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Uma Leitura de Da Glória e Da Presunção... Montaigne
Uma Leitura de Da Glória e Da Presunção... Montaigne
Tese de Doutorado
Ficha Catalográfica
CDD: 900
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410556/CB
A Sergio Cardoso pelo grande e decisivo auxílio que suas reflexões sobre os
Ensaios forneceram para a realização deste trabalho e a todos os colegas do
departamento de filosofia da USP, que integram o grupo de estudos de ética e
política no Renascimento.
A Danilo Marcondes que em seus cursos sobre a tradição cética tanto ampliou
minhas perspectivas.
PALAVRAS-CHAVE
Montaigne; humanismo; Petrarca; glória; autoretrato; ceticismo.
ABSTRACT
In the first page of his Essays, Montaigne turned directly to his readers to
declare his purpose of representing himself in his most simple and ordinary way.
The purpose of the autoportrait leads him to admonish: “je me suis proposée
aucune fin que domestique et privée. Je n`ay nulle consideration de ton service ny
de ma gloire”. His private style represents a newness in that time, forming a
contrast with the general practice of humanist authors of exhibits their erudiction,
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serving the public instruction and make himself imortals, occupying the position
of wisdon models. Our intent here is investigate that newness character of
Montaigne`s work in the perspective of that peculiar motivations and procedures
of the autoportrait, taking for object his critic of humanist`s gloria theme. That
critic marks his distance of the humanists ideals and of the modes which regulates
the traditional patterns of relationship between author and reader in the
Renaissance, founded in the author desire of instruct and glorify himself and in
the disposition of the reader to learn and eulogize the author. To accomplishe our
purpose, we anlyze here the course of Montaigne`s reflection in De la gloire,
where his negative perspective of the ambitions takes the most expressive form,
and De la praesumption, which follows De la gloire, with a autoportrait for
theme, against the ambition of aggrandize himself.
KEYWORDS
Montaigne; humanism; Petrarch; glory; autoportrait; scepticism
SUMÁRIO
1. Introdução 10
2. A idéia de glória no Ocidente e seu elogio na cultura do
Renascimento 22
2.1 A glória em suas diversas acepções e formas da
Antigüidade à Renascença 22
2.2 A emergência dos studia humanitatise o culto
à glória das letras 39
2.3 Os postulados do elogio humanista da glória:
a valorização da dignidade humana 45
2.4 As ambigüidades da reflexão sobre a glória 52
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6. Conclusão 195
1
“Cette capacité de trier le vray, quelle qu`elle soit en moy, et cett`humeur libre de n`assubjectir
aisément ma creance, je la dois principalement à moy: car le plus fermes imaginations que j`aye, et
generalles, sont celles qui, par maniere de dire, nasquirent avec moy. Elles sont naturelles et toutes
miennes. Je les produisis crues et simples, d`une production hardis et forte, mais un peu trouble et
imparfaicte; depuis je les ay establies et fortifiées par l`authorité d`autruy, et par les sains discours
des anciens, ausquels je me suis rencontré conforme en jugement: ceux-là m`en ont assuré la
prinse, et m`en ont donné la jouyssance et possession plus entiere.” MONTAIGNE, Ensaios, II,
17, p. 658.
11
nos preceitos da sabedoria helênica, a glória era antes um dos mais graves vícios:
sinal inequívoco da insensatez dos homens. A reincidência desse tema, assim,
possibilitando um diálogo com os valores ligados ao ideal humanista da dignidade
humana, promovia também um rico contraponto, no interior do qual se revelavam
as próprias idéias de Montaigne em sua atitude de desconfiança em relação às
potencialidades da razão e em sua aversão natural a qualquer espécie de vaidade e
presunção.
A crítica da glória assim, operava também no sentido de consolidar e de
destacar um significado ético positivo à sua decisão da renúncia aos cargos
públicos a partir de 1571, aos 38 anos de idade. De fato, tratava-se de conduta
bastante incomum para um membro da nobreza togada da França, à qual cabia
ocupar as mais altas posições no âmbito da administração pública e ampliar seu
renome. À diferença de seus contemporâneos, profundamente engajados nos
negócios do mundo e empenhados na realização de grandes feitos, Montaigne se
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entregava então, ainda em posse de suas forças, a uma vida retirada na biblioteca
de seu castelo, dedicada à sua própria tranqüilidade.
Seguia então a velha tradição moral e intelectual do otium cum litteris; do
elogio à dignidade da reclusão letrada que teve em Petrarca um de seus mais
ilustres representantes no Renascimento. Mas, como afirmou repetidas vezes nos
Ensaios, não escolhera esse caminho pelos mesmos motivos que os autores da
época que haviam abandonado os negócios do mundo a fim de conquistar uma
celebridade imortal pela grandeza de seus escritos e pela sua sabedoria. De fato,
isso Montaigne afirmou já na primeira página de seu livro, na Advertência ao
leitor, em que, conforme declarou, ao invés de guiar-se pela aprovação dos outros
e obter seus aplausos, escrevera seus Ensaios somente para retratar-se em sua
maneira mais simples e privada: “Quero que me vejam aqui em minha maneira
simples, natural e ordinária, sem apuro ou artifício: pois é a mim que pinto.”2
Afirmando assim não ter a admiração pública como objetivo - não podendo
ostentar grandes dotes artísticos e literários, pelos quais os autores de seu tempo
conquistavam a glória - Montaigne objetivava também o preceito em que se
baseava sua empresa do autoretrato. Ou seja, de adequar-se à sua própria razão de
preferência a agir como os ambiciosos, que se afastavam cada vez mais de sua
2
“Je veus qu`on m`y voie en ma façon simple, naturelle et ordinaire, sans contention et artifice:
car c`est moy que je peins.” Idem, Advertência ao leitor, p. 3.
12
razão, subordinando sua conduta à opinião alheia, deixando-se arrastar por suas
paixões.
Acreditando na relevância desse tema no interior da meditação de
Montaigne e nos modos de autoafirmação de suas escolhas - no diálogo que seu
discurso estabelecia com as tópicas mais recorrentes ligadas ao elogio da glória
nas obras clássicas e humanistas - o tomamos como ponto de partida e cerne
dessa nossa reflexão acerca do autoretrato, do pensamento original que o movia e
que articulava sua forma nos Ensaios. Através da análise dos percursos da crítica
de Montaigne no ensaio Da glória e da maneira como ela se transformava e se
estendia ao ensaio seguinte Da presunção, em que tomou a si mesmo por tema,
procuraremos examinar sua postura filosófica à luz da consolidação de sua
perspectiva negativa sobre a glória.3 Nossa leitura dos dois capítulos, portanto,
será orientada pela ênfase no modo como seus temas e discussões – da crítica das
ambições do mundo e da pintura de si - se correspondiam, formando uma
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3
Discordamos do que pensa Pierre Villey para quem o projeto do autoretrato afirmado na
Advertência ao leitor exprime apenas a concepção que Montaigne tinha de seus Ensaios à época
de sua publicação em 1580. O conteúdo da Advertência assim em sua declaração fundamental,
“c`est moy mesme la matière de mon livre”, não poderia ser levado em conta tanto para os
primeiros capítulos, escritos por volta de 1572 quanto para os capítulos posteriores, de 1588.
Segundo essa perspectiva eram exclusivamente os capítulos escritos entre 1578 e 1580 que se
adequariam à declaração da Advertência. Entre eles, por exemplo, Da educação das crianças, Da
afeição dos pais pelos filhos, Dos livros e Da presunção nos quais Montaigne nos expõe seus
gostos e humores, extrai ensinamentos gerais de suas experiências, ou pinta mais propriamente sua
imagem, em seus traços físicos e morais. Villey, P., Les Essais, 82. Adotamos aqui de preferência
a posição sustentada por Andre Tournon, da necessidade de levar a sério o conteúdo da
Advertência ao leitor e o projeto do autoretrato como informando a totalidade dos Ensaios e não
apenas os capítulos em que Montaigne se representa em sentido estrito, falando de si mesmo. Com
efeito, ele reitera esse desígnio de descrever-se desde os primeiros tempos, como podemos
comprovar, por exemplo na leitura do capítulo Da ociosidade em que reconhece já o caráter
original de sua escrita privada pelo fato de ter como objeto o registro das “quimeres et monstres
fantasques” produzidos por sua imaginação sobre toda espécie de matéria. MONTAIGNE, idem, I,
9, p. 32. Assim, segundo Tournon, Montaigne na verdade se ‘dá a conhecer’ em cada uma de suas
asserções, qualquer que seja o objeto de que trata, mesmo quando não diz nada sobre si mesmo.
TOURNON, A., Montaigne, p. 114.
4
Michel Beaujour ressalta a originalidade da forma reflexiva do autoretrato a partir da
consideração de que parte de uma experiência de vazio e de ausência interior pelo qual se põe sua
fórmula operatória própria, que o autor reconhece como uma variante do fim do capítulo 3 do livro
X das Confissões de Sto Agostinho: “Há muitos porém que querem saber quem eu sou no
momento atual em que escrevo as Confissões” Sua forma privada, segundo Beaujour responde a
uma necessidade interna de definir “quem sou eu no momento em que escrevo esse livro”,
distinguindo-se dos desígnios da autobiografia, por exemplo, que podem se exprimir pela fórmula
“vou lhes contar sobre meus feitos e minha vida”. BEAUJOUR, M., Miroirs d`encre, p. 9.
13
Mas para tornar mais claro e melhor embasar esse percurso, são
necessárias algumas considerações teóricas e metodológicas sobre a leitura dos
Ensaios. Sua crítica renovou-se de maneira fundamental quando Jean Yves
Pouilloux em seu Lire les Essais de Montaigne, publicado em 1969, dirigiu várias
objeções a alguns de seus mais célebres comentadores pelo fato de abordarem a
obra procurando extirpar dela um sentido dado. Ou, melhor dizendo, esforçando-
se por encontrar nos Ensaios uma síntese doutrinal, constituída da formulação das
próprias idéias de Montaigne. através da interpretação de determinadas sentenças,
passagens e lineamentos, recortados do contexto desordenado em que se inseriam
originalmente no livro. De fato, atenta o intérprete, é impossível encontrar nos
Ensaios concepções certas e fixas sobre os temas de que trata, pois sobre cada um
deles, há várias e diversas concepções que se contradizem, deixando entrever
apenas em sua escrita um índice de indecisão5. Como atenta Pouilloux: “Esta
leitura analógica de que podemos citar inúmeros exemplos repousa sobre a ilusão
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5
Pouilloux acusa esse método, por exemplo, na interpretação de Hugo Friedrich em seu
Montaigne, que faz dos Ensaios um livro de sagesse, desvendando seu sentido a partir da busca
pelas razões que teriam levado Montaigne a escrever. Segundo Friedrich, tal como os filósofos
morais de seu tempo Montaigne saía em busca da natureza do soberano bem. Mas, como atenta
Pouilloux, o que se espera dum moralista é justamente aquilo que é impossível encontrar em
Montaigne. De fato, o que definia aquele, nesse contexto, eram algumas sentenças e fórmulas
lapidares destinadas à perenidade literária e que indicassem o seu pensamento, afirmando-se como
verdades eternas a instruir os homens. Qualificar os Ensaios como um livro de sagesse pela leitura
de suas sentenças, significa não interrogar o sentido da desordem e da contradição entretecida
entre elas na miscelânea do discurso e isolá-las arbitrariamente de seus contextos discursivos para
determinar, de maneira inadequada e apressada, um suposto sentido global do livro.
POUILLOUX, J. Y., Lire les Essais de Montaigne, p. 20.
6
Idem., p. 26.
14
7
Idem, p. 35.
8
Idem, p. 38.
9
O tema do ceticismo foi largamente explorado pelos intérpretes dos Ensaios. No quarto capítulo
desse trabalho dedicamos um item a esta importante questão, procurando investigar a maneira
própria como Montaigne tomava para si os argumentos dessa tradição e o modo como ela se
articulava com as motivações da empresa do autoretrato.
10
BIRCHAL, T. O eu nos Ensaios de Montaigne, p. 89.
15
11
TOURNON, A., Montaigne, p. 144.
16
12
Idem.
13
Idem, p. 116.
17
que se veja cada parte em seu nascimento.”14 Os acréscimos que inseria no texto
não vinham, portanto, anular suas idéias, mas antes conferir-lhes maior solidez
pois através deles ele melhor se apropriava delas, enriquecendo-as e as
multiplicando em novos desenvolvimentos.
O que não é possível encontrar na meditação dos Ensaios, desse modo,
sublinha Tournon, não é a afirmação de pensamentos, mas sim a ordem serial e
linear com que eram comumente enunciados nas obras de seu tempo, nos
discursos que se pretendiam portadores de verdades atestadas. A lógica própria à
meditação dos Ensaios não é serial mas sim combinatória. A partir dessa
avaliação positiva da empresa de Montaigne, em sua originalidade própria, é
possível indagar de maneira adequada sobre suas idéias, delineadas no âmbito
mesmo da desordem e das contradições do texto: isto é, no modo como
ressurgiam de maneiras diversas, solicitadas pelo movimento incessante de sua
reflexão, fazendo-se, assim, sempre passíveis de novas abordagens que atestavam
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seu caráter contingente, como meras opiniões, mas nem por isso menos
assumidas: “(...) le plus fermes imaginations que j`aye, et generalles, sont celles
qui, par maniere de dire, nasquirent avec moy. Elles sont naturelles et toutes
miennes”. Como observa Tournon: “O conjunto do livro se organiza numa rede,
cujas linhas são desenhadas pelos ressurgimentos a intervalos regulares, das
questões de importância maior sobre as quais Montaigne retorna em diferentes
épocas.”15
A crítica moral da glória, segundo acreditamos, é uma dessas questões de
grande importância, sobretudo para os capítulos dos primeiros tempos. Vale
exemplificar aqui alguns entre muitos modos como Montaigne enunciou sua
concepção sobre seu caráter vão e ilusório, pois, como veremos, essas tópicas
seriam retomadas no ensaio Da glória e exploradas de maneira profunda no
interesse da afirmação da dignidade de suas próprias motivações.
No curto capítulo, De não transmitir sua glória, escrito provavelmente por
volta de 1572, segundo Villey, Montaigne ressaltou a propensão intrínseca do
espírito humano aos excessos do orgulho que tornava o desejo de glória uma
condição praticamente impossível de ser suprimida. A força dessa ambição era
14
“Au demeurant, je ne corrige point mes premieres imaginations par les secondes; (C) ouy à
l`adventure quelque mot, mais pour diversifier, non pour oster. (A) Je veux representer le progrez
de mes humeurs, et qu on voye cháque piece en sa naissance.” MONTAIGNE, II, 37, p. 758.
15
TOURNON, A., op. cit., p. 175.
18
No ensaio Dos nomes, também escrito por volta de 1572, tornou a acusar a
insensatez humana, atentando para o modo como os homens de seu tempo
cultuavam a fama de seus nomes, esforçando-se por acrescentar-lhe novos títulos
genealógicos. A crítica da glória aparecia então ligada a denúncia da impotência e
do caráter vão das palavras para comprovar a verdadeira nobreza de espírito.
Conforme sublinhava, era a celebração pública do renome que a fundava e não a
essência da virtude e da excelência: “Sondemos de perto um pouco, e, por Deus,
perguntemo-nos em qual fundamento ancoramos essa glória e reputação pela qual
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o mundo se transtorna.”17
Mas ele também abordou o tema de um ponto de vista positivo, para
expressar sua admiração pela glória dos grandes heróis do mundo antigo, tal como
em Do jovem Catão e em Da grandeza romana, o primeiro escrito pouco depois
de 1572, o segundo bem mais tarde, por volta de 1578. Mas a expressão do apreço
pela excelência sem par dos homens da Antigüidade não significou um recuo em
relação à sua perspectiva negativa, nem tampouco uma contradição que viesse
neutralizá-la, ao aproximar mais sua reflexão dos valores celebrados pela tradição
humanista. Ao contrário, veio antes precisá-la e enriquecê-la sob uma nova
visada, de natureza comparativa, explicitando o modo como se ligava à crítica aos
costumes de seu tempo. O elogio da virtude dos antigos, nos Ensaios, propiciava
constantemente o destaque dos vícios dos contemporâneos revelando, por
contraste, os costumes viciosos e pervertidos do presente. Em Do Jovem Catão,
por exemplo, Montaigne acusou o falso valor das grandes ações dos homens que
lhe cercavam, movidas por suas ambições pessoais e, portanto, por causas alheias
ao bem da virtude:
16
“De toutes les resveries du monde, la plus receüe et plus universelle est le soing de la reputation
et de la gloire, que nous espousons jusques à quitter les richesses, le repos, la vie, la santé, qui sont
bien effectuels et substantiaux, pour suyvre cette vaine image et cette simple voix qui n`a ny corps
ny prise.” MONTAIGNE, I, 41, p. 255.
17
“Sondons un peu de pres, et, pour Dieu, regardons à quel fondement nous attachons cette gloire
et reputation pour laquelle se bouleverse le monde.” Idem, I, 51, p. 279.
19
Já não se reconhece ação virtuosa: as que apresentam tal aspecto não têm
entretanto sua essência, pois o lucro, a glória, o temor, o hábito e tais outras
causas alheias nos encaminham para produzi-las. (...) Ora, a virtude só assume
aquilo que se faz por ela e para ela apenas.18
18
“Il ne se recognoit plus d`action vertueuse: celles qui en portent le visage, elles n`en ont pas
pourtant son essence, car le profit, la gloire, la crainte, l`accoutumance, nous acheminent à les
produire.(…) Or la vertu n`advoue rien que ce qui se faict par elle et pour elle seule.” Idem, I, 37,
p. 230.
19
“Je ne veus dire qu`un mot de cet argument infiny, pour montrer la simplesse de ceux qui
apparient à celle là les chetives grandeurs de ce temps.” Idem, II, 24, p. 686.
20
20
Segundo Pierre Villey, Da glória foi escrito em sua maior parte por volta de 1578, à época em
que Montaigne lia o Méthode de l`histoire de Bodin, mas reconhece, entretanto, o caráter incerto
dessa interpretação acerca da gênese do ensaio. De todo modo enfatiza a grande probabilidade de
sua influência ao tempo em que escrevia o ensaio, apontando para um empréstimo na parte final de
Da glória extraído diretamente do Méthode. Trata-se da passagem em que Montaigne nos fala do
desejo insaciável de fama de Trogus Pompeius e de Mânlio Capitolino, que a ambicionavam a
qualquer preço, fosse boa ou má (p. 626). VILLEY, P. Sources et Evolution des Essais de
Montaigne, p. 382.
21
Essa tradição da historia magistra vitae remonta ao pensamento de Cícero, conforme
examinaremos no nosso quarto capítulo, sendo retomada intensamente pelos autores italianos dos
séculos XV e XVI, de Collucio Salutati a Maquiavel.
21
1
Sobre isso ver Lida de Makiel, M. R. L`idée de la gloire dans la tradition occidentale,
Klincksieck, Paris, 1968. Apesar de propor-se a tratar mais especificamente do conceito de glória
na Idade Média castelhana a obra nos fornece uma abordagem mais ampla do tema a partir das
fontes clássicas e das fontes medievais francesas. Ver também Vieira, Ana Thereza Basílio, O De
Gloria, Livro I, de Jerônimo Osório, tese de Doutorado, UFRJ, 1999. Ao proceder à tradução e
interpretação da primeira parte do diálogo do célebre humanista português Jerônimo Osório, a
autora empreende uma caracterização das várias formas de que o conceito de glória se revestiu na
cultura ocidental, desde a Antigüidade às cruzadas da Idade Média e aos conquistadores ibéricos.
2
O conceito de arete entre os gregos era usado freqüentemente em sentido mais amplo, para além
da designação da excelência humana. Arete significava um valor objetivo, algo como uma
disposição, força ou função própria de cada ser e de seus atributos, que constituía sua perfeição. A
arete do corpo era o vigor e a saúde, a arete do espírito a sagacidade e a penetração. Na República
Platão nos fala da arete dos cães e dos cavalos (I, 335b) assim como da arete dos deuses,
designando sua superioridade (I, 381). JAEGGER, W., p. 24.
23
compreendia todas as coisas imortais, que existiam por si mesmas, expressas pelo
conceito de physis. Foi com efeito o tema da physis, do fluir permanente dos
elementos naturais e do movimento dos astros que impulsionou as investigações
dos primeiros filósofos pré socráticos na busca de uma ciência racional e
metafísica da natureza que desse conta da origem fundamental de sua imanência.
Face ao ser grandioso e permanente da natureza se aprofundou na cultura grega a
consciência do caráter fútil e instável do domínio do devir em que transcorria a
existência humana6 e assim a aspiração a conferir aos seus atos e realizações uma
grandeza própria, traduzida em durabilidade e permanência, com que pudesse
medir-se com o ser-para-sempre da natureza. Na Grécia antiga coube ao discurso
da história e à poesia7 ocupar-se dos assuntos humanos e do valor de seu feitos e
3
Idem, p. 27.
4
HOMERO, Ilíada, IX, 442-443.
5
ARENDT, H., O Conceito de História antigo e moderno, In: Entre o passado e o futuro, p. 72.
6
Uma manifestação dessa consciência na poesia de Homero está na passagem da Odisséia em que
narra as palavras da mãe de Ulisses quando este a encontra no hades: “(...) esta é realmente a sorte
normal dos mortais quando falecem. Os nervos não mais seguram carnes e ossos; a força poderosa
do fogo em chamas destrói essas partes, assim que o alento abandona os brancos ossos, enquanto a
alma se evola e paira como um sonho.” HOMERO, Odisséia, XI, 161-166.
7
Como sublinha Hannah Arendt, o paradoxo dessa concepção grega de grandeza humana
residindo em atos e palavras – práksis ou pragmata - era que, em se tratando das coisas realizadas
pelo homem, estas eram as de essência mais precária, nunca podendo sobreviver ao momento de
sua realização. Ao contrário das obras realizadas pelas mãos humanas – poièsis - que, em certa
medida tomavam emprestada a matéria do ser-para-sempre da natureza e eram dotadas de certa
permanência, seus atos e palavras se esvaíam para o nada assim que ocorriam, sem deixar vestígios
24
Com efeito, celebrando a glória em suas belas formas ela dotava de sólido
significado moral e de universalidade as experiências da vida em que se realizava
a excelência, movendo os homens de todos os tempos à imitação desses exemplos
de grandeza9.
Essa associação estreita entre arete e glória entretanto foi combatida no
contexto democrático da polis grega que transformou as condutas e os valores
atrás de si. A solução grega para esse paradoxo se dava portanto no domínio da poièsis da palavra
escrita, que conferia uma forma de imortalidade ao domínio da práksis, embora jamais igual à
eternidade do mundo da natureza. Tal função era atribuída especialmente à poesia e à
historiografia, unidas sob a mesma categoria na Poética de Aristóteles (1448b25 e 1450 16-22)
pelo fato de terem os feitos e ditos dos homens como tema e como pressuposto a idéia grega
tradicional de grandeza. ARENDT, H., op. cit., p. 74.
8
HERÓDOTO, Guerras pérsicas, I, 1, p. 53.
9
A idéia de que Homero era o grande educador de seu povo manteve sempre sua importância na
cultura grega, mas seu caso era apenas o exemplo mais acabado de uma noção aceita em geral no
mundo grego, da função educativa da poesia. A arte era vista nesse contexto como detentora de um
poder ilimitado de conversão espiritual sobre os homens que os gregos chamavam de psicagogia:
a beleza da poesia conferia plenitude e força emocional aos grandes exemplos, lhes dava validade
universal, capaz de mover imediatamente os homens para a imitação. Essa noção manteve-se viva
apesar da famosa crítica de Platão, no livro X de sua República, aonde destituía a poesia de seu
valor na cidade em virtude da limitação de seu conteúdo de verdade. Com efeito, no capítulo IX da
Retórica de Aristóteles encontramos uma boa prova do valor que a cultura grega ainda atribuía à
poesia: se Aristóteles ressaltava que ambas, a poesia e a história tinham por matéria a imitação das
ações dos homens, afirmava por outro lado a posição inferior da última em relação à primeira. Se a
história lidava com a narração das coisas que realmente haviam acontecido, a poesia ocupava-se
daquilo que poderia ter acontecido, segundo a verossimilhança ou a necessidade. Desse modo
segundo Aristóteles: “Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a
história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.”
ARISTÓTELES, Poética, IX, p. 252. Sobre isso ver Jaegger, W., Homero, educador, op. cit.
25
tal como nos tempos homéricos, pela glória de grandes façanhas individuais
realizadas em combates singulares. Ao contrário, vinculava-se substancialmente
ao domínio de si, a um rígido controle dos próprios instintos – sophropsyne – que
perturbariam a ordem geral da formação das falanges caso emergissem.
Com efeito, essa nova atitude observada no domínio da guerra11 ilustrava
uma mudança profunda em todos os planos da vida social, sob a afirmação de
uma outra noção da excelência humana; de uma arete propriamente política. Esta
identificava-se à sophrosyne, ao autodomínio com que o cidadão se adequava à
disciplina da vida comum. Tinha assim como pressuposto fundamental a rejeição
das paixões individuais de glória, assim como da sede de poder e de riquezas
como descomedimento – hybris – que ocasionavam a inveja e as divisões na
comunidade política12. Assim, nesse contexto democrático da polis, a excelência
10
VERNANT, J. P. As origens do pensamento grego, p. 44.
11
No caso de Esparta, diferentemente do caso de Atenas, é o fator militar que parece ter tido papel
decisivo no advento da nova mentalidade, permanecendo fora das grandes correntes intelectuais da
época. Entre os séculos VII e VI Esparta rompeu com os velhos privilégios aristocráticos,
repudiando toda forma de riqueza e de primazia, concentrando-se inteiramente nas instituições que
a consagravam à guerra. Idem, p. 45.
12
Foi num contexto de crise que atingiu a polis dos fins do século VII ao século VI, devido a
crises internas, que Sólon um dos maiores legisladores da república ateniense se esforçou em
estabelecer normas de justiça – diké – iguais para todos a fim de equilibrar as forças sociais
antagônicas e de ajustar as atitudes humanas sempre em oposição. Solón entendia que era a hybris
humana, seu desejo insaciável de riquezas e poder, a grande causa da desordem e da injustiça na
26
humana passou a definir-se não pela ousadia de grandes feitos individuais, dignos
de fama imortal, mas sobretudo pela sabedoria do espírito, expressa
essencialmente pelas próprias aptidões intelectuais e oratórias, as mais necessárias
à formação dos grandes homens de Estado, que velavam pela integridade do bem
comum13.
A filosofia socrática aprofundou e desenvolveu essa concepção
moralmente negativa da glória forjada a partir do ideal democrático da polis
entendo-a não como marca de excelência mas sim como ligada aos excessos das
paixões individuais, à presunção e a ganância dos homens. Procurando desviar as
investigações teóricas da filosofia do domínio da physis para os problemas
humanos Sócrates atribuiu a ela o papel de educadora privilegiada no
desenvolvimento de uma nova espécie de arete que tinha na apropriação do velho
preceito grego do “conhece-te a ti mesmo” seu motivo fundamental.
Tradicionalmente, na cultura grega arcaica, esse preceito possuía um significado
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cidade. Foi de fato, em nome da preservação dessa justiça igual para todos e da instauração de um
espaço para a igualdade que ele recusou-se à tirania, que estava a seu alcance. Idem, p. 60.
13
Atraídos pela efervescência política e pelo desenvolvimento cultural que teve lugar na polis
ateniense durante os séculos IV e III a.C., muitos representantes do movimento sofista para lá se
dirigiram à procura de fama, reconhecimento e remuneração. O ensino sofista era voltado
especificamente para aqueles que buscavam fazer carreira na política e na vida pública em geral,
desejosos da apreensão de um saber bastante específico: a compreensão dos métodos de
elaboração de um discurso persuasivo. Nada mais propício para o momento de extensão
democrática que Atenas vivenciava, pois as instituições de uma cidade democrática pressupunham
a faculdade não apenas de falar em público, mas de argumentar, a partir do conhecimento de
técnicas retóricas específicas, de modo persuasivo, sendo estas qualidades de suma importância
para a defesa dos interesses tanto públicos quanto privados. No entanto, a pedagogia sofista sofreu
duras críticas, sendo Platão um dos seus adversários mais contundentes. Este filósofo afirma,
através da voz de Sócrates, em obras como Protágoras, Górgias e Fedro que a retórica não é uma
arte (téchne), negando-lhe em decorrência todos atributos de uma téchne, tais como a utilidade, a
possibilidade de ser transmitida e o conhecimento de seu objeto. Além disso, a retórica foi ainda
acusada pelo filósofo de dizer respeito apenas à opinião e não à verdade, de não possuir uma
finalidade própria, de não ter um comprometimento moral e de manipular as emoções dos
ouvintes. Cf.: KENNEDY, G., The art of persuasion in Greece, p.323.
27
14
O pensamento de Sócrates se situou nesse mesmo contexto ideológico das reformas de Sólon
operando no sentido da restauração da cultura espiritual da polis, contra a ostentação de riquezas
dos poderosos e de suas ambições de distinguir-se. Mas como salienta Werner Jaegger, ele trouxe
uma novidade fundamental à investigação acerca da essência da arete política, responsável por seu
conflito com o Estado ateniense: reorientou essa reflexão da submissão externa às leis da cidade
para a ênfase no domínio interior da própria personalidade e do caráter moral como medula da
existência humana tanto particular como coletiva. Com efeito, a educação para a virtude política
que ele pretendia instaurar pressupunha antes de tudo a restauração da polis no seu sentido moral
interior do conhecimento humano de sua própria essência racional superior. JAEGGER, W., op.
cit., p. 614.
15
PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29 d, p. 28.
28
consideração central que estava nas raízes de seu elogio desde os gregos antigos,
ou seja, do anelo natural dos homens à imortalidade16. Com sua doutrina da
imortalidade potencial dos homens mortais através da procriação ele pretendeu
conferir uma fruição legítima a essa afecção, adequada à razão e à natureza,
impedindo que degenerasse em vícios contra o bem da vida civil. Como afirmava
no quarto livro de suas Leis o homem só era dotado de imortalidade – athanasía -
enquanto espécie, em sua condição sempiterna dada pela procriação. Por isso
Platão declarou como uma das principais tarefas do legislador ideal bem
direcionar através da instituição do casamento as ambições comuns de grandeza
no sentido de sua adequação à ordem eterna da natureza: “Sua maneira de ser
imortal, é de deixar filhos e filhos de seus filhos atrás de si; ele permanece sempre
o mesmo através da geração e participa assim da imortalidade.”17
Entretanto após a crítica socrática e platônica o mundo grego contou com
uma importante reabilitação da noção antiga da glória pessoal de grandes feitos
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16
ARENDT, H., op. cit., p. 76.
17
PLATÃO, Leis, IV, 721.
18
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, IV, 3.
29
no culto à glória dos personagens grandiosos que haviam lutado para fortalecer a
república promulgando novas leis e combatendo fortemente os inimigos. Homens
de virtus extraordinária, cujos feitos haviam tido importância crucial para a
grandeza de Roma, como Rômulo, Numa Pompílio, Cipião e Catão tiveram sua
glória celebrada tanto pelos historiadores latinos, de Tito Lívio a Salústio, como
pela epopéia virgiliana, estimulando as ambições de glória dos homens do
presente e incitando-os assim aos atos da virtude.
19
Sêneca afirmou de maneira recorrente seu repúdio contra a glória assim como contra o modo de
vida dedicado a grandes ações na vida pública. Podemos encontrar exemplos dessa crítica por
exemplo nas cartas 19, 21 e 22 de suas Cartas a Lucílio. Um outro bom exemplo dessa crítica na
literatura romana se encontra em Cícero, em seu Do sumo bem e do sumo mal (De finibus) aonde
denuncia os excessos do amor à glória por esvaziar a virtude de seu próprio valor, fazendo com
que dependesse da aprovação pública: “E o que é por si mesmo reto e louvável, não havemos de
chamá-lo honesto porque o louvam muitos, mas sim por ser tal, que ainda que os homens o
ignorassem ou calassem, seria louvável por sua própria beleza.” CÍCERO, Do sumo bem e do
sumo mal, II, 15, p. 55.
20
CÍCERO, De Republica, I, 2, 2. Apud. Michel, A, Rhetorique et Philosophie chez Ciceron, p.
449.
21
O mos maiorum designava a profunda convicção romana acerca da grandeza e superioridade de
seu ideal de educação centrado no domínio prático de seus costumes, instituições e leis calcados
no ideal da liberdade cívica e no desdém pelo saber teórico dos gregos. Essa convicção se afirma
especialmente entre os romanos dos primeiros tempos da época de Catão, mas os traços dessa
mentalidade continuaram presentes na obra de Cícero. Além do De republica podemos encontrá-lo
reafirmando a tradição do mos maiorum romano em passagem do primeiro volume do De Oratore:
“(...) que se tome todas as coleções de obras de todos os filósofos reunidos; por si mesmo o
pequeno livro das XII Tábuas, fonte e fundamento de nossas leis, me parece, tanto por sua
autoridade reconhecida quanto por sua fecunda utilidade, ser-lhes infinitamente superior.” Idem,
De Oratore, I, 44, 195.
30
22
Jacob Burckhardt dedicou o capítulo 4 de seu clássico A Cultura do Renascimento na Itália ao
tema da glória. VAROTTI, C., Gloria e ambizione politica nel Rinascimiento, p. 110.
23
HUIZINGA, J., O Declínio da Idade Média, p. 59.
31
considerada como a coroa de todo o corpo social e nível terreno mais próximo da
santidade. Desse modo, a fama imortal dos nobres se devia à superioridade de sua
função, que lhes fora atribuída pela providência divina, de defender a Igreja e os
valores cristãos.
Entretanto, é importante lembrarmos, como bem sublinha Huizinga, que
esse ideal da cavalaria, como instituição divina, jamais se realizaria plenamente na
prática devido à sua origem terrena, afirmada no orgulho dos cavaleiros medievais
que aspiravam à glória mundana e à fama imortal do próprio nome, inspirada nos
heróis do mundo antigo. De fato, é certo que esse ethos guerreiro da nobreza
medieval também nutria-se de um profundo caráter secular e nesse sentido pode
ser considerado até certo ponto como uma das raízes fundamentais da glória
renascentista24. Com efeito, ele se fez presente também entre a aristocracia da
Renascença, especialmente na França e nos demais países do norte da Europa em
que a tradição feudal fincou raízes mais fundas.
