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As inferéncias causais na teoria epistemolégica de Hume Silvio Seno Chibeni * 1 INTRODUGAO O aiicleo da nocao de inferéncia € 0 da extracio de uma conclusio a partir de um conjunto de Proposicdes assumidas como verdadeias, Em geral di-se énfase ao aspecto formal do processo, em contraste com © contetido cognitivo daquilo que constitui a base ¢ a conclusio da inferéncia. Isso naturalmente esti ligado ao faro de que sio as inferéncias deduliras, ou logicas, que fornecem o paradigma, ou caso ideal de processo inferencial, por garantirem a verdade da conclusio quando se assume a verdade das premissas a partir da qual cla é deduzida, ¢ por terem sua validade fundada unicamente em sua forma. E patente, no entanto, a insuficiéncia desse tipo de inferéncia para os propésitos da ciéncia ¢ do homem comum, Nem todas as inferéncias feitas no ambito da ciéncia ¢ da atividade cognitiva ordinaria podem ser reduzidas ao padrito dedutivo — na verdade bem poucas delas sio passiveis de tal reducio. Assim, nas anilises contemporineas do assunto costuma-se distinguir dois outros tipos de inferéncia: as inferéncias indutinas, nas quais uma base uniforme de evidéncia é estendida para casos novos semelhantes, ou para o caso geral, ¢ as inferéncias abduline, nas quais 0 poder de explicacio de uma determinada hipétese é tomado como fator evidencial da sua verdade. Ha, no entanto, outra forma de inferéncia, aparentemente diferente das trés anteriores, que igualmente desempenha papel importante tanto no contexto da vida comum como no cientifico: as inferéncias causais, pelas quais se inferem efeitos de causas ou vice-versa. F. sobre essas inferéncias que Hume centralizou sua atencao. As razdes que deu para essa escolha sio brevemente examinadas na proxima secio. 2 O PAPEL DAS INFERENCIAS CAUSAIS Ha variagdes de detalhe na forma pela qual Hume aborda as inferéncias causais no Tratado da naturea humana (1739-1740) © na Investigaciio sobre 0 entendimento bumano 1748}. Inverto aqui a ordem temporal de sua publicacio comeco pela segunda dessas obras. Hume abre a secio 4 propondo a conhecida divisiio dos “objetos da razao ou investigacao humanas” em “‘relaies de idéias” © “questies de faio” (Hume, Enguiry [1748], 4.1). O critério para a distincio é tanto epistemolégico (as primeiras sto conhecidas por intuicio ¢ demonstracio; as segundas por experiencia € observacio) como légico ou modal (as relacdes de idéias sito necessirias; as questdes de fato contingentes; Hume, Exguiry [1748], 4-1-2). Porém nao é esse 0 ponto que mais interessa aqui. O que tem relevncia direta para a presente discussio ¢ a identificacio que Hume faz, ja no paragrafo 3, do seu objeto principal de investigacio: * Departamento de Filosofia, Instituto de Filosofia ¢ Ciéncias Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Caixa Postal 6110, Unicamp, Campinas, Brasil. CEP 13083-970. Web-site: E-mail: chibeni@unicamp.br. 'Na seqiténcia essas obras serio chamadas, respectivamente, de Trafado e Investigate, ¢ referéncias a clas seguirio 0 padtio sstabelecido pelas edigées indicadas na lista de referencias, segundo a qual, por exemplo, ‘Hume, Trtie [1739-1740], 13.62 © “Hume, Enguiy [1748] 2.5’, indicam, respectivamente, “Al sreatise of human nature, liveo 1, parte 3, capitulo 6. 2 ‘Am enquiry concerning haoman understanding, secio 2, parigrato 5 423 evidéncia que nos asseguta entidos ou dos _ Assim, pode ser um assunto digno de interesse investigar qual é a natureza acerca de alguma existéncia real e questio de fato além do testemunho presente de nossos registros de nossa memoria, Observa-se que tanto os antigos como os modernos pouco cultivaram parte da filosofia [.... (Hume, Exguiry [1748], 4.3) vel) Em outras palavras, Hume esti interessado em investigar como é possivel (se € que é po: estender nosso conhecimento de questoes de fato além da experiencia direta, presente ou passada. E's extensio constitui um caso do que Hume chama de “raciocinio” — uma acepcio abrangente do termo, que aparece tanto aqui como no Trafada, e que contrasta com a acep¢io mais estrita, de raciocinio demonstrativo. Pois bem: Hume imediatamente propde que “Todos os raciocinios sobre questoes de fato parecem estar fiundados na rclacio de Cau ©” (Hume, Enguiry [1748], 44). A forma pela qual Hume argumenta a favor dessa afirmacio na Inmestigacio é por meio de exemplos, como o do homem que conelui que numa ilha deserta jé houve homens a partir do achado de um relogio ou outro tipo de maquina. Esse processo argumentative pode ser persuasivo para o homem comum, mas certamente deixa 0 filésofo insatisfeito. Talvez seja levando isso em conta que Hume qualifica sua afirmacio com um “parece”, embora essa qualifi depois efetivamente ignorada no restante da anilise. No Tratado, obra concebida com menor atencio a um piblico geral, Hume havia procurado oferecer uma fundacio mais rigorosa para a referida tese. Ele comeca com a identificacao, ja na primeira parte do livro 1, seeao 5, de sete lipas de “relacies filasificas”, enumeracio essa que Hume pretende exaustiva. O assunto retomado na terceira parte desse livro, que inicia justamente com a subdivisao das sete relagdes em dois grupos (Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.1.1): 1. As que “dependem unicamente das idéias que comparamos”: ‘ou numero, graus em qualquer qualidade, ¢ contrariedade; 2. As que “podem ser mudadas sem nenhuma mudanca nas idéias” relacionadas: identidade, relacoes de tempo e lugar, ¢ causagao. Somente as relacdes do primeiro tipo “podem ser objeto de conhecimento ¢ cert “fundamento da ciéncia” [Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.2.1]. Das quatro, trés “podem ser descobertas 4 primeira vista”, ou seja, intuitivamente: semelhanga, graus em qualquer qualidade e contrariedade. Apenas as relacoes de proporcio em quantidade ou niimero podem requerer demonstracio. © que mais interessa a Hume so as relacdes do segundo grupo: identidade, relagbes de tempo ¢ lugar, ¢, especialmente, causacio. Héme comeca seu estudo esclarecendo a nocao de raciacinio. “Vodos 05 tipos de raciocinio nao passam de uma comparacio, ¢ de uma descoberta das relagées [...] que dois ou mais objetos guardam entre si”. Mas essa € uma nogio intoleravelmente abrangente. Percebendo isso, Hume imediatamente acrescenta que quando os dois objetos estio presentes aos sentidos, trata-se antes de percepcio do que de raciocinio propriamente dito. Desse modo, diz, a melhanca, proporcio em quantidade clas sio 0 nio devemos considerar raciocinio nenhuma das observagdes que facamos sobre fdentidade © relacies de tempo ¢ ingar, visto que em nenhuma delas a mente pode ir além do que esti imediatamente presente 20s sentidos, quer para descobrir a existéncia real dos objetos ou as relagoes entre cles. E. somente a cansaris que produz uma conexio capaz de nos assegurar, a partir da existéncia ou acio de um objeto, que uma outra existéncia ou acio a precedeu ou seguiu. (Hume, Treafive [1739-1740], 1.3.2.2) Hume chega, pois, a0 mesmo ponto a que chegaria depois na Investiqatio, porém por um sofisticado processo de enumeracio © exclusio. Nao examinarei aqui possiveis dificuldades que esse processo envolve!, Neste ponto comeca, no Traiado, a ambigtidade de sentido do termo objeto, que ora designa percepedes, ora objetos reais do mundo. Mas esse ponto delicado nio precisa ser explicitamente discutido agora, © contexto deixando clara a acepei em que o temo € empregado. Sobre isso, ver Kemp Smith, 1941, cap. 15. Nese capitulo o a 424 1 também discute © ponto mencionado nota precedente 3 ANATUREZA DAS INFERENCIAS CAUSAIS im seguida, Hume lanca-se, no Tnifade, numa longa busca das impressoes das quais a idéia de causacio possa se originar. Isso é necessario para conferir clareza a idéia e, por conseguint raciocinios que a envolvam. No entanto, essa busca logo se interrompe, por falta temporaria de material empitico, por assim dizer. Hume nao consegue encontrar a impressio da qual deriva a idéia de conexio necessiria — que ele reputa como 0 componente ma [1739-1740], 1.3. efeitos causa AOS NOSSOS is importante da idéin de causacio (Hume, Treaise 11) — nem pelo exame de casos individuais, nem de conjuncées regulares de causas € F entio que Hume propde uma intrigante inversio de método: investigar antes as injerincias s, para depois completar, se