicas para estimular o entrevistado a produzir repostas válidas. Enfim, cabe ao
entrevistador, “criar uma situação onde as respostas do informante sejam fidedignas
e válidas” (SELLTIZ,1987, p. 664).

Para fechar a bricolagem, optamos pela análise semiótica sobre as


representações de gênero e cultura de consumo nas letras da música do pagode.
Semiótica é aqui, simultaneamente “teoria e metodologia” (SANTAELLA, 2008) que
busca compreender os princípios geradores, os sentidos e os efeitos do signo. Para
alicerçar nossa análise semiótica, utilizaremos o método de Charles Sander Peirce,
analisado na vasta obra dos principais pesquisadores do pensamento pierciano no
Brasil: Nöth (2003) e Santaella (2004) e Nöth e Santaella (2004; 2008).
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Por isso, são importantes para esse estudo as letras das músicas e as
narrativas das figuras emblemáticas do pagode e dos seus seguidores que residem
nesses bairros. Os bairros escolhidos foram: Chapada do Rio Vermelho, Nordeste
de Amaralina, Santa Cruz e Vale das Pedrinhas. Esses bairros fazem limite
geográfico com outros considerados nobres da cidade, que são Amaralina, Rio
Vermelho, Pituba – sendo que esses três cortam parte da orla marítima -, Itaigara,
Horto Florestal e Cidade Jardim. Em meio à construção planejada e elitizada da
cidade, intercalada pela paisagem verde do Parque da Cidade estão os bairros
mencionados, conforme o mapa abaixo pode nos dar melhor visibilidade.

Mapa 1 – Bairros onde a pesquisa foi desenvolvida

Horto Florestal

Cidade Jardim

Parque da Cidade
Itaigara

Pituba

Fonte:http://www.unime.com.br/2006/rau/2/arquivos/RAU_v2n1_janjul2004_04_Andr
ade__Do%20planejado%20ao%20vivido%20o%20caso%20da%20Pituba_arquivos/i
mage006.jpg > Acessado em 12 de outubro de 2008. 17:18:341

O traçado urbano, a organização dos espaços geográficos e a estrutura das


ruas tornam esses bairros geograficamente semelhantes. Além disso, as condições
sociais e culturais das populações são bem parecidas, embora cada bairro conserve
suas peculiaridades e seus moradores tenham sentimentos de pertença específicos

1
Adaptado por Anderson dos Anjos Pereira Pena
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atribuídos ao lugar onde moram. As fotos abaixo apresentam um pouco desses


bairros:

Fotografia 1 – Chapada do Rio Vermelho

Fonte: http://www.atarde.com.br/arquivos/2009/05/97910.jpg > Acessado em 30 de


outubro de 2009. 10:10:22.

Fotografia 2 – Nordeste de Amaralina (ao lado do litoral), Vale das Perinhas (região
intermediária) e Santa Cruz (parte inicial da foto)

Fonte:http://www.corpocidade.dan.ufba.br/dobra/imagens/02/mini/12_nordeste-de-
amaralina--maiara-souza.jpg > Acessado em 12 de outubro de 2009. 10:11:01.
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Fotografia 3 – Vale das Pedrinhas

Fonte: http://www.panoramio.com/photos/original/2890122.jpg > Acessado em 12 de


outubro de 2009. 10:15:16.

Fotografia 4 – Visão geral dos quatro bairros e seus limites com os bairros do Horto
Florestal (área verde à esquerda) e Itaigara - incluindo o parque da cidade (área
verde à direita).

Fonte: http://img17.imageshack.us/img17/6549/pitubafodona.jpg > Acessado em 12


de outubro de 2009. 11:12:15.
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Essa região foi escolhida devido à intimidade dos bairros com o pagode
baiano, tanto na aceitação quanto na produção dessa espécie do samba.

Assim, como objetivo geral, a presente pesquisa visa analisar como o pagode
baiano influencia comportamentos de consumo e ressignifica a identidade de
gênero. Os objetivos específicos são: analisar a origem do pagode na Bahia;
perceber o papel da cultura consumista na promoção do estilo musical; refletir, a
partir letras das músicas do pagode baiano, as representações sobre a identidade
de gênero; e sumariar, a partir da música do pagode, estereótipos construídos e/ou
aceitos pela população sobre as identidades de gênero.

Este trabalho prevê utilização de fontes históricas e antropológicas que


analisam tanto as raízes do pagode quanto as relações de gênero, refletindo ambos
como construções culturais, dentro do contexto da cultura entendida aqui como uma
“teia de significados” (GERTZ, 2008). Para tal fim, faremos primeiramente uma
discussão teórica sobre os processos de produção e consumo de bens simbólicos
de valor cultural, iniciando com a noção de indústria cultural e apresentando o
panorama atual da sociedade de consumo. Tal estudo se baseará, inicialmente, nos
clássicos Adorno e Horkheimer (1986) e explicará as mudanças nas práticas de
consumo do mundo globalizado, por meio de um diálogo teórico com Ortiz (1999),
Santos (2002), Coelho (2006), Cancline (2006), Bauman (2008), Bourdieu (2008;
2009) e outros.

A história do pagode também será apresentada, mostrando os referenciais


que destacam as práticas culturais diaspóricas que utilizam a música desde a
escravidão e produziram os primeiros sons que contribuíram para a origem do
gênero samba e de sua espécie pagode. Aqui são relevantes as contribuições de
Tinhorão (2001; 2005; 2008) e Sodré (2003), que revelam o processo de evolução
das músicas produzidas pelos negros e as concebidas pelos cantores de rua desde
o século XVIII. Para debater criticamente esse processo histórico, outros autores são
também relevantes como Leme (2003), Faour (2008), Yudice (2008), Freitas (2009),
dentre outros que nos farão perceber a música em uma concepção histórica,
passando por mediações das práticas consumistas, por rupturas ligadas ao conceito
de cultura popular e chegando ao cenário da década de 1990, quando surge e se
propaga o pagode.
22

Os estudos da antropologia feminista sobre a cultura patriarcal e a construção


das identidades de gênero são de grande relevância para essa pesquisa e serão
analisados através das leituras de Amorós (1985), Beauvoir (1986), Lesser (1999),
Priore (2001), Saffioti (1976; 2004), Scott (2004), Zaluar (2004), Perrot (2005), Mead
(2006), Castro (2008) e outros/as. Além desse estudo bibliográfico, trabalhamos com
arquivos dos jornais A Tarde, Correio da Bahia e O Estadão que tratam sobre o
pagode baiano desde a década de 1990.

Também vamos nos servir da análise das letras de músicas de bandas de


grande sucesso desde a década de 1990, começando pelas bandas “É o Tchan” e
“Companhia do Pagode”, passando por “Harmonia do Samba”, “Parangolé”, “Sela
Kuatro”, “Dig Now”, “Nossa Juventude”, “Pagodart”, e chegando as de grande
sucesso atuais: “O Troco”, “A Bronka”, “Black Style”, “Psirico”, “Fantasmão”, “Ed
City”, “Bonde os Neuróticos” e outras que aparecem na mídia, destacando-se pelo
sucesso, especialmente nos bairros estudados. Como categoria teórica e
metodológica para análise acerca do consumismo e das relações de gênero nas
letras, utilizamos a semiótica peirciana, embasadas pelos estudos de Nöth (2003) e
Santaella (2004) e Nöth e Santaella (2004; 2008).

Essa pesquisa está estruturada nos seguintes capítulos: no primeiro capítulo,


intitulado Da Indústria Cultural à Sociedade de Consumo, faremos uma discussão
teórica que buscará entender o conceito, surgimento e evolução da indústria cultural:
seu papel inicial, as modificações em seus usos e a evolução das práticas de
consumo diante da aplicação de tecnologias de informação e comunicação (TIC)
mais sofisticadas, da intensificação da globalização econômica e suas interferências
sobre os valores e práticas sócio-culturais. No segundo capítulo - Contextualizando
o pagode baiano: evolução histórica, consumo e perspectivas - traremos a história
do pagode, que tem no samba suas raízes. No terceiro capítulo, intitulado Identidade
e representações de gênero, apresentaremos as reflexões sobre cultura patriarcal e
a construção das identidades de gênero, discutindo a semiótica como método de
interpretação das letras do pagode baiano. O quarto capítulo tem como temática
Análise semiótica das letras do pagode baiano e realiza um abordagem sobre as
imagens mentais produzidas a partir dos versos das canções que contém
representações de gênero, sumariando os estereótipos masculinos e femininos. No
quinto capítulo, apresentaremos depoimentos de entrevistas, grupos focais e
23

análises da observação participante que ilustrem como as representações de gênero


são assimiladas no cotidiano e ressignificam as identidades de gênero nos bairros
estudados. No sexto e último capítulo discutiremos a violência no pagode baiano,
tanto em suas representações, como nas observações e depoimentos dos sujeitos
sociais que participaram desse estudo.
24

1 DA INDÚSTRIA CULTURAL À SOCIEDADE DE CONSUMO

As formas de produzir e consumir a cultura atualmente são condição material


para difusão dos estereótipos sobre as identidades de gênero através da música do
pagode. A cultura consumista tem direcionado o gosto dos consumidores para tipos
específicos de arte, moda, música e outras produções. Por isso, é preciso entender
como funcionam os mecanismos de produção e consumo de bens simbólicos de
valor cultural para perceber o papel do pagode baiano na propagação de uma moda
que se impõe sobre as identidades dos sexos.

Os intelectuais da escola de Frankfurt, especialmente Adorno e Horkheimer,


foram dos primeiros críticos da sociedade de consumo fomentada pela indústria
cultural. A crítica inicial de Adorno e Horkheimer, na sua obra A indústria cultural
(1986), sobre as práticas de produção e consumo cultural da época era direcionada
ao rádio, à TV, ao cinema e às artes em geral como meios de manipulação. A
indústria cultural diz respeito à promoção da cultura, por parte de empresários e
demais grupos elitizados para venda, através da publicidade. Assim, essa
industrialização funciona sob a mesma lógica administrativa de outras instituições
convencionais, como a de fabricação de peças de automóveis, sapatos e outros
produtos. Através da indústria cultural, as diversas artes, tais como a música, o
cinema, as novelas e os quadros, viram produtos, que precisam passar pelo crivo
dos grupos hegemônicos que controlam a produção cultural, para poder serem
produzidos, “empacotados”, propagados através de mecanismos publicitários, e por
fim, vendidos a um grande público que esteja ansioso para consumir. Sodré
caracteriza a funcionalidade dessa indústria afirmando que

O produto simbólico dito “de massa” resulta da passagem da obra


elitista, com forma produtiva “pré-capitalista”, à mercadoria cultural,
ou seja, ao produto com preço de mercado, plenamente afim ao
sistema do valor de troca, mais especificamente, ao estádio
monopolista do capital. O fim da aura, em termos de economia
política, equivale à integração capitalista dos bens culturais –
processo que altera não apenas as condições de produção e
consumo das obras, mas também os seus conteúdos. (SODRÉ,
1996, p.113)

Desse modo, a indústria cultural surge com a finalidade de dar aos produtos,
inicialmente elitizados, um novo formato para que possam ser consumidos pelas
25

massas em larga escala. Um exemplo dessa relação entre cultura e mercadoria,


citado por Sodré, é o folhetim, que até o século XIX era apenas um instrumento de
leitura para as elites e, a partir daí, passa a fazer parte da vida do público leitor em
geral graças ao advento da empresa jornalística que ampliou a circulação da
“mercadoria-jornal” (ibidem, p. 114).

Esse processo de industrialização da cultura não pode ser visto


unilateralmente como um retrocesso ou decadência. Afinal, tomando por base a
avanço da empresa jornalística, a massificação dos jornais teve como resultado o
avanço da prática da leitura, dando acesso desse conteúdo a inúmeras pessoas.

O fato que propiciou o surgimento da indústria cultural, de acordo com


Bourdieu (2009, p. 100), foi que a produção e consumo dos bens simbólicos de valor
cultural

[...] libertou-se progressivamente, tanto econômica quanto


socialmente, do comando da aristocracia e da Igreja, bem como de
suas demandas éticas e estéticas. Tal processo sucedeu em meio a
uma série de outras transformações: a) a constituição de um público
de consumidores virtuais cada vez mais extenso, socialmente
diversificado, e capaz de propiciar aos produtores de bens simbólicos
não somente as condições mínimas de independência econômica
mas concedendo-lhes também um princípio de legitimação paralelo;
b) a constituição de um corpo cada vez mais numeroso e
diferenciado de produtores e empresários de bens simbólicos cuja
profissionalização faz com que passem a reconhecer exclusivamente
um certo tipo de determinações como por exemplo os imperativos
técnicos e as normas que definem as condições de acesso à
profissão e de participação no meio; c) a multiplicação e a
diversificação das instâncias de consagração competindo pela
legitimidade cultural, como por exemplo as academias, os salões.
(BOURDIEU, 2009, p. 100)

Todas as novas formas de consumo, desprendidas das amarras da Igreja e


da Aristocracia, possibilitaram a busca por legitimação dos novos moldes de
produção da cultura e o reconhecimento dos próprios produtos. O reconhecimento
ocorria por meio da aceitação, e os bens simbólicos dirigidos às massas,
costumavam ser bem aceitos e comercializados com fluidez. As práticas da indústria
cultural eram voltadas para a massificação dos produtos culturais. Assim, ainda de
acordo com Bourdieu:

[...] de um lado, o campo de produção erudita enquanto sistema de


produção de bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes
bens) objetivamente destinados (ao menos a curto prazo) a um
26

público de produtores de bens culturais que também produzem para


produtores de bens culturais e, de outro lado o campo da indústria
cultural especificamente organizado com vistas a produção de bens
culturais destinados a não produtores de bens culturais (“o grande
público") que podem ser recrutados tanto nas frações não-
intelecutais das classes dominantes (“o público cultivado”) como nas
demais classes sociais. (BOURDIEU, 2009, p. 100)

Neste aspecto, Bourdieu concorda com os estudos de Adorno e Horkheimer,


demonstrando a existência de uma produção cultural elitizada e de outra para as
massas. Isso justifica, por exemplo, o porquê do consumo de certos gêneros
musicais pelas classes favorecidas e de outros pelas massas. Essa territorizalização
do consumo se dá em dimensões temporais distintas, pois o consumo das músicas
eruditas conta com maior durabilidade, chegando a ser considerada, em alguns
casos, como eterna – justifica essa idéia a venda de CDs de música clássica
produzidos no século XVIII, ou de cantores que têm suas músicas de décadas
anteriores compiladas em CDs e bem vendidas, como ocorre no Brasil com cantores
como Maria Betânia, Gal Costa, Djavan, Caetano Veloso, Tim Maia e outros.

A “grande massa” não consome, numa abordagem abrangente, as músicas


elitizadas, da mesma forma que a elite não consome a música popular. Essa foi a
grande regra que a cultura erudita e a indústria cultural disseminaram,
especialmente em seu primeiro momento de atuação, porém com duas ressalvas. A
primeira é conceder acesso a alguns músicos das classes oprimidas para produzir
canções para a elite; se analisarmos a história de vida de alguns cantores tidos
como eruditos, perceberemos suas origens vinculadas às classes oprimidas. Sem
pretender generalizar, enfatizamos a acessibilidade que se tem dado a muitos
músicos “da massa” e a elitização das canções por eles compostas ou interpretadas.
A segunda ressalva refere-se à produção artística de bandas e músicos “populares”
por “empresários” da elite, que possivelmente não consomem os gêneros populares,
mas vêem esse negócio como altamente rentável.

Com o poder inigualável da publicidade, ainda de acordo com Adorno e


Horkheimer, as necessidades das distintas classes sociais foram padronizadas e,
assim, os produtos tinham destinatários certos. Em consequência,

[...] as cifras publicadas dos rendimentos dos seus diretores-gerais


(das rádios e TVs) tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social
27

de seus produtos. Os interessados adoram explicar a indústria cultural


em termos tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria
imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que
inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais sejam
satisfeitas com produtos estandardizados. (ADORNO &
HORKHEIMER, 1986, p.28)

Para a produção, “embalagem”, distribuição e venda dos produtos culturais,


realizava-se um rigoroso processo, facilitando a produção para as classes elitizadas
e as oprimidas. Os discos, os filmes, as telas e demais produtos eram fragmentados
para permitir a polarização do consumo.

Com técnicas de levantamento de dados e produção sistemática polarizantes,


a indústria cultural se empoderava ainda mais e lançava novas características de
produção da arte, completamente desapegadas do estilo pelo qual os artistas
anteriores à industrialização artística tanto zelavam. Essa arte concebida pela
indústria cultural, segundo Adorno e Horkheimer (ibidem, p. 31), tem a intenção de
“impedir que a simples reprodução do espírito não conduza à sua ampliação”. Por
isso, tais autores alertaram para o conteúdo alienante da arte industrializada:

Os próprios produtos, desde o mais típico, o filme sonoro, paralisam


aquelas faculdades pela sua própria constituição objetiva. Eles são
feitos de modo que a sua apreensão adequada exige, por um lado,
rapidez de percepção, capacidade de observação e competência
específica, e por outro é feita de modo a vetar, de fato, a atividade
mental do espectador, se ele não quiser perder os fatos que,
rapidamente, se desenrolam à sua frente. (ADORNO &
HORKHEIMER, 1986, p. 27)

Assim, por um lado a indústria cultural promovia, com suas técnicas de


“reprodução do espírito”, um avanço nas capacidades perceptivas das pessoas, pois
“consumir essa arte” implica em um processo de abstração e concentração muito
grandes. Nos filmes, por exemplo, as pessoas têm a mente focalizada para entender
as rápidas cenas que são intimamente ligadas; perdê-las pode dificultar a
compreensão de partes ou da totalidade do filme. Esse fato, aparentemente positivo,
esbarra-se nas táticas de reprodução social e imbecilização, pois, ao tempo que o
espírito é reproduzido, ele é, simultaneamente, podado de expandir-se.

Sob inspiração marxista e grande sensibilidade intelectual, Adorno e


Horkheimer conseguem traduzir os paradoxos e problemas gerados a partir da
perspectiva consumista que se apoderou da cultura, para criar estereótipos na
sociedade e promover mais riqueza para os donos desses novos “meios de
28

produção” e submissão das massas. Eles descrevem como as pessoas assimilavam


os estereótipos concebidos pela indústria cultural, deixando clara sua intenção em
fazer com que as pessoas pensassem que a vida cotidiana imitava a arte - assim,
após assistir um filme, um trabalhador deveria imaginar que aquele espaço real era
continuidade do filme. Da mesma forma podemos observar como este fenômeno
ocorre também com os outros produtos culturais, tais como a música, que se roga na
função de promover a representação do cotidiano e daí, então, estimular a
reprodução de estilos de vida e a resignificação de identidades de classe, gênero,
raça.

Adorno e Horkheimer são os principais responsáveis pela sistematização do


que McCracken (2003) denomina de “sociologia do consumo”. Antes desses
intelectuais, o objeto dos estudos sobre a produção e consumo era meramente
econômico, de análise burocrática ou administrativa, debatendo os efeitos da
revolução industrial nas relações entre as classes e no funcionamento das fábricas,
sem abordar as implicações culturais mediadas pelas recentes práticas de consumo.
Por esta razão, Adorno e Horkheimer despertaram os acadêmicos para a
necessidade de estudos sobre a produção e consumo dos bens simbólicos de valor
cultural, tanto na elite como nas classes populares.

Muitas modificações têm ocorrido no cenário mundial após a escrita da


coletânea de textos que gerou o livro A indústria cultural. Quando esse termo foi
utilizado por Adorno e Horkheimer, a expansão dos mercados globais mundializados
ainda era relativamente tímida e a estandardização e massificação de produtos para
consumo coletivo eram mais simplificadas. Por exemplo, um carro produzido pela
General Motors era um padrão de consumo coletivo para pessoas em várias partes
do planeta, pois a empresa não era perpetrada por concorrência violenta e, assim,
poderia ver seu produto tornar-se uma referência simbólica de consumo a nível
mundial. Com o aumento da concorrência em larga escala, as empresas se
depararam com uma infinidade de produtos semelhantes aos seus, tendo que
inovar-se sempre para poder subsistir. O mesmo se aplica à produção simbólica,
inclusive à produção da indústria fonográfica, que enfrenta uma concorrência
agressiva de produtores do mesmo gênero. Segundo Sodré, atualmente

[...] são várias as “indústrias” da cultura, com diferentes graus de


intensidade de penetração capitalista. Pode-se mesmo falar em
29

“ramos” industriais (unidades de produção especializadas) na medida


em que os produtos audiovisuais, por exemplo, são extensões de
indústrias já existentes nos campos editoriais, eletrônicos ou
fotoquímicos. (SODRÉ, 1996. p. 116-117)

Desse modo, temos hoje várias indústrias culturais, que são especializadas em
algum tipo de mercantilização da cultura. Essas indústrias podem estabelecer ou
não permutas entre si, mas cada uma delas tem suas características próprias.

Vivemos atualmente em uma sociedade pós-industrial, fortalecida pelas redes


de satélite e computadores que tornam as comunicações e informações ainda mais
rápidas e estratégicas em todo o planeta (CASTELLS, 1999; LEVY, 1999). Os
processos informacionais e comunicacionais otimizados provocaram crise em muitas
organizações de produção de bens ou símbolos em todo o mundo. Assim, segundo
Bauman (2008), a produção simbólica passou a exercer maior poder de venda e por
isso se destacou em relação à produção de bens. A vida das empresas tornou-se
mais curta, mas elas conseguem obter exorbitantes lucros em menos tempo.

Para se manterem, as empresas que produzem bens tiveram que se tornar


referências simbólicas de consumo (SANTOS, 2002; ORTIZ, 1998). Sustentadas
pela publicidade, essas empresas muitas vezes nem são responsáveis pelas
produções dos insumos; como as franquias, patenteiam suas marcas e recebem
pelo uso delas. A produção do capital gira muito mais em torno do símbolo do que
do produto em si. Como demonstra Santos (ibidem, p. 48) o “remédio teria 1% de
medicina e 99% de publicidade” e é assim que a produção de bens subsiste: tem
que se produzir, “maquiar” e seduzir, ou seja, virar símbolo.

A publicidade, para atingir seus objetivos, pode estar se baseando nos


mecanismos de produção coletiva do gosto que concebe os estilos de vida dos
diferenciados grupos sociais. O conceito de habitus, cunhado por Bourdieu (2008),
define os pilares da sua produção e classificação do gosto. Segundo esse autor,
habitus é

[...] princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao


mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionis) de tais
práticas. Na relação entre as duas capacidades que definem o
habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras
classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas
práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social
representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida (ibidem, p. 162).
30

Assim, o gosto pode ser entendido como algo socialmente produzido, e não
como uma propulsão inata. Para o autor, o habitus é responsável pelas
representações sobre o gosto, pois o cria, distingue dos demais e o impõe para ser
consumido pelos grupos sociais. De acordo com Safiotti (2004, p. 61) “o habitus,
como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital
de um agente em ação [...]”, podendo ser compreendido como dispostos que agem
sem exigência do raciocínio e nascem justamente da interação entre o processo de
socialização e o equipamento genético de que é portador o agente social. Safiotti
salienta que esse conceito tem utilidade, mas incomoda por sua quase absoluta
permanência, ou seja, quase impossibilidade de mudar. O habitus é assim uma
convenção social e cognitiva que governa as ações dos indivíduos como se fossem
naturais, é definidora do gosto e das distinções entre classes.

Observamos ultimamente que o gosto, na perspectiva consumista, tem sido


produzido em diferenciados ritmos. A criação do habitus da sociedade globalizada
tem sido caracterizada pela efemeridade, espetacularização, individualismo, e outras
características que descreveremos ao longo desse trabalho.

Falando do gosto, Coelho (2006), inspirado em Greenberg, Barthes, Adorno e


Eco, utiliza o conceito de kitsch, entendido como “mau gosto puro e simples – é aqui
aplicada, de forma bastante ampla e com julgamento fortemente depreciativo, claro,
a todo produto da indústria cultural” (idibem, p. 161) - para justificar as
intencionalidades da produção da cultura de massa. O autor desmistifica a aplicação
desse mau gosto apenas à cultura dos pobres, demonstrando claramente sua
existência na “alta cultura” ou “cultura das elites”. Por essa razão, a análise do
Coelho não se concentra em estudar as polarizações da cultura da elite e das
massas, fugindo às discussões rançosas.

Para Coelho (2006, p. 163), o kitsch tem como característica principal


“prefigurar o efeito” dos espectadores promovendo atitudes, comportamentos e
ações previsíveis. Por isso, dentro da própria arte produzida, existe uma intenção de
antecipar a atitude de quem a consome. Coelho exemplifica essa prefiguração do
efeito comentando que

[...] basta lembrar o que ocorre até hoje nos seriados cômicos
americanos: a cada frase espirituosa de um personagem, segue-se a
31

gravação de risadas de um público artificial. Assistindo ao programa


dentro de casa, o espectador nem mesmo precisa rir: o programa ri
em seu lugar. O efeito encontra-se prefigurado na própria obra.
(COELHO, 2006, p.164)

O autor cita outro exemplo, desta vez, na música:

Prefiguração do efeito, se quisermos, existe também no hábito de


alguns cantores clássicos da cafonice, que consiste em primeiro
cantar uma música (digamos, “El Dia Em que Me Queiras”) depois
cantá-la de novo, e na hora de repeti-la maus uma vez, apenas
declamar a letra, sem cantar, enquanto a orquestra ao fundo sonoro
equivale, nitidamente, a imitar a passividade do ouvinte,
“encenando”, por assim dizer, o modo com que a letra foi sendo
absorvida pelo seu cérebro. É como se o cantor, cantando em
espanhol, fizesse em seguida a tradução da letra... para o espanhol
também. Imita-se o efeito; imita-se até mesmo a absorção do efeito
(ibidem, p. 165).

O kitsch é, com efeito, uma “arte facilitada” (ibidem, p. 169), ela interfere na
capacidade cognitiva do espectador, pensando, rindo, sofrendo, interpretando e
concluindo por ele. É considerada “arte facilitada” porque não solicita do espectador
esforço interpretativo de decodificação nem de compreensão. Ao espectador não
cabe inquirir a obra, nem sequer conviver com ela, apenas consumi-la, e desse
modo a o kitsch reforça a produção do habitus (BOURDIEU, 2008).