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24
De fato, se o culto aos heróis clássicos, gregos e romanos e a aspiração à grandeza da vida antiga
definia a paixão pela glória no Renascimento, é preciso reconhecer, contudo, que tais elementos já
estavam presentes na sede de honras dos cavaleiros e príncipes da Idade Média. Assim Johan
Huizinga afirma sua discordância da posição assumida por Burckhardt, em seu A Cultura do
Renascimento na Itália, quanto à glória, fundada na imitação dos heróis clássicos, ser atributo
exclusivo dos homens da Renascença. Segundo Huizinga, ele exagera muito a distância entre a
Itália e o resto dos países ocidentais, especialmente da França, assim como entre o Renascimento e
a Idade Média. A forte ênfase no papel do indivíduo, do mito de sua condição singular superior e
excepcional que Burckhardt aponta como precondição da glória renascentista estava bem presente
também no protótipo do homem glorioso elaborado na Idade Média, ainda que se tratasse aqui de
uma glória fortemente associada ao orgulho de casta da aristocracia, componente estranha à
cultura florentina centrada no ideal da vita civile. E, ainda que o culto aos heróis da Antigüidade
não se distingüisse tanto na cultura medieval das lendas cavalheirescas: “Por um lado a figura de
Alexandre tinha entrado há muito na esfera da cavalaria, por outro admitia-se que a cavalaria tinha
uma origem romana (...) Os feitos de César, de Hércules e de Troilus são fantasiosamente
atribuídos ao rei Renato, lado a lado com os de Artur e de Lancelote.” Segundo Huizinga, apesar
dessas considerações a glória cavalheiresca e seu culto aos heróis clássicos deve ser tomada como
um prenúncio ingênuo do Renascimento, cuja influência não pode ser menosprezada no que diz
respeito à centralidade que o culto à glória pessoal veio a desempenhar nesses tempos. Idem, p. 73.
32
‘Como se uma ação só fosse virtuosa quando se tornasse célebre’ (A) o que
ganham com isso a não ser instruí-los a nunca se arriscarem se não forem vistos
(...)”25
No capítulo Das Recompensas Honoríficas, por sua vez, que versava
especificamente sobre esse tema, ele denunciou o absurdo da prática de tomar as
grandes ações guerreiras como medida de nobreza, pois a qualidade que deveria se
dar como sua marca deveria necessariamente ser rara, difícil de ser encontrada em
qualquer homem. Com efeito, os atos de coragem e valentia haviam se tornado
banais à época de Montaigne, por isso ele procurou então estabelecer uma outra
concepção de excelência como sinal de nobreza, ou seja, a de uma virtude
filosófica, mais perfeita do que a outra, porque constante, invariável e uniforme,
definida como firmeza de alma, que desprezava os acidentes e paixões do mundo.
Essa sim poderia ser honrada com justiça, já que tão rara entre os homens de seu
tempo, que negligenciavam o cultivo da sabedoria do espírito em sua sede
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(...) quando nós dizemos de um homem, que vale muito, ou um homem de bem
ao estilo de nossa corte e de nossa nobreza, isso não significa outra coisa que
um homem valente à maneira dos antigos romanos. Pois a designação geral de
virtude toma em geral entre nós a etimologia de força. A forma própria e única
de nobreza em França é a profissão militar.26
25
“Ceux qui apprenent à la noblesse de ne chercher en la vaillance que l`honneur (C) ‘comme si
une action n`etait vertueuse que lorsqu`elle est célèbre.’ (A) que gaignent-ils par là que de les
instruire de ne se hazarder jamais si on ne les voit, et de prendre bien garde s`il y a des temoins qui
puissent rapporter nouvelles de leur valeur, là où se presente mille occasions de bien faire sans
qu`on en puisse estre remarqué?” MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
26
(...) quand nous disons un homme qui vaut beuacoup, ou un homme de bien au stile de nostre
court et nostre noblesse, ce n`est pas à dire autre chose qu`un vaillant homme, d`une façon pareille
à la Romaine. Car la generalle apellation de vertù prend chez eux etymologie de force. La forme
propre, et seule, et essencielle de noblesse en France, c`est la vacation militaire.” Idem, II, 7, p.
384.
33
27
Como nos mostra Burke, o livre de Castiglione despertou grande interesse em seu tempo, pois
sua publicação nos inícios do século XVI coincidiu com o aprofundamento do debate sobre esse
tema da cortesania ideal para o aconselhamento dos reis em toda a Europa, sob a ascensão de três
grandes monarcas, Carlos V na Espanha, Francisco I na França e Henrique VIII na Inglaterra. Por
volta de sessenta edições do texto em outras línguas que não o italiano foram publicadas entre
1529 e 1619, tornando-se regra geral para a vida de corte da aristocracia de toda a Europa.
BURKE, P., As Fortunas d`O Cortesão, p. 67.
28
CASTIGLIONE, B., O Cortesão, I, 17, 31.
29
Em total oposição a esse ideal, os heróis das chansons de geste da Idade Média eram notáveis
exclusivamente pela coragem e valentia; lembravam a imagem medieval dos leões, fáceis de serem
irritados mas difíceis de serem acalmados. BURKE, P., op. cit., p. 25.
30
CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 31, p. 49.
34
Essa tópica da glória das letras talvez nunca tenha sido mais exaltada do
que à época do Renascimento com a expansão do humanismo, em seu movimento
de resgate das grandes obras da Antigüidade, e em sua moralidade centrada no
estímulo ao exercício das aptidões naturais e criativas do espírito humano. Essa
ênfase na profissão das letras seria impensável na Idade Média em que a profissão
das letras era prerrogativa dos clérigos34. De fato, os primeiros poetas humanistas,
31
MONTAIGNE, II, 7, p. 382.
32
CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 33, p. 52.
33
Idem, I, 42, p. 64.
34
A recuperação humanista do valor clássico segundo o qual o homem deveria buscar sua mais
perfeita excelência (arete entre os gregos e virtus entre os romanos) teve como efeito a rejeição da
35
sublinhando o valor moral dos estudos das obras clássicas porque além de
habilitar o cortesão a bem dizer, continham as vidas de homens insignes que
haviam realizado à perfeição suas próprias virtudes e exortavam os
contemporâneos a fazer o mesmo. A verdadeira grandeza dos atos heróicos, dessa
perspectiva, só podia ser apreendida em todo seu significado através das belas
formas da arte aonde eram representadas da maneira mais perfeita, mais vivas do
que quando realmente haviam ocorrido. O fervor do espírito que buscava a glória
devia provir da freqüentação das letras; do mesmo modo como a medida da
antiga distinção medieval, central em sua prática pedagógica, entre um sistema de educação
adequado aos fidalgos, que versava sobre os ideais de cavalaria e as artes da guerra e outro próprio
aos clérigos, centrado nas letras e nos estudos filosóficos. Essa distinção que remontava à alta
Idade Média permaneceria viva por longo tempo adentrando o século XIV sobretudo nos países do
norte da Europa. Tais distinções entretanto seria tornada inútil a partir dos primeiros tratados
humanísticos do Quatroccento. Dariam lugar ao ideal renascentista do uomo universalis, objeto do
máximo louvor porque sua excelência combinava a habilidade das letras, sinal de superioridade do
espírito, ao gládio do guerreiro. SKINNER, Q., op. cit., p. 112.
35
Como salienta Eugenio Garin, a questão da imitação dos antigos – imitatio – tanto no domínio
dos atos quanto no domínio estilístico das grandes obras literárias foi talvez o problema mais
controverso da cultura humanista, que, apesar de proclamar sua originalidade como libertadora das
energias individuais dos homens, voltava-se para o passado numa atitude de respeito ao mundo
antigo, considerado modelo de perfeição. Entretanto, atenta o autor: “A ação do modelo não é a de
produzir uma cópia, mas sim de suscitar uma obra nova; nesta é uma ação e não uma absorção
passiva de uma formação intelectual. O contato com o exemplo suscita na alma dos homens uma
fecunda excitação e lhes impulsiona a criar por eles mesmos, qualquer coisa de pessoal e original.”
GARIN, E., L`Education de l`homme moderne., p. 103.
36
grandeza de suas aspirações devia ser dada pelo modo como apreendia nas vidas
dos grandes homens da Antigüidade o alto significado da glória36:
Que espírito é tão desgraçado, tímido e humilde a ponto de, lendo os feitos e a
grandeza de César, de Alexandre, de Cipião e Aníbal e de tantos outros, não se
inflamar por um ardente desejo de ser igual a eles e não pospor esta vida
efêmera de dois dias para conquistar aquela famosa, quase perpétua, a qual a
despeito da morte, torna o viver muito mais luminoso que antes? Mas quem não
sente a doçura das letras não pode saber quanta é a grandeza da glória tão
longamente conservada por elas (...)37
procedimentos dialéticos e silogísticos para servir àquele que era então o objetivo
supremo do saber, o debate sobre as verdades da fé e sua defesa. Os humanistas
por sua vez, concentrando seus esforços no sentido da apreensão de seu sentido
original conferiram centralidade em sua pedagogia aos estudos das técnicas
retóricas a fim de habilitar seus discípulos a uma boa leitura dos textos clássicos e
36
A profissão das letras para a glória do cortesão perfeito foi também endossada como muito
superior à profissão das armas, por Pietro Bembo, um dos interlocutores do diálogo, através da
citação de um poema de Petrarca que narrava uma visita de Alexandre à tumba de Aquiles:
“Giunto Alessandro alla famosa tomba del fero Achille, sospirando disse: O fortunato, che sì
chiara tromba trovasti, e chi di te sì alto scrisse! (‘Alcançado Alexandre a famosa tumba/ do altivo
Aquiles, disse suspirando: / Oh, afortunado, que tão forte trombeta/ achaste, e quem de ti tão alto
exegeta!’) E se Alexandre invejou Aquiles não por seus feitos, mas pela fortuna que lhe carreou
tanta felicidade que suas façanhas foram celebradas por Homero, pode-se compreender que
apreciava mais as letras de Homero que as armas de Aquiles” CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 45,
p. 70.
37
Idem, p. 66.
38
Procurando precisar o sentido da designação de humanistas tal como concebida no
Renascimento, P. O. Kristeller utilizou essa definição especificamente para aqueles que se
destacaram nesse grupo particular de disciplinas que constituíam o programa dos studia
humanitatis, ou seja, gramática, retórica, história e filosofia moral. Mas não podemos concordar
com ele quando classifica esse movimento de renovação do humanismo como um fenômeno
meramente escolar do gramático moderno contra os barbarismos da escolástica, fechado dentro das
escolas e das universidades. Tratava-se sim de uma ampla reorganização do saber que expressava a
emergência de novos problemas, da crítica filológica e do questionamento das autoridades
seculares. É verdade que o humanismo se originou e se desenvolveu no âmbito dos studia
humanitatis, mas não se conteve aí, suas preocupações não permaneceram, como nos diz
Kristeller, “circunscritas nos seus interesses clássicos e retóricos, com influência externa e indireta
sobre outros campos”. A valorização dos studia humanitatis, como procuraremos demonstrar aqui
correspondeu na Renascença a uma nova concepção do homem e de seu papel no mundo e na
sociedade. KRISTELLER, P. O. “O Movimento Humanístico” In: Tradição Clássica e
Pensamento no Renascimento Italiano, pp. 11-29.
37
(...) não foi outra coisa que a substituição de uma recolha de fórmulas
extrínsecas a serem repetidas mecanicamente, por uma formação completa sob
o contato direto com as obras mais marcantes de cada ramo do saber, com essas
obras às quais as mais altas experiências humanas haviam sido confiadas, na
plenitude exemplar de sua significação39.
suas faculdades e de desenvolvê-las em seu mais alto grau de perfeição. Para isso,
o velho modo escolástico para a compreensão do mundo antigo era falho e
superficial, articulado em grandes compilações como a Chartula e o Catholicon
que agrupavam fragmentos aleatórios dos textos clássicos, destinados a serem
imprimidos na memória com a ajuda de elementos rítmicos ou fórmulas a serem
aplicadas de forma mecânica. Longe disso, os studia humanitatis procuravam
promover a natureza crítica e reflexiva de seus discípulos: seus métodos
privilegiavam a leitura, a compreensão e a interpretação de seu conteúdo
genuíno40.
É significativo que a capacidade de falar e escrever bem, assim como o
contato direto com as obras clássicas tenham sido tão enfatizados em O Cortesão.
39
GARIN, E., op. cit., p. 29.
40
A escola de Guarino de Verona foi uma das mais importantes escolas italianas que
protagonizaram esse movimento de renovação pedagógica, destronando a tradição escolástica da
primazia dos estudos teológicos. Foi fundada em 1420 após a autorização da comuna de Verona e
atraiu homens de toda parte da Europa: da escola de Guarino saíram príncipes, cortesãos, sábios e
chefes eclesiásticos, como que nascidos uma segunda vez, como homens novos modelados
segundo seus ensinamentos para serem enviados de novo ao mundo e intervir sobre ele segundo
suas capacidades. A escola de Guarino ensinava retórica através dos discursos de Cícero e dos
antigos padres da Igreja assim como todas a matérias que diziam respeito à eloqüência, de grande
utilidade para a vida prática dos homens em domínio público e privado, assim como dos cidadãos
do distrito veronês. Seus métodos visavam a realização de uma excelência perfeita e universal
combinando uma séria e rigorosa educação moral com exercícios físicos, além de considerar as
potencialidades de seus discípulos tomados individualmente. Idem, p. 123-135.
38
Isso comprova a força dos ideais pedagógicos do humanismo e dos valores a eles
associados no que diz respeito à concepção renascentista de nobreza a ser
premiada com a glória imortal, ou seja, não restrita à performance de feitos
extraordinários, mas também à sabedoria do espírito e à retidão da própria
conduta. O tema de O Cortesão, de fato, o situava numa tradição literária voltada
para a definição de comportamentos e modos de vida ideais a serem imitados, que
se enraizava no velho conceito grego de arete, da excelência humana perfeita41. O
modelo de perfeição do cortesão, assim, tendo a idéia de civilidade e domínio de
si como centrais, remontava sobretudo à descrição aristotélica do homem
magnânimo, associando a essas qualidades o desejo de ser reconhecido pelos seus
pares e ao amor da honra: “E considero que, assim, como é ruim buscar falsas
glórias e para aquilo que não as merece, é igualmente ruim negar a si próprio a
honra devida e não procurar aquele louvor, que é o verdadeiro prêmio das
virtuosas fadigas.”42
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41
BURKE, P., op. cit., p. 20.
42
CASTIGLIONE, B., op. cit., II, 8, p. p. 93.
43
Refutando a posição de Bembo quanto à superioridade da profissão das letras o conde Gaspar
Pallavicino, louvou a excelência universal que devia caracterizar a cortesania perfeita, enfatizando
a interdependência essencial entre as armas e as letras e fornecendo uma outra interpretação do
poema de Petrarca: “Basta dizer que os literatos quase sempre dedicam-se a louvar apenas os
grandes homens e os feitos gloriosos, os quais de per si merecem louvores, pela própria virtude
essencial de que nascem; além disso constituem mui nobre matéria para os escritores, o que é
grande ornamento e, em parte causa da perpetuação dos escritos, os quais talvez não seriam tão
lidos e apreciados, mas sim vãos e efêmeros se lhes faltasse nobre sujeito. E se Alexandre invejou
Aquiles por ter sido louvado por quem foi, não se pode daí deduzir que apreciasse mais as letras
que as armas. Pois se se tivesse sabido estar nelas tão distante de Aquiles quanto estimava que
deveria estar de Homero, todos os que dele estivessem no escrever, estou certo de que preferiria
muito mais o bem fazer nele do que o bem falar nos outros. Porém creio eu isso seria louvar
tacitamente a si mesmo e desejar o que não lhe parecia possuir, a saber, a suprema excelência de
um grande escritor, e não o que já se presumia ter conseguido, a saber, a virtude das armas, na qual
não estimava que Aquiles lhe fosse superior; daí tê-lo chamado de afortunado, como se dissesse
que, se sua fama não fosse celebrada no mundo como aquela que era, para tão divino poema, clara
e ilustre, isso não se devia a que os valores e os méritos não fossem tantos e dignos de tantos
louvores, mas à fortuna, à qual havia colocado diante de Aquiles aquele milagre da natureza para
que fosse a gloriosa trombeta de suas obras; e, talvez, também tenha desejado incitar algum nobre
talento a escrever sobre si, mostrando por isso dever-lhe ser tão grato quanto amava e venerava os
sagrados monumentos das letras, acerca dos quais já se falou bastante agora.” Idem, I, 45, p. 70.
39
é bastante conveniente, quero que estejam em nosso cortesão: não por isso parece
que tenha eu mudado de opinião.”44
44
Idem, p. 70.
45
O resgate do conceito ciceroniano de virtus, sob a associação dos estudos de retórica e de
filosofia esteve nas bases do elogio humanista da glória das letras. Desse modo o talento de
Petrarca fundamentou sua fama como portador de uma sabedoria mundana exemplar, pelos
benefícios que cumpriu à posteridade com sua obra. Assim sua glória seria celebrada mais tarde,
por Leonardo Bruni em seu Vita di Petrarca: “Francesco Petrarca foi o primeiro com talento
suficiente para reconhecer e trazer de volta à luz a antiga elegância do perdido e extinto latim.
Mesmo admitindo que ainda não era perfeito nele, foi ele por si mesmo que viu e abriu caminho
para sua perfeição, por ter redescoberto as obras de Cícero, tê-las compreendido e saboreado (...).”
BRUNI, L., Vita de Petrarca, In: The Three Crowns of Florence, p. 75.
40
Que outra força poderia reunir em um mesmo lugar os homens dispersos, tirar-
lhes de seu vício grosseiro e selvagem para lhes trazer ao nosso grau atual de
civilização, fundando as sociedades, fazendo reinar as leis e o direito? (...) Da
sábia direção que um grande orador imprime aos negócios públicos depende
não somente sua própria reputação mas a saúde de um número imenso de
cidadãos e a saúde do Estado como um todo.47
46
Vários são os textos na Antigüidade que destacaram a necessidade de uma aliança entre a arte da
eloqüência e as virtudes morais do orador. Não nos resta dúvida que Cícero atribuiu grande
relevância a esta questão em seu De oratore (I, 20, 90), porém, talvez tenha sido Quintiliano o
autor que mais ênfase deu a essa questão, recusando-se a definir a retórica como arte da persuasão:
“muitos julgam que a função do discurso consiste em persuadir ou em dizer de maneira apta a
persuadir, [e esta pode] ser realizada mesmo por quem não é homem de bem.” Quintiliano,
pretende, pelo contrário, promover uma retórica realizada unicamente pelo vir bonus e
inteiramente comprometida com o bem. Ao orador causídico e adulador, criticado por Platão,
Cícero e por filósofos posteriores, Quintiliano opõe o seu orador virtuoso, o vir bonus dicendi
peritus, possuidor da bene dicendi scientia, saber verdadeiro próprio a um homem de bem. Cf.:
QUINTILIANO. Institutio oratoria, II, 15, 3, II, 15, 11 e II, 15, 34. Ver também Vasconcelos,
Beatriz A. Ciência do dizer bem: a concepção de retórica de Quintiliano em Institutio oratoria, II,
11-21, pp. 51-56.
47
CÍCERO, De Oratore, I, 33, p. 18.
48
Idem, Dos deveres, II, 9, 31, p. 93.
49
Idem, II, 13, 45, p. 100.
41
aquilo que buscamos com o engenho e a razão é mais grato do que aquilo que
buscamos com a força.”50 Tal como a arte militar, portanto, a eloqüência conferia
glória, porém, de um tipo bem superior, pois exprimia a realização perfeita da
virtus de seu detentor. Ela o tornava capaz de conquistar a mais sólida estima de
seus pares no mundo público pela grandeza dos benefícios que cumpria,
garantidores da fé e admiração permanentes da coletividade: “Grande é, de fato, a
admiração por aquele que fala copiosa e sabiamente; os ouvintes julgam que ele
compreende e sabe mais que os restantes”51. Esse elogio da eloqüência, como das
mais importantes fontes de glória, se devia ao seu caráter de humanidade, à sua
prerrogativa de defender sempre a justiça no fórum e nas assembléias, salvando os
homens, conservando seu bem estar e mantendo a estabilidade da vida política e
social52:
O que, com efeito é preferível à eloqüência, dada a admiração dos que ouvem, a
esperança dos indefesos ou a gratidão dos que são defendidos? Assim também a
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50
Idem, II, 13, 56.
51
Idem, II, 14, 48, p. 101.
52
Sobre isso ver MICHEL, A., Rhetorique et Philosphie chez Ciceron, p. 459.
53
CÍCERO, Dos deveres, II, 66.
54
CELENZA, C., The lost Italian Renaissance, p. 118.
42
(...) eu insisto e advirto para que corrijamos não apenas nossa vida e conduta,
que é a primeira preocupação da virtude, mas também o nosso uso da
linguagem. Isso nós faremos através do cultivo da eloqüência. Nosso discurso
não é um pequeno indicador do estado de nossa alma, tampouco nossa alma é
uma controladora insuficiente de nosso discurso. Um depende do outro, mas
enquanto o primeiro reside no coração o segundo emerge para fora.56
55
Nesse sentido, em sua leitura própria do conceito antigo de virtus, Petrarca louvou as
habilidades nas artes do discurso como elemento essencial também para tornar viva a charitas,
uma das principais virtudes cristãs, sendo marca externa da grandeza do espírito piedoso:
“Finalmente se nenhum senso de caridade em relação aos nossos companheiros cidadãos nos
move, eu considerarei o estudo da eloqüência como o auxílio mais grandioso para nós mais do que
algo que deva ser tomado sob baixa estima.” PETRARCA, To the same Tommaso de Mesina, I, 9,
Familiares, p. 49.
56
Idem, p. 48.
43
republicana florentina, assim como na grande estima que lhe votavam as elites da
cidade57.
Mas, paralelamente a esta havia também a honra que os humanistas
pretendiam angariar dentro do círculo mais restrito de seus pares, dos que
integravam a ‘república das letras’. De fato, queriam sobretudo ser vistos como
homens de eloqüência, avaliados pela dignidade de seu latim e de suas obras e
isso dependia sobretudo do que pensavam de seus esforços literários os seus
próprios companheiros intelectuais. Essa questão da honra e da reputação era
tanto mais importante para eles nesse período quanto sua prática ainda não tinha
se institucionalizado nas cortes e universidades da Europa e o sucesso de suas
carreiras individuais dependia em grande parte da estima dos que já eram
conhecidos e bem sucedidos e de quem poderiam seguir os passos. Com efeito,
como bem nos mostra Celenza58, a cultura humanista, sobretudo nesses primeiros
tempos, podia ser definida essencialmente como concentrada no valor do
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57
SALUTATI, C., Invenctivum in Antonio Luschum Vicentinum, In: Prosari latini de
Quatroccento, Apud, Celenza, C., op. cit., p. 119.
58
Idem, p. 121.
59
A corte Papal, especialmente por volta de 1440 se constituía num ótimo lugar para buscar
emprego e posição. Tratava-se de uma instituição em fluxo, sofrendo profundas transformações
sob a eclosão do cisma, que minimizava a ortodoxia romana e tornava mais aberta à penetração da
cultura de vanguarda dos humanistas. Petrarca voltou seus esforços para inserir-se na corte Papal,
empenhando-se em sua obra na consolidação de um novo modelo cultura que harmonizasse a
eloqüência dos humanistas com as preocupações religiosas dos pensadores medievais. Idem, p.
123.
44
Eles deixam as delicadezas vazias para as mulheres, eles se alegram com coisas
nobres e viris; eles não se preocupam em dormir seja à sombra de uma árvore
seja no banco de um rio. Eles podem passar alegremente uma boa parte do dia
em meio a colinas verdes, para adiar sua refeição até a tarde, esquecer sua
refeição principal, e, se a ocasião surgir, passar a noite em claro com prazer em
meio aos livros. Eles não têm menos amor por cavernas úmidas do que por
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camas adornadas com ébano e marfim, não menos amor por um gramado
florido do que por uma cama colorida coberta de veludo. Eles permanecem
numa ingênua pobreza; eles não odeiam o lucro propriamente, mas conferem
pouco valor a ele. (...) Eu não conto a mim mesmo nesse número de pessoas.
Mas todavia estou me esforçando e parece que faço algum progresso.61
60
Nessa passagem de Petrarca se evidencia aquilo que Christopher Celenza procura nos mostrar
em relação ao significado da honra na cultura do Renascimento como ligada essencialmente à
diferenciação entre os gêneros. Segundo Celenza, honra e reputação, assim como o elogio do bom
Latim, eram tópicas ligadas à afirmação da masculinidade. É freqüente, assim, na literatura da
época a associação entre desonra e um comportamento dissoluto, dominado pelas paixões,
definido como feminino. Idem, 127.
61
PETRARCA, Familiares, To Francesco Da Napoli, Apostholic Prothonotary, XIII, 4, p. 184.
45
A glória renascentista, por sua vez, tinha como princípio uma consciência
profundamente enraizada no interesse pelo âmbito mundano das atividades
humanas e no questionamento acerca de suas potencialidades e da forma de sua
grandeza. A glória humanista era expressão de uma excelência propriamente
humana, expressa na arte e na sabedoria de grandes oradores e poetas. Estes, por
sua vez eram os que detinham o poder de conferir glória e validade universal aos
exemplos de virtude, nos mais diversos campos da atuação humana, cumprindo a
grandiosa missão de estabelecer a imagem pura da virtus como uma medida de
valor moral na comunidade dos homens.
Era o conceito de dignidade humana que estava no cerne da moralidade
humanista, forjado a partir da retomada e do desenvolvimento dos pressupostos da
virtus ciceroniana, desde a obra de Petrarca. Isto é, do alcance dessa perfeita
excelência como possibilidade aberta a todos os homens e de uma sólida educação
calcada na primazia dos estudos coligados de retórica e filosofia como sua
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De um ponto de vista mais geral e profundo, pode-se dizer que esse elogio
humanista da glória articulou-se a um debate central dos primeiros tempos do
Renascimento, da conciliação entre a confiança na presciência divina,
característica da cultura medieval, e a afirmação da liberdade do agir e do querer
humanos, traço marcante da nova moralidade humanista. De acordo com a ética
cristã e com a tradição agostiniana da natureza decaída do homem, a exaltação de
sua liberdade de ação e de sua glória se definia como um dos mais graves vícios,
pois, de sua perspectiva, a glória humana não passava de vã glória, implicando em
blasfêmia contra a única verdadeira excelência que estava na plenitude de Deus.
Portanto, nesse contexto, o que temos é a reafirmação de uma concepção negativa
da glória e sua radicalização profunda, orientada num outro caminho e por razões
46
62
No Evangelho de São João é possível encontrar várias passagens que demonstram claramente
que a glória é atributo exclusivo de Deus e que entre os homens ela é falsa e viciosa: “E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai,
cheio de graça e de verdade.” (João. 9, 14); “Quem fala por própria autoridade busca a própria
glória, mas quem procura a glória de quem o enviou é digno de fé e nele não há impostura
alguma.” (João. 8, 54). Sobre a negação agostiniana da glória mundana é interessante relermos o
capítulo 6 do sexto livro das Confissões, pois, procurando nos dar a medida da miséria de suas
antigas ambições de grandeza, Agostinho nos narrou a ocasião de seu encontro com um mendigo
embriagado e comparou-se com ele: “Aquele mendigo folgava na embriaguez, tu ambicionavas a
alegria na glória. E em que glória Senhor? Naquela que não está em Vós. Porque aquela alegria
não era verdadeira, assim como não era a glória, esta ia agitando cada vez mais o meu espírito. O
ébrio curaria ainda naquela noite a sua embriaguez, e eu já me deitara e erguera com a minha e
com ela me havia de deitar e erguer. E reparai Senhor por quantos dias! Importa saber as razões
por que cada qual se alegra. Conheço e vejo que a alegria da esperança fiel dista infinitamente
daquela vaidade! Também entre o ébrio e mim havia grande diferença. Sem dúvida ele era mais
feliz não só porque transbordava de hilariedade – porém eu era devorado por ansiedades – mas
porque ele adquirira o vinho desejando prosperidade aos seus benfeitores, enquanto eu procurava a
ostentação com a mentira.” SANTO AGOSTINHO, Confissões, VI, 6. p. 114.
63
SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, V, 17, p. 215
64
GARIN, E., L`Education de l`homme moderne., p. 28.
47
providência divina mas era posta no domínio do devir, apreciada como evolução
de potencialidades. Sua convicção fundamental era a de que todos aqueles que
tivessem uma vocação natural para o estudo das humanidades deveriam fazer do
desenvolvimento máximo e da busca da virtus, o objetivo mais alto de suas
vidas.65
Essa exortação teve grande importância entre os humanistas republicanos
do Quatroccento que também consideraram essencial a formação nos studia
humanitatis para a vida virtuosa do cidadão. Sua reflexão moral e política
centrada no valor da vita civile se constitui num exemplo expressivo de aplicação
prática dos ideais humanistas e de desenvolvimento de seus princípios na
sustentação ideológica do ideal da liberdade. Com efeito, autores como Coluccio
Salutati e Leonardo Bruni (ambos chanceleres de Florença) conceberam a antiga
republica romana como o maior repositário de virtus em toda a história do mundo,
conclamando seus compatriotas do Regnum italico a restaurar as glórias passadas.
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65
Desse modo um dos pontos cruciais da pedagogia humanista se baseava num compromisso com
o futuro dos homens e da sociedade: daí a preocupação recorrente em vários de seus escritos com a
educação das crianças, pois disso dependia a formação de homens mais justos e virtuosos. Entre os
muitos tratados humanistas que abordaram esse tema estavam o De Pueris instituendis de Erasmo
de Rotterdã (1529); A boa educação dos meninos, de Sadoleto, (1534) e o Tratado sobre a boa
educação de Juan Luís Vives (1531). Sobre esse assunto ver PINTO, Fabrina Magalhães, O
Discurso Humanista de Erasmo: uma retórica da interioridade. Tese de doutorado, Puc-RJ, 2006.
66
BRUNI, L., Panegiric to the city of Florence, In: The earthly republic, p. 150.
48
poder à virtus do que os antigos, tal como podemos ver pelo exemplo do célebre
capítulo 25 de O Príncipe, aonde Maquiavel declarou que a fortuna governava
apenas a metade da vida humana e que a outra metade era deixada ao seu livre
arbítrio. Ressaltava então a idéia de que a liberdade de escolha e de ação humana
desempenhava papel bem mais importante do que se supunha no fluxo dos
acontecimentos. Desse modo, Maquiavel comparou a fortuna a um desses rios
impetuosos que alagava as margens, arrastava as árvores e casas, sem que os
homens pudessem resistir-lhe, mas nunca o fazia uma segunda vez se estes
mesmos homens tomassem providências para conter-lhe o ímpeto. A fortuna se
transformava assim em força débil diante do despertar do poder criativo e
intelectual do homem de impor-se contra seus assaltos:
O mesmo acontece com a fortuna, que demonstra sua força aonde não encontra
uma virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta seu ímpeto para onde sabe
que não foram erguidos diques e barreiras para contê-la. Se considerares a Itália,
67
Como nos mostra Skinner, Burckhardt ilustrou bastante bem esse ideal no capítulo em que nos
falou sobre a personalidade de Léon Battista Alberti, que, tendo nascido com o estigma de
bastardo, vivendo a indignidade da pobreza e do exílio além de limitações de saúde, considerou
todos esses problemas como desafios da fortuna, vencendo-os um a um e conquistando para si uma
honra imortal. Segundo Burckhardt a vida de Alberti expressa a plena realização do ideal
humanista de excelência universal: destacou-se por suas obras no domínio da arquitetura, no
âmbito literário e artístico. BURCKHARDT, J., op. cit., p. 117.
49
que é sede e origem dessas alterações, verás que ela é um campo sem diques e
sem qualquer defesa (...)68
68
A partir dessa perspectiva Maquiavel podia denunciar a ausência de virtù na Itália de seu tempo
como causa de suas agitações, perpassada por conflitos internos e invasões, conclamando à
emergência da virtù ordenadora do príncipe. MAQUIAVEL, O Príncipe, I, 25, p. 121.
69
SKINNER, Q., op. cit., p. 114.
70
Mas ela já havia sido abordada anteriormente por Gianozzo Manetti em seu De dignitate et
excelentia hominis, escrito em 1452 como refutação do extremo pessimismo expresso pelo Papa
Inocêncio III em sua obra intitulada a Miséria do homem. Neste seu tratado Manetti avançou sobre
um ponto que seria retomado mais tarde por Pico e que cumpriria papel central em sua idéia da
dignidade humana: do louvor ao homem por sua aptidão própria de moldar seu destino segundo as
numerosas operações da inteligência e da vontade em impor-se contra as forças da natureza e de
suas necessidades. Idem.
71
PICO DELLA MIRANDOLA, Discurso sobre a Dignidade do Homem, primeira parte, p. 39.
50
Ó Senhores sejamos sim transportados em êxtases socráticos. São eles que nos
situam além do intelecto de sorte a colocar a mente e a nós mesmos em Deus.
Aí estaremos, com toda certeza, se antes, tivermos realizado quanto depende de
nós. Se, de fato, por meio da moral a força dos apetites for direcionada por
freios reguladores segundo suas exatas medidas, de modo a se harmonizarem
entre si e em concordância estável; se, ainda graças à dialética, a razão progredir
dentro de sua ordem e medida; então tangidos pelo forte sentimento das musas,
haveremos de absorver, com os ouvidos de nossa interioridade a celeste
harmonia73
72
GREENE, T., The Flexibility of the self in the Renaissance literature, In: The disciplines of
criticism, p. 243.
73
PICO DELLA MIRANDOLA, op. cit., p. 52.
74
GREENE, T., op. cit., p. 243.
51
75
Especialmente para Erasmo os homens que não têm acesso ao conhecimento da
filosofia e das outras disciplinas não passam de criaturas inferiores, muito
próximas aos animais: “De fato, enquanto os animais obedecem cegamente aos
instintos da natureza, o homem, desprovido dos parâmetros das letras e dos
ensinamentos da filosofia, fica antes sujeito a impulsos mais que animalescos.
Nenhum animal é tão ferino e nocivo quanto o homem, quando arrastado por
ímpetos de ambição, de cupidez, de ira, de inveja, de luxúria e de lascívia. Razão
porque quem não se antecipa para iniciar o filho na esfera de preceitos sadios não
se tenha a si mesmo na conta nem de ser humano nem de filho de homem algum.”
Para o humanista, cabe inicialmente aos pais e, em seguida, ao próprio aluno/filho
desejar se transformar moral e espiritualmente; e esta formação apenas é possível
com o estudo das “boas letras”, condição primeira para se moldar até a perfeição
aquela matéria flexível e maleável. Assim, recomenda ainda o humanista: “Que tu
reflitas, em teu íntimo, quanto de conforto, de utilidade e de glória refluem do
filho sobre os pais, posto que retamente educado.” Erasmo se dedica a esta tópica
da formação humana em tratados pedagógicos como o De pueris, De ratione
studii e De copia, pois é o propósito central da sua nova educação “formar seres
livres na liberdade que é ao mesmo tempo tão difícil e tão bela.” ERASMO, De
Pueris apud Pinto, Fabrina Magalhães. O discurso humanista de Erasmo: uma
retórica da interioridade, p. 112.