tudo der certo, a anilise da idéia de causacao. Mesmo antes de propor explicitamente esse curioso método (em Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.6.3), Hume ja havia comecado a identificar as s € efeitos”, numa pequena secao que leva ¢ s de Hume (Trvative [1739-1740], 1.3.5.1), ¢ “partes componentes de nossos raciocinios sobre titulo © na que a segue (ibid, 1.3.4 © 5). Na partes cat expressé 1. Uma “impressio da meméria ou dos sentidos' 2. Uma “idéia daquela existéncia que produz ou é produzida pelo objeto da impressio”; 3. A “transicio” da impressio para “a idéia da causa ou efeito conectado”. A primeira tese importante que Hume sustenta é que a inferéncia em questi nao deriva meramente de uma inspecio desses objetos, considerados individualmente!: Nio hi nenhum objeto que implique a existéncia de nenhum outro, se considerarmos esses objetos em si mesmos, nunca olhando além das idéias que deles formamos. Tal inferéncia redundaria em conhecimento, ¢ implicaria a absoluta contradicio ¢ impossibilidade de se conceber algo diferente. Como, porém, todas as idéias distintas sio separiveis, é evidente que nio pode haver nenhuma impossibilidade desse tipo. (Hume, ‘Treatise [1739-1740], 1.3.6.1) Dai Hume conclui que “é somente pela experiéncia que a existeéncia de um objeto pode ser inferida a partir da existéncia de outro.” Na secio 2 dessa mesma parte 3, Hume ja havia estabelecido que essa esperiéncia envolve a contigiiidade © a anterioridade temporal das causas relativamente aos efeitos. Mas isso evidentemente nio é tudo. Agora identifica um tercciro clemento: a conjungio constante em casos semelhantes (Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.6.2-3). Tio logo tenhamos tido a experiéncia dessa conjuncao constante ou regular passamos a inferir efeitos de causas, ou vice-versa: Em todos os casos nos quais aprendemos a conjuncio de os efeitos foram percebidos pelos sentidos, © sio rememorados. Mas em todos os casos em que raciocinamos sobre cles apenas um ¢ percebido ou rememorado, ¢ 0 outro fornecido de conformidade com nossa experiéneia passada. (Hume, Treafive [1739-1740], 1.3.6.2; grifei) sas e efeitos particulares, ambos as causas ¢ Embora importante, essa relacio de conjuncio constante, que acaba de ser descoberta pela consideracio de uma multiplicidade de casos semelhantes, ndo parece ajudar muito na descoberta da conexio necesséria, que & © quarto e iiltimo elemento essencial da relacio causal. “Da repeticio de uma impressio passada qualquer [...] nunca surgiri uma idéia nova original, como a de conexio n (Hume, Trewéise [1739-1740], 1.3.6.3). F. precisamente aqui que Hume suspende a busca das origens dessa idéia — busca retomada na secio 14 —, para aprofundar 0 estudo das inferéncias causais. Visto que tais inferéncias dependem da experiéncia da conjungio constante, devemos determinar ‘se a experiencia produz a idéia [inferida] por meio do entendimento ou da imaginacio” (Hume, Treative [1739-1740], 1.3.6.4). Se fosse pelo entendimento, pondera Hume, ele teria de basear-se no principio de que o curso da Natureza continua sempre 0 mesmo. Mas essa proposicio funda-se ou em argumentos demonstrativos ou em argumentos “de probabilidade”, i. ¢ o dilema . acerca de questoes de fato. * Cumpre notar que essa tese ndo ¢ original de Hume: alguns de seus precursores prox defendido. famoso armado por Hume’. Quanto 20 primeiro ramo do dilema, é facil ver que a referida suposicio nao se baseia numa demonstracio, pelo simples fato de podermos perfeitamente conceber uma alteracio no curso da Natureza. E “formar uma idéia clara de uma coisa é um argumento inegivel para sua possibilidade”, ¢, portanto, do carater nao demonstrativo (ou intuitive) de seu contrario (Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.6.5). Mas o segundo ramo do dilema também esti bloqueado, pois ja ficou estabelecido que os aveis” assentam na rela¢ 10 causal, que a seu tumo deriva da casos passados certos objetos mo: provivel funda-se na suposicio de uma semelhanca entre os objetos acerca dos quai tivemes periéncia de que em raram-se sempre conjugados. Assim, todo racioino experiéncia e aqueles que nio experimentamos. E, pois, impossivel