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colocada-em-pratica

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 215, 01 de Setembro | 2008

Prática Pedagógica

Gérard Vergnaud: "Todos


perdem quando a
pesquisa não é colocada
em prática"
O pesquisador francês, uma referência na didática de
Matemática, diz que só conhecendo a forma como os
alunos aprendem é possível ensinar
Gabriel Pillar Grossi

No campo do ensino da Matemática, poucos


nomes são tão respeitados quanto o de
Gérard Vergnaud. Aos 75 anos de idade e
depois de orientar mais de 80 teses de
mestrado e doutorado, ele continua
trabalhando como diretor emérito de estudos
do Centro Nacional de Pesquisas Científicas
(CNRS, na sigla em francês), em Paris. Formado
em Psicologia, fez a própria tese de
doutoramento com ninguém menos que Jean
Piaget. "O título era A Resposta Instrumental
como Resolução de Problemas. Pura teoria",
Gérard Vergnaud
lembra Vergnaud. De lá para cá, passou a se
dedicar cada vez mais aos aspectos práticos - a
didática da disciplina. Sua descoberta mais
importante é a chamada Teoria dos Campos Conceituais, que ajuda a
entender como as crianças constroem os conhecimentos matemáticos.
"Infelizmente, na Educação, não temos o hábito de levar o resultado das
pesquisas para dentro da sala de aula, como fazem regularmente médicos e
outros cientistas, e isso é uma perda muito grande para nós", diz. Em
outubro, ele vem a São Paulo a convite da Fundação Victor Civita para falar
sobre seus estudos durante a Semana de Educação. Saiba mais por que é tão
importante conhecer os processos de aprendizagem dos alunos na entrevista
a seguir, concedida no fim de abril, quando Vergnaud esteve na capital
gaúcha para prestar consultoria a professores locais.

O que é, resumidamente, a Teoria dos Campos Conceituais?


GÉRARD VERGNAUD O resultado de muita pesquisa com estudantes, que
nos leva a compreender como eles constroem conhecimentos matemáticos.
Ela é fundamental para ensinar a disciplina, pois permite prever formas mais
eficientes de trabalhar os conteúdos. Na minha palestra, quero mostrar a
relação entre essa teoria e a prática escolar.

É fácil fazer essa transposição para a sala de aula?


VERGNAUD Nem sempre. Mas, se não levamos os resultados das pesquisas
para a sala de aula, perdemos muito. Na maioria dos campos da Ciência,
existe a percepção de que, se alguém cria uma teoria, isso é bom. Em
Educação, essa idéia infelizmente não é tão difundida. Muitos resistem às
descobertas por acreditar que basta repetir o que é feito há séculos.

Como aumentar o interesse dos professores pelas pesquisas didáticas?


VERGNAUD É preciso entender que tudo é muito novo. Há 30 anos, ninguém
estudava isso. Aos poucos, foram sendo feitos trabalhos para explicar como a
criança aprende. Hoje, quando um pesquisador apresenta resultados que
mudam conceitos amplamente difundidos, a primeira reação é de surpresa.
Em seguida, alguns falam: "Ah, é interessante". Daí a mudar a prática de sala
de aula, leva tempo. A Teoria dos Campos Conceituais está apenas
começando a ser utilizada nos cursos de formação.

Mas os ganhos para quem usa esse conhecimento são enormes.


VERGNAUD Sem dúvida, porque o professor passa a compreender melhor o
que faz em classe. No caso da Matemática, é muito claro que as crianças têm
necessidade de assimilar aquilo que pedimos que elas façam. Por isso, temos
de propor situações nas quais a soma faça sentido, a subtração faça sentido -
e isso vale para a escolha dos dados, não só para as contas. E vale também
para o professor. Se ele vê os alunos errar sem entender o percurso que
estão trilhando, todo o trabalho se perde, não funciona.

Como o professor consegue sair do estágio de "entender a teoria" para


"usá-la na prática"?
VERGNAUD Só com muita formação. Aqueles que usam bem a Teoria dos
Campos Conceituais no dia-a-dia são os que voltaram a ela, testaram coisas
com seus alunos, cometeram erros, recomeçaram. Só assim é possível
dominar o assunto e se sentir seguro na prática.
"Se o professor vê os alunos errar sem entender o percurso que estão
trilhando, o trabalho não funciona."