76
VAROTTI, C. op. cit. p. 120.
52
E, para discorrer sobre isso com mais particularidades, digo que, sem os
cidadãos bem reputados, as repúblicas não podem manter-se nem bem
governar-se. Por outro lado, a reputação dos cidadãos é razão para o surgimento
da tirania nas repúblicas. E quem quiser regular tais coisas precisa ordenar tudo
de tal modo que os cidadãos sejam bem reputados, que sua reputação seja útil, e
não nociva, à cidade e à liberdade desta.79
78
Atestando essa atmosfera de paixões exaltadas Burckhardt nos fala da ânsia de glória de
Lorenzino de Médicis que o levou ao assassinato do duque Alexandre de Florença (1537), à
maneira do exemplo antigo de Erostrato que, à época de Felipe da Macedônia, incendiou o templo
de Éfeso a fim de perpetuar para sempre a recordação de seu nome. BURCKHARDT, J., op. cit.,
p. 125.
79
MAQUIAVEL, Discursos, III, 28, p.406.
54
80
VAROTTI, C., op. cit., p. 426.
55
homens, já surgira num contexto diverso e muito mais remoto, na escrita pessoal
de Petrarca, associada mais propriamente ao âmbito artístico-literário e dizendo
respeito às complexidades internas da alma humana, de uma maneira mais geral.
Na verdade, como procuraremos mostrar, essa noção da naturalidade da glória,
que teve tanta importância no sentido de consolidar-lhe um estatuto ético positivo
em âmbito político e social, entre os autores italianos, enraizou-se na reflexão de
Petrarca. Nela, com efeito, essa tópica funcionou como princípio da consolidação
de alguns dos elementos básicos da cultura humanista, da autoafirmação do
homem e da valorização de sua experiência no mundo, em oposição aos valores
cristãos e medievais que a condenavam em nome da salvação.
O reconhecimento da naturalidade da glória, já aparecia, portanto, na
meditação do Secretum, escrito por volta de 1342 e 1343 em que Petrarca
tematizou a dualidade vivenciada em seu espírito, num conflito angustiante entre
sua aspiração à salvação e o apelo de seu amor pelas coisas do mundo e pela sua
atividade literária, que o levavam num outro caminho. A ambição de glória
mundana emergiu no Secretum para por em jogo as suas convicções morais mais
íntimas; era fortemente condenada por sua consciência cristã, personificada na
obra pela figura de Santo Agostinho, pois contradizia seu desejo de libertar-se de
81
MAQUIAVEL, op. cit., I, 10, p. 44.
82
Idem, I, 1, p. 7.
56
que aprender a aceitar o caráter medíocre de sua existência mortal para dedicar-se
a uma vida de pura contemplação com o objetivo de agradar a Deus e não de obter
os aplausos dos homens. Assim Santo Agostinho lhe dizia nas últimas páginas do
Secretum:
83
PETRARCA, Mon secret, p. 183.
57
A fama que buscamos não é nada além de vento, fumaça, sombra: não é nada.
Por isso pode ser facilmente desprezada por um julgamento claro e correto.
Mas, se por acaso – desde de que essa espécie de ambição pode facilmente
infiltrar-se no ânimo generoso – não puderes erradicar esse apetite porque
profundamente enraizado, ao menos pode refreá-lo com o poder da razão.86
84
Idem, p. 184-85.
85
Idem.
86
PETRARCA, Familiares, I, 2, p. 21.
58
dos desígnios próprios da escrita privada dos Ensaios. De fato, essa tópica da
aceitação da naturalidade da glória que acabamos de abordar também aparece no
ensaio, tornando também ambíguo o conteúdo de sua crítica e distanciando sua
forma da crítica filosófica tradicional, a que parecia aderir num primeiro
momento. Sua apropriação por Montaigne vinha revelar o caráter original de seu
trabalho reflexivo que se definia como princípio do estilo privado e pessoal de sua
escrita. Como procuraremos frisar, em seu interior ela também afirmava sua
importância, mas não servia como ponto de partida para a afirmação de um
significado positivo para a glória: ela não funcionava para relativizar tanto assim a
sua crítica, mas dizia respeito a desígnios bem diversos da preocupação humanista
com a exortação dos homens à virtude e com a realização de sua excelência.
87
VAROTTI, C., op. cit., p. 124.
3.
redigidos à época de sua decisão pelo abandono dos negócios públicos, entre 1571
e 1572, manifestando já sua relevância nos Ensaios como exaltação do ideário que
estava nas bases de sua forma, exclusivamente a serviço de sua tranqüilidade.1
Uma de suas mais expressivas ocorrências se encontra no capítulo Da solidão em
que Montaigne celebrou as qualidades da vida solitária, dedicada ao cultivo da
alma, enfatizando a enorme diferença que havia entre seus próprios valores e
costumes e os dos homens de seu tempo, dominados pelas paixões de primazia:
“Quem não troca voluntariamente, a saúde o repouso e a vida pela fama e pela
glória, a mais inútil vã e falsa moeda em uso entre nós?” 2
Ao invés destes, que não passavam de servos de suas ambições e que
tinham sua razão de ser no engajamento total nos negócios do mundo público,
Montaigne renunciou ao seu cargo de conselheiro no Parlamento de Bordeaux a
partir de 1571 em benefício de uma vida pautada na fidelidade a si próprio, não
dependente dos interesses externos. A partir de então ele estabeleceu o espaço
privado da biblioteca de seu castelo como lugar de ruptura com a insensatez que
1
Ver introdução.
2
“Qui ne contre-change volontiers la santé, le repos et la vie à la reputation et à la gloire, la plus
inutile, vaine et fauce monnoye Qui soit en nostre usage.” MONTAIGNE, I, 39, p. 241.
60
3
É impossível saber ao certo as razões pelas quais Montaigne se decidiu tão repentinamente pelo
abandono da vida pública. Como nos mostra Pierre Villey: “Vejam bem, diz-se: quando
magistrado, ele agarrava todas as oportunidades para acorrer a Paris e mostrar-se na corte. Vai para
lá pelo menos duas vezes, e na segunda fica ausente por longo tempo, talvez dezessete anos. Todas
as vezes acompanha a corte em viagens pelas províncias (...)” Villey, P. Vida e Obra de
Montaigne, In: Ensaios, V. I, p. LX. Montaigne recebera de seu pai Pierre Eyquen uma sólida
educação humanista e fora criado para alçar as mais altas posições. Tomou assento na Câmara de
Inquéritos do Parlamento de Bourdeaux ainda em 1561 e lá permaneceu até o momento da
renúncia dez anos depois. Os conflitos internos entre seus colegas e uma tentativa frustrada de
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ascensão à grande Câmara (a mais soberana, aonde se pronunciavam as sentenças) podem ter
precipitado a retirada, além de outras razões, como a melancolia causada pela morte de seu grande
amigo Etienne De La Boètie em 1563 que conhecera no cumprimento de suas funções no
Parlamento, assim como a morte de seu pai em 1568. De todo modo, como se sabe, ele não iria
abandonar completamente os negócios públicos a partir de então. Em 1574 estava no exército real
no baixo Poitou, além de cumprir ainda missões diplomáticas junto a seus ex colegas do
Parlamento. Era muito íntimo do rei Henrique de Navarra por quem foi nomeado fidalgo de seu
gabinete em 1577. No entanto, muito pouco de sua vida pública aparece nos Ensaios, fruído a
partir do domínio privado de sua vida retirada. Como bem nos mostra Starobinski quanto ao
estabelecimento do espaço do autoexílio, celebrado pela inscrição de 1571: “o importante para ele
é ter conquistado a possibilidade de estabelecer-se em um território pessoal e privado, de ali tomar
a todo tempo um recuo absoluto, saindo do jogo: o importante é ter dado à distância reflexiva sua
localização a um só tempo simbólica e concreta, ter-lhe reservado um sítio, sem se obrigar a
habitá-lo constantemente.” STAROBINSKI, J. op. cit., p. 16.
4
A fonte principal desse “eventual” estoicismo de Montaigne tomado de Sêneca, parece ter sido
principalmente as Cartas a Lucílio. Além de Da solidão, podemos atestar a forte influência do
“senequismo” nos capítulos I, 19; I, 20 e I, 40, todos datados dos primeiros tempos da escrita dos
Ensaios. Mas se devemos levar em consideração a observação de Pierre Villey, que em seu
Sources et Evolution des Essais, nota o modo como as citações tomadas diretamente de Sêneca
perderam espaço na edição de 1588, é preciso por outro lado, observar que a crítica e o
afastamento de Montaigne em relação a ele jamais foram generalizados, incidindo exclusivamente
ao que restava de dogmático e de normativo em sua reflexão moral, ou seja, ao ideal regulador do
sábio que pemanecia no horizonte de seu pensamento filosófico. O autor dos Ensaios não deixou
de reificar sempre seu “senequismo”, especialmente no que dizia respeito ao modo como o filósofo
afirmava seu próprio afastamento do antigo dogmatismo dos estóicos gregos, expresso no
ecletismo das Cartas a Lucílio e no modo como declarava limites à pretensão da filosofia em
prover a felicidade humana, contrapondo às suas generalizações a diversidade individual e as
particularidades dos homens. Sobre isso ver, por exemplo, a carta 22 do primeiro volume de suas
Cartas a Lucílio. EVA, L., “Notas sobre a presença de Sêneca nos Essais de Montaigne”. In:
Educação e Filosofia, 17, p. 42-47. De resto, concordamos ainda com Fausta Garavini, que em seu
Itinéraires à Montaigne, sublinha que o autor dos Ensaios encontrou nas Cartas de Sêneca antes
um modelo estilístico para sua escrita pessoal do que um mestre filosófico. Agradava a ele o
caráter peremptório das frases de Sêneca e a densidade de significado contida em suas sentenças
concisas e lapidares. Nesse sentido, o afastamento do estoicismo que se verifica nos ensaios
posteriores, não significou propriamente um afastamento de Sêneca: Montaigne jamais renegou
sua influência em termos estéticos e formais ao longo dos anos em que desenvolveu seu discurso,
61
passagem das cartas de Sêneca para demonstrar o absurdo de ter nas ambições do
mundo as razões da própria vida e para enunciar aquele que era o preceito central
que dava sentido à sua crítica, ou seja, da necessidade de se praticar a virtude por
seu próprio valor: “Os sábios propõem-se um fim mais belo e mais justo para um
empreendimento tão importante. (C) ‘A recompensa de uma boa ação é havê-la
feito’”5 Em Da solidão, do mesmo modo, ele destacou a motivação essencial de
sua empresa, isto é da busca da liberdade e autonomia de uma vida tranqüila
pautada exclusivamente em seu próprio bem:6 “Ora, pois que decidimos viver sós
e dispensar companhia, façamos que nosso contentamento dependa de nós;
desapeguemo-nos de todas as ligações que nos prendem a outrem, obtenhamos de
nós mesmos o poder de viver sós e de vivermos a gosto assim.”7
Essa passagem de Da solidão, com efeito, definia a maneira e os princípios da
denúncia da glória como ilusão, que seria o tema de Da glória, explicitando a
relevância dessa convicção nas origens da escrita dos Ensaios, assim como o
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de 1571 a 1595. A sua relação estreita com Sêneca, estabelecida desde os primeiros ensaios,
pautada em seu gosto por belas expressões, afirmou-se como paradigma de sua relação com os
demais autores clássicos. GARAVINI, F., Itinéraires à Montaigne, p. 30.
5
“Les sages se proposent une plus belle et plus juste fin à une si importante entreprise. (C) ‘La
récompense d`une bonne action, c`est de l`avoir faite.”” MONTAIGNE, II, 16, p. 629.
6
Sobre esse tema nas Cartas a Lucílio de Sêneca ver cartas 7, 19 e 22 por exemplo. VILLEY, P.
op. cit., p. 239.
7
“Or, puis que nous entreprenons de vivre seuls et de nous passer de compagnie, faisons que notre
contentement despende de nous; desprenons nous de toutes les liaisons qui nous attachent à autruy,
gaignons sur nous de pouvoir à bon escient vivre seuls et y vivre à nostr`aise.” MONTAIGNE, I,
39, p. 240.
8
Nesse tom Sêneca exortava Lucílio a abandonar as ambições que o vinculavam à vida pública,
definindo-a como uma servidão, oposta à verdadeira liberdade e felicidade da vida retirada,
dedicada à sabedoria: “Uma rápida e bem sucedida carreira apartou-te para longe das perspectivas
de uma vida salutar: uma província a administrar, um cargo de procurador, as novas missões que
logicamente seriam de esperar! Cargos ainda mais importantes estarão à sua espera, e depois
outros ainda. Até quando? Porque esperar até não haver mais postos que desejes ocupar? Tal
momento nunca chegará! Segundo a nossa escola, o destino tece-se a partir dum nexo definido de
causas; idêntico é o nexo das ambições: cada uma gera sempre mais outra! Estás metido numa vida
que, por si mesma, nunca porá um termo à miséria de tua servidão. Retira de sob o jugo o teu
pescoço magoado: é preferível que te cortem de uma vez que te sobrecarregares sempre! Se te
retirares para a vida privada terás tudo em escala reduzida, mas o que tiveres chegará para te
cumulares; presentemente, todos os bens e honras que se acumularem sobre ti não bastam para te
saciar.” SÊNECA, Cartas a Lucílio, carta 19, p. 67.
62
9
“L`an du Christ 1571, à l`age de trente et huit ans, la veile des calendes de mars, ennuyée de
l`esclavage de la Cour du Parlement et des charges publiques, se sentant encore dispos, vint à part
se reposer dans le sein des Doctes Vierges dans le calme et la securité (...)” MONTAIGNE, op.
cit., p. LIX.
63
10
“Il y a le nom et la chose: le nom c`est une voix que remerque et signifie la chose, le nom c`est
n`est pas une partie de la chose ny de la substance, c`est une piece estrangere joincte à la chose et
hors d`elle.
Dieu, qui est en soy toute plenitude et le comble de toute perfection, il ne peut s`augmenter et
accroistre au dedans ; mais son nom se peut augmenter et accroistre par la benediction et louange
que nous donnons à ses ouvrages exterieurs. Laquelle louange, puis que nous ne la pouvons
incorporer en luy, d`autant qu`il n`y peut avoir accession de bien, nous l`attribuons à son nom, qui
est la piece hors de luy la plus voisine. Voylà comment c`est à Dieu seul à qui gloire et honneur
appartient; et il n`est rien si esloigné de raison que de nous en mettre en queste pour nous: car
estant indigens et necessiteux au dedans, nostre essence estant imparfaicte et ayant continuellemnt
besoing d`amelioration, c`est là à quoy nous nous devons travailler.” Idem, II, 16, p. 618.
64
11
FRIEDRICH, H., Montaigne, p. 169.
65
12
A atenção aos males da adulação era tópíca freqüente na literatura moral e política da
Renascença. Maquiavel, no Príncipe (1515), e Erasmo, no Manual para um príncipe cristão,
escrito um ano após o texto de Maquiavel e em correspondência direta com este, procuraram
alertar o príncipe sobre os perigos da adulação e a necessidade de se manter imune a este mal o
quanto possível. Diz Erasmo, citando Diógenes: “se não me equivoco, foi ele que interrogado
sobre qual animal era o mais nocivo de todos, disse: ‘se falas das feras, o tirano, se falas dos
animais domésticos, o adulador.’ E continua: “tem essa peste um doce veneno, mas virulento,
chegando ao ponto de que em outro tempo, enlouquecidos por ele, os príncipes dominadores do
mundo permitiram aos mais desprezíveis aduladores que julgassem com eles; e estes abomináveis
e libertinos homenzinhos, muitas vezes escravos dos próprios governantes, reinavam de fato sobre
os donos do mundo.” ERASMO. Éducación del Príncipe Cristiano. Madrid: Editorial Tecnos
(Grupo Anaya, S. A.), 2003, p. 86.
66
‘Vinde aqui junto a nós ó louvável Ulisses, o mais glorioso que na Grécia
floresce.’13
13
“Chrysippus et Diogenes ont esté les premiers autheurs et les plus fermes du mespris de la
gloire; et, entre toutes les voluptez, ils disoient qu`il n`y en avoit point de plus dangereuse ny plus
à fuir que celle que nous vient de l`approbation d`autruy. De vray, l`experience nous en faict sentir
plusieurs trahisons bien dommageables. Il n`est chose qui empoisonne tant les Princes que la
flatterie, ny rien par où les meschans gaignent plus aiséement credit autour d`eux; ny maquerelage
si propre et si ordinaire à corrompre la chasteté des femmes, que de les paistre et entretenir de leurs
louanges. (B) Le premier enchantement que les Sirenes employent à piper Ulisses, est de cette
nature, ‘Deça vers nous deça ô treslouable Ulisse, Et le plus grand honneur dont la Grece
fleurisse’, MONTAIGNE, II, 16, p. 619.
14
“(...) moins exposez aus injures et offences d`autruy, et choses semblables”. Idem.
67
(...) este preceito de sua seita ‘esconde tua vida’, que proíbe os homens de se
enredarem com cargos e assuntos públicos, também pressupõe necessariamente
que se menospreze a glória, que é uma aprovação que o mundo dá às ações que
colocamos em evidência. Quem ordena que nos ocultemos e nos ocupemos
apenas de nós quer menos ainda que sejamos homenageados e glorificados. Por
isso ele aconselha a Idomeneu a não pautar suas ações pela opinião e
considerações gerais, a não ser para evitar os outros inconvenientes acidentais
que o menosprezo dos homens lhe poderia trazer.15
15
“(...) car ce precepte de sa secte: CACHE TA VIE, qui deffend aux hommes de s`empescher des
charges et negotiations publiques, pressupose aussi necessairement qu`on mesprise la gloire, qui
est une approbation que le monde fait des actions que nous mettons en evidence” Idem.
16
“(...) elles grandes et dignes d`un tel philosophe, mais si ont elles quelque marque de la
recommendation de son nom, et de cette humeur qu`il avoit décriée par ses preceptes.” Idem, p.
620.
68
poderes da razão. Por isso, voltaremos a essa passagem ao longo desse trabalho,
nos detendo nas conseqüências que implicava no interior de sua reflexão.
Com efeito, essa constatação da glória como uma condição universal da
natureza humana, impossível de ser plenamente unificada pelos preceitos da razão
– “doubles en nous mesmes” – determinava um limite à sua ação, explicitando a
natureza própria da experiência interior de Montaigne e as conclusões que extraía
de sua observação do comportamento dos homens, tal como se manifestava à sua
volta e nas obras da Antigüidade.18 A partir dela ganhavam novos significados não
apenas a velha tópica clássica da naturalidade da glória como também o ideal
filosófico do estoicismo do centramento interior na firmeza da razão. Aquela ao
17
“Mais nous sommes, je ne sçay comment, doubles en nous mesmes, qui faict que ce que nous
croyons, nous ne le croyons pas, et ne nous pouvons deffaire de ce que nous condammons.” Idem,
p. 619.
18
Essa passagem em seu teor e em sua forma se assemelha a outras que destacavam-se de suas
reflexões em outros ensaios. Tal como esta que ressaltamos em Da glória, elas delineavam uma
determinada imagem da natureza humana extraída das idéias e considerações de Montaigne. Isso
ocorre especialmente no primeiro ensaio do livro I, Por diversos meios chega-se ao mesmo fim:
“Decididamente, o homem é um assunto espantosamente vão, variado e inconstante. Sobre ele é
difícil estabelecer uma apreciação firme e uniforme.” (I, 1, p. 9) E também no primeiro do segundo
livro, Da inconstância de nossas ações: “Nosso comportamento ordinário, é de seguir as
inclinações de nosso apetite, à esquerda, à direita, acima, abaixo, conforme nos leva o vento das
ocasiões.” (II, 1, p. 333). Tal como no trecho de Da glória em que Montaigne postulava essa
condição contraditória e universal de ser “doubles en nous mesmes”, a imagem do homem que
surgia nesses ensaios sublinhava a impossibilidade prática do espírito humano fixar-se em sua
razão. Sua natureza definia-se pelo movimento diverso e imprevisível de suas afecções, idéias e
impressões no contato com as coisas do mundo externo.
69
19
O primeiro exercício filosófico do estoicismo no sentido da realização plena da sabedoria e da
autonomia interior consistia em discernir a diferença entre o princípio diretor da alma -
hegemonikon -, lugar da identidade do eu e de sua consciência de si, das partes constitutivas da
alma e do corpo que não faziam parte do ser por receber involuntariamente as impressões do
mundo sensível definindo-se como lugares de origem das paixões do corpo e da alma. O princípio
diretor da alma exercia sua liberdade de escolha recusando-se a assentir nas falsas representações
das coisas do mundo recebidas por sua faculdade vital e afetiva - phantasia -assim como aos
desejos do corpo, impedindo assim a emergência das paixões que o desertavam de sua própria
razão. Sobre isso ver especialmente as Meditações de Marco Aurélio (II, 2, 1-3; II, 17, 1-4; III,
16,1) HADOT, P. La citadelle interieur, p. 131.
20
VILLEY, P. Sources et Evolution des Essais, p. 53.
21
Sobre a afirmação desse ideal em Sêneca ver a carta 20 das Cartas a Lucílio.
22
“De vray, qui desracineroit la cognoissance du mal, il extirperoit quand et quand la cognoissance
de la volupté, et en fin aneantiroit l`homme.” MONTAIGNE, II, 12, p. 493.
70
Mas é importante frisar que o autor dos Ensaios sempre manteve viva sua
identificação com os argumentos do estoicismo, dos primeiros aos últimos
escritos. Se desfazia-se do aspecto dogmático e doutrinal dessa tradição, é preciso
reconhecer que o uso de seus preceitos sempre lhe foi conveniente na medida em
que exaltavam o desejo de autonomia e o esforço da própria vontade em libertar-
se das exigências e interesses do mundo. Nesse registro, exclusivamente, o
objetivo da sabedoria estóica condizia com o da escrita privada de Montaigne,
conforme podemos verificar no capítulo Da glória, que ora analisamos.
Mas, com efeito, postulando a duplicidade e a fragmentação interior como
marca distintiva da natureza humana, ele feriu o estoicismo em seu dogma central,
que, a seu ver, expressava a presunção que lhe era inerente. De fato, desde Zenão
e Crisipo, os filósofos estóicos sustentavam a unidade substancial do espírito
determinada por sua natureza racional; ao se converterem a ela, mediante a
exclusão das paixões, os homens faziam-se semelhantes à superioridade dos
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23
Esse velho dogma estóico do monismo intelectual da alma marcava sua diferença em relação ao
platonismo que postulava a dualidade entre uma parte racional, boa por si mesma, e outra
irracional, má e pervertida em sua própria essência. Para os estóicos, era a razão o princípio diretor
da alma – hegemonikon -, sua única substância e lugar da própria identidade e autonomia. As
paixões e perturbações da alma, assim, não correspondiam a outra parte sua, distinta de sua
natureza racional, mas se davam como resultado de um mau funcionamento do princípio diretor.
Eram como doenças a serem extirpadas da alma através da interiorização dos preceitos da doutrina
para que ela pudesse restaurar-se na pureza de sua razão. Ao homem que desejasse ser realmente
virtuoso e feliz era necessário que vivesse somente pela razão e para ela. Devia aprender a
submeter sempre à crítica seus desejos, temores e paixões a fim de não tornar-se um refém de suas
faculdades afectivas; de suas phantasias, produzidas pelas impressões sensíveis dos objetos
externos do mundo. Como Sêneca afirmava, a autosuficiência da razão humana se traduzia num
poder de discernimento e escolha moral que a associava à transcendência e à plena liberdade dos
deuses. Desse modo, era somente nela que podia realizar-se a grandeza humana mais alta: “(...)
esta não tem qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de
referência a tudo. Também a razão divina governa tudo quanto existe sem a nada estar sujeita; o
mesmo se passa com a nossa razão, que aliás provém daquela.” SÊNECA, op. cit., carta 92, p. 462.
24
Sobre isso nos diz Jean Starobinski logo no início de seu Montaigne em Movimento: “É no efeito
de ilusão desse teatro que Montaigne insiste, como tantos de seus contemporâneos. Esse jogo que
se impõe a nós é um jogo de sombras. A grandeza dos príncipes é pura comédia: simulacros hábeis
bastam para figurar a majestade e suscitar o respeito dos povos. A sabedoria dos prudentes e a
doutrina dos sábios não são menos ilusórias. Tudo é trapaça, logro, aparência, artifício.”
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 11.
71
De fato, como bem nos mostra Pierre Hadot25, tanto o estoicismo como as
outras escolas helênicas jamais pregaram uma filosofia de absoluta evasão em
relação aos interesses da comunidade dos homens e de sua aprovação. Nenhum
desses filósofos renunciaram realmente a exercer certa influência sobre a cidade, a
conquistar a benevolência dos homens e a transformar a sociedade através de seus
ensinamentos. O sábio, portador de uma rara forma de grandeza também atraía a
admiração pública por sua condição excepcional, como exemplo de perfeição
moral, de liberdade e autonomia, fazendo-se exemplo da excelência mais perfeita
a que a condição humana podia se converter.
Na carta 21 das Cartas a Lucílio de Sêneca podemos encontrar uma
expressão significativa da atitude do sábio, retirado do mundo, em relação à
glória. Nessa ocasião, Sêneca exortou seu discípulo Lucílio a abandonar a vida
pública e a preocupação com a fama de grandes feitos, acenando com a promessa
de uma outra espécie de glória, bem mais plena e sólida, proveniente da dedicação
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Tu atribuis uma certa grandeza ao tipo de vida que deverás abandonar; embora
tenha uma antevisão da vida sábia e tranqüila a que irás aceder, o brilho
aparente da vida mundana continua a atrair-te, como se o fato de abandonares a
sociedade equivalesse a caíres numa vida de obscuridade completa. Estás
enganado Lucílio: passar da vida mundana à vida da sabedoria é uma ascensão!
A luz distingue-se do reflexo por ter sua origem em si mesma, enquanto o
reflexo brilha com luz alheia; a mesma diferença separa os dois tipos de vida: a
vida mundana tira seu brilho de circunstâncias exteriores e o mínimo obstáculo
imediatamente a torna sombria; a vida do sábio essa brilha com sua própria
luminosidade. Os teus estudos farão de ti um homem ilustre e famoso!26
25
HADOT, P. “La philosophie comme manière de vie” In: Exercices spirituels et philosophie
antique, p. 301.
26
SÊNECA, Cartas a Lucílio, 21, p. 74.
72
27
“Celles qui ont l`apprehension molle et làche, et un`affection et volonté delicate, et qui ne
s`asservit ny s`employe pas aysément, desuqels je suis et par naturelle condition et par discours, ils
se plieront mieux à ce conseil (...)” MONTAIGNE, I, 39, p. 242.
28
“Mais oyons le conseil que donne le jeune Pline à Cornelius Rufus, son amy, sur ce propos de la
solitude: Je te conseille, en cette pleine et grasse retraicte, où tu es, de quitter à tes gens ce bas et
abject soing du mesnage, et t`adonner à l`estude des lettres, pour en tirer quelque chose qui soit
toute tienne. Il entend la reputation: d`une pareille humeur à celle de Ciceron, qui dict vouloir
employer sa solitude et sejour de affaires publiques à s`en acquerir par ses escris une vie
immortelle: ‘Quoi donc! ton savoir n`est-il rien si quelque autre ne sait pas que tu as du savoir?’
(...) Ils dressent bien leur partie, pour quand ils n`y seront plus: mais le fruit de leur dessein ils
pretendent les tirer encore lors du monde, absens, par une ridicule contradition.” Idem, p. 244.
29
VILLEY, P. op. cit., p. 351.
73
(...) imitando o cavalo fugido, ele dá a si mesmo cem vezes mais trabalhos do
que assumia por outrem; e engendra-me tantas quimeras e monstros fantásticos,
uns sobre os outros, sem ordem nem propósito, que para examinar com vagar
sua inépcia e estranheza comecei a registrá-los por escrito, esperando com o
tempo fazer com que se envergonhe de si mesmo por causa delas.30
sabedoria estóica, que lhe forneciam sua matéria e pelas quais realizava seu
intento de representar-se em sua forma natural. Situava-se como objeto, portanto,
pela observação dos juízos e impressões diversas da alma; suas “chimeres et
monstres fantasques”.
De fato, não era essa espécie de matéria, fornecida pela vida ociosa e
impassível de ser útil e instruir os homens, que legitimava e dignificava a escrita
privada de Sêneca em suas Cartas a Lucílio. Na carta 108 ele falou da semente
das virtudes sociais, da justiça e da benevolência que a providência divina havia
depositado em todos os espíritos e que a própria razão estava encarregada de
desenvolver, traduzida no esforço em cumprir benefícios: “(...) a todos nós a
natureza deu, em potência, a semente da virtude. Todos nós nascemos com
aptidão para toda espécie de bem.”31 Assim, na carta 8, Sêneca declarou ao seu
discípulo que sua escrita pessoal se endereçava à posteridade, se afirmando como
meio de aperfeiçoamento moral através da interiorização plena dos preceitos da
doutrina. Centrado na fortaleza de sua razão ele se oferecia como exemplo para a
instrução da humanidade:
30
“(...) faisant le cheval eschappé, il se donne cent foix plus d`affaire à soy mesmes, qu`il n`en
prenoit pour autruy; et m`enfante tant de chimeres et monstres fantasques les uns sur les autres,
sans ordre, et sans propos. que pour en contempler à mon aise l`ineptie et l`estrangeté, j`ay
commancé de les mettre en rolle, esperant avce le temps luy en faire honte à luy mesmes.”
MONTAIGNE, Idem, p. 33.
31
SÊNECA, Cartas a Lucílio, 108, p. 593.
74
(...) estou trabalhando para a posteridade. Vou compondo alguma coisa que lhe
possa vir a ser útil; passo ao papel alguns conselhos salutares, como as receitas
dos remédios úteis, - conselhos que sei serem eficazes por tê-los experimentado
em minhas próprias feridas (...) Indico aos outros o caminho justo, que eu só
tarde encontrei cansado de atalhos.32
característico dos preceitos estóicos, se afirmava como força motriz de sua crítica
à ambição de glória.
Segundo ele mesmo nos dizia em Da ociosidade, esta instabilidade interna
traduzida na proliferação de “monstres fantasques”, embora fosse uma
conseqüência imprevista de suas pretensões à tranqüilidade filosófica,
estabeleceu-se como princípio e método de sua empresa de conhecer-se em sua
verdade nas páginas do livro. Apresentava, então, em sua origem o processo de
produção de seu discurso como um diálogo interiorizado, fruído num
desdobramento interno que se recusava a toda identificação. Nele tomavam seus
lugares o eu autor, incapaz de fixar-se e o eu narrador que testemunhava e
registrava as ‘chimeres et monstres fantasques’ produzidos, exercendo seu
jugement sobre eles34.
Agora, para voltarmos ao exame de Da glória, é importante retermos
dessas breves considerações sobre Da ociosidade, que ao mudar o tom de sua
crítica moral das ambições em nosso ensaio - postulando essa condição
fragmentada da alma, “doubles en nous mesmes”, e o desejo de glória como seu
elemento insuprimível -, Montaigne exprimia o caráter particular de sua
32
Idem, 8, p. 19.
33
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 28.
34
KUSHNER, Eva. “Monologue et Dialogue dans les deux premiers livres” In: Actes du colloque,
p. 105.
75
exercício de seu jugement novas reflexões sobre o tema abrindo espaço para a
consideração da glória como um grande bem da vida humana sob o recurso às
opiniões opostas à tradição estóica, representadas por Carnéades e por
Aristóteles35:
35
Montaigne se utiliza nessa primeira parte de Da glória de um caro procedimento da retórica
clássica e humanista: a variatio, sobretudo se pensarmos nas diversas opiniões contrárias que
explora sobre o tema. Tradicionalmente, a variatio era usada nos manuais retóricos antigos para
enriquecer o discurso e multiplicar suas possibilidades de persuasão, sendo enfatizada tanto a
diversidade das formas de expressão (verba) quanto a capacidade de se multiplicar os temas ou as
coisas (res). No De Oratore, Cícero destaca a variatio como um elemento fundamental da boa
eloqüência e das virtudes do orador: “Quem é o homem que sabe estremecer uma assembléia? (...)
Que parece quase um Deus diante dos mortais? Aquele cujo estilo possui variedade, clareza e
amplitude, que sabe iluminar pensamentos e palavras, e que, se exprimindo em prosa cria uma
sorte de ritmo e de cadência poética; em suma isso é que entendo por brilhante.” (De Or. III, 14,
53) Manuais como o de Cícero e o de Quintiliano destacavam como é possível variar as verba: as
palavras, o estilo, as expressões e os ornatos sem obscurecer o tema do discurso e evitando a
tautologia, ou seja, a repetição das mesmas palavras ou expressões; considerado um vício tão
ofensivo quanto evidente, que impossibilitava a plena persuasão. Do mesmo modo, eles
ressaltavam também como variar e amplificar as res através de procedimentos como o uso dos
exemplos, das digressões e das descrições: de uma cena, por exemplo, que transporta o leitor para
um teatro e lhe coloca a coisa diante de seus olhos; da tomada de uma cidade; de um banquete, de
revoltas e batalhas, cerimônias religiosas, animais, trabalhos de arte, máquinas, edifícios, entre
várias outras. Além destas, existem ainda outras várias formas de variatio segundo a retórica
clássica, mas não é nosso objetivo aqui destacar todas as formas inerentes a este procedimento.
Nosso objetivo consiste apenas perceber a(s) forma(s) de variação utilizada(s) em Da glória. Neste
ensaio acreditamos que Montaigne recorre, em grande medida, aos exempla, ressaltando sua
relação de semelhança, de dissemelhança ou de oposição (simile, dissimile, contrarium) que pode
existir entre o personagem/tema ou a situação da qual se fala. Podemos perceber este fato quando
observamos a variedade de exemplos contrários (e diversos) sobre a questão da glória, sem que, no
entanto, o autor adote ou prescreva qualquer juízo de valor sobre eles. Esta opção de Montaigne
define a originalidade de sua posição enquanto consubstancial à própria forma de sua expressão
76
Carnéades liderou a opinião contrária e sustentou que a glória era por si mesma
desejável, assim como nos apegamos a nossos póstumos por eles mesmos sem
ter deles qualquer conhecimento e proveito. Essa opinião não deixou de ser
seguida pela maioria, como costumam ser as que mais se adaptam às nossas
inclinações. (C) Aristóteles dá-lhe o primeiro lugar entre os bens externos.