que essa suposicio se apéie em raciocinios proviveis, pois desse modo haveria uma circularidade (Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.67, Esse resultado negativo é enunciado sinteticamente por Hume um pouco adiante Assim, nao apenas nossa razio falha na descoberta da conexio sltima de causas e efeitos, mas mesmo apos a experiéncia haver-nos informado de sua voujuncio constante & impossivel satisfazer-nos pela razio por que devamos estender essa experiéncia além dos casos particulares que cairam sob nossa obyervacio. [| 4 razio [i.c., 0 entendimento] m de um objeto com outro, embora auxiliada pela experiéncia, ¢ pela observacio de sua conjuncio constante em todos os casos passados. (Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.6.11-12) nca pode nos mostrar a cone A conclusio final de Hume, tio original quanto desconcertante, é a de que as inferéncias causis dependem de outra faculdade da mente: a émaginacao: Portanto, quando a mente passa da idéia ou impressio de um objeto para a crenca ou idéia de outro, determinada pela aza0, mas por certos principios que associam as idéias desses objet imaginagao. Se as idéias no possuissem na imaginacio mais unido do que os objetos posstiem no entendimento, jamais poderiamos extrair nenhuma inferéncia de causas a efeitos, nem depositar crenca cm nenhuma questio de fato [aio observadal. inferéncia depende, pois, unicamente da uniio de idéias {na imaginacao]. (Hume, Treatise [1739-1740], 1.3.6.12; grifei) € 0 une ma Na secio 4 da primeira parte do livro 1 do Trafado, Hume ji havia apresentado a tese de que hi tris principios gerais de associacio de idéias na imaginacao: semelhanca, contigitidade ¢ causagao’. Parec pois, claro que Hume agora esta se referindo a cles novamente’. Aprofundando a anilise, Hume procura mostrar agora, nas secdes 8 ¢ 9 dessa parte 3, que embora a semelhanca e a contigtiidade possam reforcar as inferéncias causais (na medida em que contsibuem para avivar a idéia interida, ¢ portanto a crenga em seu objeto), por s (0 podem conduzir a nenhuma conclu: associacio por causa ¢ efeito que € capaz disso. ‘Ao detalhar 0 ponto na primeira dessas secdes, Hume usa pela primeira vez, no Tratado, 0 termo costume para se relerir 4 “origem” da crenca que se segue de uma impressio presente que, em casos semelhantes observados no passado, sempre esteve conjugada a impressio correspondente ao objeto dc somente a a crenca. Uma das poucas melhorias introduzidas pela Inrestigagio, relativamente ao Trutad, diz respeito justamente 4 explicacio desse ponto fundamental. Na secio 4, Hume apresenta as raz6es céticas para a exclusio das inferéncias causais do ambito do entendimento. Quase em seu final, esclarece que nao esti 5 Cumpre notar que e: Jo € original de Hume; alguns de seus precursores pro mos, como Malebranche, ji a haviam defendido. & Como se sabi seco 3 da Investgasio, porém ali é, curiosamente, estendida para outra facukdade da ‘mente, memoria 7 Monteiro, 2000, sustentou, de forma original, que se trata de outra coisa. Nao posso aqui me deter no exame dessa tes, cui sustentabilidade no me parece clara. 426 pondo em chivida a autoridade da experiéncia: somente um louco o faria. O que pretende é como filosofo, “examinar o principio da natureza humana capaz de dar essa poderosa autoridade i experiéncia” (Hume, Enquiry [1748], 4.20). Na secio seguinte prossegue trangiilizando o leitor. Nao se deve temer, diz ele, que essa filosofia perturbe nossas apie, jd que a Natureza sempre prevalec quaisquer raciocinios abstratos. Assim, embora em nossas inferéncias experimentais haja, como mostrou, um passo que a mente di sem o apoio de nenhum raciocinio ou processo do entendimento, ‘0 nao poe em isco tais inferéncias, “das quais depende quase todo o nosso conhecimento. Se a mente nao ¢ levada a efetuar esse passo por argumentos, tem de ser induzida por algum principio de igual peso e autoridade” (Hume, Enquiry |1748], 5.2; grifei). Esse principio é 0 “Costume ou Habito”, conclui Hume logo adiante (5.5): o habito que se forma a Partir da observacio de casos repetidos de sucessio de dois tipos de objetos ou processos. Adverte, Porém, que nao pretende haver