Como os professores podem interferir nesse processo?


VERGNAUD Jean Piaget disse que o conhecimento é uma adaptação a
situações nas quais é necessário fazer algo. Por isso, se não confrontamos as
crianças com situações nas quais elas precisem desenvolver conceitos,
ferramentas, limites, elas não têm razão para aprender. Isso vale para a
escola, mas também para a vida, para a experiência profissional. Em
Matemática, por exemplo, insistimos na chamada resolução de problemas -
propor situações que as crianças não sabem resolver para fazer evoluir em
seus conhecimentos. Portanto, queremos desestabilizá-las. E se
desestabilizarmos demais? Elas também não vão aprender. Portanto,
gerenciar o aprendizado é gerenciar ao mesmo tempo a desestabilização e a
estabilização. Portanto, temos de pensar mais e propor situações corriqueiras
aos que estão aprendendo. Sempre fizemos isso, às vezes de forma intuitiva.
O que minha teoria propõe é que precisamos pensar de forma mais
sistemática. O grande desafio do professor é ampliar as dificuldades para as
crianças, mas sabendo o que está fazendo e aonde quer chegar.

O senhor pode dar alguns exemplos de como as crianças constroem o


conhecimento matemático?
VERGNAUD Aos 5 anos, as crianças já compreendem alguns aspectos da
adição. O primeiro modelo que elas aprendem é a reunião de duas partes em
um todo: três meninos, quatro meninas, quantas crianças no total? Só mais
tarde, porém, elas vão conseguir entender, por exemplo, como saber quantas
meninas há no grupo se o total é sete e o número de meninos é três. Na
minha pesquisa, descobri que, em média, são dois Anos para passar do
primeiro estágio para o segundo. Dois Anos! Outro exemplo é a
transformação que tem relação com o tempo, não com o espaço. Eu tinha 4
reais no bolso, minha avó chegou e me deu mais 3 reais. Ou: eu tinha 9 reais
e agora tenho 4. O que aconteceu? Parece fácil, mas para uma criança não é.
Outro caso: tenho 5 reais a mais do que você. Eu tenho 12, quanto você tem?
E ainda há as transformações sucessivas. Ganhei quatro bolas de gude e
depois perdi seis. Mais quatro, menos seis. Ah, perdi duas. Não é tão óbvio
aos 8 ou 9 Anos. Vamos complicar um pouco mais. Joguei duas rodadas de
bola de gude. Sei que perdi seis na segunda e que, no total, ganhei 15. O que
aconteceu na primeira partida? Até os 13, 14 Anos, muitos jovens não
conseguem achar o resultado. "Não consigo resolver o problema porque não
sei quantas eu tinha no início", eles dizem.

O que é possível fazer diante de situações desse tipo?


VERGNAUD O que descobri é que há seis tipos de problemas ligados à
adição e subtração. E é óbvio que, se os números forem grandes, ou
decimais, tudo fica ainda mais complicado. No caso de frações, nem se fala.
Na sala de aula, o professor até pode propor atividades, mas, se não souber
como os alunos avançam, passo a passo, eles talvez compreendam o jogo
proposto, porém não vão saber calcular. Para um adulto, o exercício de
subtrair as bolas de gude que ganhou, para saber quantas tinha no início do
jogo, pode parecer simples. Mas, aos 7, 8 ou 9 anos, não é nada fácil
compreender esse conceito matemático. Mesmo com números pequenos, as
crianças costumam ter muitas dificuldades. Se o professor sabe disso e
dispõe de uma boa variedade de exercícios para propor, ótimo. Se ele fica
numa única atividade, a garotada que não entende a própria proposta do
trabalho perde o interesse e nem se preocupa mais em acertar.

A Matemática é difícil de verdade? Por que tanta gente diz não gostar dessa
disciplina?
VERGNAUD O problema é que a escola valoriza demais os símbolos e pouco
a realidade. Os alunos não vêem utilidade naquilo e pensam: "Isso não me
interessa. É abstrato e não serve para nada".