Evita, como dois extremos viciosos, a falta de moderação tanto em buscá-la
como em fugir dela.36
discursiva como ensaio, como pensamento que se ensaia no livro se afirmando sem negar sua
relatividade enquanto mera opinião. Como bem nos mostra Geralde Nakam a propósito dos
princípios constitutivos do discurso dos Ensaios: “Suas idéias, suas convicções ele as enuncia a
título de ‘ensaios’ sem nada de preestabelecido, nem no conteúdo nem na forma, sem nada de
imutável. O pensamento se encontra ele mesmo ‘se ensaiando’ e encontra assim sua forma,
através, de nodo, de suas recusas e diferentes deslocamentos.” NAKAM, G., Montaigne la
Manière et la Matière, p. 10. Sobre as formas de variatio empregadas pelo humanista Erasmo de
Rotterdam, no século XVI, ver: PINTO, Fabrina M., op. cit., capítulo 4.
36
“Carneades a esté chef de l`opinion contraire, et a maintenu que la gloire estoit pour elle mesme
desirable: tout ainsi que nous ambrassons nos posthumes pous eux mesmes, n`en ayans aucune
connoissance ny jouissance. Cette opinion n`a pas failly d`estre plus communement suyvie,
comme sont volontiers celles Qui s`accomodant le plus à nos inclinations. (C) Aristote luy donne
le premier rang entre les biens externes. Evite, comme deux extremes vicieuses, l`immoderation et
à la rechercher et à la fuir.” MONTAIGNE, II, 16, p. 620.
37
Na carta 92 das Cartas a Lucílio Sêneca explicita o sentido desse preceito estóico de viver
conforme à natureza como adequação a uma ordem necessária e transcendente: “Todo esse
universo que nos rodeia é uno, é Deus. Nós somos participantes dele, somos como que os seus
membros. A nossa alma tem capacidade bastante para se elevar até a divindade desde que os vícios
não a deitem por terra. Tal como a estrutura de nosso corpo está organizada para se erguer em
direção ao céu, também a nossa alma – que tem a capacidade para abarcar tudo quanto queira! –
foi formada pela natureza com a finalidade de conformar os seus propósitos aos dos deuses.”
SÊNECA, Cartas a Lucílio, 92, p. 471. Sobre esse assunto ver Veyne, P. Seneca en el estoicismo,
p. 56.
77
conduta virtuosa em relação à glória como fruto de uma atividade própria da alma,
concebida como expressão de uma disposição de caráter particular – hexis -
exercida em relação a esta espécie de paixão38. De fato, entendendo a virtude não
como resultante de um determinismo naturalista, mas como fruto de um “hábito”
adquirido, definidor de sua própria natureza39, ele melhor ressaltava a motivação
fundamental de seus Ensaios, de conhecer-se em sua própria verdade, enquanto
alheia à normatividade das doutrinas universalistas. Examinaremos mais
profundamente este último ponto no próximo capítulo, ao analisarmos o ceticismo
de Montaigne. Por ora, nos basta atentar, que à diferença da ética estóica, a
conduta virtuosa em relação às paixões em Da glória, identificada à perspectiva
aristotélica, tinha como causa motora a disposição própria do agente; sua prática
constante e o deleite com a escolha das ações virtuosas, condizentes com as
próprias inclinações.40
Mas a maneira como ele tomava para si esse primado da mediania, fazia
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com que incidisse a acusação do excesso e vício dessa afecção diretamente sobre a
fórmula típica do pensamento político clássico e humanista, isto é, de seu elogio
como estímulo da virtude, sua expressão e recompensa privilegiada. Na prática,
devido às inclinações humanas naturais aos excessos da vaidade, essa fórmula se
prestava à situação absurda de inversão dos termos, ou seja, da subordinação do
valor da virtude ao desejo da glória que não passava afinal, segundo a definição
já dada no proêmio do ensaio, de um simples ornamento externo, alheio à razão e
dependente das opiniões do vulgo. Isso Montaigne declarou no registro da crítica
às ambições desmedidas que entrevia no caso de Cícero:
38
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, 5.
39
A relação entre natureza e virtude na Ética a Nicômaco está bem exposta na seguinte passagem
do início do segundo livro, que ressalta a importância da noção de “hábito” na perspectiva
aristotélica sobre o tema: “Não é pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se
geram em nós. Diga-se antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos
perfeito pelo hábito.” Idem, II, 1, 1103 a 23. Com efeito, desse modo, a virtude natural, enquanto
inata, é insuficiente para realizar a ação moral propriamente dita. Aparece como algo que se
assemelha à virtude, sem porém identificar-se plenamente com ela: trata-se de uma disposição
excelente da alma – hexis - mas que sozinha, sem o concurso da prática; da prudência; da
deliberação refletida – phronesis – permanece sem valor moral. VIANO, C., “O que é a virtude
natural?” In: A Ethica Nicomachea de Aristóteles, Analytica, 8, p. 116.
40
Na seguinte passagem Aristóteles explicita essa imensa distância entre sua concepção acerca da
natureza da virtude em relação aos preceitos estóicos: “Com efeito, a excelência moral relaciona-
se com prazeres e dores; é por causa do prazer que praticamos más ações e por causa da dor que
nos abstemos de ações nobres. Por isso deveríamos ser educados de uma determinada maneira
desde a juventude, como diz Platão, a fim de nos deleitarmos e de sofrermos com as coisas que nos
devem causar deleite ou sofrimento pois essa é a educação certa.” Idem, II, 3, 1194b 10.
78
Creio que se tivéssemos os livros que Cícero escrevera sobre esse assunto ele
nos diria disparates; pois esse homem foi tão arrebatado nessa paixão que, se
tivesse ousado, facilmente teria creio eu caído no excesso em que caíram outros
de que a própria virtude só era desejável pelas honras que vinham sempre em
sua esteira, ‘A virtude escondida pouco difere da ociosidade obscura’41
41
“Je croy que, si nous avions les livres que Cicero avoit escrit sur se subject, il nous en conteroit
de belles: car cette homme là fut si forcené de cette passion que, s`il eust osé, il fut, ce crois-je,
volontiers tombé en l`exces où tombarent d`autres: que la vertu mesme n`estoit desirable que pous
l`honneur que si tenoit tousjuours à sa suite: ‘La vertu cachée diffère peu de l´obscure oisivité’”.
MONTAIGNE, II, 16, p. 620.
42
“(...) il ne faudroit etre vertueux qu`en public; et les operations de l`ame, où est le vray siege de
la vertu, nous n`aurions que faire de les tenir en regle et en ordre, sinon autant qu`elles debvroient
venir à la connoissance d`autruy.” Idem, p. 621. Tópica das mais recorrentes na literatuta moral da
Renascença era esta de não confundir vícios com virtudes. Como atentava Eramo, por exemplo, no
capítulo 5 de seu Enquiridion, o homem é sempre vítima do mau entendimento das coisas do
mundo, levado pelas aparências enganosas: “(...) há vícios tão próximos às virtudes que corremos
o perigo de confundir uns com os outros.” Por isso, continuava, o caminho para a verdadeira
virtude deveria partir do velho preceito grego e socrático do conhece-te a ti mesmo, da própria
razão como fundamento do bem agir: “Este é, pois o único caminho para a virtude: primeiro
79
conhece-te a ti mesmo. Segundo agir, não segundo as paixões, mas sim, de acordo com os dictados
da razão.” ERASMO, Enquiridion, 5, p. 100-101.
43
“N`y va il donc que de faillir finement et subtilement?” MONTAIGNE, II, 16, p. 621.
44
“Si tu sçais, dit Carneades, un serpent caché en ce lieu, auquel, sans y penser, se va seoir celuy
de la mort du quel tu esperes profit, tu fais meschammant si tu ne l`en advertis; et, d`autant plus
que ton action ne doibt estre connue que de toy.” Idem.
45
Sobre esse assunto ver Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 3 e III, 5.
80
conformidade com as leis e cometer crimes contra a sociedade humana. Isso ele
atestava pelo exemplo de P. Sextílio Rufo, que Cícero48 recriminava por ter
recebido de acordo com as leis e contra sua consciência uma herança que não lhe
cabia de direito. Assim como este último, também M. Crasso e Q. Hortensio não
hesitaram em usufruir os lucros provenientes de uma fraude, uma vez a salvo das
testemunhas externas e encobertos das leis.
Após enfatizar assim os graves vícios da mentira e da dissimulação que
provinham da confusão tão comum que os homens faziam entre vícios e virtudes,
Montaigne reforçou seu elogio de uma moral calcada exclusivamente na dimensão
interna do próprio caráter através de um empréstimo feito a Dos deveres de
Cícero, obra moldada nos princípios do estoicismo. Ele advertia assim aos
46
Tal noção radicava nos princípios da velha moralidade romana de culto à vida ativa, dedicada
aos negócios da cidade como forma superior de vida. Segundo essa perspectiva, o valor da virtude
se impunha sobretudo em razão de sua visibilidade social, comprovada pelo alcance de uma
posição pública de relevo. Entre os costumes dos antigos romanos, centrados numa educação
enraizada na práxis da formação dos cidadãos, não havia lugar para a noção de uma virtude cuja
força superior se definisse pelo fato de bastar-se a si mesma, realizando-se na dinâmica interior da
vida do espírito. Longe disso, sua posse deveria se manifestar por grandes atos e empresas,
levando à fama e à notoriedade no mundo público. Como veremos no próximo capítulo, esse
ideário teve uma de suas mais vigorosas formulações na obra de Salústio sobre a conjuração de L.
Catilina.
47
“Si nous ne prenons de nous mesmes la loy de bien faire, si l`impunité nous est justice, à
combien de sortes de meschancetez avons nous tous les jours à nous abandoner!” MONTAIGNE,
II, 16, p. 621.
48
CÍCERO, Dos deveres, III, 18, 73.
81
dúplices que ainda que pudessem dissimular seus vícios dos olhos de seus pares
nunca poderiam ocultar sua essência nefasta das vistas de sua razão: “Que eles se
lembrem que têm Deus por testemunha, ou seja, no meu entender, sua própria
consciência.”.49
De fato, Montaigne não deixou de fazer uso dos preceitos estóicos no
interesse da ênfase em sua perspectiva negativa sobre a glória e de sua dissociação
da essência da virtude. Segundo ele, da mesma maneira que para os estóicos, ela
era exatamente o oposto da virtude, pois se dava como fruto da fortuna, assim
como o era o movimento das opiniões dos homens no mundo público. Desse
modo, a glória estava longe de ser capaz de exprimir a virtude, pois não era a
disposição de caráter do agente que a fundava:
estende a todas as coisas seu domínio; ela distribui a glória ou a sombra mais
segundo seus caprichos do que pelo verdadeiro mérito’ (A) Fazer com que as
ações sejam conhecidas e vistas é simples obra da fortuna.50
49
“Qu`ils se souviennent qu`ils ont Dieu pour témoin, c`est-à-dire comme je l`entends, leur propre
conscience.” MONTAIGNE, II, 16, p. 621.
50
“La vertu est chose bien vaine et frivole si elle tire as recommendation de la gloire. Pour neant
entreprendrions nous de luy faire tenir son rang à part et la déjoindrons de la fortune (C) ‘Certes la
fortune étend sa domination sur toutes choses; elle distribue la gloire ou l`ombre plus selon ses
caprices que selon le vrai mérite’ (A) De faire que les actions soient connuës et veuës, c`est le pur
ouvrage de la fortune.” Idem.
82
Toda a glória que pretendo de minha vida é tê-la vivido tranqüila: tranqüila não
segundo Metrodoro ou Arcesilau ou Aristipo, mas segundo eu mesmo. Pois que
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a filosofia não soube encontrar um caminho para a tranqüilidade que fosse bom
em comum, que cada um o procure por si mesmo.52
Ao negar a imitação dos exemplos como modo de dar forma à sua natureza
particular e afirmar seu valor, Montaigne parecia negar também o potencial
comunicativo de seu discurso no contexto humanista - sobretudo tal como
constituído em seus primeiros tempos, entre os autores italianos - em benefício da
veracidade de sua representação de si, avessa a encontrar regras de bem viver em
determinações artificiais, impostas de fora.
51
Erasmo também concedeu destaque a esse tema da crítica ao orgulho e à ambição dos autores de
seu tempo no Elogio da Loucura, afirmando já a diferença de seus propósitos daqueles dos
pedantes e dos eruditos humanistas, principalmente dos italianos, que escreviam para exibir seus
conhecimentos das formas e dos saberes dos antigos, buscando imortalizar seu próprio nome: “Da
mesma forma são os escritores, que aspiram à fama imortal com a publicação de seus livros. Todos
me devem enormemente, sobretudo aqueles que escrevinham no papel puras patranhas. Quanto
aos que submetem sua erudição ao julgamento de um pequeno número de sábios e não recusam
nem Pérsio nem Lélio, parecem-me muito mais infelizes, dada a tortura sem fim que se impõem.
Acrescentam, mudam, suprimem, abandonam, retomam, reformulam, consultam sobre seu
trabalho, guardam-no nove anos, não se satisfazem jamais; e a glória, fútil recompensa que poucos
recebem, pagam-na singularemnte à custa do sono, esse bem supremo, e com tantos sacrifícios,
suores e labutas. Acrescentemos a perda da saúde e da beleza, a oftalmia e mesmo a cegueira, a
pobreza, os invejosos, a privação de todo prazer, a velhice precoce, a morte prematura e tantas
outras misérias. Com esta série de sacrifícios nosso sábio julga pagar caro demais a aprovação que
lhe regateia este ou aquele caquético.” ERASMO, O Elogio da Loucura, L, p. 63.
52
“Toute la gloire que je pretens de ma vie c`est de l`avoir vescue tranquille: tranquille non selon
Metrodorus, ou Arcesilas ou Aristipo, mais selon moy. Puis que la philosophie n`a sçeu trouver
aucune voye pour la tranquilité, que fust bonne en commun, que chacun la cherche en son
particulier.” MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
83
Eu não negarei que por natureza sou muito desejoso de glória, mas eu tanto
moldei minha alma com estudo que ficarei feliz em alcançá-la se possível. (...)
Desejo ser Demóstenes por natureza e Demócrito por imitação. Nós lemos que
o primeiro procurava a glória e o último a desprezava. Enquanto isso para não
permitir que meu talento enfraqueça pela negligência eu exercito meus olhos na
leitura, meus dedos na escrita e minha mente na meditação. Finalmente eu não
omiti nada que estivesse em meu poder para alcançar este objetivo, então, caso
não seja bem sucedido, eu deverei acreditar que terá sido para o melhor não tê-
lo conquistado. Esta é minha vida, que eu espero que seja julgada por você
através das minhas cartas (...)53
53
PETRARCA, “To Francesco da Napoli, Apostolic Prothonotary, how restless and agitated are
the lives of men of affairs, and yet great glory is unattainable without great toil” Familiares, XIII,
4, p. 185.
84
Advertência nos ajudará a ter em mente de maneira mais nítida o modo como essa
crítica favorece a autofirmação de si.
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4.
Negação do culto à glória e afirmação do autoretrato.
Está aqui um livro de boa fé leitor. Desde o início ele te adverte que não me
propus nenhum fim que não doméstico e privado. Nele não levei em
consideração nem teu serviço nem minha glória. Minhas forças não são capazes
de um tal intento. Votei-o ao benefício particular de alguns parentes e amigos;
para que ao me perderem (do que correm o risco dentro em breve), possam
reencontrar nele alguns vestígios de minhas tendências e humores e que por esse
meio mantenham mais vivo e mais íntegro o conhecimento que tiveram de mim.
Se fosse para buscar o favor do mundo eu me paramentaria melhor e me
apresentaria em uma postura mais estudada. Quero que me vejam aqui em
minha maneira simples, natural e ordinária, sem apuro ou artifício, pois é a mim
que pinto. Nele meus defeitos serão lidos ao vivo, e minha maneira natural tanto
quanto o respeito público mo permitiu. Pois se estivesse estado entre aqueles
povos que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da
natureza, asseguro-te que de muito bom grado me teria pintado inteiro e nu.
Assim leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro: não é sensato que
1
empregues teu lazer em um assunto tão frívolo e tão vão.
1
“C`est icy un livre de bonne foy lecteur. Il t`advertit dès l`entrée, que je me suis proposée aucune
fin que domestique et privée. Je n`ay nulle consideration de ton service ny de ma gloire. Mes
forces ne sont capables d´un tel dessein. Je l`ay voué à la commodité particuliere de mes parents et
amis: à ce que m`ayant perdu (ce qu`ils ont à faire bien tost) ils y puissent retrouver aucuns traits
de mes conditions et humeurs, et que par ce moyen ils nourissent plus entiere et plus vifve, la
connoissance qu`ils ont eu de moy. Si c`eust esté pour rechercher la faveur du monde, je me fusse
mieux paré et me presanterois en une marché estudiée. Je veus qu`on m`y voie en ma façon
simple, naturelle et ordinaire, sans contention et artifice: car c`est moy que je peins. Mes defauts
s`y liront au vif, et ma forme naifve, autant que la reverence publique me l`a permis. Que si j`eusse
esté entre ces nations qu`on dit vivre encore sous la douce liberté des premieres loix de la nature,
je t`asseure que je m`y fusse tres-volontiers peint tout entier, et tout nud. Ainsi lecteur je suis
moys-mesmes la matière de mon livre: ce n`est pas raison que tu employes ton loisir en un subject
si frivole et si vain.” MONTAIGNE, op. cit., p. 3.
87
2
Centrando-se nessa intenção de traçar um retrato vivo como princípio da escrita dos Ensaios,
conforme declarada na Advertência ao leitor, Sergio Cardoso se opõe à abordagem de Erich
Auerbach no capítulo dedicado a Montaigne em seu Mimesis. De fato, a interpretação de Aeurbach
possui o mérito fundamental de introduzir na crítica dos Ensaios essa relação entre o intento de
retratar-se e a forma peculiar de seu estilo. Sergio Cardoso, entretanto, discorda de sua abordagem
sobretudo quando define o procedimento de Montaigne como um método correspondente ao
caminho experimental que as ciências da natureza começavam a trilhar em seu tempo. Segundo
Auerbach, a investigação de si e o registro de seus movimentos internos define-se como: “(...) o
único caminho que, segundo Montaigne, pode ser percorrido pela ciência do homem enquanto ser
moral.” Auerbach, E., Mimesis, p. 261. Se esse método, de acordo com Auerbach, se inicia pelo
acúmulo de inúmeras experiências de si é para resolver-se posteriormente na obtenção de uma
imagem de conjunto de si próprio, através da ordenação e acomodamento da dispersão. A partir
desse momento se consolida a consciência da “vida própria” e a plena posse de si mesmo, que
representa o triunfo sobre o perturbador excesso de fenômenos internos que atrapalha a integridade
de Montaigne como sujeito. Esse momento se dá assim como ponto de partida para a investigação
da “humaine condition”, segundo Auerbach. Levando em consideração, por outro lado, a
permanente confissão de insegurança, vacilação e indecisão que permeia os Ensaios, Sergio
Cardoso define o discurso do autoretrato, de preferência, como uma acumulação de instantâneos;
uma coleção desordenada de traços casuais que se alimenta de perspectivas sempre novas, e que,
portanto, se opõe essencialmente à formulação de uma imagem única, fixa e definida de si.
Enquanto um legado aos amigos e parentes próximos, essa escrita pessoal se assemelharia assim
aos álbuns de retratos, constituída de registros próprios nas situações mais diversas e tempos mais
variados: “(...) ao tomar traços segmentados e isolados, particularidades relativas a uma figura
fixada na memória, fazemo-nos mais sensíveis a ressonâncias novas, a nuanças antes
desapercebidas ou mal percebidas, as quais vêm ampliar, recompor, transformar o conhecimento
que deles temos, aparentemente selado em definitivo pela morte. Em outras palavras: a
particularidade mesma dos instantâneos ou fragmentos desconcertados desestabiliza o quadro dos
elementos fixados e cristalizados na memória, reproduzindo em tudo uma situação semelhante ao
de seu conhecimento – aberto e constantemente oscilante – em vida.” CARDOSO, S., op. cit., p.
59.
89
3
Esse é um traço distintivo do gênero reflexivo do autoretrato segundo Michel Beaujour, ou seja,
de ser uma escrita conscientemente desprovida de utilidade pública, produzida por uma retórica
que é puro discurso ocioso e livresco; que não se justifica como modo de reificar e tornar ativos os
valores morais da tradição. Nesse sentido a confissão de sua inutilidade se dá como o único álibi
do escritor de um autoretrato: apesar de utilizar-se dos procedimentos e artifícios da retórica
incorrendo contra seus princípios fundamentais, ele sempre acusa a própria ousadia, assumindo a
gravidade dessa falta e procurando afirmar o caráter diferenciado de seus próprios desígnios.
BEAUJOUR, M., Miroirs d`encre, p. 14.
4
Idem.
5
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1125 a
6
A noção de decoro desenvolvida por Cícero em seu Dos deveres associa-se à sabedoria própria
do orador em saber adaptar as palavras e as sentenças de seu discurso aos mais diversos auditórios
90
e circunstâncias. Diz ele: “É preciso atentar no que se fala, tratando seriamente de coisas sérias,
agradavelmente de coisas jocosas. O mais importante é não deixar escapar qualquer coisa que
denote vício de caráter; isso se percebe quando se fala mal dos ausentes, seja para levá-los ao
ridículo, seja para arruiná-los com maledicências e ultrajes. A conversação corre de ordinário entre
negócios particulares, sobre política, ou sobre artes e ciência; quando ela se desvia, é preciso ter
cuidado em reconduzi-la, sem esquecer que nem todos têm o mesmo gosto, pois as coisas que
satisfazem a todos, não agradam igualmente a cada um.” (I, XXXVII) Portanto, é próprio do bom
orador adaptar a sua linguagem à sua elevada função, da mesma forma que este deve falar de
maneira adequada ao seu auditório, às temáticas tratadas e aos diferentes contextos em que se
encontra, de modo a conquistar e a seduzir o seu público. Contudo, existe um problema moral
relacionado a esta questão, pois, seria permitido ao orador em nome do decoro se distanciar da
verdade em seus discursos, deturpando-a? Sobre este ponto, destaca Cícero que a capacidade de
deliberação sobre o que é bom e vantajoso está alicerçada em uma sabedoria prática, sendo o
conhecimento e a prudência do orador que estabelecem a aceitação do auditório das suas teses.
Desta forma, como ele próprio estabelece, a faculdade da prudência – “a mais nobres de todas as
virtudes” - seria inseparável do decoro, ou seja, do “conhecimento do que é preciso evitar, e do
que é preciso procurar.” CÍCERO, Dos Deveres, I, XLIII. Ver também: KAHN, Victoria.
“Humanist Rhetoric” In Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance. pp. 29-84.
7
Idem, I, XXXVIII, 137. O “soldado fanfarrão” era personagem típica da comédia grega e romana
e intitulava uma peça de Plauto.
8
CÍCERO, Da velhice, 9-10. Apud, Friedrich, H., p. 238.
91
beleza de seu estilo, muito embora este fosse destinado à descrição de sua vida e
de seus caracteres11. Essa falta de prudência em falar de si ele reconhecia
sobretudo nos escritos privados de Cícero, a partir dos quais tirava suas
conclusões desse hábito: “Eu os considero uma leitura agradável pois essa leitura
representa uma mudança em relação a ter que lidar com matérias difíceis, e é uma
fonte de prazer se feita de maneira intermitente, mas é uma fonte de desprazer se
feita continuamente.”12
Entre os autores modernos, também Castiglione se pronunciou sobre essa
questão do falar de si em seu O Cortesão. A cortesania perfeita, de fato, não
9
PLUTARCO, Oeuvres Morales, “Comment se louer soi-meme sans exciter l`envie”, VII, 539 a –
547f., p. 65.
10
Dessa forma, Plutarco descreve a degeneração dessa prática em vício: “Do mesmo modo que as
pessoas privadas de nutrição, na necessidade, contrariamente à natureza, têm que se alimentar de
seu próprio corpo, o que é o limite extremo da fome, do mesmo modo, aqueles que são famintos de
elogios, se não encontram ninguém para lhes louvar, parecem querer tirar de si mesmos qualquer
sustento e contribuição ao seu amor pela glória e por isso eles faltam à decência.” Idem, 539f, p.
66.
11
O gênero epistolar se afirmou desde a Antigüidade como o mais adequado à expressão da
consciência individual. Através dele se tornou possível introduzir na prosa o discurso íntimo e
privado pois pressupunha uma conversação entre amigos ou parentes próximos. As Cartas a Ático
de Cícero e as Cartas a Lucílio de Sêneca são alguns dos mais célebres modelos do gênero
epistolar na Antigüidade. No Renascimento, podemos citar as cartas de Petrarca, de Erasmo e de
Guillaume Budé. De fato, enquanto forma adequada à linguagem privada em primeira pessoa, o
gênero das cartas se aproxima bastante da forma reflexiva dos Ensaios, entretanto, as
conveniências do estilo preconizam ainda um certo pudor no excesso de dados íntimos e pessoais,
a fim de não tornar frívolo demais o discurso. FRIEDRICH, H., op. cit., p. 368.
12
PETRARCA, Familiares, I, 1, p. 10.
92
(...) me parece que isto possa muito bem ser-lhes concedido; porque aquele que
conhece seu valor, quando verifica não ser reconhecido por suas obras pelos
ignorantes, se indigna por seu valor estar oculto e forçoso é que de algum modo
o demonstre para não ser defraudado da honra, que é o verdadeiro prêmio das
virtuosas fadigas.14
Com efeito, nada poderia ser mais estranho à maneira como Montaigne
pretendia representar-se nos Ensaios do que a obediência a estes preceitos que
restringiam o discurso em primeira pessoa à manifestação duma excelência
perfeita e recomendavam a prudência e até mesmo, a dissimulação no falar de si.
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Além de não poder narrar grandes feitos e realizações que justificassem sua forma
pessoal como um legado à posteridade, Montaigne expunha “ao vivo” e sem
nenhum pudor os seus defeitos, conforme nos dizia na Advertência. Seu único
cuidado em relação à opinião pública era de não ofendê-la demasiadamente,
evitando aparecer efetivamente nu no livro, tal como os selvagens do novo
mundo. Relembremos:
(...) car c`est moy que je peins. Mes defauts s`y liront au vif, et ma forme naifve,
autant que la reverence publique me l`a permis. Que si j`eusse esté entre ces
nations qu`on dit vivre encore sous la douce liberté des premieres loix de la
nature, je t`asseure que je m`y fusse tres-volontiers peint tout entier, et tout nud.
13
CASTIGLIONE, B., op,. cit., I, 17, p. 33.
14
Idem, I, 18.
15
Montaigne exprime essa consciência por exemplo no ensaio Do desmentir que se segue a Da
presunção: “Sim, mas me dirão que esse projeto de servir-se de si mesmo como objeto de escrita
seria desculpável em homens raros e famosos, que por sua reputação, tivessem despertado
qualquer desejo de conhecê-los.” Montaigne, II, 18, p. 663. Já em Da afeição dos pais pelos filhos,
ele reconhece a frivolidade de sua atividade literária associando-a às conseqüências nefastas da
melancolia: “Foi um humor melancólico, e conseqüentemente um humor inimigo de minha
93
constituição natural, produzido pela tristeza da solidão na qual há alguns anos mergulhara, que
primeiramente me pôs na cabeça essa loucura de aventurar-me a escrever, descobrindo-me
inteiramente desprovido e vazio de qualquer matéria, apresentei-me a mim mesmo como tema e
como assunto.” Idem, II, 8, p. 385.
16
Célebres humanistas contemporâneos de Montaigne como Pasquier e Scaliger não esconderam
seu desprezo por sua falta de escrúpulos em falar de si e apresentar-se em sua maneira privada nas
páginas dos Ensaios. Posteriormente Pascal denunciaria também como tolice esse ato de fazer de
suas confissões pessoais a matéria de seu livro. FRIEDRICH, H. op. cit., p. 237.
17
A modéstia era uma forma de captatio benevolentiae, segundo a definição dada na Retórica a
Herênio: uma forma de captar a benevolência dos ouvintes, garantindo seu interesse e atenção ao
próprio discurso e à causa a ser defendida, antes de proferi-lo. Abrangia quatro maneiras: baseada
na própria pessoa, nos adversários, nos ouvintes ou na própria matéria do discurso. Retórica a
Herênio, I, 7, p. 59. A modéstia era uma forma de captatio benevolentiae baseada na própria
pessoa, especialmente utilizada nas correspondências humanistas para bem dispor os leitores ao
estilo privado e pessoal das cartas.
94
18
“Si c`eust esté pour rechercher la faveur du monde, je me fusse mieux paré et me presanterois en
une marché estudiée. Je veus qu`on m`y voie en ma façon simple, naturelle et ordinaire, sans
contention et artifice: car c`est moy que je peins. Mes defauts s`y liront au vif, et ma forme naifve,
autant que la reverence publique me l`a permis. Que si j`eusse esté entre ces nations qu`on dit
vivre encore sous la douce liberté des premieres loix de la nature, je t`asseure que je m`y fusse
tres-volontiers peint tout entier, et tout nud. Ainsi lecteur je suis moys-mesmes la matière de mon
livre: ce n`est pas raison que tu employes ton loisir en un subject si frivole et si vain.”
19
“(...) si l`estrangeté ne me sauve, et la nouvelleté, qui ont accoustumé de donner pris aux choses,
je ne sors jamais à mon honneur de cette sotte entreprise; mais elle est si fantastique et a un visage
si esloigné de l`usage commun que cela luy pourra donner passage.” MONTAIGNE, II, 8, p. 385.
95
(...) se advier que meus humores agradem e convenham a algum homem de bem
antes que eu morra, ele procurará juntar-se a nós; dou-lhe uma boa dianteira,
pois tudo o que um longo conhecimento e convivência poderiam ter-lhe obtido
em vários anos, ele o lê em três dias nesse registro. (C) Uma fantasia engraçada:
digo ao público muitas coisas que não gostaria de dizer a ninguém (...)22
20
“C`est une espineuse entreprinse, et plus qu`il ne semble, de suyvre une alleure si vagabonde
que celle de nostre esprit; de penetrer les profondeurs opaques de ses replis internes; de choisir et
arrester tant de menus airs de ses agitations.” Idem, II, 6, p. 378.
21
CARDOSO, S., op. cit., p. 60.
22
“(...) s`il advient que mes humeurs plaisent et accordent à quelque honneste homme avant que je
meure, il recerchera de nous joindre; je luy donne beaucoup de pays gagné, car tout ce qu`une
longue connoissance et familiarité luy pourroit avoir acquis en plusieurs années, il le voit en trois
jours en ce registre, et plus seurement et exactement. (C) Plaisante fantasie: plusieurs choses que je
ne voudroy dire à personne, je les dis au peuple (...)” MONTAIGNE, III, 9, p. 981.
96
23
TOURNON, A, op. cit., p. 8.
97
É a sorte que nos aplica a glória segundo seus caprichos, muitas vezes a vi
caminhar antes do mérito e freqüentemente ultrapassá-lo em larga medida.
Aquele que primeiramente se apercebeu da semelhança entre a glória e a
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24
“C`est le sort qui nous applique la gloire selon sa temerité. Je l`ai veüe fort souvent marcher
avant le merite et souvent outrepasser le merite d`une longue mesure. Celuy qui, premier, s`advisa
de la ressemblance de l`ombre à la gloire, fit mieux qu`il ne vouloit. Ce sont choses excellament
vaines.” Idem, p. 621.
98
pela grandeza de seus atos. Pois, ainda que Aristóteles considerasse impróprio ao
comportamento do magnânimo o hábito de falar de si, muitos dos autores que se
lhe seguiram e que retomaram esse ideal de perfeição, lhe atribuíram este
privilégio sob a consideração da necessidade de que sua superioridade fosse
reconhecida como tal entre os homens25. Assim, procuraremos também investigar
alguns dos modos pelos quais esse ideal de perfeição foi reapropriado e redefinido
de maneiras diversas, na Antigüidade e no Renascimento.
Entretanto o ponto central que norteia o restante de nossa leitura do ensaio
e que articula essa discussão sobre as figuras exemplares da magnanimidade está
no item 4.3 em que tratamos da postura cética de Montaigne como princípio
definidor de sua maneira de descrever-se.
25
Plutarco, por exemplo, no opúsculo dedicado ao tema em suas Obras Morais, utilizou-se do
exemplo grandioso de Epaminondas, que discorrendo com ênfase sobre seus grandes feitos como
general, provocou não a inveja, mas sim um frêmito geral de admiração no povo por sua pessoa.
Segundo Plutarco, o ato de louvar-se por parte do magnânimo, quando assim não fosse
reconhecido pelos seus pares, era meio privilegiado de combater os excessos dos presunçosos, que
não tinham pudor em louvar-se por falsos méritos: “Falar quando há dignidade de si mesmo não
somente tem por resultado evitar a charlatanice, a futilidade, a ambição, mas ainda demonstra um
espírito elevado e grandioso, de um mérito, que, não se rebaixando, rebaixa e domina a inveja. (...)
nós partilhamos seus transportes de orgulho se ao menos eles são fundados e verdadeiros.”
PLUTARCO, op. cit., 4d., p. 67.
26
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, IV, 3, 1123b.
99
pois28: “(...) é aquele que prestamos aos deuses e que as pessoas de posição mais
ambicionam e que é o prêmio conferido às mais nobres ações.”29
A magnanimidade, em suma, ligava-se à capacidade de cumprir ações
belas e destacadas no âmbito das atividades públicas e ao desejo de ter o próprio
valor plenamente reconhecido junto a comunidade. E, de fato, se o magnânimo se
considerava com plena justiça um merecedor desta tão alta conquista, era
impossível também que não possuísse um caráter nobre e bom no mais alto grau.
Assim, era sobretudo por sua perfeição moral que Aristóteles louvava sua
superioridade:
Ora, o magnânimo, visto merecer mais do que os outros, deve ser bom no mais
alto grau; pois o homem melhor sempre merece mais, e o melhor de todos é o
que mais merece. Logo o homem verdadeiramente magnânimo deve ser bom.
Além disso a grandeza em todas as virtudes deve ser característica do homem
magnânimo.30
27
Idem, 1123b10.
28
Julia Annas nota o modo como Aristóteles resgata e redefine o velho ideal grego de grandeza
extraordinária, encarnada em heróis como Aquiles e Ajax, nessa sua elaboração do carater do
magnânimo como uma espécie de herói moral, possuidor de todas as virtudes. Ele se eleva bem
acima dos homens comuns e é reconhecido como tal pelas honras que recebe tal como os
guerreiros da época homérica. ANNAS, J., The Morality of Hapiness, p. 116.
29
Idem, 1123b 15.
30
Idem, 1123b 30.