Mais do que debater a polarização dos bens simbólicos para uma classe
social, os diálogos em torno do kitsch nos direciona a perceber a cultura de massa
como existente em todas as classes, por meio da música, da poesia, do cinema, do
jornalismo e de outros meios de produção da cultura, buscando com que “tudo apele
para nossa concordância, e nada (ou quase nada) para nossa inteligência” (ibidem,
p. 173), fenômeno que propicia o terreno para a atuação eficiente do marketing
cultural para o consumo de massas.

Bauman (2002, p. 119-120) pondera que a publicidade “cumpre o papel de


elaborar o desejo do consumidor atomizado, conferindo-lhe uma certa estabilidade
social”. Logo, essa mesma publicidade irá criar novos objetos de satisfação a serem
possuídos, que possibilitaram a circulação de novos produtos. O acesso aos novos
produtos integra socialmente o “cidadão” consumista, causando-lhe a sensação de
inclusão. A cidadania é aqui medida pelo poder de compra, quanto maior ele for
mais privilegiada será a posição social de quem o possui. Certamente, quem não o
tem será excluído e não será tratado como “cidadão”.
32

Desse modo, percebemos que as pessoas são incentivadas a consumir esses


símbolos e a publicidade encontrou na televisão um dos meios mais eficazes para
vendê-los desde que, mesmo com o contínuo crescimento de outros veículos de
comunicação, ainda é o meio mais popularizado de acesso à informação e ao
divertimento. Tomando como exemplo os canais de televisão brasileiros, nas
propagandas de cerveja, roupas, óculos, CDs e outros objetos, mulheres e homens,
geralmente atores, atrizes e figuras emblemáticas do mundo da moda, com padrões
estéticos estereotipados, expõem suas expressões faciais persuasivas e corpos
sensualizados para chamar a atenção do espectador-consumidor. Mais uma vez
exemplificando, quem está bebendo uma cerveja, está consumindo um produto que
a bela e famosa atriz sensual está divulgando, e isso dá status a quem bebe, o torna
cidadão. Além disso, os slogans são adaptados para o léxico dos consumidores,
assim quem bebe a cerveja Antartica, bebe “a boa”; Skol, “desce redondo”; Boêmia,
“a melhor cerveja do Brasil”; quem consome os sanduíches da McDonalds diz: “amo
muito tudo isso”; em suma, esses jargões fortalecem o símbolo, e mantém “viva” a
produção. Como fala Bourdieu (2009), vivemos no mundo de símbolos, e a negação
da simbolização pode significar a “morte” do produto, da marca e da empresa.

A produção simbólica difundida através da mídia trabalha a serviço da


acumulação de capital. Assim, o controle dos meios de produção de bens materiais,
da cultura, da informação, etc., é exercido por pouquíssimas empresas, porém muito
poderosas. Para fortalecer os vínculos de poder, essas empresas se fundem, firmam
contratos de parceria, absorvem as menores ou compram as concorrentes que
sucumbem e cartelizam a produtividade e comercialização, dentro dos trâmites
jurídicos convencionais. Essas estruturas de poder tecidas pelas empresas
constroem os cenários estáticos que remete suntuoso acúmulo de capital a uma
ínfima parcela de empresas (ORTIZ, 1999).

Para Santos, dinheiro e mídia

[...] fornecem as bases do sistema ideológico que legitima as ações


mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam
conformar segundo um novo ethos as relações sociais e
interpessoais, influenciando o caráter das pessoas. A competitividade
sugerida pela produção e pelo consumo é a fonte de novos
totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos
espíritos que se instala. (SANTOS, 2002, p. 37)
33

O poder que as grandes corporações privadas do mundo exercem sobre as


pessoas é maior do que foram outrora os aparelhos ideológicos dos Estados
estudados por Althusser (1986), desde que as empresas ocupam atualmente o
território ideológico que antes pertencia ao Estado. Assim, anunciam a “morte do
estado” e passam a gerir e vender “saúde”, “educação”, “empregos”, “rodovias”,
posicionando até mesmo o estado a favor dos seus interesses estratégicos. Dessa
nova representação social, liderada pelas empresas, temos o novo ethos retratado
por Santos, que aumenta a competitividade e delineia um aceleramento da produção
no mundo globalizado. Ortiz também observa que

As grandes empresas, pela sua filosofia e pelos seus


interesses econômicos, são agentes políticos privilegiados no
contexto de uma “sociedade civil mundial”. Elas superam os
partidos, os sindicatos, as administrações públicas e os
movimentos sociais, todos esses atores confinados ao
horizonte dos conflitos nacionais. Isso compromete
inevitavelmente a constituição de um “espaço público” (como o
entende Habermas), restringindo a liberdade do debate
democrático. (ORTIZ, 1999, p.166)
A mídia atual ocupa territórios que, por direito, não lhe pertencem, como o
jurídico que, por exemplo, julga alguém culpado ou inocente. Isso acontece com
frequência em programas de TV que criminalizam uma pessoa ou moradores de
bairros inteiros. Yudice (2008) menciona um exemplo da criminalização de funkeiros
e de moradores da favela; após um arrastão ocorrido na praia de Copacabana, em
1992, no Rio de Janeiro, a televisão e os jornais nacionais transformaram uma briga
entre grupos rivais em uma ação coletiva de roubo por parte dos moradores da
favela. Conforme o autor, essa mesma mídia, atendendo a apelos elitistas
polarizadores, tentou fortalecer a ideia de cortar as linhas de transporte urbano que
ligavam a zona norte à zona sul, mas isso só não ocorreu porque as casas ficariam
sem as suas empregadas domésticas, que, por sua vez, residiam nas favelas na
zona norte.

As práticas abusivamente manipulativas dos meios de comunicação revelam,


de acordo com Santos,

[...] o papel verdadeiramente despótico da informação [...] Essas


técnicas de informação (por enquanto, são apropriadas por alguns
Estados e por algumas empresas), aprofundando assim os
processos de criação de desigualdades. É desse modo que a
34

periferia do sistema capitalista acaba se tornando ainda mais


periférica, seja porque não dispõe totalmente de novos meios de
produção, seja porque lhe escapa a possibilidade de controle.
(SANTOS, 2002, p.38-39)

Um mesmo evento pode ser noticiado por emissoras ou grupos jornalísticos


diferentes de forma a favorecer a alguma pessoa ou grupo. Para ilustrar essa ideia
de manipulação, citaremos o exemplo de um fato ocorrido em Salvador, no ano de
2001, quando os estudantes da Universidade Federal da Bahia – UFBA – fizeram
uma greve e se concentraram nas entradas principais da Universidade para coibir o
acesso de professores e funcionários. Logo, por ordem do governador, a Polícia
Militar – PM -, entrou em ação e, com bombas de gás e repressão violenta pôs fim a
paralisação dos estudantes que reclamavam por melhores condições de estudos. Os
dois jornais de maior circulação na Bahia trataram do mesmo assunto, porém de
maneiras diferentes. O Jornal Correio da Bahia sugeriu em sua chamada de capa
que os “heróis” (policiais militares) puseram fim a baderna estudantil. Por outro lado
o Jornal A Tarde pressupôs que a ação dos policiais foi demasiadamente violenta e
comparou às ações da polícia durante o Regime Militar. Em quem acreditar?
Realmente a informação globalizante causa um efeito que Santos (ibidem, 2002)
denomina de “confusão dos espíritos”.

Klein (1999) salienta o poder da mídia em disseminar arquétipos patriarcais,


machistas e sexistas. Cita o movimento feminista e o movimento gay, que
pressionavam as redes de TV na década de 1970 por um maior espaço nos meios
de comunicação dos Estados Unidos e de países europeus, visando desesteriotipar
noções criadas e plantadas por grupos hegemônicos patriarcais e pela própria mídia;
coibir a homofobia, aumentar o respeito às diferenças e a igualdade de
oportunidades. Após as lutas, timidamente foram conseguindo o espaço,
principalmente, nos anos 1980 e 1990, mas logo correntes antagônicas começaram
a atuar no sentido de criminalizar homossexuais e lésbicas, além de inferiorizar as
mulheres. Klein salienta que sempre se exibia na mídia, reportagens sobre travestis
assassinos, lésbicas criminosas e todo o tipo de imagem que fortalecesse as
diferenças consideradas “ameaçadoras”. Podemos, mais uma vez, perceber o poder
de manipulação midiática que suavemente vai de encontro aos direitos
internacionais das pessoas em países democráticos.
35

A mídia massifica, até o ponto que, atualmente, segundo as palavras de Ortiz


(1999, p. 173), “as condutas se diferenciam em função de segmentos de consumo, e
não mais segundo suas territorialidades”, como consequência, o impacto das
culturas locais é relativizado. Enquanto Cancline (2008) ocupa-se do trabalho de
identificar essa desconstrução do popular, apresentando o importante papel da
hibridização cultural, Ortiz identifica, dentro das tendências das sociedades atuais, o
eixo da mudança, que, para ele, ocorre quanto a

[...] oposição “cultura erudita” x “cultura popular” é substituída por


outra: “os que não saem muito” x “os que permanecem em casa”. De
um lado os sedentários, que vêem televisão quase o tempo todo, e
deixam o lar apenas para trabalhar. De outro os que “aproveitam a
vida”. A mobilidade, característica da vida moderna, torna-se sinal de
distinção. (ORTIZ, 1999, p. 211).

Esse é só um exemplo que o autor salienta, porém, existem outras


demarcações de diferença que identificam as demandas da produção a partir do
perfil do consumidor, mas o que importa aqui é que o que é produzido pode ser
consumido por um morador da favela ou um magnata que reside em um castelo,
pelo mesmo preço e adquirido na mesma fonte. De acordo com Souza e Nemer,

Não importa que haja uma diferença de 1000% entre a renda per
capita americana e a brasileira: a loja de chocolates Godiva ou a Fendi
alcançam bom nível de vendas em São Paulo, Paria, Buenos Aires e
em Nova York. O que muda é o número de lojas e o volume de vendas
(SOUZA & NEMER, apud ORTIZ, 1999, p. 178)

Por essa razão, o consumo da cultura se despolariza e impõe sobre os países


pobres o processo de americanização e mundialização estadunidense e, mais
recentemente, europeia. Transpor as práticas de consumo do “Primeiro Mundo”
sobre o “Terceiro”, tornou-se um negócio muito rentável comparada à prática de
consumo dos países “desenvolvidos”. Por isso, Ortiz considera que

A modernidade-mundo nos países “periféricos” é perversa,


selvagem, mas real. A globalização provoca um desenraizamento
dos segmentos econômicos e culturais das sociedades, integrando-
os a uma totalidade que os distancia dos grupos mais pobres,
marginais ao mercado de trabalho e de consumo. O Terceiro Mundo
vive um processo de desagregação enquanto entidade homogênea
[...] As desigualdades intranacionais não contradizem o movimento
de convergência dos hábitos de consumo. A mundialidade da cultura
penetra os pedaços heterogêneos dos países “subdesenvolvidos”,
separando-os de suas raízes nacionais. (ORTIZ, 1999, p.179)
36

Outra característica da sociedade de consumo é a efemeridade, mediada pela


concorrência. De acordo com Bauman (2002), enquanto anteriormente existia uma
preocupação com o processo produtivo, na atualidade o foco é o consumo,
precisando, assim ser produzido o consumidor antes do produto, para que possa
recebê-lo e comprá-lo agilmente, se possível, em grande quantidade. Mas esse
consumidor não deve ficar muito tempo com esse bem, que tem a função
descartável ampliada, para que novos produtos sejam plantados na mente do
consumidor, mesmo antes de serem produzidos.

A efemeridade está em todas as relações comerciais motivada pela inovação


- toda vez que algo novo é lançado, o velho é ameaçado. É assim com os filmes, os
eletrodomésticos, as roupas, os estilos de corte de cabelo, os canais de TV, as
estações de rádio, as músicas e com tantos outros bens simbólicos e materiais.
Concretamente no caso do pagode, as músicas consideradas sensação em 1993
atualmente não têm audiência nos programas de TV, não vendem mais CD e já
foram descartadas. As coisas só têm valor enquanto estão novas, “na moda”, em
cartaz; com o surgimento de algo mais novo, são fadadas ao esquecimento.

Todos podem ser consumidores de quaisquer produtos, no entanto são os


donos dos meios de produção que definem seus clientes preferenciais, excluindo,
sutilmente, aqueles que não geram bons lucros à instituição, a quem Bauman (2002,
p. 11) denomina de “ervas daninhas do jardim do consumo, pessoas sem dinheiro,
cartões de crédito e /ou entusiasmo por compras, imunes aos afagos do marketing”.

A lógica competitiva e seletiva do mercado define os modos das relações


sociais. Para obter uma boa educação e saúde, é necessário pagar por elas, para se
manter em um emprego é elementar adapte-se a ele, exercer funções diversas,
fazer horas extras e não realizar reclamações trabalhistas e ser desapegado. Aqui
as relações de trabalho são “recomodificadas”, “desregulamentadas” e “privatizadas”
Saímos de uma indústria da cultura de massa para a institucionalização de uma
cultura para o consumo (BAUMAN, 2002). As mudanças de consumo, que atingiram
diretamente os usos da cultura, têm suas implicações sobre as identidades
individuais e coletivas, promovendo mudanças linguísticas, educativas e
comunicacionais (HALL, 1999) e inclusive mexendo com as paisagens urbanas e
rurais (HARVEY, 2001). Para ser consumidas, toda informação e produção cultural
37

nessa nova sociedade globalizada vira espetáculo onde a própria vida privada é
exibida. Bauman chama a sociedade exibicionista de “sociedade confessional”,
entendida por ele como

[...] uma sociedade notória por eliminar a fronteira que antes


separava o privado e o público, por transformar o ato de expor
publicamente o privado numa virtude e num dever públicos, e por
afastar da comunicação pública qualquer coisa que resista a ser
reduzida a confidências privadas, assim como aqueles que se
recusam a confidenciá-las. (BAUMAN, 2002. p.9)

Trata-se, sem dúvida da sociedade do espetáculo. Os acontecimentos


cotidianos sempre são novelizados em telejornais, ou contados em programas de
televisão. A vida privada é exposta em sites de relacionamento, onde as pessoas
“vendem” suas imagens pessoais. As intimidades e desejos são especulados e
expostos pela mídia que se serve da nova tecnologia. Flagrantes de delitos, brigas,
desentendimentos, relações sexuais, assassinatos, roubos, práticas de corrupção,
são capturados por câmeras, filmadoras e gravadores. Os pequenos aparelhos
celulares, atualmente muito acessíveis, contribuem para expor os detalhes da vida
cotidiana. Essas imagens logo são expostas na Internet ou na TV, comentadas pelos
jornais impressos e debatidas no rádio, em blog, fóruns e listas de discussão.

Nesta sociedade do espetáculo, os telespectadores são bombardeados


cotidianamente por uma informação repetitiva e interesseira. Os fatos, quando
aparecem, são comentados com excesso de detalhes efêmeros. Por isso, quando
um novo fato surge na mídia, o outro cai em esquecimento da mesma forma que
ocorre com a moda, com as músicas, e com todos os bens materiais e simbólicos. A
mídia se serve do espetáculo da vida privada e os escândalos da vida pública para
poder exercer seu papel ideologicamente despótico que é de “confundir” ao invés de
informar (ORTIZ, 1999; SANTOS, 2002).

Essa espetacularização promove o surgimento de novos estilos de vida.


Consumidores-telespectadores-internautas assistem e interagem sobre exposição
das vidas, e tudo aquilo que, no julgamento midiático, não é irônico, insensato,
ilegal, imoral e contraditório está à disposição para ser consumido. Nas palavras de
Santos (2002, p. 37) o consumo “é, também, um veículo de narcisismos, por meio
dos seus estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece como o grande
fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente”.
38

Como consequência da transformação das pessoas em mercadorias,


aumenta-se o individualismo, fragmenta-se a solidariedade, diminui-se a cidadania e
acirra-se a competitividade. Segundo Santos (2002, p. 46), a competitividade
globalizada “chega eliminando toda forma de compaixão. A competitividade tem a
guerra como norma. Há, a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o, para tomar
seu lugar”. Assim as pessoas precisam “vender” sua imagem para conseguir manter
seus empregos e esmagar seus concorrentes; em nosso caso, as bandas de pagode
competem para lançar músicas novas, mais sensuais, e assim vencerem suas
concorrentes. Todo o tecido social é campo de batalha, por isso, “consumismo e
competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução
da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição
fundamental entre a figura do consumidor e a figura do cidadão” (SANTOS, 2002, p.
49).
39

2 CONTEXTUALIZANDO O PAGODE BAIANO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E


PERSPECTIVAS ATUAIS

A história dos batuques, lundus, umbigadas, samba tradicional, samba de


roda, samba de fundo de quintal, pagode romântico e outros gêneros, estilos
musicais e danças tem ligação direta com a história do pagode baiano. A evolução e
miscigenação desses ritmos, juntamente com as mudanças no processo de
urbanização das cidades, propiciaram ao pagode abordado aqui seu surgimento e
progresso.

Para compreender todo esse processo histórico-cultural, necessitamos de um


mergulho na história da música brasileira, no que tange à história das populações
negras no Brasil e aos sons produzidos e seguidos, popularmente, nas senzalas ou
nas ruas de duas importantes cidades brasileiras: Rio de Janeiro e, em caráter
especial, Salvador, por se tratar da cidade na qual desenvolvemos a pesquisa. A
música produzida muitas vezes desafiava atos governamentais e religiosos que iam
de encontro às festas e demais reuniões musicais de negros e mestiços. Quando
não desafiava os poderes constituídos, a música servia como refrigério ante a
agressiva escravidão e marginalização negra.

Enfim, esses sons evoluíram e claro passaram a pertencer de fato à


população brasileira como um todo. Percorreram outras regiões do país, mantiveram
a sua força nos locais de origem e deram base para o surgimento de outros novos
estilos, danças, ritmos, novas maneiras de protestar ou de apenas se divertir.

Ao ter fim a escravidão, novas formas de trabalho tomaram conta do país,


embora a perspectiva de exploração se promulgasse. A música, que serviu como um
meio de protesto ou de alegria ante a sofrida escravidão, no novo contexto histórico
pós-abolição. E diante das novas formas de trabalho assalariado, continuara a ter
mais força nas/para as camadas populares, nos processos de identificação coletiva
tanto para reivindicar direitos, quanto para divertir a população.

As cidades do Rio de Janeiro e Salvador intensificaram suas produções


culturais da música. Embora, muitas vezes, enveredem por caminhos diferentes,
características impregnam os dois lados. Um exemplo está no pagode baiano e no
40

funk carioca, pois temos estilos musicais e danças diferentes, mas a sensualidade
atribuída às coreografias, especialmente focadas no corpo feminino, e o perfil do
público que consome as músicas une caracteristicamente os dois estilos musicais.

As razões do surgimento do pagode baiano, as coincidências com a música


produzida no Rio de Janeiro, o público que o tem como preferência musical, a
trajetória histórica desse estilo musical, as danças, as letras, os músicos de grande
destaque, as polêmicas, o consumo e suas perspectivas, exprimem a razão de ser
desse capítulo. Esperamos assim, entender a história e as perspectivas do pagode
baiano para, posteriormente, entender as questões de gênero (enquanto identidade
social dos sexos) ligadas a esta espécie musical.

É o samba enquanto gênero musical que proporciona a origem do pagode


baiano. Entender esse gênero musical, suas construções históricas, culturais e
sociais, amplia nosso grau de visibilidade e dos passos mutáveis que chegam ao
pagode baiano do tempo presente. Entendemos gênero musical, segundo Carvalho
como

[...] um conjunto de palavras ou tropos literários fixos que combinam


com algum padrão rítmico particular e com algum tipo particular de
harmonia e de movimento melódico porque aquelas palavras ou
tropos evocam uma determinada paisagem social, uma paisagem
histórica, uma paisagem geográfica, uma paisagem divina, ou
mesmo uma paisagem mental. Tudo isso é um gênero musical. Uma
vez que se tenha o tudo articulado como um gênero, então tem-se
muitas experiências de fusão que formam parcialmente gêneros e a
superposição entre dois ou mais deles, expandindo geometricamente
essa riqueza narrativa. Essa riqueza, por sua vez, pode evocar as
estruturas dos gêneros que foram postos em contato numa única
peça musical. (CARVALHO, apud LIMA, 2003, p.89)

Assim, o samba enquanto gênero musical traz esse conjunto rítmico-


linguístico que representa as diversas paisagens históricas, sociais, culturais,
religiosas e psicológicas das populações que vivem nos morros, nas favelas ou em
bairros populares. Tais paisagens configuram a identidade de um povo, descrevem
os desafios sociais e causam a sensação de pertencimento, união e solidariedade
para enfrentamento dos desafios cotidianos. Por isso, o samba tem singular
representação no imaginário das populações que com ele se identificam. Em toda
sua história, mesmo antes de se configurar definidamente como samba, o estilo
41

musical teve perfil de aglutinação de pessoas na prática de fortalecimento da


pertença, em festividades negras realizadas nas senzalas ou nas ruas.

A história do samba remonta a partes recorrentes da história dos sons


produzidos pelas populações negras no Brasil. Tinhorão (2008) tem apontado para
as origens desses sons dos negros, inicialmente apresentando os calundus que,
segundo o Novo Dicionário Aurélio (2010) trata-se de um substantivo masculino que
denota um “espírito dum antepassado remoto, suposto ente sobrenatural que dirige
o destino da pessoa em quem se incorpora”. Nos estudos de Tinhorão, os calundus
poderiam ser, em um primeiro momento, festas religiosas de matriz africana bem
como, num segundo momento, os batuques produzidos nesses rituais religiosos, e
depois, a incorporação de entidades espirituais que cuidavam das vidas das
pessoas. Tais incorporações aconteciam em festas e rituais religiosos ao som dos
tambores, onde os incorporados faziam presságios para filhos de santo e curiosos
que participavam dessas festividades.

A partir da administração de Maurício de Nassau em 1644 “que iam ficar


registradas as informações mais vivas e mais diretamente ligadas à vida dos negros
na sociedade colonial brasileira” (TINHORÃO, 2008, p. 33). O referido autor destaca
as imagens de escravos capturados durante esse período, dançando nas telas de
Frans Post e em gravuras de Gaspar Barlaeus, bem como a descrição de uma cena
de dança coletiva por Zacharias Wagener, no Livro dos animais do Brasil. Embora
não houvesse atribuição direta por parte dos pintores, gravuristas e escritores, a
descrição nas primeiras pinturas, gravuras e livros que tematizam as danças dos
negros as aproximam da noção recente que temos dos rituais e festas religiosas dos
terreiros de candomblé. Como aponta Sodré,

[...] nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades,


havia samba onde estava o negro, como inequívoca demonstração
de resistência ao imperativo social (escravagista) de redução do
corpo negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de
continuidade do universo cultural africano. (SODRÉ, 1998, p.12)

Como som de negro, escravo e, portanto, marginal, as formas da música e da


dança nascidas primordialmente na religiosidade africana e diaspórica, ao mesmo
tempo em que afirmavam a identidade afro-brasileira incomodavam a elite colonial
branca. O preconceito da elite colonial sobre essas danças é evidente nos relatos
históricos das precisas fontes citadas por Tinhorão. Essa elite rotulava as
42

festividades ou rituais onde a dança calundu era praticada, de bailes bárbaros ou


mesmo demonizavam tais danças. Tal preconceito também é evidente nas
descrições do cronista Gregório de Matos ou de autoridades moralistas como Nuno
Marques Pereira.

O calundu é, portanto, a dança ou ritmo musical que está na linhagem da


construção do gênero samba, pois envolvia aí as descendências da população que
se identifica atualmente com o gênero e suas paisagens históricas, culturais, sociais,
dentre outras. O termo passou por uma variação se tornando também conhecido
como lundu. Sobre isso, Tinhorão (2008) alerta que esse lundu, enquanto variação
do calundu, nada tem a ver com uma dança de roda a base de umbigadas e
castanholar de dedos com o nome de lundu. Apesar da sinonímia, o lundu (variação
do calundu) ao qual o autor se refere é uma derivação brasileira de danças e rituais
religiosos de matriz africana, parte dos batuques, folguedos e festas religiosas, mas
toma formatos próprios a partir da participação da população mestiça e branco-
brasileira em tais batuques. Assim, encontramos no calundu a primeira referência
histórico-identitária com o samba e a população que tem como referência esse
gênero musical.

Os lundus surgiram nas senzalas, mas ganharam as ruas e envolveram a


população brasileira da colônia em maior amplitude, inicialmente na perspectiva
religiosa, mas posteriormente impondo-se como ritmo e estilo de dança e música,
sendo conhecido também como batuque ou batucada. Assim, ao ganhar as ruas, os
lundus propiciam a origem de outros estilos e intercomunica-se com ritmos e danças
já existentes.

É interessante notar que as músicas que por muito tempo foram sinônimo de
vulgaridade e estigma pela sociedade colonial e, mais a frente, republicana racista,
ressurgiam, apropriadas pela mesma elite que anteriormente as criticava e
demonizava, como algo sofisticado e sublime. Dava-se apenas uma nova roupagem
nas músicas e danças, mas mantinha-se a consistência das origens.

O lundu não é samba, nem pagode, mas principia nas raízes dessas músicas
e práticas culturais da diáspora africana, que dá origem a músicas atuais como o
rap, soul, funk, reggae, samba e pagode. Inicialmente vulgarizado pela elite, o lundu
volta à cena brasileira apropriado pela própria elite no teatro ou então nas danças da
43

antiga polca, agora transformada em maxixe – uma dança de salão -, que flui ao
som do ritmo do dançado e cantado lundu (TINHORÃO, 2008).

As umbigadas também foram essenciais para as origens do samba. Tratava-


se de uma dança de roda popular, muito conhecida em todo o Brasil, especialmente
na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, na qual as pessoas, ao dançar, batiam entre
si barrigas e pernas. Tinham como local comum de encontro as praças ou casas que
sempre tinham ligação religiosa com rituais e festas de matriz africana.