dado assim a causa tiltima da propensio que temos de extrapolar a ;periéncia passada; apenas indicou um importante principio da natureza humana, bem conhecido por seus efeitos. Hume classifica essa sua proposta como uma “hipétese”, que se recomenda a nossa aceitacio pela virtude de poder explicar, entre outras coisas, por que as inferéncias causais nao sio extraidas a partir de um Gnico caso, mas apenas de uma multiplicidade de casos semelhantes*. ‘i sobre 4 OESTATUTODA “SOLUCAO CETICA” DE HUME Proposta humeana, de que as inferéncias causais — uma das mais importantes formas de inferéncia — nao sio da alcada do entendimento, ou seja, da parte cogitativa da mente humana, ficando a cargo da imaginacao, naturalmente favoreceu uma interpretacao puramente cética de sua teoria. De fato, tal interpretacdo predominou nas duas centenas de anos que se seguiram ao aparecimento das obras de Hume. Que credenciais epistémicas poderia ter a imaginacao, faculdade usualmente 4 ficcio, 4 poesia e outras formas de criacio artistica? Como, operando sobre a base de meros habitos, poderia gerar conhecimento legitimo? Nao obstante essas objecdes, 0 século 3 istiu ao surgimento de uma ope interpretativa que cada vez ganha mais adeptos. Uma figura central nessa nova abordagem foi Norman Kemp Smith, que apontou, ji em 1905, a presenca de tracos naturalistas no pensamento de Hume. O assunto foi amplamente desenvolvido no seu clissico liveo de 1941, The philosophy of David Flume. Outros autores depois seguiram a mesma vertente, esforcando-se por mostrar que a teoria humeana do conhecimento ~ em particular a porcio sobre as inferéncias causais ~ comporta uma interpretacio positiva’, Nao ha espaco aqui para adentrar essa complexa controvérsia. Queria apenas mencionar que a nova interpretacio chama a ateneao para passagens como a que transcrevi ha pouco, na qual Hume afirma que as inferéncias causais “tem de ser induzidals] por algum principio de igual peso e autoridade” que as demonstracdes do entendimento (Hume, Enguity [1748], 5.2). Vejamos ainda estes comentarios, que Hume adita um pouco mais adiante: ass O costume é, pois, o grande guia da vida humana. apenas ele que toma a nossa experiéneia itil para nos, € nos faz esperar, no futuro, uma seqiiéncia de eventos similar 4s que nos apareceram no pasado. Sem a influéncia do costume seriamos sofalmente iqnorantes acerca de toda questio de fato que se estenda além do que esti imediatamente presente 4 meméria © aos sentidos. Nunca saberiamas como ajustar os meios para os fins, ou empregar nossos poderes naturais na produgio de qualquer efeito. (Hume, Enguiry [1748], 5.6; grifei) * Ver, porém, Hume, Treafve (1739-1740), 1.3.8:14 para uma qualific Jo. Sobre esse assunto, cconsulte-se também Monteiro, 1997 terpretacio nio-eétic 3alen Strawson ¢ Joao Paulo Monteir » importante dessa afiema ? Entre os proponentes dessa ‘ou de um cet Edward Cr estilo Nelson € xclman, John Wright, smo mitigas no final ver referéncia 42) que mesmo na interpretacio positiva da teoria epistemolégica de Hume ~ 0 “Novo Hume’, na expressio mordaz de Kenneth Winkler (1991), um de seus mais importantes criticos — 0 que s infere causalmente nao tem o estatuto de uma certeza plena, ou “metafisica”, mas apenas de “certera moral”, para adaptar uma expressio usada por Descartes em outro contexto. Quanto a enfraquecimento de nosso ideal epistémico, devemos nos lembrar das clogiientes observacoes de Goodman, no clissico “The new riddle of induction”, de que © problema tratado por Hume “nao pode set 0 de se alcanear conhecimento inalcancivel ou de dar conta de um conhecimento que de fato temo”. Segundo Goodman, “devemos desculpas tardias a Hume” (1983, p. 64), por haver “solugao cética” de seu problema como se nio fosse nenhuma solucdo. A solucao é cética na medida em que se desenvolve fora do ambito tradicional do entendimento, mas nem por isso deixa de ser uma solucao se interpretado aquilo que cle mesmo chamou de Quio satisfatéria é essa resposta [das inferéncias causais baseadas no habito? As criticas mais pesadas assumiram a posicio legalista de que o tritamento de Hume pertence, quando muito, questio da fonte das predigdes, nio i de sua