100
A honra, portanto, que era atributo dos deuses, deveria ser também do
magnânimo, pois sua virtude implicava na posse de todas elas no grau mais
perfeito que o homem podia possuir por seus próprios méritos. A grandeza de suas
ações, desse modo, provinha da retidão excepcional de seu caráter, que o elevava
bem acima do comum dos homens. Com efeito, segundo Aristóteles, sua virtude
não se manifestava somente nas ações destacadas, na verdade, ele jamais afastava-
se de seu exercício em quaisquer circunstâncias: “A magnanimidade parece, pois
ser uma espécie de coroa das virtudes, porquanto as torna maiores e não é
encontrada sem elas. Por isso é difícil ser verdadeiramente magnânimo, pois sem
possuir um caráter bom e nobre não se pode sê-lo.”31
Sua aspiração à honra, de fato, não se confundia com a pretensão dos que
se julgavam merecedores dela em função de ocuparem alguma posição de
superioridade, seja por seu poder, por suas riquezas ou pela nobreza de
nascimento; pois estas coisas, nos dizia Aristóteles, não implicavam em virtude
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31
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1124a.
32
Apesar disso, o texto de Aristóteles é um tanto ambíguo quanto ao valor desses bens. Ele não os
considera, completamente vãos no que diz respeito à honra, na medida em que reconhece a
dinâmica das opiniões e juízos do mundo como sua base: “(...) tudo que se mostra superior em
algo é tido em grande honra. Daí que até essas coisas tornem os homens mais magnânimos, pois
alguns os honram pelo fato de possuí-las. Mas, em verdade, só merece ser honrado o homem bom;
aquele porém, que goza de ambas as vantagens é considerado mais merecedor de honras.” Idem,
1123b 30.
33
Idem, 1124 a 25.
34
Como nos mostra Carlo Varotti, Leonardo Bruni, se apropria do conceito aristotélico da
magnanimidade em seu Isagicon Moralis Disciplinae, mas, de maneira significativa, não se
concentra muito nesse aspecto da superioridade face aos bens do mundo. Na verdade, Bruni define
101
ações acima de todas as coisas, o princípio da retidão de seu modo de vida, pois a
verdadeira honra era incompatível com a valorização excessiva das riquezas, do
poder e das falsas honrarias e sobretudo das ações ímpias que se exerciam
constantemente em seu nome: “(...) pois com que fim praticaria ações
vergonhosas aquele para quem nada é grande. Se considerarmos ponto por ponto
veremos o perfeito absurdo de um homem magnânimo que não seja bom.”35 Sua
perfeição moral, desse modo, traduzia-se em sua autosuficiência, isto é, numa
conduta que jamais se subordinava às paixões dos bens externos mas que se
pautava somente em sua disposição em praticar as virtudes.
Por essa razão, ele jamais se ocupava com ações ordinárias, ainda que
pudessem provocar a admiração do vulgo ignorante. Isso era comportamento
peculiar àqueles que só agiam arrastados pelos excessos dessa paixão:
o conceito pela centralidade da noção do desejo de uma honra adequada a seu próprio valor, que
no texto aristotélico é apenas um dos aspectos dessa virtude, ainda que decisivo. Segundo o
chanceler florentino, o magnânimo se afirma em sua superioridade moral sempre “Quando seja
digno de grandíssimas honras e não hesite em cercar-se delas.” Portanto, a magnanimidade, que,
segundo Aristóteles era sobretudo a capacidade de elevar-se acima das paixões pelas coisas do
mundo, aparece nessa obra de Bruni principalmente sob o signo da legitimidade moral de seu
apetite de honras, que o diferenciava dos presunçosos. Com isso, atenta Varotti, Bruni procurava
enfatizar a dignidade da ambição dos grandes homens de cumprir carreira pública e de ascender
politicamente. O ideal de perfeição da megalopsychia, estava então a serviço da ideologia elitária
que Bruni sustentava em seu anseio de formar uma classe dirigente de homens valorosos para
conduzir os negócios da república e manter sua solidez, sem que isso implicasse em atentar contra
o valor tradicional da igualdade. VAROTTI, C., op. cit., p. 162.
35
ARISTÓTELES, op. cit., 1124 a.
36
Idem, 1124b25.
37
Idem, 1124b10.
102
pelos “ensaios” de seu jugement, ele não fez distinção entre as grandes obras do
espírito e os atos célebres pelos quais os homens pretendiam se autoafirmar como
detentores de dotes extraordinários, que atestassem sua perfeição:
42
“A l`adventure, entendent ils que je tesmoigne de moy par ouvrages et effects, non nuement par
des paroles. Je peins principalement mes cogitations, subject informe, qui ne peut tomber en
production ouvragere. (...) Les effects diroyent plus de la fortune que de moy. Ils tesmoignent leur
role, non pas le mien, si ce n`est conjecturalement et incertainement: eschantillons d`une amostre
particuliere.” MONTAIGNE, II, 6, p. 379.
43
CARDOSO, S., op. cit., p. 52.
104
Não é para a exibição que nossa alma deve desempenhar seu papel; é dentro de
nós, no íntimo, aonde outros olhos não chegam exceto os nossos: ali ela nos
protege do temor da morte, das dores e mesmo da desonra; ela nos assegura
contra a perda de nossos filhos, de nossos amigos e de nossas fortunas, e,
quando a ocasião se apresenta, ela nos conduz também para os acasos das
guerras (C)‘Não por algum proveito mas pela honra da própria virtude’44
profundo que havia entre seu projeto de emancipação e sua crítica cética do
conhecimento. Com efeito, uma das maiores provas da impotência da razão
humana era o fato de que as diversas escolas filosóficas que pretendiam responder
sobre a natureza do bem e estabelecer os preceitos certos para alcançá-lo, não
concordavam entre si mas afirmavam opiniões diversas, que manifestavam antes a
ignorância humana do que a excelência de suas capacidades.
Essa constatação da fraqueza da razão e a renúncia ao orgulho de
acreditar-se possuidor da verdade, que estava no cerne do discurso dos Ensaios,
tinha por base o conceito pirrônico da diaphonia, que exprimia o reconhecimento
do conflito permanente entre as diversas posições teóricas sustentadas pelos
filósofos, dada a verificação da igual força persuasiva de todas elas e a
impossibilidade de se encontrar um critério suficiente para escolher uma em
detrimento das outras.45 Segundo os argumentos do ceticismo, a diaphonia,
exprimindo a confusão entre afirmações e argumentos variados e a impotência da
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45
Quase todos os dez tropos de Enesidemo, no primeiro livro das Hipotiposes Pirrônicas tratam
desse problema do critério. Os dez tropos são destinados a facilitar o método de por em situação de
conflito fenômenos e pensamentos, definindo mais exatamente, em que consiste o ceticismo, ou
seja, num método para levar à epoché, à suspensão do juízo, a partir do reconhecimento da
incapacidade de escolher ou optar por qualquer pretensa solução para problemas relativos à real
natureza das coisas. Nesse sentido o antidogmatismo pirrônico define-se como um processo de
elaboração de argumentos críticos contra as pretensões otimistas das diversas doutrinas que
pretendem fornecer a verdadeira descrição do mundo; a correta reprodução do modo como as
coisas são: “O ceticismo é a capacidade de colocar frente a frente [ou opor], umas com as outras,
da maneira que seja, tanto as coisas que aparecem – phainomenoon -, quanto as coisas inteligíveis
– noouménoon -, capacidade esta que, devido à força igual que há nas coisas e nos pensamentos
opostos, nos faz ter à suspensão – epoché – e em seguida à tranqüilidade – ataraxia.” SEXTO
EMPÍRICO, Hipotiposes Pirrônicas, I, IV.
46
O ceticismo teve sua origem no pensamento grego antigo com a filosofia de Pirro de Élis (360-
270 a. C.), mas formou pelo menos duas concepções distintas relativas ao conhecimento, a dos
acadêmicos e a dos pirrônicos, que se diziam mais autênticos seguidores da filosofia de Pirro. Vale
aqui apresentá-las em linhas gerais. O ceticismo acadêmico (que leva este nome por ter sido
formulado na Academia de Platão no século III a. C.) estabelecia que nenhuma forma de
conhecimento das essências do real era possível à razão humana. Arcesilau (315-241 a. C.) e
Carnéades (213-129 a.C.) foram seus principais teóricos e se voltaram sobretudo para o
questionamento das pretensões filosóficas dos estóicos, mostrando que nada na natureza é passível
106
52
C. B. Brush que situa o ceticismo de Montaigne como um traço permanente de seu
“temperamento” cita, por exemplo, o capítulo I, 27, intitulado É loucura condicionar ao nosso
discernimento o verdadeiro do falso, como um dos mais céticos de seus ensaios, escrito por volta
de 1572 e, portanto, bem antes da Apologia. BRUSH, C. B., Montaigne and Bayle, variations on
the theme of Skepticism, p. 37.
53
Sobre isso ver MARCONDES, D. A Tradição Cética, os argumentos limitativos do
conhecimento e a questão da linguagem. Departamento de Filosofia (PUC-RJ). Conferência em
1997.
108
inquirir e de investigar.
O elogio a este benefício dos argumentos do ceticismo se expressava numa
passagem da Apologia, em que Montaigne fazia referência aos filósofos em geral,
mas especialmente aos céticos: “Eles trabalharam sua alma em todos os sentidos e
em todos os aspectos (...) é neles que se aloja a extrema elevação da natureza
humana.”56 Essa passagem introduzia a apresentação dos céticos na Apologia,
que, da mesma maneira como o eram nas Hipotiposes de Sexto, apareciam no
interior de uma divisão tripartite entre as filosofias57, centrada na valorização da
prática da investigação: a dos dogmáticos, que consideravam ter encontrado a
54
Sexto Empírico, Hipotiposes Pirrônicas, I, IV.
55
A noção de perfeição como uso integral das capacidades do intelecto é afirmada aqui no sentido
aristotélico, da total realização da função natural do homem, estabelecida no início do primeiro
livro da Ética a Nicômaco, embora, não fosse idêntica à concepção de Aristóteles, pois para
Montaigne a razão humana se realizava plenamente não na obtenção da verdade, mas sim em sua
atividade investigativa. MAIA NETO, J. R., “Epoché as Perfection: Montaigne`s view of ancient
scepticism” In: Skepticism from Renaissance to the Elightement, pp. 13-42.
56
“Ils ont manié leur ame à tout sens et à tout biais (...) c`est en eux que loge la hauter extreme de
la nature humaine.” MONTAIGNE, II, 12, p. 502.
57
“Aparentemente, quando empreendemos uma investigação – zetésis - sobre alguma coisa, segue-
se que ou fazemos uma descoberta; ou negamos ter feito uma descoberta, reconhecendo, assim,
que a coisa é inapreensível; ou continuamos procurando. E por isso, provavelmente, que, no que
diz respeito ao que é investigado pela filosofia, alguns afirmam ter descoberto a verdade; outros,
que ela não pode ser apreendida; e, outros ainda, continuam investigando. Aqueles que pensam ter
encontrado são os dogmáticos, em sentido estrito: por exemplo, os seguidores de Aristóteles e de
Epicuro, os estóicos entre outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos são partidários do
inapreensível. Os que continuam procurando são os céticos. Assim parece razoável manter três
tipos de filosofia, a dogmática, a acadêmica e a cética.” SEXTO EMPÍRICO, Hipotiposes
Pirrônicas, I, I.
109
verdade; a dos acadêmicos, que a tinham como inapreensível; e a dos céticos, que
continuavam procurando, sem afirmar ser ela apreensível ou não.
De fato, com essa recomendação quanto à busca da tranqüilidade da alma,
de “que chacun la cherche en son particulier”, Montaigne retomou em Da glória a
mensagem libertadora da Apologia, da celebração da própria integridade
intelectual; do agir consciente e deliberado, segundo os próprios critérios, contra
as determinações morais que regulavam a vida e os costumes comuns que
levavam os homens a agir sem escolha e sem discernimento, aderindo a valores
dados como verdadeiros, por simples autoridade. Montaigne falou sobre essa
questão na Apologia, pautando na epoché que dela resultava, a sua concepção
própria sobre o modo como deveria exercer-se o juízo humano. Ou seja, não
entendido como um poder inato e universal, dado igualmente a todos, como meio
de apreender a realidade objetiva das coisas, mas como capacidade subjetiva de
compreensão, em sua instabilidade própria, posta em ação a cada vez que se julga,
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Mas o fato de não se ver proposição alguma que não seja debatida e controversa
entre nós, ou que não o possa ser, mostra bem que nosso julgamento natural não
apreende muito claramente aquilo que apreende; pois meu julgamento não pode
fazer com que isso seja aceito pelo julgamento de meu companheiro, o que é
sinal de que o aprendi por algum outro meio que não um poder natural que
exista em mim e em todos os outros homens.58
58
“Mais ce qu`il ne se void aucune proposition qui ne soit debatue et controverse entre nous, ou
qui ne le puisse estre, montre bien que nostre jugement naturel ne saisit pas bien clairement ce
qu`il saisit; car mon jugement ne le peut faire recevoir au jugement de mon compagnon: qui est
signe que je l`ay saisi par quelque autre moyen que par une naturelle puissance qui soit en moy et
en tous les hommes.” MONTAIGNE, II, 12, p. 562.
59
EVA, L., op. cit., p. 247.
110
(B) Por que, dizem, também a eles não será permitido duvidar, como entre os
dogmatistas é permitido a um dizer verde, ao outro amarelo? Haverá coisa que
vos possam propor, para admiti-la ou refutá-la, que não seja lícito considerar
60
“Qui sera en cherche de la science, si la pesche où elle se loge: il n`est rien dequoy je face moins
de profession. Ce sont icy mes fantasies, par lesquelles je ne tasche point à donner à connoistre les
choses, mais às moy (...)” MONTAIGNE, II, 10, p. 407.
61
Com efeito, Montaigne se utilizou de fontes pirrônicas e acadêmicas na construção de sua visão
própria do ceticismo, o que não impedia que eventualmente expressasse seu juízo sobre a
discordância entre as duas escolas. Mas como nos mostra Luiz Eva, desde o primeiro momento de
seu engajamento no ceticismo, as duas escolas, ao que parece, se apresentaram a ele como
modalidades diversas de um único gênero de filosofar, que tinha por fundamento a suspensão do
juízo quanto à verdade. Assim, ao invés de indagar sobre a aderência de Montaigne a uma ou outra
dessas duas tradições, Eva propõe uma outra perspectiva para avaliar seu pensamento: “(...)
pensamos que levar em conta ambos os elementos – tanto sua ênfase em uma diferença de gênero
entre o ceticismo e a filosofia dogmática como sua tendência em operar, de modo geral, com as
diferentes fontes céticas, a fim de encontrar nelas, de modo geral, uma forma de concordância e de
continuidade – pode nos conduzir a observar as coisas de outro modo.” EVA, L., op. cit., p. 219.
62
Abordando esse benefício que Montaigne atribui à epoché, como estado em que se realiza à
perfeição a natureza racional e emocional do homem, José Raimundo Maia questiona a
interpretação de Richard Popkin do ceticismo de Montaigne, como fideísta. Essa perspectiva de
Popkin, de fato, contradiz frontalmente o entendimento da epoché como modo de restituir aos
homens o uso adequado e perfeito de suas faculdades. Do ponto de vista fideísta, a epoché
descreveria um estado de miséria humana e seria valorizado na medida do esvaziamento da alma
de suas crenças para que pudesse receber a luz transcendente da graça divina. MAIA NETO, J. R.
op. cit.
111
como ambígua? E, ao passo que os outros são levados (ou pelo costume de seu
país, ou pela educação dos pais, ou por acaso, como por uma tempestade, sem
julgamento e sem escolha, e mesmo, quase sempre antes da idade do
discernimento) a esta ou aquela opinião, à seita estóica ou à epicurista, à qual se
encontram hipotecados, submetidos e presos como a uma armadilha que não
podem soltar: (C) – ‘Agarram-se a qualquer doutrina como a um rochedo sobre
o qual a tempestade os houvesse lançado’ – (B) por que a estes aqui não será
igualmente concedido que mantenham sua liberdade, e considerem as coisas
sem comprometimento ou sujeição? (C) ‘Inda mais livres e mais independentes
porque nada limita seu poder de julgar’ Não é uma vantagem ver-se liberto da
necessidade que freia os outros?63
63
“(B) Pourquoy ne leur sera il permis, disent-ils, comme il est les dogmatistes à l`un dire vert, à
l`autre jaune, à eux aussi de doubter? est il chose qu`on vous puisse proposer pour l`advouer ou
refuser, laquelle il ne soit loisible de considerer comme ambigue? Et, où les autres sont portez, ou
par la coustume de leur païs, ou par l`instituition des parens, ou par rencontre, comme par une
tempeste, sans jugement et sans chois, voire le plus souvant avant l`aage de discretion, à telle ou
telle opinion, à la secte ou Stoique ou Epicurienne, à laquelle ils se treuvent hippothequez, asserviz
et collez comme à une prise qu`ils ne peuvent desmordre: (C) ‘Ils se cramponnent à n`importe
quelle doctrine comme à un rocher sur lequel la tempête les aurait jetés’ – (B) pourquoy à ceux cy
ne sera il pareillement concedé de maintenir leur liberté, et considerer les choses sans obligation et
servitude? (C) ‘D`autant plus libres et plus indépendants que rien ne limite leur pouvoir de juger.’
N`est ce pas quelque advantage de se trouver desengagé de la necessité qui bride les autres?”
Idem, II, 12, p. 504.
64
Da mesma maneira Cícero condenou essa imposição de fatores externos sobre o intelecto. Em
seus Academicos ele frisou os riscos da influência não racional, de amigos e do ensino das
proposições dos filósofos dogmáticos, na infância, como obstáculos à própria integridade
intelectual. Ver CÍCERO, Acadêmicos, II, 8, apud. Maia Neto, J. R., op. cit., p. 16.
65
MAIA NETO, J. R., op. cit., p. 17.
112
66
“A qui doivent Caesar et Alexandre cette grandeur infinie de leur renommée qu`à la fortune?
Combien d`hommes a elle esteint sur le commencement de leur progrés, desquels nous n`avons
aucune connoissance, qui y apportoient mesme courage que le leur, si le malheur de leur sort ne les
eut arrestez tout court, sur la naissance de leur entreprinses!” MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
113
célebres heróis do mundo antigo. Com efeito, dada a desordem caótica dos
negócios humanos e o quanto a fortuna estendia seu domínio sobre eles, era
preferível fazer como os pirrônicos e suspender o juízo quanto a tais valores e
crenças, que determinavam arbitrariamente a essência da virtude e do vício; do
bem e do mal, que causavam tantos problemas e agitações ao espírito,
engendrando as superstições e os excessos das ambições. A tranqüilidade da alma
proporcionada pela suspensão do juízo não apenas em relação às teses dos
dogmáticos mas também quanto a valores e crenças é um topoi especificamente
pirrônico, bastante presente no elogio montaigneano da epoché como modo de
purificar o homem de suas dores desnecessárias, relacionadas às convicções da
tradição sobre o que era bom ou mal, que o levavam a tudo fazer para alcançar o
primeiro e a empenhar todos os seus esforços para evitar o segundo.67
De fato, a passagem acima, exprimindo essa maneira de suspensão,
implicava num forte desdém quanto a um dos valores mais celebrados em seu
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67
Sobre isso ver o capítulo 30 do primeiro livro das Hipotiposes de Sexto. MAIA NETO, J. R., op.
cit., p. 26.
114
68
“Infinies belles actions se doivent perdre sans tesmoignage avant qu`il en vienne une à profit.”
MONTAIGNE, II, 16, p. 622.
69
SALUTATI, C., Epistolario, pp. 295-296, apud Varotti, C., op. cit., p. 90.
115
Por enquanto, é interessante notar, desse ponto de vista que negava o valor
moral do registro das grandes ações pela história, a atitude própria ao magnânimo
aristotélico, de escolher as ocasiões mais extraordinárias para agir, deixava de
definir-se como sinal de superioridade para expressar a conduta desordenada de
um espírito incapaz de sobrepor-se às suas paixões e de cultivar a virtude por seu
próprio valor. Assim, o olhar sobre as guerras religiosas que assolavam a França
de Montaigne destacavam esse panorama no ensaio não como contexto apropriado
à manifestação da virtude a ser imortalizada pela história, mas, sobretudo, como
modo de perder os espíritos mais valorosos e de precipitá-los no esquecimento.
Com efeito, os homens verdadeiramente virtuosos não esperavam pelas
circunstâncias mais notáveis para bem agir e jamais o faziam em função da
admiração alheia:
Quem tem sua morte por mal empregada caso não seja em ocasião destacada,
em lugar de ilustrar sua morte, obscurece sua vida, deixando escapar enquanto
isso muitas ocasiões normais de se arriscar. E todas as ocasiões normais são
suficientemente brilhantes se a consciência de cada um trombeteá-las para si
‘Nossa glória está no testemunho de nossa consciência’71
70
“Et si on prend garde, on trouvera qu`il advient par experience que les moins esclattantes
occasions sont les plus dangereuses; et qu`aux guerres qui se sont passèes de nostre temps, il s`est
perdu plus de gens de bien aux occasions legeres et peu importantes et à la contestation de quelque
bicoque qu`és lieux dignes et honnorables.” MONTAIGNE, II, 16, p. 623.
71
“Qui tient sa mort pour mal employée si ce n´est en occasion signalée, au lieu d`illustrer sa mort,
il obscurcit volontiers sa vie, laissant eschapper cependant plusieurs justes occasions de se
116
hazarder. Et toutes les justes sont illustres assez sa conscience les trompettant suffisammant à
chacun. ‘Notre gloire c`est le témoignage de notre conscience’” Montaigne, II, 16, p. 623.
72
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, IV, 3, 1124b10.
73
PETRARCA, Familiares, I, 2, “To Tommaso da Messina, on untimely appetite for glory”, p. 15.
74
Eva Kushner usa esse exemplo de Da glória a fim de nos mostrar como os acréscimos
posteriores que Montaigne inseria em seus escritos tinham função transformadora, ainda que,
como nesse caso, o acréscimo viesse corroborar as idéias que lhe antecediam e que se lhe seguiam.
Essa menção à vida no ensaio, enriquecia a ênfase já afirmada em seu desprezo das ambições e
apontava para novas considerações, fazendo ressaltar a centralidade que tinha a perspectiva da
morte no ideário tradicional de elogio da glória. KUSHNER, E., “Monologue et dialogue dans les
deux premiers livres des Essais”, In: Actes du colloque international, p. 109.
117
É preciso ir à guerra por seu dever e esperando essa recompensa que não pode
faltar a todas as belas ações, por ocultas que sejam, nem mesmos aos
pensamentos virtuosos: é o contentamento que uma consciência bem regrada
recebe em si por bem agir. É preciso ser valente por si mesmo e pela vantagem
de ter sua coragem fincada numa posição firme e segura contra os assaltos da
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fortuna.76
75
“Qui n`est homme de bien que par ce qu`on le sçaura, et par ce qu`on l`en estimera mieux apres
l`avoir sceu; qui ne veut bien faire qu`en condition que sa vertu vienne à la connoissance des
hommes: celuy-là n`est pas homme de qui on puisse tirer beaucoup de service.” MONTAIGNE, II,
16, p. 623.
76
“Il faut aller à la guerre pour son devoir, et en attendre cette recompense, qui ne peut faillir à
toutes belles actions, pour occultes qu`elles soient, non pas mesmes aux vertueuses pensées: c`est
le contentement qu`une conscience bien reglée reçoit en soy de bien faire. Il faut estre vaillant pour
soy-mesmes et pour l`avantage que c`est d`avoir son courage en une assiette ferme et asseurée
contre les assauts de la fortune.” Idem, p. 623.
118
aprovação do próprio juízo, livre das imposições externas dos costumes, a glória
do mundo definia-se essencialmente como alvo fortuito e informe: “Quem visa a
agradar-lhe nunca o consegue; trata-se de um alvo que não tem nem forma nem
solidez”77. O juízo do povo, ele enfatizava, era inconstante e injusto, por isso suas
asserções não possuíam qualquer validade intrínseca. Exortava, assim, para que os
homens encontrassem antes dentro de si mesmos suas motivações de bem agir,
para que pudessem fazer-se verdadeiramente virtuosos:
77
“Quiconque vise à leur plaire, il n`a jamais faict; c`est une butte qui n`a ny forme ny prise.”
Idem, II, 16, p. 624.
78
“Null`art, nulle souplesse d`esprit pourroit conduire nos pas à la suitte d`un guide si desvoyée et
si desreiglé. En cette confusion venteuse de bruits de raports et opinions vulgaires qui nous
poussent, il ne se peut establir aucune route qui vaille. Ne nous proposons pointe une fin si
flottante et vagabonde: allons constammant apres la raison. que l`approbation publique nous suyve
par là si elle veut; et, comme elle despend toute de la fortune, nous n`avons point de loy de
l`esperer plustost par autre voye que par celle là.” Idem.
119
artifícios retóricos79, que, de resto, enfim, talvez não funcionassem tão bem no
trato com os homens: “Vi em minha época mil homens maleáveis, dúplices,
ambíguos e que ninguém duvidaria, serem homens do mundo mais prudentes do
que eu, perderem-se onde me salvei. ‘Ri ao ver que as artimanhas podem
fracassar.’”80.
De fato, como já vimos, fundado na profissão de “bonne foy” conforme a
primeira frase da Advertência ao leitor, seu discurso tinha na ética da lealdade sua
força motriz. Possuía a prerrogativa de abrir-se totalmente à confiança de qualquer
um, justamente na medida em que se recusava a adequar-se aos códigos
tradicionais que determinavam os modos convenientes da relação com o leitor,
despindo-se da vaidade do saber, assim como dos adornos e artifícios retóricos,
próprios para conquistar os aplausos do mundo. Com efeito, inaugurava um novo
modo de atrair sua benevolência, pelo testemunho sincero de si dado no registro
do movimento incessante de sua reflexão. Montaigne reproduzia assim através do
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79
Como nos diz Antoine Compagnon, Montaigne opunha assim dois genera dicendi da tradição
retórica, seu estilo baixo, simples e privado ao estilo sublime da eloqüência pública e deliberativa.
Compagnon, A., “Montaigne ou la parole donnée”, In: Rhetorique de Montaigne, p. 11.
80
“J`ay veu de mon temps mill`hommes souples, mestis, ambigus, et que nul ne doubtoit plus
prudans mondains que moy, se perdre ou je me suis sauvé. ‘Jai ri de voir que les ruses pouvaient
échouer.” p. 625.
81
Com efeito, Montaigne recheou seu ensaio sobre a glória com passagens de Dos deveres, entre
citações latinas, alusões e passagens traduzidas. Uma ocasião particularmente ilustrativa da
retomada da reflexão ética de Dos deveres no ensaio se dá num acréscimo c quando Montaigne fez
alusão à lenda platônica do anel de Giges, extraída diretamente da obra de Cícero para exaltar o
valor de uma moral fundada na própria razão como bem mais útil à vida social, por não dissociar-
se da honestidade: “(C) E se alguém pudesse usar o anel de Platão, que tornava invisível quem o
levasse no dedo e o virasse para a palma da mão, muitas pessoas se esconderiam quando mais é
preciso mostrar-se (...)” Montaigne, II, 16, p. 625. Segundo nos conta Cícero, retomando a lenda
de Platão, Giges, um humilde pastor, vendo-se em propriedade do anel mágico que o tornava
invisível segundo sua vontade, não hesitou, uma vez oculto dos olhares alheios, em desonrar sua
rainha, assassinar seu rei e eliminar seus opositores, sagrando-se rei da Lídia em virtude de sua
astúcia. Recorrendo ao mito platônico, Cícero formulou uma questão ética fundamental, no que
dizia respeito ao elogio de uma conduta pautada somente na razão e na honestidade; questão que
se pode reconhecer também subjacente ao modo como Montaigne enfatizava o valor de sua
escolha de agir sempre em conformidade com a aprovação de seu testemunho interno em Da
glória. Assim, portanto, nos esclarece Cícero: “Eis o significado do anel e da história: acaso farias
qualquer coisa para obter riqueza, poder e amor se ninguém o soubesse ou sequer o suspeitasse, se
tudo permanecesse para sempre ignorado dos deuses e dos homens?” Com efeito, quem senão
aqueles que se distanciavam dos costumes comuns, procurando ter somente sua razão por guia e só
120
bem comum: “Muitas pessoas se deixam arrastar a um ponto tal que esquecem a
justiça, quando cedem ao desejo de comandos, honras, glórias. Bem disse Ênio:
‘Nenhuma sociedade é inviolável, Nem há fé na monarquia.’”84 Entretanto, como
veremos, ao contrário de Montaigne, Cícero também procurou ao longo de Dos
deveres, apoiar na fides o conceito de uma vera gloria, de uma glória justa e
verdadeira como imagem e prêmio da virtude85. Através dela, promoveu a
reconciliação entre a primazia da fidelidade à própria razão com a da fidelidade ao
bem da comunidade civil, dada mediante a caracterização de uma ambição
legítima dos louvores do mundo, própria aos que possuíam dotes extraordinários.
Nessa obra Cícero empreendeu uma das mais influentes reflexões morais sobre a
buscando as coisas honestas não fariam mal uso do anel ? Assim, conforme afirmava em Dos
deveres esse era o primeiro preceito, responsável pela retidão da vida e de sua utilidade, preceito
que nunca poderia ser amado pelos que antepunham o bem ilusório da glória ao bem da virtude:
“Com efeito, se é que demos alguns passos em filosofia, devemos estar suficientemente
convencidos de que, se pudéssemos escapar a todos os homens e a todos os deuses, ainda assim
bom seria nada fazer de cúpido, injusto, libidinoso ou intemperante.” Cícero, Dos deveres, III, 9,
37-39.
82
Idem, I, 7, 23.
83
“Nostre intelligence se conduissant par la parole, celuy qui la fauce, trahit la societé.”
Montaigne, II, 18, p. 666.
84
Idem, I, 8, 26.
85
Quanto aos modos de se adquirir vera gloria Cícero elencou no segundo livro de Dos deveres os
benefícios prestados; a reputação de liberalidade; a fé e justiça, sendo que acrescentou mais
adiante: “Assim, a justiça realiza todas as três condições que foram propostas para a glória: tanto a
benevolência (porque deseja ser útil a muitos) quantop, pelo mesmo motivo, a fé e a admiração,
porque desprezam e negligenciam aqueles atrativos para os quais a maioria, inflamada pela avidez,
é arrastada.” Idem, II, 11, 38.
121
esforçava por dar uma solução satisfatória: do impulso natural e instintivo voltado
para a grandeza definir-se ao mesmo tempo como raiz da virtude - nas belas e
gloriosas ações individuais - e do vício – na incapacidade em aceitar as limitações
impostas pela justiça e pelos interesses da comunidade civil87:
Pois em tudo que é dessa natureza, não podendo muitas ser excelentes, quase
sempre eclode tão grande contenda que se torna difícil preservar a ‘sociedade
inviolável’. Isso mostrou há pouco a temeridade de César, o qual perverteu
todos os direitos divinos e humanos em virtude de um principado que ele
próprio se atribuíra por um erro de opinião. E aqui há uma coisa molesta: em
ânimos superiores e talentos brilhantes a maior parte do tempo estão presentes
anseios de honra, comando, poder e glória. Por isso devemos cuidar para que
nada nesse âmbito se faça com erro.88
86
Varotti, C., op. cit., p. 264.
87
Idem., p. 265.
88
Cícero, Dos deveres, I, 8, 26.
122
89
Em seu diálogo De la vita civile, Matteo Palmieri se propõe a mesma tarefa de Cícero e
reproduz com fidelidade suas idéias, conforme expostas em Dos deveres. Sobre isso destacamos o
modo como Palmieri dedica à justiça o terceiro livro do diálogo considerando essa a virtude mais
importante a ser praticada pelo cidadão para a conservação da república, tal como Cícero enfatiza
ao longo de sua obra. Na dedicatória de seu De la vita civile, Palmieri nos apresenta sua estrutura e
assim nos diz sobre a justiça: “(...) é a parte mais excelente dos homens mortais e necessária sobre
todas as coisas na manutenção do bom ordenamento da república.” Palmieri, M., Civic life, In:
Three Crowns of Florence, p. 88.
90
Ver sobre isso o item 2.4 do segundo capítulo deste trabalho.
123
crimes que perpetrou contra a república: “A verdadeira glória deita raízes e até as
espalha, mas os engodos caem rapidamente como flores miúdas; o que é simulado
não pode ser duradouro.”91
Segundo o grande orador, a vera gloria, prerrogativa da autêntica
magnanimidade, anulava a separação entre âmbito interno e externo porque tinha
a fides, a justiça como base. Assim, a comprovação de sua autenticidade se
realizava através da solidez da estima da comunidade civil. De acordo com essa
perspectiva, o caminho da virtude interior em sua verdadeira essência deveria
regular-se pelo culto à sua forma exterior, conforme acatada pela sociedade nos
grandes exemplos reconhecidos publicamente como sua realização mais perfeita:
(...) Sócrates dizia brilhantemente que o caminho mais próximo e curto para a
glória é ser o que se deseja parecer. Pois, se cuidam alguns obter glória estável
com simulações e ostentação vã, não só com palavras, mas também com
fisionomia fingida, erram cabalmente. (...) Assim quem desejar alcançar a
verdadeira glória da justiça que cumpra os deveres da justiça.92
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91
Cícero, Dos deveres, II, 12, 43.
92
Idem.
93
“(B) Il y a je ne sçay quelle douceur naturelle à se sentir louer, mais nous luy prestons trop de
beaucoup. ‘Je ne hais pas la louange, car je n`ai pas la fibre insensible; mais je me refuse à voir le
terme et le but qu`on doit proposer à la vertu dans un bravo! Tres bien!” Montaigne, II, 16, p. 625.
124
Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem como me preocupa qual eu seja
em mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos
vêem apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um
ar alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e de receio. Eles não
vêem meu coração; vêem apenas mes contenances. 94
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94
“Je ne me soucie pas tant quel je sois chez autruy, comme je me soucie quel je sois en moy
mesme. Je veux estre riche par moy, non par emprunt. Les estrangers ne voyent que les
evenements et apparences externes; chacun peut faire bonne mine par le dehors, plein au dedans de
fiebvre et d`effroy. Ils ne voyent pas mon coeur, ils ne voyent que mes contenances.” Idem.
125
laureado em 1351. Como nos mostra Jacob Burckhardt em seu clássico A Cultura
do Renascimento na Itália95, a cidade natal de Petrarca, Arezzo, lhe prestava um
culto que no passado só era prestado aos santos, de conservar para sempre a casa
em que nascera como lugar de visitação em nome da celebração perene de sua
glória. Privilégio que anteriormente em geral as cidades conferiam às celas
daqueles que haviam transcendido sua condição de homens no domínio da vida
secular, tais como São Tomás de Aquino e São Francisco de Assis, por exemplo,
no convento dos dominicanos em Nápoles.