Outras contribuições de suporte significativo para a origem do samba foram,


ainda segundo Tinhorão (2005), as serenatas nos séculos XVIII e XIX e mais tarde
os seresteiros do século XX. Tais cantores de rua colaboraram para a agregação,
em locais estratégicos dos centros urbanos, tanto na Bahia, quanto no Rio de
Janeiro, de pessoas que ouviam as músicas sempre acompanhadas do som do
violão e de instrumentos percussivos. Mas é a partir da década de 1950 que os sons
diaspóricos ganham força novamente, com os pagodes no centro de Salvador. Esse
pagode nada tem a ver com a espécie do samba, denominado pagode baiano, que
abordamos aqui. Pagode era o nome dado as reuniões nos bares e casas noturnas
do centro da cidade para ouvir o samba tradicional, que ocupava agora o local que
antes pertencia à seresta e, num passado mais distante, às serenatas.

Foram os Estados da Bahia e Rio de Janeiro que vicejaram o pioneirismo


dessa produção da tradição diaspórica. Na Bahia tivemos um começo mais
efervescente com o samba de roda, muito conhecido atualmente como de
recôncavo, mas o Rio de Janeiro teve uma grande contribuição no gênero em seu
formato tradicional.

Apesar das tentativas governamentais racistas de faxina sócio-cultural, que


buscavam eliminar a presença crioula e mestiça na música popular brasileira nos
últimos anos do século XIX e primeiros anos do século XX, a história aponta que o
recém nascido samba buscou estratégias inteligentes de sobrevivência. Assim
Sodré (2003) mostra a importância das “casas de santo” no abrigo escamoteado das
perseguidas festas de samba no Rio de Janeiro. Eram nos terreiros, representados
nas importantes figuras dos/as zeladores/as de santo, yalorixás, babalorixás e
babalaôs, conhecidos/as na época como “tios” e “tias”, que a memória do samba foi
preservada e fomentada. Sodré nos dá indicação de como esses encontros festivos
44

ocorriam no final do século XIX e início do século XX, sempre em casas, geralmente
de seis cômodos, cujas salas recepcionavam convidados para dançar as modinhas
e as polcas. Em uma segunda sala, as pessoas que tinham o “gingado” e “remelexo”
dançavam os primeiros ritmos de samba e no quintal, as batucadas religiosas em
louvor as divindades africanas. Assim, “o samba já não era, portanto, mera
expressão musical de um grupo social marginalizado, mas um instrumento efetivo de
luta para a afirmação da etnia negra no quadro da visa urbana brasileira” (SODRÉ,
2003, p. 16).

Como pioneiros dessa origem do samba, entre as décadas de 1910 e 1920,


destacaram-se e imortalizaram-se músicos como Cartola e Assis Valente, que,
segundo Sodré (2003), compuseram o primeiro samba brasileiro: Pelo telefone,
cantado pela primeira vez em uma dessas “casas de santo” lideradas por uma
influente babalaô do Rio de Janeiro, a conhecida Tia Ciata (ou Aciata), casada com
o médico João Batista da Silva, que se tornaria dirigente do gabinete do chefe de
polícia no governo Wenceslau Brás. Há divergências sobre a autoria do samba “Pelo
telefone”. O baiano Donga também é citado por outros autores como responsável
por essa composição (LEME, 2003).

O século XX é diferencial para o nosso estudo, pois é nele que realmente


nasce e avança o samba enquanto gênero musical. Reconhecemos as contribuições
das práticas diaspóricas e as hibridizações musicais que subsidiaram o surgimento
do samba e reafirmamos criticamente a prática elitista de rejeitar,
momentaneamente, a produção dos marginalizados para depois possuí-la e
consumi-la com voracidade, seja para diversão elitizada ou para exploração através
da propagação de consumo para lucrar com essas músicas. Nesta afirmação
encontramos um ponto de mudança nas perspectivas de consumo do samba.

Podemos entender a história social do samba e sua fecunda vinculação com


as classes oprimidas em três momentos históricos específicos. Primeiramente como
um eixo comum nas resistências das populações negras, servindo para reafirmar a
cultura, até chegar a ser, enquanto música, eixo articulador da identidade popular
nacional. Por último, após o advento da indústria fonográfica, toma novos contornos
com espécies e novas perspectivas que desestabilizam os papéis atribuídos a esse
gênero musical nos dois primeiros momentos.
45

Já analisamos aqui o primeiro momento do samba, as intercomunicações


históricas com outros gêneros e estilos que propiciaram o seu surgimento, bem
como as relações contra-hegemônicas que o samba tem com esse canto afirmativo
dos negros e miscigenados. Agora, tomando essa referência do final do século XIX e
início do século XX, analisaremos o samba como eixo articulador da identidade
nacional, para então, em seguida compreendermos a industrialização do gênero e
suas mais recentes espécies pela indústria da música e as significativas mudanças
que implicam no conceito de cultura popular.

O pós-abolição teve o samba com um dos principais emblemas da


consolidação da identidade negra diaspórica e articulação desta com a nacional.
Diante da hostilização inicial da elite para com essa camada da população recém
liberta, o samba foi essencial para afirmação da identidade afro-brasileira. Perante a
resistência cultural popular, que se manifestava contra as perseguições autoritárias,
e a ineficiência governamental que utilizou o aparelho policial para reprimir as festas
embaladas pelo samba e congêneres, as autoridades e a elite intelectual branca do
Brasil passaram a reconstruir seus objetivos visando acalmar os ânimos sociais e,
para tanto, utilizou o samba, agora com uma concepção ideológica, tentando impô-lo
como aglutinador da identidade nacional.

A década de 1930 foi diferencial para o fortalecimento do conceito de


identidade nacional, quando, segundo Yudice (2008), Gilberto Freire trouxe à tona a
noção da democracia racial. A partir daí, pautados na busca de símbolos que
significassem a identidade nacional dessa nação racialmente democrática, as
lideranças governamentais e intelectuais do país pararam para (res)siginificar os
elementos constitutivos da civilização. O samba, nesse percurso, passou a
representar a música dileta das camadas populares, da gente sofrida, guerreira,
batalhadora, que vivia a margem da sociedade, nos centros urbanos, morando em
favelas, invasões, ou em áreas suburbanas, convivendo com a pobreza, mas que
tinha no samba essa referência e significação identitária que os ligavam ao restante
da população brasileira, perfazendo, assim, a identidade nacional.

O samba era para a população pobre do país um momento de sociabilidade e


descarrego sentimental da “vida dura” cotidiana, mas também implica um processo
de alienação, pois, nessa busca de constituição de uma identidade coletiva nacional,
46

a submissão e manutenção dessa realidade aparecem como uma coisa natural, sem
preocupações com a cidadania ou com a emancipação das populações
marginalizadas. Yudice (2008) reafirma essa ideia de povo pobre, mas rico em
espírito. A partir de uma pesquisa com sambistas da atualidade, o referido autor
apresenta a concepção comodista ainda influenciada pela elite cultural, que tenta
institucionalizar os conceitos de identidade nacional e cultura popular. Ainda salienta
que essa concepção comodista, mencionada acima, sobre a importância do samba
pode causar problemas:

O que realmente acontece é que, desde a década de 1930, as ditas


práticas vêm sendo mobilizadas pela mídia, pelos negócios, (em
especial, o turismo), pela política (inclusive a manipulação do
carnaval), e outros fatores de mediação para reprodução simbólica
de um Brasil “cordial”, que resulta no abocanhamento de benefícios
materiais por parte de elite. (YUDICE, 2008, p. 138)

A crítica não se dirige ao gênero musical samba, mas aos usos do conceito
de cultura popular que tende a promover o efeito alienante. O samba em si não tem
como proposta atender as elites. Ele por si só não tem finalidades específicas, elas
são constituídas por aqueles que o fazem, que o consomem ou que o vendem,
mesmo sem plena consciência dessas finalidades por parte desses atores sociais.
Vimos, anteriormente, o papel aglutinador que o samba, mesmo em suas origens,
teve na projeção da cultura diaspórica que buscava afirmar-se e, de fato, conseguiu,
através das danças, letras e ritmos, interligados ao samba, como suporte diferencial
para tal afirmação identitária. Mas, neste momento histórico do projeto de nação que
visava a conceitualização de uma identidade nacional unificada, o que um dia foi
elemento de emancipação e afirmação – mais uma vez reiteramos a forma limitada
desse processo – agora pode ser utilizado para massificar, alienar e manter o status
quo.

A evolução da presença do samba nos processos constitutivos e evolutivos


da identidade diaspórica na identidade nacional, nos leva ao terceiro e presente
momento da experiência do samba no Brasil, que está presente em sua
industrialização. É na segunda metade do século que o samba passa a ser utilizado
por meios de produção e veiculação para consumo de bens simbólicos, prática que
pode formar parte do fenômeno estudado e cunhado por Adorno e Horkheimer
(1986) com o termo de “indústria cultural”. Esta indústria tem a função de atender ao
47

capitalismo globalizado contemporâneo e tornar a cultura algo cada vez mais


comercializável e, portanto, economicamente produtivo. Para isto, a produção
intelectual da cultura e sua veiculação pelo aparelho midiático necessitam de força
de trabalho artístico com grande desempenho produtivo, com o intuito de gerar cada
vez mais novos produtos culturais que serão reproduzidos e vendidos em larga
escala.

A indústria da cultura de massa foi essencial na venda do samba e


congêneres, tirando-os dos bairros marginalizados e levando-o para todo o território
nacional ou mesmo internacional. A partir das práticas dessa indústria é que
espécies do samba foram criadas e consumidas. O “samba de raiz” do Rio de
Janeiro e o “samba do recôncavo” da Bahia deram espaço para outros sambas mais
contextualizados com a realidade dos morros e da periferia - que o consumiria –
como o pagode, que caracterizamos aqui como espécie ou estilo musical imbricado
no samba, que se espalhara pelo Brasil com notável velocidade, como é descrito na
própria letra de um famoso samba, “Os tempos idos”, de autoria de Cartola e Carlos
Cachaça:

Os tempos idos/
Nunca esquecidos/
Trazem saudades ao recordar/
É com tristeza que eu relembro/
Coisas remotas que não vêm mais/
Uma escola na Praça Onze/
Testemunha ocular/
E junto dela balança/
Onde os malandros iam sambar/
Depois, aos poucos, o nosso samba/
Sem sentirmos se aprimorou/
Pelos salões da sociedade/
Sem cerimônia ele entrou/
Já não pertence mais à Praça/
Já não é mais o samba de terreiro/
Vitorioso ele partiu para o estrangeiro/
E muito bem representado/
Por inspiração de geniais artistas/
O nosso samba de, humilde samba/
Foi de conquistas em conquistas/
Conseguiu penetrar o Municipal/
Depois de atravessar todo o universo/
Com a mesma roupagem que saiu daqui/
Exibiu-se para a duquesa de Kent no Itamaraty.
48

Essa letra sintetiza um pouco da história do samba que até aqui retratamos e
direciona para as perspectivas da indústria cultural que abordaremos a seguir. A
partir dessa letra passamos ao novo momento histórico do samba, diferente dos
descritos inicialmente por Sódre (2003), Tinhorão (2008), onde percebemos que o
samba “Já não pertence mais à Praça / Já não é mais o samba de terreiro”. Agora
vamos entender como o samba entrou no circuito nacional e internacional. Esse
momento é crucial para a compreensão de como surge o pagode baiano e
congêneres do samba.

Nos sambas mais consumidos que descrevem as realidades sociais das


favelas, nas décadas de 60 a 80, apareceram sambistas como, por exemplo,
Moreira da Silva, Dicró e Bezerra da Silva. Conforme caracterizações feitas por
Viana (1999) e Augusto (1996), a proposta desse samba era fugir um pouco do
melodrama da vida cotidiana dos excluídos e da romantização dessa vida, a fim de
descrever o morador dos bairros marginalizados como alguém esperto, malandro,
com gingado diferente, que sabe se virar no samba e na vida. O sujeito viril, que
“dobra” qualquer “mané" (o antônimo do malandro) e “pega” qualquer mulher com
sua “lábia” e sensibilidade de conquistador, que, mesmo sem ou com pouco dinheiro
no bolso, sobrevive com maestria, independente de estar empregado ou não. As
músicas abordam a temática das drogas e deflagram a figura do “cacoete”: o “cara”
que é um “dedo duro”, um “mané”, um otário que entrega os irmãos (malandros)
para a polícia. Situações cômicas e de relações com parentes e familiares também
são descritas nas letras desse samba; ironias com a sogra; comemoração após
“pegar” a mulher do “mané”, são comuns nas letras dessas músicas.

É interessante notar a influência do sambista Bezerra da Silva, tanto ao


retratar a realidade sócio-cultural, quanto em delinear estereótipos que influenciaram
os comportamentos dos moradores dos morros e favelas, inicialmente do Rio de
Janeiro, mas que se espalhou pelos bairros marginalizados e periferias do país nas
décadas de influência massificante dessas músicas.

Ainda de acordo com Viana (1999), outras vozes expressaram o romantismo


no samba como parte do trabalho da famosa intérprete Alcione; outras buscaram
ressignificar os remanescentes batuques, trazendo os cantos religiosos de matriz
africana hibridizados com as evoluções musicais dos sambas das décadas de 1950
49

a 1980. Alguns mantiveram características do samba de roda, e resquícios das


umbigadas nos partidos altos, inicialmente sem grupos muito conhecidos pela
indústria da cultura da época. Sambistas e partideiros de destaque como Martinho
da Vila, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, entre outros,
navegam entre a tradição e a inovação, principalmente pela prática que
intercomunica o samba com outros gêneros da música brasileira, sendo que alguns
deles também se apresentam simultaneamente como cantores de outros gêneros
musicais (música romântica, bossa nova, pop, MPB e outros).

Lopes (1992) enfatiza que o samba que retrata a realidade dos morros
geralmente é incorporado pelos grupos de partido alto do samba - também
conhecidos como grupos de fundo de quintal - e tem desdobramentos até os dias
atuais. Esses grupos, que antes não tinham características e formatos para o
consumo de sua música, com a indústria cultural passaram a ter. Entre os grupos
destacam-se no Brasil “Revelação”, “Fundo de Quintal”, dentre outros. São
conhecidos também cantores de partido alto que fizeram carreira sólo, tais como
Jorge Aragão, Arlindo Cruz, e muitos outros.

Na década de 1980 explode no Brasil a espécie de samba que, em muitos


casos na mídia nacional, compete com o próprio gênero de origem: o pagode. Como
vimos, o significado que já possuiu o termo pagode dava sentido às reuniões onde o
samba era tocado. Agora ele aparece de fato como espécie do samba, a partir da
utilização de novos instrumentos percussivos, de corda e até de música eletrônica.

Inicialmente, o pagode de repercussão nacional foi o pagode romântico. De


acordo com Moura (1996), essa espécie do samba até mesmo deu origem a bandas
fora do tradicional eixo sambista “Rio-Bahia”. O pagode romântico emocionou muitas
pessoas e grupos do país e entrou para o cenário da memória coletiva popular com
profundidade. Tornaram-se inesquecíveis as contribuições da banda mineira “Só pra
contrariar”, representada por seu ex-vocalista Alexandre Pires, que atualmente
segue carreira sólo. Outra banda que angariou muitos fãs foi “Raça Negra”, que
tinha, e ainda tem um repertório voltado para o tratamento de questões românticas,
falando sobre o amor nos relacionamentos, as rejeições, os rompimentos, as voltas,
etc. Katinguelê, Karametade, Soweto, Molejo, Negritude Júnior, e uma lista imensa
de outros grupos, investiram pesadamente nessa espécie do samba e tiveram cifras
50

financeiras bem altas, com suas gravadoras e empresários, através da vendas de


discos e CDs. Muitos se desligaram das bandas e aventuraram carreira sólo. Como
em uma loteria, alguns obtiveram sucesso e outros não, sem explicações lógicas
que justifiquem os casos.

São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e outros Estados brasileiros


apostavam no pagode romântico. O pagode que a Bahia constituiu com solidez,
surge em meio a essas mudanças, que redefinem o conceito de indústria cultural e
cultura de massa, gerando um novo ritmo produtivo e de consumo, descentrando
produções simbólicas atribuídas a certos grupos sociais e desestabilizando o
conceito de cultura de massa.

Como percebemos na descrição das origens do samba, a mudança temporal


influenciou de forma preponderante para a configuração da identidade nacional a
partir da música, nos tempos atuais. Com o surgimento dos mecanismos pós-
modernos que desconstruíram narrativas da modernidade sobre identidade e
práticas de consumo, a música e o conceito de popular foram terminantemente
abalados, deslocados e/ou descentrados.

Enfim, percebemos na constituição histórica do samba as características


evolutivas que dão condições para o surgimento e existência do pagode baiano.
Atualmente essa experiência cultural está afetada pelo processo de globalização
capitalista que traz a cultura de consumo descartável, fato que incide no surgimento
de bandas e músicas de pagode cada vez mais efêmeras, cujas letras nos levam a
refletir sobre o espelho de uma dominação histórica masculina, sempre presente na
história da humanidade e que, apesar dos grandes avanços dos movimentos
feministas, atualmente é estimulada através da cultura de consumo e da cultura
musical. Sobre esse assunto, trataremos melhor na análise da produção consumista
e sexista desse pagode, no tópico a seguir.
51

2.1 DO “SEGURE O TCHAN” AO “ME DÁ PATINHA, SUA CACHORRINHA”:


BANDAS, LETRAS, ARTISTAS E EFEMERIDADE CONSUMISTA E SEXISTA
NO PAGODE BAIANO

O pagode é um produto histórico, transmutado por sons que vem da rua; uma
perspectiva das cidades que passaram por um processo de urbanização colonial e
imperial, pois, conforme explicita Tinhorão (2001, p. 27), “[...] existe uma relação
direta entre o processo de urbanização e o aparecimento dos artistas de rua,
personificados no romântico cantor de serenatas”.
O ponto de partida dessa discussão sobre o pagode, na perspectiva
propedêutica da história musical aqui apresentada, remonta ao ano de 1991,
quando, conforme descrito por Faour (2008, p. 330-334),

[...] mais um baiano, Zé Paulo, estourou com a inacreditável Rala o


pinto. Veio o verão do Requebra – um rebolado feito com as pernas
bem abertas, do outrora politizado Olodum [...] Com a elasticidade do
corpo já testada na folia do Requebra, em 95, o país parou para
dançar a dança da garrafa, obra da Companhia do Pagode [...]
Nesse meio-tempo, em 95, apareceu – agora sim, um grupo que foi
uma febre em todo país – o Gera Samba, que, por conta de um
problema com um grupo rival homônimo, teve no ano seguinte o
nome mudado para o de sua música de maior sucesso: É o tchan
[...]. A letra dizia “Tudo que é perfeito a gente pega pelo braço/ Joga
lá no meio/ Mete em cima/ mete em baixo/ Depois de nove meses
você vê o resultado”.

E depois de ralar o pinto, requebrar, dançar na boquinha da garrafa,


meter em cima e em baixo, o refrão não poderia ser outro:

Segura o tchan!
Amarra o tchan!
Segura o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan!

Cabe ressaltar que o pagode baiano atual tem íntimas ligações com a Axé
Music, que é, de acordo com Guerreiro (2000), um estilo carnavalesco,
especificamente nascido nos carnavais de Salvador. Mas esse pagode não nasceu
exclusivamente da Axé Music e, nem tampouco pôs fim a ele; é produto de uma
construção histórica e cultural que, em um processo inicial de intercomunicação com
a Axé Music, apareceu para a população carnavalesca e festeira da Bahia, e em
alguns casos, do Brasil.
A mistura do samba com novos ritmos dão sentido a novas espécies como o
do pagode que aqui abordamos. Temos que destacar a forte participação do samba
52

de roda no Recôncavo baiano e as influências do samba de fundo de quintal, no Rio


de Janeiro, até mesmo do pagode romântico.
As bandas que se destacaram no surgimento do pagode baiano, como
“Harmonia do samba”, “Parangolé”, “Guig Gueto”, “Nossa Juventude” e “Pagodart”, e
as atuais, a exemplo de “Psirico”, “Fantasmão”, “A Bronkka”, “No Styllo”, “O Troco”,
“Bonde dos Neuróticos”, “O Báck”, “Ed City”, “Black Style”, “A Fórmulla”, “É Xeke”,
foram introduzindo um novo tipo de pagode através do incentivo à cultura de
consumo promulgada pela indústria da música e, cujas letras fazem apelos à
sexualidade de forma violentamente machista2. Assim, “Tapa na cara”3, interpretada
pela banda “Pagodart”, canta o prazer que uma mulher sente ao receber “tapa na
cara” durante o ato sexual. Outras bandas apelaram para a vulgarização da mulher,
rotulando-a com adjetivos como piriguete, mamãe, delícia, canhão - expressões que
foram incorporadas ao léxico do cotidiano popular, especialmente de moradores de
bairros pobres. Mais recentemente, o desesperado apelo à sensualidade do corpo
feminino se evidenciou em músicas como “Todo enfiado”4, da banda “O Troco”;
“Surubão”5, da “A Bronka”; “Patinha”, “Sabonete”, “Tabaco”, “Rela a Theca no Chão”,
“Rala a Xana no Asfalto”, “Relaxa na Bica”, “Late Late”, “Cachorra”, de “Black Style”;
“Paçoca”, “Apertadinha”, “Tome todinha”, “Arreia a rachadinha”, “Lobo Mau”, “Quero
Comer Seu Abará”, do “O Báck” e; “Melo da coceirinha” e “Melo da pop 100” do
“Bonde dos Neuróticos”. A lista dessas músicas é quase inesgotável, e - como os
temas sugerem - dizem respeito a estereótipos sobre a vestimenta, interesses
econômicos e materialistas, à própria genitália, erotismo e vulgarização da figura
feminina.
Em contrapartida, a fim de legitimar a cultura patriarcal, os homens no seu
papel de machões, são os “putões”, “bichos soltos”, “lobos maus” “fiéis à putaria” ou
“cornos”, “bichas”, “caguetes”, “derrubados e “descarados”. Alguns trechos da

2
Ao mencionar as músicas, faremos referência ao International Standard Musical Work Code (Código Musical
Padrão Internacional da Obra) – ISWC -, fornecida pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - ECAD.
3
Composição de Alexsandro Barbosa Cerqueira. ISWC: T-039.162.228-8 .
4
Composição de Marivaldo Ferreira dos Santos. ISWC: T-039.388.168-9.
5
Ou “A mão naquilo”. Composição de Magno de Santana Carlos, Daniele Costa da Invenção Santos e Laurino
Alves dos Neto Santos. ISWC: T-039.399.395-7
53

música “Fiel à putaria”6, contemplam as afirmações que sintetizam bem os


estereótipos sobre as identidades de gênero:
Eu te falei meu irmão que essa mulher ia te dar trabalho/
Você agora é carta fora do baralho/
Abandonou quem não devia e se deu mal/
Mas eu cansei de te avisar/
Quem gosta de homem é gay/
Mulher gosta é de dinheiro (...)
Por isso seja/
Fiel à Putaria.

Novas letras vão tomando conta do pagode, mantendo o duplo sentido sexual
ou transcendendo-o e demonstrando de fato as intenções de formulações sexuais
arquetípicas. Aparece com destaque especial a banda “Black style”, com músicas
como “Vaza canhão”, “Rala a Tcheca no Chão”, “Rala a xana no asfalto”,
“Piriguetona”, “Cachorra”, “Patinha”, Sabonete e outras7, em um repertório que
conceitualiza e estereotipa papeis sociais de gênero. As letras nos dizem muito, e
nos inquieta a percebermos como as pessoas incorporavam e incorporam os
princípios e condutas sexistas e machistas disseminadas através da linguagem, das
vestimentas, das relações amorosas e das relações sociais entre homens e
mulheres.
Em ações ainda mais recentes de venda de novas bandas e músicas,
programas de televisão voltados às camadas mais pobres da população têm
intensificado a divulgação do pagode, especificamente os de cunho sensual ao
extremo que simulam o ato sexual ou que estimulam as mulheres (dançarinas ou
seguidoras do pagode) a exibirem cada vez mais o seu corpo – como o caso de uma
professora da Educação Básica que, durante um show da banda “O Troco”, ao som
da música “Todo enfiado”, foi filmada por anônimos que divulgaram o vídeo sensual
em um famoso site de vídeos da Internet. A letra da música diz o seguinte: “Tem
mulher que usa “p” / Tem mulher que usa “m” / Tem mulher que usa “g” e a outra
“gg”/ E a pirigueti anda com o fio só / Todo enfiado / Todo enfiado...” Enquanto a
música toca, o cantor da banda puxa a calcinha da referida professora, que, semi-
nua, faz rebolados sensuais para o público, em cima do palco.
Ao adentrar na rede de computadores, o caso da professora teve repercussão
nacional, sendo notícia em jornais impressos e motivo de espetacularização em
6
Composição de Ueldon Nascimento Pereira e Djanilton Carvalho dos Santos. ISWC: T-039.137.701-7
7
Todas compostas por Robson Elias Adorno Costa, registrado no ECAD sob o IPN – Interested Parties Number
(Código internacional de registro de compositores, autores e editores): 00553543843
54

programas de televisão e rádio. Alguns desses meios informaram até a demissão da


professora por conta da repercussão da dança sensual, que foi convidada a
participar do grupo “O troco” como dançarina e vira atração por onde a banda passa,
utilizando o momento de especulação e espetacularização midiática para sua
promoção artística como dançarina, dando entrevista e participando de vários
programas de TV e rádio. Mas, atendendo à lógica da efemeridade, a professora
teve poucos meses de sucesso, sendo logo esquecida pela mídia.
Podemos perceber a prática consumista e descartável do pagode baiano.
Muitas bandas deixaram de existir, muitas músicas foram esquecidas ou não fazem
parte do gosto atual dos seguidores do pagode. Tivemos movimentos que
intercomunicaram o hip hop e o funk carioca com o pagode baiano, especialmente
com a banda “Fantasmão”, mas percebemos no tempo presente que esta tentativa
já está caindo no esquecimento. A banda “Psirico” apresentou o “Kuduro”8 – um
dança angolana ao ritmo do pagode -, em uma tentativa intercultural, mas também
essa música, bem como sua dança, tem caído em esquecimento.
A efemeridade afeta fecundamente o pagode baiano, e atinge diretamente as
bandas, os cantores e os músicos. As produtoras não se empenham mais em firmar
contratos com grupos para produção de CDs e divulgação de trabalhos, assim as
músicas são divulgadas em shows, em compilações de CDs promocionais e/ou
piratas e em sites de compartilhamento de músicas na Internet. Mas para vencer a
competição e aproveitar os lucros da efemeridade faz-se necessário o requinte
sensual e a exibição dos corpos, especialmente do corpo feminino. Assim, no caso
da professora - dançarina, ela aproveitou bem o momento para se promover
artisticamente, no entanto, maiores benefícios obteve a banda, diante da batalha de
tantas bandas que lutam pelo sucesso. Mais proveitoso ainda foi para as potências
televisivas e multimidiáticas locais e nacionais que disputam a audiência dos
telespectadores e encontra, nas classes desfavorecidas, um público que adere ao
pagode e assiste fielmente as polêmicas geradas pela sensualidade do estilo
musical.