legitimidade; que ele estabelece as circunstincias sob as quais fazemos dadas predicdes — e nesse sentido explica por que as fazemos ~, mas deixa intacta a questio de nossa petmissio para fazé-las. Indicar origens nao é estabelecer validade, diz. a velha queixa: a questio real nio € por que uma predicao de fato é feita, mas como pode ser justificada. Visto que isso aponta para a incimod conclusio de que o maior dos fil6sofos modernos perdeu completamente 0 ponto de seu proprio problema, desenvolvewse a idéia de que, na verdade, ele nio levou muito considerando 0 problema principal como nio resolvido, ou talvez insolivel de Hume’ como se 0 tivesse proposto como uma qu sério. sua solucio, im, do ‘problema stio sem resposta. [..] Tudo isso me parece muito cerrado. Penso que Hume capturou a questio central e considerou sua resposta passavelmente efetiva. E Penso que essa resposta é razoaivel ¢ relevante, mesmo que nao seja inteiramente satisfat6ria. (Goodman, 1983, pp. 60-61) Falamos, a Entre tazOes para essa insatisfacio com a solucio de Hume talvez esteja a dificuldade, dentro da teoria humeana, de se distinguir as regularidades causais das regularidades que 0 senso comum se recusaria a dar como causais (0 apito do trem seguindo-se regularmente por sua chegada na estacao, por exemplo). Outro ponto fraco, apontado, entre outros, por Kemp Smith, mas percebido também pelo proprio Hume, liga-se & nocio de crenga causal, que Hume inicialmente tenta explicar exclusivamente em termos da vivacidade de idéias. Mas isso tudo constitui assunto para outro artigo (Chibeni, 2006). Quero, para concluir, considerar brevemente a intrigante questio da auséncia do t6pico das inferéncias causais nas discussdes epistemolégicas contemporineas. Limito-me a apontar, para esse fato, as seguintes razde 1. O cariter revolucionitio da “solucio” humeana do problema da natureza das inferéncias causais, que levou, como indiquei, a uma interpretacio cética de aceitagio quase generalizada, até bem recentemente Hume teria demonstrado, de uma vez por todas, a natureza nao cognitiva de tais inferéncias, que deixaram, por conseguinte, de ser levadas a sério nas discussdes epistemologicas. 2. A pregacio contra a nocio de causa (por essa raz40 € por outras) feita por alguns filésofos contemporineos, notadamente Bertrand Russell, que chegou a propor abertamente o banimento total ¢ definitive da nogao, tanto na ciéncia como na propria filosofia. Mais tarde cle se arrependeu, mas 0 estrago ja estava feito (Chibeni, 2002). \ suposicio de que o problema tratado por Hume era 0 problema da indugio. As inferéncias causais de Hume nada seriam senio inferéncias indutivas. Assim, 0 que se acreditava relevante na teoria humeana estaria englobado na discussio deste tiltimo problema. Pode-se, porém, argumentar que esse é um engano interpretativo (Monteiro, 2001). "© Goodman, 1983, p. 62. Note-se que, como quase todo mundo, Goodman identifica 0 referido problema de Hume com 0 problema da inducio. Acredito que essa identificaclo seja 428, icorreta (ver © pentiltimo parigrafo deste artigo). stdes mio poderio set desenvolvidas aqui. Espero que, ao menos, representem um desafio para anilises historicas ¢ epistemol6gicas ulteriores. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CHIBENI, Silvio Seno. Russell ea nocio de causa. Principia 5 (1-2): 125-47, 2002. ——. Hume e as crencas causais. Pp. 143-149, i: AHUMADA, José; PANTALONE, Marzio: RODRIGUEZ, Victor (eds.). Epistemologiae historia de la cencia. Selecstin de trabajos de las XV Jornadas. Volumen 12. Cérdoba: Universidad Nacional de Cordoba, 2006. CRAIG, Edward. The mind of God and the works of man. Oxford: Clarendon Press, 1987. GOODMAN, Nelson. The new riddle of induction. Pp. 59-83, im GOODMAN, Nelson. Fact, fiction and forecast (1954). 4. ed. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983. HUME, David. A treatise of human nature [1739-1740]. Ed. D. F. Norton & M. J. Norton, Oxford: Oxford University Press, 2000. ——. An enguiry concerning human understanding (1748). Es Press, 1999. KEMP SMITH, Norman. The naturalism of Hume. Mind 14: 149-73; 335-47, 1905. ——. 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