Já na segunda carta das Familiares, se explicitava a importância que o
tema da glória desempenhava em sua vida e na consolidação de sua imagem como
exemplo de sabedoria mundana. Dirigindo-se ao poeta Tommaso da Messina, seu
velho colega de estudos, Petrarca retornava então a este problema retomando sua
aceitação de maneira bem mais serena do que fizera no Secretum: só usou então
as tópicas e metáforas cristãs de sua condenação uma única vez, ao fim da carta,
denunciando sua nulidade como vento e fumaça. Mas ao fazê-lo, ele não exortou
seu correspondente a combater essa afecção. Se reconhecia por um lado que ela
podia ser facilmente desprezada por um discernimento reto, sabia também o
quanto era difícil possuir tal discernimento na prática, especialmente para o
95
Burckhardt, Jacob, op. cit., p. 120.
126
A fama que buscamos não passa de vento, fumaça, sombra: não é nada. Portanto
pode facilmente ser desdenhada por um claro e justo juízo. Porém se porventura
- já que este mal pode infiltrar-se facilmente no ânimo generoso – não seja
capaz de erradicá-lo de tua alma, cuida ao menos de frear seu crescimento com
a foice da razão.(...) para resumir meu pensamento mais brevemente, cultive a
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virtude enquanto você ainda está vivo, e você encontrará fama após a morte.96
Observe-os bem e acredite na minha predição sobre eles: a fama de todos eles
desaparecerá com suas mortes e um único túmulo será suficiente para seus ossos
e seus nomes. Quando a morte forçar suas línguas a permanecerem frias, eles
não apenas estarão em silêncio, mas serão também silenciosos sobre si
mesmos.98
96
Petrarca, Familiares I, 2. “on untimely appetite for glory” p. 21.
97
Idem, p. 20.
98
Idem, p. 18.
127
99
Idem, p. 15.
100
Sobre isso ver Cícero, Dos deveres, II, 5, 16; II, 11, 39.
128
101
Petrarca, op. cit., p. 16.
102
VAROTTI, C. op. cit.,p. 117.
129
Quanto a mim, considero que só existo em mim; e essa minha outra vida que
reside no conhecimento de meus amigos, (C) considerando-a pura e
simplesmente em si, (A) bem sei que não obtenho dela proveito nem gozo a não
ser pela vanidade de uma idéia fantasiosa. E quando estiver morto obterei ainda
menos; (C) e, ademais perderei totalmente o uso das verdadeiras vantagens que
a acompanham acidentalmente às vezes; (A) não terei mais gancho por onde
agarrar a reputação, nem por onde ela me possa tocar ou chegar a mim. 103
103
“Moy, je tiens que je ne suis que chez moy; et, de cette autre mienne vie qui loge en la
connoissance de mes amis, (C) à la considerer nue et simplement en soy, (A) je sçay bien que je
n`en sens quand je seray mort, je m`en resentiray encores beaucoup moins; (C) et si perderay tout
net l`usage des vrayes utilitez qui accidentalement la suyvent par fois; (A) je n`auray plus de prise
130
Em suma, é Pedro ou Guilherme que a portam, que zelam por ela e a quem ela
interessa. (C) Oh, que corajosa faculdade é a esperança, que, em um indivíduo
mortal, e em um momento, vai se apossando da infinidade, da imensidade, da
eternidade: a natureza deu-nos um brinquedo prazeroso. (A) E esse Pedro ou
Guilherme, o que é além de uma palavra pura e simples? 104
par où saisir la reputation, fruict ny jouyssance que par la vanité d`une opinion fantastique. Et, ny
par où elle puisse toucher ny arriver à moy.” MONTAIGNE, II, 16, p. 626.
104
“C`est en somme Pierre ou Guillaume qui la porte, prend en garde, et à qui elle touche. (C) O la
courageuse faculté, que l`esperance qui, en un subject mortel, et en un moment, va usurpant
l`infinité, l`imensité, l`aeternité: nature nous a là donné un plaisant jouët.(A) Et ce Pierre ou
Guillaume, qu`est ce, qu`une voix pour tous potages ?” Idem, I, 46, 279.
131
(...) e ela de fato cumpre bem seus objetivos. Desde que aqueles que são
altamente louvados se comprazem na glória, como Valérius escreveu ‘não
existe humildade tão grande que possa resistir à doçura da glória.’ A glória é
também útil ao homem glorioso pois nada é tão efetivo como a recompensa do
louvor para reforçar o desejo da virtude e o desejo de bem agir.105
105
SALUTATI, C., “Letter to Peregrino Zambeccari”, In: The Earthly Republic, p. 94.
106
Sobre a importância da história para os autores franceses contemporâneos de Montaigne,
reunidos em torno de Jean Bodin, nos diz Frances Yates, aludindo ao seu projeto da “histoire
parfaicte”: “O objeto da ‘história perfeita’ era ético: aprender dos exemplos dos personagens
históricos como evitar o vício e seguir a virtude, como levar uma vida moral. A exatidão factual, o
uso de fontes documentais, a análise das conexões causais entre acontecimentos, tudo isso eram
coisas subsidárias à meta principal de uma ‘história verdadeira’: ensinar a ética por meio dos
exemplos.” YATES, F., The Histoy of History, In: Renaissance and Reform, p 90.
132
Essa ênfase em seu aspecto moral, a partir de sua ligação com a retórica,
foi objeto de uma outra carta de Salutati a Juan Fernandez de Heredia, em que,
como já vimos, nos convidou a celebrar a história como instrumento mais
adequado para distinguir o vício da virtude por meio da força persuasiva dos
exemplos: “De fato, sabendo bem ajuizar, o que vem inscrito no elogio e na culpa
senão aquilo que pode ser reconhecido como virtuoso ou imoral?”107 No âmbito do
pensamento político humanista a valorização da utilidade da história assumiu
extrema importância, enquanto arcabouço das mais altas experiências humanas,
contribuindo para conferir maior eficácia à eloqüência em sua tarefa de bem
direcionar a conduta dos homens no sentido da realização plena de sua
excelência.108 Essa carta de Salutati é bastante representativa dessa concepção,
que atingiria todo o humanismo posteriormente109. Os exemplos históricos tinham
a vantagem de transformar mais diretamente em situações concretas e pessoas
vivas as realidades teóricas menos evidentes como os conceitos de justiça e de
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107
SALUTATI, C. Epistolário, apud VAROTTI, C., p. 90.
108
Mas, no que se refere ao tema da teoria e dos métodos da história nessa sua vinculação com a
retórica, há apenas testemunhos dispersos na literatura humanista, em cartas e dedicatórias, em
virtude mesmo, da escassez do tratamento sistemático da questão no mundo antigo. Uma carta de
Bernardo Rucellai acerca de sua discussão com Pontano sobre a natureza da historiografia
constitui-se talvez num dos mais sintéticos testemunhos das noções aceitas no humanismo acerca
dessa questão. Rucellai planejava então a escrita de sua obra sobre a invasão de Florença pela
França em 1494, retomando no debate com Pontano e com os membros de sua academia em
Nápoles, os principais postulados estabelecidos por Cícero no segundo volume do De Oratore: da
verdade como primeira exigência da tarefa do historiador; de seu conteúdo centrado em grandes
batalhas e nas ações de grandes personagens; e na importância da expressão dos fatos. Mas, o
debate focalizou especialmente este último ponto, versando sobre a questão da imitação dos
modelos clássicos, concentrando-se no problema, sobre se um historiador deveria escolher apenas
um dos autores da Antigüidade como modelo ou se deveria selecionar alguns deles, extraindo de
cada um em que aspecto de suas obras eles melhor afirmavam seus talentos. A preeminência de
Salústio e Tito Lívio foi em geral reconhecida como principal fonte de imitação, para que o
discurso historiográfico se destacasse pela eloqüência, pela clareza e organização do estilo.
GILBERT, F. Machiavelli and Guicciardini, p. 203.
109
VAROTTI, C., op. cit., p. 88.
133
como ser justos em seus atos e intenções do que, por exemplo, tendo na
imaginação a figura de Bruto, fundador da república romana.110
Montaigne jamais perdeu de vista, do início ao fim de seu ensaio sobre a
glória, a estreita vinculação de seu elogio à valorização das prerrogativas morais
do discurso que a fundava. De fato, não por acaso, deu início ao capítulo com uma
denúncia da impotência da linguagem, declarando a diferença profunda entre “le
nom et le chose”. Na parte final do capítulo ele retomou essa crítica, reforçando
seu desprezo da glória mediante o esvaziamento de sentido da concepção retórico-
moralista do discurso da história como mestra da vida, tão cara ao pensamento
político humanista que a resgatara do De Oratore de Cícero.111
Definindo a história como não mais que um domínio de desordem absoluta
em que os homens se agitavam, escravizados por suas paixões insaciáveis, ele pôs
em evidência a dimensão da insensatez e da ignorância dos que deixavam a ela o
encargo de dar testemunho de si. De fato, os registros históricos dizia mais do
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110
SALUTATI, Epistolario, p. 292, apud VAROTTI, C., op. cit., p. 93.
111
A reflexão ciceroniana acerca do discurso historiográfico como parte da retórica e domínio de
atuação do orador no segundo volume do De Oratore é uma das raras apreciações teórico
metodológicas acerca da escrita da história na literatura da Antigüidade, que exerceu influência
decisiva sobre o pensamento moral clássico e renascentista no sentido da consolidação de uma
posição elevada para a história enquanto detentora de grande utilidade moral. Tanto os autores
italianos quanto do norte da Europa retomaram largamente a noção ciceroniana sobre a historia
magistra vitae. Essa valorização da história no diálogo se inscreveu no âmbito de seu esforço por
ampliar o campo de atuação da eloqüência, de sua sabedoria e virtude próprias, para além dos
discursos públicos no fórum e nas assembléias. Como afirmava o personagem Antonio no diálogo,
retomando o elogio de Crassus, a eloqüência deveria abranger os conhecimentos de todos os
gêneros, pois todos apoiavam-se no bem dizer: “Não há nenhuma matéria que não pertença
propriamente ao orador, desde que a linguagem a deva revestir de nobreza e de elegância.” Cícero,
De Oratore, II, 8, 24. Cícero louvou então sua dignidade como guia moral da humanidade ao
conservar a memória dos grandes exemplos de virtude do passado e o vitupério dos maus,
constituindo-se num estímulo crucial à boa conduta dos contemporâneos; mas somente enquanto
sua escrita se desse como parte das atribuições do orador, único capaz de dar forma ao estilo, com
toda sorte de argumentos e de expressões brilhantes, sabendo bem dispô-los no discurso: “(...)
quem poderia exortar mais vivamente ao bem e desviar mais fortemente do mal, culpar com mais
energia os maldosos e louvar os bons com mais brilho (...)? A história enfim, testemunha dos
séculos, luz da verdade, alma da memória, mestra da vida, intérprete do passado, que voz, senão
aquela do orador pode fazê-la imortal?” Idem, II, 9, 35. Em sua digressão sobre a história,
portanto, o grande orador romano procurou estabelecer seus preceitos próprios, sob a crítica que
punha nas palavras de Catulo aos historiadores romanos, como Catão e Fabius Pictor, que ao
contrário dos grandes autores gregos, como Heródoto e Tucídides, restringiam a história a uma
redação de anais, das épocas, dos homens, dos eventos e lugares dignos de registro, sem
preocupar-se com a beleza literária.Com efeito, se o gênero ainda não tinha tido grande destaque
entre os romanos, era porque estes ainda estudavam a eloqüência exclusivamente para brilhar nos
tribunais, enquanto os homens de eloqüência na Grécia procuravam a história como principal fonte
de ilustração e como um dos campos de aplicação mais destacados de sua arte. Assim, Cícero
passou a determinar seus preceitos particulares, a fim de que a história pudesse afirmar-se na
magnitude de sua função moral como mestra da vida: sua primeira lei, de fato, era nada dizer de
falso e de ousar dizer tudo quanto dissesse respeito à verdade. Entretanto, enfatizava, tudo se
pautava nesse gênero, sobretudo na força e na beleza da expressão dos fatos.
134
domínio que a fortuna exercia sobre os negócios dos homens do que da excelência
mais alta que podiam alcançar:
(C) Os destinos de bem mais da metade do mundo, por falta de registro, não
saem de seu lugar e se esvaem sem durabilidade. Se eu tivesse em minha posse
os eventos desconhecidos, eu penso que muito facilmente eles suplantariam os
eventos conhecidos em toda espécie de exemplos. (A) Que dizer se, dos
próprios romanos e dos gregos, entre tantos escritores e testemunhos e tantos
raros e nobres feitos, tão poucos chegaram até nós!112
Este fragmento, situado nos fins do ensaio, explicitava bem o modo como
a crítica da glória levava diretamente ao questionamento da prerrogativa da
história em apreender a virtude e a salvar do esquecimento as maiores realizações
e feitos humanos. O tema propiciava assim a denúncia do culto aos exemplos
como mera fantasia, movida pela presunção dos que confiavam demasiadamente
nas potencialidades do discurso, que fundava a celebridade imortal de grandes
heróis e sábios, para ordenar e moldar o presente.
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112
“(C)Les fortunes de plus de la motié du monde, à faute de registre, ne bougent de leur place et
s`evanouissent sans durée. Si j`avois en ma possession les evenements inconnus, j`en penserois
tres facilement supplanter les connus en toute espece d`exemples. (A) Quoy, que les Romains
mesmes et les Grecs, parmy tant d`escrivains et de tesmoins et tant de rares et nobles exploits, il en
est venu si peu jusques à nous! ” MONTAIGNE, II, 16, p. 627.
135
um belo talento.”114 Essa maneira pela qual os homens realizavam sua própria
dignidade e humanidade, na concepção de Salústio, tinha como espaço ideal os
costumes e as instituições da república, pautados no ideal da libertàs, que permitia
a livre manisfestação dos talentos individuais. Assim, como atentava, o
extraordinário desenvolvimento vivido por Roma nos primeiros tempos da
república teve por princípio o apreço de seus cidadãos por esse valor da libertàs,
que oferecia a todos a possibilidade de exercer sua virtus, ascender socialmente
por seus méritos e conquistar o prêmio de um renome imortal.
Salústio atribuía diretamente a força do regime republicano ao estímulo às
capacidades pessoais dos cidadãos através da promessa da glória. Esta, de fato,
simbolizava a expansão da virtus, como resultado imediato da derrocada da antiga
monarquia. Sob o regime republicano ela podia realizar-se livre e plenamente aos
olhos da coletividade, num contexto baseado na livre competição de valores no
qual todos deveriam dar mostras de suas mais nobres capacidades em benefício da
integridade da vida política e de suas instituições.
Desse modo, sublinhava, os homens de seu tempo deveriam buscar na
história dos tempos passados os verdadeiros exemplos de glória a fim de restituir
à república sua força original mediante o exercício de seus talentos singulares.
113
VAROTTI, C., op. cit., p. 220.
114
SALÚSTIO, Catilina, II, p. 56.
136
Com efeito, o desejo de ascensão, tal como concebido segundo os bons costumes
e valores da era gloriosa da república, se diferenciava profundamente da ambição
que marcara os tempos posteriores de L. Catilina e os do próprio Salústio,
identificada à avaritia, ou seja, à sede de primazia pelo acúmulo de riquezas, pelo
lucro e pela opulência. No auge da república romana, por sua vez, na era de Catão,
era pelo valor do ingenium que os homens procuravam distinguir-se e por isso sua
glória era expressão mais plena de sua virtude. Pela palavra latina ingenium
Salústio exprimiu a essência do que entendia como a verdadeira glória, que,
enquanto prêmio privilegiado dos talentos de cada homem, designava também a
realização plena de suas qualidades mais íntimas e interiores enquanto indivíduos.
Ele nos descreveu, assim, o imenso desenvolvimento da virtus nos inícios da
república, logo após a queda do velho regime monárquico em Roma, identificando
ingenium (essência do próprio caráter) à sua exteriorização em grandes feitos:
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A partir desse momento cada um procurou se fazer valer mais, dando mostras
de seu talento [ingenium]. Porque os reis suspeitavam muito mais dos bons do
que dos maus e o mérito alheio era coisa de que sempre duvidavam. E é difícil
acreditar com que rapidez a cidade se desenvolveu, uma vez em posse da
liberdade: tanto o amor da glória havia ganhado os corações (...).115
115
SALÚSTIO, op. cit., VII, p. 62.
116
Idem.
137
Será muito se daqui a cem anos ainda se lembrarem, grosso modo, que em
nosso tempo houve guerras civis na França (...) Pensamos nós por acaso, que a
cada arcabuzada que nos atinge e a cada risco que corremos haja um escrivão de
prontidão para registrá-lo? E ademais cem escrivães poderão descrevê-lo, cujos
comentários não durarão mais que três dias e não chegarão aos olhos de
ninguém. Não possuímos a milésima parte dos escritos antigos: é a fortuna que
lhes dá vida, ou mais curta, ou mais longa, segundo seu favor; (C) e o que deles
temos, nos é lícito conjecturar se não será o pior, não tendo visto o restante. (...)
(A) Mesmo aqueles que vemos agir bem, três meses ou três anos depois que
tombaram não se fala mais deles mais do que se nunca tivessem existido.117
Se no entanto essa falsa opinião serve ao público para manter os homens em seu
dever; (B) se por ela o povo é incitado à virtude; se os Príncipes sentem-se
tocados ao ver o mundo bendizer a memória de Trajano e abominar a de Nero;
117
“Ce sera beaucoup si, d`yci à cent ans, on se souvient em gros que, de nostre temps, il y a eu
des guerres civiles em France (...) Pensons nous qu`à chaque harquebousade qui nous touche, et à
chaque hazard que nous courons, il y ayt soudain un greffer, qui l`entrerolle? Et cent greffers,
outre cela, le pourront escrire, desquels les commentaries ne doureront que trois jours et ne
viendront à la veue de personne. Nous n´avons pas la millieme partie des escrits anciens: c`est la
fortune qui leur donne vie, ou plus courte ou plus longue, selon sa faveur; (C) et ce que nous en
avons, il nous est loisible de doubter si c´est le pire, n`ayant pas veu le demeurant. (...) (A) De
ceux mesmes que nous voyons bien faire, trois mois ou trois ans apres qu`ils y sont demeurez, il ne
s`en parle non plus que s`ils n`eussent jamais esté.” MONTAIGNE, II, 16, p. 628.
138
se os abala ver o nome desse grande facínora, outrora tão assustador e tão
temido, ser amaldiçoado e injuriado tão livremente pelo primeiro estudante que
o ataque, (A) então que ela cresça vigorosamente e que a alimentem entre nós o
máximo possível.118
(C) E Platão, empregando todas as coisas para tornar virtuosos seus cidadãos,
também os aconselha a não menosprezar o bom conceito e a estima dos povos; e
diz que, por uma divina inspiração, advém que mesmo os maldosos amiúde
sabem, tanto em palavras como em idéias, distinguir acertadamente os bons dos
maus. Esse personagem e seu pedagogo são obreiros admiráveis e vigorosos em
fazer os atos e as revelações divinas chegarem a realmente toda parte aonde
falta a força humana; ‘A exemplo dos poetas trágicos que recorrem a um deus
119
“J`estime qu`il ne tombe en l`imagination humaine aucune fantasie si forcené, qui ne rencontre
l`exemple de quelque usage publique, et par consequent que nostre discours n`estaie et ne fonde.”
MONTAIGNE, I, 23, p. 111.
120
“(...) ces considerations ne destourent pourtant pas un homme d`entendement de suivre le stile
commun; ains, au rebours, il me semble que toutes façons escartées et particulieres partent plustost
de folie ou d`affectation ambitieuse, que de vraye raison (...) Idem, p. 118.
140
quando não conseguem achar um desenlace para sua peça’ (...) (A) Posto que os
homens, por sua insuficiência, não conseguem pagar-se com uma moeda
verdadeira, que se continue a empregar a falsa. Esse expediente foi praticado
por todos os Legisladores e não existe sociedade em que não haja alguma
mescla ou de cerimônia vã ou de idéia mentirosa que sirva de rédea para manter
o povo no dever. É por isso que a maioria tem suas origens e inícios fabulosos e
enriquecidos de mistérios sobrenaturais.121
A glória, assim, conquanto estímulo da virtude, era tida como uma espécie
de tolice – “sottisse” -, tal como a que Numa Pompílio usara para aumentar a
fidelidade de seus homens, de que a ninfa Egéria lhe trazia por parte dos deuses
todas as decisões que tomava. Montaigne reconhecia farsas semelhantes entre
persas, egípcios, judeus e árabes, comprovando a rara sabedoria de seus homens
de Estado, com que garantiam a solidez de sua autoridade e a manutenção da
ordem política122.
Com efeito, após mostrar essa sua utilidade efetiva e a necessidade de seu
culto para manter os homens em “leur devoir”, ele concluiu o ensaio com outro
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121
“(C) Et Platon, employant toutes choses à rendre ses citoyens vertueus, leur conseille aussi de
ne mespriser la bonne reputation et estimation des peuples; et dict que, par quelque divine
inspiration, il advient que les meschans mesmes sçavent souvent, tant de parole que d`opinion,
justement distinguer les bons des mauvais. Ce personnage et son pedagogue sont merveilleux et
hardis ouvriers à faire joindre les operations et revelations divines tout par tout où faut l`humaine
force; ‘A l`exemple des poètes tragiques qui ont recours à un dieu quand ils ne savent dénouer leur
pièce.’ (...) (A) Puis que les hommes, par leur insuffisance, ne se peuvent assez payer d`une bonne
monnoye, qu`on y employe encore la fauce. Ce moyen a esté pratiqué par tous les Legislateurs, et
n`est police où il n`y ait quelque meslange ou de vanité ceremonieuse ou d`opinion mensongere,
qui serve de bride à tenir le peuple en office. C`est pour cela que la pluspart ont leurs origines et
commencements fabuleux et enrichis de mysteres supernaturels.” MONTAIGNE, II, 16, p. 629.
122
Idem.
123
“(C) Toute personne d`honneur choisit de perdre plustot son honneur, que de perdre sa
conscience.” Idem, p. 630.
141
enriquecia de novas nuances, por outro lado. Estas de fato, faziam-se bastante
significativas no que dizia respeito ao modo como a crítica da glória fizera
ressaltar por contraste ao longo do texto, as motivações diferenciadas da escolha
de Montaigne pelo retiro filosófico, enfatizando a ausência de vaidade e orgulho
em seu intento de retratar-se.
A peroração de Da glória é bastante representativa das transformações que
o discurso de Montaigne operava, em geral, sobre os procedimentos tradicionais
da retórica. Ao invés de adequar-se aos preceitos clássicos125 que atribuíam às
perorações a função de resumir e recapitular o sentido do discurso, ela
desestabilizava de maneira irônica o campo semântico dominante do ensaio ao
afirmar, enfim, o valor moral da glória.126 Operava menos, portanto, como uma
124
Ver sobre isso item 4.3.
125
Segundo o autor anônimo da Retórica a Herênio, as perorações poderiam tomar três formas
diferentes: a enumeração, a amplificação e a comiseração. Na enumeração: “(...) reunimos e
fazemos lembrar as coisas de que falamos, com concisão, de modo que o discurso seja
rememorado, não refeito.” A amplificação e a comiseração, por sua vez, deveriam ser usada para
instigar ou mover à misericórdia o auditório por meio dos lugares comuns a fim de reforçar a força
persuasiva da causa sustentada pelo discurso. Retórica a Herênio, II, 47.
126
Marcel Tetel define essa espécie de peroração como a mais recorrente nos Ensaios, ela aparece
por exemplo, no capítulo Dos canibais (I, 31) e em Da semelhança dos pais com os filhos (II, 37).
Mas o autor a situa como uma das quatro entre as que Montaigne emprega em geral ao longo dos
vários capítulos de sua obra: além dessa peroração que privilegia as ambigüidades e a
multiplicação dos significados do texto, há também a forma usual e ciceroniana, que ele
reconhece, por exemplo no capítulo Da moderação (I, 20). Além desta, há uma terceira categoria,
que sugere ao fim, um outro sentido, totalmente oposto ao discurso do ensaio, conviodando o leitor
142
à reflexão. Um exemplo dessa terceira espécie de peroração se encontra no capítulo Do dormir (I,
44). A quarta forma arrolada pelo autor é da peroração por um texto autoreferncial em que o autor
dos Ensaios se olha a si mesmo e descreve seu processo comprovando a consubstancialidade
essencial entre seu discurso e seu objeto. TETEL, M., “Les fins d`essais”, In: Rhétorique de
Montaigne, p. 194.
143
Há uma outra sorte de glória que é uma opinião excessivamente boa que
concebemos de nosso valor. É uma afeição irrefletida, pela qual nos
encarecemos, que nos representa a nós mesmos diferentes do que somos, assim
como a paixão amorosa empresta belezas e graças ao indivíduo que ela abraça e
faz aqueles de quem se apossa considerarem com o julgamento turvo e alterado,
que o que amam é diferente e mais perfeito do que é.1
houvesse admitido a utilidade moral da glória, sua sentença final como acabamos
de ver, reafirmava sua crítica, reforçando o sentido geral do texto e, portanto,
reforçando também o princípio do autoretrato, da escolha pela fidelidade a si
como sendo a verdadeira e mais autêntica conduta honrada, consolidada mediante
o desdém pelas exigências do mundo e pelo valor de seu reconhecimento: “(C)
Toute personne d`honneur choisit de perdre plustot son honneur, que de perdre sa
conscience.” Em seguida a essa sentença, entretanto, as considerações feitas na
peroração de Da glória não deixaram de imprimir suas ressonâncias sobre a
reflexão de Montaigne, como podemos ver nessa passagem de abertura de Da
presunção. De maneira significativa ele definiu então este vício que dava nome ao
ensaio como “une autre sorte de gloire”, decorrente não da admiração pública mas
sim dos excessos do amor próprio, tida como “une trop bonne opinion que nous
concevons de nostre valeur”. Com efeito, essa primeira consideração seguida
imediatamente daquela que encerrava Da glória, parecia sugerir a necessidade de
voltar o ensaio de seu jugement para a indagação acerca da natureza de suas
1
“Il y a une autre sorte de gloire, qui est une trop bonne opinion que nous concevons de nostre
valeur. C`est une affection inconsiderée, dequoy nous nous cherissons, qui nous represente à nous
mesmes autres que nous ne sommes: comme la passion amoureuse preste des beutez et des graces
au subject qu`elle embrasse, et fait que ceux qui en sont espris, trouvent, d`un jugement trouble et
alteré, ce qu`ils ayment, autre et plus parfaict qu`il n`est.” MONTAIGNE, II, 17, p. 631.
145
2
O tema do eu como objeto de escrita em Da presunção, se dava da mesma maneira como todos
os mais diversos temas ao longo de todo o livro, em que Montaigne procurava conhecer-se
exercitando e avaliando suas próprias faculdades. TOURNON, A., op. cit., p. 185.
3
CARDOSO, S., op. cit., p. 52.
146
isso era necessário discerni-la e evitá-la ao voltar-se para si, para não perder-se a
si mesmo tal como os ambiciosos.
Da presunção, portanto, teve justamente como tema o esforço do autor
para comprovar a franqueza de sua escrita. Montaigne reforçou aí o antagonismo
profundo de tal vício em relação aos seus propósitos, pautados no funcionamento
correto do juízo, que excluía esse excesso de destacar-se como outro e mais
perfeito do que era. Embora o ensaio fosse impulsionado pelo reconhecimento de
que o ato de voltar totalmente para si o exercício de suas faculdades poderia ser
facilmente contaminado por tais excessos, ele fez questão de diferenciar esse
reconhecimento dos preconceitos da tradição, segundo o qual, a prática de
escrever sobre si mesmo era quase invariavelmente sinal de vaidade e deveria ser
evitada para não provocar o desagrado dos leitores.
Procurou defender então a dignidade do programa de seus Ensaios, de
conhecer-se através da escrita, atentando para o fato de que a proibição ao falar de
si equivalia a restringir a liberdade do próprio jugement em matéria das mais
importantes, que mais exigia seu livre exercício, ou seja, a dimensão da própria
personalidade e de seus caracteres. Apesar dos riscos do orgulho e da vaidade,
4
Sobre isso retornar ao capítulo 3 deste trabalho e especialmente ao item 3.3.
5
MONTAIGNE, II, 16, p. 624.
147
6
É interessante nos reportarmos ao conteúdo do capítulo Da educação das crianças (I, 26) para
que tenhamos uma idéia mais clara do alto significado moral que Montaigne conferia à liberdade
de exercício do juízo, tido como essencial para a boa formação do caráter. Em Da educação das
crianças ele discorreu sobre qual seria a essência de uma pedagogia ideal e sobre a tarefa do
preceptor, opondo-se à noção humanista da pedagogia perfeita, conforme estabelecida pelos
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italianos, cuja principal função era fazer do aluno um erudito, versado nas artes e ciências da
Antigüidade. Montaigne exigia menos ciência de seu preceptor do que sobriedade de costumes e
de discernimento, pois estas o habilitavam a cumprir aquela que, segundo sua perspectiva, deveria
ser sua tarefa principal, ou seja, de estimular os alunos a “se enriquecer e adornar-se
interiormente” com as letras - “s`en enrichir et parer au dedans” – e não de ensiná-los a ostentar
um saber livresco para conquistar as vantagens externas que poderiam advir de uma boa educação.
Assim, para bem orientar seu discípulo, sublinhava o autor dos Ensaios, era preciso não que o
preceptor despejasse em seus ouvidos um punhado de frases e sentenças dos grandes oradores
antigos para que ele decorasse a etimologia das virtudes: “como oráculos em que as letras e as
sílabas participam da substância da coisa.” Era preciso que abrisse caminho para que o aluno
pudesse experimentar, discernir e escolher as coisas por si mesmo - “choisir, gouster les choses,
les discerner” - e lhe pedisse contas não apenas das palavras de sua lição mas sim de seu sentido e
substância interiorizados mediante esse exercício prático do próprio juízo. Nos termos tradicionais
da retórica, essa valorização do juízo implicava num ensino baseado na primazia de res – matéria e
conteúdo do discurso – para a boa formação do espírito, em detrimento de verba – da beleza do
estilo, que, segundo a ênfase que lhe votavam muitos dos autores humanistas, implicava na
exteriorização da própria inteligência e virtude, traduzidos na imitação das belas obras da
Antigüidade. Em suma, da perspectiva dessa nova maneira pedagógica delineada em Da educação
das crianças - que remontava e sintentizava as proposições erasmianas sobre a boa educação
baseada na leitura dos antigos - o cumprimento bem sucedido da tarefa do preceptor se traduzia
num aluno que não se limitasse a repetir e alojar em sua mente tudo aquilo que lhe dissessem, por
simples autoridade e confiança, mas que fosse capaz de dispor de si mesmo, passando todas as
informações recebidas pelo próprio crivo em benefício de sua autonomia e liberdade; movimento
cujo sentido Montaigne ilustrou bem através da metáfora das funções da digestão: “É prova de
crueza e de indigestão regurgitar o alimento como foi engolido. O estômago não realizou sua
operação se não fez mudar a característica e a forma do que lhe deram para digerir.” Esta idéia,
que era a base de sua proposta de uma pedagogia ideal, também era o princípio que definia seu
método de autoconhecimento nos Ensaios, no modo como fazia passar pelo próprio juízo e
conferia-lhe forma concreta através das transformações que operava sobre o conteúdo dos muitos
empréstimos das obras antigas e modernas. Em Da presunção, reivindicando o direito de
representar-se em sua verdade, Montaigne voltou a celebrar a autonomia de seu jugement
denunciando a ignorância e vaidade daqueles que concebiam a si mesmos não segundo sua própria
razão mas sim segundo as opiniões e convenções externas do mundo. Idem, I, 26, p. 151.
148
Tenho em geral isto: que de todas as opiniões que a Antigüidade teve sobre o
homem em geral, as que adoto de melhor grado e às que mais me atenho, são as
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7
“J`ay en general cecy, que de toutes les opinions que l`ancienneté a eües de l`homme em gros,
celles que j`embrasse plus volontiers et ausquelles je m`attache le plus, ce sont celles que nous
mesprisent, avillisent et aneantissent le plus. La philosophie ne me semble jamais avoir si beu jeu
que quand elle combat nostre presomption et vanité, quand elle reconnoit de bonne foy son
irresolution, sa foiblesse et son ignorance.” Idem, II, 17, p. 634.
8
“Il me semble que la mere nourisse des plus fauces opinions et publiques et particulieres, c`est la
trop bonne opinion que l`homme a de soy.” Idem.
149
Não desejo que, temendo errar por este lado, um homem se desconheça por isso,
nem que pense ser menos do que é. O julgamento deve em toda parte manter
seu direito, e é justo que ele veja nesta parte como alhures o que a verdade lhe
apresenta. Se for César, que se considere sem hesitar o maior comandante do
mundo.10
9
“Ces gens qui se perchent à chevauchons sur l`epycicle de Mercure, (C) qui voyent si avant dans
le ciel (A), ils m`arrachent les dens: car en l`estude que je fay, duquel le subject c`est l`homme,
trouvant une si extreme varieté de jugements, un si profonde labyrinthe de difficultez les unes sur
les autres, tant de diversité et incertitude en l`eschole mesme de la sapience, vous pouvez penser,
puis que ces gens là n`ont peu se resoudre de la connoissance d`eux mesme et de leur propre
condition, qui est continuellement presente à leurs yeux, qui est dans eux; puis qu`ils ne sçavent
comment branle, ny comment nous peindre et deschiffrer les ressorts qu`ils tiennent et manient eux
mesmes, comment je les croirois de la cause du flux et reflux de la riviere du Nile?”Idem.
10
“Je ne veux pas que, de peur faillir de ce costé là, un homme se mesconnoisse pourtant, ny qu`il
pense estre moins que ce q`il est. Le jugement doit tout par tout mantenir son droit: c`est raison
qu`il voye en ce subject, comme ailleurs, ce que la verité luy presente. Si c`est Caesar, qu`il se
treuve hardiment le plus grand Capitaine du monde.” Idem, p. 632.
11
“(C) On peut estre humble de gloire.” Idem, p. 633.
150
tradição que proibia o discurso em primeira pessoa para prevenir o atentado contra
o decoro e a ofensa à opinião dos homens.12 Era em defesa de seus desígnios que
Montaigne invertia os termos dessa equação, denunciando a presunção nas
condutas plenamente obedientes às cerimônias e conveniências sancionadas pelos
costumes.
Essa idéia foi muito bem ilustrada também na parte final do ensaio Do
exercício, que dedicou à defesa do valor moral de seu projeto. Ele excluía ambos
os excessos, tanto da autoestima quanto da autodepreciação em nome do
autoconhecimento:
12
Sobre esse assunto ver item 4.1.