8
Composição de Ivan Luiz Santos da Anunciação, Edcarlos da Conceição Santos, Daniele Costa da Invenção
Franco, Adalício dos Anjos Maia, Laurindo Alves dos Santos. ISWC: T-039.309.988-1.
55

A concorrência na divulgação de bandas em canais de televisão rivais é


grande: enquanto uma emissora divulga o “Todo enfiado”, outra divulga o “Surubão”
ou mais uma dança sensual, quase sempre em vídeos caseiros feitos e
coreografados por seguidores/as do pagode e não por dançarinos/as profissionais.
Apresentam até mesmo vídeos de crianças que simulam o ato sexual, embalados
pelas letras da música. Assim, através do poder midiático, o pagode tem entrado
com mais voracidade nas casas dos bairros populares e promulgado suas ações,
quebrando assim, profecias errôneas que informavam sua extinção.
As músicas certamente têm um fim – e muito rapidamente – mas o pagode
baiano se impõe e se aproxima de duas décadas de existência sem ter data para
acabar, confirmando que, para ser aproveitável tem que, cada vez mais, apelar para
a sensualidade, especialmente a feminina, ditar a moda e ser eficazmente
renovável. Essas características da produção musical em tempos de globalização
nos remetem ao pensamento de Bauman sobre as práticas de consumo das
sociedades pós-modernas:
Nas “tribos pós-modernas” (como Maffesoli prefere denominar as
“tendências de estilo” da “sociedade de consumo”), “figuras
emblemáticas” e suas marcas visíveis (dicas que sugerem códigos
de vestuário e ou conduta) substituem os totens das tribos originais.
Estar à frente portando os emblemas das figuras emblemáticas da
tendência do estilo escolhido por alguém de fato concederia o
reconhecimento e a aceitação desejados, enquanto permanecer à
frente é a única forma de tornar tal reconhecimento de pertença
segura pelo tempo pretendido – ou seja, solidificar o ato singular de
admissão, transformando-o em permissão de residência (por um
prazo fixo, porém renovável). (BAUMAN, 2002, p. 108)

Bauman define uma realidade que se aproxima muito das “figuras


emblemáticas” do pagode baiano. Eles concebem ritmos de consumo que vão para
além da venda de suas músicas. O corte, penteado, trançado ou aplicação de
produtos de alisamento dos cabelos são ditados não só nas letras das músicas, mas
são também adotados no estilo pessoal por essas “figuras emblemáticas”, a maneira
de se vestir, a linguagem – especialmente com a construção de gírias -, piercings e
outros símbolos são mediados através das práticas na vida pessoal, nos shows e
nas fotografias espalhadas em outdoors ou em vídeos gravados na TV ou na
Internet. Esses estilos, que Bauman categoriza como “marcas visíveis”, têm a
finalidade de ser efêmeros, pois, para continuar a serem emblemas, músicos,
56

dançarinas e cantores necessitam renovar esses estilos, para poder manter sua
existência nesse mundo da música do pagode baiano.
Desde que lançado o pagode, suas figuras emblemáticas sempre venderam
suas tendências de estilo por meio de novos produtos comercializados no mundo na
moda, passando por roupas femininas, incluindo aqui o vestuário infantil,
brinquedos, peças masculinas, assessórios para carros, entre outros. Comentando
sobre carro, podemos mencionar letras de músicas, como a da banda “Black style”
que diz: “Eu torei meu carro no chão”9, fortalecendo a moda dos veículos rebaixados
como sinônimo de beleza e meio para atrair as “piriguetes”.
Após serem lançadas como emblemas, as “marcas visíveis” desses/as
pagodeiros/as emblemáticos/as passam a ser consumidas popularmente, seja por
pessoas de classes oprimidas, e até mesmo pela elite. Sobre a elite podemos
observar que consomem com facilidade as marcas modistas ditadas nesse meio
musical do pagode, sendo uma prova disso, os carros, geralmente rebaixados dos
“playboys”, com a mala aberta e o som bem alto, varando as madrugadas, em
postos de combustíveis, geralmente em frente a lojas de conveniência ou em bares
dos bairros de todas as áreas de Salvador, nobres, remediadas ou populares. Essas
festas improvisadas costumam acabar pela manhã e são geralmente permeadas
pelo forte consumo bebida. Mesmo aqueles que se dizem desinteressados pelo
pagode baiano afirmam que, após alguns goles de cerveja, “caem na festa”.
Uma observação sistemática inicial nos permite constatar as mudanças no
estilo do consumo e a constatação dos postulados baumaninos sobre a sociedade
de consumo pós-moderna. De fato, “a síndrome cultural consumista consiste, acima
de tudo, na negação enfática da virtude da procrastinação e da possível vantagem
de se retardar a satisfação – esses são os dois pilares axiológicos da sociedade de
produtores governada pela síndrome produtivista” (BAUMAN, 2002, p. 111). Tornar
uma letra de música, ou uma tendência de estilo, longa é uma impossibilidade para
essa espécie do samba. O pagode precisa apresentar tendências de estilo e letras
que deem muito prazer, mas num curto tempo, para possibilitar espaço para outras
tendências e letras.
Com uma nova letra e/ou um novo estilo apresentado aos consumidores,
todos os holofotes se voltam para esse momento, propagando-o, vendendo-o

9
Música Carro no Chão. Composição de Robson Elias Adorno Costa. ISWC: T-039.309.988-1.
57

desesperadamente, para em poucos meses descartá-lo. Foi assim com o “short


malhação” e o “segure o tchan” protagonizados pelo grupo “É o tchan” e a dançarina
Carla Peres; foi assim também com a dança da garrafa; com o inovador estilo do
cantor Xandy do grupo “Harmonia do samba”, que corajosamente dispensou
dançarinos e dançarinas e encarou o papel de coreografar suas músicas ao mesmo
tempo em que canta; com o “tapa na cara” do Pagodart; com o “carrinho de mão” do
“Terra samba”; com a “Juliana” do grupo “Bom balanço”, com o meio da “bicha” do
grupo “Said’Bamba”, dançado por Leokret – o primeiro travesti eleito vereador na
história da câmara municipal de Salvador, graças ao despenho como dançarina – e
muitos outros estilos, musicas e bandas que seguiram a rotina anti-procrastinação,
que na sua curta existência, causou sensações voluptuosas em seus consumidores.
Agora é a vez do “pagofank” do “Black style” e suas músicas sensuais
cantadas pelo vocalista Robson, que desde 2006 agitam carnavais, micaretas e
shows; é a vez também das disputas machistas por parte de ex-vocalistas de
bandas dissidentes e novas recém-cridas como a banda “No stylo”, onde é mandado
o recado “vai seu derrubado, caguete descarado” e logo vem a música “A resposta”
da banda “O troco”: “você só sabe imitar [...] tá ligado, você que é descarado [...] tá
ligado, você que é derrubado”10.
Está no auge também a banda Psirico com inovações propagadas como
interculturais e que ganham espaço na mídia e em festas de réveillon elitizados
como o Échantè - produzido anualmente pela cantora de axé Ivete Sangalo -, suas
músicas objetivam descrever a realidade sócio-cultural das classes oprimidas, mas
sem deixar de lado a sensualidade e o machismo. Com a voz potente do intérprete
Márcio Victor, e arranjos musicais harmonizados e que apresentam boa qualidade
para quem ouve essa banda tem se destacado e chamado a atenção das mídias
locais e do público em geral.
Destaca-se também na banda “Psirico” as músicas que contemplam as
tradições religiosas do candomblé, incluindo aqui louvores aos orixás e a famosa
“Contregun”11, que concorreu como melhor música do carnaval de 2007. Mas foi em
2008 que essa banda ganhou nessa categoria com a música que fica entre a

10
Não há registro dessas músicas no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://letras.terra.com.br/no-styllo/1415396/ > Acessado em 22 de agosto de 2009. 03:34:22.
11
Não há registro dessa música no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://letras.terra.com.br/psirico/118758/ > Acessado em 24 de agosto de 2009. 05:02:29.
58

sensualidade a beleza feminina “Toda boa”12, contrariando muitos “ídolos” da Axé


Music que não gostaram da premiação, e acordo com informações do Carnasite13.
Apesar de todas as características de investimento em tecnologia e músicos
qualificados para melhorar cada vez mais a qualidade do som produzido e as letras
que tratam de questões diaspóricas e interculturais, a banda não consegue
abandonar as músicas de cunho sensuais que tratam da virilidade masculina e do
estetizado corpo feminino.
Por mais que tentem fugir do apelo à sensualidade, os cantores de pagode
baiano se deparam com uma gigantesca barreira de pessoas que preferem as letras
e ritmos que estimulem os aspectos sensuais/sexuais, afinal

[...] no Brasil, em Cuba e outros países ibero-americanos,


caracterizados pela miscigenação racial entre brancos e negros, a
avaliação racista “positiva” é traduzida no feminino: a mulata é
erotizada em proporções míticas, o reverso da mitificação anglo-
americana do erotismo do macho negro. (YUDICE, 2008, p. 163-
164).

Os apelos populares e a erotização da mulher baiana são estimulados pelos


canais de televisão, emissoras de rádio e jornais impressos e digitais de grande
circulação no Estado da Bahia, como vimos no caso mencionado da Professora do
“Todo enfiado”. Por outro, algumas bandas tentam resistir a essa erotização e
apresentar propostas de utilização do pagode baiano para afirmação da identidade
diaspórica e elevação da cidadania dos excluídos, mas ainda não há evidência da
permanência desses significados nas letras das músicas. Embora a Revista Muito,
do Jornal A Tarde de 1º de novembro de 2009 enfatize o “neopagode”, como
expressão da criticidade na música, é preciso pô-lo em evidência, pois a
efemeridade da sociedade de consumo pode descartar toda essa nova produção.

Diante das reflexões acerca da sensualidade e conteúdo sexista das letras do


pagode baiano, perguntamo-nos se, para continuar existindo, será mesmo
necessário manter esse conteúdo sexista? É possível ressignificar as
representações patriarcais da identidade de gênero nas suas letras? Para buscar
respostas a essas perguntas é preciso entender o surgimento e atual existência da

12
Composição de Gilvan Doria Sobrinho Rocha. ISWC: T-039.361.218-4
13
http://www.carnasite.com.br/v4/colunas/espacoaxe/?CodNot=8266 > Acessado em 18 de dezembro de 2008.
18:35:00
59

cultura patriarcal, seus mecanismos regulatórios e suas características no contexto


da construção das identidades de gênero.
60

3 IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO

Entendemos a identidade como o resultado de um processo discursivo com o


outro em constante transformação, de tal forma que Hall (1999) nos diz que não
podemos falar de identidade e sim de identificação. Neste processo, que também é
histórico, Hall distingue três grandes momentos que caracterizam três grandes
identificações: o sujeito do Iluminismo, concebido na imutabilidade, com uma
essência que o acompanha por toda a vida; o sujeito sociológico, construído nas
suas relações com o outro e com o meio; e o sujeito pós-moderno, fragmentado em
várias identidades, de gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, “que, no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”, (1999,
p. 8) mas que, atualmente, essas sólidas localizações encontram-se deslocadas.
Desta forma, na pós-modernidade nos defrontamos com várias identidades,
antagônicas, relacionadas e/ou fragmentadas. Temos uma de classe, de gênero,
sexual, étnico-racial, profissional, cultural, nacional, enfim, um “caldeirão” de
identidades individuais e coletivas, que podem, a depender do contexto, estar
engajadas entre si ou em conflito.

De acordo com Hall, o sujeito cartesiano, iluminista, imutável e essencialista


foi, primeiramente, defrontado pelo pensamento marxista. Hall aponta para a obra do
estruturalista Althusser, que em suas releituras de Marx, percebeu o deslocamento
do conceito de homem, ao colocar as relações sociais como condicionadas aos
modos de produção histórica, à exploração da força de trabalho e aos circuitos do
capital como centro de seu sistema teórico. A segunda forma de descentramento do
processo identitário nas ciências sociais é identificada por Hall no pensamento
freudiano. Para ele

A teoria de Freud de que nossas identidades, nossa sexualidade e a


estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos
psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com
uma “lógica” muito diferente daquela Razão, arrasa com o conceito
do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e
unificada – o “penso, logo existo”, do sujeito de Descartes.
(HALL,1999, p. 36)

Hall cita, ainda, os trabalhos interpretativos de outro psicanalista chamado


Jaques Lacan, que, a partir da descoberta do inconsciente por Freud, argumentou
61

que a criança aprende gradualmente, parcialmente e com dificuldade a ideia do


inteiro e unificado, essa construção subjetiva se dá a partir da chamada “fase do
espelho”, onde a criança sem plena consciência do processo se vê ou se “imagina”
refletida como uma pessoa inteira. Mead e Cooley reforçaram a ideia que abalou as
bases racionais em torno do discurso do sujeito apresentando a noção do eu
interativo - aquele que constrói sua identidade a partir da socialização. A esse
respeito, Hall reflete sobre a origem contraditória da identidade, desde que é vivida
pelo sujeito segundo é fantasiada na fase do espelho como unida e resolvida,
“embora o sujeito esteja sempre partido ou dividido” (HALL,1999, p. 38).

A Fase do espelho ocorre no seio da família, que é patriarcal, na cultura


ocidental. Essa cultura patriarcal é a que se baseia no poder do chefe da família. De
acordo com Safiotti (2004), ela tem por característica básica atribuir ao homem o
poder sobre a órbita pública e à mulher a privada.

No terceiro momento histórico de descentramento do sujeito, Hall destaca o


trabalho do linguista estrutural Ferdinand de Saussure que apresenta a língua e os
significados como instáveis e imprecisos, passíveis de mudanças e reconstruções.
Assim, as verdades absolutas da modernidade são questionadas com as
concepções da “virada linguística” de Saussure. Esse linguista foi um dos primeiros
a estruturar um sistema teórico e analítico voltado para compreender as
representações sociais que emanam da linguagem e que, como veremos nesse
estudo com a semiótica de Pierce, são signos.

A “genealogia do sujeito moderno” de Foucault é destacada por Hall como o


quarto avanço nas ciências sociais na sua análise sobre a microfísica do poder e os
mecanismos de constituição e distribuição do “poder disciplinar” que não está nas
pessoas, mas nas redes por elas estabelecidas; não é posse de alguém, como no
marxismo, ele permeia as relações sociais. Só falta lembrar a Foucault que esse
poder tem sido historicamente exercido por homens brancos, ricos e
preferencialmente heterossexuais (SAFFIOTTI, 2004; CASTRO, 2008).

O quinto movimento é de grande relevância para o nosso estudo, pois trata


das implicações teóricas do feminismo. Hall não poupa comentários positivos ao
movimento, dando-lhe especial relevância no processo de desconstrução do sujeito
moderno. A década de 1960 é, segundo o autor, o princípio desse movimento, que
62

surge ligado a outros – também relevantes – movimentos sociais, tais como os


estudantis, anti-belicistas, contraculturais e de luta pelos direitos civis e congêneres.
De acordo com Hall,

Ele (o feminismo) questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o


“fora”, o “privado” e “público”. O slogan do feminismo era: “o pessoal
é político”. Ele abriu, portanto, para a contestação política, arenas
inteiramente novas da vida social: a família, a sexualidade, o trabalho
doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as
crianças, etc. Ele também enfatizou, como uma questão política e
social, o tema da forma como somos formados e produzidos como
sujeitos generificados. Isto é, ele politizou a subjetividade, a
identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres,
mães/pais, filhos/filhas). Aquilo que começou como um movimento
dirigido à contestação da posição social das mulheres expandiu-se
para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero. O
feminismo questionou a noção de que homens e mulheres eram
parte da mesma identidade, a “Humanidade”, substituindo-a pela
questão da diferença sexual. (HALL, 1992, p. 45-46)

Para Perrot (2005) o feminismo traz uma nova ressignificação das identidades
de gênero, tendendo, segundo as diversas vertentes, tanto para a “virilização das
mulheres” através da adoção de traços masculinos pelas mulheres, quanto à
“extrema feminilidade”, acentuando a maternidade, o celibato e até mesmo a
virgindade e/ou o homossexualismo. Assim o feminismo engendra as novas formas
de construir identidade na “modernidade tardia”: conflituosa, antagônica,
complementar, descentrada, mas, sobretudo, anti-racionalista e não cartesiana
(HALL, 1999)

Os estudos e a prática social do feminismo, como enfatiza Hall (1999),


abriram alas para um novo processo de discussão sobre a construção das
identidades individuais e coletivas. Através dos estudos feministas, a padronização
das identidades sexuais foi seriamente questionada e a luta pelos direitos da mulher
foi travada, trazendo, desde essa época, fecundos avanços na teoria e na prática.
Dentro das ciências sociais surgiram numerosos estudos sobre gênero tanto para
denunciar as desigualdades históricas que as mulheres sofreram e ainda sofrem
quanto para desconstruir as identidades modernas criadas a partir dos papeis
estereotipados atribuídos em função dos sexos, ou seja, as identidades de gênero.

As identidades masculinas e femininas são construções culturais e não


biológicas determinantes das relações sociais. É no campo da cultura que são
63

definidas as formas de comportamento socialmente diferenciado de homens e


mulheres: suas vestimentas, relações pessoais com os outros iguais e diferentes,
formas de praticar a religião, até mesmo o modo de dançar, envolver-se
amorosamente, e outras situações sociais. A antropóloga Margareth Mead (2006),
em importante estudo sobre três populações primitivas da ilha do Pacífico Nova
Guiné, já demonstrou como, de fato, as convenções culturais são determinantes na
construção das identidades masculinas e femininas. É no âmbito da cultura que as
representações são construídas e assimiladas por homens e mulheres. Segundo a
autora, a superioridade masculina surge como uma forma de compensar a
inferioridade que os homens tinham frente à capacidade “mágica” de procriação das
mulheres.

Nessa mesma linha de pensamento, Saffiotti (1976) afirma que os homens


apoderam-se das diferenças biológicas para institucionalizar representativamente na
sociedade sua superioridade de força física e atribuir-lhe violência e dominação
como característica, enquanto a mulher é subalternizada como o sexo frágil. Assim o
conceito de gênero surge como uma categoria de análise, segundo Scott,

para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita


explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram
um denominador comum, para diversas formas de subordinação
feminina, nos fatos de que as mulheres têm a capacidade para dar à
luz e de que os homens têm uma força muscular superior. Em vez
disso, o termo “gênero” torna-se uma forma de indicar “construções
culturais” – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis
adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma forma de se
referir às origens exclusivamente sociais de identidades subjetivas de
homens e de mulheres. Gênero é, segundo essa definição, uma
categoria social imposta sobre um corpo sexuado. (SCOTT, 2004,
p.75)

Safiotti (2004) explica que a categoria gênero também serve para elucidar,
além da relação homem-mulher, a relação mulher-mulher e homem-homem, sendo
uma categoria analítica e histórica capaz de fornecer informações imprescindíveis
sobre essas relações. Assim, a categoria gênero também não dá excessiva ênfase
ao estudo das mulheres, fugindo dessa forma, de críticas contra intelectuais
feministas que se ocuparam de estudar a história feminina.

Gênero aparece aqui como forma de conectar a história feminina à história da


relação social com os homens. Com essa categoria temos as relações entre
64

mulheres e homens, como Scott mais uma vez pontua “[...] O termo “gênero”, além
de um substituto para o termo “mulheres”, é também utilizado para sugerir que
qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os
homens, que um implica o estudo do outro” (SCOTT, 2004, p. 75).

Existe atualmente um grande conflito teórico, por parte de algumas estudiosas


do gênero sobre o uso do conceito de patriarcado. Safiotti (2004) adverte que esse
abandono conceitual pode ser perigoso, pois a cultura, especialmente a ocidental,
sempre foi patriarcal. Embora as formas de relação tenham evoluído em relação aos
primórdios da dominação patriarcal, Safiotti aponta que os estudos de gênero, de
qualquer modo, precisam se debruçar sobre a cultura patriarcal, pois o gênero está
milenarmente inserido na sociedade através do habitus e, mesmo que não seja igual
ao seu formato inicial, a cultura patriarcal é evidenciada em diferentes formas na
atualidade, se encarregando da manutenção da dominação masculina. Safiotti
(2004, p. 39-40) defende que o gênero precisa ser, além de uma categoria de
análise, uma categoria histórica que tem sua gênese na cultura patriarcal. Para ela
“é urgente que se faça uma história feminista do conceito de patriarcado. Abandonar
o conceito significaria a perda de uma história política que ainda está para ser
mapeada”, pois apenas “Colocar o nome da dominação masculina – patriarcado –
na sombra significa operar segundo a ideologia patriarcal, que torna natural essa
dominação” (ibidem, p. 56)

Além do sistema de dominação patriarcal, Castro (2008) destaca mais dois


outros grandes sistemas de dominação e violência exercida através da exclusão do
outro na construção/afirmação das identidades individuais e coletivas: o colonial e o
capitalista, todos eles altamente articulados pelos processos de globalização, que
tem estimulado o fenômeno descrito por Zaluar (2004) como o “ethos de guerreiro,”
importante referência identitária nos bairros periféricos das grandes cidades
brasileiras, que analisaremos como são também usadas pelos seguidores e figuras
emblemáticas do pagode.

A violência patriarcal, que sempre valorizou o homem que enfrenta a morte


em detrimento da mulher que cuida da vida e na globalização criou o “ethos do
guerreiro”, estudado por Zaluar (2004), desde a década de 1980, nas favelas do Rio
de Janeiro. Ainda essa autora sinaliza que
65

A recusa em aceitar que novas formas de associação entre


criminosos tivessem mudado o cenário não só da criminalidade, mas
também da economia e da política no país, deixou livre o caminho
para o progressivo desmantelamento nos bairros pobres daquilo que
havia de rica vida associativa, tão importante no direcionamento de
suas demandas coletivas e da sua sociabilidade positiva, civilizada.
Deixou espalhar-se entre alguns jovens pobres um ethos guerreiro
que os tornou insensíveis ao sofrimento alheio e permitiu abalar a
civilidade dos moradores do Rio de Janeiro, que fora construída ao
longo de décadas, principalmente pelos seus artistas populares, os
sambistas (ZALUAR, 2004. p.8).

Como demonstrado pela autora, eram comuns em bairros pobres as práticas


associativas entre moradores a través das redes de solidariedade nos encontros
sambistas em praças e casas para se ouvir e dançar os “partidos altos”, no mutirão
para reparação das ruas do bairro e nas lutas coletivas travadas pelos moradores
unidos em prol de questões políticas, culturais e sociais que fossem benéficas a
todos/as. Contudo, novas formas de associação, cada vez mais ligadas à
criminalidade – especialmente o tráfico de drogas – modificaram os cenários da
coletividade, desmantelando o rico espírito comunitário outrora desenvolvido. Como
resultado dessas transformações, a insensibilidade frente à morte e o individualismo
cresceram de tal modo que o sofrimento do outro passou a ser ignorado nessa
guerra da vida, onde todos podem ser “alemães”, ou seja, rivais.
Essa violência está imbricada na gênese da cultura patriarcal. Saffioti (1976;
2004) identifica o fortalecimento dessa violência desde as comunidades primitivas de
caça e coleta, onde os papeis sociais de gênero foram compartimentados e atribui-
se a colheita às mulheres e a caça aos homens. Segundo Simone de Beauvoir
(1986), o homem, ao caçar fica sobre vantagem hierárquica ao animal e à própria
mulher, visto que arrisca sua vida, por isso a humanidade dá “superioridade ao sexo
que mata e não ao que gera vida” . Essa superioridade ligada à violência masculina
dai protagonismo aos grandes guerreiros e estrategistas militares da humanidade,
tais como Hércules, Davi, Aquiles e Napoleão, para ela, mesmo a destacada Joana
d’Arc e perfilada pela figura masculina de São Miguel Arcanjo (BEAUVOIR, 1986).
A violência masculina mantém-se, embora em novo formato, encontrando
significação atualmente no “ethos do guerreiro” (ZALUAR, 2004), assegurando-se,
portanto, as características patriarcais da guerra, competição e violência, onde todos
podem ser inimigos, por isso não merecem solidariedade. Zaluar assevera que as
novas associações juvenis compartilham do “ethos do guerreiro” e se agrupam,
66

desde os anos 1970 em galeras, quadrinhas ou gangues. Para essa autora, esse
ethos está sempre presente entre os seguidores do funk carioca, que, de acordo
com ela estão sem com

[...] disposição para brigar e até matar um jovem da galera rival,


torna-se fonte de prestígio e consideração. Assim, os funqueiros de
favelas dividem os bairros e as favelas entre “amigos e alemães”. Só
frequentam locais cujo comando do tráfico seja aliado de sua
comunidade de origem, pois pode ser fatal, e muitas vezes o é,
frequentar locais de comandos diferentes. (ZALUAR, 2004, p.27)

Portanto, o “ethos do guerreiro” é a violenta representação dos jovens dos


bairros pobres, sendo que seus símbolos se manifestam em seus comportamentos,
de forma explícita, nos espaços de sociabilidade, tais como festas que executem
músicas de suas preferências e que sempre é palco de brigas e disputa territorial
entre gungues e grupos rivais. Como veremos no capítulo cinco, essa realidade não
difere das festas e shows nos bairros onde pesquisamos o pagode baiano: os
seguidores dessa espécie musical também incorporaram o arquétipo do “ethos do
guerreiro”.