O senhor já esteve no Brasil uma dezena de vezes. É possível comparar a


situação daqui com a da França?
VERGNAUD Alguns problemas são semelhantes, ainda que no Brasil o
tamanho da rede seja muito maior. A repetência e o analfabetismo, por
exemplo, afetam uma proporção muito maior da população. Quando você
observa a reprovação na França, no entanto, cai nas mesmas dificuldades
daqui: a Língua e a Matemática. O paradoxo é que as crianças aprendem a
falar sem dificuldades, mas não aprendem a ler e escrever sem problemas.
Isso ocorre porque a função da escrita não é óbvia para as crianças,
sobretudo se as famílias não têm o hábito de ler. Se os pais lêem o jornal
todo dia, isso faz uma diferença enorme. E aqui há um abismo entre a França,
cuja população é muito mais letrada, e o Brasil, onde milhões de alunos
chegam à escola sem as noções básicas da estrutura e do funcionamento da
língua. Percebo também que muitos professores brasileiros são obrigados a
dar aula em mais de uma escola. Na França, as crianças passam o dia todo
em classe. Aqui, é um turno só. E há a questão da formação, que também é
pior aqui. Não podemos esperar grandes sucessos com professores que são
mal formados, trabalham muito e, além de tudo, não são bem pagos na rede
pública.

"A questão é que a Educação é considerada custo, não investimento. São


os homens que produzem coisas novas, não é o capital."

O que é necessário mudar na dinâmica das escolas atuais?


VERGNAUD Muitas coisas. A Educação é um universo muito complexo e é
preciso enxergá-la como um grande sistema. Se o ministro comete erros na
definição das políticas, se não existem objetivos claros e se não há recursos
adequados para a formação inicial e continuada, é ridículo responsabilizar o
educador individualmente. A responsabilidade pelo fracasso é do sistema. A
questão principal é que a Educação das crianças e a formação dos adultos são
consideradas custo, e não investimento. São os homens que produzem coisas
novas, não é o capital. Só que ainda não sabemos calcular que retorno a
formação dá sobre esse investimento.

Qual é o papel da formação docente nesse contexto?


VERGNAUD É primordial, ainda que seja necessário ter consciência de que
não existem milagres, que ninguém vai conseguir eliminar todos os
problemas de um dia para o outro. Mas, se podemos dar ao professor os
meios de conhecer melhor seu trabalho, os limites de sua ação, os obstáculos
que vão encontrar e as formas de controlar a evolução das turmas, é absurdo
não fazer isso. Eu gosto de uma metáfora da aviação: se não tenho os
instrumentos para pilotar, me falta algo essencial para atingir meus objetivos.

Esses instrumentos, no campo da Educação, são a didática?


VERGNAUD Sim, a didática é a chave do conhecimento escolar hoje. Mas é
mais do que isso. Precisamos compreender que existe a didática da
Matemática, a da Física, a da História etc. E, dentro da didática da
Matemática, a das estruturas aditivas não é a mesma das estruturas
multiplicativas. E assim por diante. É essencial tomar consciência dessas
especificidades dentro da especificidade de cada disciplina, pois elas têm seu
papel. O fato novo dos últimos 30 Anos é dizer: "Prestem atenção nas
didáticas da Matemática. A da Educação Física não é igual para o vôlei e o
tênis, ainda que exista uma relação entre esses dois esportes".

E se não fizermos isso?


VERGNAUD O preço a pagar será o fracasso escolar - ao menos para um
grupo de estudantes. Alguns aprendem, mesmo se mal ensinados. Porém
outros, mesmo se bem ensinados, fracassam quando o professor não
domina a didática. Há quem considere isso um problema dos alunos. "Uns
são inteligentes e se dão bem, outros não são e não conseguem." Mas o fato
é que existe uma margem de manobra muito importante, um papel essencial
a ser desempenhado, dentro da sala de aula, pelos professores. Esse avanço
é lento, mas percebo que cada vez mais gente fala essa mesma língua.

Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA
As Ciências da Educação, Eric Plaisance e Gérard Vergnaud, 152 págs., Ed. Loyola, tel. (11) 2914-1922, 22,40 reais
Atividade Humana e Conceituação, Gérard Vergnaud, 65 págs., Geempa, tel. (51) 3226-5218, 30 reais
Campo Conceitual da Multiplicação, Gérard Vergnaud, 41 págs., Geempa, 3 reais

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