13
“Si je me semblois bon et sage ou près de là, je l`entonneroy à pleine teste. De dire moins de soy
qu`il n`y en a, c`est sotisse, non modestie. Se payer de moins qu`on ne vaut, c`est lascheté et
pusillanimité, selon Aristote. Nulle vertu ne s`ayde de la fausseté; et la verité n`est jamais matiere
d`erreur. De dire de soy plus qu`il n`en y a, ce n`est pas tousjours presomption, c`est encore
souvent sottise. Se complaire outre mesure de ce qu`on est, en tomber en amour de soy indiscrete,
est, à mon advis, la substance de ce vice. Le supreme remede à le guarir, c`est faire le rebours de
ce que icy ordonnent, qui, en défendant le parler de soy, défendant par consequent encore plus de
penser à soy.” Idem, II, 6, p. 379.
14
No ensaio Dos livros Montaigne encontrou outra ocasião de manifestar a admiração que
cultivava pelo grande general romano. Nesta passagem lamentava vivamente o fato de que ele
tivesse falado tão pouco de si: “Mas, César singularmente me parece merecer que o estudemos,
não apenas para a ciência da história mas por ele mesmo, tanto tem de perfeição e excelência
151
acima de todos os outros (...) penso que somente nisto se possa encontrar o que criticar: que foi
avaro demais ao falar de si mesmo. Pois tantas grandes coisas não podem ter sido executadas por
ele sem que nelas tenha havido muito mais de seu do que diz” Idem, II, 10, p. 416.
15
PLUTARCO. “Comment se louer soi-même sans exciter l`envie.” Oeuvres Morales. Tome VII,
Deuxième partie, 542 a – 542d.
16
CASTIGLIONE, B., op. cit., XVII, L. I.
152
Aqueles que a fortuna (quer devamos chamá-la boa ou má) fez passar a vida em
uma posição eminente podem por seus atos públicos atestarem quem são. Mas
os que ela só utilizou em massa e de quem ninguém falará se eles mesmos não
falarem, são perdoáveis se tiverem a ousadia de falar de si mesmos para os que
têm interesse em conhecê-los (...)18
presunção de considerar-se mais perfeito. Seu estilo franco e desenvolto, tal como
do grande poeta latino, não exprimia presunção, mas sim os verdadeiros
sentimentos da alma da maneira mais franca possível, representados como em um
“tableau votif”:
(...) a exemplo de Lucílio: ‘Aquele confiava aos seus escritos, como a amigos
fiéis todos os seus segredos; estivesse infeliz ou venturoso jamais teve outro
confidente. Por isso neles se vê retratada toda sua vida de homem maduro,
como em um quadro votivo’ Aquele confiava ao papel suas ações e
pensamentos e retratava-se tal como se sentia ser.19
20
“Voylà comment tous ces jugements qui se font des apparences externes, sont merveilleusement
incertains et douteux; et n`est aucun si asseuré tesmoing comme chacun à soy mesme.” Idem, II,
16, p. 626.
21
“Il me souvient donc que, des ma plus tendre enfance, on remarquera en moy quel port de corps
et des gestes tesmoignants quelque vaine et sotte fierté. J`en veux dire premierement cecy, qu`il
n`est inconvenient d`avoir des conditions et des propensions si propres et si incorporées en nous,
que nous n`ayons pas moyen de les sentir et reconnoistre. Et de telles inclinations naturelles, le
corps en retient volontiers quelque pli sans nostre sçeu et consentement. C`estoit une certaine
affetterie consente de sa beauté, que faisoit un peu pancher le teste d`Alexandre sur un costé et qui
rendoit le parler d`Alcibiades mol et gras. Julius Caesar se gratoit la teste d`un doigt, qui est la
contenance d`un homme remply de pensemens penibles; et Ciceron, ce me semble, avoit
accoustumé de rincer le nez, qui signifie un naturel moqueur. Tels mouvements peuvent arriver
imperceptiblement en nous.” Idem, II, 17, p. 632.
155
22
Com efeito, especialmente com o Plutarco das Vidas Paralelas, o autor dos Ensaios aprendeu a
conhecer os caracteres individuais dos homens através da observação minuciosa de seus costumes,
ditos e feitos privados e fortuitos, que eram sinais espontâneos de seu estado de alma. Através da
leitura de Plutarco ele aprendeu a transpor os séculos e a estabelecer um convívio mais humano
com os grandes personagens e heróis da Antigüidade. Plutarco não punha no centro de sua obra
seus grandes atos apenas, pelos quais estes homens quiseram fazer-se imortalizar, mas sim, suas
intenções e inclinações pessoais, apreendidas pela atenção aos detalhes de sua conduta privada e
cotidiana a fim de apreender-lhes os caracteres. Esse método de escrita coincidia com o gosto de
Montaigne, que no ensaio, Dos livros, afirmara não ter outro interesse na leitura das obras da
Antigüidade que não fosse o conhecimento dos humores privados de seus autores e personagens e
admirar de perto e como que em vida personalidades tão célebres. Deplorava o fato de que quase
sempre tais detalhes eram negligenciados pelos historiadores, em nome do registro de grandes
eventos: “Eu antes escolheria saber com exatidão as conversas que ele manteve em sua tenda com
algum de seus amigos pessoais, na véspera de uma batalha, em vez das palavras que no dia
seguinte disse ao seu exército; e o que ele fazia em seu gabinete e em seu quarto, em vez do que
fazia no meio da praça e no senado.” Idem, II, 10, p. 415.
156
Não sei se aqueles gestos que observavam em mim eram dessa primeira
natureza e se na verdade eu tinha uma propensão oculta para esse vício, como
pode bem ser, e não posso responder pelos movimentos do corpo; mas quanto
aos movimentos da alma, quero confessar aqui o que sinto.23
Montaigne procurava incitar seu leitor a também praticar o que entendia como a
boa filosofia, fundada na experiência da epoché pirrônica quanto ao conhecimento
da verdade que operava no sentido de ativar as próprias faculdades intelectuais de
maneira integral. Isentos da precipitação típica daqueles que tanto se orgulhavam
dos poderes de sua razão, seus leitores deveriam examinar com atenção os
pensamentos, juízos e impressões diversos enunciados por Montaigne a fim de
bem avaliar a natureza de suas inclinações.
De resto, como já observou Jean Starobinski25, ele exibia-se para ser visto.
É claro que nunca lhe escapara a estreita conexão que havia entre seu método de
23
“Je ne sçay si ces gestes qu`on remerquoit en moy, estoient de cette premiere condition, et si à la
verité j`avoy quelque occulte propension à ce vice, comme il peut bien estre, et ne puis pas
respondre des bransles du corps; mais, quant aux bransles de l`ame, je veux icy confesser ce que
j`en sens.” Idem, II, 17, p. 633.
24
TOURNON, A., op. cit., p. 168.
25
Sobre esse tema da dialética própria ao discurso do autoretrato nos Ensaios, do movimento
simultâneo do desdém pela aprovação do leitor e da necessidade de seu testemunho, nos diz Jean
Starobinski: “No caso, o valor que o eu se atribui é muito ambíguo: de um lado, explicitamente,
afirma sua importância privilegiada, sua independência; de outro lado (implicitamente), imputa a
si mesmo uma insuficiência radical, que o obriga a buscar no exterior a confirmação de sua
singularidade e o reforço indispensável à sua figura, por demais precária. Singular autarcia que não
pode prescindir de recorrer à exibição! O erro dos outros ou sua indiferença colocariam em perigo
a imagem a que Montaigne confia sua cartada máxima: o contorno se tornaria indistinto, as cores
empalideceriam, os traços individuais se tornariam irreconhecíveis. Para evitar esse prejuízo que o
atingiria em sua existência segunda Montaigne toma o partido de se ‘descobrir’ até em suas
‘cicatrizes’ e em suas deformidades.” STAROBINSKI, J., Montaigne em Movimento, p. 138.
157
linear que persuadisse plenamente seus leitores de que não era presunçoso e que o
elevasse a ele e à sua empresa de conhecer-se a exemplo perfeição moral.
Recusando-se a isso, Montaigne solicitava a aprovação de seu leitor não por
docilidade e em virtude da admiração de uma sabedoria afetada e ambiciosa de
louvores, mas sim a partir de um exercício crítico e livre da razão, para
desembaraçar da miscelânea desordenada de seus enunciados o seu significado.
Nesse processo, com efeito, ensaísta e leitor tornavam-se parceiros, no âmbito de
uma composição assaz enigmática para requerer sua participação ativa.
26
NAKAM, G., Montaigne la Manière et la Matière, p. 184.
158
valor as coisas que possuo, porque as possuo; e aumento o valor das coisas na
medida em que são alheias, ausentes e não minhas.”28 Com isso, impôs também
ao leitor que invertesse o modo de avaliação acerca de seu estilo pessoal
diferenciando-o do estilo de outros autores, que se vangloriavam de suas
capacidades e de seus feitos.
Reafirmava assim aquela que era sua motivação, isto é, da experiência
inaugural de um vazio interior, de uma profunda ignorância quanto à sua própria
natureza e quanto à extensão de suas capacidades:
Admiro a segurança e a expectativa que todos têm de si, sendo que não há
praticamente nada que eu saiba que sei, nem que ouse garantir que posso fazer.
Não tenho meus recursos à disposição e arrolados e só fico sabendo deles após o
resultado, tão em dúvida sobre mim quanto sobre qualquer outra coisa. Disso
advém que, se executo com sucesso um trabalho atribuo-o antes à minha sorte
que à minha força, pois planejo todos eles ao acaso e com inquietação.29
27
“Il y a deux parties en cette gloire: sçavoir est, de s`estimer trop, et n`estimer pas assez autruy.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 632.
28
“Ce que je diminue du juste prix les choses que je possede, de ce que je les possede; et hausse
les prix aux choses, d`autant qu`elles sont estrangieres, absentes et non miennes.” Idem, p. 633.
29
“J`admire l`asseurance et promesse que chacun a de soy, là où il n`est quasi rien que je sçache
sçavoir, ny que j`ose me respondre pouvoir faire. Je n`ay point mes moyens en proposition et par
estat; et n`en suis instruit qu`apres l`effect: autant doubteux de moy que de toute autre chose. D`où
il advient, si je rencontre louablement en une besongne, que je le donne plus à ma fortune qu`à ma
force: d`autant que je les desseigne toutes au hazard et en crainte.” Idem, II, 17, p. 634.
159
Pois na verdade, quanto às obras do espírito, sob qualquer forma que seja, nunca
saiu de mim algo que me satisfizesse plenamente; e a aprovação dos outros não
me recompensa. Tenho o gosto sensível e difícil, e principalmente com relação
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30
“Car à la verité, quand aux effects de l`esprit, en quelque façon que ce soit, il n`est jamais party
de moy chose qui me remplist; et l`approbation d`autruy ne me paye pas. J`ay le goust tendre et
difficile, et notamment en mon endroit: je me (C) desadvoue sans cesse; et me (A) sens par tout
flotter et fleschir de foiblesse. Je n`ay rien de mien dequoy satisfaire mon jugement.” Idem, p. 635.
160
31
A Carta a Posteridade pertence ao gênero clássico da biografia dos autores, desenvolvida na
Antigüidade grega e romana. Foram os filólogos de Alexandria que iniciaram o hábito de prover
suas edições dos clássicos gregos, como de Sófocles e Eurípedes, com curtas narrativas de suas
vidas e com uma lista de suas obras. Esse costume foi transmitido aos gramáticos e filólogos
romanos especialmente através de Suetônio, conhecido por suas biografias dos Césares e dos
grandes poetas romanos como Virgílio, Terêncio e Horácio. Pretendendo adicionar sua biografia
em seu epistolário como uma introdução, tal como os autores da Antigüidade, Petrarca desejou
afirmar-se como um novo Virgílio – melhor poeta – e como um novo Cícero – melhor autor em
prosa – em seu próprio tempo, porém, não tendo à mão uma biografia sua com que pudesse
identificar-se do modo como pretendia, decidiu ele mesmo fabricar uma. A Carta à Posteridade
tornou-se imensamente influente ao longo dos séculos XV e XVI, informando as biografias e
autobiografias humanistas. Entre alguns de seus exemplos, estão o Imagines et elogia virorum de
Fulvio Orsini; a outra Carta à Posteridade escrita por Helius Eobanus Hessus e a Elogia virorum
bellica virtute de Paolo Giovio. Todas estas obras obedeciam à estrutura afirmada pela Carta de
Petrarca adequando-se ao seu modelo para criar um ethos de modéstia, partindo do retrato moral
da própria personalidade. ENENKEL, K, “Modelling the humanist: Petrarch`s Letter to posterity
and Boccaccio`s biography of the poet laureate” In: Modelling the individual, p. 37.
32
PETRARCA, Carta a Posteridade, 1, In: Modelling the individual, p. 257.
161
tomando sua forma como um espelho a fim de prover-se, através dele, de uma
consistência que faltava ao sentimento que tinha de si próprio:
Pintando-me para outrem, pintei em mim cores mais nítidas do que eram as
minhas primeiras. Não fiz meu livro mais do que meu livro me fez, livro
consubstancial a seu autor, com uma ocupação própria, parte de minha vida; não
como uma ocupação e uma finalidade terceiras e alheias, como todos os outros
livros.38
38
“Me peignant pour autruy, je me suis peint en moy de couleurs plus nettes que n`estoyent les
miennes premieres. Je n`ay pas plus faict mon livre que mon livre m`a faict, livre consubstantiel à
son autheur, d`une occupation propre, membre de ma vie; non d`une occupation et fin tierce et
estrangere comme toutes les autres livres.” MONTAIGNE, II, 18, p. 665.
39
“A operação do livro não expõe ou reflete os traços da constituição prévia de um sujeito mas,
sendo a condição desta constituição, ela própria os prtoduz.. Assim, ao operar o movimento de
autoconstituição de seu autor o livro ocupa, então, ele mesmo, o lugar de ‘condição’ e ‘suporte’
pelo qual se define e assinala a existência de um ‘sujeito’; realiza ele mesmo a figura do sujeito.”
CARDOSO, S., op. cit., p. 63.
164
(A) uma forma melhor do que a que pus em prática, mas não consigo captá-la e
explorá-la. E mesmo essa idéia é apenas de nível mediano.”40
Evitando ao máximo a afetação e os adornos retóricos, o autor dos Ensaios
tinha um objetivo preciso. Procurava fazer com que sua matéria se destacasse por
suas próprias qualidades e por sua autenticidade, sem depender da casca externa
das aparências que tinha a função de torná-la mais bela e sublime para deslumbrar
os sentidos de seus leitores: “Tudo é grosseiro em mim; há falta de elegância e de
beleza. Não sei valorizar as coisas, em sua maioria, mais do que valem; minha
maneira de ser em nada ajuda a matéria. Eis por que preciso dela forte, que tenha
muita consistência e que brilhe por si mesma.”41
Com efeito, em sua condição de escritor e homem de letras, se apresentava
como o oposto do homem de eloqüência, ideal persseguido com tanta avidez pelos
autores de seu tempo. Conforme enaltecidos no De Oratore, de Cícero, o mérito e
a sabedoria própria do orador estavam em sua habilidade de regrar a elocução e
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Não sei nem agradar nem alegrar nem excitar: a melhor história do mundo seca
e se embaça em minhas mãos. Só sei falar com boa fé e sou totalmente
desprovido dessa facilidade, que vejo em vários companheiros meus, de entreter
o primeiro que chegar e manter em suspenso toda uma tropa, ou distrair um
príncipe sem cansar-lhe os ouvidos, com todo tipo de assuntos, nunca lhes
faltando matéria, devido à graça que possuem de saber empregar a primeira que
surge e adaptá-la ao humor e ao alcance daqueles com quem estão tratando.43
40
“J`ay tousjours une idée en l`ame (C) et certaine image trouble (A) qui me presente (C) comme
en songe (A) une meilleure forme que celle que j`ay mis en besongne, mais ne la puis saisir et
exploiter. Et cette idée mesme n`est que du moyen estage.” Idem, II, 17, p. 637.
41
“Tout est grossier chez moy; il y a faute de gentillesse et de beauté. Je ne sçay faire valoir les
choses pour le plus que ce qu`elles valent, ma façon n`ayde rien à la matiere. Voilà pourquoy il me
faut forte, qui aye beaucoup de prise et qui luise d`elle mesme.” Idem, p. 637.
42
CÍCERO, De Oratore, III, 13, 53.
43
“Je ne sçay ny plaire, ny rejouyr, ny chatouiller: le meilleur conte du monde se seche entre mes
mains et se ternit. Je ne sçay parler qu`en bon escient, et suis du tout denué de cette facilité, que je
165
sua matéria e não adular e mover seus sentidos pela volúpia de uma forma
sublime, calculada segundo as regras da arte. No âmbito de seus desígnios
próprios, os artifícios da retórica, destinados a valorizar as coisas, eram tidos,
paradoxalmente, como elementos que restringiam a comunicação, sendo a
concisão a qualidade primordial de uma linguagem natural, oposta aos longos
períodos oratórios. Mas as palavras em seu estilo, não eram mais que índices
aproximativos das coisas – res – isto é, da amplitude de suas idéias e
pensamentos, que requeriam de seu leitor uma leitura que não parasse nos
enunciados mas que desse a pensar, enriquecendo o texto de significados
imprevistos46.
voy en plusieurs de mes compagnons, d`entretenir les premiers venus et tenir en haleine toute une
trouppe, ou amuser, sans se lasser l`oreille d`un prince de toute sorte de propos, la matiere ne leur
faillant jamais, pour cette grace qu`ils ont de sçavoir employer la premiere venue, et l`accommoder
à l`humeur et portée de ceux à qui ils ont affaire.” MONTAIGNE, II, 17, p. 637.
44
“Il y a bien au dessus de nous que je trouve singulierment beau, sec, bref, signifiant, et à la
verité un langage masle et militaire plus qu`autre que j`entende (...)” Idem, p. 639.
45
GARAVINI, F., Itinneraires à Montaigne, p. 32.
46
TOURNON, A, op. cit., p. 189.
166
Após discorrer desse modo sobre seu discurso e a forma de seu estilo,
Montaigne passou ao exame de suas condições e aptidões corporais atentando em
primeiro lugar para a importância da beleza na conquista da benevolência pública
e para sua condição de motivo mais natural e instintivo de orgulho nas relações
entre os homens: “A beleza é moeda de grande prestígio no comércio com os
homens; é o primeiro meio de conciliação de uns com os outros, e não há homem
tão bárbaro e tão rabugento que não se sinta de certa forma tocado por sua
doçura.”47 Entretanto, frisava, não pretendia descrever sua aparência física para
vangloriar-se mas sim para cumprir plenamente seu intento de pintar uma imagem
verdadeira de si próprio, que jamais estaria suficientemente completa apenas com
o registro das “fantasies” da alma:
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O corpo tem uma grande parte em nosso ser, ocupa nele uma posição
importante; assim, sua estrutura e compleição são de muito justa consideração.
Os que querem desunir nossas duas peças principais e afastá-las uma da outra
estão errados. Ao contrário é preciso reacoplá-las e reuni-las.48
47
“La beauté est une piece de grande recommendation au commerce des hommes; c`est le premier
moyen de conciliation des uns aux autres, et n`est homme si barbare et si rechingé qui ne se sente
aucunement frapé de sa douceur.” MONTAIGNE, II, 17, p. 639.
48
“Le corps a une grand` part à nostre estre, il y a tient un grand rang; ainsi sa structure et
composition sont de bien juste consideration. Ceux qui veulent despendre nos deux pieces
principales et les sequestrer l`une de l`autre, ils ont tort. Au rebours, il les faut r`accoupler et
rejoindre.” Idem, II, 17, p. 639.
49
Sobre esse tema ver especialmente o capítulo 37 do segundo volume dos Ensaios, Da
semelhança dos pais com os filhos.
167
50
“(C) La secte Peripatetique, de toutes les sectes la plus civilisée, attribue à la sagesse ce seul
soin de pourvoir et procurer en commun le bien de ces deux parties associés (...)” MONTAIGNE,
II, 17, p. 639.
51
Sobre isso ver a análise de Starobinski do capítulo Da experiência, o último do terceiro volume
dos Ensaios. STAROBINSKI, J., op. cit., p. 153.
52
“Or je suis d`une taille un peu au dessoubs de la moyenne. Ce defaut n`a pas seulement de la
laideur, mais encore de l`incommodité, à ceux mesmement qui ont des commandements et des
charges: car l`authorité que donne une belle presence et majesté corporelle en est à dire.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 640.
53
“É muito irritante dirigirem-se a vós no meio de vossa gente para perguntar-vos: ‘Onde está
vosso senhor?” e receberdes apenas o resto da barretada que fazem a vosso barbeiro ou a vosso
secretário.” Idem.
168
54
Segundo a teoria médica de Galeno, todo ser humano compunha-se de uma mistura específica e
proporcionada de quatro fluidos que definiam seu temperamentum singular: eram estes definidos
como bile vermelha, fleumática, amarela e negra, cujo excesso determinava respectivamente os
caracteres, sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico.
55
Esse aspecto da pintura de si nos Ensaios, foi ao longo dos séculos, o que mais surpreendeu seus
leitores, suscitando ora sua irritação, ora seu entretenimento. A atenção aos aspectos físicos como
determinantes na afirmação do próprio caráter era algo condenado pela sociedade cristã da época
da Idade Média e desses primeiros tempos da modernidade. Os grandes Padres da Igreja,
Ambrósio, Jerônimo e Agostinho se empenharam no reforço à condenação cristã do prazer
corporal no interior do pensamento cristão. As sensações do corpo segundo essa tradição,
deveriam ser controladas e reprimidas pelos indivíduos a fim de que pudessem alcançar a salvação
divina na vida eterna. VAN GALEN, Anne, C. E., “Body and self image in the autobiography of
Gerolamo Cardano” In: Modelling Individual, p. 134.
56
“J`ay demeurant la taille forte et ramassé; le visage, non pas gras, mais plein; la complexion, (B)
entre le jovial et le melancolique, moiennement (A) sanguine et chaude, ‘Aussi ai-je les jambes et
la poitrine herissés de poils’ (...).” Idem, p. 641.
57
“A la danse, à la paume, à la suite, je n`y ay peu acquerir qu`une fort legere et vulgaire
suffisance; à nager, à escrimer, à voltiger et à sauter, nulle du tout. Les mains, je les ay si gourdes
que je ne sçay pas escrire seulement pour moy: de façon que, ce que j`ay barbouillé, j`ayme mieux
le refaire que de me donner la peine de le démesler; (C) et ne ly guere mieux. Je me sens poiser
aux escoutans. Autrement, bon clerc. (A) Je ne sçay pas clorre à droit une lettre, ny ne sçeuz
jamais tailler plume, ny trancher à table, qui vaille. (C) ny equipper un cheval de son harnois, ny
porter à poinct un oiseau et le lascher, ny parler aux chiens, aux aiseaux, aux chevaux.” Idem, p.
642.
169
nação. Afirmava-se assim, como uma imagem exemplar do homem a ser seguida,
em plena posse de suas potencialidades, conformada ao ideal humanista da
dignidade humana: “E, como se lê a propósito de Alcebíades, que superou todas
as nações junto às quais viveu, e cada uma naquilo que lhe era mais específico,
assim esse nosso deve superar os demais e cada um naquilo que mais o ocupa.”58
A conduta de Montaigne, indigna até mesmo dos afazeres mais simples da
vida de um nobre - “Je ne sçay pas clorre à droit une lettre, ny ne sçeuz jamais
tailler plume, ny trancher à table, qui vaille.”- se opunha mais profundamente a
esse ideal de vida, sobretudo no modo como a valorização de suas capacidades e a
constituição de seu comportamento se baseavam na aprovação externa do mundo.
Com efeito, após louvar as habilidades do cortesão nos mais diversos jogos e
exercícios do corpo, os nobres do diálogo de Castiglione deram mais evidência a
esse princípio, recomendando a graça, o equilíbrio e o engenho nos gestos e
práticas da vida cotidiana, a fim de torná-lo mais digno de um favor universal.
Com efeito, se somente se exibisse ao juízo público para dar provas de sua
destreza o cortesão poderia atrair a inveja dos homens.
É bastante sugestivo o paralelo entre o autoretrato de Montaigne em Da
presunção em seu autoexílio, no espaço privado da biblioteca de seu castelo, e a
58
CASTIGLIONE, B., op. cit., I, 21, p. 39.
170
Existem ainda muitos outros torneios que, embora não dependam diretamente
das armas, com elas mantêm muita afinidade e exigem muita força viril; dentre
estes parece-me que a caça é um dos principais, pois tem uma certa semelhança
com a guerra: é um grande prazer de grandes senhores e conveniente aos
homens de corte, e se compreende porque também entre os antigos era costume
assaz difundido. Conveniente é ainda saber nadar, saltar, correr, jogar pedras,
pois além da utilidade que disso se pode extrair na guerra, muitas vezes é
preciso exercitar-se em tais coisas; com que se adquire boa estima,
especialmente na multidão, com a qual é necessário se estar de acordo. (...)
Desejo porém que o cortesão se dedique algumas vezes a mais repousantes e
plácidos exercícios e, para evitar a inveja e para entreter-se prazerosamente com
alguém, faça tudo aquilo que os outros fazem, não se distanciando nunca dos
atos louváveis e governando-se com aquele bom discernimento que não o deixe
incorrer em alguma tolice; mas ria, brinque, graceje, dance, de maneira que
assim, sempre demonstre ser engenhoso e discreto, e em tudo que fizer ou disser
seja gracioso.59
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Como nos diz acima, era essa mesma fraqueza e indisposição ao trabalho
que condicionavam, por outro lado, seu natural apreço pela própria autonomia e
59
Idem, I, 22, p. 39.
60
“Mes conditions corporelles sont en somme tresbien accordantes à celles de l`ame. Il n`y a rien
d`allegre: il y a seulement une vigueur pleine et ferme. Je dure bien à la peine; mais j`y dure, si je
m`y porte moy-mesme, et autant que mon desir m`y conduit, ‘le plaisir trompant l`austerité du
labeur’” Idem, II, 17, p. 642.
171
Tenho uma alma toda senhora de si, acostumada a conduzir-se à sua moda. Não
havendo tido até agora nem chefe nem senhor imposto, avancei o quanto quis e
no passo que me aprouve. Isso me amoleceu e me tornou inútil para o serviço a
outrem, e me fez bom só para mim mesmo.62
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O deliberar, mesmo nas coisas mais ligeiras, importuna-me; e sinto meu espírito
mais entravado para suportar o abalo e os assaltos diversos da dúvida e da
análise do que para firmar-se e decidir por qualquer partido que seja, depois que
a sorte está lançada. Poucas paixões têm perturbado tanto meu sono; mas a
menor das deliberações o perturba.63
61
STAROBINSKI, J., op. cit., p. 154.
62
“J`ay une ame toute sienne, accoustumée a se conduire à sa mode. N`ayant eu jusques à
cett`heure ny commandant ny maistre forcé, j`ay marché aussi avant et le pas qu`il m`a pleu. Cela
m`a amolli et rendu inutile au service d`autruy, et ne m`a faict bon qu`à moy.” MONTAIGNE, II,
17, p. 643.
63
“Le deliberer, voire és choses plus legieres, m`importune; et sens mon esprit plus empesché à
souffrir le branle et les secousses diverses du doubte et de la consultation qu`à se rassoir et
resoudre à quelque party que ce soit, apres que la chance est livrée. Peu de passions m`ont troublé
le sommeil; mais, des deliberations, la moindre me le trouble.” Idem, p. 644.
172
Essa decisão de seguir suas próprias inclinações e de não ser bom senão
para si mesmo - “bon qu`à moy” – comprovava o quanto sua natureza era alheia à
ambição. A presunção, do mesmo modo, não era própria senão aos homens que,
ao contrário de Montaigne, engajavam-se com avidez nos negócios do mundo,
empregando todas as suas forças e suportando as maiores adversidades em busca
do aumento de sua fortuna e da elevação de seu renome:
64
“Quant à l`ambition, qui est voisine de la presumption, ou fille plustost, il eut fallu, pour
m`advancer, que la fortune me fut venu querir par le poing. Car, de me mettre en peine pour
un`esperance incertaine et me soubmettre à toutes les difficultez qui accompaignent ceux qui
cerchent à se pousser en credit sur le commencement de leur progrez, je ne l`eusse sçeu faire (...)”
Idem, p. 645.
65
“J`ay bien trouvé le chemin plus court et plus aisé, avec le conseil de mes bons amis du temps
passé, de me défaire de ce desir et de me tenir coy (...)” Idem, p. 646.
66
NAKAM, G., op. cit., p. 184.
173
De acordo com essas comparações, poderia achar-me (C) grande e raro, assim
como me acho pigmeu e comum na comparação com alguns séculos passados,
nos quais era habitual, se outras qualidades maiores não ocorriam
simultaneamente, ver um homem (A) moderado em suas vinganças, ameno no
ressentimento pelas ofensas, escrupuloso no cumprimento de sua palavra, nem
dúplice, nem maleável, nem ajustando sua fé à vontade de outrem e às
ocasiões.68
67
“Les qualitez mesmes qui sont en moy non reprochables, je les trouvois inutiles en ce siecle. La
facilite de mes meurs, ont l`eut nommée lácheté et foiblesse; la foy et la conscience s`y feussent
trouvées scrupuleuses et supersticieuses; la franchise et la liberté, importune et inconsiderée et
temeraire. A quelque sert le mal`heur. Il fait bon naistre en un siecle fort depravé: car, par
comparaison d`autruy, vous estes estimé vertueux à bon marche. Qui n`est parricide en nous jours,
et sacrilege, il est homme de bien et d`honneur (…)” MONTAIGNE, II, 17, p. 646.
68
“Par cette proportion, je me fusse trouvé (C) grand et rare, comme je me trouve pygmée at
populaire à la proportion d`aucuns siecles passez, ausquels il estoit vulgaire, si d`autres plus fortes
qualitez n`y concurroient, de voir un homme (A) moderé en ses vegeances, mol au ressentiment
des offences, religieux en l`observance de sa parole, ny double, ny soupple, ny accommodant sa
foy à la volonté d`autruy et aux occasions.” Idem, p. 647.
174
É uma atitude covarde e servil disfarçar-se e se esconder sob uma máscara e não
ousar mostrar-se tal como se é. (...) Um coração generoso não deve contradizer
seus pensamentos; quer deixar-se ver até o íntimo. (C) Ou tudo nele é bom ou
ao menos tudo nele é humano. Aristóteles considera um dever de
magnanimidade odiar e amar às claras, falar com total franqueza, e, em nome da
verdade, não se importar com a aprovação ou reprovação de outrem.71
69
NAKAM, G., op. cit., p. 191.
70
“Pourquoy n`est-il loisible de mesme à chacun de se peindre de la plume, comme il se peignoit
d`un creon?” MONTAIGNE, II, 17, p. 653.
71
“C`est un` humeur couarde et servile de s`aller desguiser et cacher sous un masque, et de n`oser
se faire veoir tel qu`on est. (...) Un coeur genereux ne doit desmentir ses pensées; il se veut faire
voir jusques au dedans. (C) Ou tout y est bon, ou aumoins tout y est humein. Aristote estime office
de magnanimité hayr et aimer à descouvert, juger, parler avec tout franchise, et, au prix de la
verité, ne faire cas de l`approbation ou reprobbation d`autruy.” Idem, p. 647.
175
tomou recuo em relação a elas, a fim de melhor avaliar e conhecer seus próprios
traços e caracteres:
(B) Admito que pode estar misturada uma ponta de altivez e obstinação em
postar-me assim inteiro e descoberto sem considerar os outros; (...) Pode ser
também que me deixe levar por minha natureza na falta de arte. Apresentando
aos grandes essa mesma liberdade de linguagem e de atitude que trago de minha
casa, bem sei o quanto ela se inclina para o excesso e à incivilidade.72
72
“(B) J`advoue qu`il se peut mesler quelque pointe de fierté et d`opiniastreté à se tenir ainsin
entier et descouvert sans consideration d`autruy; (...) Il se peut estre aussi que je me laisse aller
apres ma nature, à faute d`art. Presentant aux grands cette mesme licence de langue et de
contenance que j`apporte de ma maison, je sens combien elle decline vers l`indiscretion et
incivilité.” Idem, p. 649.
176
própria razão, mas sempre inventavam suas verdades, as retendo na memória para
obter a benevolência alheia e persseguir suas ambições. Ao contrário destes, que
sabiam empregar sempre as palavras mais adequadas para agradar, Montaigne,
como já vimos, só sabia falar de boa fé – “à bon escient.”
Assumindo, assim, que a memória artificial não estava entre seus
predicados, ele afirmava também o seu desprezo pelas marcas exteriores de
erudição tão valorizadas en outras obras. Com isso, portanto não pretendia
somente depreciar suas insuficiências e afirmar-se isento de presunção, mas
também, e sobretudo, ressaltar os procedimentos diferenciados de seu discurso.
Marcava aí sua diferença em relação às obras comuns, que pretendiam afirmar seu
valor apropriando-se do que pertencia a outrem: das belas formas e expressões dos
73
Na célebre obra Retórica a Herênio que é o primeiro grande manual de retórica latina que
chegou até nós, a memória é definida como tesouro da inventio e guardiã de todas as partes da
retórica. Se afirma portanto como arte, à diferença da memória natural, situada em nossa mente e
nascida junto com o pensamento. A memória artificial da retórica se consolida com certa indução e
método preceptivo colocando à disposição do orador um imenso número de recursos para a
composição de um estilo belo e conveninente às mais diversas circunstâncias: “Assim como quem
conhece as letras do alfabeto é capaz de escrever o que lhe é ditado e ler em voz alta o que
escreveu, quem tiver aprendido a mnemotécnica será capaz de colocar nos lugares o que ouviu e,
recorrendo a eles, pronunciar de memória. Os lugares assemelham-se muito à tábuas de cera ou
rolos de papiro; as imagens, a letras; a disposição e colocação das imagens, à escrita; a
pronunciação, à leitura.” Retórica a Herênio, III, 28-31.
74
“Parquoy je m`abandone à la nayfveté et à tousjours dire ce que je pense, et par complexion, et
par discours, laissant à la fortune d`en conduire l`evenement.” MONTAIGNE, II, 17, p. 649.
177
75
No capítulo Do pedantismo (I, 25) Montaigne também acusou esta oposição profunda entre
memória e jugement no registro de sua crítica ao saber erudito e livresco dos autores da época. A
prática destes representava o exato oposto “da educação de si” que definia a escrita dos Ensaios,
desenvolvida mediante a livre atividade do juízo, concebendo o significado dos temas e valores da
tradição segundo sua própria medida e seu modo particular de julgar: “Atentamos para as opiniões
e o saber dos outros isso é tudo, é preciso fazê-los nossos. (...) (B) Tanto nos deixamos levar pelos
braços de outros que anulamos nossas forças. Desejo armar-me contra o medo da morte? Faço-o à
custa de Sêneca. Quero obter consolação para mim ou para outro? Tomo-o emprestado de Cìcero.
Tê-la-ia buscado em mim mesmo se me tivessem treinado para isso. Não gosto dessa competência
relativa e mendigada.” Idem, I, 25, p. 137.