Zaluar (2004, p. 27) aponta ainda para a lei do silêncio como forma de
manutenção do “ethos do guerreiro”, para ela os traumas diante das violências são
evitados pelos moradores que apostavam no “esquecimento mais do que o
entendimento e superação das marcas profundas deixadas na história e no
psiquismo de jovens e crianças” e, além disso, as escolas e projetos sociais também
silenciam-se e não cuidam de desconstruir esse “ethos do guerreiro”.

A cultura de consumo, através da mídia tem incentivado bastante o “ethos do


guerreiro”, disseminando imagens cada vez mais violentas. Rouanet afirma que

O objetivo da cultura global é modelar o consumidor global,


programá-lo promovendo, através dos filmes e comerciais, certos
valores e atitudes. Segundo alguns estudos, quando chega aos 12
anos, uma criança terá visto uma média de cem mil anúncios de TV.
Uma criança nos Estados Unidos está exposta a uma média de 41
mortes ou atos de violência para cada hora de desenho animado.
Chegando ao sétimo ano do primeiro grau terá visto oito mil
assassinatos e cem mil atos de violência. Assim, a mídia produz a
reproduz a cultura de consumo, da violência e do sexo, a fim de
assegurar para as corporações o mercado de que necessitam.
(ROUANET, 2000, p.67)
67

Aos jovens restam poucas possibilidades de não aderir ao “ethos do


guerreiro”, afinal, são incentivados pelas sedutoras imagens produzidas pela mídia
para perceber a violência como algo corriqueiro; vivenciam um contexto social onde
os princípios do individualismo, insensibilidade e competitividade mortal são
traçados como ideais; e contam com instituições impotentes para contribuir para a
desconstrução desse cenário.
Dada a dimensão que a violência, eminentemente patriarcal, tomou na
atualidade, faremos uma análise mais detalhada sobre ela nas representações e nas
letras e falas dos seguidores e figuras emblemáticas do pagode baiano ao longo do
quinto capítulo.
As letras das músicas do pagode pressupõem uma multiplicidade de
significados que estão à disposição dos seus seguidores e podem promover
emoções diversas. Na tentativa de compreender as sensações e influências sobre
os comportamentos consumistas e de gênero, buscamos uma categoria de análise
que oferecesse formas enriquecedoras de interpretação das representações que
partem dessa espécie do Samba. A semiótica foi então escolhida, dadas suas
possibilidades interpretativas, sendo considerada uma ciência do signo, da
significação e da cultura (SANTAELLA, 2008). As representações são, de acordo
com Santaella e Nöth (2008), o conceito-chave da semiótica, desde os seus
primórdios, esses autores definem representação como signo.

A “ciência do signo” é um campo de estudos dentro da fenomenologia que dá


conta das análises dos signos produzidos no mundo; há um consenso entre os
autores estudados de serem representações dos fenômenos da natureza ou da
sociedade. Desse modo, todas as coisas podem ser vistas como signos, desde que
apresentem, conforme Santaella (2008), “objeto do signo” que o origina, o próprio
signo que representa e o interpretante que mostra os efeitos do signo sobre que o
consome. Assim, signo é tudo que aparece à nossa mente na forma de
representação, mas que para existir necessita de um “corpo”, uma estrutura real,
concreta e materializante, e proporciona qualidades, singularidades e leis gerais
sobre a mente de quem o acolhe. Nessa concepção um signo pode ser “qualquer
coisa que representa outra coisa” (ibidem, p. 7), uma tela, um filme, um jogo de
computador, um programa de televisão, um livro, uma música, um documento, uma
pessoa, etc. O signo é uma representação que parte do sentimento, intenção ou
68

manifestação – natural ou produzida – por alguém ou algo, denominado, na análise


semiótica de “objeto do signo”. É esse objeto que concebe a representação. Essa
representação, por sua vez produz um efeito interpretativo, que na linguagem da
semiótica é chamado de “interpretante do signo”.

A semiótica peirceana apresenta um roteiro interpretativo específico


apresentado por Santaella (2008) a partir de sua análise de uma das principais
obras de Peirce denominada de Gramática Especulativa. Nesse roteiro interpretativo
ou percurso metodológico, é imprescindível que façamos algumas considerações
importantes sobre o signo e seus componentes.

De acordo com os estudiosos do pensamento Peirceano, Nöth (2003) e


Santaella (2004; 2008) e Nöth e Santella (2004; 2008), são três as possibilidades de
manifestação de um fenômeno para uma mente real ou potencial: primeiridade,
secundidade e terceiridade. Primeiridade é a forma imediata como percebemos um
fenômeno, expresso principalmente através de suas qualidades. Secundidade diz
respeito ao fenômeno em suas características mais singulares, que o diferencia ou
assemelha aos outros da mesma categoria. Já a terceiridade trata das regras gerais
de um fenômeno, ou seja, o que o constitui e o generaliza enquanto fenômeno; por
exemplo, na terceiridade uma mulher só é mulher quando atende a regras, normas e
padrões definidos no campo da cultura, nas leis e normas convencionadas pela
sociedade e dos padrões morais, éticos e políticos delineados e modificados
historicamente, para Santaella (2008, p. 7) a “forma mais simples de terceiridade,
segundo Peirce, manifesta-se no signo, visto que o signo é um primeiro (algo que se
apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou
representa) a um terceiro (o efeito que o signo irá provocar em um possível
intérprete)”.

Para exemplificar melhor as manifestações de um fenômeno à mente, na


perspectiva da semiótica peirciana, analisaremos uma fotografia propagandística.
Contudo, visto que faremos a análise de uma imagem, cabe advertir que, de acordo
com Santaella e Nöth (2008), o mundo das imagens está dividido em dois domínios:
o primeiro das imagens como representações visuais e o segundo é o domínio
imaterial das imagens da nossa mente, porém os autores indicam que ambos estão
“inextricavelmente ligados já na sua gênese” (ibidem, p. 15). A análise que faremos
69

agora de uma fotografia propagandística diz respeito ao primeiro domínio da


imagem, que evidentemente comunica-se com o segundo. Quando da análise das
letras das músicas do pagode baiano, as representações mentais serão
preponderantes.

Fotografia 5 – Propaganda da Cerveja Brahma

Fonte: http://fotos.imagensporfavor.com/img/pics/glitters/b/brahma_-
_mulheres_do_tchan-184.jpg > Acessado em 1o de junho de 2010. 15:34:00

Realizando uma análise desse signo imagético propagandístico, percebemos


na primeiridade suas características imediatas: duas mulheres – uma loira e uma
morena, ex-integrantes do famoso grupo de pagode baiano “É o Tchan” - vestidas
apenas com a parte inferior de biquínis, abraçadas a garrafas da cerveja da marca
Brahma, com um plano de fundo marcado por uma imagem límpida do céu azul.
Junto às cabeças das mulheres aparecem duas caixas de texto vazias, dando a
impressão de que estão preenchidas pelo líquido da cerveja, abaixo à direita a frase
“um beijo com carinho” e a marca registrada da empresa de cervejas – essas são as
características implícitas à primeiridade.
Na secundidade, percebemos uma imagem que não é fiel à realidade, pois é
uma fotografia propagandística que passou por um tratamento digital que une o texto
à imagem e tem a intenção de passar uma mensagem manipulada, não real,
70

fantasiada, que estimule algo. Tais afirmações se justificam nas caixas de texto junto
às cabeças das mulheres, na forma como estão vestidas e carregando as cervejas,
na frase “um beijo com carinho” e na forma como estão olhando de forma sedutora
ao consumidor – essas são as características peculiares, intrínsecas, singulares.

Na terceridade tratamos das regras gerais dessa imagem. Ela tem a intenção
de vender a cerveja Brahma, para isso utiliza os corpos de duas mulheres que são
muito conhecidas em todo o Brasil, esses corpos são erotizados e postos como
símbolos sexuais na imagem. A sensação provocada no interpretante a quem o
comercial se dirige é de puro deleite e prazer. As mulheres, ao olhar, sugerem que
beber Brahma causará no consumidor o efeito similar ao de “saborear” seus corpos;
evidência disso podem ser as caixas de texto: em que duas mulheres seminuas,
com olhar sensual, carregando cervejas Brahma, poderiam estar pensando? É
perceptível também que essa propaganda de cerveja está voltada ao público
masculino. Em suma, ela simboliza: quem gosta de mulher – de preferência com
corpos esculturais – e bebe Brahma é verdadeiramente um Homem.

Essa perspectiva triádica de análise é a principal marca da semiótica


peirciana, enquanto a maioria das “semióticas” trata do binarismo e antagonismos
duais dos signos, Peirce pensou o signo em manifestações mais amplas, que
sempre admitem o formato tricotômico (SANTAELLA & NÖTH, 2008). Desse modo,
o signo passa constantemente por processos de “significação, objetivação e
interpretação” fenomenológica (NÖTH, 2003). Para compreender sua tríade é
preciso que se entenda as relações interconectadas do signo com o objeto e o
interpretante. De acordo com Santaella (2008), o objeto do signo pode ser imediato
ou dinâmico. Imediato, segundo ela, é o objeto que apresenta semelhança ou é
idêntico ao próprio signo, já o dinâmico é aquele que faz a ponte com os aspetos
exteriores ao objeto, que são as características básicas do signo: qualidades –
“quali-signo” –; singularidades – “sin-signo”; e a lei ou regra – “legi-signo”.

Os signos se apresentam enquanto “quali-signos”, quando estão, segundo


Santaella (2008), ligados à suas qualidades, são representações altamente
subjetivas ligadas aos aspectos qualitativos que indicam o signo, por isso, os
estudiosos da semiótica peirceana descrevem esses quali-signos como “índices”,
pois são signos ou “quase-signos” que tem a função meramente indicial. O sin-signo
71

é traçado pelas características factuais, são os “ícones”, é a forma que o signo se


mostra como ele realmente é, com os seus conteúdos reais e concretos. Símbolos
são a terceira característica do signo, são a sua qualidade de representação, parte
de convenções culturais, de padrões morais, de regras socais, são o legi-signo.
Desse modo, “pela qualidade, tudo pode ser signo, pela existência, tudo é signo, e
pela lei, tudo deve ser signo. É por isso que tudo pode ser signo, sem deixar de ter
suas outras propriedades” (SANTAELLA, 2008, p. 12).

O interpretante é aquele a quem o fenômeno, na forma de signo, se manifesta


à mente. De acordo com Nöth (2003), o interpretante é o efeito do signo. Na visão
de Santaella (2008), o interpretante é o potencial que o signo tem de ser interpretado
imediatamente, tão logo encontre uma mente que o interprete. Ela cita o exemplo de
um livro, que ao ser visualizado pode ser interpretado através de seu conteúdo
imediato: “O livro possui sua carga de significação, sem que uma pessoa o tenha
aberto para ler. Contudo, ao entrar em contato com a leitura desse livro, a “carga de
significação se atualizará, se efetivará” (SANTAELLA, 2008, p. 24). Essa é a função
do interpretante imediato, de conhecer o fenômeno, representado pelo signo, sem
um aprofundamento imediato. Assim, a semiótica peirciana subdivide-se
triadicamente em três níveis interpretativos do signo. Acabamos de abordar o
primeiro deles – o “interpretante imediato”; o segundo é denominado de
“interpretante dinâmico ou atual” e o terceiro diz respeito ao interpretante final.

Os semioticistas caracterizam o interpretante dinâmico como “aquilo que é


experimentado em cada ato de interpretação” (Nöth, 2003, p. 74). Cada
interpretação do signo é única e singular para o interpretante dinâmico. De acordo
com Santaella (2008) existem três níveis aplicados ao interpretante dinâmico: o
emocional, o energético e o lógico. O emocional é vinculado ao ícone, o energético
ao índice e o lógico ao símbolo. O interpretante final, nas palavras de Santaella
(2008, p.34), não deve ser tratado com “‘final’ ao pé da letra”, mas, ao contrário,
“final refere-se aí ao teor coletivo da interpretação, um limite ideal, aproximável, mas
inatingível, para o qual os interpretantes dinâmicos tendem”.

Nas relações sintagmáticas percebemos a completa vinculação entre as


características e formas de relação entre objeto, signo e interpretante. Essas teorias
organizadas na forma do método da semiótica peirciana abrem um leque de
72

possibilidades interpretativas que podem evidenciar as qualidades, singularidades e


símbolos das representações. Desse modo, utilizamos a categoria de análise da
semiótica para explorar os signos do pagode baiano concentrando-nos nas
representações de gênero dessas letras. Para tanto, seguiremos o método analítico
específico da semiótica peirciana, descrito por Santaella e Nöth. Primeiramente
faremos análise dos signos representativos da identidade feminina, para que, ao
auscultar esse fenômeno, possamos compreender como a mulher é concebida nas
letras do pagode. Como estamos fazendo uma discussão de gênero, cabe analisar
nessas letras a relação mulher-homem, mulher-mulher, homem-homem (SAFIOTTI,
2004).

Cabe salientar que a semiótica é fundamentalmente subjetiva e, como toda


prática de análise abstrata, comporta erros e requer humildade do pesquisador além
da necessidade deste estar despido de estereótipos e pré-conceitos. É preciso estar
aberto ao fenômeno, compreendendo suas manifestações intrínsecas e extrínsecas.
73

4 ANÁLISE SEMIÓTICA DAS REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E CONSUMO


NAS LETRAS DO PAGODE BAIANO

Faremos aqui uma análise das letras da música, percebendo-as como


imagens enquanto representações mentais. Essas imagens são também descritas
por Santaella e Nöth (2008, p. 175) como paradigma pós-fotográfico, que segundo
eles é caracterizado como “o universo do evanescente, em devir, universo do tempo
puro, manipulável, reversível, reiniciável em qualquer tempo” diferente do fotográfico
que é “o universo do instantâneo, lapso e interrupção no fluxo do tempo”. Assim, o
pós-fotográfico, ainda segundo esses autores, encontra dois representantes na
atualidade devido aos avanços das tecnologias da informação e comunicação: a
computação gráfica e a música.

A música, na sua qualidade de imagem enquanto representação mental


apresenta essa dinamicidade pós-fotográfica, e constantemente tem utilizado
recursos da computação gráfica e interagido dinamicamente com outras mídias, “até
o ponto de o receptor não saber mais se é ele que olha para a imagem ou a imagem
para ele” (SANTAELLA & NÖTH, 2008, p. 175). Diferente da fotografia, que nem
sempre tem intenções de efeito, a música apresenta essa característica pragmática,
que, ainda de acordo com Santaella e Nöth (2008, p. 197) tem “uma intenção de
iludir por parte do emissor da mensagem”. Essa análise de Santaella sobre as
imagens mentais produzidas pela música nos faz lembrar o kitsche e sua
prefiguração do efeito, discutida por Coelho (2006) e comentada no capítulo dois
dessa produção.

Santaela e Nöth advertem que as fotografias são quase sempre apresentadas


como “quali-signos” ou signos indiciais; enquanto a música é produtora de imagens
mentais na forma de “legi-signos” ou símbolos (SANTAELLA, 2008).

Para Santaella (2008), ao analisarmos qualquer signo necessitamos de uma


imersão no universo do signo através de três etapas imprescindíveis. A primeira
delas é a abertura para o fenômeno e a análise do fundamento do signo. A segunda
é a exploração do poder sugestivo, indicativo e representativo do signo. A terceira e
última: os níveis interpretativos do signo.
74

Para adentrar no universo semiótico das músicas enquanto produtoras de


imagens mentais utilizaremos parte do percurso metodológico da semiótica descrito
por Santaella (2008) e da análise das imagens enquanto representações
(SANTAELLA & NÖTH, 2008). Esse percurso será aplicado sobre as letras de
músicas mais executadas em programas de rádio, televisivos e shows das bandas
de pagode que se referem à mulher.

Abrindo-se para o fenômeno e analisando o fundamento do signo das


músicas do pagode percebemos uma evolução nas batidas, ritmos e instrumentos.
O pagode utilizou inicialmente os instrumentos musicais pertinentes ao gênero
samba, variando somente nos seus ritmos, compassos, letras, coreografias e
danças. Aos poucos, o pagode baiano foi se inovando, alternando instrumentos,
hibridizando-se com outros gêneros musicais, criando novas danças, inserindo
novos músicos, incorporando práticas das artes cênicas, reforçando o caráter de
espetáculo, de encenação e emulação. Essas inovações, de acordo com Leme
(2003) tinham efeito imediato no público que passava a se comportar também de
modo diferente. A cada inovação nas letras, coreografias, danças, estilos de vida
estimulados nos palcos, o público também se manifestava aderindo às novas
modas. Assim, o pagode baiano interferia em várias dimensões sociais e
psicológicas dos sujeitos e sua atuação nessa vanguarda não se limitava às
melodias e apresentações das bandas, mas aos estilos de vida das figuras
emblemáticas, que tinham suas vidas pessoais especuladas e postas como
símbolos para os seguidores. Desde o início à atualidade quase nada mudou no
sentido de produzir representações na forma de “legi-signos” e para isso, os
produtores, bandas, músicos e demais participantes contam com o poder da mídia,
através da rádio e da TV para vendê-los.

O pagode baiano sugere uma multiplicidade de representações, sendo um


campo prolífico na produção de símbolos. Esses símbolos, por sua vez, emitem uma
variedade de sentimentos e emoções nos interpretantes das imagens. Estudar todos
os signos produzidos pelo pagode seria uma tarefa demasiadamente árdua e sem
objetivo específico, por isso, visamos aqui interpretar as representações de gênero e
condutas de consumo nas letras do pagode baiano à luz da semiótica.
75

Selecionamos algumas letras de músicas para compor nossa análise


semiótica. As letras selecionadas estão sempre relacionadas a signos sobre a
mulher, tratando de sua vestimenta, comportamento social e sexual, e da violência
masculina. Atendendo a primeiridade percebemos que os quali-signos das letras,
em sua maioria contêm poucas estrofes, refrões com ênfase na repetição ou
“prefiguração do efeito” (COELHO, 2006). Alguns exemplos dessas qualidades estão
na música “Sabonete”, interpretada pela banda “Black Style”, que sugere,
incansavelmente que ela “coloque a mãozinha no chão e jogue o bumbum pro alto,
jogo o bumbum pro alto, jogue o bumbum pro alto, tomando o baile de assalto”.
Abaixo apresentamos um quadro contendo refrões de algumas músicas que tratam
do mesmo assunto:

Quadro 1 – Refrões sexistas do pagode baiano

REFRÕES INTÉRPRETES
Soca, soca, ela gosta é de paçoca... Soca,
É Xeke
soca ela gosta é de paçoca
Relaxa na bica, relaxa na bica, relaxa na
Black Style
bica, relaxa na bica
Apertadinha, apertadinha, apertadinha...
O Báck
todo homem só gosta
Me dá me dá patinha, me dá sua
Black Style
cachorrinha
Tome todinha, tome todinha, tome todinha,
O Báck
tome ... se quiser vou te dar
Late, late, late, late que eu tô passando Black Style
Surubão surubão, vem fazer surubão O Bronka
A piriguete anda com o fio só todo enfiado,
O Troco
todo enfiado, todo enfiado, todo enfiado
Arreia a rachadinha, arreia a rachadinha,
O Báck
arreia a rachadinha, arreia a rachadinha..
Vou te comer, vou te comer, vou te comer,
O Báck
vou te comer

Senta levanta, senta levanta, senta levanta Black Style

Joga a mão pro chão e empina a bunda,


joga que joga que joga o bumbum, joga
É Xeke
que joga que joga o bumbum, joga que
joga que joga o bumbum
76

Vou botar no buraco, vou botar no buraco,


vou botar no buraco, você a boa e empurra É Xeke
o meu taco

Cavalinho, Cavalinho, Cavalinho,


Cavalinho, Cavalinho, Cavalinho, É Xeke
Cavalinho

Bota a danada no chão, bota a danada no


Groov Gueto
chão, bota a danada no chão

Jogue o tabaco, jogue o tabaco, jogue o


Black Style
tabaco no chão

Ão, Ão, Ão eu quero ver as cachorra no


chão... Ão, Ão, Ão eu quero ver as
Groov Gueto
cachorra no chão... Ão, Ão, Ão eu quero
ver as cachorra no chão

Eu vou te comer todinha, todinha amor...


Eu vou te comer todinha, todinha amor... Black Style
Eu vou te comer todinha, todinha amor

Ela quer coisa dura, quer rapadura, ela


quer coisa dura, quer rapadura, ela quer Groov Gueto
coisa dura, quer rapadura

Fica atoladinha, Fica atoladinha, Fica


atoladinha, Fica atoladinha, Fica Black Style
atoladinha mãe
Toma madeirada toma toma, Toma
madeirada toma toma, Toma madeirada Os Bambaz
toma toma
Senta e chora, senta e chora, senta e
Raro Swing
chora, senta

Elaborado por Anderson dos Anjos Pereira Pena

Esses refrões demonstram que existe dentro do pagode baiano uma


produção singular de letras que abordam o corpo feminino e as relações sexuais
entre homens e mulheres. Algumas delas se atêm ao duplo sentido, outras não
apresentam mais essa preocupação e descrevem, através de gírias, posições do ato
sexual, rotulações sobre a genitália feminina, atribuições de virilidade aos homens.
77

Esses são os principais sin-signos que podemos perceber nessa parte do fenômeno,
pois o pagode, analisado enquanto fenômeno tem outras dimensões.

Percebemos como singularidades desses refrões a construção de


representações imagéticas típicas de uma ideologia falocêntrica e uma
heteronormatividade violenta típica da cultura patriarcal. Os compositores fazem uso
constante de figuras de linguagem, tais como a metáfora, cacofemismo e ironia para
rotular as atitudes, e até mesmo dos órgãos sexuais - por exemplo, o feminino que
é repetitivamente adjetivado de “apartadinha”, “rachadinha”, “danada”, “xana”,
“perereca”, “tabaco”, “tcheca”, “buraco”, “abará” etc.; o masculino de “rapadura”,
“taco”, “paçoca”, “madeira”, “badalo”, entre outros. Interessante notar que alguns
músicos se utilizam de estratégias que aproveitam a velocidade do som e do ritmo
para confundir o interlocutor. Um exemplo disso pode ser percebido quando “Black
Style” canta “Relaxa na bica”: o refrão é repetido com tamanha velocidade e por
tantas vezes que não é possível compreender se o cantor fala “relaxa na bica” ou
“relaxa na pica”. Contudo, fica evidente o falocentrismo nessa canção.

As composições e apresentações da banda dão ênfase em atribuir ao homem


o protagonismo do ato sexual. Eles são as “feras que as devoram”, “os lobos-maus”,
“os cachorrões”. É recorrente a afirmação que eles “as comem”, a exemplo do hit de
enorme sucesso “Lobo mau”, que, conforme indica o Jornal A Tarde de 25 de março
de 2010, rendeu ao grupo musical o título de “revelação do carnaval 2010”, por
conta da polêmica música que reconta – em uma versão de duplo sentido - como a
lendária personagem dos contos de fadas, Chapeuzinho Vermelho, foi “comida” pelo
lobo mau. Contudo essa versão aparece erotizada a ponto de, no final da música
Chapeuzinho, depois de ser “comida”, perguntar: “-Você gostou lobo mau?” – a
mulher como objeto de prazer, sempre disposta a satisfazer. Essa sugestão –
sempre presente em muitas letras das músicas do pagode baiano - de que os
homens “comem” as mulheres - é questionada e criticada por Safiotti (2003, p. 36),
asseverando que esta é “uma gíria, permeada de ideologia sexista”, onde está
presente a “inversão dos fenômenos”. Afinal, “a genitália feminina apresenta muito
mais semelhança com uma boca que a masculina”, tratando-se, portanto, de uma
falácia. Essa crença está engendrada como “legi-signo” nas letras através do
fomento de estereótipos do homem como “lascador”, “brocador”, “miseravão”,
“putão”, “painho”, etc.
78

As posições, ritmos e formas do ato sexual também são muito exploradas


pelas letras. No quadro 1, percebemos isso no “senta e chora”, “toma madeirada”,
“fica atoladinha”, “cavalinho”, “vou botar no buraco”, “senta, levanta”, “surubão” e
“tome todinha”. Aqui mais uma vez as imagens se repetem, mostrando assim, a
iconicidade das letras que, novamente apresentam conteúdo falocêntrico e,
hierarquicamente, valorizam o homem em detrimento da subalternizada mulher.

Sumariamos, enquanto “interpretantes dinâmicos” (SANTAELLA, 2008), as


representações enquanto imagens mentais mais comuns nas letras das músicas do
pagode baiano - dentro do nosso recorte de pesquisa sobre relações de gênero e
incentivo aos comportamentos consumistas – que são:

a) as mulheres gostam de dinheiro, carros luxuosos e virilidade masculina;

b) a mulher é um objeto a ser erotizado, estetizado, banalizado e consumido


pelos homem, com uma variação para nova tendência da virilização feminina;

c) o prestígio e a honra são atribuídos aos homens por meio do incentivo a


condutas machistas e muitas vezes violentas contra os outros homens e as
mulheres;

d) o consumo é frequentemente incentivado e promove hierarquizações, sendo


tendencioso para quem consegue estar à frente.

É comum em algumas letras a apresentação de signos sobre a identidade


feminina baseados na ideia de que as mulheres se sentem atraídas pelos homens
devido a suas condições financeiras, posse de bens – especialmente veículos
automotores, preferencialmente um carrão, no mínimo uma moto – e que sejam
heterossexuais viris. Esses são alguns dos “legi-signos” ou símbolos que podem ser
vistos em letras mais antigas como “Fiel a Putaria”, representado pela banda Psirico,
no ano de 2001, que contemplaram afirmações que sintetizam bem os estereótipos
sobre as identidades de gênero:

Eu te falei meu irmão que essa mulher ia te dar trabalho/


Você agora é carta fora do baralho/
Abandonou quem não devia e se deu mal/
Mas eu cansei de te avisar/
Quem gosta de homem é gay/
Mulher gosta é de dinheiro
79

Isso é padrão no mundo inteiro/


Você não foi i primeiro/
Nem vai ser o derradeiro (...)
Por isso seja/
Fiel à Putaria.