76
“Je feuillete les livres, je ne les estudie pas: ce qui m`en demeure, c`est chose que je ne
reconnois plus estre d`autruy; c`est cela seulement dequoy mon jugement a faict son profit, les
discours et les imaginations dequoy il s`est imbu; l`autheur, le lieu, les mots et autres
circonstances, je les oublie incontinenti.” Idem, p. 651.
77
BEAUJOUR, M., op. cit., p. 114.
78
Idem, p. 116.
178
não esqueço menos que o restante. A todo momento citam-me a mim mesmo sem
que me aperceba disso.”79
Além de sua falta de memória ele confessou outros graves defeitos, que
também contribuíam muito para sua ignorância: possuía uma inteligência
medíocre; um espírito embotado, desprovido de agudeza, que o tornava inábil nos
jogos que exigiam sua participação, tais como os de cartas, xadrez e damas. Outro
ainda era sua irresolução; deficiência das mais incômodas para a negociação dos
assuntos do mundo, conforme reconhecia. A desconfiança em relação aos poderes
de sua razão o levava a consentir sempre na ordem geral no que se referia aos
assuntos públicos e políticos. Concedia sempre em seus atos bem pouca
participação à sua prudência, preferindo deixar-se levar pela fortuna. Já fizera
referência anteriormente no ensaio à sua natural incapacidade de deliberar ante a
imprevisibilidade dos eventos e o quanto o esforço por decidir-se por um caminho
ao invés de outro perturbava sua alma: “Peu de passions m`ont troublé le
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79
“(B) Et suis si excellent en l`oubliance que mes escrits mesmes et compositions, je ne les oublie
pas moins que le reste. On m`allegue tous les coups à moy-mesme sans que je le sente.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 651.
80
EVA, L., A Figura do Filósofo, p. 208.
81
A etimologia da palavra “ensaios” remonta à palavra latina “exagium” que significa “peso” ou
“pesar”. A palavra remeteria portanto à imagem da balança, implicando na consideração de
distintos pontos de vista sobre determinado assunto. Mas, é digno de nota que Jaques Amyot em
sua tradução de Plutarco, tão freqüentada por Montaigne, tenha usado o termo “essay” para
179
designar a atividade dubitativa acadêmica. Assim, o termo poderia também significar “skepsis”
(investigação) o mesmo que os pirrônicos usaram para designar sua filosofia. Idem, p. 230.
82
“Par ce traits de ma confession, on en peut imaginer d`autres à mes despens. Mais, quel que je
me face connoistre, pourveu que je me face connoistre tel que je suis, je fay mon effect. Et si ne
m`excuse pas d`oser mettre par escrit des propos si bas et frivoles que ceux-cy. La bassesse du
suject m`y contrainct. (C) Qu`on accuse, si on veut, mon project; mais mon progrez, non. (A) Tant
y a que, sans l`advertissement d`autruy, je voy assez ce peu que tout cecy vaut et poise, et la folie
de mon dessein. C`est prou que mon jugement ne se defferre point, duquel ce sont icy les essais.”
MONTAIGNE, II, 17, p. 653.
180
autruy, comme je me soucie quel je sois en moy mesme.” Nesse sentido, com
respeito ao desenvolvimento da reflexão de Montaigne, da espécie de argumentos
utilizados em Da glória aos que apareciam em Da presunção, no que concernia ao
seu método de autoconhecimento, é bastante ilustrativa uma observação feita por
Merleau Ponty que versava sobre a dialética própria ao discurso pessoal dos
Ensaios: “O mesmo autor que queria viver segundo si mesmo experimentou
apaixonadamente que somos, entre outras coisas, aquilo que somos para os outros,
e que a opinião deles nos atinge no centro de nós mesmos.”83
De qualquer modo, ainda que Da glória estivesse repleto de tópicas que
celebravam o alcance de uma sabedoria superior, não devemos perder de vista a
confissão feita já nos incícios do ensaio, de sua incapacidade em fixar-se em si
mesmo e de desprender-se das volúpias do mundo externo, que diferenciava de
imediato o exercício de autonomia de Montaigne daquela própria a estóicos e a
epicuristas: “Mais nous sommes je ne sçay comment doubles en nous mesmes, qui
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83
MERLEAU PONTY, M., “Leitura de Montaigne”, In: Signos, p. 231.
181
(...) a partilha mais justa que a natureza nos fez de suas graças é a do senso; pois
não há ninguém que não se contente com o que ela lhe atribuiu (C) Não é
lógico? Quem enxergasse além, enxergaria além de sua vista. (A) Creio que
minhas idéias são boas e corretas, mas quem não crê o mesmo das suas.87
84
“(...) ce seul par où je m`estime quelque chose, c`est ce en quoy jamais homme ne s`estima
deffaillant: ma recommendation est vulgaire, commune et populaire, car qui a jamais cuidé avoir
faute de sens?” Montaigne, II, 17, p. 656.
85
Ver item 4.3.
86
Ver sobre isso o item 3.3.
87
“On dit communément que le plus juste partage que nature nous aye fait de ses graces, c`est
celuy du sens: car il n`est aucun quin e se contente de ce qu`elle luy en a distribué. (C) N`est-ce
pas raison? Qui verroit au delà, il verroit au delà de sa veue.” Idem, p. 657.
182
Movida portanto por esse elogio banal, que atestava antes a ignorância
humana que o orgulho de sua razão, parecia um grande equívoco acusar a vaidade
como impulso da escrita dos Ensaios. Diante disso, com efeito, Montaigne,
constatou: “Assim, essa é uma espécie de exercício do qual devo esperar bem
pouca glória e louvor, e uma forma de composição de pouco renome.”88 Ao
exercitar seu juízo e viver segundo o significado que sua razão conferia às coisas
ele apenas explicitava nos seus Ensaios a consciência de sua inferioridade, isto é,
de não poder enxergar além de sua própria visão.
Assim, era impossível, de fato, julgar adequadamente sobre a medida do
valor que conferia ao seu senso e sobre o alcance de suas inépcias, pois para fazê-
lo precisaria por-se acima de si, na perspectiva do conhecimento de uma verdade
objetiva e universal, que transcendesse suas próprias medidas. Confiar nessa
capacidade de elevar-se e conhecer plenamente as falhas de seu senso significaria
recair na presunção:
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Seria uma proposição que implicaria em si mesma uma contradição (C) é uma
doença que nunca está onde ela se vê a si mesma (...) nesse assunto acusar-se
seria escusar-se; e condenar-se seria absolver-se. Nunca houve carregador ou
mulherzinha que não pensasse possuir senso suficiente para sua provisão.
Facilmente reconhecemos nos outros a superioridade da coragem, da força (C)
física, (A) da experiência, da boa disposição, da beleza; mas a superioridade do
discernimento não cedemos a ninguém; e as razões que provêm do simples bom
senso inato de outrem, parece-nos que só dependia de olharmos para aquele
lado e as teríamos encontrado.89
Já que não era dado ao homem conhecer a verdade objetiva das coisas,
também não lhe era possível saber se suas opiniões a alcançavam ou mesmo
chegavam perto da verdade. Não podia, portanto, fazer-se superior e obter glória
simplesmemente pelo apreço votado às suas afirmações. De fato, nenhuma delas
poderia ser justamente considerada mais verdadeira que a proposição de um outro,
88
“Ainsi, c`est une sorte de exercitation de laquelle je dois esperer fort peu de recommendation et
de louange, et une maniere de composition de peu de nom.” Idem, II, 17, p. 656.
89
“Ce seroit une proposition qui impliqueroit en soy de la contradiction (C) c`est une maladie qui
n`est jamais où elle se voit (...) s`accuser seroit s`excuser en ce subject là; et se condamner, ce
seroit s`absoudre. Il ne fut jamais crocheteur ny femmelette qui ne pensast avoir assez de sens pour
sa provision. Nous reconnoissons ayséement és autres l`advantage du courage, de la force (C)
corporelle, (A) de l`experience, de la disposition, de la beuaté; mais l`advantage du jugement, nous
ne le cedons à personne; et, les raisons qui partent du simple discours naturel en autruy, il nous
semble qu`il n`a tenu qu`a regarder de ce costé-là, que nous les ayons trouvée.” Idem.
183
de si, que movia-se entre pólos opostos: ele era assim, um pigmeu diante dos
antigos tanto quanto grande e raro comparado aos seus contemporâneos.
De qualquer maneira, essa atitude dizia respeito ao princípio da
sinceridade, em que se baseava seu autoretrato. Não podia apresentar-se senão
adequando sua reflexão ao modo como “se sentia ser”: “N`est-ce pas raison? Qui
verroit au delà, il verroit au delà de sa veue.” Como sabemos, de fato, a exigência
de veracidade dos Ensaios não se cumpria na fixação de uma imagem última e
acabada de si. Ao invés disso, ela se punha na ordem do não falseamento daquela
que era sua própria verdade, vivenciada nas condições moventes e instáveis do
jugement. Enfim, a opção de Montaigne de aderir aos seus próprios pensamentos,
apesar de seu caráter contingente, não devia ser confundida com presunção, pois
implicava na adoção de um modo de vida pautado no reconhecimento de sua
ignorância, das imperfeições de sua razão e na plena conformidade aos seus
limites naturais.
Isso nos leva novamente à questão do ceticismo, que, segundo
acreditamos, movia os percursos de sua reflexão e de suas escolhas, pois, de fato,
como já vimos, era a experiência cética da epoché – da suspensão do juízo quanto
ao conhecimento da verdade – que lhe permitia apropriar-se do uso integral e mais
perfeito de suas faculdades. Relembremos da passagem da Apologia forjada a
184
90
Ver item 4.3
91
“Não temos nenhuma comunicação com o ser, porque toda a natureza humana está sempre no
meio entre o nascer e o morrer, cedendo de si apenas uma obscura aparência e sombra e uma
opinião incerta e frágil.” Idem, II, 12, p. 604. Nas páginas finais da Apologia, que enfatizavam esse
movimento perpétuo de todas as coisas, a reflexão de Montaigne parecia reportar-se ao terceiro
dos cinco tropos de Agripa, que demonstrava, nas Hipotiposes, a relatividade de todo
conhecimento, pela constatação de que as afirmações da razão humana eram sempre e
necessariamente indissociáveis das condições particulares de seu exercício. Empírico, Sexto, op.
cit., I, 15. Esse era um dos temas essenciais do pensamento cético, da demonstração da
incapacidade de nossos sentidos em conhecer os objetos tal como realmente eram. Assim,
Montaigne acusava a impossibilidade de uma razão substancial, cujo uso transcendesse suas
medidas e as circunstâncias de seu exercício, pois era preciso que se apartasse das condições
moventes da vida, da velhice, da juventude, da saúde e da doença para poder julgar com
imparcialidade e por se em harmonia com a verdadeira substância das coisas: “Precisaríamos de
alguém isento de todas essas características, para que, sem idéia preconcebida, julgasse sobre estas
proposições como indiferentes a ele; e dessa forma, precisaríamos de um juiz que não existe.”
Atestando o caráter sobrehumano da aspiração de enxergar além de seus limites, o terceiro modo
de Agripa para levar à epoché definia-se como base fundamental do preceito exaltado por
Montaigne ao fim da Apologia, da vida conforme o alcance natural dos sentidos e de acordo com
as próprias crenças. Idem, II, 12, p. 600.
92
“O la vile chose, dict-il, et abjecete, que l`homme, s`il ne s`esleve au dessus de l`hummanité!
(C) Volà un mot et un utile desir, mais pareillement absurde. (...) et d`espérer enjamber plus que de
l`estanduë de nos jambes, cela est impossible et monstrueux. Ny que l`homme se monte au dessus
de soy et de l`hummanité.” Idem, II, 12, p. 604.
185
prerrogativa de fundar as condições para seu uso mais perfeito. Mas esse desejo
de perfeição, não se identificava de modo algum a uma confiança excessiva em
sua superioridade. Essa perfeição resultava da prática de regular-se de acordo com
as condições subjetivas e particulares adequadas ao seu funcionamento natural.93
Ela deveria fazê-lo sempre consciente de que suas afirmações apoiavam-se
somente em si mesmas e não no conhecimento da verdade; lhe eram totalmente
próprias e portanto, contingentes, imperfeitas.
Com essas considerações chegamos à passagem de Da presunção que
serve de epígrafe à introdução desse trabalho em que afirmando o intento do uso
perfeito de sua razão, ele também enunciou a idéia que determinava os princípios
e procedimentos peculiares de seu discurso, que tinha como matéria não a verdade
no sentido forte do termo, mas sim aquilo que era verdadeiro para ele, Montaigne:
principalmente a mim mesmo; pois as idéias mais firmes e gerais que tenho são
as que, por assim dizer, nasceram comigo. São naturais e totalmente minhas.
Produzi-as cruas e simples, numa produção ousada e forte, mas um tanto
confusa e imperfeita; em seguida estabeleci-as e fortifiquei-as com a autoridade
alheia e com os saudáveis discursos dos antigos, com os quais me vi
coincidindo em julgamento: eles me garantiram a consistência delas e deram-me
sua posse e gozo mais integral.94
93
Esta noção de integridade intelectual, extraída do ceticismo acadêmico e tão crucial para
Montaigne, tinha sua mais viva expressão segundo Cícero, na figura de Sócrates. Montaigne
também demonstrou sua simpatia por ele, sobretudo nos capítulos do terceiro livro dos Ensaios.
Não é demais destacarmos aqui uma passagem de Da fisionomia, que exprime bem sua
identificação com a visão ciceroniana de Sócrates, como expressão mais perfeita do uso das
faculdades racionais, em seu reconhecimento de que o alcance da verdade sobre as coisas do
mundo estava além das capacidades humanas: “(C) Foi ele que trouxe de volta de volta do céu,
aonde perdia tempo, a sabedoria humana, para devolvê-la ao homem, onde está sua mais adequada
e mais laboriosa tarefa e a mais útil.” Montaigne, III, 12, p. 297 A sabedoria de Sócrates se
aproximava bastante da de Montaigne, ao definir a aceitação dos próprios limites e a vida de
acordo com eles como a mais alta virtude humana. Tal como seus discípulos tardios, os
acadêmicos, que mantinham o uso da razão no nível de sua atividade de inquirir e de investigar,
Sócrates jamais pretendeu instilar alguma sabedoria pronta em seus ouvintes, mas refutando
constantemente suas opiniões, os estimulava a ativar de forma integral suas faculdades. CÍCERO,
Acadêmicos, I, 16, apud MAIA NETO, J. R., op. cit. Sobre a consideração montaigneana da
maiêutica socrática ver Maia Neto, J. R., op. cit. p. 24 e examinar, por exemplo, os ensaios II, 12 e
III, 5.
94
“Cette capacité de trier le vray, quelle qu`elle soit en moy, et cett`humeur libre de n`assubjectir
aisément ma creance, je la dois principalement à moy: car le plus fermes imaginations que j`aye, et
generalles, sont celles qui, par maniere de dire, nasquirent avec moy. Elles sont naturelles et toutes
miennes. Je les produisis crues et simples, d`une production hardis et forte, mais un peu trouble et
imparfaicte; depuis je les ay establies et fortifiées par l`authorité d`autruy, et par les sains discours
des anciens, ausquels je me suis rencontré conforme en jugement: ceux-là m`en ont assuré la
prinse, et m`en ont donné la jouyssance et possession plus entiere.” MONTAIGNE, II, 17, p. 658.
186
95
EVA, L., op. cit., p. 231.
187
Deixemos de lado essa infinita confusão de opiniões que vemos até mesmo
entre os filósofos, e esse debate perpétuo e universal sobre o conhecimento das
coisas. (...) Além dessa diversidade e divisão infinitas, pela confusão que nosso
julgamento causa a nós mesmos e pela incerteza que todos sentem em si, é fácil
ver que a posição deste é bem pouco sólida. Quão diversamente não julgamos
nós as coisas? Quantas vezes mudamos nossas opiniões? O que hoje afirmo e
acredito, afirmo-o e acredito com toda a minha convicção; todas as minhas
faculdades e todos os meus recursos empunham essa opinião e respondem-me
por ela em tudo que podem. Eu não poderia abraçar verdade alguma nem
preservá-la com mais força do que faço com esta. Estou nela por inteiro, estou
nela verdadeiramente; porém acaso não me ocorreu, não uma vez, mas cem,
mas mil, e todos os dias, de ter com essas mesmas faculdades, nessa mesma
condição, abraçado alguma coisa que depois julguei falsa? Precisamos pelo
menos nos tornar sábios à nossa própria custa. Se amiúde me vi traído por essa
aparência, se minha pedra de toque costuma se mostrar falsa e minha balança
parcial e injusta, que segurança posso ter nesta vez mais que nas outras? Não
será tolice deixar-me enganar tantas vezes por um guia? No entanto, que a
fortuna quinhentas vezes nos mude de lugar, que não faça mais que, como um
vaso, esvaziar e encher incessantemente nossa crença com outras e outras
opiniões, sempre a atual e mais recente é a certa e infalível. Por esta é preciso
abandonar os bens, a honra, a vida e a salvação, tudo, ‘A última desgosta-nos da
primeira e desacredita-as em nosso espírito’96
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96
“Laissons à part cette infinie confusion d`opinions qui se void entre les philosophes mesmes, et
ce debat perpetuel et universel en la connoissance des choses. (...) Outre cette diversité et division
infinie, par le trouble que nostre jugement nous donne à nous mesmes, et l`incertitude que chacun
sent en soy, il est aysé à voir qu`il a son assiete bien mal assurée. Combien diversement jugeons
nous des choses? Combien de fois changeons nous nos fantasies? Ce que je tiens aujourd`huy et ce
que je croy, je le tiens et le croy de toute ma croyance; tous mes utils et tous mes ressorts
empoignent cette opinion et m`en respondent sur tout ce qu`ils peuvent. Je ne sçaurois ambrasser
aucune verité ny conserver avec plus de force que je fay cette cy. J`y suis tout entier, j`y suis
voyrement; mais ne m`est il pas advenu, non une fois, mais cent, mais mille, et tous les jours,
d`avoir ambrassé quelqu`autre chose à tout ces mesmes instruments, en cette mesme condition,
que depuis j`aye jugée fauce? Au moins faut il devenir sage à ses propres depans. Si je me suis
trouvé souvent trahy sous cette couleur, si ma touche se trouve ordinairement fauce, et ma balance
inegale et injuste, quelle asseurance en puis-je prendre à cette fois plus qu`aux autres? N`est-ce pas
sottise de me laisser tant de fois piper à un guide? Toutefois, que la fortune nous remue cinq cens
fois de place, qu`elle ne face que vuyder et remplir sans cesse, comme dans un vaisseau, dans
nostre croyance autres et autres opinions, tousjours la presente et la derniere c`est la certaine et
l`infallible. Pour cette cy il faut abandonner les biens, l`honneur, la vie et le salut, et tout, ‘La
dernière nous désgoûte des premières et les discrédite dans nostre esprit.’” Idem, II, 12, p. 563.
188
idéia sólida de sua fraqueza, dava a ele uma prova da maior sensatez de suas
idéias em relação às dos homens que lhe rodeavam o impedindo de enunciar suas
opiniões como verdades: “Uma das melhores provas que tenho disso é o pouco
valor que me dou: pois se não fossem bastante sólidas elas facilmente se
deixariam enganar pela afeição singular que dedico a mim, uma vez que a dirijo
quase toda para mim e dificilmente a espalho para fora.”97
O sinal inequívoco de sua sensatez, portanto, era essa sua constante
disposição de depreciar-se. Com isto ele rebatia enfim à questão posta pelo
proêmio do ensaio, ou seja, se era um juízo “trouble et alteré” por uma “affection
inconsiderée” que o levava a voltar-se para si e a desdenhar os negócios do
mundo. Se apostava mais do que os outros no elo interno de sua verdade, voltando
inteiramente para si sua “affection” e vivendo exclusivamente segundo sua razão,
o modo como se desprezava atestava que a expressão de suas idéias estava isenta
dos excessos do amor próprio, não possuindo, de fato, nada de que pudesse
vangloriar-se.
97
“L`une des meilleures preuves que j`en aye, c`est le peu d`estime que je fay de my: car si elles
n`eussent esté bien asseurées, elles se fussent aisément laissés piper à l`affection que je me porte
singuliere, comme celuy qui la ramene quase toute à moy, et quin e l`espands gueres hors de là.”
Idem.
189
espírito, desprezou sua falta de arte, expressa na forma desordenada dos Ensaios.
Não possuía habilidade artística para produzir belas obras literárias à maneira de
seus contemporâneos humanistas, capazes de tomar como modelo as formas
sublimes dos antigos: “J`ay tousjours une idée en l`ame (C) et certaine image
trouble, (A) qui me presente (C) comme en songe (A) une meilleure forme que
celle j`ay mis en besongne, mais je ne la puis saisir el exploiter.” Quanto aos
exercícios e jogos do corpo, em que se destacavam os nobres, confessava: “(...) je
n`en ay trouvé guiere aucun qui ne me surmontant, sauf au courir (en quoy j`estoy
des mediocres)” E finalmente em seu autoretrato moral, das inclinações da alma,
destacou a liberdade e indulgência de sua educação como causa de sua “mollesse”,
isto é, da falta de disposição e de vivacidade de seu temperamento que o tornava
impróprio ao serviço de outrem e somente bom para si mesmo.
Entretanto, não podia defender-se tão bem contra o segundo vício próprio
a essa glória da presunção, assinalado no início do ensaio, de não estimar
98
“Or, mes opinions, je les trouve infiniement hardies et constantes à condamner mon
insuffissance. De vray, c`est aussi un subject auquel j`exerce mon jugement autant qu`à nul autre.
Le monde regarde tousjours vis à vis; moy, je replie ma veue au dedans, je la plante, je l`amuse là.
Chacun regarde devant soy; moy, je regarde dedans moy; je n`ay affaire qu`à moy, je me considere
sans cesse, je me contrerolle, je me gouste. Les autres vont tousjours ailleurs, s`ils y pensent bien;
ils vont tousjours avant, ‘Personne ne tente de descendre en soi-même’ moy je me roulle en moy
mesme.” Idem.
190
de peu de nom.”, e essa outra, que atestava o contentamento com o próprio senso
como uma condição comum a qualquer homem: “On dit communément que le
plus juste partage que nature nous aye fait de ses graces, c`est celuy du sens: car il
n`est aucun qui ne se contente de ce qu`elle luy en a distribué.”, ele inseriu um
acréscimo c em que formulou para si mesmo uma indagação crucial, suscitada
pelas duas constatações feitas acima, em que revelava seu ponto de vista sobre os
espíritos de sua época na condição de interlocutores dos Ensaios:
(C) Então para quem escreveis? Os sábios a quem compete a jurisdição livresca
só reconhecem valor na ciência e não aprovam outro procedimento em nossos
espíritos que não o da erudição e da arte: se tomastes um dos Cipiões pelo
outro, que vos resta a dizer que valha? Quem ignora Aristóteles, segundo eles,
ao mesmo tempo ignora a si mesmo. As almas comuns e vulgares não vêem a
graça e o peso de um discurso elevado e sutil. Ora, essas duas espécies ocupam
o mundo. A terceira, de que fazeis parte – a das almas bem ajustadas e fortes
por si mesmas -, é tão escassa que precisamente não tem nem nome nem
posição entre nós; é quase tempo perdido esforçar-se por agradar-lhe.100
99
“Tout ce que les autres en distribuent à une infinie multitude d`amis et de connoissans, à leur
gloire, à leur grandeur, je le rapporte tout au repos de mon esprit et à moy. Ce qui m`en eschappe
ailleurs, ce n`est pas proprement de l`ordonnance de mon discours.” Idem.
100
“(C) Et puis, pour qui escrivez vous? Les sçavans à qui touche la jurisdiction livresque, ne
connoissent autre prix que de le doctrine, et n`advouent autre proceder en noz esprits que celuy de
l`erudition et de l`art: si vous avez pris l`un des Scipions pour l`autre, que vous reste il à dire qui
vaille? Qui ignore Aristote, selon eux s`ignore quand et quand soymesme. Les ames communes et
populaires ne voyent pas la grace et le poids d`un discours hautain et deslié. Or, ces deux especes
occupent le monde. La tierce, à qui vous tombez en partage, des ames reglées et fortes d`elles-
191
mesmes, est si rare que justement elle n`a ny nom, ny rang entre nous: c`est à demy temps perdu,
d`aspirer et de s`efforcer à luy plaire.” Idem, p. 657.
101
Ver p. 183.
192
geral: “Je ne veux pas que, de peur de faillir de ce costé là, un homme se
mesconnoisse pourtant, ny qu`il pense estre moins que ce qu`il est.” Frisava
assim, que não era uma “affection inconsiderée” que o levava a desdenhar os
espíritos do presente e a estimar suas próprias qualidades, mas sim a freqüentação
com os espíritos mais altos dos tempos antigos, pela qual procurava fortalecê-las e
conferir-lhes maior consistência para melhor apropriar-se delas. Esta freqüentação
com personagens tão célebres só podia levá-lo a desgostar-se, naturalmente, não
apenas dos homens de seu tempo como também de si mesmo:
próximo dos antigos do que dos homens que lhe cercavam. E, como já vimos, ao
longo do ensaio, foi recorrendo a detalhes diversos referentes a grandes
personagens da Antigüidade que ele animou e autentificou seus próprios traços no
autoretrato104, tais como um pequeno gesto de Alexandre105; a baixa estatura de
Filopêmen106; a ousadia de Lucílio em falar de si mesmo e confessar às páginas de
seu livro a expressão do modo como “se sentia ser”.107
Nesse contraste profundo entre as insuficiências dos personagens do
presente e a perfeição das almas do passado, entretanto, Montaigne marcou a
importante exceção de La Boétie, seu grande amigo, que possuía o mesmo grau de
excelência dos antigos, e era portanto um exilado em seu próprio tempo tal como
ele mesmo. La Boétie seria o interlocutor ideal de Montaigne caso estivesse vivo,
pois se tratava de “un`ame à vieille marque”108:
plena e que mostrava uma bela face em todos os sentidos; uma alma da espécie
antiga e que teria produzido grandes obras se a fortuna assim tivesse desejado,
tendo acrescentado muito a essa rica natureza por meio de conhecimento e
estudo.109
104
Sobre isso ver NAKAM, G., op. cit., p. 184.
105
Ver p. 162.
106
Ver p. 175.
107
Ver p. 161.
108
Ver sobre esse assunto o capítulo Da amizade (I, 29).
109
“Et le plus grande que j`aye conneu au vif je dis des parties naturelles de l`ame, et le mieux né,
c`estoit Etienne de La Boétie: c`estoit une ame pleine et qui montroit un beau visage à tous sens;
une ame à vieille marque et Qui eut produit de grands effets si la fortune l`eust voulu, ayant
beuacoup adjousté à ce riche naturel pas sciense et estude.” MONTAIGNE, II, 17, p. 658.
194
perfeição dos antigos. Ergueu ainda, num acréscimo posterior a 1588, um epitáfio
ao grande guerreiro senhor de La Noue, cuja constante bondade, moderação de
atitudes e tolerância o haviam feito também um exilado na França de seu tempo,
no que dizia respeito às coisas da guerra.
A referência a ele - que como afirmou G. Nakam110 é um dos raros elogios
fúnebres feito nos Ensaios aos homens de sua geração - fazia ressaltar com mais
força a crueldade, a injustiça e o banditismo dos conflitos civis que marcavam a
época. Assim como também, por contraste, a figura solitária de Montaigne, que
recusando a glória em nome da apropriação de sua verdade, contemplava a
imagem de uns poucos heróis de seu tempo, com sua imaginação repleta da
grandeza dos espíritos do passado.111
No fim do ensaio, sua solidão filosófica na biblioteca do castelo deixava o
reconhecimento de uma presunção relativa, inscrita num tempo detestável de
decadência e de perversão. Quanto a saber se isso era ou não suficiente para
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110
NAKAM, G., op. cit., p. 184.
111
Idem.
6.
CONCLUSÃO
obedecer às cerimônias que fazia com que as palavras dos homens jamais se
ativessem à substância das coisas – “le tronc et le corps” - e que se agarrassem
somente ao vazio das aparências – “aux branches”2. Ou seja, antes à consideração
dos modos como falavam, para que pudessem angariar a aprovação do mundo, do
que à franqueza de suas palavras. Assim, valorizando mais a franqueza que a
obediência às cerimônias, para apreender-se em sua verdadeira substância, ele se
limitou a fornecer aos seus interlocutores indícios seus sobre os quais refletir por
si mesmos, recusando-se a enunciar uma falsa palavra de autoridade que lhes
limitasse a atividade natural do juízo assim como dele próprio enquanto autor.
Procedendo desse modo, com efeito, conferiria ao seu discurso a beleza de um
encadeamento coerente e linear e estaria em harmonia com os preceitos da
“dispositio” dos retores, mas porém, em desacordo com a autêntica natureza de
sua experiência interior. A ele, enquanto autor de um autoretrato, cabia, ao
contrário, adequar-se a ela e gerar assim, uma composição que se colocava fora
dos padrões usuais, didáticos e estéticos que regulavam as relações entre autor e
leitor, fundadas, como já vimos, na troca entre a instrução e o elogio, que fazia a
fama do autor como exemplo de sabedoria.
1
Ver p. 90.
2
Ver p. 159.
196
3
TOURNON, A., op. cit., p. 176.
198
sem qualquer alteração nem equívoco pois ela dá caução à obra, apresentada como
testemunho e revelação de si em todos os seus desenvolvimentos.4
Entretanto, solicitada pela crítica do vício da glória tal exigência parece
consolidar-se da maneira mais expressiva. Com efeito, após atravessar a reflexão
dos dois capítulos, em declarações recorrentes Montaigne retorna a ela, para
conferir-lhe o papel central de tema do ensaio seguinte a Da presunção, Do
desmentir, em que mais uma vez focaliza o modo como a dissimulação tornara-se
comum à sua volta, deplorando a forte presença desse vício como marca da
decadência de seu tempo: “O primeiro indício da corrupção dos costumes é o
banimento da verdade; pois, como dizia Píndaro, o ser verdadeiro é o começo de
uma grande virtude (C) e a primeira condição que Platão impõe ao governante de
sua república.”5
Conforme já declarava, por exemplo, nessa passagem de Da glória, não
era a presunção mas sua disposição e coragem de exibir-se em sua verdade -
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qualidade tão rara de ser encontrada em sua época - que movia o desprezo pela
aprovação de outrem, de preferência a deixar-se levar pelas paixões dos bens do
mundo que tornavam os homens dúplices em suas palavras e em suas ações:
Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem tanto quanto qual eu seja em
mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos vêem
apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um ar
alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e receio. Eles não vêem
meu coração vêem apenas meu comportamento6
4
Idem, p. 186.
5
“Le premier traict de la corruption des moeurs, c`est le bannissement de la verité: car, comme
disoit Pindare, l`estre veritable est le commencement d`une grand vertu, (C) c`est le premier article
que Platon demande au gouverneur de sa republique.” MONTAIGNE, II, 18, p. 666.
6
“Je ne me soucie pas tant quel je sois chez autruy, comme je me soucie quel je sois en moy
mesme. Je veux estre riche par moy, non par emprunt. Les estrangers ne voyent que les evenemens
et apparences externes; chacun peut faire bonne mine au dehors, plein au dedans de fiebvre et
d`effroy. Ils ne voyent pas mon coeur, ils ne voyent que mes contenances” Idem, II, 16, p. 625.
199
às conveniências do mundo – “Ils ne voyent pas mon coeur, ils ne voyent que mes
contenances.” A própria maneira da composição de seu discurso deveria levá-los a
se posicionar como amigos e parentes próximos, capazes de ver seu coração e de
estabelecer um comércio vivo com ele, através do conhecimento de seus humores
e inclinações, apreendidos em sua substância viva na escrita.7
Mais adiante, em Da presunção, ao pintar seu autoretrato moral,
Montaigne reforçou a aversão natural de seu temperamento ao vício da
dissimulação que servia aos excessos das ambições, se interpondo entre os
homens e presidindo suas relações: “(...) quanto a essa nova virtude de fingimento
e de dissimulação, que atualmente está tão em voga, abomino-a mais que tudo (...)
Minha alma por sua constituição, rejeita a mentira e detesta até mesmo pensar
nela.”8
A rejeição da mentira nos Ensaios, em suma, implicava num discurso
exclusivamente a serviço da disposição de examinar-se a si mesmo e de indagar-
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7
Ver item 4.1.
8
“(...) quant à cette nouvelle vertu de faintise et de dissimulation qui est à est à cet heure si fort en
credit, je la hay capitallement (...) Mon ame, de sa complexion. refuit la menterie et hait mesmes à
la penser.” Idem, II, 17, p. 647.
9
TOURNON, A., op. cit., p. 185.
200
Não estou erguendo aqui uma estátua a ser plantada à entrada de uma cidade ou
numa igreja ou praça pública (...) Isto é para o canto de uma biblioteca e para
distrair um vizinho, um parente, um amigo, que terá prazer em voltar a
encontrar-me e a freqüentar-me nessa imagem. (...) Quanta alegria me causaria
ouvir assim alguém que me narrasse os hábitos, (C) a aparência, as atitudes, as
palavras habituais (A) e as fortunas de meus ancestrais!10
(C) E, mesmo que ninguém me leia, acaso terei perdido meu tempo ao entreter
tantas horas ociosas com pensamentos tão úteis e agradáveis? Ao modelar sobre
mim esta figura, tantas vezes tive de me ajustar e compor para transcrever-me
que o molde se consolidou e de certa maneira formou a si mesmo.11
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10
“Je ne dresse pas icy une statue à planter d`une ville, ou dans une Eglise, ou place publique (...)
C`est pour le coin d`une librarie, et pour en amuser un voisin, un parent un amy, qui aura plaisir à
me racointer et repratiquer en cett`image. (...) Quel contentement me seroit ce d`ouir ainsi
quelqu`un qui me recitast les meurs, (C) le visage, la contenance, les paroles communes (A) et les
fortunes de mes ancetres.” Idem, II, 18, p. 664.
11
“(C) Et quand personne ne me lira, ay-je perdu mon temps de m`estre entendu tant d`heures
oisifves à pensements si utiles et aggreables? Moulant sur moy cette figure, il m`a fallu si souvent
dresser et composer pour m`extraire, que le patron s`en est fermy et aucunement formé soy-
mesmes.” Idem, p. 665.
7
Referências Bibliográficas:
1973.
1998.
Ronald G. Witt. Edited by KOHL, Benjamin G.; Witt, Ronald G.; Welles,
1997.
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202
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livres I-III.
2005, 2 vols.
Brasília, 1996.
203
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Fayard, 1968.
Michel, 2002.
Nizet, 1983.
Klincksieck,1991.
Maspero, 1969.
Difel, 1986.
Econômica, 1995.
1993.
hachette, 1968.
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