Essa música contém, em sua introdução, uma parte recitada, onde o


intérprete da banda conta a estória de um amigo que não o escutou sobre os perigos
de estar com uma determinada mulher. Insistentemente ele o avisou sobre a
possibilidade de traição, mas sempre foi questionado e acabou sendo ameaçado de
perda da amizade. Por fim, aconteceu a suposta traição e as afirmações da
introdução foram confirmadas pela letra da música que diz que mulher gosta de
dinheiro, por isso é preciso ser “fiel a putaria”, ou seja, se entregar à promiscuidade,
sem envolvimento emocional com as mulheres - sexo sim, apego sentimental jamais.
Tentando evitar situações tais como essa, que os possa constranger, os homens
reforçam as canções que os representam como fieis à putaria, desde as mais
antigas, como a que canta “tudo que é perfeito a gente pega pelo branco, bota lá no
meio, mete em cima, mete em baixo”, da banda “É o Tchan”, ou mesmo “eu quero
sexo, eu quero é sexo, sexo, sexo” da banda “Dignow”, entre outras.
Em 2007, a banda Black Style lançou hit de sucesso, sobre o mesmo tema,
intitulado Piriguetona14:

Andava de busu/
Você nunca me olhou/
Eu louco por você/
Você me rejeitou/
Comprei o meu carrão/
Você abriu o sorrisão/
Agora pra você/
Eu canto essa canção/
Eu não te quero mais/
Sai daqui piriguetona.

Aqui, a compra do carro foi o suficiente para que o homem pudesse entender
que mulher gosta de “carrão”, além disso, é interessante notar a reação dele que
não quis mais se envolver com a mulher. Mas, essa letra deixa brecha para um
questionamento: será que, nesse caso enredado na composição, outras mulheres
podem vir a se interessar por ele sem levar em conta o “carrão”?

14
Composição de Robson Elias Adorno Costa. ISWC: T-039.278.040-3
80

A mulher que gosta de dinheiro, carrão e virilidade é representada nas


imagens evocadas pela banda “Bonde dos Neuróticos”. Dessa vez a representação
da interesseira atrela-se a uma variedade de signos da cultura de consumo. Trata-se
do “Melô da Pop 10015” - uma música entre as mais executadas nas emissoras de
rádio no período pós-carnaval 2010 em Salvador -, cuja letra diz:

Você lembra daquela menina que te apresentei/


Ela ta iludindo nosso amigo Valnei/
Ela pega um cara que do crime é soldado/
Tem uma casa de praia e um carro importado/
Já falei pra essa cara: ela gosta é de grana/
Ela usa Armani e Dolce & Gabbana/
Amigo a vida é assim/
A gente vale o que tem/
Ele tem uma Tornado/
E você só tem uma Pop 100/
Ela gosta/
Mas ela gosta é dinheiro/
Ai meu amigo Valnei/
Por que você não desiste/
Tem um Chervet velho/
E no bolso uma nota de vinte/
Meu papo é reto/
Esse é meu dilema/
Ele usa Azaro e você Alfazema/
Escute negão/
Então pare e pense/
Ele usa Nike, Adidas e você Turbulence/
Escute Valnei/
Se liga em mim/
Mulher gosta é de dinheiro/
Quem como madeira é cupim.

Essa é mais uma música que expõe, como legi-signo, os interesses


consumistas da mulher, ao tempo que a pressupõe como objeto a ser consumido
por aqueles homens que possuem mais posses. A atitude interesseira pelo dinheiro
e pelas coisas que ele pode comprar tais como carrões, motos, perfumes, roupas,
tênis e congêneres, de acordo com a letra, é o que faz com que a mulher desperte
seu interesse pelo homem, contudo isso acontece de forma hierarquizada. Não
basta ser dono de uma motocicleta da marca Honda modelo Pop 100, é preciso ter

15
Não há registro dessas músicas no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://www.filestube.com/c811a01f6b07fc7903ea,g/Mel%C3%B4-da-Pop-100-%5BNova%5D-Bonde-dos-
Neur%C3%B3ticos-e-Robs%C3%A3o.html> Acessado em 02 de junho de 2010. 10:24:55.
81

mais, como uma modelo Tornado - se possuir um carro, ele sai vitorioso aos olhos
da mulher representada na letra. Segundo a letra o homem “vale o que tem”.

Por último, vejamos músicas onde as representações passam a ser


receituários de métodos para se conquistar uma mulher. Um exemplo disso está na
música “Perfume de Gasolina16” da banda “Groov Gueto”:

Carro rebaixado com DVD/


Ela não guenta ver/
Banco de couro com teto solar/
Ela não guenta/
Se tem wisque ela gosta/
Adultério rola na parada/
Carro velho se vê não encosta/
Ela gosta de luxo é da barca/
A piri não guenta ver perfume de gasolina/
Ela tá em cima/
Ela tá em cima/
E se der mole ela te panha/
Por baixo e por cima/
Ela deita e rola/
Ela deita e rola mãe/
Te pega/
Te pega gostoso.

Essa música apresenta uma variação: além do dinheiro, carro e virilidade ela
gosta também de bebida alcoólica. Percebemos aqui outros detalhes nas imagens
mentais concebidas a partir da letra dessa música: o aparelho de DVD do carro,
banco de couro e teto solar podem facilitar o acesso às mulheres. Se compararmos
“Perfume de Gasolina” com “Fiel à Putaria”, perceberemos que na primeira a posse
de dinheiro e carrão faz com que “adultério role na parada”, enquanto na segunda o
“amigo” é incentivado a ser fiel à putaria em função da traição sofrida. Ou seja, trair
não é símbolo para as mulheres, ao contrário, é representante da masculinidade; em
contraposição, ela pode, de acordo com as letras analisadas, ser “piriguete” e se
envolver com vários homens que tenham carrão e dinheiro, sendo até suas
amantes.

A partir das representações que inferiorizam a mulher, a dominação


masculina impera. Com as relações de poder adversas, os homens podem ir além

16
Composição de Carlos Magno de Santana; Edmilson Nobre Lima Santos, Fagner Ferreira Santos; Laurino
Alves dos Santos Neto. ISWC: T-039.474.709-1
82

das afirmações de que as mulheres só se sentem atraídas por eles quando possuem
dinheiro, automóvel e virilidade, erotizando o seu corpo e concebendo o padrão
estético em que são persuadidas a cumprir, sob a pena da inadaptação.

Como enfatizamos, com o “carrão”, o homem pode quase tudo para com a
mulher. Ele está no comando, dá as ordens e caso elas não obedeçam correm o
risco de perder a proteção que o dinheiro deles lhe oferece. As primeiras ordens a
ser cumprida pelas mulheres, de acordo com as letras do pagode baiano, se voltam
para a exibição dos seus corpos, de forma erotizada, quase sempre sobre a
presença de um adjetivo. Vejamos o exemplo da música “Teto do meu carrão17”, da
banda “O Troco”:

Olha chegou a novidade/


Que virou tentação/
O teto do meu carro/
É a moda do verão/
Elas vão subindo/
Vão subindo com emoção/
Vai mãe, mostra pra mim/
O tamanho do bichão/
Sobe no teto do meu carrão/
E mostra o pacotão/
Mostra o pacotão (...)
E no final de semana/
Tremenda azaração/
Todo mundo nos postos/
Curtindo de montão/
Elas vão subindo/
Vão subindo com emoção/
Vai mãe, mostra pra mim/
O tamanho do bichão/
Sobe no teto do meu carrão/
E mostra o pacotão/
Mostra o pacotão(...)

Penetrando semioticamente nas imagens dessa música, percebemos o dono


do carrão, em um posto de combustível, ordenando que elas subam no teto do seu
veículo para que mostrem “o pacotão” ou “o bichão” - esse termo aparece num
formato indicial, pois não é possível afirmar com precisão ao que ele se refere. Ele
indica que elas devem mostrar alguma coisa específica do corpo, que, muito

17
Não há registro dessas músicas no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://letras.terra.com.br/o-troco/1671203/> Acessado em 08 de junho de 2010. 22:39:25.
83

provavelmente está ligado à sua genitalia. Esse índice, ainda que impreciso,
sustenta-se no termo “azaração” – afinal, se elas sobem com emoção no teto do
carro, em um cenário de paquera, e a música solicita que elas mostrem o “bichão” e
o “pacotão”, é muito difícil que um interpretante, mesmo o inicial, não enxergue a
mulher como objeto sexual.

Outras músicas fazem um apelo ainda mais sensual. A banda “Koisa Boa”,
um dos destaques de 2010, lançou neste mesmo ano a famosa canção “Rala o
badalo na tcheca18”

Ô aperta ela que ela se entrega/


Rala o badalo na tcheca (...)/
Se rolou o badalo/
Tem que rolar o mela cueca/
Ela gosta do mundo animal/
Bota na geral (...)
As meninas ralando a tcheca/
Os meninos preparem o badalo/
Rala o badalo na tcheca (...)

“Badalo” é uma referência ao órgão sexual masculino, enquanto “tcheca”, ao


feminino. Isso é confirmado na frase: “se rolou o badalo tem mela cueca”. A primeira
banda da pagode baiano a usar o termo “tcheca” foi “É o Tchan”, na década de
1990, que, mesmo timidamente, emitia duplo sentido, por meio da música “Disque
tchan (alô tchan)”, ao cantarolar o refrão “Ô pega a tcheca, solta a tcheca/Leva a
tcheca, põe a tcheca pra sambar (que tchequinha linda)”. Quase vinte anos depois, a
partir de uma evolução onde “tcheca” se tornou um termo frequente nas letras, a
banda “Koisa Boa” faz apelo completamente despudorizado à sensualidade
feminina, colocando a mulher como objeto a ser consumido pelo homem - afinal, de
acordo com a letra, basta ao homem apertar “ela que ela se entrega”. Mais que
erotizado, nessa letra, a representação do corpo da mulher é banalizado, como algo
fácil a se ter nas mãos.
Mas não basta gostar de dinheiro e ter seu corpo banalizado e erotizado, é
preciso esforço por parte da mulher para que seja aceita pelos homens. Para isso,
uma legião de signos emergem das letras criando um compêndio de estética que ela
não pode deixar de seguir. Cabe ressaltar que esta estética se aproxima muito da

18
Composição de Reinaldo Júnio Bianchi. ISWC: T-039.326.777-0
84

mulher branca de cabelos lisos. Podemos elencar como colaboradoras desse


compêndio a banda “Psirico”, com uma letra mais antiga, denominada
“Escovadinha19” que ordena às mulheres:

Escova, escova, escova, oh da uma escovadinha (...)


Oh menina bonitinha do cabelo duro/
Compre um alisante pra ficar legal/
Se o alisante não der jeito nele/
O Psi vai mostrar como vai melhorar/
Escova, Escova, Escova/
Oi da uma escovadinha/
Escova, Escova, Escova/
Oi da uma escovadinha.

Dentro dos padrões estéticos dessa música, o “cabelo duro” – natural à


mulher negra – é descartado. Quem possui cabelos crespos ou duros tem que alisar,
e se não ficar bem liso, dar escova. Outras bandas, como “Leva Nóis”, ordenam que
as mulheres usem “Pranchinha” – um hit de sucesso da banda -, desse modo elas
ficarão mais “bonitinhas”. Assim “A menina do cabelo duro já esta estressada e não
quer pentear/ A solução está nas minhas mãos, pega a pranchinha para melhorar”.
A estetização não para nos cabelos das mulheres, elas necessitam manter o corpo
bem em forma, frequentando academias e centros de estética para ficar “turbinada”
e cada vez mais “Gostosa20”, como é representado na música de Psirico, com esse
título:

[...] ah e eu que sou light/


Vou descer toda turbinada!/
Sabe por quê?/
Porque nós somos as gostosas/
Ai ai ai/
Ai, eu sou gostosa/
Quando você me ver neste carnaval com minha/
Saint-tropez e meu néon gritante/
Eu com minha escova inteligente, não vai ter chuva que
desmanche/
Ai ai ai/
Ai, eu sou gostosa [...]

19
Composição de Valdivan Bispo Bonfim; Osana Silva da Cunha e Márcio Vitor Brito Santos. ISWC: T-
039.327.422-0.
20
Composição de Umberto Souza Moreira. ISWC: T-039.034.353-9.
85

O legi-signo feminino da “gostosa” envolve, nessa música e em outras a


estetização do cabelo, que promova algo parecido com o “embraquecimento”
(SAFFIOTI, 2004) da negra e da mulata do cabelo duro e a esculturalização do
corpo, de modo que esse se encaixe perfeitamente em roupas que os exibam para
estimulação da excitação masculina. Além disso, é preciso que cuide também da
idumentária, consumindo as vestimentas da moda, para não ficar fora da moda. E o
que acontece com a mulher que não se enquadra nos signos representados nessas
letras? “Black Style” responde: “Vaza canhão21”; essa letra, por oposição representa
quali-signos que devem ser banidos do corpo feminino, a letra narra:

Eu conheci uma menina na Internet/


Ela me disse que era um verdadeiro avião/
Eu marquei um encontro com ela na avenida sete/
E quando eu vi a menina pirei o cabeção/
Ela tem cara de jaca/
Nariz de xulapo/
Estria nas pernas/
Bunda de peteca/
Perna de alicate/
Cabelo de asolã/
Ela é caolha/
Tem unha encravada/
Boca de desdentada/
Barriga dobrada/
Tirando a camisa o peito batia no chão/
Ela é corcunda/
Desengonçada/
Cintura de ovo/
Com a cara manchada/
E quando ela fala o bafo é de leão/
Tem um caroço nas costa/
Com a voz grossa/
A cara torta/
Minha resposta na hora/
Foi cantar esse refrão/
E o refrão é assim/
Vaza canhão Vaza canhão Vaza canhão Vaza canhão/
E ela tinha um testão/
Tinha um zoião/
Não era mulher/
Era uma assombração/
E ela tinha uma papada/
Parecia um urubu/
21
Composição de Robson Elias Adorno Costa. ISWC: T-039.278.145-1.
86

Tinha uma impigem na cara/


E coçava uu..uhhhh/
Vaza canhão Vaza canhão Vaza canhão Vaza canhão.

Esses quali-signos negativos para as “gostosas”, são legi-signos para as não-


gostosas. A letra apresenta notável intencionalidade de causar nos interpretantes
dinâmimos um efeito de repulsa à mulher que contenha, mesmo que parcialmente,
esses signos. As que não incorporam essa aversão e vacilam, no sentido de
assimilar algum desses índices, serão punidas com a rejeição masculina: “Vaza
canhão”.
Contrariando a lógica da banalização, erotização, determinação estética e
violência, alguns grupos, expoentes do neopagode, tentam fugir à lógica sexista.
Eles ilustram a mulher sob uma nova ótica. “Psirico” em 2008, possivelmente foi o
precussor desse movimento através da música “Toda boa” que em seu refrão
contém a mensagem que “mulher brasileira é toda boa”. Essa ainda manteve caráter
banalizante pois valoriza excessivamente os atributos corporais da mulher e não seu
papel social. Somente “Ed City” foi intérprete de uma letra um pouco mais ousada:
“Pivetona22”, pois apresenta uma mulher que incorpora os signos da masculindade,
dessa forma essa letra representa uma inversão, como podemos notar:
Essa menina é uma onda, essa menina é uma onda (...)
Ela é o que é, tá sempre na fé/
Quando chega pro reggae ela chega pra onda/
Pivetona, pivetona, pivetona, ela chega pra onda/
(Pivetona, pivetona, pivetona)/
Parece que é homem mais não é, é atitude essa mulher/
Mulher retada não deve nada, não pode ser nada mais é.

Pivetona é aqui apresentada como uma “retada” que “não deve nada” e
“parece que é homem”. Com essas representações legitima-se o signo de uma
mulher que, para se diferenciar da “piriguete”, precisa incorporar os legi-signos da
masculinidade, quer dizer, comportar-se como um homem. Essa inversão ainda se
encontra em fase de testagem nas letras, mas já ganha popularidade como uma das
principais excecuções nas rádios soteropolitanas.

22
Composição de Edcarlos da Conceição Santos e Ricardo Luiz Batista de Souza. ISWC: T-039.433.760-0.
87

Independente do sexo, notamos nos signos representativos do pagode baiano


que a lógica é também consumir: sejam roupas, produtos de cabelo, veículos e seus
acessórios, etc. Os locais de sociabilidade do pagode têm sido representados nas
letras como espaços onde os seguidores possam não somente ouvir e dançar, mas
também assimilar os símbolos da sociedade de consumo. Exemplo disso é a música
“Hit do posto23” da banda “A Bronkka”, que tem os seguintes versos:

Tô de boa em casa/
Sem fazer nada/
Os parceiros chama/
Vamo pro posto/
Ver a mulherada/
Tomar gelada/
E largar meu som/
Vamo pro posto/
Olha tá bombando/
Não tem polícia para embaçar.

Agora, os espaços convencionais com bares, festas e shows secundarizam-


se diante da moda dos postos de combustíveis, onde os seguidores do pagode são
incentivados a consumir bebida, embalados por um som em alto volume - como
indica a expressão “largar o som” -, preferencialmente não sendo importunados por
policiais. A frequência aos postos, na forma de legi-signo do consumo, é incentivada
pelas letras mais recentes, como ocorre também na já interpretada “Teto do meu
carrão”, que tem todo o seu cenário localizado em um posto de combustível.
Outras músicas apelam para a utilização de uma marca específica de peças
do vestuário, atribuindo inclusive, marcas que devam ser usadas distintamente por
mulher e homem. Uma evidência desse signo consumista representado nas letras
está na já analisada “Melô da Pop 100” que hierarquiza as marcas e, por
conseguinte, quem as usa (“ele usa Nike, Adidas e você turbulence” ou “ele tem um
carrão e você só tem uma Pop 100”). Sobre isso, “Black Style” lançou em 2010 a
música “Jacaré” onde o cantor ordena: “As meninas de Dolce & Gabanna e os
meninos de Lacoste (...)”, sendo essas duas marcas famosas e elitizadas.
Em suma, o prestígio e a honra são atribuídos aos homens, sendo que, de
acordo com os signos interpretados nas letras, eles não necessitam priorizar
critérios estéticos tais como cuidar do cabelo e frequentar academias; talvez isso

23
Não há registro dessas músicas no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://letras.terra.com.br/a-bronkka/1665563/> Acessado em 08 de junho de 2010. 23:29:25.
88

seja apenas para os homens que não possuem dinheiro, bens e sejam pouco viris.
Ao contrário, as mulheres têm a sua disposição um amplo receituário de signos
estéticos, onde o desrespeito aos padrões, segundo as representações, resultará
em sua não aceitação pelos poderosos homens.
As representações masculinas apresentam mais um símbolo representativo
nas letras cujass imagens representadas apontam para relações entre homem-
mulher e homem-homem baseadas na insensibilidade e na violência. No último
capítulo se discutirá especificamente sobre esse ponto.
89

5 A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E AS FALAS DAS FIGURAS


EMBLEMÁTICAS E DOS SEGUIDORES DO PAGODE

No intuito de cumprir um dos objetivos propostos para essa pesquisa,


realizamos observação participante; entrevistas com figuras emblemáticas do
pagode e grupos focais com seguidores/as do pagode.
Ao quatro grupos focais foram com moradores dos bairros soteropolitanos do
Nordeste de Amaralina, Vale das Pedrinhas, Chapada do Rio Vermelho e Santa
Cruz. Conversamos, em momentos distintos, com o total de dezoito pessoas, sendo
nove homens e nove mulheres sobre a história do pagode baiano; o envolvimento
deles com esse estilo musical; a ligação das músicas do pagode com sua história de
vida; e a recriação dos estereótipos de gênero e consumo representados em seus
cotidianos.
Durante a realização da observação participante, frequentamos alguns locais
de encontro dos seguidores do pagode, tais como em show, festas e bares.
Interessante notar que, ao longo da pesquisa, fomos direcionados a um outro local
que não imaginávamos ser encontro dos seguirdores/as do pagode: os postos de
combustíveis.
Foram escutadas as falas das figuras emblemáticas do pagode, através de
entrevistas aos músicos de um famosa banda da atualidade, com a presenção de
participantes do seu fã clube, além de uma entrevista semi-estruturada com um
famoso baixista de outra banda de grande aceitação entre os seguidores do pagode.
Por questões metodológicas, resolvemos preservar as identidades de todos os
entrevistados, bem como das pessoas observadas.
Os questionamentos que nortearam as entrevistas e os grupos focais, bem
como as observações, tinham por base as significações dadas pelas figuras
emblemáticas e os seguidores nos quatro bairros sobre as interferências do pagode
baiano nas relações de gênero e nas condutas de consumo.
Primeiramente, é importante pontuar a intimidade que boa parte dos
moradores dos bairros tinham com essa espécie do samba. Ao transitar pelas ruas
comumente percebiamos que, a qualquer dia, especialmente por volta das 12h e das
18h, muitos aumentavam o volume do som em suas casas para ouvir pagode
baiano. Por diversas vezes presenciamos jovens no retorno das aulas, ainda com
fardas escolares, dançando nas varandas de algumas casas com seus colegas, ou
90

mesmo nas ruas, ao estridente som dos carros. Aos finais de semana, os bares, de
acordo com uma das figuras emblemáticas do pagode, “se enchem de gente,
principalmente no início do mês quando a galera recebe os salários e todos curtem
muito ao som das nossas músicas. Sexta, sábado e domingo é só alegria pra
galera”. No primeiro grupo focal realizando com os homens, um deles, mordor do
bairro da Santa Cruz afirmou que “agente sofre tanto com patrão no pé do ouvido na
semana, mulher em casa enchendo o saco que tem que comprar isso e comprar
aquilo, que nada melhor que tomar uma e ouvir um pagode bem alto no final de
semana”.
Essa intimidade com o pagode é destacada no início dos diálogos de todos os
grupos focais: ao se apresentar todos eles e elas fizeram co-relação imediata entre o
pagode e suas histórias de vida. Uma das entrevistas, moradora do bairro do Vale
das Pedrinhas, participante do primeiro grupo composto por mulheres, afirmou que
“gostava de pagode desde que se entendia por gente”. Entre todos os
entrevistados/as apenas uma mulher do segundo grupo, moradora da Chapada do
Rio Vermelho, nunca foi membro de um grupo de pagode, mas ela mesma afirmou
que é como se tivesse feito “pois sou conhecida dos pagodeiros onde quer que for,
tem gente que toca e dança em banda famosa que não é conhecida igual a eu [...]
eu tô em todas velho”, enfatizou a moradora da Chapada do Rio Vermelho. Sete
entre os nove homens entrevistados nos dois grupos falaram da contribuição do
pagode para seus relacionamentos com suas atuais esposas, e quatro deles
disseram que os filhos desses relacionamentos são “fruto do pagode”.
Dos 9 participantes nos dois grupos focais de homens, 6 foram músicos em
bandas nos bairros e não puderam continuar devido à extinção dessas bandas. Os
três restantes continuam a tocar em bandas fora dos bairros que se apresentam
semanalmente em bares da orla marítima de Salvador. Para todos eles o sonho é
tocar numa banda famosa , sonho que virou mais popular que desejar ser jogador de
futebol. O grande empecílio para dar continuidade ao trabalho artístico nos bairros,
de acordo com eles, foi a violência, que dificultou a ocorrência de festas e
apresentações das bandas. Todos eles e elas narraram fatos mostrando a violência,
tanto simbólica, como a agressão corporal, como fator majoritário que concorreu
para a pulverização das bandas nos bairros.
Os bares, junto com os postos de combustíves destacam-se como os
principais espaços de sociabilidade dos seguidores do pagode baiano. Em segundo
91

lugar ficam as festas em largos e os shows em espaços fechados dos bairros, onde
só é permitida a entrada através da compra de ingressos. Porém esses dois últimos
points tem sido cada vez menos utilizados devido à violência que tem coibido as
apresentações das bandas. De acordo com uma das mulheres, integrante do
segundo grupo focal realizado, que foi dançarina entre os anos de 2003 a 2005,
moradora do bairro da Chapada do Rio Vermelho,
[...] as brigas entre as galaras rivais dos bairros e as briguinhas
mesmo nos regues, foi o que levou a não ter mais nada aqui na área,
agora a gente fica curtindo mesmo nos bares legais da área ou fora
numa casa de show famosa, tipo Madre ou Estação Ed10, no início
era tudo muito bom, mas agora ficou barril ir pra qualquer coisa por
aqui, o sistema tá bruto.

Sobre a violência, dedicamos um capítulo a parte para discutí-la como


expressão legítima da masculinidade, produto da cultura partriarcal encarnada no
“ethos do guerreiro” que fomenta competições e guerras e tem como resultado a
insensibilidade frrente à morte.
Durante as festas e shows – presenciamos apenas quatro, ao longo de dois
anos da pesquisa -, as bandas se apresentaram, sempre tocando as músicas de
sucesso da época. Os músicos se destacavam pelas suas roupas, cortes de cabelo
e adornos – brincos e argolas nas duas orelhas, correntes de cor prateada bem
grossas e roupas que destacavam a musculatura do corpo. As músicas embalavam
o público que cantava e coreografava com as bandas. Volta e meia subiam ao palco
homens e mulheres que se destacavam ao dançar entre os demais do público. As
danças eram, em sua maioria, muito sensuais, e quase sempre encenavam o ato
sexual. Entre os seguidores do pagode, as mulheres vestiam calças apertadas ou
saias e os homens comumente bermudas e camisetas.
Discutindo a relação entre as letras das músicas e os estilos de vida dos
seguidores do pagode, para estimular os debates, executamos algumas letras nos
grupos focais realizados com as mulheres. Percebemos que boa parte delas busca
seguir o receituário de modas e consumo que as letras das músicas perfazem, muito
embora não reconheçam que as letras influenciam diretamente em suas relações
cotidianas.
Durante as observações, percebemos que, no ritmo efêmero das letras
surgem as modas que são aceitas e logo descartadas quando novos estilos são
delineados nas letras subsequentes. Um exemplo disso pode estar nas escolhas em
92

relação às formas de tratamento do cabelo por parte das mulheres. Durante o ano
de 2009, muitas delas alisavavam e escovavam seus cabelos com frequência, em
2010, o estilo Black Power se sobrepôs. Uma das participantes dos grupos focais,
residente no bairro do Vale das Pedrinhas afirmou que o seu cabelo “ficou desse
jeito porque o de Xênia, quem dança no ‘Parangolé’ chamou minha atenção, antes
eu dava escova, alisava e tudo mais, mas hoje eu prefiro assim, acho que combina
melhor com minha cor negra”. Porém, ela assegurou que o estilo do seu cabelo
nada tinha a ver com letra alguma, mas com o estilo propagado por uma dançarina.
As modas lançadas nas letras costumam ser bem aceitas pelos seguidores do
pagode. No decorrer da música “Patinha”, o intérprete da banda “Black Style”
ordena: “Nesse verão eu quero ver as meninas com a unha pintada de patinha”,
percebemos nos bares e postos muitas mulheres, no período de fevereiro a março
de 2010, com suas unhas tatuadas com patinhas. Outras músicas incentivam que os
carros fossem rebaixados, com “somzão”, “DVD” e teto solar, percebemos que os
veículos dos seguidores do pagode tem ao menos um desses itens ou acessórios.
Na vestimenta, algumas músicas incentivam o uso de grifes famosas, muitas delas
pertencentes a multinacionais que possuem preços altíssimos nos seus produtos.
A música “Passo do Jacaré” de “Black Style” pede que as meninas usem
“Dolce & Gabbana e os meninos de Lacoste”, logo aderem a moda e esses
seguidores do pagode, mais uma vez passam a usar ou comentam sobre a
necessidade de consumo desses produtos. Em homenagem e incentivo ao uso dos
postos de combustívies como espaço de sociabilidade entre os seguidores do
pagode, a banda “A Bronkka”, lançou em 2010 o “Hit do Posto”. Talvez por conta
disso, na última visita que fizemos aos dois postos entre os dias 02 e 06 de junho de
2010 o público era muito maior do que nas duas outras.
Uma outra forma percebida de influência das letras nos comportamentos dos
seguidores do pagode é a inserção de termos e gírias no léxico deles e delas. Os
homens em situações diversas utilizam esses termos contidos nas letras, por
exemplo, em algumas conversas, onde um homem expressa interesse em uma
mulher, o outro adverte: “amigo, não vá que é barril”, certamente fazendo alusão a
famosa música interpretada pela banda “Guig Gueto”. A forma de tratamento por
parte deles em relação a muitas mulheres é muito semelhante ao que é
representado na música; assim, as solteiras, tidas como “livres e desempedidas” são
tratadas por eles como “piriguetes” interesseiras, facilmente conquistadas com
93

bebida, dinheiro e veículos. Certa vez ouvimos um breve depoimento de um desses


seguidores em um bar que afirmava que, na época do seu pai, era frequente a ira
dos homens a muitos bordéis, mas atualmente esses “bregas” faliram por causa “das
piri” que por uma saída de farra e bebedeira facilmente é fisgada pelos
“putanheiros”.
As figuras emblemáticas também sustentam a ideia de que as letras são
inofensivas aos seus estilos de vida, afirmando que eles “são a moda”, como
informou o guitarrista da banda de sucesso na Bahia em entrevista coletiva,
descrevendo que ele percebeu que
[...] toda vez que mudo meu corte de cabelo, os caras acabam
copiado, não acho que é por causa da música, é por nossa causa
mesmo, eu me lembro de uma copa do mundo que Ronaldinho, o
fenômeno, fez um corte muito estranho no cabelo, Chiclete com
Banana fez uma música falando disso, muitos caras cortaram o
cabelo igual ao do fenômeno, mas não por causa da música, fizeram
porque Ronaldinho, o ídolo, fez, aí eles copiaram.

Os homens que participaram dos grupos focais, também compartilham da


concepção de que a música não influencia seus estilos, pois “o que influencia
mesmo são os cantores, Ed mesmo, que foi do fantasmão é um cara que se inventar
uma moda, a galera copia, quando eu cantava me inspirava nele, por que ele
realmente faz a diferença, mas a música serve mesmo pra gente dançar”, comentou
um dos participantes do segundo grupo, morador da Santa Cruz.
Diferente de todas as demais opiniões, um dos músicos entrevistados,
membro de uma outra banda famosa - que revelou cantar pela rentabilidade que
essa espécie musical possibilita, mas que não gosta do pagode – alega que as
músicas certamente influenciam no estilo de vida dos seguidores do pagode. Para
ele as letras “colocam a mulher em situação de vulgaridade, rotulando elas com os
tipos mais ridículos de palavras, e o mais incrível de tudo é que elas gostam, eu
acho ridiculo isso”. Ele afirmou que uma prova que as letras influenciam os estilos
está na linguagem, pois “os homens e as mulheres copiam as coisas que as
músicas dizem, quer dizer, as gírias, e ficam o tempo todo falando por ai, fica na
linguagem do pessoal”.
Há uma aproximação muito grande entre a reralidade observada e as
representações da mulher nas letras, de tal forma que as mulheres não demonstram
94

se sentirem ofendidas e muitas vezes até se identificam com seu significado,


segundo manifestaram nos grupos focais.
Com isso, os homens se empoderam e exercem o seu machismo. Em um dos
bares observados, por duas vezes percebemos um homem que dirigia um carro
importado com um potente equipamento de som na mala que, na primeira vez
estava com uma mulher bebendo, dançando e “ficando” e na segunda, com outra
repetindo os mesmos atos.
Para os seguidores do pagode que aparentam ter mais dinheiro e bens, o
prestígio é notável. Eles são muito respeitados pelos outros homens, até mesmo
pela polícia que, costumeiramente, não os aborda e quando os pede para diminuir o
volume do som, o fazem com muita educação e cordialidade, quase sempre
trocando sorrisos e abraços.
Os grupos focais foram prolíficos em informações sobre as relação de gênero.
Através execução das músicas para intrepretação por parte dos membros dos
grupos focais, notamos como as mulheres e os homens estereotipam-se a si
mesmos e aos outros iguais e diferentes. As concepções que apresentam são muito
semelhantes aos símbolos produzidos nas letras do pagode.
Em ambos os grupos, bem como nas entrevistas, tanto eles, quanto elas,
sustentam a ideia de que muitas mulheres – senão todas – são tendenciosas a se
relacionar com homens que possuam boas condições financeiras e veículo. Algumas
músicas como “Piriguetona”, “Melô da pop 100” e “Perfume de gasolina” foram
executadas para estimular os entrevistados a comentar o assunto. Em um dos
grupos realizados com homens, um dos participantes, morador do Vale das
Pedrinhas afirmou que
As mulheres gostam disso mesmo, de um cara que tenha condições,
um carrinho, a gente aqui tá cansado de ver uma mulher que tá com
o cara que é só trabalhador e não tem muita coisa e de repente um
outro cara com mais condições e um carro vai e pega ela, então é
certo que mulher gosta de grana mesmo, que nem a música diz,
‘quem gosta de madeira’ é cupim, é gay.

Outro depoimento em um grupo diferente dos homens fala que “Mulher gosta
de homem, mulher não vive sem um homem, mas ela quer um homem que dê
estabilidade a ela, um cara que tenha um carro [...] um cara que dê um conforto a
ela [...] ela busca isso num homem”.
95

As figuras emblemáticas do pagode, na entrevista coletiva, alegaram que


essas letras são compostas como uma brincadeira, mas que “nem toda mulher é
assim, tem mulher independente, feminista, que tem apartamento, carro, trabalha,
ganha bem e tudo mais, tem mulher que é tão bem que até sustenta o cara” afirmou
um dos músicos da banda. Já o músico da outra banda disse que na época dos
seus pais, muitos comportamentos femininos não existiam, mas depois da geração
dele
[...] com a presença do pagode tudo mudou [...] as mulheres parece
que acabaram fazendo o que diz as letras e hoje as situações são
muito parecidas: a letra com a realidade. Eu as vezes fico me
perguntando se a letra não esculhambasse tanto a mulher, será que
o comportamento delas não seria diferente? Eu comparo com a
época que meu pai fala da juventude dele e vejo que, que o respeito
foi pelo cano, quando minha mãe se apaixonou por ele, ele era
muito pobre e ela rejeitou casar com um homem rico por causa de
amar ele”

De fato, até as mulheres compatilham da visão que concebe a mulher como


interesseira. De acordo com uma delas, moradora da Santa Cruz, participante do
primeiro grupo, elas buscam “um cara que tenha estabilidade, para garantir o
mínimo de conforto pra gente, nenhuma mulher gosta de ir pra uma curtição e voltar
a pé para casa, no mínimo um motinha tem que rolar, uma conta paga no bar”. Outra
integrante do mesmo grupo, moradora da Chapada do Rio Vermelho, compartilha da
mesma visão, percebendo como

[..] natural essa atitude nossa, os caras já são mesmo sem


compromisso, é raro você encontrar um homem hoje em dia que
queira assumir firme uma mulher, a grande maioria deles só quer
mesmo curtir, então a gente tem que ir na onda e tirar uma
lasquinha, usufrir mesmo, por que amanhã a gente pode ser carta
fora do baralho para ele.

Questionadas se essa atitude não causa uma relação de dependência com


respeito aos homens, houve unanimidade em discordarem, uma delas explicando:
“não vejo nada disso, eu só penso que muitos só tão a fim de curtir com a gente
mesmo, sem compromisso, então a gente também curte eles, o carro, as farras,
afinal merecemos conforto”.
Lançamos também uma discussão sobre a estética do corpo feminino para os
grupos e figuras emblemáticas, a partir da execução de músicas como
“Escovadinha” e “Gostosa” de Psirico; “Pereca” e “Vaza Canhão” da banda “Black
96

Style”; e “Pranchinha” de “Leva Nóis”. Em ambos os grupos e todas as figuras


emblemáticas do pagode, mulheres e homens concordaram com os padrões
estéticos disseminados pelas letras. Em um dos grupos, uma moradora do Vale das
Pedrinhas comentou que a “mulher tem que se cuidar mesmo, ficar sexy, senão
acaba ficando pra titia”. Outra participante do primeiro grupo, moradora da Santa
Cruz, reflete que, ao se cuidar da forma como as letras mencionam, “a mulher
garante saúde para ela, por que beleza é saúde e auto-estima”. Ainda outra do
mesmo grupo, que reside na Chapada do Rio Vermelho, enxerga a música “Vaza
canhão” como uma brincadeira desproposital que “serve de alerta para que a gente
não se torne uma bomba”. Um dos homens do primeiro grupo, que mora no
Nordeste de Amaralina, ratifica as falas comentando: “eu acho que não existe
mulher feia, existe apenas mulher maltratada, que não se cuida, deixa o cabelo
desarrumado, a barriga de cerveja, então essa música é, no meu ponto de vista, um
incentivo para a mulher olhar pra ela mesma e se amar pra ficar “toda boa”.
As figuras emblemáticas também se posicionam, assegurando que essas
músicas “não tem maldade, é normal falar da beleza da mulher, eu acho que é uma
grande realidade a mulher cuidar do cabelo, querendo deixar ele liso, porque cabelo
liso é realmente melhor pra mulher, deixa ela muio mais bonita” comenta um dos
músicos da banda. Este comentário é referendado pelo depoimento do vocalista:
[...] realmente mulher tem que manter a beleza física dela, a pessoa
gorda não se sente bem com o corpo, eu fala até porque eu to
ficando meio fora de forma e já to incomodado, eu sou homem,
imagina a mulher que tem esse lança da vaidade, ela tem que cuidar
do corpo, ir pra academia, a música é verdade falando disso.

Em momento algum esses homens e mulheres associaram a estética


apresentada nas letras à “branquitude”, aceitam os padrões estereotipados de
beleza e, como percebemos nos depoimentos, acabam os acatando em suas vidas
pessoais.
Quanto à erotização/banalização do corpo feminino, todos e todas - exceto a
figura emblemática que é música da banda famosa no Brasil - revelam opiniões
também desprovidas de uma crítica aprofundada, mais uma vez indicando que isso
tudo é uma brincadeira e que tanto para eles quanto para elas importam muito mais
os ritmos e coreografias às letras. As tentativas de promover um debate mais
intensivo sobre o assunto sempre se esbarravam no argumento da brincadeira
desisteressada, ou então os membros dos grupos desconversam atribuindo
97

vinculação aos estilos de vida das figuras emblemáticas do pagode ou ao bem-estar


proporcionado pelas danças. No máximo, produziam respostas como a de uma
integrante do segundo grupo, residente do Nordeste de Amaralina, ao reiterar que
“quem dança gosta de chamar a atenção dos homens, a verdade é essa, gosta de
ver os homens ali gritando, chamando né...” Segundo ela, quando dançavam o
pagode em algum evento festivo – quase sempre fora do bairro - “os meninos não
guentavam, mandavam botar o bumbum pra cima”.
A grande diferença de argumento partiu do músico entrevistado
individualmente que mais um vez falou da
[...] falta de respeito e esculhambação que essas letras têm. Hoje eu
acho que não existe duplo sentido mais, tem música que fala até
como se faz sexo ou do órgão da mulher, é como eu disse, trabalho
aqui, mas não gosto do que vejo, mas eu prefiro ficar aqui do que
morer de fome fazendo voz e violão num barzinho desses da vida.

Observamos realmente que os seguidores do pagode, nos bairros, não


percebem até que ponto as letras interferem em suas relações. Durante as festas
percebíamos coreografias em que a dominação masculina é evidenciada: ele
manda, ela obedece; ele a rotula, ela aceita, dança e se exibe para ele. Tudo isso se
direciona para a violência, admitindo-se até as agressões físicas contras mulheres.
Os questionamentos e observações sobre os comportamentos de consumo,
também provocaram uma apatia. “As marcas são qualidade, se eu quero uma marca
é porque eu quero o melhor, que geralmente vai durar anos e anos” comenta uma
figura emblemática do pagode, pertencente ao grupo de pagode entrevistado. Uma
das mulheres surpreendeu-nos ao advogando a favor do consumismo, essa
moradora do Nordeste de Amarina afirmou que
Todo tempo tem uma moda. Na época da minha mãe ela fala que
tinha a calça boca de sino, na época da lambada tinha aquelas
sainhas que levantavam e mostravam a calcinha, já teve o short
malhação na época do tchan, meu irmão antigamente só gostava de
usar Hang Louse, agora eu não vejo nada demais em querer uma
Dolce & Gabanna ou Lacoste, são tudo de boas marca e onde a
gente chega todo mundo vê a gente bem vestida.

Durante as observações percebemos o forte consumo de bebidas alcoolicas.


As farras eram regadas a muita cerveja e outras bebidas. Aliás, muitas músicas
acabam gerando “modas” no consumo dessas bebidas, uma evidência disso está no
fato de que no início dessa pesquisa fazia sucesso uma música que incentivava o
98

consumo da bebida “Ice” e, do meio para o fim, algumas destacaram o “Wisque com
Red Bull”, muito consumido nas festas e encontros.
Essa apatia dos seguidores e figuras emblemáticas do pagode pode
influenciar cenários mais agravantes nas relações de gênero e consumo, tentando
sempre inferiorizar a mulher e torná-la objeto a ser consumido pelos homens. Não
perceber a influência das representações pode, além de tudo, ser um caminho para
a consolidação da violência patriarcal, presente na história da humanidade desde os
seus primórdios e hoje assume sua forma mais violenta, através do “ethos do
guerreiro”. Sobre essa violência falaremos no capítulo seguinte.
99

6 VIOLÊNCIA NO PAGODE BAIANO

Percebemos as relações de gênero e consumo no pagode baiano, quando


geridas pelo homem, como intresicamente atreladas ao conceito de “ethos do
guerreiro” (ZALUAR, 2004) – uma encarnação da cultura patriarcal aplicada aos
tempos atuais e que tem como premissas básicas a anti-solidariedade e a
competição violentamente agressiva. No padode baiano, essa violência é expressa
de duas maneiras: de um lado os apelos à competitividade e disputa entre os
homens, de outro o incentivo à violência simbólica ou mesmo agressões físicas
contra a mulher. Esse ethos, evidenciado nas letras das músicas e nas brigas entre
os seguidores do pagode ressalta frequentemente o machismo e o sexismo.
Seguindo os métodos aplicados aos capítulos anteriores: análise semiótica
das representações mentais das letras das músicas e amostra dos resultados da
pesquisa etnográfica, analisaremos como esse “ethos do guerreiro” se faz presente
no pagode baiano. Não trataremos da violência de gênero entre mulheres, pois,
elas, mesmo entrando em rivalidade, não costumam levá-la até suas consequências
máximas, como pudemos perceber em uma única briga entre duas jovens, durante
um show realizando em 2009, no final de linha do Vale das Pedrinhas, onde tudo
surgiu, basicamente, por “disputa de beleza” pré-existente. Elas se insultavam com
críticas ao cabelo da outra (“cabelo de mega escovado”), ao peso (“baleia”) ou
mesmo a um ex-namorado (“você hoje pega o lixo que eu joguei fora”), além disso,
as gírias que frequentemente passeiam nas letras da música do pagode eram
tomadas nas trocas de insultos, tais como “piriguete”, “ladrona” e “cachorra”. O que
foi iniciado com a troca de fapas, terminou mesmo em violência física, mas logo os
amigos e amigas apaziguaram a situação. As duas continuaram no pagode sem
ameças de continuidade da briga e sem desdobramentos do lado de fora. O que
certamente não acontece com os homens, como veremos.
A letra da música “Patinha24” de “Black Style” é um bom exemplo de
representação violentamente sexista:

24
Não há registro dessas músicas no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://letras.terra.com.br/black-style/1575664/> Acessado em 10 de maio de 2010. 10:29:18.
100

Robysão já pegou/
o Ramom pegou também/
o Jean engravidou tá esperando seu neném/
Netinho pegou de quatro/
Vitinho fez frango assado/
Fabinho sem camisinha pegou uma coceirinha/
O nome dela é Marcela eu vou te dizer quem é ela/
Eu vou te dizer quem é ela/
Ela, ela ela é uma cadela/
Ela, ela, mas ela é prima de Isabela/
Me dá,me dá patinha (...)
Me dá sua cahorrinha

A letra trata de uma mulher que foi “consumida” pelos membros do grupo,
cada um deles “usando-a” em uma posição diferente no ato sexual e tendo até
mesmo frutos dessa relação, tal como um filho e uma doença sexualmente
transmissível – “coçeirinha”. A banalização neste caso foi tão ampla, que a mulher é
representada como um animal no cio: uma “cadela” ou “cachorrinha”. Essa é
estratégia de completa fragmentação do corpo feminino, para então desqualificá-lo e
justificar até mesmo a violência física - por isso, as representações não deixaram de
contemplar essa dimensão - como na música interpretada pela banda “Leva Nóis”:
“Pancadinha25”, que contém os seguintes versos:

Dá, dá, dá/


Dá pancadinha/
Ela gosta de.../
Leva!/
Eu gosto você gosta/
Ela gosta ele gosta/
Dá, dá, dá/
Dá pancadinha/
Pancadinha, pancadinha (...)
Ela gosta de tomar pancadinha/
Ela gosta de...
Uma pancadinha/
Duas pancadinhas eu disse/
Três pancadinhas/
Estou ficando fraco/
Cansado mainha.

De tanto bater, ele se cansou. O legi-signo aqui determina que ele gosta de
bater e ela de apanhar. A violência é então atributo dos homem que podem usá-la a

25
Composição de Ueldon Nascimento Pereira e Djanilton Carvalho dos Santos. ISWC: T-039.236.134-0.
101

seu bel-prazer contra as mulheres. Outras canções, inclusive as mais antigas,


apelam para a violência física, tanto ligada ao ato sexual, como é representada na
letra de “Tapa na cara” da banda “Pagodart” em sua antiga composição grupal;
como na naturalização das pancadas na música da banda “Leva nóis” já
interpretada; ou como a banda “É Xeke” que desfere a letra de “Toma sua ladrona26”
Eu tava na festa você me enganou/
Bebi demais você me roubou/
Vai pagar negona/
Agora toma, toma, toma/
Toma sua ladrona.

Esse “toma sua ladrona” é um quali-signo, porém concebido em uma situação


concreta representada como roubo (sin-signo), que, consequentemente, gera um
legi-signo: se você me roubou, tenho que retaliar, por isso, “toma...”. Essa
representação faz com que percebamos que ser homem significa, muitas vezes,
retribuir uma ação julgada como errada ou agressiva, com uma violência ainda
maior. Ambas: banalização e violência física muitas vezes se completam e sempre
estão presentes nas representação das letras, ora separadas, ora associadas.
Todos esses símbolos da masculinidade produzidos nas letras da música
qualificam o guerreiro: insensível, anti-afetivo, impessoal e violento. Porém esse
ethos marcado não é apenas um signo que frequentemente aparece nas letras; ele
se materializa nas atitudes dos seguidores do pagode, sendo a mais corriqueira a
briga entre os homens nas festas, onde presenciamos, ao longo da pesquisa
participante pancadarias e troca de insultos. As brigas entre os homens ocorriam
sempre por disputa territorial de grupos rivais nos bairros ou, mais comumente, por
mulheres. Em uma das festas ocorrida em um largo no bairro da Chapada do Rio
Vermelho ocorreu até mesmo troca de tiros entre esses grupos rivais e uma pessoa
foi assassinada. Devido a essa violência, a prática das festas foram sucumbindo e
quando aconteciam geralmente era sobre forte vigilância da polícia e com hora
marcada para o fim.
As brigas por mulheres era mesmo o principal motivo das agressões. Os
homens quando frequentavam às festas com suas companheiras, quase sempre
estavam prontos para a briga caso elas fossem importunadas. Por inúmeras vezes

26
Não há registro dessas músicas no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://www.filestube.com/95fcd22787e2659a03ea,g/Mc02-%C3%89-XeKe-Toma-Sua-Ladrona-mANoeL-dO-
cAVacO.html > Acessado em 20 de junho de 2010. 10:18:18.
102

ouvimos nas conversas entre os amigos a seguinte afirmação: “se alguém mexer
com minha nêga, eu nem tiro pergunta, meto logo. Tirar pergunta é coisa de viado”.
Assim, no meio da multidão, homens desacompanhados que circulavam pela festa,
ao se encantar por uma mulher e cortejá-la, eram, sintomaticamente, agredidos
pelos companheiros delas. Na maioria dessas situações, os que tomavam a
iniciativa da paquera nem mesmo percebiam que as mulheres estavam
acompanhadas, sendo surpreendidos por socos ou agressões verbais. Geralmente
quem era vítima da violência estava acompanhado por um grupo de amigos e que a
perpetrava também, daí uma grande briga coletiva era gerada, com socos e
pontapés para todos os lados. Quando essas confusões não ocorriam dentro da
festa, devido a ação de seguranças ou policiais que as coibiam, ficam guardadas
para se completar do lado de fora ou quando a festa terminasse.
Os/as seguidores/as do pagode e as figuras emblemáticas também revelam
informações relevantes sobre a violência exercida pelos homens. Várias
demonstrações de violência foram destacadas pelos participantes dos grupos focais.
A iniciativa de falar sobre violência surgia sempre dos/as entrevistados/as,
basicamente nos primeiros dez minutos de entrevista e constantemente associada à
redução das festas e shows nos quatro bairros, em função desse grave problema.
As discussões sobre o tema se ampliavam a tal ponto de chegar a debates mais
intensos sobre violência contra a mulher; brigas entre homens; agressões, na forma
de disputa entre músicos de grandes bandas e até mesmo das bandas nos bairros.
Uma das integrantes do segundo grupo feminino, revelou que “inúmeras
vezes a galera tinha que sair correndo ou se jogar no chão para não levar tiro nos
regues pelo bairro, onde eu moro mesmo, lá na Santa Cruz, a gente vemos de tudo,
de porrada a facada”, revela ela. Todas as outras desse mesmo grupo fizeram
outras afirmações de violência nas festas. Uma delas, moradora do Vale das
Pedrinhas, revela que “as brigas, na grande maioria das vezes ocorre por causa de
cachaça, mulher ou droga, os cara, já de cara cheia ou muito louco de droga, ficam
se achando e por qualquer coisa querem bater, brigar ou matar os outros”. Já outra
participante, moradora do Chapada do Rio Vermelho, diz que, depois do aumento
das brigas, a polícia começou a ficar mais presente nas festas, mas de acordo com
ela nada foi modificado porque:
103

[...] primeiro que eles não fica o tempo todo na festa, e na primeira
saída o tráfico começa a rolar ou os desordeiro começa a procurar
tumulto, segundo que às vezes eles são mais violentos que o
pessoal que tá a fim de briga batem no primeiro que eles querem,
uma vez eu tava com meu ex-namorado na festa lá na Chapada, ele
saiu pra pegar uma cerveja e eu tô vendo um tumulto, quando eu
olho a polícia batendo nele, na maior covardia [...] o cara não fez
nada, tanto que eles deixaram ele lá e foram embora e agente teve
que ir pra o hospital porque ele ficou com o rosto sangrando. Então a
gente tinha até medo da polícia nos pagode aqui da área.

Uma moradora da Santa Cruz, participante do primeiro grupo, conta que foi
por duas vezes vítima de agressões por parte dos homens no show, uma verbal e
outra física, ela afirma ainda que “partiu para a briga também”.Segundo ela na
maioria das vezes isso acontece pois os homens não se conformam em serem
rejeitados pelas mulheres, em suas palavras
[...] um cara mesmo veio num show cheio de conversa fiada pra meu
lado, me queixando, e eu me saindo, aí ele pegou uma latinha e veio
me dar, eu aceitei, daqui a pouco tá ele passando a mão em mim, eu
disse: rapaz não me pegue não, vamo curtir a festa de boa, ele olha
pra mim e diz: você é muito tirada, eu disse tirada não, só não tô a
fim de nada com você, ele pega e diz de novo: você fica aí tirando
ondinha e não tem dinheiro nem pra pagar uma latinha eu peguei
joguei a latinha nele e ele veio pra cima e a gente começou a brigar,
mas a galera logo separou”.

Presenciamos também, na observação participante, uma ação violenta


perpetrada por um homem a uma mulher. Durante um “regue”, como costumam
chamar os encontros sociais embalados pela música do pagode baiano, ele tentou
por várias vezes cortejar uma mulher, que o rejeitava. Com o passar das horas - e o
aumento do consumo de bebidas alcoolicas - ele faz a última investida e mais uma
vez ela se recusa a “ficar” com ele, afirmando ser casada. Ele questionou “casada
no regue?” Ela respondeu de forma mais ríspida evidenciando a rejeição e ele a
agrediu verbalmente, quando ela retribuiu os insultos, o homem a agrediu
fisicamente sendo contido por seus amigos e, logo após, desferindo palavrões
contra ela, enquanto a mulher chorava e era consolada por suas amigas, que
ligaram para a polícia. Minutos depois, os policiais chegam e o agressor já havia
evadido do local. A mulher passou a dar as características físicas do homem e um
dos policiais interrompeu dizendo “não podemos fazer nada por você, o que você
está fazendo num ambiente desses uma hora dessas? Se não queria passar por
104

isso ficasse em casa, agora vamos embora que precisamos prender bandidos” e
realmente partiram.
As figuras emblemáticas do pagode não consideram que as letras das
músicas influenciam na violência machista. Eles pensam que ela é fruto “das
mundanças no mundo, no aumento do consumo da droga como o crack e a cocaína
e na desestruturação das famílias” expressou-se o músico de uma famosa banda,
entrevistado individualmente. Uma das mulheres do fã clube da banda de pagode
entrevistada coletivamente apresentou seu ponto de vista comentando que
A violência vai muito da televisão e não do pagode, na minha
infância, por exemplo, eu assistia a desenhos bem menos violentos e
hoje tem desenhos para crianças com lutas tão violentas que sai até
sangue, então o pagode pode até falar numa letra que é pra o cara
bater, mas isso tudo só acontece por causa da televisão.

Outro participante, da mesma entrevista com as figuras emblemáticas alertou que


[...] não só os desenhos estimulam a violência, mas também
programas pra adulto, como ‘se liga bocão’, que só mostra terror,
corpo estirado no chão, até mesmo os seriados de aventura hoje na
globo mostram muita violência, tiro e tudo mais, depois de uns filmes
como Carandiru, Cidade de Deus e Tropa de Elite, tudo mudou na
violência.

As figuras emblemáticas reconheçem as representações da violência contida


no pagode como um reflexo da violência promovida nos meios televisivos, que
desde a infância mostram para as crianças esse “ethos do guerreiro”. Eles
comentam os programas classificados para adultos em duas emissoras, mas não
falam das letras como uma violência entre homens e dos homens para as mulheres.
Fugindo às concepções dos comentários, duas das participantes dos grupos
focais afirmaram que seus companheiros amorosos já “sairam na mão”, ou seja,
brigaram com outros homens por causa delas em festas, shows ou nos espaços de
sociabilidade dos/as seguidores/as do pagode. Cinco homens entre os dois grupos
masculinos disseram ter se envolvido em brigas por causa de mulheres, às vezes
como namorados, outras como cortejador que acabou “queixando” a mulher do
outro. Um deles, morador da Chapada do Rio Vermelho, pertencente ao segundo
grupo, narra que em show isso é completamente possível, pois, “a gente não sabe
que a mulher tá acompanhada (...), quando um cara vem me dar uma ideia da
mulher dele, eu digo: velho, bota uma placa pra dizer que é sua, acho que por isso
que eu já briguei uma duas ou três vezes com uns caras”. Quando perguntados se
105

essas brigas são facilmente apaziguadas e acabam naquele local mesmo, eles
dizem que “às vezes sim, às vezes não, mas sempre fica a rêxa. O cara acaba
ficando com aquilo na mente, aí ou ele fica inimigo mesmo do outro cara, ou eles
leva mais a sério e pode sair porrada ou até mesmo morte, como eu já vi.”, revela
um participante do primeiro grupo, morador do bairro da Chapada do Rio Vermelho.
Aindo outro, do segundo grupo, morador do Nordeste de Amaralina, intervém após
esse depoimento e diz que isso leva até mesmo à
[...] brigas com os camarados, parceiros do cara que tá com uma
mulher, e os amigos do outro cara, aqui rola muito disso, aí fica
rivalidade entre uma rua e outra, uma vez mesmo os caras da São
Lorenço (rua pertencente ao bairro da Santa Cruz), só me deixaram
passar porque um brother me conheceu e gritou, ‘esse menino é
gente nossa, deixa o cara em paz’, aí eu passei, mas tudo isso entre
duas galeras por casa de uma mulher.

Sobre esse assunto das brigas por mulheres, todos os homens dos dois
grupos falaram a vontade, sempre com muita riqueza de detalhes e vários
depoimentos evidenciando a violência. Interessante notar que um dos homens do
primeiro grupo focal comenta que uma música mais embalada em uma festa pode
até gerar empurrões que acabam em briga, mas, para ele “isso vai muito da pessoa,
se um cara vai para um regue com a cabeça com coisas ruins, ele vai brigar, se ele
tá a fim de curtir mesmo, vai ficar de boa”.
Em nenhum dos grupos houve comentários sobre briga entre mulheres por
causa de homens, quando perguntados, os/as entrevistados/as afirmaram
desconhecer.
Tratando da violência masculina contra a mulher, questionamos se as
músicas incentivam, de alguma maneira, essa violência, as figuras emblemáticas do
pagode afirmaram que
Jamais. As letras brincam e só falam de coisas simples, que ao me
ver não é violência, como na cama um homem dar umas
pancadinhas na mulher, isso a mulher sempre gostou, só não podia
revelar antes por que a sociedade é cheia de preconceitos, eu vejo
isso de forma positiva, por que a mulher agora pode dizer que gosta
de apanhar, mas só no sexo.

Uma das mulheres do segundo grupo, moradora do Nordeste de Amaralina


lembra da música “Tapa na cara”, cantada por “Pagodart”, ela afirma que,
Tem mulher que gosta de apanhar mesmo, mas apanhar como diz a
música antiga que Chela do “Pagodart” canta: “Tapa na cara”. Acho
que as letras do pagode falam em bater nesse sentido, mas não
106

como agredir ou matar a mulher. Então é o prazer na hora do


“balacobaco”, que tem muitas mulheres que gostam e até pedem
mesmo para o cara bater nelas na hora “H”, mas não vejo muita
maldade nisso, acho apenas que brinca com uma coisa que é
verdade mesmo.

Porém, quando questionados/as sobre uma situação oposta, os homens


declararam não gostar de apanhar. Quanto tratamos desse mesmo quisito nos
grupos focais, todos, homens e mulheres, emitiram respostas coincidentes,
asseverando que isso é “coisa de homem que gosta de homem”, revela um dos
participantes do primeiro grupo, morador da Santa Cruz. As mulheres seguem a
mesma linha de racionínio: “as pessoas falam por aí que homem que gosta de
apanhar na cama é viado. Eu mesma não queria um homem desse pra mim, ia logo
desconfiar que ele prefere outra fruta” afirma a participante do segundo grupo,
moradora da Santa Cruz.
Como vimos, os seguidores do pagode não admitem que as “pancadinhas”
representam violência física, os heterossexuais atribuem somente a eles o poder
para usá-la, e, mesmo em uma situação onde a um “tapa” não é significado por eles
como violência, jamais aceitariam recebê-lo da mulher.
A violência não se limita às relações homem-mulher. Os policias estão
presentes entre muitas das manifestações do pagode baiano. A letra da música
“Chama a Polícia27”, da banda “Black Style” contem os seguintes versos:

É carnaval, aqui na Bahia/


Os valentões que treinam boxe todo dia/
Chega na Barra, vandalizar. (A polícia vai descer...)/
Desce a madeira, madeira, madeira, madeira (...)
Se a polícia chegou. (Vou mandar descer a madeira)/
Ou se liga meu irmão. (Vou mandar descer a madeira)/
Você é valentão. (Vou mandar descer a madeira)/
Vai procurar confusão. (Vou mandar descer a madeira)/
La vem a guarnição. (Vou mandar descer a madeira)/
Madeira, madeira, madeira, madeira/
(Madeira, madeira, madeira, madeira).

Penetrando nas imagens mentais produzidas por essa música, percebemos a


violência policial como um símbolo naturalizado, quer dizer, se os policiais
perceberem desvios de conduta por parte dos seguidores do pagode, estão aqui
autorizados a “descer a madeira”. As representações nas letras e os

27
Composição de Ueldon Nascimento Pereira e Djanilton Carvalho dos Santos. ISWC: T-039.401.897-3.
107

comportamentos expressos pelos seguidores do pagode, apresentam-se


hierarquizados. Nessa hierarquia, a mulher ocupa a base não sendo – talvez por
proibição – violenta; no centro está o homem, que pode ser violento contra os seus
inimigos e as mulheres, mas nunca contra os do topo da pirâmide. Acima da
autoridade violenta dos homens, está a policial que, se desacatada, é crime e leva à
cadeia ou mesmo à morte. Mas, a violência que lhes é permitida, principalmente
contra a população mais pobre, ocupa posição privilegiada na hierarquia do “ethos
do guerreiro”.
Em cinco situações observamos a ação da Polícia Militar realizando
abordagens em postos de combustíveis. Quase sempre muito agressivos, eles
revistam suspeitos, colocando-os na parede e apalpando suas roupas. Não foi
observada nenhuma abordagem às mulheres, apenas os homens, em sua maioria
negros - eram, como eles mesmos nomeiam “baculejados”, ou seja, averiguados.
De forma naturalizada, a violência aparece nas representações e são sempre
imputadas às relações entre homens. As letras deixam deflagar que as relações
entre eles são sempre permeadadas por ameaças de violência física, diferente dos
signos sobre as relações homem-mulher, que escamoteia a violência.
As representações da indiferença e violência nas relações de gênero
(homem-mulher, homem-homem) contidas nas letras do pagode emitem legi-signos
da masculinidade concebendo imagens mentais que se aproximam de um código de
conduta masculina. Sumariando esse código: cabe aos homens serem “guerreiros” e
“bichos soltos”, atendendo os padrões normativos da masculinidade onde não
devem jamais “vacilar na quebrada”, “ser ‘caguete’”, “alemão”, “fura olho”, “traíra”,
“otário”, “vacilão”, “Zé Mané”. Como uma bem organizada representação de um
sistema disciplinar, a punição é asseverada nas letras que sentenciam penas, como
as aplicadas ao “Alemão28”, música de “Ed City”

Alô minha favela bote o lanternão/


Porque os alemão tão querendo invadir/
Se invadir vai cair/
Se invadir vai cair/
Não bote a cara alemão/
Que você vai ser pego na cocó/
Na cocó/
Na cocó/
Além da quebrada.
28
Composição de Luiz Batista de Souza Ricardo. ISWC: T-039.433.926-4.
108

Mesmo com tendência a apresentar aspectos mais indiciais e icônicos, os


símbolos não conseguem ficar ocultos nessa música, e a ideia de que “se o alemão
invadir vai cair, [...] vai ser pego na cocó” demonstra a sentença final a um inimigo,
que pode ser entendida como assassinato. Outra música sugere representação
similar: “Fura olho29” da banda “A Formulla”, ela assevera a sentença, dessa vez, do
“vacilão”:

Vou falar só mais uma vez/


Tá vacilando na quebrada/
Seu circo se fechando e você/
Ta pensando que é o que/
Vacilão/
Ta pensando que manda em que/
Vacilão/
Se ligue na minha idéia/
Eu sou bicho solto/
Se ligue meu irmão/
Fura olho(...)
Você tá marcado/
Seus dias contados/
Aqui o bagulho é doido.

As imagens mentais produzidas por essa música nos mostram um “bicho


solto” que informa ao “vacilão” / “fura olho” que ele está com os dias contados.
Quem se encontra nessa situação está, portanto, condenado à morte. Então, os
“bichos soltos” são justiceiros, disciplinadores, cumpridores das sentenças para
aqueles que vacilam e descumprem o código de conduta da masculinidade. Vemos,
nesse caso, mais um legi-signo que institui a violência como um símbolo da
masculinidade. Falta a essas duas letras a indicação dos métodos e recursos para
efetivar as punições, que são expressos em outras músicas.

“Perdeu pai30” da banda “No Stylo” apresenta signos indiciais da vingança e


punição, que leva a signos indiciais dos métodos de tratamento aos “vacilões”.

Ficou pequeno/
Ficou estreito/
Perdeu pai (...)

29
Composição de Miguel Cordeiro Orbe. ISWC: T-039.194.051-4.
30
Composição de Carlos Magno de Santa’anna e Fagner Ferreira dos Santos. ISWC: T-039.442.489-5.
109

O cara mudou de morada/


Ficou devendo ao buteco da esquina/
Todo mundo tá a sua procura/
Vacilou na quebrada/
A galera tá em cima/
Pegou em emprestado por quê?/
Pegou fiado por quê?/
Eu lhe disse que a gente ia se bater/
Perdeu pai (...)

O legi-signo continua a apontar para a violência masculina na música, informa


o método: “a caça”, “a procura”, onde o devedor “perdeu” – não se sabe ao certo o
quê – mas a dívida foi vingada de forma indicialmente coercitiva ou agressiva; mas a
técnica não é expressa, fica a cargo dos sentimentos do interpretante dinâmico e
final julgar o que aconteceu.

Buscando encontrar as técnicas de execução do código de conduta aplicada


aos inadaptados das letras do pagode baiano, recorremos a uma música que dá
uma pista ainda maior, de como são punidos os desvios de comportamento. A
música é “Traíra”, de “Ed City”:

Cara de santinho/
Dizia ser irmão/
Mas já diz o ditado/
Quem vê cara não vê coração/
Traíra, traíra você tá na mira (...)
Andava entre os leprosos/
Pregando a união/
Fui beijado no rosto/
Tremenda traição/
Traíra, traíra você tá na mira (...).

No caso dessa letra o símbolo da execução fica mais evidente. A mira é um


recurso visual aplicado a uma arma, que pode ser um estilingue, uma flecha, uma
arma de fogo ou mesmo um canhão. Outro símbolo que retrata uma técnica eficaz
do código de conduta é a música “Pá pôko31” da banda “Swing do P”:

Ele chegou no pagode mostrando seu passo/


Só pra se exibir/
Achando que estava abalando/
31
Não há registro dessas músicas no banco de dados do ECAD. Sua letra está disponível em:
http://letras.terra.com.br/swing-do-p/1587163/> Acessado em 02 de janeiro de 2010. 10:25:39.
110

E vei se jogando pra cima de mim/


"Vem com sua leotria/
Se achando a senssação/
Verdadeiro zé mané/
Otario vacilão"/
"Mas não queira cair no plantão/
Pois o meu sistema é doloroso/
Pá pôko pá pôko/
E se cair no plantão vai levar murro olho/
Pá pôko pá pôko".

Essa letra reproduz signos da violência masculina. Ao descrever uma


situação, em uma festa, onde um homem que observa expressa sua fúria contra o
outro que aparentemente está se divertindo, “se achando com sua dança”, ao colidir
com o observador – provavelmente sem querer – é agredido verbalmente e
ameaçado de “levar murro no olho”, mais uma manifestação do sistema disciplinar
delineado a partir do código de conduta do “ethos do guerreiro”.
Essas letras que representam a competitividade, insensibilidade e excessiva
violência machista encontram grandes similaridades com a realidade cotidiana. Tal
afirmação se baseia na descrição que fizemos sobre as brigas nas festas, que se
desdobram nas ruas e envolvem os grupos que se rivalizam.
Essa violência machista vai além das rivalidades entre os seguidores,
penetrando nas bandas e representado nas letras que costumeiramente desferem
refrões de teor agressivo contra o outro e, logo, geram respostas, descritas por um
dos entrevistados, morador do Vale das Pedrinhas, como uma “tremanda ladainha,
“que nem a música ‘toma lá, da cá’ de “Swing do P”.
Ao interpretarmos as falas dos/as seguidores/as do pagode articulando-as a
análise semiótica das músicas, percebemos então que há uma intrínseca ligação
tanto nas representações, quanto nas incorporações dos signos, de atribuição da
violência aos homens. Sem dúvida, essa é mais uma confirmação da permanência
dos valores patriarcais na sociedade, através do “ethos do guerreiro”.O que
podemos perceber pela leitura de algumas falas, é que a hierarquia estabelecida nas
relações de gênero é vivida como natural. Assim para um dos entrevistados, “o
pagode é feito por homens [...] prevalece a superioridade masculina, mas pelo fato
de ter sido feito por homem”.
111

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa nos possibilitou um olhar ampliado sobre as relações de


consumo e gênero tecidas pelos seguidores do pagode baiano. A partir da interação
entre a discussão teórica, análise das representações, observação participante e as
falas dos seguidores e figuras emblemáticas, os fenômenos – muitas vezes ocultos
ou escamoteados à nossa mente – foram se elucidando e se mostrando, permitindo
uma maior captação. Mais do que um estudo teórico e uma pesquisa composta por
métodos e técnicas, temos aqui uma denúncia das práticas que precisam ser
desconstruídas em prol de relações mais salutares entre os gêneros e da reflexão
sobre as condutas de consumo.

Reconhecemos o lugar que o pagode baiano ocupa na vida dos seus


seguidores e das figuras emblemáticas, que se entregam a essa espécie de samba
a ponto de as imagens emitidas a partir da música se confundirem com a vida real e
vice-versa, além de representar para muitos significativos momentos de alegria
diante das agruras da “vida dura” que levam. Temos que respeitar também a
identificação dos seguidores com a música, que para muitos representa o bairro, as
relações ali tecidas, e faz com que as pessoas de fora passem a conhecer e
respeitar a “favela” ou o “gueto”, como preferem chamar. O pagode baiano compõe
a história social e cultural desses moradores, tanto quanto o funk perfila a identidade
dos jovens nas favelas do Rio de Janeiro e influencia diretamente na construção das
identidades individuais e coletivas.

Percebemos que, desde as raízes, o pagode baiano é identificado como


música que representa os moradores dos bairros populares: sua realidade,
imaginário, trabalho e identidades. Enquanto produção da cultura, história, memória
e arte, o pagode tem dado a sua contribuição. Porém, em uma perspectiva
antropológica, sociológica e política, tem servido para sustentar habitus
consumistas, sexistas, machistas e violentos típicos de uma cultura patriarcal que
atualmente ganha significação direta no arquétipo de “ethos do guerreiro”.
112

As manifestações que recriam a cultura de consumo e as relações de gênero


são diversas no pagode baiano. No que diz respeito às perspectivas da cultura de
consumo podemos mencionar a efemeridade das músicas e bandas, acompanhada
pelos apelos ao consumo de vestimentas, estilos de vida e da mulher como objeto.

Quanto às bandas, percebemos que sua existência tem data marcada.


Podem até ressurgir em um momento futuro, mas precisam de grande capacidade
de renovação para conseguir esse feito “heróico”. O mesmo se dá com as letras,
que, por exemplo, não perduram de uma estação do tempo para outra: a cada uma
delas, uma nova canção ocupa o lugar da velha, do verão para o inverno, no mínimo
três canções ou bandas já desapareceram, quando esse número não é maior ainda.
Podemos verificar entre o verão e inverno de 2010, que as de destaque durante o
carnaval, caíram em desuso e deram espaço para outras que estão no auge do
momento. As músicas ficam na memória dos seguidores para raramente serem
consultadas, pois, para eles e elas o que importa é o prazer imediatista, porém
efêmero, que elas proporcionam.

As letras das músicas também criam moda, a cada temporada uma banda
acaba interferindo nas perspectivas de consumo estimulando a compra de veículos
e influenciando o uso de acessórios tais como aparelhos de DVD, equipamento de
som potente no porta-malas, teto solar, estabelecendo até mesmo uma hierarquia do
consumo com direito a premiação: quem tiver mais leva como “brinde” uma
“piriguete”, figura feminina que, de acordo com os seguidores do pagode “está a
perigo”, arquétipo da mulher fácil, que se deixa seduzir pelos símbolos do consumo
que um homem demonstra ter.

Até mesmo os espaços de sociabilidade dos seguidores do pagode são


referendados nas músicas, sendo atualmente os postos de combustíveis os mais
indicados nas letras. Nestes locais, os seguidores são exortados a “largar o som”,
quer dizer, aumentar bem o volume dos aparelhos veiculares e “comer água”, ou
seja, consumir de bebidas alcoólicas – cervejas ou wisques com Red Bull,
preferencialmente.

No ritmo do consumismo, percebemos que as seguidoras do pagode


internalizam a estetização do corpo da mulher representada nas letras do pagode
baiano. Os cortes e a aplicação de produtos de cabelo, bem como as roupas que
113

quase sempre “desenham” a genitália, ou, durante as danças deixam aparecer


peças íntimas são as principais evidências da internalização. Muitas músicas mais
parecem como um receituário a ser seguindo pelas mulheres, determinando
sanções disciplinares àquelas que descuidam de algum dos itens estéticos, que tem
como resultado sua não aceitação pelos homens e desassociação dos grupos das
mulheres que cumprem as regras. Além dos cuidados com o cabelo, as letras
descrevem os padrões tidos como corretos de cuidado com o corpo, apontando
sempre para a frequência a academias e centros de estética como locais adequados
para manter a beleza.

Tanto nas letras, como nos estilos de vida das figuras emblemáticas e dos
seguidores do pagode, existe uma intercomunicação muito forte entre os
comportamentos de consumo e as relações de gênero.

Lembramos as identidades de gênero –masculina e feminina - como um


processo culturalmente construído dentro da dominação patriarcal, dominação
assentada sobre o uso e abuso da força. O próprio conceito de gênero aparece nos
estudos feministas como uma categoria analítica e histórica que investiga a cultural
patriarcal e os papéis atribuídos aos homens e as mulheres.

Próprio da cultura patriarcal é o uso do corpo feminino como objeto de prazer


ao serviço do homem. Com as imposições estéticas e as concepções economicistas
de uma mulher “interesseira”, o corpo feminino passa por um processo de
estetização, que o fragmenta, para então ser consumido banalmente pelo homem.
Assim, as letras do pagode descrevem a mulher como “cachorra”, “piriguete”,
“ladrona”, etc., e fazem alusões a sua genitália como “rachadinha”, “apertadinha”,
“xana”, “tcheca”, “tabaco”, entre outras. Os homens entrevistados acham que elas
têm sempre que estar bonitas, fazendo agrado a seus olhos, enquanto as mulheres
também pensam em atender aos apelos estéticos frequentando a academias e
centros de embelezamento, para ficarem “gostosas”.

O “ethos do guerreiro” é um arquétipo que traduz a cultura patriarcal nos dias


atuais. Esse ethos se faz presente em atitudes masculinas ligadas à violência contra
mulheres e outros homens. Através dele, a vida associativa se empobrece e falta de
solidariedade, bem como a insensibilidade se fortalecem. Todos podem ser
“alemães”, quer dizer, inimigos, não há espírito de cooperação, nem tampouco de
114

comunidade entre eles. Estão sempre dispostos a matar e não possuem medo de
morrer, afinal nada têm a perder.

A briga entre grupos rivais, em show, festas, bares e postos de combustíveis,


demonstram o “ethos do guerreiro” entre os seguidores do pagode baiano. O
simples ato de pisar no pé do outro, mesmo sem querer, pode causar um pancadaria
coletiva, entre os “parceiros” dos envolvidos na ação, a tal pode de acabar em
socos, lesões e - em últimas instâncias - assassinatos. O léxico dos seguidores do
pagode denota as emoções que esse ethos causa. Para eles, é prazeroso ser “bicho
solto”, “miseravão”, “brocador”, “putão”. Em suas relações revelam descompromisso
e falta de apego sentimental, sendo vantajoso apenas “pegar” e “comer” suas
companheiras, que são facilmente descartáveis. Um código de conduta e um
rigoroso sistema disciplinar para os que não o cumprem são delineados nas letras
do pagode - as letras tratam de tiros, socos e “porradas” a todos que se desviarem.

Não há como fazer conclusões fechadas sobre como o pagode recria as


identidades de gênero reforçando as relações patriarcais de dominação. O fator
diversão existe como o fator dominação também, fato explícito nas representações,
nos depoimentos e no cotidiano observado.

O pagode é um produto da cultura, e como toda manifestação da cultura não


pode ser visto como inferior ou superior a outras produções musicais. Contudo, a
cultura pode apresentar, no seu bojo, ideologias racistas, machistas e sexistas e
disseminá-las para os seus membros, que tem permanente necessidade de
aceitação e assumem essas ideologias como método para não ser excluído dos
grupos culturais a que pertencem. A maioria deles sequer se ocupa de refletir sobre
essas ideologias e é nesse sentido que fizemos uma reflexão sobre o papel da
música do pagode na recriação das identidades de gênero e a ressignificação da
cultura patriarcal.

A ineficácia das instituições educativas diante da cultura patriarcal possibilita


a manutenção desse sistema histórico e ideológico. As escolas, especialmente as
públicas, que favorecem aos moradores desses bairros não têm contribuído para a
reconstrução das identidades. Mas elas não são culpadas sozinhas, as políticas
públicas da educação, o currículo escolar, a legislação educacional, os programas e
115

projetos do Ministério da Educação não apresentam, historicamente, objetividade


para contribuir na desconstrução do “ethos do guerreiro”.

O “ethos do guerreiro” não é inato aos jovens, é aprendido na comunidade e


nas famílias. Assim a educação formal necessita dar sua contribuição para
aprendizagens mais significativas, que valorizem as formas associativas e éticas das
relações sociais, e colabora para que as crianças e jovens para desenvolvam
condutas de consumo e relações de gênero diferentes.

O sistema penal tem sido priorizado para disciplinar os casos de violência,


condenando um número cada vez maior de homens a cumprir penas reclusivas. Se
o sistema educacional fosse priorizado, o governo brasileiro teria mais recursos
disponíveis para investir em outras políticas prioritárias, pois o sistema penitenciário
seria desonerado. Percebemos que uma tendência governamental do nosso país é
remediar a prevenir. Enquanto não investir em uma ampla reformulação educacional
o Estado será cúmplice nas mortes de homens e mulheres em nome do “ethos do
guerreiro”.

É preciso que o Estado priorize o setor educacional, investimentos na


formação de professores e gestores, na estrutura física das escolas, na
reformulação curricular, em diretrizes quem tratem das relações de gênero e
busquem enfocá-las desde o currículo da Educação Infantil à Superior. Contudo a
educação não é panacéia, não resolverá todos os problemas apresentados nessa
pesquisa, pois necessita de articulação com outras políticas socais. Porém sua
contribuição é inestimável. Portanto, para revolucionar essas relações cotidianas de
consumo e gênero, não há como fazer uma mudança que venha pronta de fora para
dentro dos bairros, é preciso modificar as relações cotidianas. A educação está na
base das relações cotidianas, por isso entendemos que ela precisa ser priorizada
nas ações para reduzir os impactos nefastos da cultura patriarcal e de consumo.
116

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